Arquitetura amazônica : tradição, tradução e inovação

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ARQUITETURA

AMAZÔNICA: TRADIÇÃO, TRADUÇÃO E INOVAÇÃO

CYBELLE SALVADOR MIRANDA DINAH REIKO TUTYIA RONALDO MARQUES DE CARVALHO (Organizadores)


ARQUITETURA

AMAZÔNICA:

TRADIÇÃO, TRADUÇÃO E INOVAÇÃO



CYBELLE SALVADOR MIRANDA DINAH REIKO TUTYIA RONALDO MARQUES DE CARVALHO (ORGANIZADORES)

ARQUITETURA

AMAZÔNICA: TRADIÇÃO, TRADUÇÃO E INOVAÇÃO


Administração Superior da UFPA Reitor: Prof. Dr. Emmanuel Zagurhy Tourinho Vice-reitor: Prof. D. Gilmar Pereira da Silva Pró-Reitor de Administração: Prof. Dr. João de França Mendes Neto Pró-Reitora de Planejamento: Profª. Drª. Raquel Trindade Borges Pró-Reitor de Ensino de Graduação: Prof. Dr. Edmar Tavares da Costa Pró-Reitor de Extensão: Prof. Dr. Nelson José de Souza Júnior Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Profª. Drª. Maria Iracilda da Cunha Sampaio Pró-Reitor de Desenvolvimento e Gestão de Pessoal: Prof. Drº Raimundo da Costa Almeida Pró-Reitora de Relações Internacionais: Profª. Drª. Marília de Nazaré De Oliveira Ferreira Prefeito do Campus: Prof. Dr. Eliomar Azevedo Do Carmo Direção do Instituto de Tecnologia - ITEC Diretor Geral: Prof. Dr. Newton Sure Soeiro Diretor Adjunto: Prof. Dr. Hito Braga de Moraes Direção da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - FAU Diretora: Profª Drª Roberta Menezes Rodrigues Vice-Diretora: Profª. Drª Vanessa Watrin Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo - PPGAU Coordenadora: Profª. Drª Cybelle Salvador Miranda Vice Coordenador: Prof. Dr. José Júlio Lima Copyright © 2021 by Cybelle Salvador Miranda et al Grafia atualizada conforme o novo Acordo Ortográfico da Língua Portugesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009. Capa Tapeçaria desenhada e executada por Cybelle Miranda. Diagramação Pedro Henrique Lobato Revisão Talita Bastos Projeto Gráfico Gyzelle Góes Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) M672a

Miranda, Cybelle Salvador

Arquitetura amazônica : tradição, tradução e inovação / Cybelle Salvador Miranda, Dinah Reiko Tutyia, Ronaldo Marques de Carvalho – Belém: Folheando, 2021. 376 p. il. ISBN: 978-65-88714-97-3 1. Arquitetura. 2. Arquitetura - Amazônia. I. Tutyia, Dinah Reiko. II. Carvalho, Ronaldo Marques de. III. Título. CDD: Ed. 23 – 720 Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário Semias Araújo CRB-2/1225

[2021] editora folheando Rua Quinze de Agosto, 51 66821-345 — Belém — pa Telefone: (91) 99159-6480 contato@editorafolheando.com.br www.editorafolheando.com.br facebook.com/editorafolheando instagram.com/editorafolheando


Sumário

PREFÁCIO............................................................................................8 APRESENTAÇÃO...............................................................................14 RECONHECENDO A TRADIÇÃO CASARÃO AYRES, MAZAGÃO (AP): uma experiência de interação entre Universidade e sociedade na construção de suas referências culturais .......22 Dinah Reiko Tutyia, Cybelle Salvador Miranda, Ronaldo Marques de Carvalho Guilherme Pantoja Alfaia, Raimundo Lobato Marques

ENTRE O TOMBAMENTO E O APAGAMENTO: a casa “colonial” da travessa Joaquim Távora, Cidade Velha em Belém do Pará.....................45 Dinah Reiko Tutyia

AS JANELAS DO AFETO EM CASAS DOBRADAS: matéria, memória e artefato...............................................................................................77 Cybelle Salvador Miranda, Ronaldo Marques de Carvalho, Beatriz Martins Maneschy

ESTUDO DAS FACHADAS NEOCOLONIAIS EM BELÉM: linguagem arquitetônica tradicionalista no bairro de Nazaré.................................108 Felipe Moreira Azevedo, Cybelle Salvador Miranda

TRADUÇÃO: VERSÃO DE UM PASSADO CIDADE VELHA: um exercício de apreensão da imagem do conjunto patrimonial tombado em Belém do Pará ....................................................140 Dinah Reiko Tutyia, Cybelle Salvador Miranda


VOZES E MEMÓRIA: uma proposta arquitetônica de um ponto de memória em tecnologia em terra em Mazagão Velho (AP).............................................165 Guilherme Pantoja Alfaia, Dinah Tutyia

UMA HABITAÇÃO PARA O TRÓPICO ÚMIDO: projeto para um terreno estreito ...................................................................................194 Ronaldo Marques de Carvalho

O CHALÉ DE ANTONIO LEMOS EM TRÊS DIMENSÕES: memória, criptohistória e reabilitação paisagística..........................................233 Cybelle Salvador Miranda, Rony Helder Nogueira Cordeiro, Flavia Galende Marques de Carvalho

POR UMA ARQUITETURA PARAENSE NUM PROCESSO DE INOVAÇÃO

USO DA TECNOLOGIA BIM PARA A DOCUMENTAÇÃO DO PATRIMÔNIO: a Reabilitação do chalé 522 da Avenida Nazaré........262 Bianca Barbosa do Nascimento, Cybelle Salvador Miranda

O MÉTODO E A METODOLOGIA PROJETUAL ARQUITETÔNICA: do Modernismo ao Pluralismo Contemporâneo..................................293 Ronaldo Marques de Carvalho

COBRINDO GRANDES VÃOS: a utilização da madeira, do metal e do concreto armado para a construção das estruturas................................317 Ronaldo Marques de Carvalho

AS PLACAS DO FORRO DE ESTUQUE DA ANTIGA CAPELA DA SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DO PARÁ: elaboração de protótipos como subsídio para reabilitação...............................................................344 Bianca Barbosa do Nascimento, Larissa Silva Leal, Ronaldo Marques de Carvalho

ORGANIZADORES..........................................................................370 AUTORES..........................................................................................374


PREFÁCIO

O

livro Arquitetura Amazônica: Tradição, Tradução E Inovação, organizado pelos professores Cybelle Salvador Miranda, Dinah Reiko Tutyia e Ronaldo Marques de Carvalho, traz em seus 15 artigos um panorama da pesquisa acadêmica e extensionista desenvolvida no Curso de Arquitetura e Urbanismo e no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará e no Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Amapá. Estruturados nos três módulos que integram o título – Tradição, Tradução e Inovação –, os textos mostram um importante esforço de pesquisa, registro e análise da produção arquitetônica do Pará e do Amapá e de sua patrimonialização. O tema Tradição é debatido pelo viés da moradia e de suas diversas dimensões em relação ao patrimônio. Segundo os organizadores, associa “o registro da materialidade (técnicas e detalhes construtivos, morfologia, volumetria, elementos estéticos) à imaterialidade (memórias, afetividade, referências culturais)”. A habitação – com suas formas, ambientes, materiais construtivos, móveis e objetos – reflete o contexto histórico, geográfico, social e, sobretudo, cultural da Amazônia. 8


A Tradução compreendida como “versão de um passado” traz a atenção dos pesquisadores para “uma versão, uma transposição ou uma releitura de um tema arquitetônico de um outro momento histórico”. Neste sentido, os quatro textos do módulo desenvolvem reflexões sobre a arquitetura e seus princípios – venustas, firmitas e utilitas – ao longo do tempo, identificando na contemporaneidade permanências, adequações e rupturas. A Inovação mostra as possibilidades de contribuição das novas tecnologias para a preservação do patrimônio, seja na precisão do registro, na incrementação da pesquisa ou, ainda, nas soluções de intervenção, com o uso de novos materiais que prolongam a vida útil do bem cultural. Os três módulos do livro Arquitetura Amazônica: Tradição, Tradução E Inovação revelam uma produção acadêmica e extensionista robusta e abrangente, porém pouco conhecida em âmbito nacional. Os textos analisam bens culturais em suas diversas dimensões, na pluralidade de suas manifestações, em diferentes escalas e valores individuais, sociais, artísticos, históricos, de memória etc. O Patrimônio Cultural é aqui entendido como “um conjunto de recursos herdados do passado que as pessoas identificam” e “um reflexo e expressão dos seus valores, crenças, saberes e tradições em permanente evolução”, como explicita a Convenção de Faro (2005). Tal conceito mais alargado do Patrimônio Cultural, embora consolidado teoricamente – defendido na Carta de Veneza (1964) e no artigo 216 de nossa Constituição de 1988, entre outros documentos – apresenta morosidade na sua adoção. Trata-se de um processo em construção que pressupõe a identificação, a valoração e a salvaguarda dos bens culturais, além do envolvimento de toda a sociedade, temas presentes tanto no documento de Faro (2005) como nos artigos que compõem Arquitetura Amazônica: Tradição, Tradução E Inovação. Neste sentido, o livro traz uma importante contribuição para 9


a identificação dos bens culturais, à medida que expressa um compromisso com o seu conhecimento e análise, considerando aspectos históricos, estéticos, artísticos, formais e técnicos. Os textos filiam-se à uma tradição presente nas recomendações das Cartas Patrimoniais, desde o documento de Atenas (1931), e do IPHAN (1937), que se mantêm na atualidade. Concomitantemente, as pesquisas e levantamentos apresentados ultrapassam os “aspectos de forma e desenho, materiais e substância, uso e função, tradições e técnicas, localização e espaço” e registram o “espírito e o sentimento, e outros fatores internos e externos”, como destaca a Conferência de Nara (1994). Arquitetura Amazônica: Tradição, Tradução E Inovação contém análises e reflexões que buscam revelar as referências culturais dos bens estudados, suas características e os diferentes valores que lhe são atribuídos. Alinham-se com o entendimento contemporâneo sobre “a necessidade de colocar a pessoa e os valores humanos no centro de um conceito alargado e interdisciplinar de patrimônio cultural” (CONVENÇÃO DE FARO, 2005). Por sua vez, o tema da salvaguarda – aqui compreendido em sua amplitude e abarcando preservação, proteção, promoção, valorização, educação formal e não-formal e revitalização deste patrimônio – perpassa os diferentes trabalhos. Inclui-se neste direcionamento, a constatação em vários artigos da “profunda interdependência” entre o patrimônio cultural imaterial e o patrimônio material cultural, como afirma a Convenção para a salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (2003). Outro importante aspecto a ser destacado é a contribuição dos textos que se debruçam no uso da tecnologia para a documentação de bens culturais e de metodologias projetuais para as intervenções em preexistências. Se tais questões já tinham sua importância reconhecida em 1985, na Convenção para a salvaguarda do Patrimônio Arquitetônico da Europa, na atualidade elas se tornam imprescindíveis. 10


Por fim, registra-se a intenção e a ação deste grupo de professores e pesquisadores de dialogar com os diversos grupos sociais, buscando a identificação e valoração do Patrimônio Cultural da Amazônia. A Carta de Atenas (1931) já apontava que o “respeito” da sociedade pelos bens culturais contribuía para a sua efetiva preservação. Contemporaneamente, a participação social nos processos de salvaguarda e gestão do Patrimônio Cultural é considerada fundamental, questão reconhecida e sublinhada neste livro. As constantes referências ao alinhamento dos diversos autores de Arquitetura Amazônica: Tradição, Tradução E Inovação às premissas das Cartas Patrimoniais – desde a década de 1930, mas sobretudo às contemporâneas – buscam enfatizar a pertinência, a atualidade e, principalmente, a importância dos temas estudados. Os artigos do presente livro estruturam-se em arcabouços teóricos sólidos e revelam o papel substancial da academia no processo de preservação do Patrimônio Cultural. Boa leitura! Elizabeth Amorim de Castro Professora adjunta de Teoria e História da Arquitetura do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Paraná e do Curso de Especialização PARC: Patrimônio, Arquitetura, Cultura, da Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Pesquisa a História da Arquitetura e Urbanismo, com ênfase nos seguintes temas: Patrimônio Cultural, Patrimônio Cultural de Curitiba, Modernização/Higienismo de Curitiba, Hanseníase no Paraná, Arquitetura/História de Hospitais de Isolamento, Arquitetura/História de Colégios e Educandários e de Conventos e Seminários em Curitiba.

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REFERÊNCIAS BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988. Disponível: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao. Acesso: 2/10/2021. CONSELHO DA EUROPA. Convenção para a salvaguarda do Patrimônio Arquitetônico da Europa. Granada, 1985. Disponível: http://www.patrimoniocultural.gov.pt. Acesso: 2/10/2021. CONSELHO DA EUROPA. Convenção-Quadro do Conselho da Europa relativa ao valor do Patrimonio Cultural para a sociedade. Faro, 2005. Disponível: http://portal.iphan.gov.br. Acesso: 2/10/2021. ICOMOS. Carta internacional sobre conservação e restauração de monumentos e sítios. Veneza, 1964. Disponível: http://portal. iphan.gov.br. Acesso: 2/10/2021. SOCIEDADE DAS NAÇÕES. Carta de Atenas. Atenas, 1931. Disponível: http://portal.iphan.gov.br. Acesso: 2/10/2021. UNESCO. Conferência sobre a autenticidade em relação à convenção do Patrimônio Mundial. Nara, 1994. Disponível: http:// portal.iphan.gov.br. Acesso: 2/10/2021. UNESCO. Convenção para a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial. Paris, 2003. Disponível: http://portal.iphan.gov.br. Acesso: 2/10/2021.

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APRESENTAÇÃO

Ao longo de 12 anos, o Laboratório de Memória e Patrimônio Cultural vem sendo o espaço físico e intelectual de pesquisas, nos diversos níveis de formação, abrangendo graduandos que desenvolvem trabalhos de conclusão de curso, de iniciação científica e extensão, bem como mestrandos e, mais recentemente, doutorandos. Deste processo, articulado a partir de 2010 com o Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo, vem sendo produzidas pesquisas de significativo impacto no conhecimento e reconhecimento de nossa produção arquitetônica. Neste diálogo, que se estende e entrelaça com outras universidades brasileiras, a pesquisa iniciada no Mestrado do PPGAU/UFPA se amplia e diversifica na produção da atual professora Dinah Tutyia na Universidade Federal do Amapá (UNIFAP), em parceria sólida com o LAMEMO. Dinah agrega os saberes da Arquitetura, antropologia e História em orientação de graduandos, que trazem novos olhares acerca do patrimônio amazônico. Assim como o nosso decano, Professor Ronaldo Carvalho revive e reinventa sua trajetória acadêmica 14


e profissional em capítulos em que o método projetual, as técnicas construtivas e os estudos acerca da adaptabilidade climática da arquitetura regional servem de paradigma para o ensino da graduação. Este livro, portanto, visa alcançar os graduandos em Arquitetura, sendo acessível como leitura complementar a disciplinas de áreas diversas como: Teoria e História da Arquitetura, Estética, Projeto Arquitetônico, Preservação do Patrimônio e Tecnologia das Construções.

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RECONHECENDO A TRADIÇÃO



O

significado da tradição vem se modificando ao longo do tempo, especialmente quando tratamos deste conceito na nossa cultura, a amazônica. No campo da Antropologia os povos tradicionais são aqueles que já ocupavam o território antes da chegada dos colonizadores, que aqui se implantaram trazendo suas práticas e saberes, as quais necessariamente foram incorporadas e reformuladas. Assim, neste movimento dinâmico que forma a cultura, a tradição foi questionada com o advento da modernização nas cidades do Norte Brasileiro, especialmente na segunda metade do século XX. Baudrillard busca a gênese da Modernidade na descoberta do Novo Mundo no século XVI, visto que a Modernidade é marcante enquanto processo cultural Ocidental que se tornou possível através das descobertas tecnológicas, mas na verdade é marcada pela transmissão de um modo de vida ou cultura. O capitalismo, a metropolização, o desenvolvimento dos meios de difusão da informação são faces desta lógica que se norteia pela mudança, inovação, inquietude,

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instabilidade, tensão, crise e mitologia1. Na verdade, a Modernidade seria uma ideologia e não uma revolução; a contradição entre moderno e tradicional se faz na aparência, já que a essência não se modifica. Os paradoxos da Modernidade referem-se ao amálgama entre tradição e novidade, em que a ruptura como postulado na verdade se configura na dinâmica do amálgama, ou seja, Assim, as culturas tradicionais assimilam em parte as formas da modernidade – os artefatos tecnológicos, a cultura de massa, o cotidiano – apenas como aparência, sem assimilar o longo processo econômico e político de racionalização por que passaram as culturas desenvolvidas, desembocando no campo social em reivindicações de mudanças. Na Arquitetura, a tradição de reproduz ao longo dos séculos, sendo o tipo mais significativo de sua expressão a casa, morada ou habitação. Nesta parte do nosso livro, a tradição é analisada na perspectiva do valor da arquitetura habitacional como patrimônio. Há vários cruzamentos possíveis entre os estudos aqui expostos: o casarão Ayres em Mazagão e a casa da Rua Joaquim Távora são exemplares com características da arquitetura colonial, ao mesmo tempo em que nos capítulos se apresenta duas vertentes de reconhecimento das mesmas em sua patrimonialidade. A casa como lugar de afeto é o embrião que faz germinar, da memória individual a coletiva, cujos padrões morfológicos são registros de modos de construir e de viver das famílias paraenses no início do século XX, assim como as fachadas neocoloniais enquanto registro de uma linguagem ‘tradicionalista’ permite reescrever parte da história da arquitetura local e dos modos de morar de seus proprietários. Na cidade de Mazagão, no Amapá, o Casarão de linhas estéticas e técnicas construtivas coloniais é objeto de estudo e discussão entre grupo de especialistas universitários e a população do local, em busca 1 p. 425.

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BAUDRILLARD, Jean. Modernité. Enciclopedia Universalis, Paris, v. 12, s. d.


do reconhecimento de seu valor de memória. O primeiro capítulo desta parte narra o processo adotado no projeto de extensão que agregou os Cursos de Arquitetura da Universidade Federal do Amapá e do Pará, em que as professoras Dinah Tutyia, Cybelle Miranda e Ronaldo Marques de Carvalho, em conjunto com os então estudantes de Arquitetura Guilherme Alfaia e Raimundo Marques visam definir quais as referências culturais que se agregam ao Casarão, enraizando o mesmo na tradição local. Esta perspectiva de autentificação do patrimônio pela comunidade, em voga a partir da Cara de Nara (1994), dialoga com a noção de colonialidade presente nos discursos dos sujeitos envolvidos no processo de patrimonialização da Casa colonial da Travessa Joaquim Távora, em Belém, vigente nos anos 60 do século passado. No texto Entre o tombamento e o apagamento: a casa “colonial” da Travessa Joaquim Távora, Cidade Velha em Belém do Pará, Dinah Tutyia contextualiza a casa em questão na paisagem do bairro inicial de Belém, qualificando-a na perspectiva da morada típica colonial, ao mesmo tempo em que nos conta acerca dos discursos adotados pelos pleiteantes para fundamentar a necessidade de proteção desta enquanto marco da arquitetura de uma época. Fica claro no contraponto entre os dois capítulos, a mudança no entendimento do papel dos documentos e dos especialistas como únicos capazes de autenticar o selo patrimonial a um bem, passando mais tarde a integrar os indivíduos que convivem com aquela arquitetura como sujeitos fundamentais para esse reconhecimento. Nos estudos das vilas e das fachadas neocoloniais, duas vertentes do tipo habitação são escrutinadas, nos conduzindo a entender sua importância enquanto artefato e registro de modos de morar. No capítulo “As janelas do afeto em casas dobradas: matéria, memória e artefato”, os professores Cybelle Salvador Miranda e Ronaldo Marques de Carvalho, juntamente com a mestranda Beatriz Martins Maneschy 20


abordam o tema pelo olhar afetivo dos moradores, associado ao reconhecimento dos elementos arquitetônicos, construtivos e estéticos que nos permite enquadrá-las enquanto patrimônio local. O estudo de fachadas neocoloniais em Belém: linguagem arquitetônica tradicionalista no bairro de Nazaré, desenvolvido a partir da dissertação de Felipe Moreira Azevedo em coautoria com a professora Cybelle Miranda, ressalta o papel dos elementos estéticos gravados nas fachadas das residências neocoloniais do bairro de Nazaré enquanto marcas de uma época, dos gostos e referências estéticas de grupos sociais. Os autores enfatizam a importância da documentação dessas arquiteturas, por muito tempo desvalorizadas por não conter elementos de valor monumental, em razão do desaparecimento iminente de muitos exemplares. Ambos os estudos, das casas dobradas (termo cunhado pelos autores para individuar este tipo específico, fugindo ao termo genérico vila) quanto das casas neocoloniais registram parte importante da identidade do bairro de Nazaré, marcado pela construção da Basílica, e que no século XX se consolidou como local de moradia das elites locais. Deste modo, os estudos tratados nos quatro capítulos do módulo I: Reconhecendo a tradição ligam os estudos da história da arquitetura ao reconhecimento destes artefatos enquanto patrimônio, associando o registro da materialidade (técnicas e detalhes construtivos, morfologia, volumetria, elementos estéticos) à imaterialidade (memórias, afetividade, referências culturais).

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CASARÃO AYRES, MAZAGÃO (AP): uma experiência de interação entre Universidade e sociedade na construção de suas referências culturais Dinah Reiko Tutyia Cybelle Salvador Miranda Ronaldo Marques de Carvalho Guilherme Pantoja Alfaia Raimundo Lobato Marques

1. DIÁLOGO COM A COMUNIDADE NA CONSTRUÇÃO DO SENTIDO DE PATRIMÔNIO É no tripé ensino, pesquisa e extensão que trilhamos a prática docente nas Instituições de Ensino Superior (IES) públicas no Brasil. Na elaboração do livro “Uma formação em curso: esboços da graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFPA” de Miranda, Carvalho e Tutyia (2015), tratamos da história do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará, sendo um dos capítulos dedicado às atividades extensionistas nas quais o curso se envolveu, seja como promotor ou como participante. Dois aspectos se destacam nestas atividades: a visibilidade da profissão do Arquiteto e urbanista para atender às demandas da comunidade em geral, e a possibilidade de pensar a disciplina em parceria com outras áreas do conhecimento, que abrangem desde as Ciências Sociais às Engenharias. Como exposto, percebemos que a extensão universitária nas IES brasileiras passou por várias fases ao longo do tempo, iniciando com a figura da universidade como provedora do conhecimento, que deveria ser levado à sociedade, e chegamos na atual conjuntura, com a atividade extensionista ancorada de forma indissociável ao Ensino e a Pesquisa, tendo um papel de fomentar conjuntamente com a 22


sociedade extramuros a produção de conhecimento, pautando ações que visem o compartilhamento de saberes. Neste capítulo visamos relatar a experiência da construção de um entendimento de patrimônio cultural baseado na experiência da comunidade de Mazagão Velho em diálogo com os docentes, técnicos e discentes das Universidades federais envolvidas – Universidade Federal do Amapá (UNIFAP) e Universidade Federal do Pará (UFPA). O distrito de Mazagão Velho é o locus do projeto de extensão “Inventário e Proposta de Restauro e Reuso da Casa Ana Ayres na Vila de Mazagão Velho (AP) para um Centro de Cultura Mazaganense”, desenvolvido pelo Curso de Arquitetura e Urbanismo da UNIFAP, em parceria com professores de Engenharia Civil da UNIFAP e com o Laboratório de Memória e Patrimônio Cultural (LAMEMO) da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFPA. Mazagão Velho, localizada no estado do Amapá, apresenta um rico acervo de bens de natureza imaterial, material e paisagística. Dentre estes bens patrimoniais, destaca-se o objeto de estudo e intervenção do projeto de extensão, o Casarão Ayres (nome pelo qual é reconhecido pela comunidade local). Tida como uma das edificações mais antigas da vila, a casa é uma fonte histórica e de memória da comunidade local, considerada por segmentos desta como um objeto que atribui identidade cultural à população mazaganense. A edificação se encontra, hoje, em um processo de degradação avançado de suas estruturas de taipa de mão, situação esta que coloca o imóvel em risco de desaparecimento. Em 2015, a partir do desenvolvimento do Trabalho de Conclusão de Curso de Raimundo Lobato Marques, surgiu uma demanda por parte do proprietário do imóvel – que contou com o apoio de pessoas da população local que trabalham com ações de preservação da cultura mazaganense – por uma parceria com a Universidade Federal do Amapá a fim de viabilizar a elaboração de projeto arquitetônico para restauração da casa, e que pudesse adaptá-la ao uso como Centro 23


de Cultura. O contato com o Casarão Ayres teve início com ações que visavam o conhecimento do bem, por meio de pesquisa histórica acerca da casa e da vila na qual se inscreve. Esta proximidade nos proporcionou o contato com a comunidade, extremamente comprometida com o que denominamos de “saber cultural local”, fato que culminou na troca de experiências entre universidade e a comunidade durante o evento “Casarão Ayres: Patrimônio, História e Memória do Povo Mazaganense”, realizado em novembro de 2016. Os resultados do evento nos fizeram refletir sobre a construção do conceito de patrimônio a partir da experiência da comunidade, como exposto a seguir.

2. MAZAGÃO VELHO E O CASARÃO AYRES Conhecida popularmente como Vila de Mazagão Velho, o distrito de Mazagão Velho está localizado no Estado do Amapá, no município de Mazagão. Fundada no século XVIII, no período colonial brasileiro – mais precisamente no período pombalino – recebeu naquele momento a denominação de Nova Mazagão para se diferenciar da Mazagão marroquina, da qual vieram trasladados parte dos habitantes que então povoaram a Mazagão amapaense. Em virtude do difícil acesso, ainda no período colonial, houve o deslocamento da sede do município para a Vila de Nova Anauerapucu, posteriormente chamada Mazagão, ficando a antiga vila conhecida por Mazagão Velho (IBGE, s.d.). As características das novas vilas e cidades coloniais fundadas ao longo do século XVIII no Brasil também foram aplicadas na região Norte do país, cujos planos urbanos de Macapá e Magazão Velho esta última desenhada pelo engenheiro italiano Sambucetti, membro 24


da Comissão Demarcadora de Limites entre Portugal e Espanha - são exemplos do discurso político que o Marquês de Pombal tentava implementar nas colônias portuguesas. A regularidade do traçado das vias, a padronização do tamanho dos lotes, das quadras, a presença do espaço-praça são características que compuseram os planos das referidas cidades (ARAÚJO, 1998). Figura 1 – Plano de Mazagão datado de 1773, nota-se o traçado xadrez, regular do plano proposto para a vila.

Fonte: VALLA, 2015.

A colonialidade também caracterizou as edificações da Vila de Mazagão Velho - o padrão de constituição desses espaços nos primeiros séculos de intervenção da coroa portuguesa em solo brasileiro tratou por consolidar a arquitetura civil ocupando as laterais e a testada dos lotes contíguos, os quais, em conjunto, davam o traço da via. 25


Reis Filho (1978) destaca que tais uniformidades eram fixadas por Cartas Régias, que garantiam a padronização da aparência das colônias portuguesas. O conjunto da arquitetura civil deveria ter certa monotonia de composição no meio urbano, destacavam-se as casas térreas e os sobrados e as edificações recebiam ornamentações simples. As casas adotavam beiral, vergas retas nos vãos de portas e janelas, com a planta marcada pelo corredor, o qual ligava os demais ambientes da edificação. Esta paisagem monótona, garantia destaque à arquitetura oficial e religiosa estabelecidas nas constituições de vilas e cidades portuguesas. Figura 2 – Modelo das edificações adotado por Sambucetti para Vila de Nova Mazagão.

Fonte: Vidal, 2008.

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Quanto às tecnologias construtivas empregadas na arquitetura civil deste momento, destacam-se a taipa de mão, a taipa de pilão, a alvenaria em pedra e cal e algumas tecnologias construtivas semelhantes a estas. Marques (2016) ressaltou que a moradia de Mazagão Velho apresentava dois modelos-padrão: de quatro e seis cômodos onde foram distribuídos de acordo com o tamanho de cada família. A mão de obra na construção era indígena. A tecnologia adotada foi a taipa de mão. Os primeiros telhados foram feitos de palmeira ubim entrelaçada, enquanto os primeiros fornos para o fabrico de telhas não estavam prontos. Além disso, os construtores preferiam fazer as amarrações com fibras vegetais ao invés de utilizarem pregos (MARQUES, 2016, p. 61).

As características apontadas acima puderam ser apreendidas também ao longo da coleta da história oral relatada pelos moradores do distrito de Mazagão, como é o caso de Josué Videira2 , mestre de cultura que desenvolve trabalhos de transmissão da cultura imaterial para crianças e adolescentes do distrito. Josué, ao ser questionado sobre as antigas edificações, relatou que era recorrente a utilização da madeira como também da taipa de mão como tecnologia construtiva da estrutura, e as cobertas eram de palha. Na figura 3 observamos, no registro da festividade de São Tiago (que ocorre há mais de 200 anos no mês de julho, nesta localidade) um conjunto edificado que se utiliza da tecnologia construtiva de taipa de mão. Observa-se também a configuração dos vãos de portas e janelas, comumente utilizados na arquitetura consolidada no período colonial brasileiro.

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Entrevista concedida por Josué Videira à Dinah Tutyia em janeiro de 2018.


Figura 3 – Registro da festividade de São Tiago, ao fundo as edificações de Mazagão Velho com a tecnologia de taipa de mão.

Fonte: Acervo da família Nascimento, s/d.

WORKSHOP CASARÃO AYRES No início do mês de novembro de 2016, em uma reunião com a equipe do projeto de extensão, alguns questionamentos haviam sido levantados por parte dos integrantes historiadores Joseane Calazans e Márcio Pantoja, que se intitulam “filhos de Mazagão”3, atuantes na discussão sobre preservação patrimonial no distrito. As angústias estavam focadas na necessidade de aproximar mais o projeto e as reflexões do objeto de pesquisa, sobre sua significância cultural4, com a comunidade mazaganense. Segundo Joseane Calazans, o povo mazaganense é ciente da 3 Cabe destacar que os filhos e os netos de moradores do distrito de Mazagão Velho, mesmo não tendo nascido ou não residindo no local, se autodenominam “Filhos de Mazagão”, fato que marca a relação de pertencimento com a cultura local. 4 Segundo a Carta de Burra, de 1980, documento do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS), o termo significação cultural é definido como o “[...]valor estético, histórico, científico ou social de um bem para as gerações passadas, presentes ou futuras” (IPHAN, 2004, p. 247).

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riqueza dos bens materiais e imateriais da localidade, porém, são considerados ‘passivos’ diante dos acontecimentos que visam transformar o local, ou para beneficiar ou para desestruturar as relações da comunidade com os bens, fato que incomoda as pessoas que difundem a cultura do lugar. Tendo em vista a pauta colocada, foi decidida a realização de um evento nos dias 29 e 30 de novembro de 2016, que integrasse as instituições envolvidas no projeto, UNIFAP e UFPA, com a Comunidade de Mazagão. Optou-se em fazer um dia de evento nas dependências da Universidade Federal do Amapá, no Campus Marco Zero, em Macapá, para que fosse possível o compartilhamento das atividades desenvolvidas ao meio acadêmico e à comunidade em geral. O segundo dia ocorreu no Distrito de Mazagão Velho, para que a comunidade mazaganense se apropriasse das temáticas patrimoniais envoltas à Casa Ayres, sendo organizadas três oficinas com o Mestre de cultura Josué Videira, como forma de partilha dos conhecimentos locais para a comunidade acadêmica. A seguir vê-se o cartaz produzido para a divulgação do evento. Figura 4 – Cartaz de divulgação do evento.

Fonte: elaborado por Raimundo Marques, 2016.

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O evento, financiado pelos organizadores e palestrantes, contou com a participação dos professores Doutores Cybelle Salvador Miranda e Ronaldo Marques de Carvalho, do LAMEMO-FAU-UFPA, que trouxeram as palestras “Patrimônio cultural: uma construção da comunidade” e “A taipa como patrimônio cultural: preservação do saber fazer”, respectivamente. Estes temas objetivaram destacar a importância da comunidade local no trato e apropriação de seus bens patrimoniais, assim como ressaltar a tecnologia construtiva da Casa Ayres, a taipa, como uma técnica cujo saber fazer é significativo para preservação. Também participaram como palestrantes a professora Mestra Dinah Reiko Tutyia, do curso de Arquitetura e Urbanismo da UNIFAP, juntamente com o Arquiteto Raimundo Lobato Marques, com a palestra “Arquitetura Civil Colonial no Brasil”, tratando da caracterização dessa arquitetura no processo de colonização da América Portuguesa, servindo de base para a caracterização da Casa Ayres, tema da palestra “Casarão Ayres: herança colonial para Mazagão Velho” proferida pelo historiador Márcio Pantoja e pelo discente do curso de Arquitetura da UNIFAP Guilherme Alfaia. Figura 5 – Participação do professor Antônio Munhoz na palestra dos professores Cybelle Miranda e Ronaldo Carvalho da UFPA, no realizada no DCET, UNIFAP.

Foto: Kevin Cordeiro, 2016.

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Figura 6 – Público ouvinte no DCET, UNIFAP.

Foto: Kevin Cordeiro, 2016

A programação contou ainda com a palestra “Das origens em Marrocos: El Jadida Mazagan à Vila de Mazagão Velho – Amapá”, na qual a historiadora Joseane Calazans e Josué Videira, mestre de cultura de Mazagão Velho, relataram a experiência do documentário “Mazagão: porta do mar”, no qual puderam visitar a Mazagão marroquina. A fala do jornalista Gabriel Penha abordou o calendário religioso cultural de festividades de Mazagão, destacando o patrimônio imaterial do lugar e o discente Salomão Fonseca, do curso de Arquitetura da UNIFAP, retratou as relações espaciais com uma análise comparativa de mapas do projeto da cidade do século XVIII de Sambucceti, com a atual configuração do distrito, na palestra intitulada “Mazagão Velha de Sambucetti e Mazagão”. No período vespertino do segundo dia de evento destacaram-se as oficinas de confecção de máscara de argila, de cavalinho de buriti e confecção de caixa de marabaixo, ministradas por Josué Videira aos participantes do evento em Mazagão.

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Figura 7 – Palestra em Mazagão Velho.

Figura 8 – Oficina com o mestre Josué Videira em Mazagão Velho

Fotos: Kevin Cordeiro, 2016

Nota-se que os temas tratados nas palestras visaram contribuir para a compreensão do Casarão Ayres como um bem de interesse à preservação, destacando que esse bem, assim como as festividades de natureza imaterial que ocorrem ao longo do ano são elementos constituintes do patrimônio do estado do Amapá. Ao longo dos dois dias de evento, que contou com 113 participantes inscritos, a grande maioria era da comunidade acadêmica da UNIFAP e de outras instituições que oferecem o curso de arquitetura no Estado. Uma pequena parcela da comunidade mazaganense esteve presente, contudo, sua interação efetiva durante as palestras e oficinas propiciaram um 32


compartilhamento significativo sobre o sentimento de pertencimento ao distrito. Ao entendermos a Extensão Universitária como um “processo educativo, cultural e científico que articula o Ensino e a Pesquisa de forma indissociável e viabiliza a relação transformadora entre universidade e sociedade” (BRASIL/MEC, 1987, p. 11), com a dupla troca de saberes que abrange docentes, discentes e a comunidade, destacamos a relevância do evento “Casarão Ayres: Patrimônio, História e Memória do Povo Mazaganense”, como uma atividade que integrou o tripé base do ensino superior no país. A troca de saberes entre as instituições da Amazônia, UNIFAP e UFPA, tendo o olhar para a comunidade extramuros, possibilitou gerar conhecimento que viesse realimentar as práticas de ensino e pesquisa para o projeto de arquitetura. Ressaltamos também a participação discente, uma vez que o envolvimento dos voluntários no projeto de extensão fez como que os mesmos aplicassem a pesquisa histórica sobre o Casarão na produção de conteúdo temático das palestras à comunidade mazaganense. Esta, por sua vez, repassou os conhecimentos de saberes tradicionais, assim como a história oral e seus pensamentos no tocante ao patrimônio de Mazagão Velho, desta forma, efetivando a missão extensionista no que tange “[...]a troca de saberes sistematizados, acadêmico e popular, terá como conseqüência: a produção do conhecimento resultante do confronto com a realidade brasileira e regional; a democratização do conhecimento acadêmico e a participação efetiva da comunidade na atuação da Universidade” (BRASIL/MEC, 1987, p. 11).

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3. CASARÃO AYRES: PONTO DE REMEMORAÇÃO DA VELHA MAZAGÃO OU EXEMPLAR DA ARQUITETURA COLONIAL? Figura 9 – Fotografia da fachada do Casarão Ayres onde se observam as características da arquitetura colonial brasileira

Fonte: Dinah Tutyia, 2017.

O objeto de estudo do projeto de extensão é reconhecido popularmente por “Casarão Ana Ayres”, “Casa da família Ayres” ou “Casarão Ayres”. No início dos estudos desta edificação observamos os elementos arquitetônicos e sua tecnologia construtiva, e os mesmos nos remetem às feições das edificações construídas no período colonial brasileiro5. O Casarão Ayres, localizado na Rua Senador Flexa, bem em frente ao Rio Mutuacá é considerado um dos únicos no estado do 5 A foto e a caracterização da Casa Ayres foram feitas antes da mais recente intervenção na edificação, realizada em maio de 2017. A família decidiu mudar a técnica construtiva da fachada, substituindo-a por alvenaria de tijolo, no entanto, o interior permanece construído em taipa de mão.

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Amapá que apresenta características da arquitetura colonial: telhado aparente com telhas de barro, vãos de portas e janelas com verga abatida e tecnologia construtiva em taipa de mão. A fachada principal apresenta quatro vãos com verga em arco abatido, cujas esquadrias são executadas em tábuas de madeira, sem vidro. A casa está elevada do solo por um porão baixo, o qual apresenta três aberturas de ventilação, denominadas óculos. Três vãos encontram-se resguardados por um guarda corpo em ferro. Apresenta cobertura em duas águas, com telha de barro tipo capa-canal, sem forramento interno, estilo telha-vã. A planta baixa apresenta hall de entrada, sala de estar, uma sala de jantar e uma alcova – parte inicialmente classificada como “original”–, uma cozinha e banheiros – porção da edificação classificada como extemporânea. Figura 10 – Planta baixa do levantamento físico da Casa Ana Ayres.

Fonte: elaborado por Guilherme Alfaia, 2017.

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Segundo Márcio Pantoja6, historiador pertencente à família proprietária da edificação, a casa foi adquirida na década de 1930 pela família, e, segundo relatos dos moradores, sofreu duas intervenções, a mais significativa realizada em 1992, a qual contou com o apoio do Governo do Estado do Amapá, por meio do Governador Annibal Barcelos. Manoel Deodato de Queiroz do Couto7 foi o engenheiro responsável pela reforma do Casarão nos anos 90; em entrevista, o mesmo demonstrou profunda sensibilidade à preservação da casa como patrimônio, relatou que identificava o valor histórico e de memória desta edificação para o estado do Amapá: Trabalhei com Dora Alcântara no restauro da Fortaleza de São José, eu tive uma aula de preservação convivendo com ela e sua equipe quando estiveram em Macapá, aprendi a dar valor e a reconhecer a importância dessas edificações e não teria como eu destruir a casa Ayres no momento do projeto de 928.

O engenheiro Manoel narrou que, durante a reforma, se manteve a configuração de planta, com a tecnologia de taipa de mão. Porém, esta foi renovada, com nova estruturação em várias paredes, embora não tenha recordado quais esteios, ou paredes ainda se preservaram do momento anterior à intervenção: “optamos por preservar a tecnologia construtiva tendo em vista que isso marcava a casa, isso era importante”. Também foram realizadas a ampliação na parte posterior da edificação, com a cozinha e banheiro construídos em alvenaria de tijolo, assim como o aterramento do porão, perdendo sua função original. Se preservou também o modelo das esquadrias internas e externas. 6 Palestra proferida no Evento “Casarão Ayres: Patrimônio, Memória concedida por Márcio Pantoja em novembro de 2016. 7 Entrevista concedida por Manoel Deodato de Queiroz do Couto à Dinah Tutyia em novembro de 2016. 8 Entrevista concedida por Manoel Deodato de Queiroz do Couto à Dinah Tutyia em novembro de 2016.

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Figura 11 – Planta baixa demonstrando a tecnologia construtiva do Casarão Ana Ayres

Fonte: elaborado por Guilherme Alfaia, 2017.

Ao longo do ano de 2015, parte da cobertura e das estruturas internas da casa desabaram, em virtude do período de chuvas amazônicas, causando grande dano ao imóvel. O uso atual da edificação permanece habitacional, porém é utilizada esporadicamente pela família nos períodos de festividades religiosas ou do aniversário da cidade, assim permanece parte do tempo em desuso. O Casarão Ayres faz parte da paisagem de Mazagão Velho: nos relatos coletados ao longo do levantamento de campo, transeuntes, moradores de Mazagão tem duas percepções da edificação: uns faziam menção à edificação como “uma edificação de importância para a cidade”, como “uma edificação que guardava a memória da Velha Mazagão”, como “uma edificação histórica”, dentre outros comentários. E outros moradores apresentaram reações, tais como “uma 37


casa que é importante apenas para a família”, ou como “uma casa já modificada”, trazendo uma outra relação com o bem. Cabe ressaltar que nas falas que não enxergam a edificação como um bem comum, destacou-se uma noção de patrimônio atrelado à “originalidade”, ao que hoje permanece intocado, sem transformações, ou ainda uma diferenciação entre bem público e bem privado, como se, por se tratar de uma edificação particular, a mesma não pudesse ser tratada como um patrimônio de todos. Estes relatos nos guiaram a pensar os valores afetivos a ela atribuídos pela população local, em adição ou contraposição aos valores históricos, arquitetônicos e tecnológicos identificados pelos pesquisadores. Celine Verguet descreve o processo de autentificação patrimonial a partir do ponto de vista de grupos que se apoiam em argumentos históricos ou argumentos afetivos. No espaço de “lutas de significação” a prova da patrimonialidade de um bem ou local se apoia em argumentos ora racionais, ora emotivos, sendo os primeiros adotados pelos experts (Arquitetos, historiadores, sociólogos, portadores do discurso erudito) em contraposição aos moradores não qualificados, que se apoiam em narrativas que incluem o objeto de valor patrimonial em sua história de vida pessoal e familiar. Segundo Verguet A atenção se volta de forma mais introspectiva sobre os modos compartilhados de fabricar o patrimônio no cotidiano, a partir da construção de provas autentificantes fundadas na experiência dos lugares, dos objetos, sobre os conhecimentos, mas igualmente sobre a representação da noção de patrimônio que o homem comum pode possuir e manipular no cotidiano (VERGUET, 2015, p. 4. Tradução nossa).

Assim, o recurso à memória é adotado como estratégia de atribuição de valor, bem como o conhecimento histórico, pois o conhecimento do passado é dotado de valor simbólico. O recurso às 38


dimensões memorial e histórica integram a polissemia patrimonial descrita pela autora. Quanto aos valores intrínsecos ao edifício enquanto arquitetura e técnica construtiva, os pesquisadores destacam a importância da taipa de mão. Segundo Carvalho e Miranda (2015, p. 13), Na construção em taipa realizada no Pará, se utiliza estruturas em xadrez em que varas finas e tortuosas (galhos) são fixadas com cipó em amarras, confeccionando desta maneira as paredes que ao deixarem pequenos vazados, como num treliçado rústico, estes são preenchidos com barro jogado com a mão na chamada técnica do sopapo, uma vez que o barro é lançado com força como uma pedra, facilitando sua fixação na vertical. Este processo pode ser testemunhado pelo autor durante atividades de campo realizadas na Extensão Universitária nos anos 70 e 80 do século passado.

Os autores discutem o problema da significação cultural e o conceito de autenticidade, ressaltando a necessidade de contextualizar o conceito, como foi o resultado da Carta de Nara (1994), que passa às culturas locais o julgamento da autenticidade: 11. Todos os julgamentos sobre atribuição de valores conferidos às características culturais de um bem, assim como a credibilidade das pesquisas realizadas, podem diferir de cultura para cultura, não sendo, portanto, possível basear os julgamentos de valor e autenticidade em critérios fixos. Ao contrário, o respeito devido a todas as culturas exige que as características de um determinado patrimônio sejam consideradas e julgadas nos contextos culturais aos quais pertençam (CONFERÊNCIA DE NARA,1994; 2000, p. 321).

Segundo a Carta de Brasília (1995), a autenticidade deve ser balizada pela identidade cultural, que, por ser mutável e dinâmica, pode “adaptar, valorizar, desvalorizar, revalorizar os aspectos formais e 39


os conteúdos simbólicos de nossos patrimônios” (CARTA DE BRASÍLIA 2000. p. 325). Atentando para a efemeridade de materiais utilizados em construções vernaculares, preservando a relação entre o objeto arquitetônico e o seu significado, a substituição de elementos danificados por outras técnicas tradicionais também é considerada uma prática autêntica. Carvalho e Miranda (2015) propõem, portanto, que sejam feitos estudos regionais para a adoção de recomendações que contemplem os valores atribuídos pela comunidade, bem como a preservação do saber-fazer necessário à sua continuidade, ampliando “o repertório técnico da construção por meio de inovações que partilhem o saber tradicional e o saber científico (acadêmico), que retorne as comunidades e contribua para a continuidade da taipa como saber fazer e como herança cultural” (p. 16). Ao longo do século XX, assistiu-se ao alargamento quantitativo dos bens patrimoniais, fato consequente da ampliação do conceito ‘patrimônio’. Algumas bibliografias que abordam a temática, ao conceituarem o Patrimônio, partem do significado original da palavra e traçam a evolução semântica que ela veio adquirindo até os dias atuais. Empresta-se aqui o significado para o verbete segundo a Enciclopédia Larousse Cultural que o define como: herança paterna; bens de família; o que é considerado como herança comum. Hoje, além dessa definição, a expressão apresenta-se ligada à herança cultural, conforme percebemos na definição de Horta (1999): herança constituída da riqueza cultural, individual e coletiva, a memória, o sentido de identidade, aquilo que distingue povos e culturas, a marca inconfundível de uma cultura. A ampliação da abrangência do conceito ‘Patrimônio’ deve-se à incorporação de adjetivos tais como patrimônio histórico, patrimônio arquitetônico, patrimônio natural, de modo que Castriota (1999) afirma que o aumento destas “heranças” se deve não somente ao 40


quantitativo de bens, mas ao deslocamento dos valores relacionados ao mesmo, passando de históricos e artísticos para os valores culturais e urbanos. Esta mudança, por sua vez, implicou também uma transformação na maneira de se intervir sobre esse patrimônio, em que o paradigma de preservação se desloca para a conservação do bem cultural. Para Castriota (2009), esta perspectiva, que veio sendo construída, sobretudo a partir dos anos 60 do século XX, sobrepõe a preservação enquanto concepção estática pela ideia de conservação com uma dimensão dinâmica, fato relacionado à consolidação das definições e entendimentos do patrimônio urbano. Ao refletirmos sobre a autentificação do patrimônio Casarão Ayres, observamos que as falas de alguns moradores versam a edificação como um ponto no tecido de Mazagão Velho, capaz de fazer lembrar o passado, de fazer rememorar uma época em que as demais edificações eram edificadas em taipa de mão, ou ainda, uma época na qual haviam edificações mais singelas com a mesma tecnologia construtiva e com cobertura em palha. Os valores que emergem estão atrelados ao cotidiano de um passado, no qual a fisionomia da cidade fora perdida, a partir da substituição dos materiais construtivos, prática decorrente do processo de transformações das cidades ante o anseio de modernização. Tal dinâmica, intrínseca à cidade, foi ressaltada por Castriota (1999) que, ao tratar de políticas contemporâneas para preservação, destaca que a falta de vestígios da historicidade nas cidades é fruto da obsolescência de sua fisionomia. Observamos então que esta paisagem obsoleta, fruto da ausência de manutenção, muitas vezes decorrente do abandono, enseje a renovação por meio de novas formas e materiais, numa constância que varia com o tempo de cada lugar, de cada povo. Uma moradora ao ser questionada sobre sua percepção do Casarão, disse que “acho feia”, e nas entrelinhas de sua fala, podemos perceber a desvalorização do antigo como algo que remetia “ao velho, obsoleto”. 41


Assim, a edificação que ora é cenário de fundo da festividade de São Tiago, ora é um ponto de rememoração da antiga Mazagão, a edificação se configura como uma referência cultural que traz significação para o local, seja por empregar técnicas construtivas remanescentes do período colonial brasileiro, seja pela composição de sua fachada com adoção de modelos que também fazem alusão às construções do século XVIII. Desta forma, ao aproximarmos as reflexões acadêmicas sobre “valores patrimoniais”, de Mazagão Velho a partir do projeto de extensão, nos colocamos a emergir no campo de troca de conhecimento da comunidade extramuros, com a comunidade que a vivencia, que tem a experiência cotidiana com o objeto de estudo acadêmico. Esta aproximação possibilitou problematizarmos e ampliarmos a conceituação de patrimônio, que passa a agregar o ponto de vista mazaganense para com o bem. Tal ação dialoga com os objetivos e o papel da atuação da extensão universitária na contemporaneidade que se refere a: atrelamento entre pesquisa e ensino, estabelecimento de redes de parcerias com outras instituições, fomentar a partilha de saber com a comunidade extramuros e desenvolvimento de atividades de preservação cultural relevante para afirmações de manifestações regionais (FORPROEX, 2012). REFERÊNCIAS ARAÚJO, Renata Malcher de. As Cidades da Amazônia no Século XVIII – Belém, Macapá e Mazagão. 2. ed. Porto: FAUP Publicações, 1998. BRASIL, Ministério da Educação e Cultura. I Fórum Nacional de Pró-Reitores de Extensão de Universidades Públicas. Documento Final. Brasília, 1987. 42


CARVALHO, Ronaldo Marques de; MIRANDA, Cybelle Salvador. A taipa como patrimônio cultural: a preservação do saber fazer. Revista de Ciência e Tecnologia RCT, v. 1, p. 1-18, 2015. IPHAN. Carta de Brasília. Rio de Janeiro, IPHAN, 2000. CASTRIOTA, Leonardo Barci. Alternativas Contemporâneas para Políticas de Preservação. Topos Revista de Arquitetura e Urbanismo. v. 1, p. 134-138, jul./dez. 1999. ______. Patrimônio Cultural: Conceitos, Políticas, Instrumentos. Belo Horizonte: Editora Annablume, 2009. IPHAN. Conferência de Nara. Rio de Janeiro, IPHAN, 1994; 2000. FORPROEX - Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras. Política Nacional de Extensão Universitária. Manaus: FORPROEX, 2012. HORTA, Maria de Lourdes Parreira. Guia Básico de Educação Patrimonial. Brasília: Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Museu Imperial, 1999. IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Amapá: Mazagão – infográficos históricos. Disponível em: https://cidades. ibge.gov.br/brasil/ap/mazagao/historico. Acesso em 23 de mai. 2017. IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Cartas Patrimoniais. 3ª ed. Rio de Janeiro: IPHAN, 2004.

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MARQUES, Raimundo Lobato. Albergue: uma proposta de restauro e reuso da “Casa Ana Ayres”. 2016. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade Federal do Amapá, Santana, 2016. MIRANDA, Cybelle Salvador, CARVALHO, Ronaldo Marques de, TUTYIA, Dinah. Uma Formação em curso: Esboços da graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFPA. Belém: Universidade Federal do Pará, 2015. REIS FILHO, Nestor Goulart. Quadro da Arquitetura no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1978. VALLA, Margarida. O Diálogo entre o urbanismo português e os rios como identidade territorial brasileira. Disponível em <http:// confins.revues.org/10074> . Acesso em 8 de mar. 2016. VERGUET, Céline. Faire la preuve du patrimoine: authentification et plaidoyer patrimonial. l’Argument Historique et l’ argument familial. Revista Memória em Rede. v. 5, n. 12., p 1-21, jan./jun. 2015. VIDAL, Laurent. Mazagão: A cidade que atravessou o Atlântico. São Paulo: Martins, 2008.

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ENTRE O TOMBAMENTO E O APAGAMENTO: a casa “colonial” da travessa Joaquim Távora, Cidade Velha em Belém do Pará9

Dinah Reiko Tutyia

1. A POLÍTICA DE PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO NACIONAL Olhar a cidade como um artefato, vai além de enxergá-la como um simples produto do fazer humano, ante os materiais disponíveis na natureza, ao voltar aos estudos da historicidade dos espaços urbanos, percebe-se que eles guardam fisionomias resultantes das sociabilidades urbanas, como também de relações políticas e econômicas atuantes nos discursos de época. São nesses discursos, que se encontra o Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN)10 – órgão 9 Este objeto de estudo faz parte da pesquisa de tese desenvolvida pela autora no Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia da Universidade Federal do Pará (PPHIST/UFPA), sob orientação do Prof. Dr. Márcio Couto Henrique. 10 Atualmente a referida instituição, é conhecida como Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), porém ao longo de sua história recebeu outras denominações, sendo a inicial Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) em 1937, passando para Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (DPHAN) em 1946, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em 1970, Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) e Fundação Pró-Memória em 1979. No ano de 1990 houve a extinção do Ministério da Cultura, e a paralização das atividades do SPHAN e extinção da Fundação Pró-Memória, sucedida pelo Instituto Brasileiro de Patrimônio Cultural (IBPC), em 1994 foi restabelecido o nome IPHAN, em substituição ao IBPC. Neste trabalho optamos por utilizar a nomenclatura usual em cada período correspondente (MEC/ SPHAN/PRÓ-MEMÓRIA, 1980).

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fundado nos anos 1930 e que direcionou a seleção de bens imóveis e móveis a serem resguardados – e a “retórica da perda”, seu discurso de convencimento de salvaguarda do bem ante o processo de destruição que vinha ocorrendo no Brasil (GONÇALVES, 1996). Os bens imóveis – que compõem o acervo do patrimônio nacional – foram “escolhidos” sob a crença da existência de uma “autenticidade”, e o autêntico, naquele momento, estava vinculado a uma arquitetura que se apresentava como “brasileira”. Elegeram, então, a arquitetura colonial, como excepcional, arquitetura essa envolta de uma aura que transmitia a “originalidade brasileira”. A fundamentação da identidade nacional ou local está diretamente ligada à memória coletiva, desta forma, a seleção dos símbolos e sinais é retirada de referências da história “dignas de serem recordadas” e, consequentemente, capazes de fortalecer a autoimagem da nação (ASSMANN, 2003). Bispo (2011), ao se voltar para o estudo das memórias oficiais, destaca que elas são construídas e consolidadas a partir do trabalho de gestão do passado, que classifica e seleciona as memórias pertinentes a determinado fim, que por sua vez, passam a influenciar o horizonte cultural de determinada sociedade. O autor trabalha a atuação dos agentes do IPHAN, nos anos iniciais de criação do órgão, anos 1930 e 1940, período em que a instituição foi marcada pelo predomínio de técnicos arquitetos e de vertente modernistas: Os modernistas ampliam seus interesses estéticos e históricos para toda uma coletividade, forjando uma memória que é coletiva porque emerge dos contatos entre esses intelectuais e seus pares, mas não nacional, na medida em que não é compartilhada diretamente pelo todo grandioso que a ideia de “povo brasileiro” (BISPO, 2011, p. 38).

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Os agentes do patrimônio daquela época acreditavam estar elegendo bens que representassem a nação, a coletividade cultural do povo brasileiro, porém estavam muito longe de abranger a diversidade do país, submetendo-a a uma memória coletiva de um grupo, e este é o risco incutido quando se trata da “elaboração” de uma memória oficial: A supressão de outras memórias, o esquecimento. Nesse processo de formação da memória nacional brasileira pela eleição destes símbolos materiais, surge o que Fonseca (2005) caracterizou como “patrimônio em pedra e cal11, bens que foram eleitos nessa concepção de arquitetura histórica autêntica brasileira. Havia em Belém, segundo Figueiredo (2010), entre os anos 1920 e 1930, uma efervescência artística que gerou um movimento modernista na Amazônia, com destaque para área da Literatura. O foco desses intelectuais estava centrado em valores culturais, como folclore, os costumes, as crenças etc. No final dos anos 1930, segundo Figueiredo (2010), algumas dessas personalidades apoiaram e realizaram os estudos e os pareceres dos tombamentos, que vieram a ocorrer nos anos seguintes. Dentre estes sujeitos, destaca-se Ernesto Cruz, historiador paraense, que a partir de 1946 fora indicado por Artur César Ferreira Reis12 para o substituir na representação do SPHAN no Pará, ficando responsável pela intermediação com a sede do órgão, localizada na capital federal daquele período, o Rio de Janeiro. É no recorte de tempo final dos anos 1930 e anos 1940 que se inicia a produção de uma Belém dotada de “patrimônios”, assim 11 A arquitetura do período colonial brasileiro foi construída com a utilização de técnicas construtivas, como taipa, alvenaria mista, alvenaria em pedra seca, alvenaria em pedra argamassada etc. A argamassada, o material aglutinante das alvenarias, geralmente era constituída de cal, areia, água ou gordura de origem animal. 12 Artur César Ferreira Reis, nascido em Manaus, foi jornalista, bacharel, professor. Atuou como governador do Amazonas na década de 30 e teve vários cargos ao longo do Estado Novo Varguista, dentre esses a Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA) em 1953. Foi também autor de diversos livros com temáticas da região norte. Para maiores informações sobre o assunto ver: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/ verbete-biografico/reis-artur-cesar-ferreira.

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como outras capitais no Brasil, sendo os primeiros tombamentos do SPHAN, em ordem cronológica: a Coleção Arqueológica e Etnográfica do Museu Paraense Emilio Goeldi (1940), as igrejas de São João Batista, da Sé, de Nossa Senhora das Mercês, de Nossa Senhora do Carmo, de Santo Alexandre e o Colégio Jesuítico que ladeia esta última (1941), o Palácio Antônio Lemos (1942), o Palácio Velho (1944), o Solar do Barão de Guajará (início do processo em 1944 e tombamento em 1950), a Igreja e o acervo de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos (início do processo em 1948 e tombamento em 1950) e do Cemitério de Nossa Senhora da Soledade (início do processo em 1948 e tombamento em 1963)13. Dentre os bens imóveis citados acima, apenas dois não se enquadram no período colonial: o Palácio Antônio Lemos e o Cemitério Nossa Senhora da Soledade, sendo que as edificações tombadas estão localizadas dentro do hoje chamado Centro Histórico de Belém (CHB) e do seu entorno (entorno do CHB), ou seja, é com o resguardo desses imóveis que se deu o percurso inicial do tombamento do conjunto do CHB14 pelo município em 1993. Os pedidos de tombamento ao longo das décadas de 50 e 60 se avolumaram e diversificaram no que tange sua natureza e “estilo”, alargando os valores para além do colonial, embora este prevalecesse. Nessas duas décadas teremos dentre as solicitações para tombo, um número expressivo de indeferimentos, esses pedidos foram negados pela superintendência central do DPHAN15, que tinha sua sede no Rio de Janeiro. Dentro deste conjunto de recusas à proteção federal, encontra-se o caso do objeto de estudo deste trabalho. 13 A lista de bens tombados pelo IPHAN encontra-se disponível em http://portal. iphan.gov.br/pagina/detalhes/126 14 É importante destacar que a “colonialidade” é tão marcante ao longo da história da política de preservação brasileira como “parâmetro” para tombamento que, na análise dos documentos do projeto de elaboração da Lei Municipal n. 7.709, de 1994, que regulamenta o CHB, constatou-se que a ambiência a ser preservada na lei estaria atrelada ao colonial. 15 Utilizaremos as denominações corresponde a cada época, no caso, Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (DPHAN).

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2. O BAIRRO DA CIDADE VELHA E A ARQUITETURA COLONIAL Figura 1: Vista das fachadas da “Casa da Joaquim Távora

Fonte: autora, 2021.

A imagem acima traz a vista atual da edificação que nomeia o Processo nº 609-T-60, “Casa: Joaquim Távora (trav.), 60. Belém, Pará”. Podemos observar pela fotografia, tomada a partir da Travessa Joaquim Távora, um grande bloco maciço horizontalizado, sem aberturas de vãos de portas ou janelas, sendo o único destaque nesta estrutura o beiral, marcado pela avantajada cornija com seus frisos, onde a cimalha suporta a terminação da cobertura em telhas de barro do tipo capa-canal. Os extremos da casa apresentam os resquícios 49


das pilastras, e a união das faces o cunhal, faixa sobressalente que abrange da base ao coroamento. A fachada voltada para a Praça do Carmo apresenta dois grandes vãos, um de porta e outro de janela, ambos com a verga reta, onde podemos identificar o uso atual, de oficina mecânica. Esta edificação passaria despercebida ao olhar desatento de um transeunte, alheio às escassas informações remanescentes de outras épocas, ainda presentes na fachada. Um olhar mais atento para a estrutura, cobertura, assim como para o lote e o bairro no qual se encontra o imóvel, poderia levar às indagações quanto a sua ancianidade. A edificação encontra-se localizada no Centro Histórico de Belém (CHB), no bairro da Cidade Velha, conjunto arquitetônico e paisagístico, tombado pela Lei Orgânica do Município em 1990 e regulamentado pela Lei 7.709 de 1994. Os bairros apresentam hoje marcas em sua arquitetura e no tecido urbano do processo de colonização iniciado em 1616. É importante pontuarmos esta questão, a construção do espaço onde localiza a “Casa da Joaquim Távora”, pois determinadas características desse “tempo” são destacadas como significativas no pedido de tombamento do imóvel em 1960. A aparência do bairro da Cidade (posteriormente chamada de Cidade Velha) no seculo XVII, o primeiro sítio de ocupação portuguesa de Belém, apresenta-se por meio de relatos de viajantes retratada da seguinte forma: [...] ruas estreitas e tortuosas, poucas edificações, mas com algumas importantes Igrejas e conventos compondo o conjunto arquitetônico. As casas predominantemente de dois pavimentos, de taipa ou barrote revestido de tijuco (PENTEADO, 1968, p. 118).

A fortificação era o primeiro ponto de estabelecimento em terra do projeto de colonização, posteriormente ia se configurando o 50


núcleo urbano, com a presença das edificações do governo, igrejas, conventos, a arquitetura civil e militar. Reis Filho (1978) ao discorrer sobre a arquitetura brasileira, da colônia aos meados do século XX, adota uma perspectiva analítica da transformação da arquitetura ante sua adaptação ao lote urbano. Segundo o autor, assim como Araújo (1998), a política urbana de ordenação das cidades no período colonial contava com a presença dos engenheiros militares (o fortificador) ou o arruador, os quais eram responsáveis pelos primeiros traçados de ruas, quadras e lotes. As ruas apresentavam aspecto uniforme, com as casas térreas ou sobrados no limite da via pública, assim como ocupando as laterais dos lotes. As vias acabavam sendo delimitadas pelo conjunto das casas, que eram erguidas uma em continuidade da outra, geminadas, sem afastamentos laterais. A maior parte das vezes a arquitetura civil apresentavam certa monotonia, tendo em vista a uniformidade dos partidos arquitetônicos adotados. No século XVIII o crescimento urbano é orientado para o interior afastando-se do litoral. Em 1753 no governo de Francisco Xavier de Mendonça Furtado - irmão do Marques de Pombal, ministro do Rei - chega a Comissão Demarcadora dos Limites com a finalidade de fixar as fronteiras das duas nações ibéricas de acordo com o Tratado de Madri. A Comissão traz para o desenvolvimento de suas atividades engenheiros, arquitetos desenhadores, astrônomos e topógrafos, que atuaram na transformação da paisagem da cidade. Belém passa a ser a capital da Capitania do Grão-Pará e Maranhão em 1751, as relações entre capitania e metrópole se intensificam, seja pela mudança da capital, seja pelo parentesco de Francisco Xavier, com o ministro do Rei. Nas colônias portuguesas as vilas e cidades passam a intensificar as diretrizes de ordenamento urbano implementadas através das Cartas Régias, com normativas sintéticas e simplificadas que previam: criação de praça; instalação de edifícios 51


oficiais; abertura de ruas largas e direitas, em linha reta; a definição de um modelo único de fachada para que sempre se conservasse a mesma formosura das terras e a mesma largura das ruas (ARAÚJO, 1998). É importante colocar que a padronização de fachadas era valorizada para que se vislumbrasse a hierarquia das edificações, onde se destacavam os edifícios religiosos, militares e oficiais. José Morgado (2008) ao estudar um sobrado colonial localizado no bairro da Cidade Velha, conhecido popularmente na atualidade como “Casa Rosada”, considera que nesse momento Belém sofrera transformações significativas, especialmente no seu perfil arquitetônico e volumétrico a partir da monumentalização – da qual este sobrado de dois pavimentos, com os vãos de porta e janelas emoldurados com ricos detalhes é exemplo. A expansão urbana de Belém passa por significativas mudanças no século XIX em virtude do aterro do alagadiço Piri, área pantanosa que dividia os dois bairros da cidade até o início do referido século. A obra de “higienização” iniciada no governo do Conde dos Arcos possibilitou a ocupação dessa extensa área tomada pelo alagado assim como o crescimento da cidade à Leste da cidade. A paisagem urbana desta época foi relatada por alguns viajantes naturalistas, que deram importantes contribuições para a caracterização da arquitetura civil: A arquitetura é singela, raro tendo as casas mais de dois pavimentos; quase sempre térreas, são menos decoradas do que as do Maranhão, simplesmente caiadas e em geral sem vidraça; mas o conjunto é asseado, cômodo e dá a impressão de uma vida domestica feliz (PENTEADO, 1968, p. 127).

Na segunda metade do século XIX às primeiras décadas do século XX, Belém sofreu significativas transformações em virtude do capital gerado pelo ciclo econômico da borracha. Estas partiram das aspirações da nova classe social, a burguesia gomífera, emergida em 52


decorrência da cultura extrativista. As aspirações desta classe encontraram forte apoio dos governantes uma vez que coincidiam com os projetos higienistas desses para a cidade. Assim, data das primeiras décadas do século XX a aplicação do código de posturas imposto pelo intendente Antonio Lemos, como também o incremento de equipamentos públicos e de diversão como praças, mercados, teatro, cinematógrafos, etc. O bairro da Campina – também chamada de Comércio – se destacou com os investimentos em infra-estrutura, tanto do governo quanto da burguesia, tais como: calçamento, iluminação, reformas e construções das casas de venda de produtos importados europeus. A Rua dos Mercadores, atual João Alfredo, é considerada como a via mais emblemática da época, o crescimento e a concentração de comércios e serviços na mesma demonstra a mudança do eixo comercial de Belém. A arquitetura eclética foi “eleita” como expressão deste poderio econômico, e permaneceu “vigente” até meados da década de 20, quando a cidade demonstrava as consequências da decadência da economia extrativista. Figura 2: Delimitação do Bairro da Cidade Velha, feita em 1967 pelo município.

Fonte: CODEM, modificado pelo autor, 2012.

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O recorte de tempo acima tratado, é aquele que constituiu a identidade, a historicidade na construção do CHB, ao resgatarmos as legislações preservacionistas de Belém, encontramos uma das primeiras tratativas que associam a delimitação espacial à necessidade de salvaguarda patrimonial, datada de 1967. A Câmara Municipal estatuiu naquele ano a Lei n° 6.307 que delimitava a área do Bairro da Cidade Velha, com a finalidade de sua “[...] preservação histórica e arquitetural naquilo em que ela representa as origens da cidade e os primórdios de sua formação [...]” (BELÉM, 1967). Segundo a Lei a poligonal a qual definiu o bairro (Fig. 2), representa o núcleo de formação da cidade, da sua fundação até sua expansão para o bairro da Campina. A área considerada como “zona da velha Cidade de Belém” (BELÉM, 1967) foi delimitada para que fosse possível a preservação do “testemunho dos fundamentos da capital paraense, nos períodos dos séculos XVII e XVIII” (BELÉM, 1967). O desenvolvimento da legislação se deu nos anos subsequentes, até culminar no tombamento pela Lei Orgânica do Município de 1990 , que por sua vez alarga a historicidade do CHB, agregando as arquiteturas do século XIX e início do século XX como de interesses a preservação. No que tange a fisionomia a qual as legislações visavam/visam resguardar, recorreremos aos mapas abaixo para discorrer sobre os aspectos da cidade. As figuras trazem a configuração de Belém no século XVIII, a “Planta da Cidade de Bellem, Capital do Estado do Gram Par.” (Fig.3) de 1761 de autoria não identificada e o “Plano Geral da cidade do Pará” (Fig.4) de autoria de Teodósio Constantino de Chermont, datado de 1791 e a imagem de satélite (Fig.5) do Google Maps do ano de 2021.

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Figura 3: Recorte da Planta de Belém datada de 1761. A imagem traz parte da vista do bairro da Cidade Velha, e em destaque a área de localização da casa da Joaquim Távora.

Fonte: REIS FILHO, 2000. Figura 4: Recorte da planta de Teodósio Chermont, de 1791. A imagem, mesma área da figura 3, traz em destaque o que seria a delimitação do lote de localização da casa da Joaquim Távora.

Fonte: Acervo Biblioteca Nacional.

Podemos observar, que na primeira imagem, em 1761 já havia a delimitação do lote referente ao objeto de estudo, que se localiza na esquina das travessas Joaquim Távora e Praça do Carmo. A planta de Chermont de 1791 apresenta o nível de detalhes mais apurado e podemos também visualizar no lote onde se encontra a casa, o bloco sólido, inferindo a existência de uma área edificada, visto que o terreno contiguo a este na Praça do Carmo há um vazio - em ambas 55


as representações, ou seja, aquele espaço estava ocupado por uma edificação já no século XVIII. Figura 5: Imagem de satélite da área onde está localizada a edificação em estudo. Recorte espacial semelhando aos das figuras 4 e 5.

Fonte: Google Maps, 2021.

Ainda no que se refere ao desenho do mapa de 1791, podemos identificar outras curiosidades, como nos espaços internos das quadras a existência de áreas verdes, a forma de implantação da arquitetura no loteamento colonial gerava esta característica: A impressão de monotonia era acentuada pela ausência de verde. Inexistindo jardins domésticos e públicos e a arborização das ruas, acentuava-se naturalmente a impressão de concentração, mesmo em núcleos de população reduzida. Atenuava-se apenas os pomares derramando-se por vez sobre os muros (REIS FILHO, 1978, p. 24)

A ausência de afastamentos laterais e frontais determinava o padrão de ocupação do solo, descrito pelo autor. Na representação de Chermont, o nível de detalhes, nos permite identificar as plantações 56


nos quintais e a ausência de representação de vegetação em áreas livres públicas. A imagem de satélite de 2021, aponta, dentre as mudanças, que as referidas áreas internas de permeabilização de quadras foram sendo reduzidas e até apagadas, novos padrões surgiram com o adensamento das construções. Observa-se também o “aparecimento” do paisagismo na praça – cabe salientar que a Igreja Rosário dos Homens Brancos, localizada em frente à edificação em estudo, fora demolida. O recorte de tempo acima tratado, da fundação ao século XIX, fundou um imaginário de uma Belém de arquitetura colonial16, muito embora as edificações consolidadas e transformadas neste período transbordem o tempo da Colônia, passando pelo período Imperial até início da República Velha. As características arquitetônicas da arquitetura civil colonial implantada no bairro da Cidade Velha, foram das casas térreas ou sobrados de dois pavimentos com ou sem camarinhas, alinhadas na testada do lote e geminadas umas às outras. As ilustrações abaixo do livro “Quadro da Arquitetura no Brasil” de Reis Filho (1978) demonstram o padrão adotado no Brasil colonial (Figuras 6 a 8): Figura 6: Croqui da disposição das casas térreas no lote colonial.

Fonte: REIS FILHO, 1978, p. 31.

16 A referida discussão é tratada por Tutyia (2013) na dissertação “Rua Dr. Assis: uma incursão pela paisagem patrimonial transfigurada da Cidade Velha, Belém do Pará”, disponível em: http://repositorio.ufpa.br/jspui/handle/2011/8593

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Figura 7: Croqui com modelos de casa térrea e sobrado. As coberturas podiam ter variações, como no sobrado há o destaque para a presença da água furtada e na casa térrea da camarinha.

Fonte: REIS FILHO, 1978, p. 31. Figura 8: Vista em perspectiva e corte do sobrado colonial, demonstrando as disposições dos ambientes. Podemos observar a parte posterior com a presença do quintal.

Fonte: REIS FILHO, 1978, p. 29.

As casas térreas e sobrados geralmente apresentavam a cobertura em duas águas com beiral, mas também, como nos exemplos acima, poderia haver as variações com a camarinha ou água-furtada. As telhas eram de barro do tipo capa-canal, raros eram os modelos com forro, geralmente adotava-se o padrão da telha vã. O piso em chão batido nas casas térreas e assoalho em madeira no segundo pavimento dos sobrados. A tecnologia construtiva das edificações variava entre argamassa em pedra e cal e taipa17, quanto os vãos de portas e janelas os mais comuns podiam ser em verga reta ou arco abatido, com esquadrias em madeira. Os sobrados eram dotados de guarda 17 Para maiores informações da tecnologia de taipa empregada em edificações no Pará, ver o trabalho “A taipa como patrimônio cultural: a preservação do saber fazer” de Carvalho e Miranda (2015). Disponível em: https://revista.ufrr.br/rct/article/download/2479/1802

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corpo em madeira ou ferragem. Quanto maior e mais complexa a habitação, maior era o poder econômico e social daquela família, a materialidade arquitetônica deste período diz sobre uma camada especifica da sociedade brasileira. As figuras 9 e 10 são fotos do bairro da Cidade Velha e remetem a ambiência da paisagem descritas pelos viajantes e historiadores, e sugerem o caráter colonial do bairro. Figura 9: Edificação na Rua Dr. Malcher, Figura 10: Conjunto de edificações da Praça registrada por Robert Smith entre os anos do Carmo, registrada por Robert Smith entre 37 a 47. os anos 37 a 47.

Foto: acervo fotográfico Fórum Landi, s/d.

Foto: acervo fotográfico Fórum Landi, s/d.

As fotos são registros feitos pelo historiador norte-americano Robert Smith datados de 1937 a 194718, quando pesquisava sobre o urbanismo, a arquitetura e a arte colonial brasileira. Podemos observar nos conjuntos edificados as características bem marcantes da arquitetura civil descritas anteriormente no trabalho, o imóvel da figura 10 não existe mais e os da figura 11, que se localizam na Praça do Carmo, foram remembrados, ou seja, houve a junção interna dos 18 As informações de datação foram coletadas no acervo fotográfico Fórum Landi em 2011; Bueno (2012) indica que Robert Smith “descobriu” o Brasil em 1937, a partir de uma bolsa do American Council of Learned Societies, ocasião na qual realizou uma longa viagem por várias cidades brasileira, incluindo Belém; por sua vez, Pessoa e Araújo (2012), por sua vez, afirmam que Robert Smith deixou para o SPHAN inúmeras fotografias de monumentos da Bahia, Rio de Janeiro e Pará, os quais foram capturados entre as décadas de 1940 e 1950. Desta forma, por não haver comprovação da datação correta, optamos em deixar registrado estas informações.

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dois sobrados que hoje formam um único sobrado e que pertence a Universidade Federal do Pará, onde funciona o Fórum Landi. A casa térrea também fora apagada da paisagem. 3. A CASA DA JOAQUIM TÁVORA (TRAVESSA) Nº 60 Figura 11: Vista da fachada pela Praça do Figura 12: Vista da fachada pela travessa Carmo. Joaquim Távora.

Foto: IPHAN, 1960.

Foto: IPHAN, 1960.

É neste contexto de apagamentos e transformações que apresentamos o que foi a “Casa da Joaquim Távora nº 60” em suas configurações externas “iniciais”. A foto atual da casa, exposta no início do trabalho, mostrou os vestígios de alguns elementos que compunham o imóvel, como o beiral, as telhas capa-canal em barro, o cunhal de junção entre as fachadas. Aqui podemos recompor sua fisionomia externa e observar os vãos de portas e janelas emoldurados com frisos que acompanham a verga em arco abatido, sendo quatro janelas e uma porta na fachada da Praça do Carmo, e três janelas e uma porta na fachada da Joaquim Távora. Outros elementos que também são presentes: o embasamento e as feições da pilastra com os socos - a base da coluna – ainda em suas formas definidas. Belém no final da década de 50 e ao longo da década de 60 passou 60


por um processo acelerado de transformação de sua paisagem urbana, este fato pôde ser observado no jornal “A Província do Pará”, destas décadas. A modernização dos espaços livres, equipamentos públicos e privados eram recorrentes nas propagandas de prefeitos e governadores, assim como em colunas de periodistas, os quais uns clamavam pelas transformações da cidade e outros contestavam tal processo19. O processo de verticalização da cidade estava estampado nas páginas dos jornais, diversos são os anúncios de imobiliárias, como por exemplo da Sul-Americana (Fig. 13) que anunciava o empreendimento “situado na avenida mais aristocrática de Belém”, a avenida Nazaré, fato que demonstrava novos eixos de verticalização da cidade. Imagens de novos materiais utilizados na indústria da construção civil, mobiliários para decoração, eletrodomésticos, enfim, o espírito de época daquele momento transbordava nos periódicos, demonstrando que o passado colonial e da Belle Époque abria a guarda para um novo modelo arquitetônico. Figura 13: Perspectiva do “Edifício Nossa Senhora de Nazaré”, projeto de Judah Levy, estampava o anúncio de venda de apartamentos da Imobiliária Sul América em 1955 no jornal “A Província do Pará”.

Foto: Edifício..., 1960. 19 As considerações fazem parte da discussão da pesquisa de tese da autora e encontra-se em fase de desenvolvimento.

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Mas o tensionamento entre as duas cidades era latente, a Belém de novos ares tentava apagar os elementos da Belém “passadista” para deflagrar o processo de modernização. Essa ação, todavia, enfrentava resistências, como podem ser ilustradas pela figura do representante estadual do DPHAN, o representante estadual, o historiador Ernesto Cruz, que acolhia e fazia as demandas, enviando-as para a sede daquele órgão no Rio de Janeiro. As solicitações tinham por finalidade o resguardo federal dos bens com o instrumento de tombamento, estabelecido no Decreto Lei nº 25 de 1937. O processo de tombamento de um imóvel apresenta, geralmente, um conjunto de documentos com informações de natureza diversa20, que visam auxiliar o parecer da equipe técnica da Instituição à apreciação do valor cultural do objeto. São em algumas dessas fontes que este trabalho se debruçou para analisar as práticas patrimoniais do DPHAN no recorte de tempo dos anos 60. O processo da Casa da Joaquim Távora, nos chamou a atenção primeiramente pelo seu indeferimento, e posteriormente por ser um objeto que fugia do padrão da monumentalidade dos tombamentos feitos naquele período. A casa térrea marcada pela pátina21 do tempo em sua fisionomia, já estava em “descompasso” com a modernização da época, de modo que a retórica da perda (GONÇALVES, 1996) é lançada com a finalidade de evitar o apagamento daquele imóvel pelo progresso. A análise documental do processo demonstra que este fora solicitado por Paulo Fender, senador do Pará, em 16 de abril de 1960, 20 A Portaria nº 11 de setembro de 1986 do IPHAN, que trata da normatização de procedimentos para processo de tombamento, dispõe no Art. 4º, inciso 1º, que a instrução do pedido consta “[...] de estudo, tanto quanto possível minucioso, incluindo a descrição do(s) objeto(s) de sua(s) área(s), de seu(s) entorno(s), à apreciação do mérito de seu valor cultural [...] informações precisas sobre a localização do bem ou dos bens, o(s) nome(s) do(s) seu(s) proprietário(s), certidões de propriedade e de ônus reais do(s) imóveis, o(s) seu(s) estado(s) de conservação, acrescidas de documentação fotográfica e plantas” (IPHAN, 1989, p. 2). 21 Pátina são as marcas da passagem do tempo na materialidade arquitetônica.

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ao encaminhar uma carta a Rodrigo Melo Franco de Andrade22 com provas as quais julgava informar o “reconhecimento do valor histórico do imóvel”. Segundo Fender a demolição estava a vias de se iniciar “[...] o referido prédio – agora objeto de vandalismo capitalista, que, em nome da civilização, a ela própria apunhala no seu cerne histórico e tradicional, sem aquele mínimo de respeito exigível ao que deve ser preservado [...] (FENDER, 1960, p. 2). Nota-se na fala do senador que a possível perda prematura do imóvel, por questões econômicas imobiliárias, clamava pelo seu resguardo pela legislação federal, uma vez que ele tinha valores históricos e tradicionais. Paulo Fender anexa à carta um “atestado” dos valores atribuído por Ernesto Cruz. O referido documento, por sua vez, é uma carta do historiador em resposta a “Sr. Dr. Carlos Zoghbi”, sobre informações históricas da casa, declaradas em 9 de fevereiro de 1960: A casa de referência é uma das mais antigas residências da era colonial, de Belém. Deve remontar ao século XVIII ou princípios de XIX. Os naturalistas Bates e Agassiz que estiveram no Pará, no século XIX, descrevem nos seus livros, este tipo de casa, usada pelos moradores daquele tempo. Todas as suas características, deste o talhe, feitura das janelas e portas, disposição do telhado, soleiras etc. Indicam ser a casa em tela, uma residência colonial. Constitui, realmente, uma relíquia do passado, que deve ser conservada na sua estrutura original, cujo valor histórico não pode ser esquecido (CRUZ, 1960, p. 3).

O historiador se pauta nas descrições das edificações de Belém, presentes nos relatos dos viajantes, nas características da arquitetura do século XVIII, para conferir de antemão a possível autenticidade daquele objeto, e tentar dar os primeiros passos para garantir o seu resguardo. Nota-se que a residência por ter as características coloniais 22 Jornalista mineiro, foi o primeiro diretor do SPHAN, permaneceu neste cargo ao longo de 30 anos.

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deve ser elevada à categoria patrimonial em sua feição integral, a estética da edificação é utilizada naquele momento pelo historiador como o próprio valor histórico. Além disto, para construir a autenticidade inicial do objeto, Cruz (1960) faz uso da citação do Art. 1 do Decreto Lei nº 25, reforçando assim os referidos valores. O Decreto-Lei nº 25 vai carregar um papel simbólico na estruturação da política preservacionista brasileira, os objetos para participarem do conjunto patrimonial nacional, precisavam/precisam ter a qualificação de “vinculados à fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico” (IPHAN, 2006, p. 99) – argumento utilizado pelo historiador na carta. Segundo Chuva (2017), foi um trabalho intenso para que o Decreto Lei nº 25 fosse legitimado, as referências ao mesmo são constantes nos processos, nos enunciados de Rodrigo Melo Franco, da equipe técnica assim como do Conselho Consultivo do SPHAN. A construção da nação simbolizada por meio dos objetos patrimoniais protegidos por esta Lei estava pautada sobre os valores artístico e histórico, para a representação da nação. E foi com base nesse decreto, que o historiador conferiu o “atestado de valoração” da edificação: O prédio nº 60, da travessa Joaquim Távora, nesta capital está inegavelmente vinculado a fatos memoráveis da história do Pará, tal seja – a época colonial, - a fase que vem merecendo dos historiadores brasileiros, constantes investigação para o seu completo conhecimento (CRUZ, 1960, p. 3).

As trocas de correspondências entre a Diretoria do DPHAN e a representação desse no Pará, por meio de Ernesto Cruz, demonstraram que, no tramitar do processo, houve exigência de detalhamento da aferição de valores feitos pelo historiador – sobretudo referente ao excerto acima. Além de fotos do imóvel, Carlos Drummond de 64


Andrade – que respondia como chefe da Seção de História (S.H) da instituição – solicitou comprovações de “indicações de fato preciso, ou de circunstância histórica relevante, que permita relacionar especificamente a casa da Praça do Carmo com a história brasileira no período colonial” (ANDRADE, 1960, p. 6). A casa da Joaquim Távora por si, pelas suas características e elementos que a vinculava com a arquitetura colonial brasileira, não poderia ser tombada, aos olhos de Carlos Drummond. A edificação deveria estar atrelada à “história brasileira no período colonial”, desta forma, as afirmativas feitas por Cruz deveriam ser comprovadas historicamente, assim como a vetustez do imóvel. O chefe da S.H ainda pondera que a comprovação da ancianidade23 da construção, pode conferir a mesma o “testemunho do passado”, consequentemente sua inscrição com os exemplares de interesse histórico, contudo: Esta caracterização, [...], quando desligada de ocorrências própriamente históricas, desenroladas no imóvel ou que nêle de algum modo repercutam, só vem sendo feita pela DPHAN se a edificação é realmente ilustrativa de uma fase arquitetônica, de um estilo, de um modo de construir, e se outros modelos mais ilustres não se oferecem ao interêsse do pesquisador, na mesma cidade ou região[...] (ANDRADE, 1960, p. 6)

A fala de Drummond demonstra que naquele início dos anos 60, havia uma seleção mais rigorosa dos bens que, para serem elevados à categoria de patrimônio nacional, por sua relevância arquitetônica, deveriam ser singulares nos aspectos explicitados. Desta maneira, o processo passaria por uma análise “à luz de critério arquitetônico” na Seção de Arte do DPHAN. Ernesto Cruz dá início à tentativa de “autenticar” os valores da 23 A ancianidade é empregada nos documentos deste processo no sentido de tempo histórico decorrido, o mesmo que antiguidade.

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casa, por meio de fotografias e documentações solicitadas, inseria pequenos textos, onde tentava se valer de sua autoridade de historiador e diretor da Biblioteca e Arquivo Público do Pará para persuadir aquela equipe “estrangeira” da importância do imóvel para o Pará. Dentre estes textos, afirmava a Rodrigo Melo Franco: A casa é de construção colonial, datando do século XVIII. Está situada na CIDADE VELHA, de onde partiram os colonizadores portugueses para o desbravamento. Este edifício impressionou profundamente o Dr. Robert Smith, pelo seu estilo e pela sua antiguidade, sendo mesmo um dos monumentos da cidade (CRUZ, 1960, p. 7).

Por mais que ainda não tivesse apresentado as provas documentais, o historiador utilizava argumentos reafirmando a colonialidade da casa, primeiramente através de sua localização no bairro gênese da colonização portuguesa em Belém, e também considerando as impressões do historiador Robert Smith (embora não adicione nos documentos referências materiais das impressões deixadas, se por fotografia, por texto ou por oralidade). É interessante notar que o historiador de Belém resgata o olhar de Robert Smith para com o objeto - um historiador com “lastro” nas pesquisas da arquitetura colonial brasileira para aquela instituição24, com a finalidade de declarar que a casa é um monumento para Belém. A transformação da cidade e da arquitetura de outrora é latente na documentação de tombamento, a pressão do capital imobiliário pela renovação dos espaços é sempre pontuada pelos sujeitos paraenses que aparecem no processo: “o seu atual proprietário pretende demolir 24 Segundo Bueno (2012), Robert Chester Smith, vem ao Brasil pela primeira vez em 1937, e a partir desse momento passa a investigar a arquitetura e urbanismo colonial no Brasil. O historiador americano estabeleceu vínculos com o corpo técnico do recém-criado Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, desta forma se nutrindo e contribuindo para as pesquisas da instituição. Publicou uma série de artigos para a Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

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esta impressionante relíquia do Pará-colonia, para em seu lugar erigir um prédio moderno. Se isto acontecer Belém vai perder uma peça valiosa de sua História” (CRUZ, 1960, p. 7). Segundo Vidal e Lima (2018) este período foi marcado pela presença de novos agentes do setor privado que passaram a participar da exploração de recursos minerais da Amazônia. As ações desses no tecido da cidade se dava na tentativa de criar uma nova paisagem da “metrópole da Amazônia”, modernizada, que tinha na construção de edifícios a via para a produção da nova imagem de Belém. Ernesto Cruz clamava pela salvaguarda do imóvel, mas não bastava o valor simbólico que aquele objeto tinha para o representante regional do DPHAN. Era preciso atender às exigências da equipe técnica da sede. No decorrer do processo outros sujeitos apontaram para a necessidade de estudos aprofundados sobre as “primeiras edificações” erguidas no mais antigo sítio da cidade, dentre esses, Arthur Cezar Ferreira Reis – requerido por Rodrigo Melo Franco de Andrade – que sugeriu à Diretoria um inventário do casario do bairro, para que fosse possível tomar conhecimento daqueles mais antigos e assim “merecer a interferência do Estado na sua ação visando á preservação do patrimônio histórico e artístico local” (REIS, 1960, p. 15). O relatório de Paulo Thedim Barreto, Chefe do Setor de Artes do DPHAN, também recai nos aspectos da arquitetura tradicional, antiga. Este por sua vez relata que a Praça do Carmo era um dos poucos núcleos onde as edificações não sofreram massivamente a inserção de platibandas: “[...] o incentivo lastimável da lei municipal que determina o despojamento das cornijas e beirais das casas de Belém” (BARRETO, 1960, p. 11). Acrescenta ao parecer que as “casas desfiguradas são em pequeno número” e solicita urgência para o tombamento do convento carmelita, adaptado a colégio, assim como da Casa da Joaquim Távora, pois “Essa vivenda, de fato, por suas proporções e robusto cornijamento, 67


é uma daquelas que como disse bem Saint Adolphe ‘foram feitas de pedra-e-cal com solidez e elegancia25’” (BARRETO, 1960, p. 11) As observações de Barreto (1960) sobre a Casa da Joaquim Távora trazem algumas informações que nos ajudam a refletir sobre as várias formas de mudança da paisagem arquitetônica de Belém naquele período, seja pela renovação total da edificação no lote, seja por intervenções pontuais, mas que desfiguravam a “Belém colonial”, apagando alguns dos elementos de composição da fachada. Fica explicito tanto na fala de Reis como na de Barreto que as características da “colônia” deveriam ser preservadas, cujo valor era atribuído em referência à arquitetura de pedra e cal do período colonial. 4. O INDEFERIMENTO: CONSIDERAÇÕES FINAIS O desfecho desse processo chama a atenção pelo fato de Ernesto Cruz, que demandou empenho para validar a relevância histórico e estética da Casa da Joaquim Távora, tenha atestado a seguinte conclusão sobre o imóvel, em 24 de junho de 1960: “não possuir as caraterísticas positivas de ancianidade”. Mas como se chegou a este veredito? Na busca pela documentação que atestasse a data de existência da casa na história colonial brasileira – pois o valor colonial era o almejado – o historiador de Belém havia encontrado a “Escritura Pública e o Termo de Traspasse”, comunicando a Rodrigo Melo Franco de Andrade “ao contrário do que informei anteriormente, louvado na tradição oral, muitas vezes falha e imprecisa, dito prédio não possue a antiguidade que lhe é atribuída” (CRUZ, 1960, p. 21). 25 A citação se refere ao conteúdo presente no verbete “Belêm” do “Dicionário Geographico, historico e descriptivo do Imperio do Brazil”, originalmente publicado em 1845 pelo militar francês Millet de Saint-Adolphe. Saint-Adolphe menciona o sistema construtivo da pedra e cal, ao se referir às edificações “da cidade de Belêm” no século XVIII. Segundo o autor Belém recebera o título de “cidade” no ministério do Marquês de Pombal (SAINT-ADOLPHE, 1845).

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Cruz (1960) assume que fora levado a reconhecer a antiguidade da edificação através da oralidade e atribui a isto a falha da possível datação cronológica no perídio colonial brasileiro. O Termo de Traspasse, que indica o processo de compra, constava que o Barão de Arary havia adquirido dos herdeiros de José Antonio Oliveira, em abril de 1865, um terreno na atual Joaquim Távora. O historiador concluiu que pelo motivo do Termo de Traspasse não se referir a “terreno edificado” e simplesmente “terreno”, que o Barão de Arary havia construído a edificação após aquela data de compra, sendo assim “Não se trata de casa colonial, quer dizer, do tempo da colônia, mas do estilo da época em que foi construída, posterior ao ano de 1865”. A partir da exposição de Cruz na carta, o processo foi arquivado e fora dada autorização para que o atual proprietário executasse as “obras de restauração”, tendo em vista o estado precário de conservação da parte interna do imóvel. Podemos destacar alguns pontos de reflexão sobre o processo: o valor do documento oficial com a datação do século XIX teve mais peso que as características coloniais que a casa apresentava, ou seja, a ancianidade “não positiva” que o papel atribui suplanta a ancianidade estética da materialidade – mesmo com o parecer de Paulo Thedim Barreto, Chefe do Setor de Artes do DPHAN. Segundo consta em seu relatório, as casas da Praça do Carmo ainda formam um conjunto apreciável [...] valorizando mais ainda a referida praça lá estão a igreja do Carmo, projeto de Landi e o Palácio Velho. É preciso, pois, que o DPHAN preserve o ambiente tradicional e característico desses dois momentos já tombados, tombando também aquela pequena praça – com todas as construções que lhe ficam a borda (BARRETO, 1960, p. 11)

Existia uma composição harmoniosa entre o conjunto edificado, a igreja do Carmo e o Palácio Velho – ambos já haviam sido tombados 69


pela instituição – a Casa da Joaquim Távora contribuía para compor essa vista formando um “ambiente tradicional” com ambos os bens. Porém, por não estar explicito em documentos que havia edificação construída no terreno comprado pelo Barão de Arary, na segunda metade do século XIX, esta passou a não possuir características positivas de ancianidade, desfavorecendo o interesse ao tombamento. A arquitetura do século XIX foi relegada a segundo plano nas primeiras décadas de tombamento do SPHAN/DPHAN, sendo invisibilizada aos olhares dos técnicos atrelados ao modernismo. Segundo Fonseca (2017), havia uma aversão ao gosto burguês que acompanhava o padrão europeu com as linguagens de revisitação ao passado. Críticas ao passadismo da linguagem acadêmica da arquitetura da Escola de Belas Artes francesa, estilo atrelado à República Velha brasileira do final do século XIX às primeiras décadas do século XX, eram correntes no grupo dos técnicos da instituição. A casa da Joaquim Távora, que não apresentava um caráter monumental, não havia sido palco de fatos históricos significativos para a nação e estava sendo enquadrada no século XIX, deixou de ter a importância que foi construída nas primeiras correspondências do processo para tombamento. A análise dos recortes dos mapas, com as indicações de existência de construções no local, também nos levar a questionar se realmente não haveria remanescente do século XVIII naquela edificação? Fato que deixamos em aberto para que em futura pesquisa se possa aprofundar o conhecimento sobre os documentos “Termo de Transpasse” do século XIX. Devemos atentar também aos discursos produzidos pelos agentes da instituição, como mencionado anteriormente, os modernistas se apropriaram deste lugar na construção dos objetos de excepcionalidade histórico-artística, são os intelectuais e homens públicos do SPHAN/DPHAN das primeiras décadas de sua fundação, o SPHAN 70


de Rodrigo Melo Franco de Andrade, que terminaram por “fixar” uma hierarquia de valores com suas respectivas características a preservar. Os intelectuais assumiram a implantação do serviço destinado a proteger as obras de arte e de história no país, com suas concepções sobre arte, história, tradição e nação, foram responsáveis pela elaboração da “ideia na forma de um conceito abrangente de patrimônio que se tornou hegemônico no Brasil[...]” (FONSECA, 2017, p. 83). Desta forma, fica evidente que o conjunto de bens tombados ainda “deveriam expressar a ‘memória nacional’ ou a produção cultural ‘mais autêntica’ da nação, capaz portanto, de narrar sua história e origem, conforme expressão distinta e recorrente nos discursos dos agentes do órgão” (CHUVA, 2017, p. 210). No processo da Casa da Joaquim Távora é recorrente a menção à “ancianidade positiva”, “aspecto tradicional”, “casario antigo” e essas denominações recaem ao período colonial brasileiro, que por sua vez está relacionado a uma materialidade arquitetônica “autêntica”. Essa noção foi sendo perpetuada ao longo das décadas na instituição e ainda nos 60 eram realizadas as práticas do período inicial de tombamento. Os documentos do início do processo apontam que foram as características coloniais da edificação que fomentaram o historiador a construir, através de relatos, que se tratava de uma casa “autêntica”, porém após a análise do termo de traspasse, houve a contestação da datação no século XVII e XVIII. Assim percebemos que Ernesto Cruz, como representante regional, também adotara, no processo dessa edificação, a referida postura de atribuição de valor à excepcionalidade histórica, que pairava no autêntico colonial.

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Processos de Tombamento DPHAN Processo nº 609-T- 60: Casa Joaquim Távora (trav.) 60. Belém, [1960]. ANDRADE, Carlos Drummond de. [Correspondência Processo DPHAN nº 609-T-60]. Destinatário: Rodrigo Melo Franco de Andrade. Rio de Janeiro, 27 abr. 1960. 1 carta, p. 6. BARRETO, Paulo Thedim. [Correspondência Processo nº 609-T60]. Destinatário: Rodrigo Melo Franco de Andrade. Rio de Janeiro, 3 mai. 1960. 1 carta, p. 11. CRUZ, Ernesto Horácio da. [Correspondência Processo DPHAN nº 609-T-60]. Destinatário: Carlos Zoghi. Belém, 9 fev. 1960. 1 carta, p. 3. _____. [Correspondência Processo DPHAN nº 609-T-60]. Destinatário: Rodrigo Melo Franco de Andrade. Rio de Janeiro, 27 abr. 1960. 1 carta, p. 7. _____. [Correspondência Processo DPHAN nº 609-T-60]. Destinatário: Rodrigo Melo Franco de Andrade. Rio de Janeiro, 24 jun. 1960. 1 carta, p. 21. FENDER, Paulo. [Correspondência Processo DPHAN nº 609-T60]. Destinatário: Rodrigo Melo Franco de Andrade. Rio de Janeiro, 16 abr. 1960. 1 carta, p. 2.

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Plantas da Cidade de Belém PLANTAS Teodósio Constantino de Chermont: disponível em: https://bndigital.bn.gov.br/exposicoes/a-metropole-da-amazonia-400-anos-da-cidade-de-belem/cartografia-e-arquitetura/. Acesso em 19 ago. 2021. PLANTA da Cidade de Bellem, Capital do Estado do Gram Par.: REIS FILHO, Nestor Goulart. Imagens de Vilas e Cidades do Brasil Colonial. São Paulo: EDUSP, 2000.

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AS JANELAS DO AFETO EM CASAS DOBRADAS: matéria, memória e artefato Cybelle Salvador Miranda Ronaldo Marques de Carvalho Beatriz Martins Maneschy

1. DO PARTICULAR AO COLETIVO

Os laços afetivos se constroem entre sujeitos e a arquitetura, enquanto objeto que sinaliza um ponto de ancoragem da memória. Assim começou a história de amor com a casa 674 da Rua João Balbi, em Belém do Pará. A relatividade do tempo mostra que, apesar de a casa ter sido integrada à posse da família Miranda em 1997, há cerca de 20 anos, é como se sua imagem arquetípica fizesse sentido desde sempre. Traduzir as imagens do inconsciente não é simples, mas espera-se deste ensaio a elucidação das motivações que tornam a casa o lugar da felicidade, na qual todos se sentem acolhidos. Embora ela não tenha sido adquirida para moradia, exerceu a função de atelier de artes, como escola para crianças e adultos, e hoje, como laboratório de artes e artesanatos, biblioteca, pinacoteca e refúgio.

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Figura 1: Foto de família que mostra as casas no ano de sua aquisição.

Fonte: Acervo Maiolino Miranda, 1997.

Esta digressão quer também responder à questão da motivação da investigação científica, demonstrando o quanto é importante partir do pessoal, por vezes das raízes mais íntimas do ser, pois neste nexo se revelam possibilidades de que o sentido individual se torne coletivo. É o caso da ‘casa da JB’, que se integra no conjunto de casas dobradas Andrade Ramos, e quiçá, na paisagem patrimonial do bairro de Nazaré. O bairro de Nazaré surge a partir da Estrada de Nazaré, caminho onde se implantaram no início do século XIX as rocinhas, casas 78


de campo da burguesia belemense, as quais foram paulatinamente substituídas por residências de partido neoclássico, muitas delas em formato de casas dobradas26 (moradia em banda, para os portugueses), bem como casas burguesas soltas no lote, em estilo clássico e eclético. O predomínio da arquitetura residencial burguesa no bairro, além da arborização com mangueiras das principais artérias, confere a este uma distinção em relação aos demais sítios de Belém27. No relato de Penteado sobre a Belém da década de 40 do século XX, havia duas grandes áreas funcionais: a comercial e a residencial, a primeira circunscrevendo-se ao bairro do Comércio, que para o autor subdividia-se no velho centro e no novo centro, este representado pela Avenida 15 de agosto (atual Avenida Presidente Vargas) “‘a grande artéria da nova Belém do Pará ...’, ‘avenida larga, moderna’; nela, já existiam ‘uma pequena série de arranha-céus e se encontravam os melhores hotéis, os escritórios das grandes companhias de navegação, algumas repartições públicas e vários consulados de repúblicas andinas’”(PENTEADO, 1968, p. 181). Divide os bairros residenciais de Belém em três tipos: o bairro de Nazaré, local nobre, arborizado, com numerosas mansões cercadas por grandes jardins, localizadas ao longo das avenidas de Nazaré, São Jerônimo e Independência; de outro, bairro residencial modesto, ocupado pela classe média, contornando o bairro do Comércio, caracterizado pelas residências ‘no alinhamento da rua, algumas com pequenos jardins laterais’; e de um terceiro setor ocupado pelos bairros residenciais pobres, que se estende pela periferia 26 Em debate acerca do tema, os professores Cybelle Miranda e Ronaldo Marques de Carvalho definiram a classificação casas dobradas como um conjunto de residências geminadas originadas por parcelamento de lote, cujas entradas são voltadas para vias principais (ruas ou avenidas). Tal designação serve para diferenciar esse tipo arquitetônico das vilas como são do conhecimento do senso comum, situadas em passagens ou entradas no interior de quadras, sem que as casas fiquem voltadas para corredor viário. 27 O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional realizou dois levantamentos sobre casas em vila em Belém, ver Derenji (1984) e Derenji, Chaves e Monteiro (1997).

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da cidade, onde são frequentes as “casas de madeira cobertas por fôlhas de palmeiras, algumas edificadas em terrenos muito úmidos e, por isso mesmo, elevadas sôbre estacas; outras assentadas diretamente sôbre o chão’ (PENTEADO, 1968, p. 181-182).

Além dessas características, o bairro abriga os tradicionais colégios particulares da cidade – Colégio Marista, Colégio Santa Catarina, Colégio Gentil Bittencourt, bem como Escolas públicas tais como Orlando Bitar, Deodoro de Mendonça, Ulisses Guimarães, Barão do Rio Branco, e a Escola de Música Conservatório Carlos Gomes. Por fim, a Avenida Nazaré encerra na Basílica Santuário de Nossa Senhora de Nazaré, ponto culminante da procissão do Círio de Nazaré, inscrito no livro do patrimônio imaterial (IPHAN)28. Apesar de toda a dinâmica e o tombamento individual de algumas edificações, o bairro está ameaçado em sua paisagem pelas constantes investidas da incorporação imobiliária, de modo que o mesmo sofre com a descaracterização iminente. 2. A CASA COMO AFETO – MEMÓRIA E O ESPÍRITO DO LUGAR Segundo relatos coletados por meio de entrevistas com os atuais proprietários das casas, Raul Moreira, filho dos primeiros proprietários da residência 678, e Socorro de Almeida Gemaque, nora dos primeiros proprietários da casa 668, foi possível delimitar o histórico do conjunto Andrade Ramos, localizado na rua João Balbi com a Passagem Ramos, no bairro de Nazaré. Formada por quatro residências, esta fora construída em 1934, sob encomenda do Sr. Pedro de Andrade Ramos, para quatro de suas seis filhas: Emiliana, Heloísa, Maria dos 28 Outros capítulos deste livro trarão estudos sobre arquiteturas do bairro de Nazaré, tratando das residências neocoloniais e do Chalé da Avenida Nazaré.

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Anjos, Haydé, Ligia e Lourdes; as últimas foram contempladas com casas na Passagem Ramos. Figura 2: Localização e delimitação do bairro de Nazaré e das casas dobradas Andrade Ramos, marcadas em vermelho.

Desenho: Beatriz Maneschy, 2019.

Acredita-se que Pedro de Andrade Ramos tenha vindo do Ceará para o Pará juntamente com seu tio-avô, José Júlio de Andrade, famoso político e latifundiário, durante as primeiras décadas do século XX, para trabalhar em sua empresa Andrade & Ramos Co, em pleno apogeu econômico da borracha na Amazônia. Em Belém, Pedro de Andrade acumulou muitas riquezas e terras, possuía um palacete no terreno onde está localizada atualmente a Secretaria Municipal de Educação e Cultura (SEMEC), na Av. Governador José Malcher, há algumas quadras do local onde residia seu tio, o palacete Bibi Costa, também chamado de palacete José Júlio de Andrade29. 29 Para maiores detalhes consultar: MIRANDA, Cybelle Salvador; CARVALHO, Ronaldo. N. F. M.; MANESCHY, Beatriz. M. Cronologia construtiva e decorativa do Palacete Bibi Costa como expressão do zeitgeist em Belém do Pará. In: VI COLÓQUIO INTERNACIONAL – A Casa Senhorial: anatomia dos interiores. Rio de Janeiro/Belém: Fundação Casa de Rui Barbosa/Universidade Nova de Lisboa (no prelo).

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Figuras 3 e 4: A Passagem Ramos e a SEMEC.

Fonte: Beatriz Maneschy, 2019; Cybelle Miranda, 2019.

A Passagem Ramos, denominada em homenagem à família, estava locada aos fundos do terreno do palacete de Pedro de Andrade Ramos. Por isso, construiu as residências de suas filhas nesta área, sendo duas casas edificadas na Passagem propriamente dita e quatro já locadas como vila, na Rua João Balbi. Reflete-se nessa escolha a hierarquia das vias: a Avenida São Jerônimo como logradouro nobre, e a Rua João Balbi, via que se manteve sem pavimentação até os anos 60 do século passado. Figuras 5 e 6: Vaso em porcelana original dos primeiros proprietários. Prato decorativo com a fotografia da filha de Pedro de Andrade Ramos, Maria, e seu cônjuge.

Fonte: Acervo Socorro Gemaque, s.d.

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Como Pedro de Andrade era possuidor de muitas terras e bens, tanto na capital paraense, quanto no interior do estado, legou suas propriedades para seus filhos, deixando todos amparados, uma vez que, além das seis filhas, o casal também havia tido quatro homens: Pedro, Clóvis, Freitas, (...). Estes filhos receberam casas próximas à Passagem Ramos, exprimindo o costume da época, quando os membros da família moravam próximos, na mesma vizinhança. Dos atuais proprietários, apenas dois mantém relação com a família original: Socorro Gemaque, nora de Maria dos Anjos, e Raul Moreira, filho de Emiliana. Raul nos mostrou a casa, sendo o responsável por sua manutenção, após o falecimento dos pais. Demonstrou enorme carinho pela sua residência, devido ter vivido nela muitos anos de sua vida, inclusive a infância. Nesta casa, é possível notar alguns detalhes que demarcam a figura paterna da qual Raul relembrou ao longo deste encontro. Seu pai, o coronel Raul Moreira, manteve a residência nas cores verde militar, sendo a madeira do assoalho recoberta por uma espessa camada de cera, remetendo às botas brilhosas de um militar. O quarto do casal ainda mantém o guarda-roupa, no qual o filho orgulhoso mostrou a farda do pai, bem como alguns livros e álbuns de fotos. Os troncos de aquariquara que servem de pilares para a cobertura da garagem, segundo ele, foram trazidos pelo pai de uma expedição ao Oiapoque, na fronteira com a Guiana Francesa. Socorro, parente dos Ramos por casamento, abriu as portas de sua residência timidamente, sempre simpática e prestativa, concordando em nos contar toda a história que sabe sobre a residência a qual habita desde o matrimônio. Foi a partir desta entrevista que se descobriu a relação das proprietárias das casas com Pedro de Andrade Ramos e José Júlio de Andrade. Esta informação foi de grande valor, uma vez que conecta a vila ao contexto das Casas Senhoriais do bairro de Nazaré, como o palacete Bibi Costa, cujo proprietário foi o rico e temido latifundiário José Júlio de Andrade, figura envolta em fantasmagorias 83


que integram o imaginário popular da cidade. Além disso, Socorro nos informou sobre a árvore genealógica da família, bem como forneceu algumas fotografias que nos permitiram visualizar alguns detalhes de pisos e objetos de valor afetivo. 3. A CASA DA INFÂNCIA RESIGNIFICADA A residência São Jerônimo, do Arquiteto/artista visual Alexandre Sequeira, é vizinha próxima da JB 674. Compartilha também as memórias do residente, sendo que nela o autor morou desde a infância, assim como apresenta os mesmos materiais de revestimento da casa em estudo (parquet de tacos em madeira, pastilhas coloridas nos banheiros), embora as casas adotem porte e linguagem distinta. A residência São Jerônimo também integra as memórias da infância de uma das autoras que, quando criança, estudou na escola de mesmo nome, situada numa casa de porão bem ao lado da residência dos Sequeira. Para uma infanta de 9-10 anos, as formas curvas da casa eram um tanto assustadoras. A tese de Alexandre adota o método da autoficção, e se inscreve como resposta à perspectiva inexorável de que, o dia de bater a porta e levar consigo alguns fragmentos de memória, chegará. Diante desta visão melancólica, o artista propõe a produção de novas memórias que venham a dar novos sentidos a esse lugar, no qual convivem os fantasmas de antepassados que figuram como guardiões das ações presentes e quiçá, futuras. A narrativa de Alexandre calou fundo nas memórias da autora, que vive e revive o dilema de manter a casa da infância duplicada. Explica-se: esta não é a casa da infância real, mas um simulacro da casa da Cametá, no bairro da Cidade Velha, onde a autora e seu pai nasceram. Ao adquirir este imóvel, o pai a descreveu como “uma casa da Cametá com estilo”. A morfologia em dois pavimentos, e a escada em madeira são elementos que reforçam essa ligação. 84


Ao longo das duas décadas após a casa passar da família Mescouto para a família Miranda, esta foi Atelier de Artes, biblioteca e escritório, e, neste ínterim, foi sendo mobiliada com rescaldo da venda de outros imóveis pertencentes à família. Mesas, cadeiras, estantes foram sendo adicionados e renovados num palimpsesto em que cada objeto é uma referência de memória. A casa hoje se caracteriza como biblioteca e pinacoteca, com um acréscimo significativo a partir de 2018, quando do falecimento do patriarca e divisão de seu acervo. Maiolino de Castro Miranda foi médico psiquiatra, apaixonado por artes, música, artes visuais e um aficionado por cinema. O perfil intelectual de ampla formação nas ciências humanas, fundador de cineclube e crítico de cinema, viajante corajoso e comprador compulsivo de livros fê-lo amealhar um acervo de cerca de 40 mil volumes, os quais foram cuidadosamente selecionados e doados a bibliotecas, sendo que, cerca de 1/10 deste acervo foi mantido na JB 674. Assim, as memórias são revividas a cada passeio pela casa, que incorpora as vidas vividas por diversas gerações. As paredes grossas, em tijolos cerâmicos, suportam o andar superior, cujas divisões são feitas por taipa de mão e o assoalho em madeira dança e vibra aos passos dos moradores, bem como aos raios e trovoadas das chuvas amazônicas. A casa respira, por seus materiais e suas memórias. Flores “considera que o ato mnemônico fundamental é o comportamento narrativo, que se caracteriza, antes de mais nada, pela sua função social, pois se trata de comunicação a outrem de uma informação, na ausência do acontecimento ou do objeto que constitui o seu motivo” (FLORÈS apud JANET, 2003, p. 420). Memória e narração estão, portanto, ligados pela necessidade de transmitir o conhecimento do passado, sendo que o que deve ser lembrado e esquecido é determinado pelos grupos dominantes em todas as sociedades históricas. Nas sociedades sem escrita, a memória se baseia nas atividades 85


cotidianas, desenvolvendo-se como reconstrução generativa, permitindo o uso da imaginação, e não como aprendizagem automática. Nessas sociedades a memória coletiva organiza-se em torno de três interesses: a idade coletiva fundada pelos mitos de origem; o prestígio das famílias dominantes expressos nas genealogias e o saber técnico que se transmite por fórmulas práticas ligadas à magia. Com o surgimento da escrita, a memória passa a ser desenvolvida através da celebração expressa em momentos comemorativos dos grandes feitos, temos como exemplos os obeliscos e estelas no antigo Oriente e os arcos de triunfo no Império Romano. Também surge a memória armazenada em papiros ou papéis, cuja existência deve-se à evolução social e ao desenvolvimento urbano. A memória urbana é também memória real: ela cria instituições-memória como arquivos, bibliotecas, museus. Na Grécia se desenvolveu a mnemotécnica fixando a distinção entre lugares e imagens, precisando o caráter ativo destas no processo de rememoração e formalizando a divisão entre memória das coisas e memória das palavras. Le Goff (2003) ressalta que a memória é um elemento essencial da identidade, simbolizando a rotina, o capital necessário à sobrevivência do grupo. Portanto, há necessidade de permanência de marcos físicos do passado, bem como de indivíduos que promovam a continuidade das atividades cotidianas que permitem a sobrevivência dos lugares. No mundo contemporâneo, percebe-se a valorização da memória simbolizada pelos elementos materiais do passado, como as obras arquitetônicas e os objetos de arte, enquanto perde-se a memória como narrativa oral. O surgimento da fotografia no século XIX revoluciona a memória, multiplicando-a e democratizando-a, através dos Álbuns de Família, que servem como elemento aglutinador da trajetória familiar a ser repassado às gerações posteriores. O relato do narrador, do contador de histórias é o objeto central da possibilidade de várias leituras do passado, que não se dá de forma 86


acabada e definitiva, e que assimila a perspectiva dos vários grupos sociais. O acontecimento lembrado é infinito, pois é apenas a chave para tudo o que veio antes e depois (GAGNEBIN, 1993). E a memória é o meio do vivido, que deve ser vasculhada como quem escava, em busca das várias camadas de tempo que estão imersas nesse espaço. Os produtos deste trabalho são “as imagens que, desprendidas de todas as conexões mais primitivas, ficam como preciosidades nos sóbrios aposentos de nosso entendimento tardio – como torsos na galeria do colecionador” (BENJAMIN, 1987, p. 239). Benjamin ensina o caminho que deve trilhar aquele que deseja conhecer o passado: assinalar no presente o local do achado antigo e indicar as camadas das quais esses achados se originam, desde a superfície. Portanto, para ler os fragmentos da história expressos nas formas materiais da arquitetura e do espaço urbano é preciso ultrapassar a leitura mítica e fazer o papel do historiador crítico: ouvir as vozes esquecidas, através dos pequenos indícios, das imagens apagadas na memória daqueles que vivem o espaço. Recolher os traços das atividades cotidianas serve para fazer ecoar esse passado da experiência coletiva, muito distante das coleções particulares organizadas nos museus, composta por fragmentos descontextualizados, iluminados feericamente pelo foco da história oficial. Benjamin alerta para a memória-arqueologia: o passado deve ser sondado como quem escava, revolvendo várias vezes o mesmo fato, e partir da trajetória do inventariante, de modo que memória e sujeito sejam um todo. “E se ilude, privando-se do melhor, quem só faz o inventário dos achados e não sabe assinalar no terreno de hoje o lugar no qual é conservado o antigo” (BENJAMIN, 1987, p. 239). Só faz sentido o passado se ele puder falar de nós e para nós.

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4. A CASA COMO ARTEFATO – REFORMAS E DETALHES A memória se alimenta da arquitetura enquanto artefato, sendo necessário os detalhes, as pequenas partes da residência, responsáveis por uniformizar e criar a arquitetura como um todo, por isso a necessidade de abordar a tectônica da casa. Frascari (2008, p. 539) afirma que os detalhes possuem uma função geradora, ou seja, neles estão englobados os aspectos construtivos e a significação atribuída à construção. Fazendo uma analogia, o estudo da tectônica de uma obra arquitetônica seria como costurar uma colcha de retalhos (ainda que a palavra retalhos leve a uma ideia de remendos, aqui será utilizada em um sentido metafórico): cada um destes retalhos vem de uma história diferente, com estampas e tecidos distintos, mas quando juntos em uma colcha, unem-se em uma só forma de expressão e significação. A escolha destes detalhes –retalhos- pode partir de diversos princípios, dependendo de diversos fatores, como a escolha do arquiteto, o cliente, o construtor, a despeito do clima, terreno, contexto histórico e sociocultural. Contudo, sem a utilização destes retalhos, a colcha não existe. Sem a utilização dos detalhes e dos detalhamentos, não há construção. Por isso, o esforço na valorização dos detalhes na arquitetura, da tectônica. Para Frascari (2008, p. 539), os detalhes vão muito além de meros elementos secundários, eles são “unidades mínimas de significação da produção arquitetônica de significados. Essas unidades foram escolhidas e separadas em células espaciais ou em elementos compositivos, módulos ou medidas (...)” -os retalhos. O autor também afirma sobre a importância dos detalhes para se evitar erros de construção nas dimensões profissionais do arquiteto, a ética e a estética. Algo semelhante também fora ressaltado por Vitório Gregotti (2008, p. 537), o qual afirma que os arquitetos deixaram-se levar pela concepção global, pela abstenção do detalhe, o que acaba passando uma 88


“desagradável sensação de uma maquete ampliada, de uma falta de articulação das partes em diferentes escalas (...)”. As casas dobradas Andrade Ramos possuem uma planta que ainda se assemelha às casas do período eclético devido à ocupação do lote estreito. Conforme o estudo de Nestor Goulart Reis Filho (1995), as casas econômicas de tipo médio dos anos 1920-1940 mantinham a ocupação nos limites laterais dos lotes, com pequenos recuos frontais nos quais se plantavam jardins, sendo construídas edículas aos fundos do terreno. Nelas, a circulação de serviço ocorria através das salas. Figura 7: Planta padrão de casa econômica de tipo médio

Fonte: Reis Filho, 1995, p. 67.

Da planta padrão esboçada pelo arquiteto, nota-se a semelhança de partido, com geminação lateral, a presença de um jardim frontal 89


e um quintal, sendo que o setor social ocupa o térreo, enquanto os dormitórios situam-se no pavimento superior, dotado de uma ampla sala de banho. Duas curiosidades do partido da casa 674 consistem na presença de uma área lateral para a qual se voltam a sala de almoço, cozinha e despensa/ banheiro, bem como no término do volume em dois pavimentos com a cozinha, sendo seguido de um volume de 1 pavimento no qual se instalam a despensa e o banheiro. No quintal há uma edícula a qual, pelas dimensões, funcionava como depósito. Nota-se uma persistência da separação do setor de serviço em relação ao corpo principal da casa que, neste caso, se dá por meio da volumetria. A mesma solução foi encontrada no projeto do Chalé 522 da Avenida Nazaré, o qual apresenta volume em dois pavimentos composto pelos setores social e íntimo, sendo acrescido ao fundo um setor térreo composto pela copa, cozinha, despensa e banheiro de serviço (NASCIMENTO, 2017). Figuras 8 e 9: Planta do pavimento térreo e primeiro pavimento da casa 674 do conjunto Andrade Ramos, levantamento físico e cadastral realizado em 2019.

Fonte: Beatriz Maneschy, 2019.

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Analisando fotos antigas, possivelmente entre as décadas de 1950/60, pôde-se reconstituir o piso dos ambientes da sala de visitas e sala de estar da casa 668, composto por ladrilho hidráulico, inexistente em todas as residências do conjunto atualmente, além, também, de identificar as cores das paredes internas e das esquadrias. Figuras 10 a 12: Detalhes do interior original de uma casa, como o piso em ladrilho hidráulico e a cor das esquadrias. A ilustração indica o provável desenho do ladrilho.

Fonte: (01) e (02): Acervo Socorro Gemaque editadas por Beatriz Maneschy, s.d.. (03): Beatriz Maneschy, 2019.

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Em relação aos outros revestimentos, o piso da residência 674 no pavimento térreo no setor social era constituído por tacos de madeira mosaicados, em pequenos quadriláteros que unidos formam novas figuras e ladrilho hidráulico no setor de serviço. No segundo pavimento o piso era composto de assoalho de madeira, provavelmente acapu e mais um tipo de madeira não identificado. Figuras 13 a 20: Na primeira linha, estão os ladrilhos remanescentes encontrados nas residências Moreira e Miranda. Na segundo linha, à esquerda está o piso mosaicado original da sala de estar e à direita o assoalho de madeira do primeiro pavimento.

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Fonte: Beatriz Maneschy, 2019.

As esquadrias em madeira e vidro apresentam almofadas, dispondo de janelas com venezianas e aberturas duplas e portas com bandeiras, estas sem fechamento para circulação da ventilação. As janelas, além de serem divididas em duas partes, também possuíam uma pequena abertura na divisão de cima, onde as folhas com almofadas abriam e o componente das janelas com fechamento em vidro ficava exposto. Este artifício possibilitava a circulação do vento e uma maior iluminação sem obrigar a abertura total da esquadria, preservando a privacidade da família, conforme comenta Carmen Cal (1989). Entendemos que esta solução é uma derivação simplificada das esquadrias duplas usadas nos palacetes de inspiração europeia, como se pode ver no Palacete Bibi Costa, projetado pelo engenheiro Francisco Bolonha. 93


Figura 21: Portas e janelas da sala de estar

Fonte: Beatriz Maneschy, 2019.

As paredes localizadas ao longo da escada possuíam barra revestida em madeira até cerca de 1,50 m de altura, o restante sendo pintado por algum tom rosado ou bege. Todas as esquadrias eram brancas, mesma cor em que se encontram atualmente. A residência 674, assim como as outras da vila, é constituída por dois pavimentos habitáveis medindo aproximadamente 3,00 metros de pé direito e acesso ao telhado por meio de alçapões. Tanto a casa quanto a edícula possuíam características e elementos construtivos semelhantes, dentre eles tijolos de barro - que mediam, provavelmente, entre 24 e 30 centímetros; telhado em madeira com telhas tipo Marselha. Por meio da análise dos manuscritos das telhas cerâmicas, acredita-se que sua fabricação provém da olaria Paraense, propriedade do arquiteto e construtor José Sidrim, o qual a comprou por volta da década de 1930, em Benfica como afirma Matos (2017, p. 75). A data da inauguração da olaria coincide com a época de construção 94


da residência, tornando-se um denominador comum entre as informações, mais um indício da produção regional de telhas na vila Andrade Ramos.

Figuras 22 e 23: Na primeira fotografia, lê-se os dizeres “Cruzeiro” e “J. Sidrim – Pará”, os quais levou à olaria Paraense. Abaixo, foco para a parede de tijolos originais.

Fonte: Beatriz Maneschy, 2019.

A escada balanceada utilizada como circulação vertical entre o pavimento térreo e o primeiro pavimento fora construída em madeiras amazônicas nobres e resistentes, provavelmente o acapu e de mais uma espécie não identificada. O revestimento original em madeira das paredes da escada visualizado nas fotografias antigas, fora retirado da residência estudada, porém, como este revestimento ainda se encontra na casa de esquina do Sr. Raul, acredita-se que este era mais um dos elementos decorativos em comum da vila. O primeiro degrau, do sentido de quem sobe, é executado em granilite, também encontrado em outros elementos da casa. 95


Figuras 24 e 25: Imagens das escadas da casa Gemaque e Miranda.

Fonte: Beatriz Maneschy, 2019

Em relação aos revestimentos, o piso da residência no pavimento térreo no setor social era constituído por parquet em madeira, em pequenos quadriláteros que unidos formam novas figuras e ladrilho hidráulico no setor de serviço. No segundo pavimento o piso era composto de assoalho de madeira, provavelmente acapu e mais um tipo de madeira não identificado. O banheiro superior era constituído por uma laje revestida por pastilhas cerâmicas hexagonais de aproximadamente 3 a 5 centímetros nas cores verde e branca. Infelizmente, não é mais possível encontrar este revestimento em nenhuma das residências, porém, achou-se uma cerâmica em uma residência neocolonial localizada na Rua Dom Pedro I, próxima à Praça Brasil, que se aproxima com a que outrora existira nas residências da vila. 96


Figura 26: Pastilhas cerâmicas hexagonais da residência próxima à Pça. Brasil e desenho esquemático das pastilhas da vila Andrade Ramos.

Fonte: (01): Luiz Alberto Maneschy, 2019; (02): Beatriz Maneschy, 2019.

Quanto ao forro pertencente a ambos os pavimentos construído em madeira, possuía rodateto de 15 centímetros, que, além da função estética, possuía função de retenção de impurezas de um pavimento ao outro. Ressalta-se que o forro do pavimento térreo funcionava como assoalho do piso do pavimento superior, o que oportunizava conforto térmico à residência (coeficiente da madeira), em detrimento de um maior conforto acústico. Todavia, nem todos os cômodos seguem o padrão acima descrito, vez que um dos cômodos do pavimento térreo não possui forro, mas sim laje, justamente por se tratar do cômodo situado abaixo do banheiro superior.

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Figura 27: Forro de madeira com rodateto

Fonte: Beatriz Maneschy, 2019.

FACHADAS E TELHADO COMO INTEGRAÇÃO DO CONJUNTO Em estudo da elevação frontal da extensão total da vila, é possível afirmar que segue padrões geométricos e retilíneos de viés Art déco, demonstrando uma influência mais moderna no conjunto das residências, uma vez que, como afirma Correia (2008, p. 48), alguns autores designaram determinadas construções como protomodernas, as que configuravam composições com viés déco. A autora também cita uma pesquisa sobre a arquitetura recifense produzida entre as décadas de 1930 e 1940 (período da residência aqui destacada) que inclui construções de linhas Art déco nomeadas como “iniciativas modernizantes”. Cabe esclarecer que, como elucidado por Correia (2008, p. 49), uma arquitetura protomoderna não se trata de uma arquitetura anterior à moderna, mas sim concomitante durante algumas décadas e que, devido a estas limitações do termo, é mais apropriado e abrangente 98


categorizar determinada tendência entre a década de 1930 e meados de 1950 como Art déco. Pelo motivo elucidado acima, em que pese a vila Andrade Ramos ser considerada uma residência eclética inserida no contexto pós-eclético, as circunstâncias econômicas e socioculturais da época a qual fora construída podem ter influenciado, de certa forma, os elementos decorativos e sua volumetria externa. Em suma, a vila, ainda que seja considerada eclética devido seus elementos e técnicas construtivas, tipologia de planta e hábitos de morar, possui algumas iniciativas modernizantes em sua fachada, que já a insere em uma simplificação do Art déco. Destarte, através da análise dos elementos da fachada, ainda que a planta baixa da residência seja constituída de influência eclética colonialmente modernizada, pode-se concluir que a volumetria possui características Art Déco. O gosto déco fora expressado no Brasil através de volumes, platibandas e ornatos de formas escalonados, seguindo a tendência de zigzag modern. Além disso, decoração despojada, matérias de construções baratos, como a alvenaria de tijolos revestida com reboco e parcos detalhes ornamentais também são elementos da arquitetura Art déco. Ademais, as platibandas coroando a composição das fachadas, com superfícies lisas decoradas com frisos ou relevos geométricos aplicados também eram frequentes (CORREIA, 2008, p. 99).

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Figura 28: Detalhe para a platibanda das casas, apresentando um desenho triangular e com pequenos frisos quadriláteros adornando-a e delimitando cada uma das residências.

Fonte: Beatriz Maneschy. 2019.

Em alguns casos, a platibanda é um prolongamento da parede externa que recebe um elemento de arremate, uma faixa simples ou pequena marquise, que define o limite inferior da platibanda (CORREIA, 2008, p. 99). Outro apontamento importante frisado por Correia (2008) que caberia a comparação para o estudo da apresentação da vila Andrade Ramos com elementos do Art déco, são os elementos frequentes em habitações em grupos, como os frontões escalonados e os frisos nos limites das fachadas das casas, demarcando as casas dispostas geminadas. A unidade compositiva destas casas também era enfatizada com a repetição de elementos em um único modelo, na busca pela unidade compositiva do conjunto, além da demarcação dos limites de fachada das casas como forma de individualização de cada residência. O desenho esquemático abaixo esclarece os elementos decorativos que levaram à questão Art déco. Ademais, foram analisados os elementos da fachada que 100


funcionariam como unificantes, isto é, que servem para gerar uma unidade compositiva, e os que funcionariam enquanto individualizantes, os que demarcariam os limites das fachadas entre as residências. O esquema ilustrativo está exposto abaixo. Figura 29: Ilustração da fachada demonstrando os elementos individualizantes e os de união.

Fonte: Beatriz Maneschy, 2019.

Dito isso, esclarece-se alguns pontos entre as influências nos elementos construtivos e decorativos da vila Andrade Ramos. Enquanto o esquema de planta, materiais e técnicas construtivas ainda estão atreladas à forma de construir eclética, apresentando, inclusive, um resquício da influência colonial. Por conseguinte, na fachada da vila, já é possível notar alguns elementos que a tornam mais modernizada e diferente de outras vilas ecléticas, por isso, foram acredita-se que alguns adornos mais geométricos podem inferir em uma referência mais simplificada ao Art déco.

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6. A CASA COMO PATRIMÔNIO

A construção das vilas fora uma espécie de um movimento internacional, alavancadas pelo fortalecimento do sistema capitalista. De início elaboradas de forma geminada, utilizando uma parede em comum entre as casas, e posteriormente desdobrando-se em diversos tipos. Um exemplo disto são as chamadas row houses estado-unidenses encontradas, principalmente, na cidade de Nova York; as terraced houses, modelo britânico das residências em vila (LAUDAU, 1975); e as moradias em banda portuguesas, muito difundidas, principalmente, na cidade do Porto. Dentre as formas de habitar da burguesia portuense oitocentista, destacam-se duas referências distintas: o modelo parisiense, que consiste no prédio de rendimento que comporta várias habitações divididas por diversos pisos; e o modelo de origem flamenga, definido pela justaposição de habitações unifamiliares. Esta última compõe o modelo predominante no Porto, chamadas de moradias em banda, e segue o mesmo padrão encontrada nas vilas geminadas, inclusive o objeto de estudo deste trabalho, a vila Andrade Ramos. Segundo Matos (apud Mota, 2010, p. 71), este tipo de arquitetura em “tiras” não correspondia ao ideal de habitação moderna oitocentista. Encontrou-se relato parecido em Belém, vindo do intendente Antônio Lemos, cujo considerava monótona a uniformidade das casas em vila e que a fachada afetava a estética urbana da capital paraense (SOARES, 2008). As moradias em banda surgiram anteriormente à expansão da cidade do Porto, quando ainda havia as muralhas medievais limitando o crescimento da cidade, por isso, as residências eram obrigadas a crescer para cima, e não longitudinalmente, pelo simples motivo da falta de espaço.

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Regionalmente neste período, Belém experienciava um boom populacional e a elite via neste ponto uma possibilidade de investimento devido à especulação imobiliária que iniciava na cidade. Bonduki (apud BONDUKI, 1994) afirma que a rentabilidade da locação habitacional e o investimento imobiliário garantia uma reserva de valor e um intenso processo de valorização. Contudo, àqueles que não possuíam a renda suficiente para construir a casa própria, restavam poucas opções de habitação no período da borracha em Belém (República Velha em nível nacional). Morar no centro da cidade significava habitar casas modernas, que seguissem os preceitos ecléticos, os quais apenas a elite gomífera e a emergente classe média com suas casas ecletizadas possuíam este privilégio. Por isso, os proletários, impossibilitados de tal luxo, viam-se obrigados a pagar casas de aluguel, quartos em pensões ou até mesmo morar nos fundos das casas dos patrões, ou acomodando-se nos porões. A partir destes trabalhadores surgiram novos bairros operários, como Canudos, Reduto e Umarizal, onde a especulação ainda não chegara, por serem considerados bairros periféricos. Contudo, a distância para o centro afastava alguns trabalhadores da realização da casa própria, popular, mesmo que fora dos padrões lemistas (SOARES, 2008, p.196). Por consequência, a maioria dos proletários não obtinha a segurança e renda necessárias para a construção de uma casa, sendo as vilas construídas por empreiteiros, casas aviadoras ou bancos para serem alugadas por famílias e seus funcionários, ficando conhecidas como moradia da classe média e baixa do início do século XX. A construção destas casas era fácil e rentável, pois geralmente eram pequenas, higiênicas, cômodas e dividiam uma mesma parede comum entre as casas. Bonduki (1998, p. 203) também avalia uma outra motivação para a construção destas vilas, não apenas as construídas de patrões para empregados, visando o aluguel, mas também 103


uma solução tipológica econômica de uma classe mais emergente para morar no centro da cidade, onde já se enfrentava as consequências da especulação. Portanto, pode-se afirmar que, no início do século XX em Belém, existiam dois modelos de vilas: as vilas para trabalhadores e as vilas ecléticas. A primeira seguia o modelo para aluguel e a segunda é um modelo não totalmente aceito pelo principal idealizador da capital paraense moderna do início do século XX, o intendente Antônio Lemos, mas ainda assim difundido e explorado por uma classe média que almejava o modo burguês de se morar, dentro das suas próprias condições financeiras. Estas vilas da classe média se tornam mais aceitas pela intendência municipal devido às premissas ecléticas respeitadas e a qualidade projetual do espaço interno, que já seguia as inovações propostas para a casa moderna. Segundo Soares (2008), os moradores desta segunda modalidade de vila buscavam denotar “maior estratificação social, o que, na prática, significou a introdução de novos hábitos modernos dentro da casa, mas em especial no melhor tratamento estético das fachadas”. Este padrão habitacional perdurou ainda por décadas, sendo muitas residências dobradas construídas durante toda a primeira metade do século XX, adotando pequenas alterações em sua planta e nos perfis estéticos das fachadas, até assumir formas geometrizantes e platibandas em concreto com claras linhas modernistas. Mantendo como paradigma a geminação, estes conjuntos mantiveram modos de vida e de interação entre vizinhos que aos poucos vai se tornando incompatível com os hábitos da sociedade de finais do século XX. A partir destas imagens percebeu-se que a arquitetura não é feita apenas para pessoas, mas também feita de pessoas. A cada nova geração que adentra as residências da vila, que as experienciam, as vivem, sempre acarretam mudanças às casas. Revestimentos são substituídos 104


devido ao desejo ou à necessidade, ambientes tem suas funções originais alteradas: a antiga sala de estar, é agora o ateliê de costura da Sra. Socorro, ou então, a edícula da casa 674 funciona, atualmente, como um ateliê de artes ou um laboratório experimental. Nota-se que mesmo um patrimônio cultural, uma casa antiga que resistiu à passagem do tempo, na verdade, se transformou. Mesmo que a edificação ainda esteja firme, com suas estacas e fundações presas ao chão, a arquitetura se mudou, transfigurou-se. A cada nova geração, uma nova vivência arquitetônica. Uma nova casa. Uma nova arquitetura. A mesma construção. REFERÊNCIAS AZEVEDO, Felipe Moreira. A linguagem Arquitetônica Tradicionalista: Estudo das residências neocoloniais no bairro de Nazaré, em Belém do Pará (1910-1940). 2015. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do Pará, Belém, 2015. BENJAMIN, Walter. Escavar e recordar. Obras Escolhidas II. Rua de Mão Única. São Paulo: Brasiliense, 1987. BONDUKI, Nabil Georges. Origens da Habitação Social no Brasil. Análise Social, v. 29, n. 127, p. 711-732, 1994. CAL, Carmen Lúcia. Esboço da Evolução da Arquitetura Residencial em Belém, na Primeira Metade do Século. Revista do Tecnológico, v. 2, p. 64-83, jan./jun. 1989. CANCELA, Cristina Donza. Casamento e relações familiares na economia da borracha (Belém - 1870-1912). 2006. Tese (Doutorado 105


em História Econômica) - Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006. CORREIA, Telma de Barros. Art déco e indústria: Brasil, décadas de 1930 e 1940. Anais do Museu Paulista, v. 16. n. 2, p. 47-104., jul./dez. 2008. CRUZ, Ernesto. As edificações de Belém 1783-1911. Belém: Conselho Estadual de Cultura, 1971. DERENJI, Jorge (coord.). Levantamento e estudos de vilas em Belém. Projeto PróMemória/SPHAN, Belém, vol. I, set./dez. 1984. ______. CHAVES, Celma; MONTEIRO, Ana Cláudia. Levantamento e estudos de Vilas em Belém. Belém, dez 1997. FRASCARI, Marco. O detalhe narrativo. In: NESBITT, Kate (org). Uma nova agenda para a Arquitetura. São Paulo: Cosac Naify, 2008. GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Walter Benjamin – os cacos da história. São Paulo, Brasiliense, 1993. (Coleção Tudo é História) GREGOTTI, Vittorio. O exercício do detalhe. In: NESBITT, Kate (org). Uma nova agenda para a Arquitetura. São Paulo: Cosac Naify, 2008. LAUDAU, Sarah Bradford. The Row Houses of New York’s West Side. Journal of the Society of Architectural Historians, v. 34, n. 1, p. 19-36, mar. 1975.

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LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento In: História e Memória. Campinas: Editora da Unicamp, 2003. p. 525-541. MATOS, Ana Léa Nassar. José Sidrim (1881 – 1969): Um capítulo da biografia de Belém. 2017. Tese (Doutorado em História Social da Amazônia) – Faculdade de História, Universidade Federal do Pará, Belém, 2017. MOTA, Nelson Jorge Amorim. A arquitectura do quotidiano: público e privado no espaço doméstico da burguesia portuense nos finais do século XIX. 1. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2010. NASCIMENTO, Bianca Barbosa do. Reabilitação do Chalé 522 da Avenida Nazaré: proposta de um anteprojeto arquitetônico destinado ao Programa de Pós-graduação em Antropologia e Arqueologia (PPGA) da Universidade Federal do Pará (UFPA). 2017. Trabalho de conclusão de Curso (Bacharelado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do Pará, Belém, 2017. REIS FILHO, Nestor Goulart. Quadro da Arquitetura no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1995. SEQUEIRA, Alexandre Romariz. Residência São Jerônimo: entre o acontecimento, a memória e a narrativa. Tese (Doutorado em Artes) – Escola de Belas Artes, Universidade Federal de Minas Gerais, 2020. SOARES, Karol Gillet. As formas de morar na Belém da BelleÉpoque (1870-1910). 2008. Dissertação (Mestrado em História Social da Amazônia) – Faculdade de História, Universidade Federal do Pará, Belém, 2008. 107


ESTUDO DAS FACHADAS NEOCOLONIAIS EM BELÉM: linguagem arquitetônica tradicionalista no bairro de Nazaré

Felipe Moreira Azevedo Cybelle Salvador Miranda

1. A LINGUAGEM NEOCOLONIAL NO BAIRRO DE NAZARÉ

A arquitetura Neocolonial na cidade de Belém se desenvolveu, assim como em grande parte do Brasil, tanto na arquitetura oficial (institucional) - fora adotada como linguagem em escolas, postos de saúde, mercados, bem como em prédios administrativos e residências militares, quanto na arquitetura privada, em residências unifamiliares e multifamiliares (AZEVEDO, 2015). Para este trabalho optou-se por abordar a arquitetura Neocolonial civil residencial, devido à quantidade significativa de exemplares existentes nesta cidade. Com a 1ª Guerra Mundial, em 1914, dificulta-se a importação de materiais de construção europeus que o ecletismo consumia, logo, se recorreu à importação de produtos dos Estados Unidos (REIS FILHO, 2011). Devido à precariedade dos materiais disponíveis, as construções passaram a simplificar os telhados, adotando os beirais desimpedidos que, aliado aos novos modos de ocupação dos lotes, com recuos e afastamentos, exigidos pela prefeitura para os novos arruamentos30, acabaram por facilitar a execução e manutenção das casas. 30 Citamos o Código de Polícia Municipal de 1901, instituído pelo Intendente Antônio José de Lemos.

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Nota-se que, na década de 20, do século XX, algumas casas passam a empregar largos beirais com cachorros, frontões curvos das igrejas do século XVIII, vergas de arcos abatidos, dentre outros elementos característicos da arquitetura ibérica (AZEVEDO, 2015). E a partir de 1924, os intelectuais brasileiros simpatizantes do ideário modernista passaram a propalar como questão primordial a elaboração de uma “cultura nacional”, pois “só atingiremos o universal passando pelo nacional” (MORAES, 1978). Em Belém, esta linguagem é adotada pelos construtores da época a partir da cópia de catálogos (revistas) e desenvolve-se na forma de moradia muito comum neste momento chamada de bangalô31. Percebendo a variedade desta estética em Belém, delimitamo-nos a abordar o estudo das residências neocoloniais no bairro de Nazaré, cuja paisagem é composta por diversos tipos e composições decorativas. As residências neocoloniais oscilam entre a complexidade quanto à distribuição dos ambientes em planta, à volumetria e ao repertório decorativo e os exemplares simplificados no desenho de planta e volumetria (AZEVEDO, 2015). Neste estudo identificou-se que os edifícios residenciais enquadrados nesta linguagem podem ser segregados em três categorias: com influência da arquitetura vernácula portuguesa, a qual se denomina Neocolonial luso-brasileiro; com referência ao Mission Style32, o Bangalô: Casa de porte médio e no máximo dois pavimentos, provida comumente de alpendre e pequeno jardim, caracterizada por seu aspecto rústico e sua implantação em áreas predominantemente residenciais da cidade. Tem sua origem nas construções feitas pelos colonizadores ingleses na Índia para sua residência. Caracterizava-se pela presença de alpendre que circundava pelo menos três das quatro paredes externas da edificação. Predominou na arquitetura brasileira, sobretudo nas décadas de 30 e 40 (ALBERNAZ; LIMA, 1998, p. 82). 31

32 Mission Style: Estilo arquitetônico adotado, sobretudo nos anos 20 e 30 que associava as formas hispânicas às do neocolonial brasileiro. Permitiam suprir de elementos decorativos as edificações em estilo neocolonial, escassos na arquitetura civil colonial brasileira. Seus traços característicos são maciças arcadas em arco pleno, colunas torsas e reboco grosso com desenhos

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Neocolonial hispânico-americano, identificado nas casas conhecidas como bolos de confeiteiro33, bolo confeitado ou bolos de noiva, com mistura de elementos mouriscos, manuelinos, barrocos e outros; e os que relembram as habitações econômicas34, apresentando menores dimensões e programa menos complexo. Sabe-se que, em Belém, os responsáveis pelo projeto e construção da maioria das habitações no período (a primeira metade do século XX) eram, em sua maioria, engenheiros e mestres de obras35. Durante o século XIX, a implantação da moradia era baseada no padrão das antigas casas brasileiras, ou seja, ocupando todo o lote (extenso em profundidade e com largura ou testada pequena) e sendo comuns as casas geminadas. Porém, no bairro de Nazaré, ocupado pelas antigas Rocinhas, casas de campo dos burgueses que habitavam os bairros antigos da Cidade e da Campina, foram sendo paulatinamente substituídas por outras tipologias ecléticas, como as casas com alpendre lateral e os chalés (CAL, 1989). Atenta-se também a relação entre estética e política na arquitetura neocolonial referente a ideologia populista, típica da Era Vargas e da Intendência de Magalhães Barata, no Pará. Assim, a partir da primeira metade do século XX, em especial na década de 30, haverá prédios públicos, escolas e casas particulares erigidos adotando o Neocolonial como linguagem arquitetônica, com composição de elementos manuelinos, barrocos, mouriscos, que afirmam influências ideológicas variadas, como as raízes portuguesas no Brasil (BORGES, 1998). Por esta percepção, portanto, optou-se por designar o Neocolonial como linguagem, pois aquele termo representa uma arquitetura onde informais lembrando vagamente a decoração árabe (ALBERNAZ; LIMA, 1998, p. 391). 33 O Bolo de Confeiteiro é uma designação popular atribuída às residências Neocoloniais com textura na parede externa pintadas em branco, por sua semelhança com um bolo com glacê. 34 Ver A Casa, 1929, n. 59, p. 22-23. 35 Ver MIRANDA, Cybelle Salvador, CARVALHO, Ronaldo Marques de; TUTYIA, Dinah. Uma Formação em Curso: esboços da graduação em Arquitetura e Urbanismo. Belém: UFPA, 2015.

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há a unificação entre dois pensamentos: é vertente ou movimento, devido ter uma ideologia bastante consistente e alicerçada através de valores e defensores; mas, também, é estilo, pois utiliza elementos, partes de outras arquiteturas, principalmente o mourisco, o manuelino e o barroco de influência portuguesa (D’ALAMBERT, 2003; AZEVEDO, 2015). A ideia de linguagem arquitetônica também pode ser confirmada a partir de outro registro que é a memória, ou seja, o homem. Ricardo Severo e José Mariano Filho, por exemplo, pretendiam marcar na memória da sociedade brasileira as tradições – lusas, no caso daquele, e do colonial brasileiro, no caso deste – que estariam, segundo eles, ameaçadas pela abertura ao ecletismo. Logo, a concepção de uma arquitetura ‘autêntica’ almejava mostrar a essência do que para eles era a arquitetura brasileira, para que a psyché coletiva e individual pudesse reconhecer, através dos exercícios de memória (ASSMANN, 2011), o passado arquitetônico brasileiro. 2. ESTADO DA ARTE SOBRE A ARQUITETURA NEOCOLONIAL A arquitetura Neocolonial no Brasil, embora seja ideologicamente relacionada com a identidade luso-brasileira, não é a representação fiel deste ideário. José Mariano Filho aponta como um dos fatores que contribuem para esta disparidade a falta de pesquisa acerca da arquitetura colonial, o que teria resultado em uma produção assaz fantasiosa (BANDEIRA, 2008). E sobre esta diversidade estética do Neocolonial, em Belém por exemplo, assinala-se a necessidade de diferenciação das famílias que os adotava como símbolo de distinção, possuindo elementos como brasões e azulejos com imagens de santos católicos, associados à tradição portuguesa. Ricardo Severo, engenheiro português que chega a São Paulo em 111


1891, foi um dos idealizadores desta linguagem no Brasil, em concomitância com a militância de Raul Lino pela casa portuguesa (LINO, 1933). Em 1914, Severo profere a conferência “A Arte Tradicional no Brasil: a casa e o templo” na Sociedade de Cultura artística de São Paulo, na qual destaca a importância de compreender a arquitetura e a arte tradicional, assim como seus fundamentos étnicos e históricos, a fim de constituir uma arte genuinamente brasileira (KESSEL, 2002). Associa-se também a essa ideia José Mariano Filho, enfatizando a necessidade da preservação do patrimônio arquitetônico brasileiro. Logo, como uma de suas ações fora propor a implantação do estudo da arquitetura colonial brasileira como disciplina na antiga Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), a fim de difundir o conhecimento sobre o que para ele seria a base da estética Neocolonial (BANDEIRA, 2008). Através da Tese de Mascaro (2008) percebeu-se, também, que esta linguagem é caracterizada pelo pragmatismo de seus projetistas, notando-se que “desde muito cedo houve uma diferença entre o neocolonial e a prática arquitetônica fruto dele” (MASCARO, 2008, p. 167). Em Belém, a arquitetura residencial representa muito essa diferença, adotando traços rememorativos da tradição ibérica, sem preocupar-se em empregar estruturas compositivas restritas que simbolizassem um único estilo, influenciadas por veículos de comunicação, como as Revistas, voltadas ao gosto dos proprietários e aos padrões de bangalô e chalé preexistentes na cidade. Como um modismo que agradou a diversos estratos da sociedade, o Neocolonial, portanto, pode ser identificado em vários níveis de complexidade formal, simbolizando um ideal de “modernidade”. A recriação de modelos e motivos decorativos pelos mestres de obras e engenheiros mesclava a ideologia nacionalista com repertórios presentes nas revistas (a exemplo da “A Casa” e “Mi Casita”) (AZEVEDO, 2015). Comprovando-se, portanto, que a ideologia professada 112


por Ricardo Severo e Raul Lino repercutiu em Belém na forma de repertório estético, pouco considerando as questões de tradição e identidade nacional que a ideologia preconizava. 3. GRAMÁTICA COMPOSITIVA E MORFOLÓGICA DA ARQUITETURA NEOCOLONIAL NO BAIRRO DE NAZARÉ Partindo do explanado anteriormente, como método de compreensão do sítio estudado, associando arquitetura à sua inserção urbana e a relação com a sociedade, a Etnografia de Rua (ROCHA; ECKERT, 2001) foi a guia para, através de percursos predefinidos, identificar os exemplares da linguagem em sua situação atual. Foram adotadas como estratégias o caminhar sem anotação e o uso de Câmera fotográfica. Já em outras incursões optou-se por instrumentos de apoio como a prancheta para desenho e anotações. Portanto, experienciar a cidade através da etnografia de rua permitiu a interação entre o pesquisador/ observador e o indivíduo que se encontra, bem como com os objetos físicos de estudo em seu contexto urbano, capturado em imagens a serem analisadas e classificadas (ROCHA; ECKERT, 2001). Os roteiros permitiram visualizar os exemplares em conjunto com outros edifícios de diferentes épocas e linguagens, de modo a percebê-los não como elementos isolados, mas como parte da paisagem do bairro de Nazaré. Dialogando com o espaço e o tempo, este responsável pelas adaptações das formas e espaços a novas necessidades, o que muitas vezes conflita com a preservação da coerência estética das residências estudadas. Para a realização do levantamento das edificações Neocoloniais existentes, foram realizadas cinco incursões, nas quais detectou-se a presença de 104 edificações, classificadas como: 45 casas do tipo bangalô, 34 casas econômicas e/ou geminadas e 25 casas com tipologias 113


que remetem ao Mission Style, chegando a uma proporção aproximada de 5:7:9 por grupo. Ao realizar esta amostragem estratificada optou-se por cerca de 20% do número total de residências para este capítulo, respeitando a proporção encontrada, o que levou a um total de 21 edificações, sendo 5 Mission Style (figura 1), 7 casas econômicas/geminadas (figura 2) e 9 bangalôs (figura 3) distribuídos ao longo do bairro de Nazaré. Figura 1 - Mapa com as edificações mission style.

Fonte: Felipe Moreira Azevedo, 2015.

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Figura 2 - Mapa com as edificações geminadas/econômicas

Fonte: Felipe Moreira Azevedo. 2015. Figura 3: Mapa com as edificações bangalô

Fonte: Felipe Moreira Azevedo. 2015.

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Em Belém, a arquitetura Neocolonial apresenta uma interação com novos materiais e técnicas, bem como com a composição dos ambientes, adotando método de modulação por quadrículas. A adaptação dos diversos tipos36 geravam tipologias37, coexistindo estilos diferentes através do historicismo arquitetônico. Nos anos 20 do século XX, tem-se como exemplar de destaque a Residência do Sr. José Leite Chermont, nº 871, construída em 1925 pelo proprietário rural, filho do Senador Bento Chermont e irmão do Governador Justo Chermont, família de relevo na administração pública do Estado do Pará38, com projeto do Arquiteto José Sidrim. A antiga moradia apresenta implantação no terreno seguindo padrões já adotados desde o ecletismo, como a presença de recuo frontal ocupado por jardim e afastamentos laterais. Ressalta-se na fachada elementos do Mission style como a fonte e a escadaria com guarda-corpo ornado com volutas, além de outros detalhes do barroco português: o frontão mistilíneo e a cobertura em telha de capa e canal com presença de rabos de andorinha nos vértices, além de pináculos e cobogós (figuras 4, 5 e 6).

36 Para Quatremère de Quincy: “A palavra ‘tipo’ não representa tanto a imagem de uma coisa a ser copiada ou imitada perfeitamente quanto a ideia de um elemento que deve ele mesmo servir de regra ao modelo (...). O modelo, entendido segundo a concepção prática da arte, é um objeto que deve se repetir tal qual é; o tipo é, pelo contrário, um objeto segundo o qual qualquer pessoa pode conceber obras que não assemelharão nada entre si. (...) (apud ARGAN, 2004, p. 66). 37 “A tipologia organiza a série de ideias abstratas, significando uma concepção concreta da evolução e organização dos signos.” (FEFERMAN, 2009, p. 52-53). 38 Ofício Nº 00144/93 do Instituto do Desenvolvimento Econômico- Social do Pará (IDESP).

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Figuras 4, 5 e 6 - Cobogó, frontão mistilíneo e fonte na antiga Residência do Sr. José Leite Chermont, hoje sede do Centro Integrado de Governo (CIG), respectivamente

Fotos: Bianca Barbosa. 2014.

Nas composições de fachadas Neocoloniais no bairro de Nazaré as influências dos padrões luso-brasileiro e hispânico-americano se fazem notar, geralmente associados na mesma edificação. Dentre as características mais marcantes tem-se a aplicação da texturização nas paredes externas, com a intenção de conferir aspecto de rusticidade à edificação, remetendo a uma apropriação da arquitetura mexicana39. 39 Ver RODRIGUES, Eduardo de Jesus. As Fachadas na Arquitetura Paulistana: O Estilo Missões. 1985. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1985.

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Ao analisar as fachadas neocoloniais do bairro de Nazaré identificou-se, também, variedades de técnicas e padrões de textura rústica pois, além da textura chapiscada40 – a mais usual – há técnicas que lembram o esgrafito, texturização com ligeiros sulcos (figura 7), gerando um desenho de disco nervurado; e o de caráter irregular, cuja aplicação lembra a retirada de parte da argamassa a partir de um objeto de formato retangular, em sentido diagonal ou horizontal (figuras 8, 9 e 10). As texturas recebem pintura, predominantemente na cor branca – considerada a cor da arquitetura Neocolonial em Belém. Figuras 7, 8, 9 e 10 - Representação de texturização rústica encontrado nas residências nº 1049 e nº 1716, respectivamente.

Fotos: Bianca Barbosa. 2014.

Em atenção aos elementos estético-funcionais foram analisados 23 exemplares no bairro de Nazaré. Desses: as torres são encontradas em 3 edificações, sendo 2 circulares e 1 facetada/prismática, característica da influência hispânico-americana. A torre destaca a verticalidade, 40 Chapiscado: Acabamento rústico feito com argamassa de cimento e areia atirado com colher de pedreiro através de uma peneira ou aplicado com máquina própria. (ALBERNAZ; LIMA, 1998, p. 144).

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abrigando ambientes de caráter íntimo como escritórios conforme visto na planta do CIG, nº 871, porém o uso mais comum é como caixa de escadas internas como na atual sede do CREA-PA (figura 13). Figura 11 - Torre circular na Sede do CREA – PA

Foto: Felipe Moreira Azevedo, 2014.

As colunas também são marcas da linguagem, tanto pela estética luso-brasileira quanto pela hispânico-americana, identificadas em 8 edificações na composição de sacadas e varandas. Basicamente têm-se dois tipos de colunas: as da ordem toscana41, encontradas em quatro edificações, como a localizada na Travessa 14 de Março nº 1716 (figura 12) que possui duas colunas em ordem toscana na sua varanda, organizadas em base, fuste e capitel, e as do tipo torsa42 ou torcidas, presentes em quatro edificações, a exemplo da varanda da residência localizada na Travessa Doutor Moraes nº 79 (figura 13). Atenta-se para a adoção da coluna torsa tanto no mission style quanto como referência ao estilo manuelino de Portugal. 41 Coluna toscana: pertencente à ordem toscana caracterizada pelo capitel assemelhado com o capitel da coluna dórica. Tem capitel formado por um ábaco retangular e por um equino. Diferentemente da coluna dórica, possui base e seu fuste é liso, sem caneluras. Foi usada em edifícios coloniais e neocoloniais. (ALBERNAZ; LIMA, 1998, p. 165). 42 Coluna torsa: coluna cujo fuste possui forma helicoidal. É característica dos prédios em estilo missões, construídos durante as décadas de 20 e 30. Foi muito usada nos retábulos de antigas igrejas coloniais. (ALBERNAZ; LIMA, 1998, p. 165).

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Figuras 12 e 13 - Presença de Coluna Toscana, casa nº 1716, e Torsa, casa nº 79

Fotos: Bianca Barbosa. 2014.

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Com destaque, ainda, para o elemento coluna, existe, em algumas edificações Neocoloniais do bairro de Nazaré, em alternativa às peças em argamassa, o uso de esteios em seis das 21 edificações analisadas. Estas peças de madeira ou de alvenaria em formato de paralelepípedo são adotadas na composição de sacadas e varandas, assim como próximas às esquadrias, com acabamento envernizado ou pintadas, basicamente, nas cores branco ou azul, a exemplo da Vila Militar localizada na Avenida Governador José Malcher, nº 737, que possui esteios de madeira nas varandas (figura 14). Este elemento auxilia na confirmação da ideia sobre a singularidade que cada arquitetura possui em um determinado local, pois a adoção deste elemento remete a arquitetura vernácula regional, não se repetindo na arquitetura Neocolonial das demais regiões do Brasil (figura 15). Figuras 14 e 15 - Presença de esteios na arquitetura Neocolonial no bairro de Nazaré e exemplo de edificação vernacular no bairro do Guamá

Fotos: Felipe Moreira Azevedo. 2014.

Outros elementos que remetem ao barroco português são notados, como o cunhal43 localizado em 4 exemplares, no nº 42 da Passagem Ramos (figura 16), bem como os azulejos44, que estão presentes em 5 edificações Neocoloniais. As cores predominantes destes são o azul 43 Cunhal: Faixa vertical saliente nas extremidades de paredes ou muros externos do edifício. Em geral abrange da base ao coroamento da construção (ALBERNAZ; LIMA, 1998, p. 193). 44 Ver AMARAL, Helena Carmem. Azulejaria Portuguesa em Belém (PA): História, Estética e Significado. 2002. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Educação Artística) –Centro de Ciências Exatas e Naturais e Tecnologia, Universidade da Amazônia, Belém, 2002.

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real, o amarelo e o branco, em relevo ou liso, localizados em diferentes partes das fachadas como: em detalhes na parede externa ou postos no guarda-corpo de sacadas e varandas e no centro de frontões ou em fontes. Destacam-se os azulejos de registro com imagem alusiva a Nossa Senhora no Laboratório Guadalupe (figura 17) e a placa azulejar de identificação localizada na entrada da Vila Alda Maria (figura 18). Figura 16 - Presença de cunhal na arquitetura Neocolonial em Belém

Foto: Bianca Barbosa. 2014.

Em 14 exemplares Neocoloniais encontram-se arcos e arcadas, com representações e medidas variadas, possuindo ou não detalhes decorativos como pedra, simulações de alvenaria rústica ou azulejo. A maioria fica localizada na fachada principal das edificações, compondo portadas de entrada ou aberturas nas varandas, como na fachada principal da edificação nº 1716, na Travessa 14 de Março (figura 19), e na arcada que compõe a fachada do Laboratório Guadalupe (figura 20), na Avenida Alcindo Cacela. 122


Figuras 17 a 20 - Presença de azulejos e arcos nas fachadas Neocoloniais

Fotos: Bianca Barbosa. 2014.

Em termos de embasamento levantou-se, nos 21 exemplares, quatro tipos: os com aplicação em pedra em 6 edificações; a textura chapiscada foi encontrada em 6 exemplares, bem como dois exemplares com padrão liso e 4 edificações com embasamento revestido em cerâmica tipo São Caetano (Figuras 21 a 23).

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Figuras 21 a 23 - Tipos de Embasamentos nas fachadas Neocoloniais

Fotos: Bianca Barbosa. 2014.

Quanto às técnicas decorativas encontradas, tem-se: o cimento imitando pedra, localizado em 7 modelos, na maioria, compondo os detalhes de arcos e arcadas, como na Residência nº 103 na Passagem Joaquim Nabuco (figura 24), ou sendo aplicado como textura em parte de paredes externas e no embasamento de muros; os elementos em ferro, utilizado na Residência nº 1625 (figura 25); e outros detalhes como molduras em janelas e arcos, cártulas, medalhões, brasões, azulejos e formas geométricas em gesso. Figuras 24 e 25 - Tipos de técnicas decorativas nas fachadas Neocoloniais.

Fotos: Bianca Barbosa. 2014.

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Os pináculos, identificados em 8 exemplares, estão presentes ladeando o frontão, a exemplo da atual sede do Centro Integrado de Governo (figura 26); e no ponto central das coberturas. O frontão curvilíneo, existente em 28 edificações, a exemplo do localizado na Residência nº 123, na Passagem Joaquim Nabuco (figura 27), geralmente está posto na fachada principal, sendo ornados por volutas, telhas, molduras ou azulejos. Figuras 26 e 27 - Tipos de pináculos e frontões nas fachadas das edificações Neocoloniais

Fotos: Bianca Barbosa. 2014.

Com relação à cobertura, nota-se a maior liberdade de composição de telhados, caracterizada, em 9 edificações, principalmente pela variação de pés-direitos, bem como a adoção de cimalhas de janelas arrematadas com telhas, a exemplo do CREA-PA, (figura 28). Quanto ao tipo de telha empregada, majoritariamente encontra-se a do tipo capa e canal, presente em 19 das edificações levantadas, relacionando-se, principalmente, com a vertente Neocolonial luso-brasileira; e o elemento denominado rabo de andorinha/ pomba/ pluma fora 125


localizado nos vértices das coberturas, assim como na composição de telhados, presentes em 11 exemplares. Figura 28 – Cimalha com telhas como proteção de aberturas

Foto: Bianca Barbosa. 2014.

Os cachorros ou cachorrada45 na arquitetura Neocolonial no bairro de Nazaré estão presentes em 7 edificações, com dois tipos de composição: encontrados abaixo dos beirais, sacadas e varandas ou trabalhados como elementos decorativos nas fachadas, a exemplo tem-se o nº 1049 na Avenida Governador José Malcher (figura 29) apresentando cachorrada abaixo da sacada. Figura 29 - Exemplos de cachorros nas edificações Neocoloniais no bairro de Nazaré

Foto: Bianca Barbosa. 2014. 45 Cachorro ou cachorrada: Peça de madeira em balanço apoiada no frechal para sustentar o beiral do telhado. Muitas vezes fica aparente no beiral, sendo então frequentemente recortado, constituindo-se também em elemento decorativo. Às vezes é usado simplesmente como ornamentação. É também chamado consolo (ALBERNAZ; LIMA, 1998, p. 104-105).

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As sacadas46 e varandas47 são elementos que compõem a morfologia das edificações Neocoloniais, sendo a primeira presente em 4 edificações e a segunda em 19 exemplares; caracterizam-se por possuir guarda-corpo trabalhado em variados materiais como azulejos, gradil decorado, elementos vazados, balaústres em madeira ou concreto ou em alvenaria sem ornamentação. Temos exemplos de sacada com falsos balaústres em madeira (balaústres planos) na Sede do CREA-PA (figura 30) e varanda com vedação em gradil decorado como na Travessa Doutor Moraes, nº 294 (figura 31). Figuras 30 e 31: Exemplos de sacada e varanda

Fotos: Bianca Barbosa. 2014. 46 Sacada: Atribuição dada ao elemento que forma uma saliência no paramento da parede. Por extensão, bacia dos balcões quando em balanço (ALBERNAZ; LIMA, 1998, p. 554). 47 Varanda: Ambiente com guarda-corpo em geral vazado, formado por gradeamento as janelas rasgadas e janelas-púlpito. Coberta por telhado independente do telhado principal do edifício (ALBERNAZ; LIMA, 1998, p. 649).

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Como elemento que demarca a privacidade do lote, o muro é adotado em todas as residências estudadas, nas versões em alvenaria lisa ou texturizada (chapiscados, em pedra, cimento imitando pedra, tijolo, azulejo ou cerâmico), ou divididos em partes com alvenaria e outros em gradis trabalhados, balaustradas ou elementos vazados; os muros onde se pode detectar presença de elementos originais do neocolonial são baixos ou médios: na Residência nº 103, da Passagem Joaquim Nabuco o muro é baixo, com embasamento em pedra rústica e parte superior em alvenaria pintada em amarelo com presença de gradil trabalhado (figura 32). Figura 32 - Exemplo de muro

Foto: Felipe Moreira Azevedo. 2014.

4. MATRIZES E PECULIARIDADES DAS CASAS NEOCOLONIAIS EM BELÉM Embora, em Belém, o processo de descaracterização de edificações Neocoloniais seja acentuado, com este levantamento pode-se realizar um estudo dos elementos estético-funcionais, assim como da volumetria das edificações, organizando-as em tipos e tipologias. Atentou-se, também, em verificar a atual função destas edificações, pois sabe-se que a maioria fora construída para servir como residências unifamiliares, à exceção do antigo Edifício Pérola, atual sede do CREA-PA, erguido como edificação multifamiliar. 128


Assim, dos 21 exemplares estudados: 8 ainda cumprem função de moradia, como as residências pertencentes às Vilas militares; 6 são utilizadas com fins comerciais ou de serviço – destaca-se estas, pois são as que possuem o maior número de intervenções de adaptação; uma com função mista (serviço/comércio e moradia), cito o Salão de Beleza na Passagem Joaquim Nabuco; e 6 são prédios institucionais (Sindicato, Conselho profissional, Repartições governamentais e pólo de Universidade). Outra constatação decorrente do levantamento da gramática e da morfologia da arquitetura Neocolonial no bairro de Nazaré é a relação entre o aspecto das edificações e os desenhos veiculados nas revistas da época. Seja portuguesa, da América do Norte, latino-americana ou brasileira, nota-se que, tanto na concepção volumétrica quanto no emprego dos elementos estético-funcionais, há assimilação de padrões, afirmando a importância destas como propagadoras de ideias e modelos arquitetônicos, em Belém e em outros Estados brasileiros. Destacam-se padrões como arcadas na fachada principal, presença de sacadas e varandas, adoção de colunas e molduras nas esquadrias, bem como o emprego de elementos decorativos como os detalhes em alvenaria rústica encontradas em arcos; azulejos, cunhal, pináculo, frontão curvilíneo, além de guarda-corpo com elementos vazados. Tais composições, em certos exemplares, demonstram a adoção de desenhos encontrados nos catálogos de revistas de época, que eram adquiridas pelas famílias, muitas delas abastadas, as quais os construtores (mestres de obras e engenheiros) utilizavam como base para a construção das residências (figuras 33 e 34). Porém, mesmo recebendo esta influência, o Neocolonial Paraense apresenta ligeiras peculiaridades, pois há em cada lugar uma forma específica de aplicá-lo, baseada na cultura local. Como integrante da Cultura material de um povo, a Arquitetura forma-se pela tradução e adaptação de elementos exógenos a soluções e técnicas endógenas, 129


e a necessidades climáticas e funcionais específicas. Percebe-se estas peculiaridades pela preferência pelos beirais que protegem as paredes das chuvas, arrematados nos vértices com rabo de andorinha, a textura nas paredes externas, o uso da cor branca e a presença de esteios (madeira ou alvenaria), em alguns exemplares, substituindo as colunas (torsas ou toscanas). Figura 33 - Arcadas como elemento compositivo em Belém

Foto: Felipe Moreira Azevedo. 2014. Figura 34 - Arcadas como elemento compositivo veiculado na Revista Architectura e Construções

Fonte: Architectura e Construções, maio de 1930.

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Por fim, é flagrante o apagamento dos vestígios da Arquitetura neocolonial em Belém, os quais não se encontram protegidos pela legislação que trata da preservação do patrimônio cultural, o que nos leva a pensar no valor que a sociedade atribui a estes edifícios. A falta de conhecimento da história local, bem como a flutuação nos padrões estéticos contemporâneos, como assinalou Rïegl (2006), determinam o iminente desaparecimento desta linguagem, e da memória a ela associada. Portanto, o estudo realizado contribui para dar a conhecer ao público em geral, e, em especial à sociedade paraense, as peculiaridades desta linguagem que condensa os ideais políticos, ideológicos e estéticos da Belém da primeira metade do século XX.

REFERÊNCIAS

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Arquitetura e Urbanismo) – Escola de Engenharia de São Carlos, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. MORAES, Eduardo Jardim de. A Brasilidade Modernista: sua Dimensão Filosófica. Rio de Janeiro: Graal, 1978. REIS FILHO, Nestor Goulart. Quadro da Arquitetura no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 2011. RIEGL, Aloïs. O culto moderno dos monumentos – sua essência e sua gênese. Goiânia: Editora da UCG, 2006. ROCHA, Ana Luiza Carvalho da; ECKERT, Cornelia. Etnografia de rua: estudo de antropologia urbana. Iluminuras, v. 4, n. 7, p. 1-22, 2003.

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TRADUÇÃO: VERSÃO DE UM PASSADO



S

egundo o Dicionário Michaelis, tradução é a “transposição ou versão de uma língua para outra”1. Podemos partir dessa explicação para refletir sobre os trabalhos desta parte, visto que a espinha dorsal das pesquisas dialoga com diversos aspectos - uma linguagem ou tecnologia – da arquitetura de outrora. Os artigos demonstram uma versão, uma transposição ou uma releitura de um tema arquitetônico de um outro momento histórico. A tradição serve de aporte para as reflexões dos autores e a partir de suas abordagens específicas, nos colocam a diversidade do ofício do arquiteto e urbanista, que perpassa para além da prancheta. Em “Cidade Velha: um exercício de apreensão da imagem do conjunto patrimonial tombado em Belém do Pará”, Dinah Tutyia e Cybelle Miranda observam o bairro da Cidade Velha, reconhecido como Centro Histórico de Belém (juntamente com o bairro da Campina), através do olhar de um grupo de alunos da graduação em 1 Definição do vocábulo disponível em: https://michaelis.uol.com.br/ moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/tradução/.

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Arquitetura e Urbanismo da UFPA. Aquela paisagem, à qual muitos atribuem o sentido de lócus da “arquitetura tradicional”, carrega em suas fachadas os estratos históricos do tempo, coabitam em um conjunto os mais diversos modelos arquitetônicos com as mais diversas linguagens. É nesse aglomerado material que os alunos fornecem a releitura do tecido e a contribuição para reflexão sobre atribuição de valor aos bens patrimoniais e para estabelecimento de critérios de intervenção em estruturas urbanas consolidadas. O Amapá é o campo em que Guilherme Pantoja e Dinah Tutyia realizam a apreensão dos saberes tradicionais, a partir das pesquisas no projeto de extensão “Inventário e Proposta de Restauro e Reuso da Casa Ana Ayres na Vila de Mazagão Velho (AP) para um Centro de Cultura Mazaganense”, desenvolvido pelo Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Amapá, em parceria com professores de Engenharia Civil da mesma instituição e com o Laboratório de Memória de Patrimônio Cultural (LAMEMO) da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFPA. O distrito de Mazagão Velho é conhecido historicamente como a “cidade transposta” do Marrocos para a Amazônia, fato ocorrido no século XVIII, durante o Período Pombalino. Recebe o reconhecimento de “portadora da cultura tradicional” do Amapá, em virtude das festividades e demais saberes imateriais que emanam daquela comunidade. O passado fora marcado por edificações com características coloniais, atreladas à tecnologia de taipa, saber fazer que vem sendo esquecido, seja pela mudança de materiais seja pelos apagamentos das arquiteturas remanescentes com a referida técnica. Desta forma, Guilherme Alfaia e Dinah Tutyia propõem um projeto com linguagem contemporânea que absorve na fonte do saber tradicional, desenvolvido no capítulo “Vozes e Memória: uma Proposta Arquitetônica de um Ponto de Memória em Tecnologia em Terra em Mazagão Velho (Ap)”. Por sua vez, “O chalé de Antonio Lemos em três dimensões: 137


memória, criptohistória e reabilitação paisagística” de Cybelle Salvador Miranda, Rony Helder Nogueira Cordeiro e Flavia G. Marques de Carvalho, reestabelece o contato com a Belém do contexto do final do século XIX e início do século XX, por meio de uma proposta de reabilitação paisagística no jardim onde esteve edificado o antigo chalé, em arquitetura de ferro, residência do Intendente Antônio Lemos. O referido espaço é projetado a partir de um mergulho na significância da memória da edificação que era emoldurada pelo ajardinamento que ali existiu. Traduzem para a contemporaneidade as referências da Belém da Belle Époque, no seu fragmento representado pelo antigo Chalé – incendiado em 1912 por adversários políticos do Intendente Lemos. Os autores utilizam o conceito de cripto-história da arte, estudo de obras parcialmente ou totalmente apagadas, para a investigação do repertório documental existente. O lote do antigo Chalé encontra-se, hoje, ocupado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), instalado em duas edificações ecléticas. Todavia a pesquisa, através da cripto-história, traduziu por meio das fontes iconográficas e dos vestígios existentes no terreno, a possível planta da residência de Antônio Lemos. Sob o olhar patrimonial, reavivou o jardim histórico da casa, elaborando projeto paisagístico que objetiva enfatizar os principais aspectos que atribuem historicidade ao jardim, aliando às práticas contemporâneas contemplativas de lazer. Uma habitação para o trópico úmido: projeto para um terreno estreito, de Ronaldo Carvalho, nos apresenta o processo projetual desenvolvido na década de 80 para uma residência unifamiliar. Nesta época alguns arquitetos locais questionavam a adoção de modelos arquitetônicos exógenos à realidade climática de Belém. O autor se propõe então um resgate do processo de adaptação da arquitetura na cidade. É, portanto, nesse retrospecto, que o autor considera que a 138


concepção projetual ecologicamente amazônica deveria se distanciar de projetos inadaptáveis ao clima tropical, como a exemplo de algumas edificações modernas que faziam uso de soluções ou materiais não condizentes com o clima quente e úmido do trópico amazônico. As inferências são feitas a partir das reflexões sobre a forma tradicional de adaptação da arquitetura no lote estreito, característico dos traçados coloniais, que ainda hoje encontra-se presente em parte dos bairros que compõem o Centro Histórico de Belém e seu entorno. Desta forma, o autor demonstra o estudo de adoção do partido arquitetônico para um lote estreito tradicional, trazendo o diálogo hodierno de soluções que priorizam a adequação ambiental a partir do emprego de materiais e tecnologias locais, propondo o engajamento por uma arquitetura amazônica do trópico úmido. As propostas aqui expostas apresentam possibilidades de atuação no campo do projeto de arquitetura, no âmbito do edifício e da paisagem. Reforçam a importância do diálogo entre passado e presente, ressaltando as permanências da configuração urbana como condicionantes que precisam ser readequados face ao contexto local. Assim, convidamos o leitor para percorrer a multiplicidade temática deste módulo II: Tradução, que tem como fio condutor a observação de práticas tradicionais no campo da arquitetura, urbanismo e paisagismo para composição de seu embasamento reflexivo, plasmando suas interpretações nas referidas contemporaneidades.

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CIDADE VELHA: um exercício de apreensão da imagem do conjunto patrimonial tombado em Belém do Pará

Dinah Reiko Tutyia Cybelle Salvador Miranda

1. O CAMPO DE ESTUDO: ASPECTOS GERAIS SOBRE O BAIRRO DA CIDADE VELHA São múltiplas as questões que conjugam a prática preservacionista, fazendo-a transitar pelo âmbito multidisciplinar do conhecimento. Deste modo, nossa pesquisa é uma tentativa de pensar o bairro da Cidade Velha articulando os saberes da Arquitetura com conceitos e métodos das Ciências Sociais. Este conjunto arquitetônico e paisagístico, tombado pela Lei Orgânica do Município em 1990, compõe juntamente com o bairro da Campina o Centro Histórico de Belém, núcleo que teve sua formação com a fundação da cidade em 1616. Séculos após a chegada dos colonizadores portugueses, uma nova cidade passou a se delinear sobre as mãos de engenheiros militares, arquitetos, artífices, mestres de ofício, artesões, brancos europeus, indígenas, negros, mestiços que trabalharam juntos para erigir uma nova paisagem sobre outra, pré-existente no sítio. O saber fazer e os mais variados materiais locais, ainda podem ser observados desde os edifícios monumentais às humildes construções do bairro, criando uma paisagem que carrega a identidade da cidade. Estes vestígios do transcorrer da história são 140


objetos à espera de leitura e interpretações sob múltiplas perspectivas disciplinares. Igualmente ao ocorrido em alguns Centros Históricos do Brasil, as novas exigências econômicas e sociais, o crescimento urbano desordenado, a falta de “apego” dos proprietários às edificações antigas, a forma de atuação de órgãos públicos preservacionistas – sobretudo nas últimas décadas do século passado – fizeram com que algumas destas características que conferem valor patrimonial ao conjunto fossem se perdendo:

[...] A necessidade de criação de novos espaços de morada, trabalho, lazer e circulação traçou diretrizes próprias na expansão urbana das cidades, criando tipologias diversas ao parcelamento do solo, implantação das edificações nos terrenos, alterando sobremaneira a configuração espacial dos núcleos tombados [...] (SIMÃO, 2006, p. 38).

Estas mudanças, em um contexto mais recente, puderam ser evidenciadas a partir da atualização do levantamento de bens imóveis do bairro da Cidade Velha, realizado pelo Fórum Landi2. O levantamento foi desenvolvido em maio de 2006 durante o evento “Landi: Cidade Viva” pelo Escritório Público de Arquitetura sediado no Fórum Landi e visava à identificação e avaliação das edificações quanto ao uso do solo, linguagem arquitetônica, estado de conservação, grau de originalidade e tipologia, além do registro fotográfico dos imóveis e a aplicação de um questionário direto aos moradores, a fim de melhor conhecer a relação habitante/edificação/bairro. Vale ressaltar que a área delimitada por este levantamento não correspondia à totalidade do bairro da Cidade Velha, mas à poligonal em preto representada na figura 1, na qual se encontra a Rua Dr. Assis. 2 O Fórum Landi é uma organização que integra a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFPA, à qual estive vinculada enquanto discente na condição de bolsista entre os anos de 2006 a 2008. O Laboratório – tendo como mote as obras construídas na cidade no século XVIII pelo arquiteto italiano Antonio Jose Landi – desenvolve, estimula e apoia pesquisas multidisciplinares sobre a História da Amazônia, em seus aspectos sociais, religiosos, artísticos, arquitetônicos, urbanísticos, científicos, econômicos e políticos. Ver http://www. forumlandi.ufpa.br.

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Segundo caminho aberto em Belém, a Rua Dr. Assis recebeu a denominação inicial de Rua do Espírito Santo, como de costume à época, em referência a um morador influente – Sebastião do Espírito Santo Tavares. Esta designação permaneceu por dois séculos e meio, quando passou a se chamar Rua Dr. Assis em homenagem a Joaquim José Assis, destacado jornalista fundador de alguns periódicos na cidade durante o final do século XIX e início do século XX (CRUZ, 1992). Hoje o logradouro é delimitado por onze faces de quadra, mais a lateral da Catedral da Sé, local de onde parte a procissão do Círio de Nossa Senhora de Nazaré. Figura 1: Delimitação de áreas do Centro Histórico de Belém

Fonte: CODEM, modificado por Tutyia (2010).

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A partir dos dados obtidos naquele momento, pôde-se traçar o perfil da Cidade Velha como um bairro onde existe predomínio habitacional, com relativa diversidade dos demais usos, dentre eles, o misto e o comércio, abrigados em um conjunto peculiar de imóveis, marcados pela heterogeneidade de linguagem e tipologia arquitetônica. Nota-se quantidade significativa de edificações “descaracterizadas”3, em ambos os aspectos – linguagem e tipologia – sendo possível constatar exemplares que vão do colonial às desfigurações sem classificações, da monumentalidade às mais humildes habitações, espalhadas em uma malha de vias estreitas e sinuosas, não tão bem conservadas. A necessidade da população local em atualizar-se e adaptar-se às diversas solicitações da modernidade, criou e recriou o cenário hoje presente: casas ecléticas com abertura para garagem em residências ou para facilitar a entrada de maquinários e clientes em comércios, dentre outras modificações. Transformações exigidas por novos programas de necessidades, que ao longo dos anos geraram um número de imóveis classificados como parcialmente “descaracterizados”, porém tão importantes quantos os “originais” para a preservação do patrimônio edificado do lugar. Além destes, uma grande quantidade de imóveis classificados como “totalmente descaracterizados” também foram surgindo no tecido histórico, representando aproximadamente 47% do total de edificações analisadas, de modo que se encontravam “sem análise” quanto à linguagem arquitetônica4 no ano de 2006 (TUTYIA, 2010). Desta forma, houve a necessidade explorar os significados 3 Descaracterização, desfigurações são termos usados para tratar os imóveis classificados por “renovação” na Lei 7.709 - responsável pela preservação e proteção do Patrimônio Histórico, Artístico, Ambiental e Cultural do município de Belém. A categoria “renovação” enquadra os imóveis sem interesse à preservação, onde em seu lugar pode ser construída uma nova edificação. 4 As linguagens arquitetônicas foram definidas pela equipe técnica do projeto, para maiores informações ver: FÓRUM LANDI. Estudo Tipológico e Sócio-Econômico do Bairro da Cidade Velha Belém. Belém, 2006.

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incutidos nas transformações dessa paisagem, seguindo os indícios das alterações dos estratos históricos a partir da pesquisa de campo realizada. Elegemos a Rua Dr. Assis como objeto de estudo, sendo esta um lugar emblemático do Bairro da Cidade Velha no que tange às alterações das fachadas dos imóveis. Esta mudança na fisionomia da Rua é uma decorrência das transformações históricas, uma vez que esta passou a abrigar muitos comércios, os quais são, a princípio, os maiores responsáveis pelas mudanças radicais na aparência do bairro. 2. O OLHAR DO VISITANTE: UMA EXPERIÊNCIA DE APREENSÃO DA ARQUITETURA É importante destacar que o locus de pesquisa, a Rua Dr. Assis, foi explorada inicialmente pela perspectiva da etnografia de rua5 e posteriormente, a partir das análises dos diários de campo, nos quais emergiram alguns questionamentos, que poderiam ser aprofundados ao avaliar o olhar e o comportamento de um grupo de estudantes de arquitetura ante aquele ambiente. A escolha desse grupo se deu em virtude da futura prática projetual, como profissionais, no espaço patrimonializado, em compreender como o futuro arquiteto dotado com os fundamentos da história da arquitetura da cidade refletiria sobre a imagem do conjunto de arquiteturas de uma área do Bairro da Cidade Velha. O que aqueles objetos fixados na via historicizada “falariam” sobre suas temporalidades? O referido exercício exploratório apresentou respostas extremamente interessantes para se pensar a leitura do Centro Histórico de Belém. Em 18 de novembro de 2011 realizamos uma atividade de percepção que visava a interpretação da composição das fachadas dos imóveis de renovação situados na referida Rua. O público-alvo constituiu-se 5 O resultado completo da pesquisa consta na dissertação “Dr. Assis: um percurso pela paisagem patrimonial transfigurada da Cidade Velha em Belém do Pará” (TUTYIA, 2013).

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por alunos do quarto semestre do Curso de Arquitetura e Urbanismo da FAU/UFPA, durante uma visitação ao Bairro da Cidade Velha promovida pela Disciplina de Teoria e História da Arquitetura e do Urbanismo (como parte das atividades de Estágio Docente6), proporcionando aos discentes o contato direto com o ambiente construído ao longo da colonização portuguesa na Amazônia (Fig. 02). Figura 2: Percurso em amarelo, com a numeração das quadras

Fonte: CODEM, modificado por Tutyia (2011).

O exercício, que fora enviado antecipadamente aos discentes por e-mail, trazia o seguinte comando: 6 As autoras deste capítulo são a professora da disciplina e a então mestranda que realizava a atividade de Estágio docente.

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Ao caminhar pela Rua Dr. Assis, faça o registro fotográfico das edificações que você acha que destoam da aparência do bairro da Cidade Velha, e aquelas que você acredita que tenham “uma aparência” do bairro da Cidade Velha. Após a visita, preencher o formulário anexo, ‘colando’ as fotos na coluna correspondente e explicando o motivo da escolha na coluna 3. O trabalho será individual, e contará para a pontuação referente à 3ª avaliação da disciplina.

A visitação iniciou na Praça Frei Caetano Brandão, defronte ao Forte do Castelo, onde a professora da disciplina proferiu uma breve explanação a respeito das edificações ali presentes, no entorno da praça, tais como o Forte do Presépio, o Colégio dos Jesuítas, a Igreja de Santo Alexandre e a “Casa das 11 janelas”. Posteriormente nos dirigirmos à Rua Dr. Assis, onde reforçamos como seria realizada a atividade. Os alunos, orientados a levar a máquina fotográfica para o registro das edificações7, foram se separando em grupos menores e assim se aproximavam daqueles que possuíam o equipamento. Após a visitação, obtivemos a resposta de 26 relatórios8, cujas apreensões reunimos em eixos temáticos, escolhidos a partir das motivações que levaram as classificações para diferenciar as edificações com aparência e sem aparência do bairro histórico: necessidades contemporâneas, uso do solo, uso de materiais, configuração geométrica de fachada, monumentalidade, camuflagem e mimetismo. É importante reiterar que a atividade aplicada aos alunos nos ofereceu suporte para refletir como as características da composição arquitetônica dos objetos construídos e modificados em um determinado contexto sociocultural são interpretadas hoje, relacionando-as com a historicidade deste lugar. 7 Optamos por não identificar os nomes dos alunos, bem como substituímos as fotos dos mesmos por imagens autorizadas. 8 A utilização de excertos, todos feitos entre aspas, das justificativas dos alunos no relatório de visita resguardará a identificação dos discentes.

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3. NECESSIDADES CONTEMPORÂNEAS Esse tema foi definido a partir das justificativas que tinham como base as atuais necessidades dos usuários em relação à edificação. Um dos aspectos recorrentes foram as adaptações para entrada de veículos, que ora permitiram enquadrar o imóvel como destoante da aparência da Cidade Velha, figura 3, ora foram considerados dentre aqueles “que tem aparência” do bairro. Quanto ao imóvel da figura 4, segundo uma das respostas, foi classificado como não aparentado ao bairro pois, além da presença da garagem, tal fachada poderia ser de qualquer bairro da cidade de Belém, devido à “contemporaneidade comum” de sua aparência “[...] totalmente fora do contexto histórico da Cidade Velha”. Tal justificativa reforça a hipótese de que a paisagem da Cidade Velha está associada à complexidade histórico-estética com data limite, criando-se assim no imaginário das pessoas uma noção de que os imóveis devessem ser imunes ao percurso de outras “eras”, diferindo assim da imagem hoje consolidada no bairro. Figura 3: Imóvel que mostra o descompasso entre a presença da garagem e a fisionomia, classificado como “possuidor da aparência” do bairro

Foto: Dinah Tutyia (2011).

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Figura 4: Imóvel classificado como sem aparência do bairro da Cidade Velha, a garagem foi o elemento fundamental para tal categorização

Foto: Dinah Tutyia (2011).

Além desta mudança no programa de necessidades, foram consideradas destoantes as casas com afastamento frontal preenchido por jardins, delimitado por muros ou grade de proteção e mesmo arame farpado, bem como aquelas com pátios e varandas com espaço útil de circulação. Nos exemplares seguintes, o discente destacou no imóvel vermelho o guarda-corpo do terceiro pavimento, como uma mudança dos padrões antigos (figura 5). De acordo com sua justificativa, podemos interpretar que a nova edificação apresenta seu guarda-corpo como uma releitura da janela balcão de outrora, embora não possuindo a pequena área de circulação do imóvel da figura 6.

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Figura 5: imóvel com a releitura de uma sacada de outrora

Foto: Cybelle Miranda (2011). Figura 6: Imóvel com aparência da Cidade Velha

Foto: Cybelle Miranda (2011).

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4. USO DO SOLO Alguns imóveis, marcados por tipologia arquitetônica com mais de três pavimentos, característica de prédios multifamiliares, comerciais e de serviços os quais vimos despontar em Belém a partir do início do século XX, foram enquadrados como elementos destoantes. Alia-se esta característica à questão do uso comercial que fora associado como algo fora do contexto da Cidade Velha, como se esta atividade fosse um uso recente da área. Esta identificação com o uso misto também é associada como algo extemporâneo ao espaço, pois “foge à proposta local”, segundo um dos questionários. Quanto a edificação da figura 7, é dito que: “[...] demonstra claramente que a Cidade Velha não possui mais as suas características. Vários pavimentos, a presença de botecos, vendas...”; “Outra forma de descaracterização do edifício para com seu entorno é a utilização de seu pavimento térreo como ponto comercial, que difere do uso domiciliar inicial do logradouro da rua Dr. Assis”. Outro trecho atribui o não pertencimento de um imóvel ao padrão do bairro devido à alteração da configuração original da edificação, com aberturas de grandes vãos no pavimento inferior para uso comercial. Figura 7: Uso multifamiliar, juntamente com comércio no pavimento inferior, características que determinaram a classificação deste imóvel como não pertencente ao bairro

Foto: Felipe Moreira (2011).

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5. USO DE MATERIAIS E CONFIGURAÇÃO GEOMÉTRICA DE FACHADA Os alunos viram no uso de alguns materiais uma “modernidade” que não fazia parte do “contexto” da Cidade Velha. Tais como vidro temperado, esquadrias de alumínio, grades de segurança, o uso de pinturas com cores fortes, emprego de pastilhas e caixa de condicionador de ar foram indicadas como “desrespeitosas à arquitetura original”. De acordo com algumas classificações, a presença de azulejaria denominada como “portuguesa” em algumas fachadas, ora marcam uma dita “arquitetura colonial”, ora a arquitetura do período da borracha, ambas harmoniosas ao bairro. As fachadas com configurações “mais geométricas”, “com forma regular estática”, consideradas modernas nas justificativas dos alunos, foram taxadas de “fora do contexto histórico”, e assim como as contemporâneas foram colocadas no grupo das edificações que destoam do bairro, seriam “edificações desestilizadas”. Agregam-se a este conjunto os imóveis que trazem estampado em suas fachadas a manifestação conhecida regionalmente como Raio-que-o-parta9. A esse respeito, foi relatado como a configuração arquitetônica: “[...] que tomou lugar na capital depois da configuração da Cidade Velha”, ou seja, a temporalidade do bairro é limitada aos períodos colonial, imperial e de início da República Velha. Porém, houve um relatório discordante quanto a esta percepção do Raio-que-o-parta: um dos alunos enquadrou uma edificação com tais características no grupo dos imóveis que possuem aparência do bairro, uma vez que naquele espaço havia um número significativo de edificações similares, embora fossem apenas dois exemplares no percurso. Outras características dos destoantes, segundo os relatórios, estão 9 Expressão arquitetônica regional marcada pela presença de desenhos geométricos em forma de raios na fachada, geralmente as imagens são formadas por azulejos, com tonalidades de cores diferentes, compondo um mosaico (MIRANDA; CARVALHO, 2008).

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nas perdas de ornamentação, do ritmo, das grandes dimensões de vãos de portas e janelas, das molduras destes vãos, do gradil trabalhado ricamente nos guarda-corpos e bandeiras, dos frontões, das platibandas e do alinhamento das fachadas. Para os discentes, a ausência destes elementos e configurações tendem a simplificar a arquitetura, fazendo com que a gama de imóveis classificados como sem aparência da Cidade Velha “não traga lembrança da arquitetura portuguesa implantada no Brasil”, ou não sejam coerentes com as “características desejadas no bairro da Cidade Velha”. Nota-se que a perda da complexidade dos elementos que compõem e ornamentam as fachadas, levaram os alunos a classificar os imóveis como se não pertencessem à Cidade Velha. Estas observações de uma dupla simplicidade, ora relacionada à perda do caráter antigo da Cidade Velha, ora remetendo a um “período original” só são possíveis emanar em virtude da dinâmica transformadora do espaço que consolida no tecido urbano a historicidade. 6. CAMUFLAGEM E MIMETISMO O exemplo da figura 8 foi objeto de enquadramentos antagônicos, em uma delas a edificação foi adicionada ao grupo que destoa, devido a uma “intenção de imitar a arquitetura colonial [...] com pouco sucesso”. O aluno relaciona esta intencionalidade ao uso do azulejo, assim como o modelo dos vãos de janelas. Em posição oposta, outro relatório enquadrou o mesmo imóvel como tendo aparência do bairro, devido justamente aos azulejos, altura dos vãos, presença de sacada com guarda corpo, conferindo assim “ares de Cidade Velha”. Portanto, esta solução arquitetônica, de imóvel de renovação, que tenta reproduzir a “historicidade da Rua” provocando uma percepção paradoxal enquanto à colocação do dilema: tem aparência ou destoa da aparência do Bairro da Cidade Velha? 152


Figura 8: Imóvel que obteve a classificação em dois grupos, demonstrando sua capacidade de mimetismo e camuflagem no espaço em que se insere

Foto: Felipe Moreira (2011).

Em contraste, um conjunto composto por quatro unidades (figura 11) também apresentou percepção ambígua, cujas justificativas nos levam a encará-lo como um exemplo de arquitetura ao mesmo tempo de camuflagem e “mimetização-inversa”10. Dentre as justificativas, o imóvel é apresentado como tendo uma arquitetura contemporânea e, às vezes, moderna “que rejeita o estilo histórico”, porém devido às dimensões das janelas “leva a crer que poderia ter sido um imóvel com uma estética da época da formação da Cidade Velha”. Percebemos que este conjunto provoca incerteza, confusão na percepção dos alunos. Outras respostas ainda confirmam que é um conjunto de casas antigas que “perdeu os traços europeus como os azulejos e os adornos da platibanda e gradil de proteção”, ou seja, um caso de mimetização-inversa. 10 Chaves (2008) ao abordar a arquitetura feita na cidade de Belém entre os anos 30 e 60 do século XX, faz referência à arquitetura de mimeses, uma arquitetura que incorpora e reitera os elementos característicos de uma determinada linguagem arquitetônica, criando uma linguagem própria. Utilizamos neste trabalho a ideia da “mimetização-inversa” para expressar o ponto de vista de alguns alunos durante a atividade de percepção. Esta toma o sentido da “desincorporação” de determinado vocabulário arquitetônico, da decomposição e exclusão de certos elementos.

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Na mesma linha de justificativa, o discente considera que o conjunto tentou manter o ritmo das abertas e dos adornos dos vãos – molduras – sem imitar os das antigas edificações, além disso, mantém o gabarito aparentemente igual de outros imóveis considerados originais, logo, segundo o aluno, esta edificação leva a crer que já foi um imóvel com aparência do bairro da Cidade Velha. Outro aluno afirma que “embora estas fachadas estejam despidas de ornamentações, se manifestam como uma tentativa de harmonização com uma arquitetura passada”. O conjunto também pôde ser visto como uma “tentativa de dar uma aparência ‘antiga’ a uma construção claramente recente”, ou seja, aqui notamos a questão da camuflagem, a nova proposta arquitetônica se disfarça em algo antigo e que segundo o aluno só se aponta como recente devido ao uso de materiais como a pintura e o vidro tipo blindex que fecha os vãos. Esta é uma solução arquitetônica que demanda um estudo criterioso por parte dos órgãos preservacionistas, uma vez que vem se tornando usual – em outros pontos da cidade e em outras cidades – para fechar as “lacunas” do tecido, dialogando com arquiteturas de período anterior. 7. DEDUÇÕES A PARTIR DO EXERCÍCIO DE PERCEPÇÃO Este pequeno exercício de percepção foi capaz de gerar uma profusão de interpretações, dentre as quais questionamos o sentido desta arquitetura, “insípida”, como se referiu Venturi (1995) na época de seu manifesto, ao criticar a arquitetura moderna. Reutilizamos tal adjetivo como crítica à supersimplificação tipológica que tende a ignorar a real complexidade dos programas arquitetônicos e “as possibilidades espaciais e tecnológicas assim como a necessidade de variedade na experiência visual” (VENTURI, 1995, p. 5). No caso destas soluções arquitetônicas, a opção de “despir-se” do trabalho quanto à complexidade soa aqui como uma forma mais fácil de 154


aprovação de projeto para execução, adotando a fórmula “manter o ritmo de vãos + volumetria”. Como podemos observar nas figuras 9 e 10, de 2006, foi iniciada uma construção com grandes arcos na parte fronteiriça, que foi substituída e no ano de 2010 já encontramos a solução atual (figura 11). Figura 9: Construção em andamento no conjunto que hoje se encontra com as feições da figura 11; Figura 10: Detalhe que mostra os arcos a serem construídos na fachada.

Fotos: Acervo Fórum Landi (2006). Figura 11: Novas fachadas construídas, entre o ano de 2006 a atualidade

Foto: Dinah Tutyia (2012).

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O imóvel da figura 12 se repetiu em muitos questionários, como exemplo de arquitetura destoante do bairro. Alguns questionários salientaram que o tipo de revestimento, os frisos, as colunas, os vãos fechados com vidro, a presença da sacada e da porta de enrolar no pavimento inferior são os elementos que destoam da aparência da Cidade Velha. Classificaram-na como um “ecletismo arquitetônico”, ou ainda consideram a sua não aparência “por fazer menção a diversos estilos” ou então “por possuir elementos decorativos típicos das residências da Cidade Velha, como por exemplo, os frisos e as colunas que remetem à antiguidade clássica”. A fusão destes elementos com materiais contemporâneos gerou a estranheza da arquitetura, fazendo com que ela não tivesse aparência do bairro, embora tenha feito uso, a partir de uma releitura, de elementos que remetem uma arquitetura de um período “mais antigo”, como as colunas, a platibanda, os frisos referência recorrentes nas edificações da Cidade Velha. Figura 12: Arquitetura classificada como destoante, destaque para os materiais e formas empregadas na fachada

Foto: Dinah Tutyia (2011).

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De acordo com os relatórios, adornos, cobertura escondida por platibanda, portas e janelas alongadas, porões, gradil trabalhado, frisos, azulejos em fachadas, são elementos que marcam a aparência de algumas edificações da Rua Dr. Assis como pertencentes ao Bairro da Cidade Velha, características destacadas do repertório visual dos discentes. Independente da linguagem estética de época, algumas justificativas se referiam à “arquitetura colonial”, “arquitetura da fundação de Belém”, levando a relacionar tal aparência de pertencimento ao passado longínquo. Esta paisagem-reflexo das referências determinadas pelos órgãos de preservação compõe-se de um grupo seleto de edificações que acabam por congelar uma paisagem imaginária de pertencimento e outra de exclusão naquele espaço da cidade.

8. CONSIDERAÇÕES FINAIS A imersão na Rua Dr. Assis procurou o reconhecimento deste logradouro - que se encontra dentro de um conjunto urbano tombado pela instância municipal em 1990 - objetivando uma releitura do que foi classificado como imóveis de renovação pela Lei 7.709 de 1994 - que dispõe sobre a preservação e proteção do Patrimônio histórico, artístico, ambiental e cultural da cidade11. Refletimos que a paisagem definida como “sem interesse à preservação”, no tecido urbano tombado, necessita de incessante reflexão. O exercício de percepção das arquiteturas da Rua Dr. Assis sobre a aparência ou “não aparência” dos imóveis com o bairro da Cidade Velha, se enquadraram em eixos temáticos e a partir desta avaliação trazemos para a reflexão os valores rememoração e contemporaneidade – propostos por Rïegl (2006), na virada do século XIX para o século XX para os monumentos históricos. Aproveitamos a noção de 11 O Conselho Consultivo do IPHAN aprovou o tombamento dos bairros da Cidade Velha e Campina em 3 de maio de 2011, em adição à proteção municipal.

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monumento histórico como construído pela sociedade, pela atribuição de valores históricos, estéticos e afetivos (CHOAY, 2001). Identificamos na atividade do caminhar e observar a paisagem tombada os sentimentos que em muito se assemelham às apreensões de Riegl para determinação das categorias de valores, ligados ao passado e à contemporaneidade. Destacamos o valor de antiguidade, ou ancianidade, que Rïegl (2006) define como um valor que independe da classe social para sensibilizar o espectador, ou mesmo de conhecimento científico para tal percepção, uma vez que este age sobre as massas e está pautado nas imperfeições das obras, na falta de integridade e na tendência de dissolução de formas e cores. Este conjunto de características acaba por se opor as características das obras modernas. Assim que uma obra é concluída, a ação do tempo passa a atuar sobre ela, começa a destrui-la “[...] agentes mecânicos e químicos tendem a decompor o objeto singular em seus elementos e a fundi-lo na grande totalidade amorfa da natureza” (RÏEGL, 2006, p. 71). Os alunos, ao avaliarem os imóveis como tendo aparência do bairro, o fizeram pelo reconhecimento da passagem do tempo na edificação: a “antiguidade” estampada nas fachadas fez com que a classificação fosse imediata, e sem hesitação, figura 13. Outro valor destacado tange à contemporaneidade, é o valor de arte. Segundo Rïegl (2006), valor de contemporaneidade toma o monumento na forma de uma criação moderna recente, exigindo que este se apresente no aspecto íntegro e intacto à destruição da natureza. O valor de arte se divide em dois outros valores, o valor de arte relativo e o valor de novidade. O valor de novidade – que acaba por caminhar junto com o valor de arte relativo – implica na vontade artística moderna que exige forma física não degradada em um monumento antigo: Exigimos da criação recente integridade total, não somente da forma e da cor, mas também do estilo. Em outras palavras, 158


a obra moderna não deve lembrar obras anteriores nem por concepções nem por tratamento de detalhe de forma e cores (RIEGL, 2006, p. 101).

Assim posto, destacamos primeiramente o sentimento dual que pairou entre os alunos nas edificações do tema “camuflagem e mimetismo”. Tal sentimento pode-se valer no caso dos imóveis que adotam a fórmula “manter o ritmo de vãos + volumetria”, que se opõe ao valor de novidade no sentido de tentar extrair a essência, a forma de uma obra anterior, por meio da volumetria e alternância entre cheios e vazios. O enquadramento do conjunto da intervenção nas justificativas mostrou-se incerto, ora demonstrando sua compreensão como obra contemporânea, ora relacionando-a com a morfologia colonial/imperial do bairro. Outro ponto que salientamos, cabe à questão do “culto” dedicado às obras “antigas” que mantiveram o aspecto íntegro de suas formas, com sua fachada sem degradação, com a pintura e o tratamento de revestimento ao gosto contemporâneo. Estes imóveis foram classificados como formas “exemplares” de aparência da Cidade Velha, se diferenciando dos demais com a mesma classificação, pelo valor adicional que lhes foi agregado, pois além de terem a aparência, sua aparência foi cultuada. Assim o sentimento que pairou nestes casos, (figuras 14 e 15), foi diferente em relação ao imóvel que apresentou os traços da ação do tempo em sua fachada, neste, mesmo não havendo hesitação da atribuição da aparência do bairro (figura 13).

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Figura 13: Edificação classificada pelos alunos como possuidora da aparência da Cidade Velha

Foto: Felipe Moreira (2012). Figura 14: Palacete Pinho, edificação hoje pertencente à Prefeitura de Belém, destacada pelos alunos como um “exemplar” de aparência do bairro

Foto: Felipe Moreira (2012).

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Figura 15: Casa da Dona Oneide Bastos, apontada pelos discentes como exemplar de aparência do bairro

Foto: Felipe Moreira (2012).

Destacamos que, nos exemplos em questão, a aparência “de novo” com que os bens imóveis são hoje colocados, comprovam o apreço da sociedade contemporânea por esta característica, sobrepondo o valor de novidade à vetustez, implicando no fato da kunstwollen de nossa época preterir o desgaste ao aspecto novo e acabado da obra. Portanto, ao analisarmos os imóveis categorizados como “de renovação” devemos deter-nos nos critérios contemporâneos do projeto de arquitetura a ser assimilados em estruturas urbanas consolidadas. Segundo Choay (2001) “a competência de edificar” consiste na: [...] capacidade de articular entre si e seu contexto, com a mediação do corpo humano, elementos cheios ou vazios, solidários e jamais autônomos, cujo desdobramento na superfície da Terra e na duração tem um sentido tanto para aquele que o edifica quanto para aquele que o habita [...] (CHOAY, 2001, p. 250).

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Essa competência de edificar está ligada à configuração tradicional da cidade, do edifício, na organização das paisagens, no traçado das vias e que contribuem para o estabelecimento das relações entre os homens e com o mundo natural. A competência de edificar está pautada em uma dimensão antropológica, em um construir articulado, contextualizado e modulado na dimensão humana e que, segundo a autora, a cultura do patrimônio ajuda a ocultar, uma vez que os fenômenos da inflação patrimonial, que gera o comportamento narcisista, encaminham para a perda da função construtiva substituindo-a pela função defensiva. Abordando outro aspecto da questão, Koziol (2013) debate a relação entre valoração e valorização, partindo dos conceitos de Riegl e de outros estudiosos contemporâneos, de modo a demonstrar o papel econômico latente na atribuição de valor e como isso se reflete na problemática da preservação de bens patrimonializados. Considera que a atribuição de valor por especialistas repercute na valorização econômica do bem pelo mercado, o que implica em ressignificações em função de tendências contemporâneas de uso e de consumo do patrimônio. Concluímos que as formas de intervenção expostas anteriormente devem ser objeto de reflexão crítica dentro de uma “competência de edificar” nos órgãos preservacionistas que autorizam projetos e reformas em áreas tombadas. Conclui-se que as soluções que apresentam Camuflagem e Mimetismo não são as melhores para o preenchimento das lacunas e composição do conjunto. Diante do panorama atual que abrange igualmente a parcela material e imaterial do patrimônio, ressaltamos a importância da adoção de um levantamento cadastral, por parte dos órgãos públicos, que contemple a oralidade dos moradores, especialmente os mais antigos. Esta fonte é capaz de refazer parte do passado, em seus usos e costumes, nas relações sociais aliadas à materialidade, que se mantém 162


ou que foi perdida no local. Portanto, a paisagem antiga reconstruída por documentos será identificada, reconhecida e resguardada no momento de um inventário de bens imóveis, sem a necessidade de reconstrução e pastiches. A revisitação às fontes que deram origem a tal paisagem se mostrou de extrema importância para o processo de reavaliação dos valores empregados naquele contexto. A característica intrínseca à cidade, sua dinâmica, faz com que determinado tipo de classificação, como o proposto pela Lei de 1994, deva ser passível a releituras periódicas, para que novos valores culturais sejam identificados e assim agregados, contribuindo para a manutenção da cultura local. REFERÊNCIAS BELÉM. Lei Ordinária nº 7.709, de 18 de maio de 1994. Dispõe sobre a preservação e proteção do Patrimônio Histórico, Artístico, Ambiental e Cultural do Município de Belém e dá outras providências. Disponível em: http://www.belem.pa.gov.br/semaj/app/Sistema/ view_lei.php?id_lei=1407. Acesso em: 18 jan. 2011. CHAVES, Celma. Modernização, inventividade e mimetismo na arquitetura residencial em Belém entre as décadas de 1930 e 1960. Risco, n. 8, p. 145-163, 2008. CHOAY, Françoise. Alegoria do patrimônio. São Paulo: UNESP, 2001. CRUZ, Ernesto. Ruas de Belém: significado histórico de suas denominações. Belém: CEJUP, 1992. KOZIOL, Christopher. How Heritage’s Debate on Values Fuels Its Valorization Engine: The Side Effects of Controversy from Alois Riegl 163


to Richard Moe. Change Over Time, v. 3, n. 2, p. 244-257, 2013. DOI: 10.1353/cot.2013.0012. MIRANDA, Cybelle Salvador; CARVALHO, Ronaldo Marques de. Dos mosaicos às curvas: a estética modernista na Arquitetura residencial de Belém. Anais eletrônicos – DOCOMOMO N-NE. Salvador: UFBA, 2008. RIEGL, Aloïs. O Culto moderno dos monumentos: sua essência e sua gênese. Goiânia: Editora da Universidade Católica de Goiás, 2006. SIMÃO, Maria Cristina Rocha. Preservação do Patrimônio Cultural em Cidades. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. TUTYIA, Dinah R. Albergue: uma proposta de turismo e sustentabilidade no Centro Histórico de Belém. 2010. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do Pará, Belém, 2010. VENTURI, Robert. Complexidade e Contradição em Arquitetura. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

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VOZES E MEMÓRIA: uma proposta arquitetônica de um ponto de memória em tecnologia em terra em Mazagão Velho (AP)

Guilherme Pantoja Alfaia Dinah Reiko Tutyia

1. INTRODUÇÃO

A motivação para o Projeto de um Ponto de Memória em Mazagão Velho surgiu ao longo do contato, como bolsista do Departamento de Extensão (DEX-UNIFAP), do projeto de extensão “Inventário e proposta de restauro da Casa Ana Ayres em Mazagão Velho” que se iniciou no ano de 2016. A experiência com esta atividade serviu de base para a elaboração do programa de necessidades e de referência projetual do ponto de cultura. O distrito de Mazagão Velho, fundada como vila no período colonial brasileiro no século XVIII no atual Estado do Amapá, região norte do Brasil, passou por inúmeras transformações, em consequência disto, referências de bens culturais estão se perdendo. A reflexão deste trabalho parte da necessidade da preservação dos bens culturais, estabelecendo o foco nos moradores que ali vivem, em conjunto com a presença de espaços dispersos na vila que não convergem para uma ação de preservação e exposição de referências culturais de Mazagão Velho. Por meio de pesquisas, inventariou-se alguns bens culturais, destacando as festividades, edificações e produções feitas durante 165


as festividades – a dança, a musicalidade, letras e vestimentas. Para atender esta função de ponto de cultura utiliza-se a museologia social através da metodologia do ‘Programa Ponto de Memória’. A utilização da terra como técnica construtiva é uma tentativa de estabelecer ligações com o passado da vila, com o objetivo de trazer a luz o conhecimento da tecnologia de terra. Utilizou-se como metodologia de pesquisa a qualitativa, com revisão bibliográfica acerca dos conceitos e experiências no campo da preservação do patrimônio, bem como visitas de campo para diagnóstico e levantamento de dados, utilizando de técnicas como entrevistas com moradores do local, registro fotográfico e mapeamento de bens culturais na cidade. 2. O QUE É UM MUSEU? O desenvolvimento de um projeto arquitetônico que toma contornos de um museu se faz inicialmente pelo entendimento do que é um museu, assim como de dois outros conceitos: a museografia e a museologia12. O tema se desenvolveu através das particularidades em relação a alguns conceitos e definições no meio acadêmico, o espaço e suas formas, além de seu aspecto sociocultural e político. As fontes bibliográficas utilizadas levam a entender que o museu, como hoje é conhecido, é uma instituição com funções acumuladas durante seu desenvolvimento. Espacial e funcionalmente, transfigura-se das primeiras coleções nos gabinetes de curiosidades do século XIX, voltados à acumulação e a exposição de objetos, para a versão 12 O projeto arquitetônico do ponto de memória é um item dentre vários aspectos no planejamento museológico. Para alcançar êxito no funcionamento, destacam-se os trabalhos de profissionais específicos da área da museologia para o planejamento museológico e museográfico. Estes profissionais devem dialogar com o arquiteto, o qual é responsável pela concepção projetual. A abrangência do museu extrapola o projeto arquitetônico, e a arquitetura em sua concepção não deve ser considerada encerrada por si mesma.

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contemporânea, que abarca reflexões de representatividade em termos de coleções e função social. Durante a segunda metade do século XX ocorrem diversas adequações relativas ao museu. São nas décadas de 1960 e 1970, marcadas por uma eclosão de movimentos político-sociais em todo o mundo, que os preceitos museológicos sofrem fortes críticas. Nesse contexto, as questões ambientais, políticas e culturais passam a ser temáticas constantes em todo mundo e posteriormente, atendidas pelos museus. Em relação à definição de museu, no âmbito nacional temos a instituição máxima dos museus no Brasil, o Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), que instituiu o Estatuto de Museus através da Lei nº 11.904, de 14 de janeiro de 2009, e postula: consideram-se museus, para os efeitos desta Lei, as instituições sem fins lucrativos que conservam, investigam, comunicam, interpretam e expõem, para fins de preservação, estudo, pesquisa, educação, contemplação e turismo, conjuntos e coleções de valor histórico, artístico, científico, técnico ou de qualquer outra natureza cultural, abertas ao público, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento (IBRAM, 2009).

Segundo o pesquisador francês Dominique Poulot (2013), dedicado aos estudos patrimoniais e de museus, é que considera A definição de um museu culmina, classicamente, na enumeração de suas funções. Um Manifesto, publicado em abril de 1970, pelo futuro presidente da Associação Americana dos Museus Joseph Veach Noble identificava cinco funções: colecionar, conservar, estudar, interpretar e expor. O museólogo holandês Perter Van Mensch prefere evocar somente três: preservar, estudar e transmitir (POULOT, 2013, p. 6).

Logo, a definição do museu torna-se indissociável da função do museu. A instituição apresenta três características fundamentais, as 167


quais são adotadas neste trabalho para se pensar no espaço museal. Os aspectos elegidos por Poulot (2013) descrevem as funções relacionadas à conservação; estudo e pesquisa; e comunicação. A Conservação, segundo Poulot (2013) “remete a um corpus erudito que induz a uma iniciação, a conhecimentos suscetíveis de serem ampliados” e “expõe ao contrário objetos ou obras que dão testemunho de referências compartilhadas” (POULOT, 2013, p. 06). O Estudo e Pesquisa realizados nos museus se relacionam diretamente com as coleções e com a equipe de conservação, a função é essencial e é em si, a finalidade de aquisição, exposição das coleções, toda produção e atividade documental. A Comunicação dos museus se manifesta desde a exposição à transferência de conhecimentos, utilizando cenários inovadores, tecnologia e o uso de dispositivos interativos para difusão de saberes (POULOT, 2013). O museu adquire novas proporções em consequência das “novas” formas de encarar o patrimônio. Logo, compreende-se como instrumento ideológico que constrói identidades por meio da apropriação e que fomenta ações políticas. O museu, assim como a sociedade, expressa suas constantes mudanças e transformações. A partir das referências utilizadas refletiu-se que o museu não se exime de suas funções como agente social e de gestão de informações, deve incentivar um espaço de diálogo com a comunidade, com o lugar em que está localizado, estabelecendo um processo de construção comum de cultura. As preocupações sobre a função do museu deram origem à Declaração de Santiago do Chile, em 1972, foi a primeira expressão pública e internacional do movimento de nova museologia, que pôs em debate a função social dos museus na atualidade, originando o processo de renovação da prática e no campo teórico. Doze anos depois, a Declaração de Quebec debate a necessidade de envolver as comunidades, estimulando a emancipação dessas e incluindo-as nos 168


processos museológicos. São resultados e experiências que iniciaram com o movimento de nova museologia (ecomuseologia, museologia comunitária e todas as formas de museologia ativa). Em 1992, a Declaração de Caracas propõe uma reflexão sobre novo enfoque nas ações dos museus no desenvolvimento integral da região. Esta chama atenção para a necessidade de os processos museológicos integrarem as questões da globalização. Por sua vez, a Declaração do Rio de Janeiro resultado do XVI Encontro Internacional do Movimento Internacional para uma Nova Museologia (MINOM), em 2013, coloca em foco os afetos, a formação de histórias contadas pelos protagonistas, assim sendo, na própria comunidade, ou mesmo nas figuras públicas daquele lugar. Percebe-se a emergência de uma museologia em que os museus sejam processos políticos, poéticos e pedagógicos na reconstrução dessa realidade (LEITE, 2014). Segundo, George Henri Riviere (1981), chamado por vezes como o criador do conceito do ecomuseu, define museologia: como uma ciência aplicada, a ciência do museu. Ela estuda em sua história e no seu papel na sociedade, nas suas formas mais específicas de pesquisa e de conservação física, de apresentação, de animação e de difusão, de organização e de funcionamento, de arquitetura nova ou musealizada, nos sítios herdados ou escolhidos, na tipografia, na deontologia (RIVIÉRE, 1981 apud DESVALLÉS, MAIRESSE, 2013, p. 61).

Percebe-se na mudança do termo uma transição de uma museologia tradicional, conceito de ciência dos museus que preconiza objetos para apresentação e difusão do patrimônio ao público, para uma nova museologia que almeja o desenvolvimento da comunidade, através do patrimônio, ou seja, para o conceito de ciência que estuda o homem e sua herança cultural. 169


A partir das mudanças na museologia, o museu assume feições de uma instituição cultural e social onde se reúne conhecimento e troca do mesmo. Assim, o papel dos museus na museologia contemporânea preocupa-se em definir suas necessidades e tudo que compõe o museu, bem como a necessidade de apresentar explicações sobre sua função e existência. 2.1 O ESPAÇO MUSEOGRÁFICO

As discussões museológicas em torno do espaço do museu recomendam e direcionam seu funcionamento para uma maior abertura ao público, tornando tal lugar mais acessível a partir de seu desenvolvimento. Para alcançar as funções que lhe são atribuídas, o museu necessita tomar decisões sobre a preservação e exposição, englobando atividades administrativas e organização de gestão da instituição. A museografia fica a cargo dessas ações. Segundo Desvallés e Mairesse (2013), a museografia abrange “o conjunto de técnicas desenvolvidas para preencher as funções museais” (DESVALLÉS; MAIRESSE, 2013, p. 58), ou seja, a museografia nada mais é que práticas instituídas ao museu, desde sua administração e estrutura, compreendendo métodos e processo curatorial, isto é, a aquisição, a salvaguarda e a linguagem comunicacional das coleções. Fundamentalmente a museologia possui o papel de contextualizar, necessita de ferramentas como a expografia e cenografia para assim poder apresentar as informações dos objetos de forma didática, envolvendo o público com o tema exposto. O museu transfigura-se em um sistema orgânico que carrega consigo um conjunto de técnicas e práticas que afetam de modo crucial o espaço e seu conteúdo. A museografia deve garantir a preservação e conservação adequada das coleções, seus estudos devem 170


conduzir sempre para uma investigação dos materiais e métodos de exposição, garantindo uma eficiente comunicação e relação entre o museu e a sociedade. 2.2 SOBRE MUSEOLOGIA SOCIAL

A Museologia Social é utilizada como suporte teórico para o Projeto do Ponto de Memória em Mazagão Velho e, segundo Moutinho (1993), esta provém do esforço de adequação das estruturas museológicas aos condicionalismos da sociedade moderna, ou contemporânea (MOUTINHO, 1993). Se para Moutinho a museologia social surge como adaptação das estruturas museológicas às transformações da sociedade moderna, para Leite (2014) o desafio da museologia social é o de tornar o museu um espaço de vida, de encontro e de questionar a vida do quotidiano. O museu passa a ser uma ferramenta para ligar as pessoas, assim, é preciso que se abram as portas dos museus (LEITE, 2014). De que forma? Questionando as pessoas, procurando compreender seu território e a cidade. A museologia social afirma-se então a partir da relevância da sua função social (LEITE, 2014). O movimento de museologia social tem raízes na Declaração de Santiago realizado em 1972. A diferença entre a nova museologia e o museu tradicional é que essa primeira busca uma linguagem e expressão mais acessível, dando maior abertura e dinamismo e participação sociocultural, preconiza e impulsiona uma tipologia diferente de museu, em contínua procura de novas formas criativas de comunicação, saindo de dentro das edificações ou se distanciando dos muros das elites acadêmicas. Na museologia social a ideia de participação da comunidade é tão importante quanto o “objeto museológico”. Tanto o patrimônio quanto a museologia social se justificam não por si mesmos ou pela 171


sua materialidade, mas pelos serviços e funções que prestam ao seu pretexto. Desconstrói o padrão solene e convencional em que se espera encontrar uma coleção e uma história que não pode ser tocada. Em 2016, O IBRAM lançou a publicação “Pontos de Memória: Metodologias e Práticas em Museologia Social”, de grande importância no campo da museologia social. Utilizado como referência projetual deste trabalho, a publicação apresenta todo o desenvolvimento do Programa Pontos de Memória lançado no ano de 2009, com o objetivo de apresentar a construção da metodologia aplicada nos 12 primeiros Pontos de Memória que foram implantados durante esse processo. 2.3 O PROGRAMA PONTOS DE MEMÓRIA

Segundo Pereira (2018), o desenvolvimento de políticas públicas de cultura tornou o cenário dos museus mais propício para experimentação de práticas populares de cultura e memória. O autor afirma sobre o Programa Pontos de Memória que “esta iniciativa governamental surge da Política Nacional de Museus, como necessidade de valorização do protagonismo de grupos e comunidades como gestores do seu próprio espaço” (PEREIRA, 2018, p. 109). O Programa Pontos de Memória (PPM) foi instituído pelo Instituto Brasileiro de Museus em 2009, após sancionada a Lei de criação do IBRAM, por meio do Ministério da Justiça, em conjunto com o Programa “Mais Cultura” e “Cultura Viva” do Ministério da Cultura – o Programa Pontos de Memória teve inspiração nos Pontos de Cultura. O Ministério da Justiça através do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI) selecionou doze cidades brasileiras para receber as ações do Programa Pontos de Memória: Belém, Belo Horizonte, Brasília, Curitiba, Maceió, Porto Alegre, 172


Recife, Rio de Janeiro, Salvador, Vitória e Fortaleza. As cidades indicadas deveriam ter o perfil de lugares violentos e com alto índice de homicídios, o que gerou dificuldade na atuação do programa, pois, em algumas comunidades já se articulava trabalhos de valorização da memória, enquanto em outras, o programa seria uma novidade. Os doze primeiros projetos tornaram-se experiências piloto, que constituíram os primeiros passos do programa e o IBRAM em 2016, lançou a publicação “Pontos de Memória: Metodologias e Práticas em Museologia Social”, na qual foram convidados os primeiros pontos para relatarem suas experiências e expor seus projetos. O Programa Pontos de Memórias atua como fomentador de uma política pública de direito à memória, utilizando da memória para intensificar a inclusão e transformação social de comunidades tão ricas em história. 2.4 ESTUDO DE CASO: PONTO DE MEMÓRIA DA TERRA FIRME

O Ponto de Memória da Terra Firme, em Belém do Pará, foi utilizado como referência no processo de desenvolvimento do Ponto de Memória em Mazagão Velho, por ser uma das dozes primeiras experiências selecionadas pelo IBRAM para participar do Programa Pontos de Memória. O bairro Terra Firme fica localizado na zona sul de Belém, popularmente considerado como periferia, com sua ocupação inicial datada da década de 40 do século XX. As organizações comunitárias, ali atuantes, criaram movimentos para o reconhecimento da área como bairro por meio da doação das terras pela união. O bairro recebeu forte atuação do Museu Paraense Emilio Goeldi (MPEG) que está localizado nas proximidades. Utilizando da relação que o MPEG exercia no bairro, o IBRAM entrou em contato com a equipe 173


do Museu Goeldi, servindo como referência de consultoria técnica. O programa inicia os trabalhos no ano de 2009, com o objetivo de identificar nos bairros do Guamá e na Terra Firme comunidades engajadas na valorização da memória e patrimônio cultural. O Conselho Gestor do Ponto de Memória da Terra Firme conduziu e ficou a cargo de consolidar o projeto dentro e fora do bairro. Todo suporte técnico foi dado pelo IBRAM no início do programa, com realização de oficinas de capacitação para os conselheiros, dando caráter ao conselho gestor como iniciativa comunitária participativa de caráter sociocultural-educacional através da museologia social (ALCÂNTARA, 2016). Nos primeiros anos do programa, o museu comunitário narrou as histórias do bairro através das ações museais em busca do entendimento das potencialidades locais. Houve também oficinas de capacitação abordando temas como: acervos e coleções; museu e museologia. O ponto de memória não tinha lugar e ter um espaço como sede, com infraestrutura para as demandas das ações, para reuniões, encontros e oficinas, ou um lugar para a salvaguarda do acervo tornaram-se seus primeiros desafios. Dessa forma, o projeto adquire feições bem diferentes de um museu. Segundo Alcântara (2016): “O Ponto de Memória da Terra Firme, como observamos, foge dos padrões convencionais de museu, não possui muros, portas e janelas; é um museu a céu aberto que acontece simultaneamente em todos os espaços do bairro (ALCÂNTARA, 2016, p. 114). Utilizando a museologia social, valoriza-se os principais sujeitos culturais como parte da memória coletiva dentro ou fora da instituição, independentemente de haver um espaço adequado para as ações do museu. Nesse sentido, o projeto arquitetônico por si só não é suficiente para o funcionamento do museu, o profissional arquiteto deve estar sempre em diálogo com os demais participantes, seja com os profissionais da área da museologia, ou com a própria população 174


que irá utilizar, administrar e consumir os espaços projetados, para alcançar uma arquitetura adequada aos seus usuários. 3. MAZAGÃO VELHO: BREVE CONTEXTO HISTÓRICO E CULTURAL Mazagão Velho localiza-se na margem direita do rio Vila Nova, aproximadamente a sessenta quilômetros de Macapá, no sul do estado do Amapá (Figura 1). Porém, para discorrer sobre a vila de Mazagão Velho é necessário mencionar que a história de colonização se desencadeia no século XVIII, no litoral da Costa Norte do continente africano, quando a Coroa portuguesa decide desativar a fortaleza de Mazagão em Marrocos e transferi-la para a região amazônica. Figura 1 - Trecho compreendendo a rodovia AP- 010 que interliga o município de Macapá até o distrito de Mazagão Velho.

Fonte: Guilherme Alfaia, 2020.

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O projeto da cidade da Vila Nova de Mazagão, hoje conhecida como Mazagão Velho, emerge com a transferência dos portugueses migrantes vindo do Norte da África. A vila foi inaugurada no dia 23 de janeiro de 1770, e de canoas, entre maio de 1771 e maio de 1772, as famílias e seus objetos eram levados gradualmente de Belém para a Vila Nova de Mazagão (VIDAL, 2007). No século XIX, a vila sofre com abandono da administração pela coroa portuguesa, além das epidemias e com os conflitos políticos. Decide-se fundar outra cidade: Mazagão Novo é fundada no dia 15 de novembro de 1915. Araújo (1998) relata que a nomenclatura da Vila de Nova Mazagão: Já no século XIX começou-se a instalação de um novo núcleo urbano nas proximidades e aquela que fora baptizada de Nova Mazagão, passou a ser chamada de Mazagão Velho em função do que se criou, desta vez chamada apenas de Mazagão. A sede do município transferiu-se para ali e ‘Mazagão Velho’ passou a ser freguesia desta outra ‘Novíssima Mazagão’ (ARAÚJO, 1998, p. 286).

Hoje podemos encontrar uma Mazagão Velho transformada, diferente dos tempos coloniais com costumes e manifestações arraigados nas múltiplas facetas culturais que ali resistiram. A historicidade que permeia a trajetória cultural de Mazagão, ao longo de aproximadamente 249 anos, expressa nos usos e costumes da tradição local, influenciou a elaboração do programa de necessidades de um museu para a cidade. A expressão cultural que Mazagão Velho carrega é considerada patrimônio material e imaterial da cidade. Desta forma, houve a necessidade de catalogar algumas manifestações destacadas na comunidade, tornando-se imprescindível para a compreensão do projeto do ponto de cultura.

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Dentro desta discussão buscou-se as definições do bem cultural como processo constante de reflexão e relativização dos valores atribuídos ao patrimônio, perfazendo a distinção entre os bens eleitos pela população e os bens institucionalizados, relacionando tais elementos com o que se pode encontrar em Mazagão Velho. No elo com o passado, onde os costumes e as produções dessa relação são repassados de geração para geração, percebe-se o quão íntima e ampla é a cultura, sendo percebida em diversos meios como a oralidade, os conhecimentos tradicionais, os saberes, os sistemas de valores, manifestações artísticas, etc. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) considera como cultura os modos de criar, fazer e viver e como esses se relacionam: A cultura engloba tanto a linguagem com que as pessoas se comunicam, contam suas histórias, fazem seus poemas, quanto a forma como constroem suas casas, preparam seus alimentos, rezam, fazem festas. Enfim, suas crenças, suas visões de mundo, seus saberes e fazeres. Trata-se, portanto, de um processo dinâmico de transmissão, de geração a geração, de práticas, sentidos e valores, que se criam e recriam (ou são criados e recriados) no presente, na busca de soluções para os pequenos e grandes problemas que cada sociedade ou indivíduo enfrentam ao longo da existência (IPHAN, 2012, p. 7).

Pode-se encontrar em Mazagão Velho uma variedade de bens culturais, segundo a oralidade, foram trazidos por seus ancestrais vindos do continente africano, carregando influências portuguesas, africanas e se misturando às indígenas. A manutenção das tradições ocorre por meio da atuação da população local, a qual vem sendo repassada de pai para filho, de geração em geração.

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3.1 HERANÇAS DA VILA DE MAZAGÃO VELHO

A partir de entrevistas com fomentadores culturais de Mazagão Velho pôde-se compreender o programa de necessidades para a produção do Ponto de Memória. Nesse momento, adentramos as festividades que ocorrem no local, ligadas com a forte religiosidade católica da vila, recheando o calendário da cidade com homenagens dos devotos para os santos durando todo o ano. Percebe-se a participação da maioria das famílias nas manifestações, pois, apesar de todas as festas terem um caráter religioso católico, existem diversos tipos de atividades que antecedem cada manifestação e que agregam a participação de parte da comunidade em alguma etapa do processo de construção das manifestações, como oficinas de produção de vestuário ou de música, a dança, o batuque, o marabaixo, as encenações das festividades. Em relação aos bens de cunho imaterial, destacam-se as festividades realizadas em Mazagão que são inauguradas no início do ano e percorrem todo o calendário. Considerada a maior e mais importante festividade local, a festa de São Tiago encena a trajetória que antecedeu a saída dos antigos mazaganenses da fortaleza de Mazagão em Marrocos. O diferencial dentro de cada expressão são os personagens nas encenações, que podem ser identificados através dos vestuários. Cada manifestação tem a sua indumentária específica, tanto o batuque quanto o marabaixo. Além disso, as músicas produzidas dentro das oficinas descrevem justamente a história da vila com suas letras. O canto que ecoa da vila conta e propaga sua história. Dessa forma, a dança, o canto e a música tornam-se fundamentais para a expressão e compõem a produção cultural da vila. Relativo aos bens materiais que se encontram na Vila de Mazagão Velho, é importante destacar que a vila fez parte de um projeto 178


colonial como forma de domínio territorial, seguindo os moldes das cidades colonizadas por portugueses ao longo do século XVIII, caracterizados pelas definições de quadras, pelo traçado das ruas ortogonais, os lotes, as residências geminadas e as técnicas construtivas. Destacam-se alguns exemplares de valor histórico-material, como as imagens sacras mazaganenses de santos católicos antigos, os quais podem ser encontrados tanto na igreja, quanto nas residências dos moradores da vila. Segundo Ribeiro (2016) algumas imagens são chamadas de “santos antigos” e dependendo de seu estado de conservação a imagem pode participar ou não da festividade que lhe representa. [...] os santos antigos podem ser divididos em três tipos, tendo como critérios o período de origem, a localização deles na vila e a ligação com as representações do deslocamento. Portanto, considero importante frisar que, tanto no interior da igreja católica como nos domicílios dos habitantes desse lugar, há várias imagens de santo e que apenas uma parte delas foi identificada pela pesquisa do IPHAN como sendo de ‘santos antigos’, embora os próprios moradores se refiram a estas imagens dessa forma (RIBEIRO, 2016, p. 61).

O “Casarão Ayres” é considerado um remanescente com características das edificações construídas na vila com elementos presentes na arquitetura colonial-imperial brasileira do século XVIII. A casa ainda preserva a tecnologia construtiva da taipa, bastante difundida durante o período colonial, além da cobertura em duas águas com cumeeira paralela a rua e as aberturas com acabamento superior em arco abatido13. Também é possível encontrar em Mazagão Velho dois paredões e a fundação em ruínas da primeira igreja matriz feita em alvenaria de pedra, que são pontos turísticos. Após arqueólogos escavarem o local, foram encontrados diversos artefatos relevantes: peças de 13

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Para conhecer mais sobre o Casarão, ver o capítulo 2.


vestuário, moedas, fragmentos de cerâmica, material religioso e ossada humana, em parte datada do século XVIII e outros do século XIX (RIBEIRO, 2016, p. 52). Segundo Costa (2011), erguida posteriormente, a Igreja de Nossa Senhora de Assunção teve sua construção iniciada a partir do ano de 1933. A edificação foi construída na orla da cidade, em frente ao rio Mutuacá, no local onde anteriormente funcionava o prédio da prefeitura; a igreja preserva diversas imagens de santos que correspondem às festividades que ocorrem na cidade (COSTA, 2011, p. 20). Os cemitérios da cidade de Mazagão Velho são espaços onde são guardados os restos mortais de algumas personalidades consideradas ilustres, tornando-se mais um elo para entendimento do passado como herança cultural da cidade. As formas de expressão cultural individual ou coletivas, são elementos que fazem parte da vida social e constroem a identidade dos mazaganeneses e ligam-se com as memórias estruturantes da comunidade. O fomento através das políticas de preservação torna-se necessário para garantir que produções que expõem e identificam bens culturais reconhecidos oficialmente sejam conservados, em um território tão extenso e de grande diversidade cultural como o Brasil. Essas ações auxiliam na eficácia da salvaguarda dos bens, assegurando que os agentes sociais possam continuar produzindo e transmitindo seu trabalho e sua cultura. 4. PROPOSTA ARQUITETÔNICA DE UM PONTO DE CULTURA EM TECNOLOGIA DE TERRA EM MAZAGÃO VELHO – AP O planejamento sintetizado no partido arquitetônico constitui-se de um conjunto de informações e conceitos sobre o tema escolhido - museologia social - e na coleta e análise de informações físicas e ambientais do lote e da região a qual irá receber o ponto de memória, 180


neste caso, o distrito de Mazagão Velho. Baseado nas informações de Neves (1989) sobre a adoção do partido arquitetônico na arquitetura, a primeira etapa do planejamento arquitetônico deve dotar o projetista de informações básicas, como dados teórico, referências, conceitos, informações variáveis de terreno, prosseguindo com a segunda etapa que consiste nas representações gráficas formuladas a partir da ideia preliminar do edifício. O desenho arquitetônico é a representação gráfica utilizada pelo projetista para se comunicar com o cliente. A seguir, analisadas as informações cruciais para o entendimento do projeto, como aquelas referentes ao local de implantação do projeto, foram feitos estudos de referências projetuais que utilizam terra na sua construção. Assim, foi gerado o programa de necessidades e a concepção aprofundada veio a ser elaborada nas representações gráficas do ponto de memória através das plantas e croquis. A seguir, sintetizamos os principais condicionantes do projeto. • Análise para implantação O terreno possui dimensões de 15 metros de largura e 30 metros de comprimento, distribuídos em uma área total de 450 m², apresentando um formato retangular. Em relação à topografia local, o lote escolhido possui solo plano com baixa necessidade de correção em relação ao nível. • Orientações quanto ao Sol e ventos Para propor uma arquitetura que atenda ao conforto e desempenho térmico adequados para os usuários, foram analisadas as características climáticas da região, levando em consideração radiação solar, temperatura, ventos, precipitação e umidade relativa. Tais referências configuram as características climáticas no Estado do Amapá, cuja capital, Macapá, situa-se no marco zero da linha do Equador. O lote escolhido possui acesso pela fachada principal ao noroeste, 181


de acordo com o Norte de referência; dessa forma, a trajetória do Sol inicia-se pela fachada lateral leste e perpassa a fachada lateral oeste, sendo essa a fachada mais crítica, pois recebe todo o sol da tarde (Ver Figura 2). Como forma de sanar o desconforto térmico, recomenda-se utilização de vegetação, brises, pergolados e/ou coberturas para tratamento. Os ventos predominantes em Mazagão Velho são oriundos do Leste. Figura 2 - Condicionantes Ambientais do Lote para implantação do Projeto Arquitetônico

Fonte: Guilherme Alfaia, 2020.

• Estudos de referência quanto à técnica construtiva Para a proposta arquitetônica atribui-se o uso da terra como material construtivo, de modo a integrá-la ao contexto da arquitetura, das técnicas e tradições que compõem a Arquitetura de terra. As referências utilizadas são compostas por uma série de estudos que fazem uso da terra com outros materiais, suas relações de memória, identidade espacial, características e funções. 182


A eclosão da utilização da terra em técnicas construtivas no território brasileiro se deu principalmente no período colonial, empregada pela coroa portuguesa. Duas técnicas são as mais utilizadas no Brasil, a taipa de pilão e a taipa de mão (MIRANDA et al., 2015, p. 3). As técnicas construtivas que utilizam terra são tanto tradicionais quanto contemporâneas e possuem características comuns. É possível subdividi-las em três grupos de técnicas que usam terra: (a) monolítico; (b) por unidades ou alvenaria de blocos; (c) e por enchimento e/ou revestimento de estrutura portante. A utilização da terra na forma monolítica consiste em uma estrutura continua que funciona como um único elemento resistente. A taipa, por exemplo, é produzida com a utilização de terra úmida compactada em cofragens (de madeira ou aço), em fiadas sucessivas, de modo que a técnica atinge paredes com características mais esculturais (FERREIRA, 2015). Conforme os estudos feitos por Torgal, Eires e Jalali (2009), a utilização da técnica por unidades ou alvenaria de blocos, significa a execução de paredes em alvenaria de terra utilizando blocos pré-fabricadas, podendo variar de adobe (mecânico ou manual), bloco de terra compactado tanto mecânico ou hidráulico a blocos de terra recortado e extrudido, que consiste no recorte do bloco de terra diretamente do solo em seu estado natural (TORGAL; EIRES; JALALI, 2009, p. 31). A técnica construtiva de terra por enchimento e/ou revestimento das estruturas, comumente chamada no Brasil de taipa de mão, pau a pique ou barro armado, significa que em uma estrutura portante sem função estrutural se utiliza terra no preenchimento ou acabamento. Segundo Pisani (2004), o emprego da terra na construção tem como vantagem a capacidade de absorver e perder rapidamente a umidade; o barro consegue armazenar o calor quando exposto aos raios e perde-o lentamente quando a temperatura externa estiver baixa. Outra qualidade das construções com terra é que não contaminar 183


o ambiente, pois seu preparo necessita de 1% à 2% da energia despendida com uma construção similar com concreto armado ou tijolo cozido e o processo é totalmente reciclável. (PISANI, 2004, p. 10). Do mesmo modo, o uso da terra como técnica construtiva possui suas desvantagens: sua composição depende das características geológicas e climáticas da região, são necessários ensaios e correções com aditivos, as construções com terra são mais permeáveis e estão mais suscetíveis às águas e, durante a secagem, o solo sofre deformações significativas, gerando fissuras e trincas (PISANI, 2004). A investigação sobre o uso da terra na arquitetura surgiu com o contato com um exemplar em Mazagão Velho, executado em taipa. A edificação ainda mantém as características arquitetônicas que se assemelham aos prédios que eram construídos no tempo do Brasil colônia. Chamada de “Casarão Ayres”, atualmente é considera um bem cultural de Mazagão Velho pois carrega consigo métodos vernaculares relacionados ao saber-fazer de construções em terra. Foram selecionadas as principais características encontradas nas referências projetuais e que foram adotadas com o intuito de sanar problemáticas, como: o tipo de fundação, a relação interno-externo para configuração das áreas comuns, a utilização mista de técnicas que usam a terra. Além disso, destaca-se o emprego de soluções bioclimáticas adequada à região, visto a exposição da construção ao sol parcialmente ao longo do ano. Recomenda-se a combinação com outros materiais, no caso em questão, a combinação de madeira-taipa é desejável para o fechamento de vãos em que se assentam as esquadrias; a espessura das paredes deve ser dimensionada em função de sua altura; a cobertura deve prolongar-se em beirais largos ou varandas que garantam a estanqueidade à água, principalmente em regiões mais chuvosas. Como referências projetuais destacamos os seguintes projetos: o Protótipo de Habitação no Canteiro Experimental da UFMS de 184


2013; o museu e a Casa Munita Gozales, localizado em uma área de expansão urbana a cerca de vinte minutos da região central de Santiago, em Batuco, Chile; a Escola Artesanal METI está localizada em um pequeno vilarejo rural de Rudrapur, no norte de Bangladesh; o projeto vencedor do Concurso Internacional de Ideias para um Pavilhão em Terra em Niamey, capital de Níger, denominado Les Pieds Sur Terre, ou em português “Com os Pés no Chão”. Desta forma, o ponto de memória em Mazagão Velho emprega um misto de tecnologias construtivas: concreto em sua fundação, em algumas paredes utiliza-se a taipa mecanizada e a tradicional (utilizando mão de obra local). Somente nos banheiros optou-se por utilizar a alvenaria em toda sua estrutura. • Programa de necessidades A Proposta Arquitetônica de um Ponto de Memória em Mazagão Velho tem como público-alvo os moradores da vila e fomentadores culturais, como também as comunidades do entorno, habitantes do Estado e turistas de todas as idades e gêneros. Para a realização e elaboração do projeto, procurou-se agentes que auxiliaram no desenvolvimento do programa. Primeiramente, ressalta-se o elo importante de Josué Videiro como colaborador do projeto, o qual é um grande fomentador cultural na vila de Mazagão Velho, possuidor de conhecimentos, de histórias e memórias da vila, das festas tradicionais, dos cantos e danças. Josué Videiro disponibilizou para a reflexão do projeto o terreno de locação da proposta projetual do ponto de cultura. Atualmente, o lote comporta a “Associação Cultural Raízes do Marabaixo”, onde Videiro ocupa o cargo de presidente. O espaço é utilizado para realização de atividades culturais e no apoio das festividades. Para composição do programa de necessidades, nos baseamos em referências, como o

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Guia para Projetos de Arquitetura de Museus (2020) e o manual de Subsídios Para a Criação de Museus Municipais (2009) (Quadro 1). Quadro 1 - Programa de Necessidades

AMBIENTE

ATIVIDADES REALIZADAS ESPAÇOS DE GESTÃO

Administração/Secretaria

Gerir; administrar; atender;

Arquivo

Guardar; organizar; ESPAÇOS DE RECEPÇÃO

Ponto de Vendas/Guarda-Volumes

Comercializar; expor; informar; guardar; estocar;

Hall de Entrada

Recepcionar; informar; abrigar;

Copa

Socializar; consumir; cozinhar;

Pátio

Socializar; circular; abrigar; ESPAÇOS DE EXPOSIÇÃO E VIVÊNCIA

Sala de Exposição de Longa e Curta Duração

Expor; informar; abrigar; comunicar; socializar;

Sala de Ações Educativas e Culturais

Abrigar; aprender; comunicar; socializar;

Biblioteca

Aprender; ler; socializar; contemplar; relaxar;

Jardim

Relaxar; contemplar; socializar; descansar; ESPAÇOS DE GESTÃO TÉCNICA E PESQUISA

Sala de Processos Técnicos

Organizar; guardar; produzir; divulgar; diagnósticos; montagem; atividades;

Sala de Pesquisa

Pesquisar; informar; difundir; produzir;

Reserva Técnica

Guardar; abrigar; expor; ESPAÇOS DE APOIO 186


Almoxarifado

Guardar;

D.M.L (Depósito de Material de Limpeza)

Armazenar; estocar;

Banheiro PNE Feminino

Higienizar; Necessidades;

Banheiro PNE Masculino

Higienizar, Necessidades; Fonte: Guilherme Alfaia (2021).

• Setorização e organograma A divisão do programa de necessidades foi realizada em 5 setores ou espaços: Espaços de Gestão, Espaços de Exposição e Vivência, Espaços de Recepção, Espaços de Gestão Técnica e Pesquisa e Espaços de Apoio (Ver Figura 3). Figura 3 - Setorização

Fonte: Guilherme Alfaia, 2021.

Os espaços de recepção realizam a integração entre os ambientes externo e interno. A primeira camada realiza a gerência, ações técnicas museológicas e atendimento. A segunda camada recebe o fluxo dos usuários, além de realizar a programação do ponto de memória. A 187


última camada se resume em espaços de permanência e dão apoio às necessidades dos usuários e às atividades. Figura 4 - Organograma

Fonte: Guilherme Alfaia (2021).

• Plantas e perspectivas A proposta arquitetônica em terra culminou num volume com dois blocos, o primeiro bloco apresenta os ambientes de exposição, administração e processos técnicos. O segundo bloco engloba as ações culturais, educativas e de pesquisa, em conjunto com os ambientes de apoio (Figuras 5 e 6).

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Figura 5 - Perspectiva do Projeto do Ponto de Memória

Fonte: Guilherme Alfaia (2021). Figura 6 - Planta Baixa do Projeto do Ponto de Memória

Fonte: Guilherme Alfaia (2021).

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O hall de entrada é a principal linha que se percorre para acessar os ambientes, além de ser o primeiro contato do usuário com o ponto de memória (Figura 7). O ponto de vendas/guarda-volumes se apresenta como um totem informativo e de controle. Os banheiros ficam aos fundos do lote, possuindo acesso diretamente pelo hall de entrada e/ou pelo jardim. Figura 7 - Vista Lateral Direita

Fonte: Guilherme Alfaia (2021). Figura 8 – Vista do Hall de Entrada e Corte Transversal do Ponto de Memória

Fonte: Guilherme Alfaia (2021).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS O trabalho de educação patrimonial e musealização do patrimônio cultural em comunidades significa o fortalecimento das organizações locais a partir da apropriação de suas memórias e de seu patrimônio cultural, como instrumentos de luta e articulação comunitária. Dessa forma, como ferramenta de valorização dos saberes tradicionais, a proposição de um ponto de memória buscou potencializar a autoestima dos detentores e o fortalecimento dos vínculos comunitários em relação ao patrimônio, à memória e ao território em que os bens culturais (material, imaterial e natural) estão inseridos. A partir das pesquisas e estudos realizados, catalogou-se alguns bens culturais que se encontram em Mazagão Velho, verificando uma grande demanda de elementos cuja relevância abrangem desde festividades religiosas à preservação do saber-fazer da taipa. A proposta arquitetônica do ponto de memória em Mazagão Velho emerge da tentativa de sanar problemáticas de espaços projetados dedicados a ações educativas, de preservação e exposição de referências culturais. Concebe-se um espaço adequado para a promoção e organização da comunidade, imbuindo a população local de representatividade e emancipação. REFERÊNCIAS ALCÂNTARA, Camila de Fátima Simão de Moura. Ponto de Memória: Experiências etnográficas no museu diferente de Terra Firme, Belém – PA. 2016. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Universidade Federal do Pará, Belém, 2016. ARAÚJO, Renata Malcher de. As Cidades da Amazônia no Século XVIII: Belém, Macapá, Mazagão. Porto: Faup Edições, 1998. 191


COSTA, Antônio Gilberto. Os Documentos Cartográficos e outras Iconografias: Importância na Pesquisa do Patrimônio Cultural do Brasil. In: 1º SIMPÓSIO BRASILEIRO DE CARTOGRAFIA HISTÓRICA. Anais [...]. Paraty: Centro de Referência em Cartografia Histórica, UFMG, 2011. p. 1 a 23. Disponível em: https://www. ufmg.br/rededemuseus/crch/simposio/COSTA_ANTONIO_GILBERTO.pdf DESVALLÉS, André; MAIRESSE, François; SOARES, Bruno Brulon; CURY, Marília Xavier. Conceitos-chave de Museologia. São Paulo: Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de Museus, 2013. FERREIRA, Luís Manuel Rodrigues. Arquitetura de Terra: Das Técnicas Construtivas ao Desenvolvimento de Competências. 2015. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade Fernando Pessoa, Porto, 2015. IBRAN - INSTITUTO BRASILEIRO DE MUSEUS. O que é museu. 2009. Disponível em: https://www.museus.gov.br/o-que-e-museu/. Acesso em: 27 ago. 2021. IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Patrimônio Cultural Imaterial: Para saber mais. 3. ed. Brasília: IPHAN, 2012. LEITE, Pedro Pereira. A nova museologia e os movimentos sociais em Portugal. Cadernos do CEOM, ano 27, n. 41, p. 193-223, 2014. MIRANDA, Cybelle; CARVALHO, Ronaldo Marques de; SOUZA, José; MACÊDO, Alcebíades; BESSA, Brena. A Preservação do “Saber Fazer”: a Taipa de Mão do “Canto do Sabiá”. Arquitextos, v. 179, p.1-12, 2015.

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MOUTINHO, Mario. Sobre o Conceito de Museologia Social. Cadernos de Sociomuseologia, v. 1, n. 1, p. 5-7, 1993. NEVES, Laert Pedreira. Adoção do Partido na Arquitetura. Salvador: Centro Editorial e Didático da UFBA,1989. PEREIRA, Marcele Regina Nogueira. Museologia Decolonial: os Pontos de Memória e a insurgência do fazer museal, Lisboa, 2018. Tese (Doutorado em Museologia) – Faculdade de Ciências Sociais, Educação e Administração, Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, 2018. PISANI, Maria Augusta Justi. Taipas: a arquitetura de Terra. Revista Sinergia, v. 5, n. 1, p. 9-15, 2004. POULOT, Dominique. Museu e Museologia. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013. RIBEIRO, Karina Nymara Brito. A Igreja, a Casa e o Culto aos Santos: As Esculturas Sacras Mazaganenses que atravessaram o Atlântico. Dissertação (Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural). Rio de Janeiro: IPHAN, 2016. TORGAL, Fernando Pacheco; EIRES, Rute; JALALI, Said. Construção em Terra. Guimarães: TecMinho, 2009. VIDAL, Laurent. Mazagão: a Cidade que atravessou o Atlântico. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2008.

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UMA HABITAÇÃO PARA O TRÓPICO ÚMIDO: projeto para um terreno estreito Ronaldo Marques de Carvalho Fábula de um arquiteto A arquitetura como construir portas, de abrir; ou como construir o aberto; construir, não como ilhar e prender, nem construir como fechar secretos; construir portas abertas, em portas; casas exclusivamente e portas e tecto. O arquiteto: o que abre para o homem (tudo se sanearia desde casas abertas) portas por- onde, jamais portas-contra; por onde livres :ar luz razão certa João Cabral de Melo Neto

1.INTRODUÇÃO Este capítulo resulta da monografia desenvolvida no Curso de Especialização em Arquitetura nos Trópicos (CARVALHO, 1986) e trata da elaboração de uma proposta de projeto arquitetônico para uma habitação em terreno estreito, visando a sua adequação climática em uma cidade do trópico úmido - Belém do Pará14. O conhecimento da cidade, e suas raízes históricas quanto a origem urbano-arquitetural, características climáticas, o estudo da localização do terreno, da legislação urbana, do programa de necessidades, dos partidos e o pré-dimensionamento são importantes para o desenvolvimento da proposta arquitetônica. Pretende-se com este trabalho contribuir com uma solução voltada ao projeto de habitações 14 Para saber mais, consulte MIRANDA, Cybelle Salvador; CARVALHO, Ronaldo Marques de; TUTYIA, Dinah. Uma Formação em curso: esboços da graduação em Arquitetura e Urbanismo. Belém: Universidade Federal do Pará, 2015, v.1.

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em lotes estreitos, adequando-os aos condicionamentos climáticos de Belém, e através de estudos compatíveis com nossa realidade subsidiar a atividade profissional dos arquitetos. Ademais, o processo metodológico do estudo servirá de referência didática às aulas de projeto arquitetônico. A beleza tropical, com seus rios, baías, igarapés, alagados, florestas, campos e cidades, da Zona Bragantina à Ilha do Marajó, serve de substrato à arquitetura. A Terra, na sua viagem pelo espaço, acompanha seu guia maior, o sol, no movimento de rotação que consideramos ser em torno de um eixo imaginário e no movimento de translação que se processa em torno deste, que condiciona decisivamente a vida como um todo. A partir do sol temos o dia e a noite, o clima de um modo geral, os meridianos. Os Trópicos de Câncer e capricórnio determinam um setor que se chama região tropical. São as nossas Matas, nossos Rios, nossos Ilhas, nossos Ventos nossa Fauna, nosso Sol, nosso Solo, nossos Recursos Minerais, nossos Alagados, nossa forma de viver, que de fato devem se evidenciar na criação dos espaços em que vivem os seres humanos. A disponibilização de um terreno com suas características físicas, dimensões e localização, priorizam antes de tudo a reflexão em torno de uma proposta de projeto arquitetônico e, portanto, a análise do lote urbano com seu contexto histórico e sua situação quanto à radiação solar, aos ventos e precipitações pluviométricas contribuem para uma boa solução. Então, partindo-se de uma necessidade real, pode-se elaborar um programa de necessidades que define as características dos partidos arquitetônicos prováveis e sua transformação em ambientes. A adequação de um projeto se condicionará aos dispositivos legais referentes ao uso do solo urbano, cabendo, portanto, uma análise quanto a sua implantação em terrenos estreitos, procurando-se mostrar as várias alternativas de estabelecimento dos partidos gerais até chegar aquele selecionado. De posse do partido escolhido, passamos 195


à proposta de implantação, levando em conta as soluções que propiciem uma climatização natural que favoreça o aproveitamento da vegetação e a captação dos ventos e a proteção contra os excessos da radiação solar e da chuva. Com o conhecimento e a definição de todos esses condicionantes, o desenvolvimento do partido proposto leva à etapa da elaboração da proposta final, na qual a escolha do sistema estrutural, as vedações, coberturas, acabamentos e detalhes são planejados. Em cada um desses itens, o conforto ambiental depende também de uma adequada tecnologia propiciando o uso de materiais regionais. Assim, a análise necessária para obter o melhor aproveitamento dos ventos, proteção contra as chuvas e aos rigores da radiação solar, torna-se possível utilizando-se observações in loco e com a aplicação das técnicas de mascaramento solar (FONSECA, 1982). As especificações do projeto serão apresentadas no decorrer do seu desenvolvimento e as instalações complementares para consecução de um projeto executivo não serão aqui consideradas, uma vez que a proposta se refere a um anteprojeto e detalhes desta ordem viriam com a definição imposta ao projeto executivo. Então, adequar a arquitetura ao clima é antes de tudo criar condições a esta arquitetura de oferecer aos seus ocupantes, proteção contra o sol, chuva, ruídos, poeiras e permitindo também proteção quanto a segurança físico-psicológica. O sol também é necessário, porém sem causar desconforto e o vento é fundamental para a aeração dos ambientes, embora não exageradamente, de modo a não ocasionar danos construtivos (IZARD, 1983). No cotidiano de quem atua como profissional no campo do planejamento arquitetônico, com destaque às habitações unifamiliares, quer seja em grandes terrenos ou em terrenos reduzidos, o reconhecimento dos fatores ambientais é essencial para que o abrigo atenda aos requisitos de conforto humano ao longo de todo o ano. 196


2. A CIDADE E A ARQUITETURA Santa Maria de Belém do Grão-Pará, assentada no estuário do Amazonas sob o signo da fortificação do Castelo ou Presépio, construída às margens da baía do Guajará, confluindo com o igarapé do Piri, guarda ainda hoje em parte da cidade alguns traços fisionômicos arquitetônicos e urbanísticos do que foi há quatro séculos passados. Localiza-se a uma latitude sul de 1º28’ e uma longitude oeste de 48º27’, caracterizando-se climaticamente como uma cidade do Trópico Úmido, situando sua área original em terreno que oscila em altitude de 0 a 10 metros, por conseguinte, baixo, apresentando uma malha líquida constituída por igarapés que a penetram como se fossem ruas. A cidade localiza-se numa ponta que se limita ao norte pela Baía do Guajará e ao sul pelo rio Guamá e por estas características tem o seu território com influência marcante das baixadas, que constituem aproximadamente 40% do seu sítio. Os Terrenos da cidade são consequentemente de baixa resistência estrutural. Possui clima quente e úmido apresentando temperaturas que vão em média de 22º a 32ºc, tendo umidade relativa que varia de 80 a 90º durante quase todo ano. Implanta-se em contato com a densa floresta Amazônica; os ventos predominantes de Este e Norte equilibram a ventilação durante a dia e a noite e o índice pluviométrico, em média, está a 488 mm. O céu apresenta-se na maioria dos meses com intensa nebulosidade, mas com grande radiação solar. A cidade de Belém, que se originou sob influência eminentemente portuguesa, caracteriza-se com sua arquitetura primordial guardando traços consequentes da matriz. Com o advento de novas tendências arquitetônicas, a cidade passou a assimilar, tanto nos seus aspectos urbanos quanto nos seus edifícios, novas influências europeias com técnicas e materiais construtivos variados. Até o século XIX, foram 197


marcantes as adaptações europeias que respondiam aos anseios das condições climáticas da região Amazônica (TOCANTINS, 1976). No início do século XX até a sua metade, com os movimentos da Arquitetura no Brasil apareceram novas tendências de projetação e construção com influências internacionais, via sudeste brasileiro, que logo foram assimiladas no Norte fazendo aparecer em Belém a arquitetura dos bangalôs, das testadas, das lajes em concreto e dos edifícios. Atualmente, estudos são desenvolvidos sobre o clima da região amazônica, e estes já permitem avaliar os condicionantes que determinam a adequação do projeto às condições de conforto necessárias, levando ao melhor desempenho das atividades humanas. Dentre estes, destacam-se com maior agressividade climática ao organismo humano a umidade e o excesso de radiação, que são consequências da localização geográfica da região. Sendo assim, apesar das inovações quanto às técnicas construtivas, a arquitetura moderna de Belém ainda não é satisfatória, do ponto de vista do projeto e da construção, quanto aos condicionantes e fatores climáticos, mostrando-se inadequada ao conforto biológico. Belém nos primeiros séculos de sua história teve influências marcantes da arquitetura portuguesa e europeia com ligeiras adaptações regionalistas e assim os chalés, ainda existentes, apresentando varandas amplas, grandes beirais e muitas aberturas para a circulação do ar no interior, de modo a proporcionar bem-estar em seus ocupantes (CRUZ, 1971). Os materiais e as técnicas construtivas empregadas pela arquitetura portuguesa tais como pedras, tijolos e telhas cerâmicos contribuíram para amenizar os rigores do clima, propiciando nas fachadas altas e largas janelas além da presença dos óculos ventilando os porões e no interior fazendo circular ar através do forro, graças aos vazados existentes entre o forro e a cobertura, usando o ático como o meio de aeração, o qual funciona como um exaustor. No decorrer 198


da evolução de nossa arquitetura, com destaque às importações tipológicas e tecnológicas, muitas soluções vinham inspiradas em climas temperados, com necessidade da adaptação ao clima tropical. Figura 1: Uso de forros vazados

Fonte: Ronaldo Marques de Carvalho (1980).

Azulejos nas fachadas, adornavam e minimizavam a transferência do calor pelas paredes ao interior dos ambientes, venezianas permitiam a circulação do ar mesmo em ambientes fechados, forros vazados faziam fluir para o ático o ar quente. O piso em madeira elevado do solo, ao mesmo tempo que isolava o prédio deste, permitia ao ambiente um teor de frieza ajudados pelos óculos, proporcionando um conforto térmico agradável. Nas habitações unifamiliares construídas sobre lotes estreitos, a solução era o tipo puxada, com corredor extenso que dava acesso aos dormitórios, nos quais a ventilação e iluminação era indireta, 199


proporcionando um relativo conforto térmico que poderia ser considerado agradável para um clima equatropical. 3. O LOTE URBANO Belém teve o seu desenho inicial com ruas e travessas que se interligavam formando quadras divididas em lotes que geralmente apresentavam-se com pequena largura, 5 a 6 metros, e profundidades que variavam de 30 a 50 metros. Com o crescimento e formação de novos bairros, como a Campina e o Reduto, as tradições de loteamento mantiveram as dimensões, regra geral e mesmo nos bairros mais novos os lotes pouco aumentaram, principalmente no que diz respeito a sua testada. Com a posse de grandes áreas consideradas suburbanas, novos sítios foram parcelados e o aparecimento de loteamentos fez surgir vilas, passagens e alamedas que contribuíram para as pequenas dimensões dos lotes urbanos. Com o avanço da cidade que passa a se estender até a Primeira Légua Patrimonial no atual bairro do Marco, grandes quadras são planejadas, embora o desmembramento destas quadras acabasse por propiciar o aparecimento de lotes com predominância de pouca largura. Na arquitetura urbana existe um traço bem característico que é a relação desta com o tipo de lote em que está implantada. A arquitetura se adapta melhor às modificações do plano econômico social do que o lote, uma vez que a modificação deste exige em geral alteração do traçado urbano. As cidades brasileiras, em geral seculares, como é o caso de Belém apresentam os seus desenhos fundamentados em antigos preceitos de urbanização, caracterizando, portanto, seus lotes ainda hoje estas marcas. É evidente que, pela anexação de antigos locais tidos como rurais ao corpo urbano, nos dias de hoje passam estes lotes a compor um 200


conjunto com os antigos, criando a falsa impressão à primeira vista, que a variação destes lotes é fruto de soluções da mesma época. O lote, por estar ligado ao desenho urbano, está intimamente ligado à rua. Nas cidades concebidas e construídas no século XX no Brasil é bom notado a relação dos lotes com as vias, como no exemplo de Brasília, cujas superquadras denotam bem a sua relação com os prédios e as vias (REIS FILHO, 1978). 3.1 O LOTE COLONIAL

No período colonial, a nossa arquitetura residencial urbana ocupava lotes com características bem definidas. Tomando como base antigas tradições do urbanismo português, as cidades brasileiras tinham aspecto uniforme, tal como ocorre em Belém, especialmente nos bairros mais antigos (Cidade Velha e Campina), onde as residências ocupam os limites dos lotes com as fachadas no alinhamento das vias, delimitando o traçado das ruas. Não existia jardim, salvo nos fundos dos terrenos, onde os quintais se faziam presentes como áreas livres, até palácios foram construídos no período colonial com suas fachadas no alinhamento das vias. Figura 2: As edificações ocupavam os limites dos lotes

Fonte: Ronaldo Marques de Carvalho (1980).

201


As casas térreas e sobrados, sempre construídos ao nível do chão, originalmente com suas fachadas no alinhamento, demonstravam que as ruas se constituíam num grande passeio onde os veículos da época e os pedestres se misturavam; a ausência do verde nas ruas sempre foi uma constante e o que se tinha era pedra, beiral as esquadrias e paredes. Segundo Reis Filho, “A uniformidade dos terrenos correspondia à uniformidade dos partidos arquitetônicos: as casas eram construídas de modo uniforme e, em certos casos, tal padronização era fixada nas Cartas Régias ou em posturas municipais” (1978, p. 24). Foi durante o século XVII que as posturas municipais portuguesas começaram a fixar para as residências dimensões e números de aberturas, altura dos pavimentos e alinhamento com as edificações vizinhas. Nesta época, tudo o que se fazia continuava sob a égide portuguesa. As casas de um pavimento e os sobrados tinham as mesmas características, sendo que as habitações em lotes de esquina tinham privilégios de apresentar mais de duas fachadas com aberturas. 3.2 O LOTE NO SÉCULO XIX

Até meados de 1800, as cidades brasileiras sofrem influência da transformação da colônia e o intercâmbio do Brasil com outros países, no auge de uma revolução tecnológica e industrial, promove as primeiras manifestações de mudança da tipologia da habitação urbana. Entretanto, as edificações continuam ocupando os limites naturais do lote e o alinhamento das ruas. Mas, a partir da fundação da Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro, passa-se a absorver os padrões menos rígidos relativos à implantação das edificações oriundas de outras nações europeias e tendo como consequência a dissolução de laços rígidos com Portugal. A presença da missão cultural francesa ao Brasil difunde a arquitetura neoclássica, que passa a favorecer as novas concepções e 202


melhores soluções em lotes pequenos e a expansão para os grandes lotes, gerando novos tipos de habitação com jardins laterais, gradis e com a importação de materiais e equipamentos, as habitações ganham nova aparência. Surgem os porões ventilados, pés direitos bastantes elevados, uso de bandeira vazada sobre portas e janelas e o saguão como opção de ventilação e iluminação libera uma lateral do terreno, já se define melhor a adequação ao clima. Aí os beirais passam a ser resguardados por platibandas na fachada principal e os interiores passam a ser valorizados. Na segunda metade do século XIX, ainda sob a influência da missão francesa, predomina o ecletismo e, mesmo as habitações urbanas passam a ser construídas com tijolos e cobertas com telhas tipo Marselha e a mecanização da construção e os operários remunerados se especializam com mestres europeus e muito contribui para os arremates de esquadrias, beirais que facilitaram a adequação da arquitetura ao clima, embora neste momento os lotes passem a ter dimensões mais generosas. As residências libertam-se dos limites do lote, passando a ser locadas no centro do terreno, de modo que as águas do telhado voltam-se às laterais, surgindo os chalés que agora passam a ter o ático ventilado graças ao uso dos “óculos”. 3.3 O LOTE NO SÉCULO XX

Após a 1ª guerra mundial surgem nas cidades brasileiras as grandes residências, alocadas em regiões afastadas do centro, que mesmo durante o século XIX começou a se implantar como consequência de herança de chácaras coloniais, em Belém foram marcantes as rocinhas. Nas cidades começa a preocupação com o tráfego de veículos, fazendo com que a expansão daquelas deem novos rumos ao desenho urbano e o consequente uso do lote para edificações. Mas, devido as exigências 203


ainda se basearem nos antigos preceitos de construir embora usando técnicas novas, persistiu o uso dos limites dos terrenos nas zonas urbanas. Nas cidades com o advento da Art Nouveau passando pelo neocolonial e caminhando ao modernismo, as habitações buscam a libertação dos limites dos lotes levados pela necessidade de exibir suas fachadas, propiciando sempre melhor a adequação ao clima. Até 1950 as habitações passam por uma verdadeira mistura de estilos. O Modernismo se instala no país e em Belém os exemplares existentes até hoje definem bem uma arquitetura de linhas retas, grandes testadas, painéis com poucas aberturas, vigas e pilares de concreto armado, causando grande transtorno quanto à adequação ao clima. De 1950 a 1970, a arquitetura difundida no Brasil e especificamente em Belém, pouco se relaciona com o lote muito menos com o clima tropical úmido. Tanto as habitações unifamiliares como os edifícios de apartamentos começam a ser projetados e construídos segundo influências de uma arquitetura internacional e o uso do concreto, metal, vidro se faz de maneira indiscriminada, em que o exibicionismo tecnológico sobrepuja a simplicidade coerente às condições amazônicas. Mesmo nas cidades planejadas após 1950, as tendências da arquitetura são de uma personalidade pouco coerente com a realidade brasileira e a relação prédio x lote x via, não é compatível com os condicionantes locais. 4. LEGISLAÇÃO QUANTO AO USO DO SOLO URBANO EM BELÉM A Lei Municipal nº 7068 de 28 agosto de 1978 passa a ter nova redação com a Lei nº 7.121 de 28 dezembro de 1979 e o Sistema Normativo do Uso do Solo de Belém passa a ter como objetivo e diretrizes: “A orientação e atuação da prefeitura na tarefa de coordenar as atividades públicas e privadas desenvolvidas no território municipal 204


do modo a garantir ocupações e usos mais adequados através da adoção de instrumentos de controle e avaliação”. O Sistema Normativo do Uso do Solo de Belém é constituído basicamente pelos instrumentos legislativos relativos a: 1 – Organização do Solo Urbano 2 – Urbanização 3 – Edificação 4 - Instalações 5 – Controle do exercício das Funções 6 – Controle Administrativo Entre os objetivos específicos atingidos pelo Sistema Normativo do Uso do Solo, podemos destacar: 1 – Preservar-se as condições do meio ambiente e construído. 2 – Preservar as condições ótimas de conforto e salubridade. Pela legislação em vigor a partir de 1979, os terrenos que apresentassem testada inferior a 8 metros não poderiam ser edificados, já que os afastamentos exigidos para a edificação não permitiriam os objetivos específicos aqui selecionados principalmente o que se refere a condições de conforto e salubridade. Fica estabelecido que os lotes terão que apresentar no mínimo 10 x 25 m, sendo sua forma retangular. Assim, todos e quaisquer lotes com menos de 8 metros seriam considerados estreitos e grande parte dos terrenos a construir ou oriundos de demolição de prédios não poderiam ser edificados. Prendiam-se os legisladores aos condicionantes da arquitetura moderna, que previa a necessidade de circulação de ar e áreas não edificadas nos lotes. 205


Considerando o percentual elevado de terrenos estreitos, na sua maioria com menos de 6 metros, o direito à moradia e ao uso da propriedade privada estava seriamente ameaçado na cidade. A partir de portarias oriundas da municipalidade, vindo ao encontro principalmente dos cidadãos, o terreno estreito passou a ser liberado e a exigência inicial da obrigatoriedade dos afastamentos do prédio em relação aos limites do lote foi desconsiderada e a construção até aos limites do terreno permitida. Com isto, apresenta-se o desafio da adequação do projeto ao clima, tirando-se partido da melhor forma de captação dos ventos e proteção contra a insolação, fazendo com que as dimensões mínimas de um lote não sejam contraditórias em relação as exigências de conforto e salubridade. Só a partir do advento da legislação relativa a loteamentos, estabelecendo lotes com um mínimo de 10 metros de testada é que áreas basicamente urbanas passaram a dispor de terrenos maiores. Entretanto, com o incremento da iniciativa às invasões que atingiram o ápice na década de 80, muitas glebas de propriedade de terceiros foram desapropriadas pelo governo e loteadas para alojamento da população, apresentando geralmente cada lote dimensões de 5 a 6 metros de frente por 25 de fundos. Fica assim autorizada a edificação em lotes pequenos na cidade. Portanto, a proposta de um projeto para terreno estreito é compatível com a realidade da cidade de Belém e converte-se em uma necessidade de exercício de adequação de nossa arquitetura ao clima, levando em conta as condições adversas onde as dimensões mínimas dos terrenos tornam-se um desafio. 5. O PROJETO ARQUITETÔNICO A concepção do projeto, produto final dos estudos desenvolvidos ao longo do curso de especialização em Arquitetura nos Trópicos, 206


contou com a aplicação dos conhecimentos obtidos nos módulos constantes no curso, enfatizando-se o de “Técnicas do Controle Ambiental”, “Metodologia Projetual” e “Teoria da Arquitetura”, ministrados pelos professores Marcio Vilas Boas, Luiz Carlos Chichierchio, Azael Rangel Camargo e Edgar Albuquerque Graeff, respectivamente. 5.1. LOCALIZAÇÃO DO TERRENO E DADOS METEOROLÓGICOS

Localiza-se na Passagem Maria dos Anjos Acatauassú Nunes, situada entre as travessas Almirante Wandenkolk e Dom Romualdo Coelho, no perímetro compreendido entre as avenidas Senador Lemos e Jerônimo Pimentel, no bairro do Umarizal, tendo a referida passagem a largura de 7,00 metros, possuindo todos os serviços infra estruturais básicos. O terreno apresenta como dimensões 6,00 metros de frente com 40 metros de fundos, com forma retangular, possuindo topografia plana, tendo como limites: a) nos fundos – muro de 4,00 metros de altura; b) nas laterais esquerda e direita, residências de um pavimento. No seu entorno, além das edificações limítrofes existem outras habitações de pequeno porte. O terreno, que originalmente é oriundo de baixada, é parte de uma área que há décadas passadas foi ocupado por uma “vacaria”. Por ocasião do loteamento, toda área recebeu aterro de areia e de acordo com amostragens executadas em sondagens em subsolo, apresenta-se com grande quantidade de argila, o que é plenamente justificada pela proximidade desta área da avenida Visconde de Souza Franco, que em épocas passadas foi um dos muitos igarapés de Belém. O lote apresenta-se com sua testada voltada para o quadrante Noroeste, tendo a sua longitudinal a 30ºN.O. Os fundos, pela sua regularidade, volta-se para o S.E., sua lateral direta para o quadrante N.E. e a esquerda para o quadrante S.O. De acordo com os dados levantados pelo Ministério da Aeronáutica e Ministério da Agricultura, 207


a ventilação na cidade de Belém apresenta-se de janeiro a dezembro, com velocidade que vai até 5m/s incidindo sobre a cidade de Belém, sendo que nos meses de janeiro, fevereiro, julho, agosto e dezembro a velocidade é de 3m/s; de março a junho é de 2m/s; setembro e novembro 4m/s somente em outubro atinge 5m/s. Quanto a direção dos ventos a partir das 3 hs da madrugada até o meio dia, provêm do Leste, entre o meio dia e 14horas, em geral, existem uma calmaria e, a partir daí o vento provém do Norte, canalizado pela baía do Marajó. A ventilação da tarde pelo fato de não encontrar obstáculos atinge maior velocidade, ao contrário da matutina que por terra enfrenta obstáculos vegetais e edificações. Pela manhã, a ventilação incide a 110º e pela tarde 10º considerando o eixo Norte/Sul. O lote em questão, de acordo com a sua localização, recebe predominantemente os ventos matutinos na lateral direita e nos fundos e vespertinos na lateral direita e testada. Em relação a lateral direita, os ventos da manhã incidem aproximadamente com 60º e os da tarde 40º. A temperatura da cidade de Belém, de acordo com dados meteorológicos apresenta em média, temperatura mínima de 23ºC e máxima de 33ºC e Umidade relativa do ar média de 80%. De acordo com os dados levantados, o mês de março é o menos insolado e o mês de julho o mais insolado, ficando por conta de junho, julho, agosto e setembro os maiores índices de insolação. Utilizando-se a Carta Solar para Belém, é possível demonstrar que sua testada e a lateral esquerda recebem, durante todo o ano, insolação que começa às 12 hs, estando expostas ao sol no maior tempo de intervalo crítico que vai de 10 às 16 horas. Como em toda a região Amazônica, a cidade de Belém apresenta no mês de março uma precipitação pluviométrica na casa dos 500 mm, sendo que de agosto a novembro as chuvas são mais reduzidas. 208


Os ângulos de incidência que predominam nas chuvas, além do chuvisco em 90º, são 45º e 60º de Leste, sendo que em função do vento geralmente nas chuvas eventuais do Norte/Sul chega a formar até 30º com o solo. Levando em conta a situação do terreno onde será implantado o projeto, observa-se que as chuvas mais frequentes vêm de leste precipitando-se sobre a lateral direita e sobre os fundos. A fachada principal voltada para o Norte sofre poucos efeitos de chuvas que raramente vem deste hemisfério. 5.2 O PROGRAMA DE NECESSIDADES E O PRÉ-DIMENSIONAMENTO

De acordo com as necessidades dos clientes da habitação unifamiliar, destinada ser habitada por um casal que possui duas filhas e uma empregada doméstica, e em contato com os proprietários do futuro imóvel, chegou-se ao seguinte programa e respectivo pré-dimensionamento: Quadro 1: Pré-dimensionamento dos ambientes

Ambientes Sala de Estar Sala de Refeição Cozinha Lavabo Área de serviço Quarto de Empregada W.C. Serviço Dormitório Casal (suíte) Dormitório Filhas (suíte) Estar íntimo Fonte: elaborado pelo autor

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M² 20 15 12 1,5 3 8 2 14,5 14,5 10


Complementam o programa: varandas, garagem para um carro e áreas de integração. A partir do programa de necessidades e respectivo pré-dimensionamento, chegamos aos estudos correspondentes a área total construída e, desta forma, pode-se determinar a implantação do projeto quanto a ocupação do lote. Quadro 2: Áreas totais

Áreas Área do lote Área total edificação Interligações Internas Área Ocupada por Paredes Área Total Construída

M² 240 112,5 11,5 12 136

Fonte: elaborado pelo autor

Considerando que a estas áreas deverão ser acrescidas varandas, áreas livres, jardins, garagem, escada e levado pela necessidade da adequação climática, a ocupação do entorno do lote e à legislação vigente na cidade, opta-se por uma setorização em que social e serviço deverão ocupar o pavimento térreo, destinando-se ao setor íntimo o pavimento superior com um a dois níveis. Após setorização e já analisados os condicionantes do projeto, concluímos que, quanto ao sol, vento e chuva, a disposição dos setores seria:

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Figura 3: Setores do projeto

Fonte: Carvalho (1986, p. 70).

Em função das dimensões do terreno, principalmente no que concerne à largura, o estudo do partido geral priorizará a aeração no projeto, principalmente no que diz respeito à captação da ventilação predominante, uma vez que a utilização de elementos vegetais é 211


restrita. Assim, o combate ao excesso de insolação deverá ser atingido por meio do uso de beirais. O aproveitamento da ventilação também será maximizado partindo-se da concepção com “ventilação cruzada”, tirando partido de aberturas e detalhes arquitetônicos concebidos no projeto. Nesse sentido, foram realizados esboços formatando partidos gerais em que os setores social e o serviço formam um bloco, o setor íntimo um segundo pavimento e define-se então um terceiro piso destinado a um especial escritório. Após a análise das necessidades e condicionantes foram definidos os setores: social, íntimo e serviço, além de um especial (escritório). Figuras 4 e 5: Estudos nº 1 e nº 2

Fonte: Carvalho (1986, p. 73-74).

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Figura 6: Estudo nº 3

Fonte: Carvalho (1986, p. 75).

Escolhendo o partido 3 como o mais adequado em função dos condicionantes gerais estudados (aproveitamento de espaço, conforto ambiental e legislação), iniciamos os estudos, levando às primeiras 213


concepções do projeto configurando-se plantas e elevações em forma de esboço. No nível 1 foram alocados os ambientes destinados aos setores social e de serviço da casa. Entre os espaços social e serviço existem áreas de interligação que se caracterizam em apresentar espaços laterais que propiciarão um movimento de ar no interior. No ambiente destinado ao jantar e acesso aos níveis superiores foi criado um volume vazado com pé direito duplo que promoverá ventilação ascendente, considerando-se que o nível 2 (mezanino), onde se localiza o escritório, ocupa um volume construído de pequeno porte. Chegando-se ao nível 3, que conterá apenas os dormitórios com varandas, os banheiros e o hall em piso de madeira com 0,5 cm de afastamento, complementa-se a boa aeração, mantendo-se as ilhas de ventilação emanadas do pavimento térreo e no teto deste volume central, um forro vazado em madeira, que retirará o ar quente do ático e permitirá que, através de elementos vazados, também o ar quente proveniente da carga térmica das telhas seja expulso. A criação do setor íntimo no nível 3 prende-se ao fato de que as edificações existentes nos limites laterais do terreno impedem a livre circulação dos ventos até uma altura de 4 metros, com isso a liberação de 3 paredes dos dormitórios os beneficia, bem como a altura. A composição dos volumes da construção propicia aos níveis 1 e 2 maior liberdade principalmente quanto a iluminação e ventilação natural. Os efeitos do sol e da chuva e o aproveitamento dos ventos, analisados previamente à concepção final da proposta, justificam os detalhes de paredes cegas nos limites, dando ênfase para o poente, de esquadrias em madeira e os elementos vazados em pisos e forros. Paralelamente à concepção final vão sendo estudados os efeitos do sol, chuva e aproveitamento dos ventos, que são demonstrados, gerando os detalhes e explicitando a funcionalidade dos espaços.

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Figuras 7, 8, 9, 10: Plantas e cobertura

Fonte: Carvalho (1986, p. 77-80).

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Figura 11: Fachadas

Fonte: Carvalho (1986, p. 81) Figura 12: Elevação lateral direita

Fonte: Carvalho (1986, p. 82)

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Figura 13: Corte AA’

Fonte: Carvalho (1986, p. 84)

5.3 ANÁLISE DO PROJETO SEGUNDO A CARTA SOLAR

Por ocasião da análise da insolação na cidade de Belém e estudo neste momento, as incidências relativas ao lote no qual se implanta o projeto foram verificadas através do uso da carta solar. O estudo de insolação em todas as fachadas foi efetuado utilizando-se como meio de análise no terreno um prisma retangular, cuja base coincide com a área total do terreno. Diante destes estudos, ainda utilizando a carta solar para efeito de orientação do movimento do sol e com a ajuda de um modelo em volume, foi representada a pré-proposta do projeto, sendo analisada por meio de fotografias e, posteriormente, através de análise de contornos gráficos em planta, uma comprovação preliminar dos efeitos do sol durante o ano todo. Este estudo foi desenvolvido tomando as fotografias e a posterior silhueta em planta no horário das 15:00 horas, o que vem implicar por relacionamento simétrico: o inverno para as 9:00 horas, ou seja, a fachada insolada voltada na experiência para o poente estaria às 9:00 horas sombreada.

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Figura 14: Estudo de mascaramento das fachadas

Fonte: Carvalho (1986, p. 91)

Nas fotografias anexas e nos contornos gráficos pode-se constatar a insolação durante o ano. Demonstra-se que as fachadas frontal e lateral esquerda serão fortemente insoladas, sendo que a lateral direita nunca será insolada pela parte da tarde e a posterior sofrerá pequena insolação no intervalo crítico de 9:00 às 15:00 horas, recebendo somente 218


nos meses de outubro, novembro, dezembro, janeiro e fevereiro a insolação até as primeiras horas vespertinas, nunca ultrapassando das 15:00 horas. Figura 15: Maquetes com demonstração da incidência solar

Fonte: Carvalho (1986, p. 88) Figura 16: Estudo de insolação do poente

Fonte: Carvalho (1986, p. 89)

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De posse desta primeira análise da pré-proposta passa-se para os estudos gráficos experimentais que indicarão como serão propostos os elementos que propiciarão a proteção contra a incidência do sol. É bom observar que estes estudos têm implicação também quanto a captação dos ventos e a incidência da chuva. Tomando como base a ideia preliminar da cobertura parte-se para os primeiros estudos gráficos de mascaramento desta, relativo aos beirais, considerando aqueles que protegerão o nível 3 do projeto relativo aos dormitórios. Outro beiral selecionado para estudo corresponde ao bloco posterior da residência, levando em conta que esta, conforme análise anterior, será insolada em alguns períodos pela parte da tarde, implicando num exercício para proteção. Os outros beirais, como o da fachada frontal, por exemplo, não merecem aqui o estudo de mascaramento, uma vez que neste caso a garagem proposta, que se estende ao limite frontal do lote, funcionará também como uma grande varanda que antecede a sala de estar. As fachadas laterais, com exceção do trecho correspondente a cobertura dos dormitórios, não foram consideradas para efeito de mascaramento, uma vez que grande parte destas, levado pelo próprio condicionamento do lote, apresentam-se com “paredes cegas”. Nos mascaramentos foram considerados apenas os aspectos relativos à proteção horizontal, já que neste projeto o lote estreito que já sofre influência das construções limítrofes laterais não seria aconselhável a locação de elementos verticais, que prejudicariam a ventilação. Contudo, se utiliza recursos relativos a elementos vazados e venezianas entre outros, porém em áreas onde serão continuidade das paredes e jamais nas varandas e na garagem, que precisam funcionar como espaços cobertos livres de obstáculos verticais, levando em conta de que o projeto está sendo implantado em terreno de dimensões não generosas. 220


No mascaramento das fachadas frontal e lateral esquerda dos dormitórios, foi previsto inicialmente o combate à insolação até às 16:00 horas, mas, de acordo com a graficação, verificou-se que ter-se-ia que projetar beirais maiores dando-se com isto proteção total à própria varanda e a partir então daí, outro mascaramento foi estudado considerando a incidência só a partir das 15:00 horas, que implicaria numa menor proteção da varanda porém sem prejudicar o dormitório. No mascaramento do bloco posterior referente ao setor de serviço foi pensada incialmente a proteção a partir das 9:00 horas, o que implicaria em beirais exageradamente grandes e considerando-se as características da insolação matutina e a necessidade de alguma captação pela parte da manhã, partiu-se para a proposta final de proteger a partir da 11:20 horas o que gerou um beiral de 85 cm. 5.4 EFEITOS DOS VENTOS E DAS CHUVAS NO PROJETO Figura 17: Incidência da ventilação

Fonte: Carvalho (1986, p. 100).

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Conforme o estudo de incidência da ventilação sobre o lote, procurou-se resolver o projeto de maneira que a ventilação predominante de Leste e do Norte circule através dos ambientes, passando pelas áreas livres a fachada lateral direita que são maiores que a da lateral esquerda, fazendo com o que os ventos tenham acesso aos diferentes níveis e cruzem os ambientes abertos saindo pela outra lateral. Para conseguir este efeito criou-se obstáculos que permitem o direcionamento do vento atravessando os ambientes. A criação do volume com pé direito duplo proporciona um deslocamento de ar no sentido ascendente, levando em conta os elementos horizontais vazados (piso e forro). A ventilação através dos áticos é permitida considerando-se que tanto no bloco central como nos frontais e posterior haverá comunicação através de elementos vazados. O posicionamento privilegiado dos dormitórios permite pelos afastamentos, pela altura, varandas e esquadrias, uma boa aeração. A incidência da chuva sobre a habitação proposta, conforme análise realizada, se faz sobre as fachadas lateral direita e posterior. A maior preocupação relativa à chuva implica em garantir a boa aeração dos ambientes mesmo durante a vigência pluvial. Para isto, a proteção das esquadrias é conseguida com recuos em relação às paredes, através de beirais e as varandas que complementam os dormitórios. O pavimento inferior terá a proteção das habitações vizinhas, embora os detalhes previstos no projeto criem independentemente boa proteção. Os elementos que permitem aeração dos áticos e dos ambientes do pavimento térreo sendo tijolo de boca, permitem uma certa melhoria quanto a impenetrabilidade da chuva. Com o estudo de forros aparentes e vazados e a possibilidade de algumas portas e janelas permanecerem abertas durante a chuva, consegue-se um satisfatório conforto térmico nos ambientes. A utilização do beiral quebra-chuva/quebra-sol permite que se consiga também o conforto proposto. 222


5.5 ESPECIFICAÇÕES E DETALHES DE COBERTURA

Toda a cobertura será em estrutura de madeira de lei, apoiada nas extremidades sobre as paredes e pilaretes de concreto, sendo que os apoios intermediários serão em castelos de alvenaria repousados sobre a laje e onde não houver laje, as peças serão especificadas em bitolas que resistam ao vão máximo de 6 metros, considerando que as águas propostas no projeto não serão superiores a 3 metros de apoio a apoio. O madeiramento será em maçaranduba nas cumeeiras, terças e frechais e nas estruturas referentes às treliças dos beirais das varandas superiores. Os caibros serão de piquiá e as ripas, onde houver, de pau-amarelo. A estrutura de telhado aparente referente a garagem a às varandas constitui-se de caibros espaçados de tal maneira que o canal fique apoiado no sentido longitudinal. Será utilizada a telha cerâmica tipo capa/canal regional em toda a cobertura. A cobertura do prédio apresenta-se como elemento de proteção de 3 blocos: Acesso-social, serviço e íntimo. No acesso-social foram criados 2 módulos de 2 águas cada, havendo uma integração entre eles través de uma calha de concreto. Entre os apoios das extremidades das águas serão assentados tijolos de topo que ocasionarão a ventilação do ático sobre a laje da sala de estar e mesmo na garagem sem forro. No bloco de serviço, também constituído de cobertura em duas águas, tendo uma parte forrada e outra aparente, o tijolo de topo permite a boa aeração e serão assentados dentro da mesma linha do bloco 1. No bloco central também será utilizado o tijolo de topo, inclusive permitindo uma continuidade dos 3 áticos condicionando uma boa renovação de ar que culmina com o forro vazado no eixão vertical do bloco.

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Figura 18: Detalhes de cobertura

Fonte: Carvalho (1986, p. 108-109)

5.6 ESQUADRIAS

As esquadrias serão projetadas de modo a permitir boa iluminação e aeração. As janelas terão 70% de venezianas, sendo 50% na parte de baixo e 20% na parte superior, sendo que entre os dois panos de venezianas haverá 30% de vidro. As portas internas terão bandeiras superiores em venezianas horizontais e na folha 30%; na sua parte inferior será em veneziana a 30% e a parte superior em madeira maciça. Nas esquadrias internas será utilizando o mogno e nas externas e áreas molhadas a sucupira. A intenção de, nas janelas, se utilizar o vidro sempre numa posição intermediária tendendo para cima, é levado pela necessidade de circulação do ar nos ambientes e a redução de carga térmica nestes, proveniente da incidência dos raios solares sobre as fachadas. Todos 224


os vidros utilizados nas esquadrias serão especificados de maneira a não devassar os ambientes. Receberá tratamento especial a janela do escritório e dos dormitórios voltados para o nascente, que será protegida por um nicho em lâmina de concreto. Figura 19: Esquadrias

Fonte: Carvalho (1986, p 111)

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5.7 ELEMENTOS VAZADOS E FORRO

Os elementos vazados considerados no projeto dizem respeito ao tijolo de topo ou de boca, chanfrados, comporão painéis voltados para o interior dos ambientes como também na parte superior dos forros, objetivando a ventilação. Deve-se cuidar para que, na aplicação do tijolo de topo, sua face externa obtenha ângulo oblíquo em relação à parede, a fim de impedir a penetração da chuva no ático. Figura 20: Tijolos de Boca

Fonte: Carvalho (1986, p 112).

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Apresenta tratamento especial o forro do volume central, sobre o hall que leva o térreo aos 2°e 3º níveis, sendo que ele se apresenta vazado no centro, com uma estrutura em tronco de pirâmide arrematado com lambris com 10cm de largura, aplicados de formas alternadas no centro, contribuindo com um bom efeito estético e propiciando a boa aeração dos ambientes e do bloco central. Figura 21: Detalhe do forro do Hall

Fonte: Carvalho (1986, p 113)

5.8 PISO

Os pisos serão executados em lajota no 1º nível, no mezanino e nos ambientes molhados, sendo que o piso do hall do nível 3 será estruturado em concreto revestido com tábuas em angelim rajado. Nos dormitórios será utilizada tábua corrida em pau-amarelo, assentada sobre a laje. A escada será construída em concreto e terá o piso revestido em pau-amarelo. 227


Figura 22: Estrutura do piso

Fonte: Carvalho (1986, p 114).

5.9 ESTRUTURAS E PROTEÇÃO DE PAREDES

Todo o prédio será estabilizado em concreto, desde as fundações em blocos sobre estacas de madeira até os pilares, vigas, lajes e calhas que muito facilitarão quanto a flexibilidade das divisões dos ambientes. Os elementos estruturais em concreto serão dimensionados de acordo com as bitolas, em função dos esforços calculados, com acabamento em concreto aparente, principalmente nas vigas e pilares. Todos os elementos de concreto serão produzidos na própria obra utilizando na sua confecção formas de madeira, sendo que as paredes apresentarão revestimentos internos. As paredes internas serão tratadas de acordo com as especificações anexas e as paredes cegas nos limites do terreno terão tratamento

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para evitar infiltrações e reduzir a transmissão de calor para dentro da habitação. As paredes laterais correspondentes ao nível 1 (sala de estar e o setor de serviço) por estarem nos limites do terreno interfaciando com as paredes do prédio vizinho, estarão protegidas da insolação; entretanto, os efeitos relativos à infiltração só poderão ser combatidos com o capeamento superior com telha de barro canal. Nos painéis relativos aos dormitórios indo destes até o pavimento térreo se procederá o revestimento em lajotas cerâmicas na sua parte externa, protegendo contra os efeitos da umidade e da insolação, reduzindo principalmente a carga térmica exterior que através da condução prejudicaria o conforto térmico dos dormitórios. 6. COMENTÁRIOS CONCLUSIVOS Durante uma imensidão de tempo, muito lenta e gradativamente, todo mundo vivo diversificou-se na extraordinária variedade de seres que habitaram ou habitam a Terra, cada um deles adaptando-se a um tipo peculiar de existência, a vida de uns dependendo da vida dos demais, em um inter-relacionamento extremamente complexo, uma verdadeira teia biológica no qual cada organismo interage com os demais e com o habitat, formando ecossistemas em que, de alguma forma, todos dependem de todos (CÂMARA, 1985). O crescimento descontrolado da humanidade e de seu poder de interferir na natureza levaram a biosfera à crise ambiental contemporânea que se traduz pela rápida destruição de ecossistemas inteiros, desequilíbrio ecológico, devastação florestal, desertificação, extinção acelerada de plantas e animais, eliminação de solos agriculturáveis e poluição do ar, da terra e das águas. No Brasil, como também ocorre na grande maioria dos países em desenvolvimento, a crise ambiental assume proporções gigantescas. 229


Temos, é verdade, uma legislação razoavelmente adequada para a defesa das condições ambientais. Não obstante, observa-se facilmente em todo país que nosso desenvolvimento está sendo feito a um custo ecológico altíssimo, motivado pela impossibilidade dos órgãos governamentais responsáveis exercerem um mínimo satisfatório de controle e de fiscalização do cumprimento das disposições legais, pela falta de sensibilidade da população para os problemas ecológicos e sua gravidade, pela ignorância quase generalizada da legislação e, principalmente, pela busca de lucros fáceis, a curto prazo, sem qualquer preocupação com o uso racional dos recursos naturais e sua preservação para o presente e futuro. O Homem acha-se diante de uma crise ecológica. Esta crise desenvolveu-se como consequência do crescimento desenfreado da população. Ela não apenas ameaça novas chances de encontrar um padrão adequado de vida para a atual população mundial, como também ameaça as nossas expectativas de continuar existindo como uma espécie. Os sinais de advertência dessa crise aparecem em problemas específicos tais como o desequilíbrio entre a produção de alimentos e o crescimento da população, a redução da produtividade de grandes áreas de terra e água devido modificação climática quer regional ou global, como resultado das atividades urbanas e práticas agrícolas, a destruição da vida selvagem e a perturbação de comunidades bióticas, e o crescente número de pragas e organismos daninhos (ARAÚJO NETO, 1985, p. 2).

A concepção de uma Arquitetura ecologicamente amazônica requer a fuga de projetos inadaptáveis ao clima tropical, que causam problemas de higiene, saúde, bem-estar, que nem sempre são percebidos pelos usuários ou proprietários, que pensam em desfrutar de uma casa “moderna” ou “funcional”, como erroneamente julgam, porque o moderno nem sempre coincide com o funcional e nem o 230


funcional se expressa daquela maneira no clima quente e úmido do trópico amazônico. Muitos fatores socioculturais, econômicos e históricos têm contribuído para a constância destes problemas. Entretanto, em suas raízes está a crescente exploração dos recursos naturais pelo Homem e sua ignorância acerca dos processos naturais que são afetados por esta exploração. Os terrenos estreitos na cidade de Belém existem em decorrência de um processo cultural emanado principalmente dos nossos colonizadores. As soluções voltadas para a habitação pouco ou quase nada refletem da cultura de civilizações nativas, salvo soluções empíricas, regra geral, a tipologia rural. As construções em lotes estreitos, quando apresentam bons resultados ainda se deve às habitações que adotam soluções europeias que aos poucos foram evoluindo ao ponto de criar detalhes que levaram a melhor adequação ambiental, a partir do emprego de materiais e tecnologias locais. As soluções para habitação em terrenos estreitos baseadas em projetos sem o devido conhecimento da climatologia do trópico úmido e a consequente conscientização de que a arquitetura é um reflexo de um habitat maior regional, tem gerado inadequações. Entretanto, a busca de soluções naturais através de uma tecnologia e aproveitamento de materiais regionais e também importados, expressos em detalhes, nas áreas livres, dos elementos vazados e nas coberturas é fundamental. Com estas soluções é possível usufruir da ventilação, protegendo da chuva e combatendo a insolação e a aproveitando quando necessário. Tais elementos permitirão ao arquiteto conceber uma arquitetura equatorial que se assentará de maneira satisfatória mesmo em lotes de dimensões reduzidas. E assim, sempre aprofundando estudos se poderá chegar a adequação, seja em que espaço disponível for, a uma arquitetura do trópico úmido, a uma Arquitetura Amazônica.

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REFERÊNCIAS ARAUJO NETO, Mario Diniz de. A Ecologia e a Crise ambiental. Brasília: UNB, 1985. CÂMARA, Ibsen. O Problema Ecológico no Brasil. Brasília: UNB, 1985. CARVALHO, Benjamin de Araújo. A História da Arquitetura. Rio de Janeiro: Tecnoprint Gráfica S.A, 1967. CARVALHO, Ronaldo N. F. Marques de. Proposta para uma habitação a ser implantada em terreno estreito na cidade úmida Belém do Pará. 1986. Monografia (Especialização em Arquitetura nos Trópicos) – Departamento de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do Pará, Belém, 1986. CRUZ, Ernesto. As edificações de Belém. Belém: Conselho Estadual de Cultura, 1971. FONSECA, Marçal Ribeiro da. Desenho Solar. Bahia: Projeto Editores Associados, 1982. IZARD, Jean-Louis. Arquitetura Bioclimática. Barcelona: Gustavo Gilli, 1983. REIS FILHO, Nestor Goulart. Quadro da Arquitetura no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1970. TOCANTINS, Leandro. Santa Maria de Belém do Grão-Pará. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976. 232


O CHALÉ DE ANTONIO LEMOS EMTRÊS DIMENSÕES: memória, criptohistória e reabilitação paisagística Cybelle Salvador Miranda Rony Helder Nogueira Cordeiro Flavia G. Marques de Carvalho

1. O SÍTIO DE LEMOS NO PRESENTE

O estudo de um exemplar de chalé desaparecido nos conduz a descobertas acerca dos modos de morar na Belle Epoque paraense, sendo seu proprietário o Intendente Antonio Lemos, o personagem principal na política local da época. Neste imóvel, tombado pelo Estado do Pará em 1999 devido a significância da memória do seu antigo proprietário, revela mais valores que necessitam ser conhecidos. Um deles situa-se na transferência de tecnologia das construções metálicas exemplificada pela fachada da vivenda, e outro na significância do jardim como representante histórico, cujos mosaicos embrechados configuram uma técnica adotada nos jardins pitorescos do romantismo. Na sondagem realizada com moradores do entorno, realizada em 2017, detectou-se o desconhecimento acerca do espaço e de sua relevância histórica, de modo que a proposta de intervenção no jardim tem por intuito propiciar a utilização deste por um público mais alargado, contribuindo para seu reconhecimento pela população. Desde sua chegada à Belém, Lemos mostrou grande afeição pela cidade, logo que assumiu a direção dos negócios do município, em 1897, procurando ornar e urbanizar a cidade, que até então pouco 233


havia progredido, implementando projetos que a remodelaram não apenas em parâmetros estruturais, como também no cotidiano dos cidadãos. Em 1912, com a queda da cotação da borracha amazônica e, consequentemente, a redução dos lucros arrecadados, desacelera-se o ritmo de crescimento da cidade e Belém deixa de ser a capital referência do país. A administração de Lemos começa a sofrer restrições no orçamento, dificultando seu governo. Mais tarde, o intendente é deposto por seus adversários políticos, e no dia 29 de agosto, tem seu palacete residencial incendiado (SARGES, 2002). Na Linha do tempo pode-se acompanhar o processo de transferência de propriedade do imóvel ao longo do século XX. Figura 1: Linha do tempo dos proprietários dos terrenos do Chalé de Lemos

Fonte: elaborado por Raíssa Araújo (2020)

2. O CHALÉ DE ANTONIO JOSÉ DE LEMOS O tipo Chalé foi um representante muito adotado nas construções residenciais de finais do século XIX e início do século XX em Belém, sendo construídos em alvenaria e taipa, ou na técnica mista 234


de ferro e alvenaria, incorporando alguns novos conceitos, como a pré-fabricação, a produção em série e a padronização. Tais exemplares em ferro eram importados a partir de catálogos, sendo seus fornecedores situados nos Estados Unidos da América e na Europa, mais especificamente da Grã-Bretanha e França (SILVA, 2019). Como um desses exemplares, o Chalé de Lemos foi construído para servir de residência ao Intendente e sua família; porém, conforme aduz Sarges (2002), também era, para ele, uma extensão de sua intendência, de maneira que recebia lá tanto eleitores, autoridades e correligionários, como a população em geral. O sítio de sua construção está localizado na Avenida Gentil Bittencourt, 418, entre as Travessas Dr. Morais e Benjamim Constant, na área de entorno do Centro Histórico da cidade de Belém. A edificação evidenciava-se por sua fachada em ferro, exemplar misto e raro mesmo na sua época. Figura 2: Chalé de ferro pertencente a Antonio José de Lemos

Fonte: Acervo Fórum Landi, s.d.

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Na foto acima, observa-se a frente avarandada, com a construção dum alpendre, peça originada nos bangalôs rurais indianos, cuja principal funcionalidade era oferecer proteção climática. Foi incorporado pelos ingleses na fabricação dos chalés de ferro e difundido mundialmente, principalmente para países de clima tropical, cumprindo a mesma finalidade de abrigo das chuvas e atenuação dos raios de sol para os moradores e o prédio em si. No caso específico de Lemos, o alpendre destinava-se também ao lazer, às recepções de visitantes e às reuniões. Ainda é possível observar que o Chalé era cercado por um imenso jardim de árvores frutíferas de grande porte, bem conservado e com clima bucólico, assemelhando-se ao tipo rocinha15. O Chalé de Antonio Lemos não sobreviveu ao tempo, e os últimos registros fotográficos do que foi a sua residência foram feitos logo após seu assolamento. Nas fotos abaixo, em primeiro plano, é possível observar que apenas o pórtico em ferro e a parte da alvenaria da fachada principal restaram em pé. Todo o restante foi consumido pelo fogo; e os objetos de valor e as obras de artes de seu interior, saqueadas. A destruição do chalé foi ocasionada por uma revolta popular planejada por adversários políticos do Intendente no ano de 1912. Desafortunadamente, não se sabe o paradeiro do pórtico em ferro, o que poderia auxiliar na identificação da fábrica e país de origem.

15 Rocinhas foram casas suburbanas construídas em Belém, entre os séculos XVIII e XIX, caracterizado por um ambiente bucólico e cercado de árvores silvestres e frutíferas em grandes lotes de terra, localizados fora dos limites da cidade e semelhantes a uma casa de campo ou um sítio. Ver SOARES, Roberto de La Rocque. Vivendas Rurais do Pará Rocinhas e outras (do século XIX ao XX). Belém: Fundação Cultural do Município de Belém, 1996.

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Figuras 3 e 4: Ruínas do chalé de ferro de Antonio Lemos

Fonte: Rocque, C. (1996, p. 374-375). Figuras 5 e 6: Sala na residência de Lemos, com objetos de arte de sua coleção

Fonte: Acervo do Fórum Landi, s.d.

Avalia-se que o estudo do património desaparecido ou fragmentado no tempo traz alguns desafios, entre eles, a impossibilidade de estudo e investigação in loco e, ainda, a escassez de registros e documentos historiográficos. Ao que tudo indica, esse tipo de arquitetura em ferro já era raríssima para a sua época, como se evidencia no anúncio de venda dum chalé de ferro em Belém publicado no jornal O Democrata, de 7 de julho de 1893 (edição 151, p. 3), que assim descreve seus compartimentos: “Tres compartimentos inferiores, dois quartos em seguida ao chalet, e tres ditos no pavimento superior, 237


além da cosinha, sentina e banheiro, edificado com esmero artístico e bastante silidez”. Quanto à memória e à conservação patrimonial da arte, mais especificamente o patrimônio desaparecido ou mutilado pelas mais diversas razões, Vítor Serrão (2001) ensina que isso não desvaloriza sua importância histórica, sendo tema de estudo da cripto-história da arte, explicando tratar-se dum conceito operativo aplicado a uma longa prática desenvolvida no contexto da historiografia da arte que sempre intuiu, no processo de suas investigações, a importância capital de algumas obras perdidas, no plano ideológico, iconológico, técnico-construtivo e estético, de forma a promover sua caracterização histórica, artística, cultural e estilística dos vários tempos. Serrão (2017) defende que ignorar a análise destes monumentos e obras de arte, total ou parcialmente desaparecidos ou fragmentados, mesmo aqueles acervos reduzidos a mero projeto idealizado, preocupando-se apenas com o património remanescente e esquecendo as perdas verificadas ao longo do tempo, restrinjirá a definição de panoramas de conjunto, capazes de caracterizar linhas evolutivas e estilemas distintivos. Faltará sempre uma base comparativa suficientemente ampla, apta a iluminar as realidades da produção artísticas em qualquer período histórico, território geográfico ou contexto. Há que se apresentar a memória e o testemunho daquele que, por motivo ou outro, já desapareceu sem que, por isso, deixe de compor um tecido que demanda ser reconstituído como testemunho integral de identidades. Assim, o conceito de fragmento assume uma importância maior sob essa perspectiva, pois permite a sua análise, de forma a trazer luz sobre os momentos de totalidade dos objetos em estudo e movimentos de mudança no contexto das cidades. Serrão classifica quatro tipos de análises para a reconstituição de materiais perdidos no tempo, ainda que teoricamente, como forma de recuperar a vivência do objeto e de todas as manifestações causadas 238


por esse património: criptanálise, dedução, reconstituição e incriação. Para o Chalé em estudo, podem-se adotar pelo menos duas dessas análises, a criptanálise e a dedução. Esta consiste em comprovar os fatos encontrados que na maioria das vezes carecem de fontes comprobatórias, valendo-se duma reflexão profunda sobre eles guiada por outras determinantes com comprovação, permitindo a etapa da dedução, feita a partir de um diálogo entre as fontes. Serrão valida a análise do chalé através de suas cicatrizes e fragmentos, como os vestígios da fundação original, de maneira que se podem identificar as dimensões e, ainda, a tipologia e o sistema construtivo. Voltando-se ao sítio original da residência de Lemos, lá se encontram construídas duas edificações remanescentes, em arquitetura eclética: uma localizada à esquerda da entrada principal, considerando-se a perspetiva da Avenida Gentil Bittencourt, onde funciona desde 1960 a sede estadual da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE); e a outra, de menor porte, localizada à direita aos fundos do terreno, também do mesmo proprietário, a qual se utiliza como sala para pequenos treinamentos e cursos em pesquisas estatísticas. Ambas são construúdas com vedações em alvenaria de tijolos, com argamassa de cimento e areia, pisos em madeira e ladrilho hidráulico, vigamento dos telhados, forros, portas e janelas em madeira e telhas de barro. Com base em monografias e trabalhos acadêmicos sobre a antiga residência e, ainda, em informações constantes na escritura pública do imóvel e documentos oficiais da Companhia de Desenvolvimento e Administração da Área Metropolitana de Belém (CODEM), foi possível iniciar a investigação do objeto, partindo-se da hipótese de que os dois prédios remanescentes tivessem sido construídos após a destruição do chalé. Posteriormente, com o avanço dos estudos, essa hipótese mostrou-se inconsistente. 239


Os registos oficiais16 citam que, em 26 de junho de 1917, a Sra. Inês Maria de Lemos, viúva de Antonio José de Lemos, falecido em 2 de outubro de 1913, fez o repasse do terreno, que continha edificações em ruínas, à Firma Comercial Berringer & Companhia. Por sua vez, essa firma vendeu-os ao Sr. Fortunato José de Oliveira, na mesma condição, em 15 de fevereiro de 1919. Como o termo ruína está especificado no documento, ocorreria o entendimento equivocado de que não haveria outros imóveis no sítio. Imaginava-se que este proprietário, o Sr. Fortunato provavelmente seria o responsável pela futura construção dos prédios existentes atualmente já que, quando o repassou ao Sr. Arthur Ferreira de Oliveira em 26 de janeiro de 1934, o terreno já se encontrava edificado, conforme é citado em documentos da CODEM. Entretanto, essa hipótese logo se mostrou falsa devido à localização de registro fotográfico da época em que o chalé e suas duas edificações anexas aparecem lado a lado. Ainda se pode deduzir da imagem dessa fotografia, comparando-a com os prédios em seu estado hodierno, que o maior recebeu ampliações e reformas ao longo do tempo, de forma que sua fachada foi modificada, mas que a edícula preservou suas linhas originais. A foto abaixo, sem registro de data, mas com possibilidade de remontar ao início do século XX, já apresentava os três volumes edificados. Ao lado direito da entrada principal, está o chalé com sua fachada principal em destaque, composta dum pórtico em ferro, de dois arcos laterais menores e dum grande arco frontal, que cobre a varanda, com guarda-corpo também em ferro, todos suportados por colunas do mesmo material, ao passo que paredes internas provavelmente foram construídas em alvenaria de tijolo. Logo atrás, no terreno, observa-se um telhado com telhas tipo capa/canal, ponto de cobertura dum prédio menor (anexo), construído 16 Documento oficial obtido junto a Companhia de Desenvolvimento e administração da área metropolitana de Belém – CODEM – órgão vinculado à Prefeitura da Cidade.

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em alvenaria de tijolo e composto dum único ambiente. Do lado esquerdo, em frente a uma gruta localizada no jardim frontal, percebe-se uma edificação com platibanda de linhas ecléticas. Figura 7: Fachada principal da residência de Antonio José de Lemos

Fonte: Acervo do Fórum Landi.

Desmistificado o equívoco, ainda importava desvendar se as duas construções eram anteriores ou contemporâneas ao Chalé de Lemos. Com o avanço da investigação, deduziu-se que os dois prédios, apesar de não terem registros de sua origem, já existiam antes mesmo da construção do chalé. Registros oficiais do acervo de património fundiário da CODEM citam o transpasse de dois terrenos na Avenida Gentil Bittencourt, 32 e 77, atual 418, este último à esquina da Travessa Doutor Moraes, datado de 13 de fevereiro de 1906, em nome do Senador Antonio José de Lemos. Acreditava-se que os terrenos não teriam sido edificados até esta data, o chalé teria sido a primeira edificação construída no sítio; entretanto, um anúncio do Jornal A República, de 19/3/1893 (ed. 241


00886, p. 3), citava o leilão de duas casas à Estrada da Constituição (atual Av. Gentil Bittencourt), canto com a travessa Dr. Moraes, ou seja, mesma referência, e frente com a Villa Mac Dowell. Em razão da coincidência de localização, pode-se supor que ambas as casas preexistiam à construção do chalé de ferro, mas o que confirma de fato essa hipótese é um documento encontrado no processo de apelação à ação ordinária de indenização contra o Estado dos danos causados ao património de Antonio José de Lemos e sua esposa Ignez Maria de Lemos, pela revolta popular que se instalou, culminando na destruição do chalé e saque de objetos. Nele, há um documento, escrito na cidade do Rio de Janeiro, datado de 20 de janeiro de 1913 e assinado pelo próprio Lemos, que detalha minuciosamente os imóveis e os bens pertencentes ao Intendente e refere-se à casa de vivenda. O processo de apelação, arquivado na íntegra no Centro de Memória da Amazônia, é indubitavelmente o documento mais importante sobre o chalé e as edificações remanescentes, que mencionam os imóveis, seus usos e, por consequência, o faustoso estilo de vida das elites belenenses na passagem do século XIX para o século XX. Casa de vivenda No terreno havia três corpos de construcção assobradada. Prédio recentemente reconstruído, situado à Avenida Gentil Bittencourt. sob nsº 30 e 32, que tinham as duas antigas casas convertidas numa só com a reconstrução, contendo ao lado direito à entrada, 3 salas; aposentos para dormitorio, vestuario e toilette; sala para banhos e (sentinas) water-clause com as respectivas installações; dependencia para deposito de viveres e vinhos; e, em seguida, completamente isolados salão destinado à bibliothéca, garage pª carros de luxo, etc. Do lado esquerdo à entrada: sala que era ocupada pela Secretaria do Comando Superior da Guarda Nacional, vasto compartimento para cosinha e dispensa com passadiço, coberto de telhas de vidro, para o salão de jantar; aposentos para dormitorio. O prédio achava-se isolado por jardins, que, além de plenamente cultivados, continham repuchos, caramanchoes, 242


latadas, uma gruta, (de cimento) um pavilhão para música, etc. Na parte inferior do prédio, arvores frutiferas, lavanderia, xxxx xxxx da cosinha, galinheiro, horta, compartimentos para banheiro, (sentinas) water-clause do pessoal empregado, etc. O prédio continha o seguinte: estraordinário numero de objectos artistícos em ouro, prata, bronze, mármore, alabrastro; telas de pintores notáveis, quadros históricos, bustos e estatuêtas em bronze, mármore de carrara, terra-côta e biscuit; brilhantes e outras pedras preciosas em obras, medalhas históricas, relogios de algibeira; comfim, notável número de coisas, com variadissima applicação, recebida em presentes e acumuladas durante mais de 20 annos......... Mobiliário de luxo para 3 salas e os diversos aposentos e compartimentos, inclusive candieiros com lampadas electricas, ventiladores, asionados por corrente electrica, tapetes, camas, objectos de escriptório, etc. Roupas diversas para uso......... Roupa para cama, colchas de sêda e outras, sêdas finas, toalhas e garda-napos para mesa....... Uniforme de Coronel Chefe do Estado-Maior da Guarda Nacional, inclusive dragonas, duas espadas sendo uma com incustrações de ouro e cravejada de brilhantes e rubis (1º, 2º, 3º e 4º uniformes) Tudo quanto compoe uma grande sala de jantar, inclusive mesas proprias pª esse mistér, baixellas e faqueiro de prata, apparelhos de louça fina (de porcellana de sevres e outras procedencias), garrafas e copos de bacccarat, jarrões e outros objectos decorativos. Trens de cosinha e o mais necessário ao funccionamento desta, xxxx xxxx mesas de marmore, armarios, despositos para agua. Viveres existentes na dispensa..... Vinhos de diversas qualidade e marcas. Carros de luxo, sendo duas victorias e um landeau e respectivos arreios..... Animais domesticos de creação..... Moeda em papel, ouro e prata......”17 17 CMA. Centro de Memória da Amazônia. Processo de apelação à ação ordinária de indemnização contra o Estado dos danos causados ao património de Antonio José de Lemos e sua esposa Ignez Maria de Lemos, Rio de Janeiro, 20 de janeiro de 1913.

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O local exato de fixação do chalé no sítio foi preservado até a presente data pois, apesar de ter sofrido diversas transferências de proprietário, nada foi construído sobre a área original, mantendo suas fundações inalteradas, permanecendo o canteiro em forma de coração que antecedia o chalé. Figura 8: Planta de situação da residência de Antonio José de Lemos, onde: 1 – Secretaria do Comando Superior da Guarda Nacional, além de cozinha, dispensa e outros, 2 – Biblioteca e 3 - Chalé.

Fonte: IBGE. Projeto de restauração da antiga residência do Intendente Antonio Lemos.

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Figuras 9 e 10: Atual sede do IBGE no Pará e espaço de treinamento do IBGE.

Fonte: Cybelle Miranda, Ronaldo Marques de Carvalho (2015).

Observa-se que, das três edificações existentes no terreno, apenas o chalé foi destruído. Além da residência de Lemos, foi incendiado também o prédio do jornal A Província do Pará, de sua propriedade, no motim que aconteceu na noite do dia 29 de agosto de 1912. 245


Há alguns registros fotográficos e vestígios de fundação da casa original. Nelas é possível observar que o piso e o forro eram trabalhados em madeira e as paredes em alvenaria de tijolos. Pode ser considerado um raro exemplar da arquitetura que mistura técnicas tradicionais de construção e o emprego de materiais facilmente encontrados na região, a exemplo da madeira e o tijolo, e elementos em ferro importados, com grande destaque e visibilidade para o meio externo, fazendo um contraponto entre o novo e o antigo. Derenji (1993) destaca que, para a época, o chalé sofreu uma inversão na forma de emprego dos materiais, já que o mais comum era as estruturas em ferro ficarem escondidas sob uma construção em métodos tradicionais, como apresentado em muitos prédios contemporâneos a este; porém, no caso específico da residência de Lemos, houve a intenção de destacar ou ostentar os materiais inovadores. A autora ainda cita que a residência de Lemos talvez tenha sido o último prédio residencial com fachada em ferro a ser construído em Belém. Com base nas informações já coletadas, foi possível produzir de forma aproximada parte da planta baixa da residência de Lemos, conforme abaixo. Deduz-se que se tratava duma planta retangular, com uma varanda à frente e alpendres nas laterais, três salas voltadas para o convívio social e uma grande sala de jantar ao fundo. Os demais cômodos não foram registrados em fotografias, impedindo sua localização em planta.

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Figura 11: Parte da planta baixa da residência de Antonio José de Lemos elaborada mediante fotos da época e vestígios da fundação original

Fonte: Imagens do acervo Fórum Landi e planta baixa elaborada por Rony Cordeiro (2019).

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Pode-se concluir que a arquitetura do chalé de Ferro foi imponente para a sua época, provavelmente por ter pertencido a Antonio Lemos, então ocupante da função mais proeminente da política na cidade de Belém, e que, para além duma característica funcional, ostentava poder e riqueza, trazendo um sentido de modernidade e progresso. Nela, houve apropriação das tecnologias mais modernas e construiu-se uma identidade e justificativa, para que as autoridades municipais legitimassem historicamente a instalação dessas tecnologias, que ficaram representadas como símbolo de desenvolvimento no imaginário coletivo tanto internamente, isto é, da sociedade local, quanto externamente, isto é, dos habitantes doutras cidades. 3. ARQUITETURA E NATUREZA: SOBRE A PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA DO JARDIM O terreno da antiga residência do Intendente se localiza dentro dos limites da área de bens imóveis tombados pela Fundação Cultural do Município de Belém (FUMBEL), além de encontrar-se protegido pela legislação federal, por pertencer à área de entorno do Cemitério da Soledade (bem tombado pelo IPHAN desde 1964), tendo o imóvel sua salvaguarda estabelecida pelo tombamento estadual do Departamento do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural (DPHAC) em 1999. Em 2015, o prédio foi entregue após passar por obras de reabilitação, cujo funcionamento foi parcialmente normalizado em 2016, porém nenhuma intervenção foi feita no jardim que contorna o prédio, ocupando toda extensão do terreno. A manutenção limita-se ao serviço de poda e limpeza, exercido por profissionais não especializados na função e o setor posterior do terreno serve de estacionamento para os funcionários e depósito de veículos antigos. O entendimento do bem patrimonializado demanda a análise de suas áreas verdes, planejadas em consonância com os padrões do romantismo adotado pelo proprietário em suas reformas urbanas, tais 248


como a criação da Praça Batista Campos, da Praça da República, do Bosque municipal dentre outras intervenções. O tema dos jardins históricos é ainda pouco explorado na cidade de Belém, muito embora existam parques e jardins emblemáticos da chamada Era da Borracha, que corresponde ao final do século XIX e início do século XX. Mais raras ainda são pesquisas e proposições que visem interpretar, valorizar e promover soluções de projeto que tornem acessíveis jardins de pequeno porte, de caráter privado ou de uso restrito a instituições. Este é o caso do projeto de reabilitação paisagística do Jardim histórico da casa de Antonio Lemos (CARVALHO, 2016). Portanto, este trabalho visou pensar a cidade na escala da vizinhança, ao mesmo tempo em que garante visibilidade ao espaço de grande valor histórico, mas pouco reconhecido pela população que transita ao seu redor. A integração entre pesquisa histórica e iconográfica, inventário botânico, sondagem das necessidades do público, e a análise de dados conferem às propostas de projeto a confiabilidade em suas premissas e soluções, tratados com a sensibilidade que as intervenções em ambientes históricos requerem. Figura 12: Levantamento físico-cadastral por VANT

Fonte: Acervo Flavia Carvalho (2016)

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Personagem que beira o mito, Lemos foi o responsável pela ‘modernização’ da cidade, e, muito preocupado com higiene e salubridade, criou praças, bosques, arborizou avenidas com mangueiras, e reservou ao habitar de sua família, uma fração do que planejou para os espaços públicos da cidade. O projeto de reabilitação visa preservar aspectos que conferem historicidade ao jardim, como o passeio dos embrechados, bem como realizou o inventário das espécies vegetais existentes hoje, de modo a inclui-las no projeto realizado. Deste modo, a proposta buscou conciliar a criação de ambientes de lazer contemplativo, referendadas por pesquisa de percepção com usuários no entorno da edificação, com a criação de um gazebo que se inspira nas linhas do chalé em ferro, já destruído, ocupado pela residência do intendente, para o qual foi prevista a função de lanchonete para servir aos moradores e usuários da vizinhança. Figura 13: Imagem da maquete eletrônica da proposta de reabilitação

Fonte: CARVALHO (2016).

Tomando por referência o conceito de integridade exposto no artigo Restauro e integridade: do concreto ao efêmero (SILVA, 2020):

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‘Ao considerarmos a vegetação a principal matéria do jardim histórico, e sendo ela capaz de transmitir sua imagem, a integridade visual é considerada, até então, a mais indicada para a verificação e, consequentemente, a conservação da ideia [princípios de composição] de quem o projetou’ (p. 29).

O autor considera a integridade visual de um jardim histórico como a que transmite uma emoção estética favorecida pela presença da ideia de quem o concebeu, e sua presença garantirá a autenticidade do bem. Assim, esta independe da autenticidade das espécies vegetais (matéria) desde que as novas espécies possuam uma aproximação plástica com às do projeto original. Um recurso apontado pelo autor é o palimpsesto vegetal, formado a partir da fitocronologia do jardim histórico, já que fornecerá a paleta vegetal histórica. Portanto, o jardim de Antonio Lemos, exemplo ímpar de jardim privado da Belle époque em Belém, ainda demanda investigação mais profunda a fim de autenticar os componentes de sua significação cultural. Contudo, a pesquisa e proposta de reabilitação desenvolvida no trabalho final de graduação elaborado por Flavia Marques de Carvalho buscou referências em iconografia da época, a fim de propor sua reabilitação como espaço histórico e atribuir utilização compatível com uso social do espaço como área de Lazer contemplativo. O trabalho identificou as características morfológicas do jardim estudado e as associou ao seu período histórico, de modo a valorizar estes elementos no projeto de revitalização e reabilitação do jardim, tornando-o um ponto de atração aberto a visitações.

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REFERÊNCIAS CARVALHO, Flavia Beatriz Galende Marques de. Projeto de reabilitação paisagística do jardim histórico da casa de Antônio Lemos. 2016. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade Federal do Pará, Belém, 2016. DERENJI, Jussara da Silveira. Arquitetura do Ferro. Memória e Questionamento. Belém: CEJUP, 1993. ROCQUE, Carlos. Antônio Lemos e sua época: história política do Pará. Belém: Editora Cejup, 1996. SARGES, Maria de Nazaré. Memórias do velho intendente. Belém: Paka-Tatu, 2002. SERRÃO, Vítor. A Cripto-História da Arte - análise de Obras de Arte Inexistentes. Lisboa: Livros Horizonte, 2001. SERRÃO, Vítor. Iconoclastia e cripto-história da arte: casos de estudo e acertos teórico-metodológicos no património artístico português. Artis on, n. 5, p. 8-24, 2017. SILVA, Joelmir Marques da. Integridade visual nos monumentos vivos: os jardins históricos de Roberto Burle Marx. 2017. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Urbano) – Centro de Artes e Comunicação, Universidade Federal de Pernambuco, 2017. SILVA, Joelmir Marques da. Restauro e integridade: do concreto ao efêmero. Anais do Museu Paulista, v. 28, p. 1-35, 2020.

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SILVA, Simone Cravo da. Os pavilhões em ferro do mercado Bolonha e Adolpho Lisboa: Patrimônio de uma arquitetura pré-fabricada. 2019. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do Pará, 2019.

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POR UMA ARQUITETURA PARAENSE NUM PROCESSO DE INOVAÇÃO

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E

timologicamente, método significa a forma de se proceder ao longo de um caminho (no andamento de um trabalho), a fim de alcançar um objetivo pré-estabelecido. Método vem do grego meta = longo + hodos = caminho. A partir do desenvolvimento da informática, o projeto passa a ser produto da eletrônica e programas variados apontam às novas tomadas de decisão utilizando-se de modelos alternativos. Ao longo dos movimentos da arquitetura, muitas metodologias projetuais já foram postas em uso em que pensamentos, sentimentos, percepção e intuição acabam por estar presentes no consciente do profissional que produz arquitetura. A criatividade humana está sujeita a uma gama de condições e a imaginação é uma das capacidades do cérebro com grande importância. A invenção segue um processo lógico em que a pesquisa de dados, a associação dos dados, a avaliação ou crítica, bem como a proposta compõem uma rede concatenada de ações e, a partir de um método pode-se chegar à concretização de uma ideia a ser posta 256


em prática, seja ela de cunho teórico ou pragmático. Muitas soluções dadas numa determinada invenção se processam no inconsciente. Desta forma, ao desenvolvermos novas ideias, estamos diante daquilo que chamamos de inovação. É impossível inovar sem que haja um processo ou um produto diferenciado, de preferência, algo que vá além daquilo que já foi pensado. Entretanto, é através da inovação que se alcança novas fronteiras indo muito além daquilo que já foi feito, buscando maiores atrativos com maneiras e formas nunca antes atingidas. O termo inovação, é aplicável a processos e produtos, toda novidade que se implanta no setor da produção, levado pelas pesquisas e que aumenta a eficiência de processos produtivos ou implica na concepção de um produto novo ou modificado. Assim, a inovação de processos exige a adoção de métodos de produção novos ou de algumas formas melhoradas, que podem envolver mudanças num determinado equipamento ou na maneira da produção, ou simplesmente uma combinação dessas mudanças, e que podem se derivar do uso de um novo conhecimento. A inovação de Produtos exige a produção de novos objetos com características tecnológicas ou cujos usos pretendidos diferem daqueles que foram produzidos anteriormente. Essas inovações podem envolver tecnologias radicalmente novas, mas podem também basear-se na combinação de tecnologias existentes em novos usos, derivadas da utilização também de novos conhecimentos. Neste módulo focalizamos quatro artigos que contribuem para o processo de inovação, indo do uso da tecnologia computacional no estudo da documentação patrimonial e sua reabilitação, passando pelo desenvolvimento de novo método conceptivo e construtivo de habitações que conduz à elaboração e construção de entes arquitetônicos decorrentes do elemento fundamental de sua sustentação e estabilidade que é a estrutura constituída de materiais metálicos, 257


argilominerais e orgânicos. Por fim, propõe-se a concepção de um novo componente arquitetônico voltado à execução de placas para acabamentos de tetos. Portanto, no artigo Uso da tecnologia BIM para a documentação do patrimônio: a Reabilitação do chalé 522 da Avenida Nazaré enfatiza-se que a tipologia de uma edificação pode demonstrar a cultura e as tecnologias coexistentes no período em que foi erguida. Daí a importância em documentar e reabilitar edifícios que sirvam de testemunho aos modos de construir a arquitetura de uma cidade. A reabilitação pode ser considerada como um mecanismo que pode reverter esse cenário, através da resolução de anomalias construtivas, funcionais, higiênicas e de segurança, trazendo benefícios para os centros urbanos, tais como o aproveitando da estrutura existente no entorno e referência a memória da população. O objeto de estudo do trabalho de conclusão de curso que inspirou este capítulo é um imóvel com tipologia de chalé, localizado na Av. Nazaré, nº 522, em Belém/PA, que se encontra em um estado avançado de deterioração, condição que permanece desde 2010 até o ano da elaboração deste livro. O desenvolvimento dessa proposta em ferramentas com tecnologia BIM poderia beneficiar os vários setores interessados, pois o planejamento da obra seria mais rápido e o orçamento mais enxuto, as perdas de materiais seriam menores e o gerenciamento do imóvel pós-intervenção seria mais abrangente, culminando em uma durabilidade maior da vida útil da edificação. Somado a isso, o modelo gerado para este fim é de grande importância para os estudos referentes à própria edificação e a sua tipologia e poderiam contribuir tanto para estudos arqueológicos com ênfase nessa tipologia, chegando às diversas análises voltadas para o processo de reabilitação de edificações antigas. No desenvolvimento do segundo artigo O método e a metodologia projetual arquitetônica: do modernismo ao pluralismo contemporâneo que trata da evolução da ciência e da tecnologia, destacam-se 258


novas formulações do método projetual em que a fabricação de objetos compondo sistemas de montagem observando uma sequência com número de operações, além de programas mais complexos para os edifícios, com técnicas construtivas mais arrojadas passa a exigir um planejamento de novo processo que usa o projeto do projeto (o meta-projeto). Há, desta maneira, um controle contínuo sobre o processo que permite o seu aperfeiçoamento durante o seu desenvolvimento, o que não ocorre no método tradicional, caracterizado na ‘tentativa e erro’ que somente no fim da ação poderá ser corrigido ou aperfeiçoado. O artigo seguinte, Cobrindo grandes vãos: a utilização da madeira, do metal e do concreto armado para a construção das estruturas, demonstra que um componente essencial da arquitetura é sem dúvida nenhuma a estrutura, que se corporificará desde as fundações, passando pelos apoios externos, verticalizados ou não, indo até a cobertura, tanto de um simples abrigo quanto da concepção de grandes espaços destinados a diversos fins. Necessitam de sustentação e estabilidade, que decorre de condicionantes constituintes das características dos materiais utilizados, suas dimensões e composição. É necessário para tal precaver-se a própria estabilidade da estrutura quanto ao seu peso próprio e às sobrecargas, a que esta estará submetida. Os fenômenos da natureza, tais como o vento, as descargas atmosféricas, os terremotos entre outros, só serão resistidos pela arquitetura das edificações de uma forma geral se a estrutura destas for bem projetada, calculada e executada. E, desta maneira, o uso de diversos materiais estruturais exige continuamente todo um processo de inovação quanto ao emprego de materiais orgânicos minerais e argilosos. No artigo conclusivo desta coletânea, As placas do forro de estuque da antiga capela da Santa Casa de Misericórdia do Pará: elaboração de protótipos como subsídio para reabilitação tem como objetivo principal conceber uma argamassa mais leve e que substituísse a 259


argamassa à base de gesso utilizada no forro de estuque da Capela em estudo. Procedeu-se o comparativo entre o peso próprio das duas placas: a original, contendo a base e os elementos ornamentais, e a nova placa proposta com a argamassa correspondente ao concreto celular. Os resultados alcançados foram promissores, tanto no sentido da utilização sustentável de rejeitos de construção civil além de outros rejeitos da indústria moveleira e da indústria mineral quanto na concepção inovadora dos modelos e no processo de montagem do forro. A placa confeccionada com a argamassa proposta respondeu aos objetivos almejados e assim a confecção de um protótipo simplificado substitutivo das placas originais em estuque acabaram por demandar um aprofundamento maior na pesquisa, quanto à forma de reprodução dos motivos ornamentais, além de novas formas de sustentação das placas no teto. O módulo III: Por uma arquitetura paraense num processo de inovação agrega estudos no campo do processo de projeto e das tecnologias construtivas, demonstrando possibilidades diversas de aplicação na atuação profissional do arquiteto, com ênfase no trabalho de reabilitação de edifícios antigos, cuja recuperação implica em valorização da história e memória locais, além de incorporar procedimentos sustentáveis e ambientalmente compatíveis.

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USO DA TECNOLOGIA BIM PARA A DOCUMENTAÇÃO DO PATRIMÔNIO: a Reabilitação do chalé 522 da Avenida Nazaré

Bianca Barbosa do Nascimento Cybelle Miranda

1. A DOCUMENTAÇÃO COMO MECANISMO DE RECONHECIMENTO DA ARQUITETURA

A tipologia de uma edificação pode demonstrar a cultura e as tecnologias coexistentes no período em que foi erguida. Daí a importância em documentar e reabilitar edifícios que sirvam de testemunho aos modos de construir a arquitetura de uma cidade. A reabilitação pode ser considerada como um mecanismo que pode reverter esse cenário, através da resolução de anomalias construtivas, funcionais, higiênicas e de segurança, trazendo benefícios para os centros urbanos, tais como o aproveitando da estrutura existente no entorno e referência a memória da população. O objeto de estudo do trabalho de conclusão de curso que inspirou este capítulo é um imóvel com tipologia de chalé, localizado na Av. Nazaré, nº 522, em Belém/PA, que se encontra em um estado avançado de deterioração, condição que permanece desde 2010 até o ano da elaboração deste livro. 262


Figura 1: Chalé 522, situação atual

Fonte: Bianca Barbosa (2017).

O processo de documentação embasou o anteprojeto de reabilitação para o Chalé 522 com vistas a abrigar as atividades de extensão promovidas pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal do Pará, utilizando a tecnologia BIM, a fim de potencializar a criação de soluções tipológicas e construtivas e contribuindo para o conhecimento científico dessa tipologia como integrante da história da arquitetura no Pará. Nas primeiras décadas do século XX, mais precisamente a partir de 1920 até 1940, as tipologias conhecidas como chalés começaram a se difundir amplamente pelos bairros centrais de Belém. Essa tipologia era utilizada tanto por arquitetos reconhecidos como José Sidrim, como em residências sem autoria definida, tendo por vantagens a facilidade proporcionada pelas soluções construtivas adotadas, além dos custos baixos para construção, uma grande variação de tamanhos e de soluções para a cobertura (CAL, 1989). 263


A tipologia de chalé mais utilizada em Belém remetia às construções rurais europeias, onde a casa era isolada no lote, possuía jogos de telhado que proporcionavam soluções volumétricas bastante interessantes para a época, possuíam sótão, com óculos ou pequenas janelas que ajudavam na ventilação, além da presença de sacadas. Essas casas deixaram um legado arquitetônico muito significativo para a cidade, no entanto, muitos exemplares encontram-se bastante descaracterizados e, alguns casos, extremamente deteriorados. Os procedimentos metodológicos adotados na pesquisa em questão consistem na: • Elaboração de referencial teórico sobre a arquitetura eclética, explorando aspectos ligados à forma, a estética e a tipologia arquitetônica dessas edificações, bem como sobre os processos de reabilitação em edificações históricas e sobre o emprego de tecnologia BIM em projetos de arquitetura; • Levantamento de dados sobre a edificação a ser reabilitada e de alguns exemplos de chalés presentes na cidade de Belém que possuam elementos arquitetônicos e tipologias semelhantes; • Análise de dados coletados sobre os chalés, levando em consideração o referencial teórico elaborado; • Concepção do anteprojeto de reabilitação do chalé da Av. Nazaré, levando em conta as pesquisas realizadas sobre a linguagem arquitetônica desta edificação e sobre reabilitação.

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2. O TIPO CHALÉ E SUA IMPORTÂNCIA PARA A CARACTERIZAÇÃO DO BAIRRO DE NAZARÉ

O bairro de Nazaré surge a partir da Estrada de Nazaré, caminho onde se implantaram no início do século XIX as rocinhas, casas de campo da burguesia belemense1, as quais foram paulatinamente substituídas por residências de partido neoclássico, muitas delas em formato de vila (moradia em banda, para os portugueses), bem como casas burguesas soltas no lote, em estilo neoclássico e eclético. O predomínio da arquitetura residencial burguesa no bairro, além da arborização com mangueiras das principais artérias, confere a este uma distinção em relação aos demais sítios de Belém. O bairro foi gradativamente ocupado pela elite belenense por estar localizado em um “espaço geográfico privilegiado, pois corresponde a um sítio alto e seco em relação ao topo do terreno onde se situa Belém, que é em grande parte baixo e alagadiço” (AZEVEDO, 2015, p. 57). Em 1920, a população do bairro era predominantemente da elite local e as construções que serviam como residências destes eram “na maioria composta por edificações confortáveis e com fino acabamento, sendo algumas conhecidas sob a denominação de palacetes” (AZEVEDO, 2015, p. 63). Com o tempo, o bairro passou por várias intervenções urbanas e arquitetônicas em busca da modernidade e do progresso. Sobre a evolução urbana do bairro de Nazaré, Felipe Moreira Azevedo afirma que: Com o agravamento do processo de descaracterização, hoje se vê um hibridismo quanto à arquitetura no bairro de Nazaré, haja vista que determinados prédios são preservados, 1 Segundo SOARES, Roberto de La Rocque. Vivendas Rurais do Pará Rocinhas e outras (do século XIX ao XX). Belém: Fundação Cultural do Município de Belém, 1996, foram listadas 42 rocinhas na Avenida Nazaré, antiga Estrada de Nazaré, maior número de exemplares encontrados nas pesquisas documentais.

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principalmente pelo seu valor histórico, porém outros são demolidos para a construção, em sua maioria, de novas edificações residenciais multifamiliares (AZEVEDO, 2015, p. 69).

Segundo Miranda e Carvalho (2009), o chalé, embora fosse baseado em modelos importados da Europa, reformulou o modo de morar da população belemense, substituindo as plantas coloniais por partidos compostos “por uma série de compartimentos na residência como a sala de música, de jantar, de jogos, além de separar os dormitórios no piso superior. A liberação dos limites do lote, volumetria arrojada e adaptabilidade climática contribuíram às tendências modernas futuras” (p. 3). Muitas dessas construções pré-fabricadas possuíam características tipológicas de residências rurais presentes em regiões europeias, que continham um caráter romântico e pitoresco, e eram conhecidas como chalé. Segundo Albernaz e Lima (1998), o chalé é uma tipologia de casa que: Tem como principais características o uso de madeira como elemento estrutural e decorativo, a utilização da ornamentação rendilhada, particularmente o LAMBREQUIM, o empego de telhado de duas águas com amplos beirais e a implantação em centro de terreno com empena voltada para a via pública [...]. Sua presença é marcante nas cidades que tiveram entre seus povoadores imigrantes alemães ou suíços [...]. No Rio de Janeiro, antigo tipo de edificação popular que utilizava a madeira como elemento de vedação. Foi muito frequente na cidade em fins de século XIX [...]. Principalmente no interior do Rio Grande do Sul, casa de madeira rural ou campestre. Em todos os sentidos é usada às vezes a grafia francesa chalet (ALBERNAZ; LIMA, 1998, p. 141).

O chalé pode ser considerado como uma tipologia que remete aos ideais de vida campestre, que eram disseminados durante a corrente 266


romântica no século XIX (CAMPOS, 2008 apud GLERIA, 2013). Quanto às características pitorescas, Peter Collins (apud GLERIA, 2013) considera que esse tipo de edificação possuía um caráter pitoresco em decorrência da forte relação de complementação entre a fachada com a paisagem natural em que ela estava inserida, remetendo a um sentido mais pictórico da composição obtida entre arquitetura e paisagem, referindo-se principalmente às construções rurais da Inglaterra. A composição arquitetônica dessas residências não resultava somente do arranjo espacial interno, era fundamental que a estética dessas casas estivesse em harmonia com o entorno. O autor também reconhece que o caráter pitoresco proporcionou à tipologia arquitetônica em questão, uma liberdade maior em relação à concepção projetual ao incorporar a assimetria tanto para a composição das fachadas, quanto para a distribuição dos ambientes em planta. Esse fator atribuiu ao projeto elementos como complexidade, irregularidade e originalidade, bem como a integração deste com o cenário paisagístico no qual a edificação estava inserida, já que a própria paisagem não se comporta de maneira homogênea. Com relação à concepção do partido, foram empregados conceitos de racionalidade, funcionalidade, conforto, privacidade e intimidade, prefigurando modos de morar modernos. O partido arquitetônico dos chalés brasileiros contém muitos elementos que referenciam aos chalés europeus, porém este tipo for adaptado às preferências da sociedade local em detrimento a alguns materiais e ornamentos. Reis Filho (1978) comenta que, apesar da opção pelo uso da madeira como vedação nos chalés alpinos, no Brasil as vedações eram feitas com paredes estruturais de tijolo aparente, por conta do preconceito contra a madeira, que naquele período não era considerada como um material nobre a ser usado nas residências de uma sociedade mais abastada. Outros elementos, como a própria madeira em ornamentos e arremates de elementos, revestimento cerâmico 267


(ladrilhos e azulejos), gradis, colunas e alpendres foram acrescentados como forma de tornar a obra mais original e de contextualizar com o modo de produzir, as técnicas construtivas e o repertório arquitetônico conhecidos e utilizados naquela época. Segundo Reis Filho (1978), as paredes eram construídas em alvenaria de tijolo e cal, com espessura aproximada de 60 centímetros. Os azulejos podiam ser encontrados nas paredes externas, enquanto nas áreas molhadas, o uso de revestimento cerâmico, seja azulejo ou ladrilho hidráulico, era bastante comum. A madeira era utilizada nos pisos e nos forros: enquanto a madeira do forro, por vezes possuía o encaixe “macho e fêmea” como forma de garantir um bom encaixe da estrutura, o piso poderia ser em parquet com desenhos de variados tipos de madeiras de tons diferentes. Quanto à cobertura, a estrutura era geralmente em madeira, com a forma de tesouras. As telhas poderiam ser tipo capa canal, entretanto, pela inclinação dos telhados, era mais comum o uso de “telhas de barro ou lâminas de ardósia, importadas de Marselha [...] para evidenciar o abandono das soluções plásticas tradicionais” (REIS FILHO, 1978, p. 160). Quanto à disposição dos ambientes na planta, Carmen Cal (1989) afirma que a configuração se dava através da divisão em saletas. Geralmente, os ambientes sociais como sala de estar e cozinha permaneciam no térreo, enquanto ambientes mais íntimos como os quartos, localizavam-se no 1º pavimento. Esse tipo de divisão não condizia muito à sociedade da época, que teve que se adaptar a esse tipo de moradia. Em alguns casos, a escada era mal planejada, por ser íngreme demais ou por estar mal posicionada na planta. Apesar disso, havia uma preocupação quanto ao conforto da casa, seja pela utilização de portas internas com bandeiras vazadas ou pelo pé direito alto. As edificações com tipo chalé foram utilizadas até o início da década de 50 do século XX, quando aos poucos foi sendo substituída 268


pelas casas tipo bangalô. Essas casas deixaram um legado arquitetônico muito significativo para a cidade, que merece ser analisado e estudado mais a fundo para entender melhor a evolução da forma de morar da sociedade belenense. 3. DOCUMENTAÇÃO COMO INSTRUMENTO DE REABILITAÇÃO DE EDIFICAÇÕES HISTÓRICAS Visando a proteção do patrimônio, seja em escala arquitetônica ou urbanística, a Carta de Lisboa foi criada durante o 1º Encontro Luso-Brasileiro de Reabilitação Urbana - Lisboa, ocorrido em outubro de 1995. Essa carta visa o estabelecimento de princípios norteadores para as intervenções e suas aplicações no patrimônio edificado. Entre as definições e conceitos estipulados pela carta, a reabilitação de uma edificação pode ser considerada como um mecanismo para “a recuperação e beneficiação de uma construção, resolvendo as anomalias construtivas, funcionais, higiénicas e de segurança acumuladas ao longo dos anos” (CARTA DE LISBOA, 1995), para melhorar o desempenho da edificação, alcançando os níveis de exigência impostos pela modernidade. Para escolher o procedimento de intervenção mais adequado para a edificação é necessário que haja um entendimento entre o tipo de uso, o desempenho da edificação e a ação do tempo. O esquema criado por Halberg (apud OLIVEIRA, 2013, p. 36), serve para entender quais tipos de medidas são mais adequadas para o estado de degradação que o edifício possui, bem como sobre as ações realizadas (ou não) ao longo do ciclo de vida útil da edificação. Paralelamente às realidades europeia e norte americana, a reabilitação de edificações ainda é um processo de conservação pouco utilizado no Brasil. As ações já realizadas são pontuais (a maior parte voltada para habitações de interesse social e edificações institucionais) 269


e geralmente são incentivadas por órgãos públicos. Segundo o Projeto REABILITA o processo de reabilitação de uma edificação não possui leis específicas que incentivem essa forma de conservação no país e a viabilização desse processo se dá por políticas públicas e linhas de financiamento disponibilizadas pelo governo. A falta de qualificação da mão de obra, o desconhecimento de como gerir um processo de reabilitação aliado à especulação imobiliária nas áreas centrais, podem ser identificados como algumas das dificuldades para a realização de reabilitações em edificações antigas dos centros urbanos brasileiros (OLIVEIRA, 2013). A reabilitação de edifícios ganha importância pela análise conjunta de uma série de variáveis. De um lado, ao defender e conservar o patrimônio construído e, por outro dotá-lo de capacidade de resposta à contemporaneidade, integrando valores sociais, ambientais e de sustentabilidade. Essa preocupação com a sustentabilidade está cada vez mais presente na realização de intervenções de reabilitação de edifícios ou mesmo urbanas (DELGADO, 2008). A reabilitação também pode ser considerada um instrumento capaz de trazer diversos benefícios para a cidade, principalmente para os centros históricos, pois ao recompor as edificações degradadas nas áreas mais centrais, aproveitando a estrutura já existente no entorno, os resultados podem implicar na melhoria da paisagem urbana e na preservação do patrimônio edificado da cidade. Além disso, ao realizar a reabilitação, os edifícios mais antigos serão capazes de suprir os interesses por uma demanda de uso que poderia ser destinada à construção de um prédio contemporâneo (OLIVEIRA, 2013). Para que o processo de reabilitação inicie, é necessário buscar informações arquitetônicas e construtivas das edificações que se queiram reabilitar, a fim de analisar as condições da construção para averiguar o nível de intervenção a ser realizada. Esse levantamento prévio pode ajudar na conservação de elementos importantes da edificação, além 270


de estipular formas de intervenções mais sustentáveis e coerentes com a estrutura preexistente. Maria Joana Delgado afirma que A caracterização arquitectónica e construtiva de um edifício ou de um conjunto mais alargado pode ser feita de diversas formas mas passa sempre pelo registro dos seus aspectos mais relevantes. Para tal é necessário recorrer a levantamentos arquitectónicos e estruturais que permitam proceder a uma caracterização tipológica e morfológica, reconhecer o tipo de construção, a época da construção, etc. Complementarmente poderão realizar-se inspecções (mais ou menos intrusivas), com recurso aos meios entendidos como adequados (fotografia, medições, etc.) e eventualmente sondagens. Estas permitem verificar o estado de conservação do edifício, nomeadamente dos seus elementos primários, e com isso determinar tudo aquilo que deverá ser substituído, reforçado e acautelado impedindo a progressão da degradação. (DELGADO, 2008, p. 14)

A sustentabilidade pode ser considerada como parte dos atrativos da reabilitação. Morettini (apud OLIVEIRA, 2013) afirma que é necessário que os conhecimentos sobre sustentabilidade e as tecnologias sustentáveis sejam empregados nas reabilitações para que possam trazer benefícios para os usuários das edificações que passaram por esse tipo de intervenção. A compatibilidade com a construção preexistente, a gestão dos resíduos gerados durante a obra, além da otimização do desempenho energético e do uso de água são fatores indispensáveis quando se pensa em uma reabilitação sustentável (OLIVEIRA, 2013). A construção civil é um setor da indústria com grande potencial de poluição, de modo que, ao utilizar a construção sustentável em novas edificações, incorporando diretrizes que estimulam o desenvolvimento sustentável nos projetos, o projetista acaba ganhando alternativas favoráveis aos custos da obra e na economia de materiais. Ao optar pela reabilitação com diretrizes sustentáveis, ao invés de uma 271


construção nova, além da economia de materiais, há uma diminuição na produção de rejeitos de obras, diminuindo o impacto ambiental causado pela construção (CÓIAS, 2007). Entretanto, deve-se levar em consideração que a reabilitação é um processo mais complexo e específico, que exige um estudo maior da edificação a ser reabilitada, para que as intervenções a serem realizadas sejam compatíveis e adequados em relação a preexistência da edificação. O registro iconográfico é uma das ferramentas mais importantes para a preservação da memória. Na arquitetura, esse registro, quando bem feito, é essencial para toda e qualquer ação que se pretenda executar com precisão. Quando se trata de edificações históricas e/ ou de interesse cultural, a representação cadastral se torna a base para o planejamento de intervenções, para a análise histórico-crítica da edificação e um retrato das suas transformações ocorridas ao longo do tempo (OLIVEIRA, 2008). O cadastro arquitetônico é uma ferramenta utilizada desde a Grécia Antiga e os procedimentos utilizados abrangem o desenho arquitetônico, tratados arquitetônicos que se propõem a armazenar informações em texto e ilustrações sobre o objeto arquitetônico a ser levantado, passando pela contribuição da engenharia militar através de levantamentos precisos e chegando até à construção de maquetes físicas (OLIVEIRA, 2008). Os equipamentos e as técnicas utilizadas para o levantamento passaram por várias evoluções, de modo a atender as necessidades e as condições oferecidas em campo. Atualmente, instrumentos como lapiseiras, pranchetas, trenas e prumos, ainda são indispensáveis para a realização do cadastro (OLIVEIRA, 2008). Contudo, outras ferramentas foram desenvolvidas para facilitar o processo de cadastramento arquitetônico e urbanístico e fornecer informações mais precisas, que são voltadas principalmente para o levantamento de áreas extensas, de grandes edificações e para áreas de difícil acesso. 272


A triangulação, as coordenadas cartesianas e polares ou as poligonais são métodos ainda muito utilizados para a obtenção de medidas em edificações históricas. Contudo, nem todas essas edificações oferecem condições favoráveis para a execução desses métodos. A dificuldade de acesso a um determinado cômodo de uma edificação ou até a precariedade do sistema estrutural apresentado pelo edifício, podem oferecer riscos à equipe responsável pelo cadastro, como é o caso do Chalé em estudo. Tais adversidades podem ser contornadas com a ajuda de ferramentas capazes de obter dados precisos, sem que a equipe responsável pelo levantamento precise se expor a riscos físicos. Segundo Luis Mateus (2011), esses métodos podem ser considerados indiretos, pois, ao contrário dos métodos diretos (no qual cada ponto registrado no qual se adquire a informação foi cuidadosamente escolhido), a informação coletada é obtida de zonas mais ou menos amplas, onde é possível registrar uma quantidade de pontos muito maior em relação aos métodos diretos. Como exemplos dos métodos indiretos estão a fotogrametria e o 3D Laser Scanning. Segundo a International Society for Photogrammetry and Remote Sensing (apud PALERMO; LEITE, 2013), a fotogrametria é considerada como “a arte, ciência e tecnologia de obtenção de informações confiáveis sobre a superfície da Terra e outros objetos físicos através de medições, análises e representações feitas a partir de fotografias” (PALERMO; LEITE, 2013, p. 25). Com o desenvolvimento computacional, a fotogrametria passou por evoluções que otimizaram o processamento das informações. Atualmente a fotogrametria pode ser realizada com informações de fotografias ou imagens digitais, seja por câmeras digitais ou pela digitalização de filmes analógicos. Quanto ao uso no levantamento cadastral, é possível utilizar a fotogrametria aérea e/ou a terrestre (OLIVEIRA, 2008).

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Para a execução do levantamento fotogramétrico aéreo é necessário o apoio de um Veículo Aéreo Não Tripulado (VANT), onde câmeras métricas especiais são acopladas e, a partir do percurso realizado por esses veículos, são geradas as tomadas fotográficas inclinadas, verticais e quase verticais2. Esse método de levantamento cadastral vem sendo usado principalmente por profissionais da área do Planejamento Urbano e Regional em decorrência da abrangência de áreas, possibilitada por esse tipo de levantamento. No âmbito patrimonial, a fotogrametria aérea tem sido usada para o estudo dos centros históricos das cidades. A fotogrametria terrestre pode ser realizada com o uso de uma câmera métrica ou com uma câmera fotográfica que possua uma boa resolução. Após a realização das fotografias necessárias, as imagens obtidas podem passar por um processo de retificação digital, onde as mesmas são processadas em softwares de edição e estes deformam a perspectiva para encontrar a verdadeira proporção do objeto a ser levantado. Para isso, é necessário o conhecimento de pelo menos uma das medidas do objeto, para que esta se torne um parâmetro no processo de retificação. A restituição também se caracteriza como um processo de manipulação da imagem semelhante à retificação, sua diferença, no entanto, consiste no tamanho da imagem obtida no término do processo, que deve ser do mesmo tamanho do objeto levantado, demonstrando sua forma real em duas dimensões (OLIVEIRA, 2008). O 3D Laser Scanning é uma técnica com alto grau de precisão, que consiste em executar varreduras a laser no objeto a ser mensurado, traduzindo a informação coletada em uma nuvem de pontos que representa o volume apresentado pelo objeto. Essa técnica é recomendada em caso de levantamentos muito complexos, como o levantamento de conjuntos arquitetônicos e o levantamento de fachadas de grande extensão ou que apresente muitos detalhes. Essa técnica 2

Ver uso desta técnica no Capítulo 10.

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também pode ser combinada com a fotogrametria para potencializar os resultados obtidos na coleta de informação (OLIVEIRA, 2008). Em associação a tais técnicas, a criação de softwares voltados para o desenho de arquitetura pode ser considerada como um dos grandes acontecimentos no âmbito de representação da arquitetura. A metodologia e a tecnologia proposta pelo Building Information Modelling, ou tecnologia BIM, como é conhecida no Brasil, é um grande avanço em termos tecnológicos para a construção e intervenção em exemplares arquitetônicos. Através da tecnologia BIM, é possível representar com mais precisão os registros construtivos, intervenções e adaptações realizadas na edificação. Essa tecnologia pode ser caracterizada como um instrumento que permite a descrição dos aspectos geométricos e construtivos, além da criação de cenários alternativos para ajudar na gestão, através da construção da maquete virtual. Essa metodologia de trabalho incorporada ao BIM também é capaz de caracterizar os objetos ao máximo, ajudando no armazenamento das informações e na criação de uma base de dados que abrange todo o ciclo da vida de uma edificação (PEREIRA, 2015) A tecnologia BIM permite a otimização dos desenhos, facilita a análise e simulações de determinadas informações, atribui uma maior precisão aos detalhes construtivos, permite a viabilidade de uma construção de forma mais sustentável, reduzindo custos através da quantificação dos materiais que serão utilizados no projeto. Outra vantagem é a de proporcionar a interdisciplinaridade do projeto, por meio da colaboração de outros profissionais que disponham desta tecnologia (PEREIRA, 2015). Contudo, o emprego do BIM não é comum em edificações preexistentes, apesar da sua aplicação ser possível em edificações maiores e mais complexas em termos construtivos. Quando é utilizado, a tecnologia pode ficar restrita ao monitoramento da performance 275


da edificação ou pode ser usada na criação de percursos virtuais. A informação incompleta ou fragmentada, ou até mesmo obsoleta da edificação preexistente, aliada as dificuldades no acesso ao BIM e a uma mão-de-obra que tenha conhecimentos sobre o funcionamento da tecnologia são fatores que acabam desestimulando seu uso. De acordo com João Maria Pereira, Apesar da estimativa digital de custos e da gestão de dados, as funcionalidades BIM em desconstrução, as análises de vulnerabilidade e colapso, a gestão de emergências, a localização ou documentação dos riscos ou materiais contaminantes ou o planeamento do cenário de risco ainda são raros na literatura deste tipo de artigos. Por outro lado, outras potenciais funcionalidades da BIM não são cobertas ainda, como o planeamento de execução de demolições ou do desenvolvimento em obra, a gestão da reciclagem de materiais, as logísticas das redes de reciclagem, a monitorização dos componentes de risco ou o reportório automático às autoridades. (PEREIRA, 2015, p. 26).

A tecnologia BIM foi associada ao software Autodesk Revit 2016 como ferramenta usada no desenvolvimento de todas as etapas de modelagem, desde os estudos de forma, passando pela modelagem do chalé antes do incêndio com base nos arquivos em CAD existentes, até a concepção das pranchas e da maquete eletrônica. A escolha pelo uso do Revit para auxiliar no desenvolvimento do projeto se deu pela familiaridade com a interface do software, além da disponibilidade no acesso ao programa, já que a empresa responsável pela sua produção (Autodesk) disponibiliza versões gratuitas do software para estudantes de graduação de áreas criativas.

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4. O CHALÉ DA AVENIDA NAZARÉ: CARACTERIZAÇÃO E DIAGNÓSTICO De acordo com o zoneamento proposto pelo Plano diretor da cidade de Belém (2008), o bairro de Nazaré se encontra em zonas diferentes. A maior parte do bairro está localizada dentro da Zona de Ambiente Urbano 6 (ZAU 6), e uma pequena fração da Zona de Ambiente Urbano 7 (ZAU 7). O quarteirão onde a edificação se encontra está dentro da ZAU 7, bem próximo ao limite entre esta zona com a ZAU 6 (Figura 20). A quadra está localizada no Setor II da ZAU 7, que se caracteriza como uma zona de transição entre o centro histórico e as demais áreas da cidade, com uma predominância de imóveis de uso misto, apresentando uma diversidade arquitetônica. Ela também é caracterizada pelo crescente processo de verticalização da ocupação do uso do solo, bem como da degradação de imóveis históricos presentes na área (BELÉM, 2008). Figura 2: Localização do quarteirão do objeto de estudo dentro da ZAU 7.

Fonte: Anexo V – Zoneamento (BELÉM, 2008) alterado por Bianca Barbosa do Nascimento (2016).

As informações colhidas para o levantamento documental e cadastral foram obtidas nos laudos realizados pelo Sistema de 277


Gerenciamento dos Imóveis de Uso Especial da União e pelo Primeiro Comando Aéreo Regional (I COMAR), que foram cedidos pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e através do Cadastro Técnico Multifinalitário (CTM) disponibilizado pela Companhia de Desenvolvimento e Administração da Área Metropolitana de Belém (CODEM). Quanto ao levantamento fotográfico, as imagens mais antigas foram disponibilizadas pelo Departamento do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural do Estado do Pará (DPHAC-SECULT), datadas entre os anos de 2006 e 2010, e as imagens mais recentes foram registradas durante visitas in loco nos anos de 2014 e 2016. A edificação está localizada em um lote com uma área de aproximadamente 1.297,20 m², medindo 10,70 m de frente, 96,30 m pela lateral esquerda, uma linha quebrada de três secções na lateral direita, medindo 75,80 m, 9,90 m e 20,50 m respectivamente, e 21,20 m no travessão de fundos. A área construída é composta por uma edificação do tipo chalé com aproximadamente 252,23 m² de área construída, distribuídos em dois pavimentos, e uma edícula de 34,64 m². Figura 3: Perspectiva esquemática da implantação do chalé e sua edícula no lote

Fonte: Bianca Barbosa do Nascimento (2017).

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Após o processamento das informações obtidas e do desenho da planta em AutoCAD, foi realizado em março de 2014 um levantamento fotográfico que possibilitou a verificação das informações obtidas. Esse levantamento foi executado através da visualização do chalé a partir de um edifício comercial vizinho à edificação, pois não haviam condições adequadas que permitissem o acesso em decorrência da quantidade de entulhos impedindo a entrada. A partir do levantamento fotográfico foi possível confirmar que a edificação tem características da arquitetura residencial com tipologia remetendo a um chalé europeu, com paredes de vedação e estruturas em alvenaria e a estrutura de piso do 1º pavimento e de telhado construídos em madeira. A cobertura atual tanto da edificação principal, quanto da edícula, é feita com telhas de fibrocimento. A residência apresenta recuo e afastamentos em quase todas as fachadas, com exceção da fachada oeste onde parte da edificação se encontra rente ao muro. O edifício principal apresenta perda significativa do revestimento de cobertura, sendo que em alguns trechos é possível observar apenas a presença de parte da estrutura de sustentação que se encontra bastante comprometida, em razão da perda das estruturas de madeira e ausência significativa de telhamento. Tal fator ocasiona infiltração de umidade nas paredes, o que pode vir a comprometê-las, uma vez que as mesmas apresentam função estrutural. Há escoras ao longo da construção para evitar qualquer tipo de risco de desmoronamento das paredes, em especial nas empenas frontal e lateral, as quais apresentam perda de estruturas de madeiramento do telhado, podendo ocasionar a instabilidade dos elementos de vedação. Foi possível perceber também que a divisão de ambientes existentes se assemelha bastante a divisão original, segundo levantamento realizado pelo I COMAR. A partir da verificação do estado atual de conservação da edificação, que demonstrou o significativo nível de deterioração em que 279


ela se encontra, houve a necessidade de buscar referências para a identificação dos elementos arquitetônicos presentes no chalé. Para isso, foram utilizados os conhecimentos previamente obtidos a partir da bibliografia consultada sobre este tipo, os registros fotográficos feitos do chalé entre os anos de 2005 a 2011 cedidos pelo DPHAC, e o levantamento fotográfico, realizado em agosto de 2016, do Restaurante Calamares, localizado na Av. Generalíssimo Deodoro, n.º 1133, também no bairro de Nazaré. Figura 4: Restaurante Calamares

Fonte: Cybelle Miranda (2021).

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A escolha do Restaurante se deu por conta das semelhanças tipológicas entre a edificação e o objeto de estudo, por serem construções datadas da mesma época e pelo bom estado de conservação que o restaurante apresenta nos dias atuais. Esses fatores possibilitarão a verificação de elementos estruturais e estéticos presentes no chalé da Av. Nazaré que não puderem ser identificados nos registros do DPHAC. Essas informações preliminares foram de grande importância para a caracterização tipológica do chalé. Para Giulio Carlo Argan “as tipologias arquitetônicas são diferenciadas segundo três grandes categorias, a primeira das quais compreende configurações inteiras de edifícios, a segunda, os grandes elementos construtivos, a terceira, os elementos decorativos” (ARGAN, 2004, p. 67). Com isso, as informações adquiridas sobre o chalé serão divididas entre as três categorias citadas anteriormente, de forma a viabilizar a análise desses dados que servirão para entender o processo construtivo da edificação, criando um embasamento mais concreto em relação às intervenções a serem realizadas no imóvel. 4.1 ANÁLISE ESPACIAL

A partir dos desenhos obtidos nos laudos técnicos realizados no chalé, foi possível reproduzir o desenho das plantas que possibilitou a construção de uma maquete virtual da construção. No pavimento térreo, alguns ambientes na parte posterior da planta apresentam características construtivas que se diferenciam do restante da construção. Há diminuição da espessura da parede, em relação ao restante do edifício, aliado ao tipo de esquadria e os revestimentos presentes nesses ambientes, que é diferenciado em relação aos demais, somada a própria distribuição desses ambientes. A princípio, percebe-se que a distribuição espacial do chalé é racionalizada, sendo a circulação realizada pelo interior dos cômodos; o setor social é alocado no térreo, e o íntimo no primeiro pavimento. 281


Diferentemente dos ambientes do volume principal, a circulação no setor de serviço é distribuída através de um corredor que conecta os ambientes. A lógica construtiva utilizada no período, tal qual se pode perceber nas casas dobradas Andrade Ramos (Ver capítulo 3), era de manter no volume principal os setores nobres, e relega a um volume térreo os serviços. Figura 5: Plantas do Chalé - térreo e pavimento superior

Fonte: Bianca Barbosa do Nascimento (2017).

Quanto à abertura de vãos, os ambientes possuem esquadrias distribuídas ao longo de todas as fachadas, com a predominância das encontradas nas fachadas norte e leste, onde os afastamentos permitem entrada de luz e ventilação. Na fachada norte que é a fachada principal do chalé, há a predominância do uso de esquadrias 282


do tipo porta janela, maximizando a entrada de luz e ventilação para os ambientes. Uma das divergências entre os levantamentos feitos pelos órgãos é a presença de aberturas na fachada norte do chalé, que estão documentadas apenas no levantamento fotográfico feito pelo DPHAC em 2010. Pela falta de informações sobre os vãos e a impossibilidade de verificar as medidas in loco, essas aberturas não constam nas pranchas técnicas do diagnóstico. Na fachada leste, há utilização de janelas comuns com peitoril de aproximadamente 1,10 m; na fachada sul, encontram-se o balancim da sala de banho e uma esquadria fixa ao longo da caixa da escada com o propósito de otimizar a iluminação do espaço. Esse tipo de esquadria é encontrado na caixa de escada do Restaurante Calamares. Figura 6: Maquete eletrônica representando a fachada norte do Chalé

Fonte: Elaborado por Bianca Barbosa (2017).

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A edícula abriga a garagem e alguns ambientes de serviço. A circulação é bastante simplificada. Não há nenhum tipo de diferencial arquitetônico que a destaque e, assim como os ambientes adjacentes ao chalé, a edícula também apresenta as mesmas características construtivas (espessura da parede e tipo de esquadria). Figura 7: Planta Baixa da Edícula do Chalé

Fonte: Bianca Barbosa do Nascimento (2017).

4.2 ANÁLISE ESTRUTURAL De acordo com as informações obtidas no levantamento, o chalé é construído em alvenaria estrutural e suas paredes internas e externas possuem 25 cm de espessura. As paredes externas possuem um embasamento que é destacado pela textura em chapisco. Quanto ao revestimento das paredes, acredita-se que sejam rebocadas e que o acabamento seja finalizado com pintura. As paredes dos ambientes de serviço adjacentes ao chalé e da edícula possuem 15 cm de espessura. Com exceção da garagem, as paredes dos ambientes de 284


serviço possuem revestimento cerâmico de aproximadamente 1,50m e acabamento com pintura. Quanto ao piso, não há registros muito precisos sobre o material constituinte devido à quantidade de entulhos e lixo que o recobrem, então ao fazer uma análise comparativa com o Restaurante Calamares, onde boa parte dos pisos ainda estão conservados, observou-se a utilização de pisos de madeira nas áreas comuns e íntimas. Os pisos de madeira localizados no térreo, geralmente são de taco em desenho tipo parquet, enquanto os pisos do 1º pavimento são de tábua corrida em decorrência do assoalho no qual serão dispostas. Segundo Sylvio de Vasconcellos (1979), o piso de tábuas corridas são assentados em barrotes que estão sobre os baldrames, no caso da instalação em pisos térreos. Essas tábuas, com espessura entre 10 e 15 cm, são pregadas em meias madeiras que estão entre os barrotes. A junção entre esses elementos pode ser de três tipos: os de junta seca, onde não há encaixe entre as peças; os de meio fio, onde o encaixe de uma peça repousa sobre o encaixe da outra peça; e os de macho e fêmea, onde o encaixe de uma peça se conecta com o encaixe da outra peça. Nas áreas molhadas, supõe-se que o revestimento utilizado era o ladrilho hidráulico, assim como no Restaurante Calamares, por ser a opção mais comum e viável oferecida durante o período de construção dessas edificações. Em relação ao forro, os resquícios ainda presentes no chalé sugerem que o material deste seja em madeira. A estrutura de sustentação do forro, bem como a estrutura de sustentação da cobertura são constituídas por peças de madeira. A instalação dos forros de madeira é semelhante a instalação do piso de tábua corrida descrita por Vasconcellos (1979). A estrutura do telhado do chalé é composta por tesouras de madeira e pela trama composta pela terça, caibro e ripa. Quanto à vedação da cobertura, acredita-se que inicialmente eram usadas 285


telhas francesas e que houve uma intervenção que as substituiu por telhas de fibrocimento. Essa hipótese é reforçada por alguns indícios, como a inclinação que a estrutura apresenta, bem como a cobertura de outras edificações do tipo chalé, como o Restaurante Calamares, que ainda conserva a cobertura com telhas francesas, além do fato de que a produção de telhas de fibrocimento é um acontecimento mais recente do que a provável data de construção do objeto de estudo. Quanto à presença de escadas, o chalé possui uma escada externa e outra interna. A escada externa é adossada à fachada, com degraus em marmorite avermelhado. A escada interna é feita de madeira, tem o formato de L, porém não possui patamares e seu guarda corpo possui detalhes geométricos. Figura 9: Detalhe do corrimão da escada interna

Fonte: Acervo DPHAC (2011).

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4.3 ANÁLISE DA ORNAMENTAÇÃO O chalé não possui uma ornamentação demasiadamente rebuscada. A fachada principal apresenta no hall de entrada colunas e pilastras trapezoidais com a base retangular. No guarda corpo do térreo, onde as esquadrias do tipo porta janela estão localizadas, há presença de elementos triangulares vazados na alvenaria. Esses elementos são executados em marmorite, um material usado em edificações daquele período em decorrência da sua textura diferenciada. Já o guarda corpo da sacada do 1º pavimento é constituído por um conjunto de balaústres, sendo que, abaixo do piso desta, existem quatro mísulas, ou segundo Vasconcellos (1979) cães de cantaria, distribuídas ao logo do comprimento da sacada. Figura 10: Análise de ornamentação da fachada

Fonte: DPHAC, 2006 adaptado por Bianca Barbosa do Nascimento (2017).

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Assim como no pavimento térreo, as esquadrias que dão acesso à sacada também são portas janelas de madeira com vidro e venezianas. A empena visível na fachada principal apresenta ornamentos executados em massa, formando um conjunto composto por três elementos triangulares ao redor de uma forma quadrada que simula a abertura de ventilação existente em edificações com sótão. A fachada também possui, ao longo do térreo e do 1º pavimento, ornamentos de argamassa que remetem a pilastras. Quanto a varanda, a falta de uma ornamentação no pilar e a pouca inclinação da cobertura desta levam a suposição de que a casa sofreu uma intervenção que transformou a sacada em varanda. As únicas ornamentações perceptíveis estão presentes na base do guarda corpo e na moldura que contorna a esquadria que dá acesso a esse espaço. Quanto ao muro, este possui uma altura mediana, e tem uma base de alvenaria com pilares distribuídos ao longo do comprimento do muro. O gradil que compõe o portão de acesso à casa, o portão da entrada para garagem e gradis fixados entre os pilares, possuem desenhos geométricos formados por retângulos e círculos circunscritos em quadrados. CONSIDERAÇÕES FINAIS O desenvolvimento dessa proposta em ferramentas com tecnologia BIM poderia beneficiar os vários setores interessados. O planejamento da obra seria mais rápido e o orçamento mais enxuto, as perdas de materiais seriam menores e o gerenciamento do imóvel pós-intervenção seria mais abrangente, culminando em uma durabilidade maior da vida útil da edificação. Somado a isso, o modelo gerado para este fim seria de grande importância para os estudos referentes à própria edificação e a sua tipologia e poderiam contribuir tanto para estudos arqueológicos com 288


ênfase nessa tipologia, chegando às diversas análises voltadas para o processo de reabilitação de edificações antigas. REFERÊNCIAS ALBERNAZ, Maria Paula, LIMA, Cecília Modesto. Dicionário ilustrado de arquitetura. Volume I – A a I. São Paulo: Vicente Wissenbach Editor, 1998. ARGAN, Giulio Carlo. Sobre o conceito de tipologia arquitetônica. In: ARGAN, Giulio Carlo. Projeto e destino. 1. ed. São Paulo: Editora Ática. 2004. AZEVEDO, Felipe Moreira. A Linguagem Arquitetônica Tradicionalista: estudo das residências neocoloniais no bairro de Nazaré, em Belém do Pará (1910-1940). 2015. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do Pará, Belém, 2015. BELÉM. Lei Municipal nº 7.709, de 18 de maio de 1994. Anexo 04 - Modelos urbanísticos do centro histórico de Belém e da sua área de entorno (Instrumentos Complementares). Disponível em: http://www.belem.pa.gov.br/segep/download/coletanea/Mapas/ch/ ch_anexo04b_mod elo-urban%EDstico-no-CHB.dwf. ______. Lei Municipal n. 8.655/08, de 30 de junho de 2008. Plano Diretor do Município de Belém. 2008. Disponível em: http://www. belem.pa.gov.br/planodiretor/paginas/planodiretoratual.php. Acesso em 08 ago. 2016.

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______. Lei Municipal n. 8.655/08, de 30 de junho de 2008. Anexo IX - Modelos urbanísticos do centro histórico de Belém e da sua área de entorno. Disponível em: http://ww3.belem.pa.gov.br/www/ wp-content/uploads/Anexos-XI-X-XI.pdf ______. Lei Municipal n. 8.655/08, de 30 de junho de 2008. Anexo V – Zoneamento. Disponível em: http://www.belem.pa.gov.br/ planodiretor/Plano_diretor_atual/Anexo_vzoneamento.dwf. CAL, Carmen Lúcia Valério. Esboço da Evolução da Arquitetura Residencial em Belém, na Primeira Metade do Século. Revista do Tecnológico, v. 2, p. 64-83, jan./jun.1989. CARTA DE LISBOA SOBRE A REABILITAÇÃO URBANA INTEGRADA (1995). 1º Encontro Luso-Brasileiro de Reabilitação Urbana Lisboa, out. 1995. Disponível em: http://www.culturanorte.pt/fotos/ editor2/1995__carta_de_lisboa_sobre_a_reabilitaca o_urbana_integrada-1%C2%BA_encontro_lusobrasileiro_de_reabilitacao_urbana.pdf>. Acesso em: 19 set. 2016. CÓIAS, Vitor. Reabilitação: a melhor via para a construção sustentável. 2007. Disponível em: http://www.gecorpa.pt/Upload/Documentos/Reab_Sustent1.pdf. Acesso em: 25 ago. 2016. DELGADO, Maria Joana Ferreira Cardoso Sardoeira. A Requalificação Arquitectónica na Reabilitação de Edifícios. Critérios Exigênciais de Qualidade; Estudo de casos. 2008. Dissertação (Mestrado em Reabilitação do Património Edificado) – Faculdade De Engenharia, Universidade do Porto, Porto, 2008.

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GLERIA, Ana Carolina. As Mudanças na Casa Rural do Oeste Paulista no Século XIX: a Presença do Pitoresco. Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, v. 20, n. 26, p. 38-53, 2013. MATEUS, Luís Miguel Cotrim. Metodologias de levantamento – Fotogrametria e Varrimento Laser 3D. 2011. Tese (Doutorado em Arquitetura). Faculdade de Arquitectura, Universidade Técnica de Lisboa. Lisboa, 2011. Disponível em: http://home.fa.ulisboa. pt/~lmmateus/publicacoes/FAS.pdf MIRANDA, Cybelle Salvador; CARVALHO, Ronaldo Marques de. Dos mosaicos às curvas: a estética modernista na Arquitetura residencial de Belém. Arquitextos, v. 112, p. 523 -531, 2009. OLIVEIRA, Marco Antônio. Reabilitação de Edifícios. In: Método de Avaliação de Necessidades e Prioridades de Reabilitação de Edifícios de Instituições Federais de Ensino Superior. 2013. Dissertação (Mestrado em Geotecnia, Estruturas e Construção Civil) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2013. p. 28-67. OLIVEIRA, Mario Mendonça de. A documentação como ferramenta de preservação da memória. Brasília: IPHAN/Programa Monumenta, 2008. PALERMO, Rodrigo de Ávila; LEITE, Taís Correia. Integração de levantamento fotogramétrico aéreo com o uso de VANT e levantamento terrestre para o mapeamento tridimensional das ruínas de São Miguel das Missões. 2013. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Engenharia Cartográfica) – Instituto de Geociências, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013.

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PEREIRA, João Maria de Almeida Frescata Correia. Estado da Arte. In: O Uso da Tecnologia BIM em Património Histórico um Caso de Estudo: O Convento dos Capuchos da Caparica (Almada). 2015. Dissertação (Mestrado Integrado em Arquitectura) – Instituto Superior Técnico, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2015. p. 6-38. REIS FILHO, Nestor Goulart. Quadro da arquitetura no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1978. VASCONCELLOS, Sylvio de. Arquitetura no Brasil – Sistemas Construtivos. Revisão e notas: Suzy de Mello. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 1979.

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O MÉTODO E A METODOLOGIA PROJETUAL ARQUITETÔNICA: do Modernismo ao Pluralismo Contemporâneo Ronaldo Marques de Carvalho

1. INTRODUÇÃO

“Um método é um procedimento regular explícito e possível de ser repetido para conseguir-se alguma coisa seja material ou conceptual” (BUNGE apud STROETER, 1986, p. 145). Esta definição é válida para a ciência, para a arte e para a arquitetura, uma vez que é possível, mesmo na busca contínua de novas concepções seguirmos um mesmo método. Etimologicamente, método significa a forma de se proceder ao longo de um caminho (no andamento de um trabalho), a fim de alcançar um objetivo pré-estabelecido. Método vem do grego meta = longo + hodos = caminho. Ao se projetar em arquitetura, o método tradicional e mais utilizado ainda é o do desenho que, na atualidade, avança com o uso de programas computacionais. Para proceder tal método projetivo, utiliza-se a escala que varia de acordo com as dimensões do objeto 293


em estudo, podendo ser ampliado, reduzido ou representado em dimensões reais. Neste método é utilizada uma concepção inicial, que irá se modificando até chegar a uma solução tida como satisfatória, de vez que o projeto de arquitetura poderá sempre ser avaliado e sofrer modificações. Para Stroeter (1986), no método tradicional o arquiteto pensa desenhando, sente desenhando, desenha, descobre desenhando, desenha descobrindo, constrói desenhando, molda as ideias no papel. Observa-se aí que o método na verdade se processa como uma sequência de tentativas até se chegar a uma solução admitida como final. Com o método tradicional do projeto, através de desenhos ou modelos, foi introduzida uma distinção entre o ‘pensar’ e o ‘fazer’, a concepção e a produção, trazendo vantagens através da divisão do trabalho de acordo com a especialização, oportunizando a atuação simultânea de várias pessoas (profissionais), dando margem, portanto, ao aumento da velocidade na reprodução do objeto e, consequentemente, a redução do tempo. Com a evolução da ciência e da tecnologia surgem novas formulações do método projetual. A fabricação de objetos compondo sistemas de montagem seguindo uma sequência com número de operações, além de programas mais complexos para os edifícios, com técnicas construtivas mais arrojadas, passa a exigir um planejamento de novo processo que usa o projeto do projeto (o meta-projeto) (Figuras 1 e 2). Há, desta maneira, um controle contínuo sobre o processo que permite o seu aperfeiçoamento durante o seu desenvolvimento, o que não ocorre no método tradicional, caracterizado na ‘tentativa e erro’, que somente no fim da ação poderá ser corrigido ou aperfeiçoado.

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Figura 1: Les Procedes Sigma – o projeto

Fonte: Lês Procedes Sigma. Paris: Edition Méthodes (1975, p. 18). Figura 2: Sigma – a produção industrial

Fonte: Idem. p. 13.

Os principais enfoques sistemáticos utilizados, ainda nos dias atuais, no planejamento e solução de problemas de projeto indicam 295


métodos que dependem da criatividade do projetista, apoiando-se no procedimento racional desde a sua atuação de controlador do processo, buscando soluções para problemas inéditos e complexos. “A divisão do projeto constitui-se em três fases: análise, síntese e avaliações” (JONES apud STROETER, 1986, p. 148). Conclui-se que, na fase da análise são realizados os estudos preliminares do projeto, na síntese ocorre a concretização das ideias através da definição das formas e na avaliação há possibilidade de refazer os estudos, buscando-se, desta maneira, a melhor solução para a ‘proposta final’.

2. A METODOLOGIA PROJETUAL ARQUITETÔNICA 2.1 OS FUNDAMENTOS

Montenegro (1987), ao reportar o projeto como metodologia ou criatividade, faz uma análise embasada no ensino do projeto na qual se podem tirar algumas conclusões. O ensino do projeto e consequentemente, a maneira de projetar ao longo dos anos, busca a solução do espaço habitado pelo homem baseando-se num programa de necessidades e, como consequência, surgem vários esboços concebidos até chegar-se àquele que poderá ser o melhor. O método projetual ou do ensino do projeto poderá ser considerado o mais simplório possível ou como diria o autor, “não chega nem a ser um método” (1987, p. 49). O organograma e o fluxograma começam a direcionar o projeto em que fatores de decisão passam a ser melhor visualizados. A partir daí, são realizadas diversas sínteses através dos partidos gerais, estudos de massa (volumes), e a inserção do objeto na paisagem com a análise mais minuciosa do meio em que irá se implantar o edifício. A partir do desenvolvimento da informática, o projeto passa a 296


ser produto da eletrônica e programas variados apontam as novas tomadas de decisão, utilizando-se de modelos alternativos. Ao longo dos movimentos da arquitetura, muitas metodologias projetuais já foram postas em uso em que, pensamentos, sentimentos, percepção e intuição acabam por estar presentes no consciente do profissional que produz arquitetura. Tomando como referência Alan Colquhoun, conclui-se que os métodos projetuais ainda em vigor são intuitivos, pois o emprego de desenhos utilizados tradicionalmente pelos arquitetos é incapaz de abordar uma contínua sobrecarga de problemas cada vez mais complexos a serem solucionados. Sem instrumentos de análise mais racionais, bem como classificações mais apuradas, os projetistas adotam em seus processos de trabalho exemplos já testados quando buscam suas novas concepções (JENKS; BAIRD, 1975). A partir do melhor estudo das formas geométricas, apoiando-se nos cálculos matemáticos, podem os arquitetos se utilizar de novos métodos projetuais levando-os a uma evolução do fazer a arquitetura e, com isto, fazendo surgir novas tendências. 2.2 NOS MOVIMENTOS DA ARQUITETURA MODERNA

Começando em 1910, movimentos revolucionários da arquitetura como o cubismo e o futurismo levam a arquitetura moderna ao caminho de um novo desenvolvimento. É claro que estas tendências vão se consolidando no decorrer do processo da evolução da arquitetura da primeira metade do século XX. A responsabilidade do arquiteto diante da sociedade, a abordagem racionalista ou estrutural da arquitetura e a tradição presente na instrução acadêmica a partir da École des Beaux-Arts de Paris configuram-se como pontos decisivos para a abertura de novas trilhas para a arquitetura, embora algumas concepções ainda do século XIX se mantenham vivas. 297


No século XIX Durand afirmava “um edifício completo qualquer não é, e não pode ser uma outra coisa senão o resultado da montagem e reunião de um número maior ou menor de partes” (BANHAN, 1975, p. 26). Esta ideia é uma das bases neoclássicas internacionais na qual a teoria arquitetônica moderna foi construída. A técnica da arte de desenhar paredes, aberturas, pórticos, vãos, telhados, arcos e escadas, entre outros, obedecem aos planos-tipo que sistematizam em um novo momento a projetação arquitetural. Sobre o posicionamento do arquiteto como profissional da arquitetura, o direcionador das ações e métodos da projetação, Julien Guadet afirma: O arquiteto é hoje ou deverá ser vários homens num só: um homem de ciência em todos os aspectos que dizem a construção e suas aplicações, um homem de ciência também em seu profundo conhecimento de toda a herança da arquitetura (BANHAM, 1975, p.29).

Percebe-se, desta forma, que ao longo da história, mesmo em épocas mais remotas, há uma busca contínua de formas de materialização da arquitetura através da sua construção, em que os processos metodológicos, através do espírito criativo do homem levam às aplicações do conhecimento na produção do objeto arquitetônico. Isto não quer dizer que procedimentos projetuais, quer sejam clássicos quer sejam modernos, possam na atualidade levar à produção de uma arquitetura equivocada; entretanto, à medida que novos avanços do conhecimento concebem novas tecnologias (dentre as quais a contínua evolução da informática e todo o processo cibernético) estas contribuem para a configuração de novos programas, que agilizarão e propiciarão a imaginação criadora do arquiteto em conceber espaços habitáveis. Retomando ao século XIX, as teorias sobre as construções diziam que a inspiração grega era fundamental para a boa arquitetura, racional e correta, muito embora sem se proceder à cópia dos modelos 298


clássicos. Le Corbusier já comparava a arquitetura com a maquinaria quando dizia ‘a casa é uma máquina de morar’ (Figura 3). Figura 3: A cúpula de concreto- a máquina de morar

Fonte: COBIJO (1985, p. 98).

Sempre que se processa a projetação é fundamental também a composição usando os materiais e as formas tradicionais de construir. Toda composição constitui-se da junção de partes que irá formar um todo, que deverá apresentar-se harmônico, como na música as notas formam as melodias. Isto se fundamenta na concepção clássica da arquitetura. Os aspectos metodológicos na concepção do projeto, já no século XX, passam a seguir um caminho bem mais racionalizado, a partir da fundação da Bauhaus, escola alemã que decorre da fusão da Academia de Belas-Artes e da Escola Konstgewerbe. Inicia suas ações conclamando arquitetos, pintores e escultores para o cartesianato, divulgando em alto e bom som que ‘o edifício completo é o objetivo fundamental das artes visuais’ e que os edifícios são entidades compostas. A ação desses profissionais é fundamental para todo o conjunto arquitetônico. Os métodos da educação da Bauhaus correspondiam ao ‘aprender fazendo’, todos os preconceitos deveriam ser subtraídos 299


da cabeça do aluno, levando-os a começar tudo do zero, deixando também de lado a tradição. Este método, no que pese o apagar das teorias e fundamentos do passado, constituiu-se de um conjunto importante, uma vez que a criatividade era posta à prova a partir da execução direta dos objetos, em que o projeto passa a ser elaborado começando pelas ideias desagregadas de dogmas. O que importa é a vocação para um material ou técnica, a libertação das habilidades inatas, o culto das sensibilidades intuitivas, destruindo o treinamento anterior. Na década de 30 do século XX, o funcionalismo passa a generalizar a arquitetura vista como progressista, e ainda nos dias atuais de alguma maneira percorre os corredores conceituais da arquitetura concebida para a sociedade contemporânea. Le Corbusier é considerado o criador do termo funcionalismo na arquitetura, uma vez que, ao prefaciar o livro Architettura Razionale recomendou que, ao invés de racional, se dissesse funcional. Vindo depois a enfatizar o princípio da funcionalidade, com a frase ‘a forma segue a função’ (BANHAM, 1975). É fácil entender no método projetual, a partir da funcionalidade, em que a forma passa a exercer forte influência nas concepções dos arquitetos, mesmo após a 1ª metade do século XX, destacando-se no Brasil com as obras de Niemeyer, que ainda hoje retrata-se a nós com obras em que a forma reflete o conteúdo do edifício e, por conseguinte, a sua função (Figura 4). As questões atinentes à metodologia projetual nos movimentos modernos continuam fortemente embasadas desde a Bauhaus, em que aquela necessidade da liberdade dos tabus estanqueadores, dos dogmas classicistas, e da idolatria dos valores arquitetônicos do passado, refletem-se na sistematização a partir da análise do conteúdo. No ato de projetar, a metodologia utilizada na Modernidade refere-se ao fato do projetista, ao pensar em cada detalhe ou no todo 300


do objeto arquitetônico, estes devem ser analisados em decorrência de suas funções tais como: a janela para ventilar e iluminar, abrir ao exterior a perspectiva do entorno, além de prestar-se como parte de um conjunto harmonioso. Nesta linguagem arquitetônica, os ‘porques’ e os ‘para ques’ induzem ao liberalismo das regras antiquadas e das configurações rígidas, que passam a serem substituídas pelas soluções individualizadas com morfologia variada, levando pela concepção livre e coerente as funções que respondem aos programas decorrentes de um uso específico. Na metodologia projetual da arquitetura moderna, a assimetria e a dissonância permitem a fuga dos modelos simétricos clássicos. Um quadro na parede já não é mais posto ao centro, a abertura de uma porta também não se obriga ao meio, de uma janela idem (Figura 5). Figura 5: O espaço assimétrico

Fonte: ZEVI (1984, p. 26).

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Outra tendência arquitetônica relativa ao método projetual corresponde à decomposição do objeto projetado, apresentando-se como paradigma: uma caixa estanque e fechada começa a ser produzida em planos, que se movimentam com tal liberdade, o espaço passa a propiciar uma gama de soluções, tais que a própria configuração plana e retilínea assume o aspecto curvo de várias alternativas (Figura 6). Figura 6: Decomposição

Fonte: ZEVI (1984, p. 44).

Ao projetar o Complexo Arquitetônico da Bauhaus em Dessau, na Alemanha, Walter Gropius faz a desarticulação do volume do edifício em três partes nas quais são projetados os dormitórios, as salas de aula e o laboratório. Estas partes se posicionam em direções diferentes, havendo a individualização dos componentes funcionais, do conjunto arquitetônico e a dissonância dos volumes projetados. Os arquitetos do começo do século XX, como Gropius e Corbusier buscavam a necessidade de expansão da indústria com a produção 302


arquitetônica. Em 1923, Corbusier dizia: “a grande indústria deve ocupar-se da construção e a estabelecer os elementos da casa sob a base da produção em série” (DREW, 1973, p. 10). Gropius parte também para a produção em série, quando desenvolve o conceito de casas construídas a partir de componentes normalizados. 2.3 NO QUE PENSAM OS ARQUITETOS

A partir de depoimentos de arquitetos é possível compreender, nos dias atuais deste terceiro milênio, as várias tendências da metodologia projetual arquitetônica. Neste artigo, escolhemos livremente quatro profissionais da arquitetura, sendo dois pertencentes à terceira geração modernista e dois da nova geração pós-moderna. Álvaro Joaquim de Melo Siza Vieira, arquiteto português, e Milton José Pinheiro Monte, arquiteto brasileiro, abrem uma etapa como representantes da terceira geração modernista; Reinaldo Jansen Silva e José Maria Coelho Bassalo, ambos pertencentes à nova geração pós-moderna encerram o estudo proposto. Não foi possível entrevistar pessoalmente Siza, entretanto o artigo “Arquitetura da simplicidade” publicado na Revista Arquitetura e Urbanismo traduz de forma transparente as suas ideias, propiciando a nossa análise quanto ao seu discurso. Quanto a Milton Monte, Reinaldo Jansen e José Bassalo, por tratarem-se de arquitetos paraenses, foi possível contatá-los e realizar entrevistas ao vivo. Passaremos, portanto, a discorrer sobre suas ideias a partir dos informes produzidos nas entrevistas.

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2.3.1 ÁLVARO SIZA

Siza é seguidor de uma metodologia projetual com uma característica peculiar, em que, respeitando as culturas, topografias, climas do lugar em que seus projetos são construídos, buscando sempre a identificação de suas obras aos referendos locais (Figura 7). Figura 7: Álvaro Siza

Fonte: Folha de São Paulo. Folha Ilustrada. 11 mar. 2000. p. 1.

Siza ganhou o prêmio Pritzker, Nobel da Arquitetura, possuindo obras em diversos lugares do mundo, notadamente na Europa e Estados Unidos, tendo projetado no Brasil, em Porto Alegre, o Museu Iberê Camargo (Figura 8). Figura 8: Projeto do Museu Iberê Camargo em Porto Alegre.

Fonte: Folha de São Paulo. Folha Ilustrada. 11 mar.2000, p. 1.

“Para Siza, é falsa a idéia de que o computador resolve problemas. A rigidez na concepção do projeto às vezes é diabólica” (AU, p. 60). Ele usa o método tradicional em seus projetos e, através da escultura, 304


se liberta das pressões do mundo moderno; na sua metodologia projetual a percepção visual com o reconhecimento do ambiente é parte integrante das etapas da projetação, vindo logo em primeiro lugar. O espaço a ser projetado deve impregnar o arquiteto, diz Siza, aí a sensação do local onde se produz a obra é de fundamental importância e os estudos de documentos e dados necessários ao bom desenvolvimento do projeto é prioritário. “O arquiteto da atualidade não tem estilo e sim linguagem própria” (AU, p. 60). A forma orgânica decorre em seu trabalho, de forma a conciliar suas preocupações já explicitadas em seu discurso. 2.3.2 MILTON MONTE

Ao entrevistarmos Milton Monte numa sexta-feira, 26 de outubro de 2003, constatamos sua formação de arquiteto e engenheiro civil, além de professor universitário aposentado com especialização em Arquitetura Tropical. Ficou evidenciado que suas concepções são primordialmente voltadas ao ambiente amazônico, com toda sua riqueza natural e sua fonte de inspiração (Figura 9). Monte realiza sempre um estudo minucioso do entorno, bem como valoriza e aproveita a mão-de-obra do local, assim como os materiais disponíveis para construção. Todo seu processo projetual desenvolve-se através do método tradicional da projetação, que ele mesmo chama de artesanal e sua mesa de trabalho ainda apresenta réguas, esquadros, lápis, papel e escala. Após definir com clareza a concepção de seus projetos com as formas prontas, leva o desenho à lápis ao seu estagiário, que o processa no computador e, após o desenho produzido eletronicamente e copiado, Monte avalia e reavalia fazendo correções e consequentemente, voltando ao desenhista eletrônico.

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Figura 9: Milton Monte

Fonte: foto do autor (2003).

Monte considera-se, por suas próprias palavras, um arquiteto amazônida, cita sua residência na ilha do Mosqueiro, praia do Ariramba, a 60 Km de Belém via rodoviária, como seu grande laboratório e no ato de projetar e construir gosta de viver o espaço continuamente. Destacam-se como obras importantes produzidas por Monte, além da residência citada por ele, a capela do Ariramba e a casa do Chapéu Virado no Mosqueiro, a casa do Gadotti no Coqueiro (município de Ananindeua, área metropolitana de Belém), além do premiado projeto para o Interpass Clube, localizado na ilha do Mosqueiro – Baía do Sol, com o qual recebeu o prêmio Arquiteto da América Latina (Figura 10). Suas obras apresentam grande desempenho tecnológico, nas quais sobressaem os materiais regionais, notadamente a madeira nas mais diversas formas e espécies, assim como a cerâmica. As coberturas em estrutura desenvolvida com madeiras são o seu forte e os detalhes arquitetônicos denotam o espírito do designer e detalhista Monte.

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Figura 10: Casa do Gadotti

Fonte: fotos do autor (1991).

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2.3.3 REINALDO JANSEN

Arquiteto e urbanista, nascido no Maranhão em 1947 e formado na Universidade Federal do Pará, é especialista em estruturas, sendo projetista de coberturas cujo forte é trabalhar com um sistema onde a compressão e a tração aparecem nos elementos estruturais advindos da geometria plana e objetos lineares (vetor ativo), bem como utiliza em seus projetos os treliçados estruturais (Figura 11). (entrevista realizada em 4 de dezembro de 2003) Figura 11: Reinaldo Jansen

Fonte: foto do autor (2003).

Em suas atividades acadêmicas como professor da UFPA (agora aposentado), sempre trabalhou com projetos estruturais utilizando os mais diversos materiais, destacando, entretanto, o concreto e a madeira, sendo que esta propicia os seus melhores projetos no estado do Pará. Sendo suas obras mais marcantes o pavilhão de dança do Clube da Aeronáutica (T-1) localizado na Avenida Júlio Cezar, no qual o uso do pilão como destaque do sistema da cobertura em forma circular permite abrir um grande vão. Outra obra importante é a boate Lapinha, na qual usa também o sistema de pilão. Projetou para a Universidade Federal do Pará a estrutura do Restaurante Universitário e da Capela Ecumênica, e no espaço de lazer municipal “Ver-o-rio” 308


realizou o projeto Memorial dos povos indígenas, às margens da baía do Guajará, em que mais uma vez o malocão em madeira é realçado por um sistema que se destaca pelo uso do cavaco na cobertura e da total estruturação em madeira (Figuras 12 e 13). Figura 12: Memorial dos povos indígenas

Fonte: foto do autor (2003). Figura 13: Vista interior.

Fonte: foto do autor (2003).

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A metodologia projetual de Jansen apresenta-se no ato artesanal do lápis e papel, utilizando-se numa segunda etapa o computador, embora não faça uso de programas especiais. Para Jansen, “o computador é uma excelente ferramenta, usando sempre nas suas concepções o equilíbrio e a resistência, além dos efeitos estéticos”. As soluções estruturais que adota primam pela forma e pela simplicidade, buscando sempre a melhor solução para a concepção do projeto. Jansen afirma “A estrutura é uma leitura da função pura com embasamento nos princípios estéticos básicos.” Todos os projetos de Jansen são iniciados com o esboço em que a forma é que faz nascer a estrutura necessária e este esboço é desenvolvido na mesa tradicionalmente sendo, numa segunda etapa, passado para o desenho eletrônico que, após, pode ser aperfeiçoado com o autor ao lado do digitador fazendo os ajustes necessários. 2.3.4 JOSÉ BASSALO Encerrando minha conversa com os arquitetos selecionados conforme citei no início, conversei com o arquiteto José Maria Coelho Bassalo em 27 de outubro de 2003. Formado em 1985 pela Universidade Federal do Pará, portanto, fazendo parte de uma nova geração de arquitetos paraenses; é professor Auxiliar IV da UFPA e mestrando em engenharia civil. Bassalo é o típico arquiteto da geração dos micros, tendo inclusive ensinado a disciplina Informática aplicada à arquitetura no Curso de Arquitetura da UFPA, trabalhando o projeto arquitetônico com os alunos utilizando o programa Autocad (Figura 14). Destaca-se pela execução de projetos habitacionais, notadamente na elaboração de projetos de edifícios multifamiliares na cidade de Belém. Em sua metodologia projetual concebe o projeto a partir de volumes escaneados, usando a planta-baixa como primeira etapa do 310


projeto, a partir daí só trabalha no computador. No programa computacional revisa quantas vezes for necessário o projeto, contando para isto com auxiliares e colaboradores, todos trabalhando diretamente no computador. Seu escritório não dispõe de pranchetas, salvo uma mesa que funciona como comando do próprio Bassalo. Nota-se, desta forma, que Bassalo é o profissional da arquitetura que utiliza a informática como processo projetual de uma forma radical. Figura 14: José Bassalo

Fonte: Bassalo, 2004.

Abaixo, perguntas formuladas pelo autor e respondidas pelo entrevistado por e-mail, bem como alguns exemplos do processo projetual do profissional em destaque.

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RC. Qual o programa que é usado? JB. Uso, atualmente, para o projeto, o AutoCAD como base de tudo. Mas também trabalhamos com outros programas de renderização como o Accurender e o ArtLantis. Também usamos o pacote Office para textos, apresentações e planilhas orçamentárias. RC. De que consta o programa? JB. O AutoCAD é um programa para desenhos de diversas naturezas, o qual possui módulos 2D e 3D. É um programa extenso, com muitos recursos para a produção de desenhos bidimensionais e tridimensionais. RC. Quais os caminhos seguidos para a elaboração do projeto? JB Os caminhos variam de acordo com a natureza do projeto, mas, de maneira geral, os projetos nascem de croquis produzidos à mão livre, croquis esses que podem ser plantas, cortes ou perspectivas, os quais são imediatamente desenhados no computador, onde são avaliados. Suas evoluções se fazem tanto nos croquis, novamente, quanto no próprio ambiente virtual, dependendo do caso. Definido o projeto, parte-se para sua produção mais técnica, elaborando-se os desenhos definitivos de plantas, cortes, elevações, detalhes, maquetes eletrônicas e demais outros produtos que se façam necessários. RC. Quando o projeto é trabalhado no computador - após que fase? JB. Como já afirmei na resposta acima, o projeto é trabalhado no computador desde sua gênese, em diálogo com os croquis feitos à mão livre. RC. Como são feitas as avaliações - revisões do projeto? JB. As avaliações das concepções são realizadas em discussões frente aos modelos virtuais, investigados na própria tela. Quanto às revisões no projeto pronto (se é que entendi a pergunta), são realizadas em “pré-plotagens”, ou seja, em plantas plotadas. Normalmente, cada planta é plotada, no mínimo, duas vezes. Uma para a revisão e uma final. São comuns, entretanto, casos em que plantas são plotadas 3 ou mais vezes até ser considerada pronta para entrega. RC. Cite um exemplo da sequência projetual. JB. Segue, em anexo, uma sequência de desenhos e imagens que exemplificam um caso típico.

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As Figuras 15 a 18 correspondem às sequência metodológica de concepção e desenho de um projeto de uma capela concebida e projetada pelo arquiteto Bassalo. Figura 15: Etapa 1- Croqui

Figura 16: Etapa 2 - Estudo

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Figura 17: Etapa 3 - Projeto

Figura 18: Etapa 4- Obra construída.

Fonte: José Maria Bassalo.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS A arquitetura mundial vive nova fase crítica no período que se inicia pelas duas grandes guerras mundiais do século XX, em que os arquitetos considerados por Drew (1973) como sendo da Terceira Geração Modernista buscam renovações e maturidade na ânsia da evolução da arquitetura. O próprio exibicionismo individual e a vontade de atingir novos caminhos para a arquitetura levam os 314


profissionais deste período a busca de uma nova identidade, que os desatrelam dos primeiros modernistas. Aquele racionalismo dos fundadores da arquitetura moderna e suas ditaduras de orientações pré-concebidas começam a se incompatibilizar com o entorno vivo e imutável. O pluralismo fruto das diferenças implicará em nova expressão desinibidora do processo criativo, buscando-se desta forma uma ordenação intrínseca e democrática do entorno. Nesta nova fase da arquitetura, o racionalismo retoma o classicismo e o misticismo, rejuvenescidos, em que a composição orgânica espontânea de ordenação predomina a partir do uso da geometria e da matemática, que decorre das novas conquistas desses conhecimentos. Novos grupos de arquitetos se fundam com movimentos diversos, como Archigram inglês e o Metabolismo japonês, posicionando-se em regiões europeia e asiática, respectivamente. Estes novos grupos privilegiam o simbolismo da forma arquitetônica, a desordem fruto da própria desordem dos assentamentos urbanos buscando, entretanto, uma auto-regulação de certa forma uma nova racionalidade para as concepções e consequentemente para os métodos projetuais. Nestes dias do século XXI, a arquitetura mais do que nunca segue as diretrizes ecológicas e percorre novos caminhos cibernéticos buscando a harmonização com a natureza e, consequentemente, com as transformações sócio-políticas do mundo. REFERÊNCIAS BANHAM, Reyner. Teoria e projeto na primeira era da máquina. São Paulo: Perspectiva, 1975. COELHO NETTO, J. Teixeira. A construção dos sentidos na Arquitetura. São Paulo: Perspectiva, 1997. 315


DREW, Philip. Tercera generación. La significación cambiante de la arquitectura. Barcelona: Gustavo Gili, 1973. FIGUEROLA, Valentina. Arquiteto da simplicidade. Entrevista. AU Arquitetura e Urbanismo, São Paulo, nº 113, ago. 2003, p. 60-61. JENKS, C.; BAIRD, G. El significado en Arquitectura. Madrid: Hermann Blume, 1975. KAHN, Lloyd. COBIJO, Madrid: Herman Blume, 1985. MONTENEGRO, Gildo A. A invenção do projeto. São Paulo: Edgard Blücher, 1987. ROSSI, Angela Maria Gabriella. Exemplos de flexibilidade na tipologia habitacional. In: VII Encontro Nacional de Tecnologia do Ambiente Construído/ Qualidade no Processo Construtivo. Florianópolis: Associação Nacional de Tecnologia no Ambiente construído, 27-30 abr. 1998. p. 211-217. STROETER, João Rodolfo. Arquitetura e teorias. São Paulo: Nobel, 1986. ZEVI, Bruno. A linguagem moderna da Arquitectura. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1984.

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COBRINDO GRANDES VÃOS: a utilização da madeira, do metal e do concreto armado para a construção das estruturas Ronaldo Marques de Carvalho

1. INTRODUÇÃO As construções primitivas eram realizadas por pessoas hábeis e, por conduzirem toda a sequência dos trabalhos com conhecimento suficiente para sua total consecução eram chamados mestres-deobras. Ao desenvolverem suas atividades, não só através do comando, como também com a execução dos serviços, transmitiam a seus ajudantes-aprendizes e futuros seguidores as maneiras de fazer abrigos utilizando os materiais acessíveis, oriundos de locais próximos. Com estes materiais, através de aprendizados anteriores ou levados pela criatividade dos mestres, faziam surgir técnicas adequadas na construção dos abrigos. Nestas construções, as técnicas utilizadas eram pouco registradas e a maneira de fazer teria que ser transmitida do mestre para seu ajudante, que passava para outros e assim sucessivamente. O fato de muitos materiais primitivos serem de pouca durabilidadade propiciava também a dificuldade do registro para a preservação dos modelos às gerações futuras. Nossos ancestrais ocupavam habitações primitivas como as copas de árvores e interiores de cavernas existentes em áreas rochosas, aqui 317


bem mais fácil de se defender das intempéries e dos ataques dos predadores, que eram em grande número. Nas cavernas também havia a defesa quanto aos ataques do próprio homem, quando este pertencia a uma outra tribo. As necessidades humanas decorrentes das condições climáticas e da busca de novas maneiras de obter alimentos, principalmente através da produção agrícola, em que o homem se sedentariza, constituem fatores primordiais para o aparecimento de novos instrumentos de defesa e de trabalho, em que a agricultura é fundamental. Estes instrumentos, principalmente aqueles produzidos já na Idade do Metal, passam a constituir mudanças nas formas de construir os novos abrigos e, a partir desta era, começam a prevalecer as construções em madeira que facilitará a aplicação contínua, e logo os aglomerados humanos passam a se multiplicar. Com o uso paralelo da pedra, o homem adquire novas “asas” no caminho de renovar as formas de construir o abrigo. Aliás, por muitos séculos, o ser humano construiu seus abrigos utilizando aqueles materiais mais abundantes in natura. Na chamada pré-história, ainda na Idade do Metal, continuam predominando as construções em madeira e pedra em que as palafitas do neolítico e os dolmens megalíticos sobressaem-se na busca de abrigos construídos em regiões diversas do mundo, tais como as regiões da França, Alemanha e ilhas britânicas (CARVALHO, 1968) (Figura 1). Figura1: Casa de seringueiro – Acre, de palha e paxiúba

Fonte: Costa; Mesquita (1978, p. 54).

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Denota-se, desta maneira, a incessante busca do homem às melhores condições de habitabilidade e, consequentemente, às novas formas de construir sua morada. Embora as edificações mais necessárias ao abrigo humano fossem as habitações, os prédios públicos e os palácios acabaram por se constituir nos mais significativos exemplares da evolução da arquitetura e das construções com grandes vãos (Figura 2). Figura 2: Cobertura Parque do Utinga, Belém

Fonte: Ronaldo Marques de carvalho (2018)

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2. OS MATERIAIS ESTRUTURAIS 2.1 GENERALIDADES

Um componente essencial da arquitetura é a estrutura, que se corporificará desde as fundações, passando pelos apoios externos, verticalizados ou não, indo até a cobertura, tanto de um simples abrigo quanto da concepção de grandes espaços destinados a diversos fins. Estes necessitam de sustentação e estabilidade, que decorre de condicionantes constituintes das características dos materiais utilizados, suas dimensões e composição. É necessário para tal precaver-se a própria estabilidade da estrutura quanto ao seu peso próprio e às sobrecargas, a que esta estará submetida. Os fenômenos da natureza, tais como o vento, as descargas atmosféricas, os terremotos entre outros, só serão resistidos pela arquitetura das edificações de uma forma geral se a estrutura destas for bem projetada, calculada e executada. Um dos grandes problemas que o homem teve que vencer ao projetar seus abrigos ao longo do tempo foram os efeitos da gravidade da Terra que, antes dos fenômenos variáveis da natureza se evidenciou como o primeiro grande obstáculo. O curioso é que, mesmo sendo a referência básica para a estabilidade no sentido da carga estrutural, é também positivo na fixação da construção num determinado lugar, uma vez que a atração gravitacional fixa o objeto à superfície da Terra. Embora na pré-história o homem tenha realizado seus primeiros ensaios na busca de soluções estruturais, foi na antiguidade que se construíram edifícios que até os dias de hoje resistem ao tempo, graças aos materiais utilizados. O Parthenon sustenta-se por uma sucessão de colunas e vigamentos superiores (arquitraves) (Figura 3). Neste exemplo, a estrutura faz parte da composição do edifício, propiciando ao seu criador os arremates que buscam não só o adorno estético, como também as formas de melhor aplicar as peças, dando ao conjunto o equilíbrio necessário. 320


Figura 3: O Parthenon

Fonte: Ronaldo Marques de Carvalho (2019).

No decorrer da evolução da arquitetura até os nossos dias, fica patente que o conhecimento e domínio das questões estruturais dos edifícios, por parte de arquitetos e engenheiros, é altamente significativo e sem o qual é impossível avançar-se às concepções novas e, mesmo as construções mais simples precisam desses conhecimentos. Na estrutura de um modo geral como aqui especificamente, nas coberturas, os materiais estruturais surgem ao longo da história numa decorrência das descobertas realizadas pelo homem, logo, o uso da madeira, da pedra, do metal e do concreto, vem numa decorrência da própria quebra das fronteiras do conhecimento e das tecnologias. A seguir serão feitos comentários sobre os materiais consagrados fundamentais para a arquitetura e, consequentemente, para a construção de estruturas que comporão as coberturas para os grandes vãos. 2.2 A MADEIRA

Por muitos séculos o homem utiliza a madeira em diversos instrumentos, mobiliários e estruturas construtivas. Na construção, sua 321


utilização como material estrutural decorre de sua capacidade de absorver elevadas tensões de tração, além de suportar vãos acentuados com pequena seção transversal, se comparada, por exemplo, com o concreto armado. Isto permitiu ao longo do tempo que, por apresentar-se às mãos na natureza, a madeira tenha servido ao homem numa primeira instância no suprimento de suas necessidades construtivas. Contemporaneamente, a madeira continua sendo utilizada em grande escala em construções, inclusive pré-fabricadas, fundamentalmente em habitações unifamiliares, indo desde as fundações até a cobertura, e é possível se construir uma casa completa totalmente de madeira, sem precisar de outro material. A madeira, quando usada estruturalmente, cabe tanto nas peças verticais quanto horizontais, graças à sua resistência aos esforços de compressão, tração e flexão. São inúmeros os exemplos de construções ao longo do tempo em que esteios, vigas e outras peças de sustentação utilizam-se da madeira com diversas técnicas e composições (figura 4). Figura 4: Esforços de tração e compressão

Fonte: Cobijo (1985, p. 75).

Em usos diversos, a madeira poderá ser empregada não só no estado natural após o corte com bitolas consideradas para a construção 322


através da industrialização, como também pelo seu aproveitamento decorrente dos rejeitos industriais da própria madeira. Assim, é possível produzir a madeira em chapa com a fabricação de laminados, compensados e aglomerados, propiciando ao construtor outras formas e possibilidades de uso, bem como é possível aproveitar ao máximo a produção da madeira por ser esta renovável. A utilização da madeira como material de construção apresenta, como todos os materiais, vantagens e desvantagens. Entre as vantagens, a resistência para determinados usos, a rapidez de sua utilização através do fácil transporte, corte e aplicação além da rendibilidade, como também a flexibilidade decorrente da obtenção das mais diversas formas, além da nobreza em si do material com inúmeras espécies. Não nos propomos aqui a um estudo detalhado das diversas vantagens da madeira, que por si só exigiria longas e exaustivas análises, principalmente quanto a sua resistência aos esforços de tração e compressão que motivam os estudiosos da engenharia estrutural. Entre as desvantagens da utilização da madeira, poderão ser enfatizadas a alterabilidade e a durabilidade. A alterabilidade decorre dos movimentos, consequência da sua estrutura orgânica que, após o corte, produz movimentos tais como retorcimento, dilatação, contrações que são resultado das variações térmicas e higrotérmicas por ocasião da perda de parte da água e outras substâncias hídricas de sua constituição. Outra desvantagem destacada quanto ao uso deste nobre material refere-se a sua durabilidade. A madeira, como todo material orgânico, por mais dura que seja, não está isenta do ataque dos fungos, insetos e outros seres predadores microscópicos. As variáveis ambientais tais como excesso de umidade, excesso de radiação, além dos acidentes tal como o incêndio, contribuem para a rápida consumição da madeira. Diversos são os tratamentos industriais que buscam evitar os efeitos causados por agentes ambientais na madeira, dentre os quais 323


a mineralização ou proteção com pinturas diversas. Sendo assim, a tecnologia atual busca soluções à adequação do corte e da secagem para evitar maiores prejuízos às peças industrializadas. O uso de diversos componentes químicos contribui para a sua preservação, além do acabamento com vernizes especiais. A maneira de como utilizar a madeira e como tratá-la contra os microrganismos e a umidade dependerá do conhecimento de cada profissional, uma vez que a classificação das madeiras implica em características variáveis em que cada espécie é própria a um determinado uso. Assim, existem madeiras que vive melhor na água e outras no seco. 2.3 O METAL

Quanto ao uso do metal na arquitetura e nas construções de um modo geral, é necessária uma compreensão das diversas formas da aplicação deste material. Considerando que o metal em si, desde os tempos remotos da história da humanidade, fora utilizado pelo homem, embora em pequena escala nas construções e em maior quantidade na forma mais pura do ferro e de outros metais, transformados em ferramentas de ferro fundido. Somente a partir da Revolução Industrial é que este material passa a ser aplicado nas construções, já transformado em aço. Nos primórdios do uso do ferro o homem trabalhava com o ferro fundido, que ainda não era o aço, que somente muitos séculos depois passou a ser produzido num processo de limpeza do minério de ferro, com a eliminação das impurezas e com a forma líquida, isenta dos elementos aditivos que o transformam em aço, voltando ao estado sólido. A história da arquitetura nos mostra que o ferro fundido, o minério puro, foi o primeiro material siderúrgico utilizado na construção civil, sendo aplicado em esquadrias, adornos, calhas, dutos, etc. A utilização do ferro com responsabilidade estrutural, 324


passando a ser trabalhado em escala industrial a partir do século XIX é decorrência do grande surto da industrialização gerado pelo avanço da Revolução Industrial (Figura 5). Figura 5: Pavilhões em ferro Mercado Bolonha

Fonte: Cybelle Miranda (2017).

Os países que primeiro industrializaram em maior escala o ferro foram a Inglaterra, a França e a Alemanha, fazendo surgir um desenvolvimento do setor siderúrgico com o aparecimento dos processos pioneiros que levam à produção do aço em grande escala. As primeiras pontes metálicas foram construídas em ferro fundido, como por exemplo a ponte sobre o rio Sevrn, na Inglaterra, no ano de 1779, e com a evolução das ferrovias, grandes pontes são construídas, bem como estações ferroviárias estruturadas em ferro, propiciando estudos e pesquisas voltados para os cálculos e novas tecnologias com o uso deste material. Na Inglaterra, por volta de 1830, como consequência das edificações das estações ferroviárias, são iniciadas as construções de edifícios em estruturas metálicas. O Palácio de Cristal, construído em 1850 em Londres, constituiu-se no primeiro pavilhão de exposições universais com peças moldadas em ferro fundido, utilizando como material de vedação o vidro. E em Paris o Mercado Central des Halles é construído no ano de 1853. 325


Por volta de 1860, os primeiros processos de transformação do ferro para obtenção do aço, a produção em escala industrial passa a difundir este material e grandes monumentos são construídos. Em 1868, com a construção de uma ponte em aço sobre o rio Mississipi no Estados Unidos, constituída de três arcos treliçados tendo no total um vão de 159 metros, inaugura-se a nova era do ferro, que agora deixa de ser utilizado com a predominância da mera fundição, e a arquitetura e a engenharia civil passam a expor novas formas, alargando enormemente as fronteiras da utilização do metal. A Ponte do Brooklyn, em Nova York construída em 1883 com 487 metros de vão, entre outras, denota o arrojo agora possível graças à utilização do aço e, em 1895, com a Escola de Chicago, inauguram-se as construções de edifícios multifamiliares com diversos pavimentos e a nova tecnologia da construção passa a ser usada nas grandes cidades norte-americanas, com predominância dos edifícios comerciais. A Torre Eiffel, construída em Paris, inaugurada em 1889, acaba por ser o marco da construção em aço no século XIX, guardando até hoje o valor inconteste da arquitetura metálica (Figura 6). Figura 6: Torre Eiffel

Fonte: Ronaldo Marques de Carvalho (2012).

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Na atualidade, não existem restrições tecnológicas que significativamente possam contrapor-se à construção de edifícios em estrutura metálica usando o aço como referência básica no seu corpo. As plataformas destinadas à exploração do petróleo em pleno mar, entre outros exemplos, servem para corroborar esta afirmação. O aço permite construção industrializada com o favorecimento de facilitar todo tipo de obra, inclusive os edifícios altos. Assim, grandes são as vantagens no uso do aço: 1. Mão de obra e equipamentos são usados de modo racional e fácil controle, sem desperdícios; 2. Menores prazos para execução, graças à pré-fabricação; 3. Racionalização do canteiro de obras, com menores riscos nos orçamentos do empreendimento quanto ao uso do material; 4. Facilidade para o controle de qualidade; 5. Apresenta menores cargas, propiciando fundações mais econômicas; 6. Vãos maiores em decorrência da resistência do aço, com bitolas menores e peças mais esbeltas;

No caso do Brasil, o uso do aço tem grande perspectiva, uma vez que nossa produção mineral, fundamentalmente na Serra dos Carajás no Pará, dispõe-nos de grande escala produtiva até os próximos 500 anos. Portanto, os edifícios construídos em aço obtêm singulares características, se adequando a qualquer meio, sendo importante e necessária a utilização deste material nas construções contemporâneas. Mas o aço também tem as suas desvantagens e a principal delas é a corrosão, decorrente da combinação com os elementos atuantes no meio ambiente, como o oxigênio e a água, que levam à formação do óxido de ferro, fazendo o componente do aço, o ferro, retornar ao estado primitivo permitindo que haja o enfraquecimento do material, indo até a sua total decomposição. A oxidação na superfície gera 327


grandes feridas nas estruturas que se aprofundam, podendo causar a perda total de uma determinada peça. As tecnologias visando a preservação do ferro desenvolvem-se continuamente e, assim, para eliminar ou reduzir a velocidade da corrosão é possível produzir aços resistentes, utilizando revestimentos zincados ou simplesmente pinturas não-metálicas bastante eficientes nos cascos de navios, sujeitos à salinidade da água. Assim como a madeira, o aço é material constituinte de vários acessórios utilizados no caso específico da construção civil. Assim, chapas, perfis, elementos de fixação como parafusos, barras, conectores de cisalhamento, chumbadores, telhas de aço, estacas, esquadrias entre outros, são feitos em aço. Atualmente, a soldagem é amplamente usada nas junções do material, permitindo uniões de complexas geometrias, com a consecução de estruturas mais leves. A soldagem aplicada é a soldagem por fusão, onde as peças colam-se ou são coladas com material próprio e assim, se fazendo únicas sem parafusos ou outros componentes (Figura 7). Figura 7: União com chapas parafusadas

Fonte: Ronaldo Marques de Carvalho (2002).

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2.4 O CONCRETO ARMADO Começa a ser usado em 1868 após sua descoberta pelo jardineiro Monier. É uma decorrência da utilização maciça do aço que acaba por ser “o espírito do concreto armado”, que é armado em função das redes e armações confeccionadas com vergalhões de aço. O concreto poder ser simples, em que o cimento e areia formam um volume que suportará a compressão, mas não a tração e armado, que já suportará além da compressão os esforços de tração, além do armado protendido, consequência da evolução das grandes estruturas que começaram pela construção de pontes e até os nossos dias com os edifícios monumentais com os mais diversos fins. No concreto armado protendido, as peças sustentam os esforços de tração e compressão com pré-moldagem, assim como também são construídas para serem usadas como divisórias e painéis, compondo todo o corpo de uma edificação (Figura 8). Figura 8: Laje pré-fabricada

Fonte: ARQ2. São Paulo: IAB, dez. 1987. p. 37.

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O concreto protendido é a conquista mais atualizada do uso do concreto armado e, graças a essa técnica, os edifícios pré-fabricados podem ser produzidos em canteiros especiais que, com a ajuda de guindastes quando necessário, vão sendo montados numa sequência macro industrial. Uma peça em concreto armado é solicitada por esforços cujo desempenho do conjunto aglomerante, aglomerados, agregados e ferro acabam por constituir, com uma dosagem adequada, um material final homogêneo que trabalhará como um corpo único. “O concreto armado provê o sistema trilítico de imensas possibilidades e inúmeras modalidades construtivas(...)” (CARVALHO, 1968, p. 202). A mistura de areia e cimento é muito utilizada na fabricação de peças tais como blokrets, tijolos, elementos para acabamentos de alpendres, cobogós, dentre outros, além do seu uso para confecção de calçamentos que é mais comum. Nesta mistura, o cimento compõe com a areia uma massa que se uniformiza. Quando nesta massa são adicionadas pedras como seixos, cacos, britas, passa-se a ter uma mistura chamada de concreto magro. A mistura referente ao concreto constituído de areia, cimento e pedras miúdas, ou outros componentes que, quando lançados em forma contendo no seu interior o aço, como por exemplo, o CA 50, resulta num bloco que passa a ser o concreto armado. Na fabricação do concreto armado protendido, todas as tensões a que se submeterão as peças: vigas, pilares, lajes, são postas em prática no momento da confecção destas peças, que serão alocadas nos pontos para os quais foram fabricados já preparados para suportar as cargas previstas em cálculo. Como todo material, o concreto armado apresenta vantagens e desvantagens. O aspecto principal relativo à vantagem no uso do concreto armado é a sua durabilidade, que supera a madeira e o ferro que precisam de tratamentos especiais a fim de que se preservem. As 330


ações referentes à manutenção do concreto podem ser mais intervaladas, uma vez que este material resiste às intempéries como chuva, Sol, vento, com mais segurança, principalmente no que se refere ao conteúdo principal, o aço, que não é atingido pela oxidação. Quando aplicados sobre a peça vernizes ou seladores apropriados, maior será a proteção ao concreto. Outra vantagem do concreto refere-se à sua facilidade de uso em qualquer obra, seja ela pequena ou grande, basta que se tenha os materiais necessários para a sua composição e moldagem, logo estará pronta a peça desejada. A plasticidade do concreto é uma outra vantagem que atinge as mais diversas aplicações e, na arquitetura, é possível a fundição de partes curvas, retas, mistas, com dimensões variadas, bastando que se saiba trabalhar o ferro e as formas. A obtenção dos materiais componentes, pela grande escala de produção que no Brasil espalha-se em quase todas as regiões, inclusive o cimento, que com o ferro são inequivocamente os fundamentais para a fabricação das peças de concreto armado e o acesso mais fácil por parte da mão de obra e de materiais componentes necessários como as madeiras para formas e outros, também facilitam a utilização do concreto armado. No caso de acidentes como incêndios, por exemplo, o concreto armado resiste por muito tempo ao fogo, assim como não contribui para sua instalação e propagação. Quanto às desvantagens, referente ao uso de outros materiais, implica no maior peso próprio da estrutura, uma vez que, para se vencer grandes vãos e sobrecargas é necessário que as peças tenham seções maiores, principalmente aquelas que suportarão grandes esforços de tração. É comum, para vencer um determinado vão, que as vigas de concreto sejam mais pesadas que as de ferro ou madeira. Para locais mais inacessíveis ou de difícil acesso, o transporte de peças, mesmo pré-moldadas, exigirá maiores esforços e o uso de equipamentos especiais. No caso de terremotos é inevitável o desmoronamento do 331


concreto, causando acidentes ainda mais danosos que o próprio abalo sísmico. Entretanto, o concreto continua sendo usado em grande escala na engenharia e na arquitetura em todo o mundo.

3. A ESTRUTURA E OS SISTEMAS ESTRUTURAIS A estrutura configura-se o ponto chave para a sustentação do corpo de uma edificação, o sistema estrutural refere-se a maneira como peças se conjugam para formar uma determinada estrutura. As soluções estruturais são diversas ao longo da evolução das edificações e, no que concerne às coberturas, as armaduras que são fundamentadas basicamente nos esforços de tração e compressão, solucionam através dos tempos as coberturas, principalmente aquelas cujas dimensões são consideradas grandes para serem vencidas por peças unitárias, que para suportarem cargas e grandes dimensões necessitariam de grandes seções (Figura 9). Figura 9: Sistema protendido com cabos de estabilização transversais

Fonte: Engel (1981, p. 44).

Através da transferência de esforços, é possível criar uma estrutura estável que, ao formar um conjunto solidário, suportará cargas que serão transmitidas para os apoios, permitindo, com isto, seções mais esbeltas que aquelas que seriam utilizadas de forma isolada. Como primeiro conjunto solidário, as tesouras e treliças 332


conseguem formar uma armadura que propicia um conjunto harmônico quanto à transmissão de cargas para dois pontos de sustentação (apoios), assim como as treliças que, ao lançarem os esforços ao longo das peças horizontais também levam-nas aos apoios. Dependendo do uso do material e dos tipos, as peças das armaduras poderão ser unidas através de parafusos transpassados nas peças, com auxílio de chapas de união parafusadas ou não com soldas e outras junções (Figura 10). Ao utilizarmos estes sistemas e, consequentemente, o uso dos contraventamentos paralelos para proteção das estruturas quanto ao equilíbrio, como principalmente com respeito às intempéries, é necessária a utilização de peças nos sentidos longitudinais e transversais da cobertura. Figura 10: Conexão no Centro George Pompidou Paris

Fonte: Ronaldo Marques de Carvalho (2012)

Outra solução dada para cobrir grandes vãos é a cobertura estruturalizada com o uso de cabos que consiste na fixação destes no solo, passando pela extremidade de pilares, permitindo assim que sobre estes cabos passem vigas ou placas paralelas, formando uma superfície poligonal chamada ‘parede de barril’ (Ver figura 9). Inúmeras soluções 333


podem ser dadas utilizando-se esta técnica, em que a cobertura de cabos com nervuras em forma de arcos de sela ou de abóbadas são as mais frequentes. As armaduras espaciais, que são estruturas mais recentes usadas para cobrir vãos nos quais o material de revestimento da cobertura é preferencialmente constituído por substâncias leves. Estas estruturas, mesmo sendo compostas por materiais com peso próprio pequeno (ligas metálicas) apresentam-se em seu conjunto uma malha bastante densa, que acabará por aumentar seu peso próprio, que será transmitido para os apoios posicionados de acordo com as características do projeto. Estas armaduras são montadas utilizando-se de conectores, peças de formas poligonais diversas ou circulares que são atreladas através de parafusos aos diversos pontos dos elementos de fixação (figura 11). Figura 11: Armadura espacial- Aeroporto de Belém.

Fonte: Ronaldo Marques de Carvalho (2002).

Ainda sobre as armaduras espaciais, é possível destacar as chamadas cúpulas Schwedler, que se fundamentam nas formas esféricas e assim as cúpulas geodésicas muito utilizadas no mundo, inclusive em espaços habitáveis, propiciando grandes e pequenos vãos. A utilização 334


deste sistema requer preferencialmente o uso do aço e de outras ligas metálicas, embora sejam executadas também em madeira. Figura12: Recomposição de forma geodesia no Parque do Utinga, Belém

Fonte: Ronaldo Marques de Carvalho (2018). Figura 13: Cúpulas Schwedler.

Fonte: Salvadori; Heller (1966, p. 140)

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Nas concepções dos diversos sistemas estruturais, uma solução que demanda séculos de uso é o arco, que nos primórdios das edificações foi construído em madeira in natura, depois em pedra e posteriormente já na modernidade com os mais diversos materiais. Os arcos podem ser construídos utilizando vários sistemas e com materiais variados, podendo apresentar no seu corpo o treliçado e o sanduichado, sendo os treliçados mais usados em madeira e aço e os sanduichados em madeira. É comum a construção de arcos para cobertura em concreto armado, que passam por um processo de evolução indo à pré-fabricação. Uma combinação de arcos indo até o piso permite criar abóbada de concreto chamada abóbada de arcos. Entretanto, o uso reduzido de arcos em diagonal facilita a definição de uma cobertura em abóbada seccionada. Quando os arcos se encontram no centro, a partir de diagonais, estamos na presença de cobertura em cúpula, também chamada de cobertura de arcos radiais, neste caso cada arco é apoiado em bloco no solo, para o qual é transmitida a carga total da cúpula. Usando o concreto armado como predominância, as cascas apresentam-se como estruturas resistentes à flexão com espessuras capazes de suportar também cargas de compressão, corte e tração. As cascas permitem a construção de cúpulas e coberturas curvas de formas diversas com boa resistência mecânica. O curioso é que as cascas podem ser construídas também em madeira e materiais plásticos, embora ‘trabalhem’ melhor quando edificadas em concreto armado. É possível obter inúmeras formas em casca tais como: sela de montar, superfície de revolução elípticas e parabólicas e superfícies cilíndricas, torais e cônicas. Na formação de um sistema estrutural mais atualizado, a membrana, embora inspirando-se nas antigas tendas, sem dúvida é uma das mais recentes conquistas da tecnologia contemporânea. Originalmente compõe-se, na parte referente ao revestimento, de material 336


delgado com resistência à tração, sendo as lonas de materiais sintéticos, emborrachados e plásticos tensionados através de conexões aos apoios geralmente pré-construídos de aço. São diversas as formas de tração executadas nestas coberturas e as antigas coberturas de circo, com apoio central para a fixação de cabos indo até o chão são os primeiros exemplos que evoluíram para as atuais membranas (Figura 14). Figura 14: Membrana pré-tensionada na feira do Ver-o-peso

Fonte: Cybelle Miranda (2020)

Um exemplo também secular e simplificado de membrana é o guarda-chuva, guarda-sol em que os elementos estruturais superiores são apoiados por peças que tensionam as de sustentação da lona, fixando-se no apoio central (cabo). Dentro de certos limites, a membrana de um guarda-chuva absorve pressão superior e inferior. A cobertura circular pré-tensionada é mais um exemplo de membrana. 4. EVIDENCIANDO USOS São em grandes quantidades as edificações construídas utilizando os mais diversos sistemas estruturais e materiais, conforme já tivemos oportunidade de relatar. Desta forma, concluímos este artigo pondo 337


em evidência alguns projetos que merecem destaque como produtos da criatividade, em que grandes vãos são vencidos, marcando desta maneira a arquitetura contemporânea produzida no mundo a partir de 1950, com destaque a alguns nomes da arquitetura internacional. Em 1925 nasce na Alemanha Frei Otto, de 1948 a 1952 estuda na Universidade Técnica de Berlim e em 1952 defende sua tese de doutorado “As coberturas tensionadas”. Otto produziu inúmeras obras, dentre as quais a cobertura do quiosque da música para a Primeira Exposição Federal de Jardinagem de Kassel, Alemanha, Pavilhão de Dança em Colônia (1957), Pavilhão de Exposição Hortícula Internacional de Hamburgo (1963), Exposição Nacional da Suíça (1964), Exposição da Alemanha (1967), Academia de Medicina da Universidade de Ulm (1967) e cobertura para estádios para os jogos de Munich (1972), entre outros. Figura 15: Estádio Olímpico de Munich

Fonte: Drew (1973, p. 114).

Otto parcerizou inúmeros projetos com diversos arquitetos, dentre os quais Kenzo Tange e ainda é considerado o autor das mais arrojadas coberturas em membrana, solucionando das mais simples às mais complexas. Projetou membranas em forma de sombrinha com 338


apoio central em disposição invertida. As membranas projetadas e construídas por ele trabalham com tensionamento, utilizando como material de revestimento têxteis como a fibra de poliéster, que é fixada por cabos com elementos de fixação em plástico e que são tensionados nas pontas, com apoios muitas vezes centrais, constituindo-se de peças em aço com a utilização de cabos fabricados com o mesmo material. Jorn Utzon apresenta-se a partir da década de 50 do século XX com o projeto Casa de Ópera de Sidney, Austrália; nascido na Dinamarca, projeta inúmeras habitações, entre as quais a sua própria na cidade de Hellenback (1952), Irlanda do Norte. No projeto de uma residência em Holte, Copenhagen, Utzon pela primeira vez utiliza vigas e pilares compondo um sistema pré-fabricado, sendo um dos precursores do sistema pré-moldado em concreto na arquitetura no mundo. Ao conceber a Casa de Ópera de Sidney, marca radicalmente a tendência de integração do edifício com seu entorno, em que a água e o veleiro são suas fontes inspiradoras. Mas é na busca dos efeitos sonoros que as abóbadas interligadas compõem um interior propício aos espetáculos musicais e teatrais, que se conjugam numa ópera. A cobertura é a fonte fundamental do conjunto, e se no interior elas agem com objetivos específicos ao espetáculo teatral, no exterior a impressão é similar à causada às vistas de um grande veleiro singrando as ondas do mar, com suas velas tensionadas pelo vento. A forma escultórica do volume é criada por uma profusão de cascas, formando uma abóbada em cascata com sobreposições às vezes descontínuas e opostas (figura 16). A cobertura da ópera, embora livre, desenvolve-se como um invólucro de um espaço interior, com uma função definida, como já dissemos, à acústica e à cobertura com detalhes expostos ao exterior, harmonizando-se na concepção ambígua da forma estética simbólica e da função interior. O estudo geométrico aliado à matemática, se faz presente de forma clara e forte. 339


Figura 16: Ópera de Sidney

Fonte: Mariana Sampaio (2020).

Kisho Noriaki Kurokawa, discípulo de Kenzo Tange, com quem compõe equipe abrindo escritório em 1961 no Japão, em 1970, na Exposição de Osaka mostra três edifícios que marcam suas concepções em que casas pré-fabricadas de concreto armado fazem sua marca. Continuando suas produções usando também a pré-fabricação, agora em estrutura metálica, onde sobressaem as coberturas, exemplificamos a Fábrica de Alimentos Nitto em Sagae, Japão em 1963, bem como o pavilhão Toshiba, parte da Exposição 70 em Osaka. Nestes projetos, as estruturas espaciais pré-moldadas em aço compõem-se de peças articuladas por encaixes e parafusos (Figura 17). Figura 17: Pavilhão Toshiba

Fonte: Drew (1973, p. 71).

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No projeto da Fábrica Nitto, dá solução em estrutura metálica modulada, predominando as peças verticais de sustentação da cobertura, possibilitando a ampliação do edifício. Assim, configura-se o efeito multiplicador do módulo estrutural. No Pavilhão Toshiba, a estrutura da cobertura toda articulada apoia-se em grandes bases construídas em aço, apresentando no centro um grande volume suspenso, sob o qual instalam-se boxes de exposição. A superestrutura é fabricada com uma variante das células tetraédricas, de Alexander Graham Bell e a arquitetura proposta por Kurokawa insere-se nas propostas metabólicas antecipadas por Le Corbusier quando do desenho do Centro Carpenter, em Harvard. Figura 18: Centro Cívico de Hagi – Corte

Fonte: Drew (1973, p. 82).

Ainda sobre a arquitetura produzida no Japão pela geração pós-Tange, sobressai o nome de Kyonori Kikutake, nascido em 1928 e em 1948 ganhou o terceiro prêmio no Concurso para a igreja do Centro da Paz de Hiroshima, no qual Tange obteve o segundo lugar. Kikutake projeta diversos trabalhos, entre os quais o Centro Cívico de Hagi em 1968, cuja estrutura espacial em aço compõe a cobertura toda apoiada em base metálica (Figura 18). Estes exemplos demonstram a flexibilidade no emprego de estruturas de cobertura, de modo a dinamizar as formas e soluções 341


espaciais arquitetônicas, tema que viemos a desenvolver em nosso mestrado, e que pode ser consultado no artigo El método de diseño y construción de la habitación unifamiliar empezando por la cubierta (Carvalho; Miranda, 2020).

REFERÊNCIAS CARVALHO, Benjamin. Arquitetura no tempo e no espaço. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1968. CARVALHO, Ronaldo N. F. Marques de; MIRANDA, Cybelle S. El método de diseño y construción de la habitación unifamiliar empezando por la cubierta. Revista Latino-americana de Ambiente Construído & Sustentabilidade, v. 1, p. 16-31, 2020. Disponível em: http://https://www.amigosdanatureza.org.br/publicacoes/index. php/rlaac_sustentabilidade/article/view/2535. DREW, Philip. Tercera generación. La significación cambiante de la arquitectura. Barcelona: Gustavo Gili, 1973. ENGEL, Heino. Sistemas de Estruturas. São Paulo: Hemus Editora, s.d. GOMES, Geraldo da Silva. Arquitetura do ferro no Brasil. São Paulo: Nobel, 1986. HART, F; HENN, W; SONTAG, H. El Atlas de la construcción metálica. Casas de pisos. Barcelona: Gustavo Gili, 1976. KAHN, Lloyd. COBIJO, Madrid, Herman Blume, 1985. 342


LA MADERA. Madrid; Editorial Blume, 1978. PÉREZ, Fernando Cassinello. Construción, carpintería. Madrid: Editorial Rueda, 1973. SALVADORI, Morio; HELLER, Robert. Estruturas para Arquitectos. Buenos Aires: Ediciones La Isla, 1966. SOUZA, Renato Otílio Lopes de. A construção metálica. Belém, s.d. (Trabalho mimeografado).

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AS PLACAS DO FORRO DE ESTUQUE DA ANTIGA CAPELA DA SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DO PARÁ: elaboração de protótipos como subsídio para reabilitação Bianca Barbosa do Nascimento Larissa Silva Leal Ronaldo Nonato Ferreira Marques de Carvalho

1.INTRODUÇÃO O artigo em questão faz parte da pesquisa Forros na Arquitetura Hospitalar em Belém e Portugal: o Estuque Decorativo Eclético, que realiza estudos sobre o uso do estuque como técnica decorativa de forros em instituições da saúde em Belém, a fim de elaborar alternativas contemporâneas para a reabilitação do forro estucado da Capela da Santa Casa de Misericórdia. A Capela se insere no Complexo hospitalar da Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará, inaugurado em 1900, o qual se encontra atualmente em processo de tombamento junto ao Departamento do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural (DPHAC) do Governo de Estado do Pará. Dado o caráter histórico e artístico do forro, este deve ser reabilitado, segundo a Carta de Veneza (1964) utilizando técnicas modernas que tenham sido comprovadas cientificamente, no caso de as técnicas tradicionais terem se mostrado inadequadas. Este é o caso do forro da capela que, devido a fragilidade da argamassa

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quando em contato com umidade e o elevado peso próprio do material, desprendeu-se das estruturas de fixação. 2. CAPELA DA SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DO PARÁ: ARQUITETURA E ESTADO DE CONSERVAÇÃO A construção da capela da Santa Casa de Misericórdia do Pará, localizada no conjunto arquitetônico da atual Santa Casa de Misericórdia, no bairro do Umarizal, em Belém-PA, foi realizada entre os anos de 1901 e 1910 (Figura 1). A arquitetura do hospital obedece ao modelo pavilhonar, caracterizando-se esteticamente pelo Ecletismo, com emprego de elementos clássicos. Figura 1: Fachada da Capela da SCMPA voltada para a área externa.

Fonte: Bianca Barbosa (2016).

Arquitetonicamente, a capela tem forma retangular e ocupa um pavimento, sendo ornamentada com formas clássicas, destacando-se as esquadrias em arco pleno. A cobertura é composta por duas águas e encoberta por platibanda. O acesso à capela ocorre por uma 345


circulação interna ao hospital, sendo o vão emoldurado por ricos elementos florais em estuque (SUDANI, 2014). Os elementos integrados ao templo são três retábulos, um central e dois laterais, que emolduram os nichos onde se localizavam as imagens religiosas. O forro da sacristia é executado em lambri de madeira, sendo que o forro em estuque se estende por toda nave até o altar mor (SUDANI, 2014). Figura 2: Porta do acesso principal e nave da Capela da SCMPA.

Fonte: Bianca Barbosa (2016).

A capela está desativada há aproximadamente 30 anos, sendo acentuado seu estado de degradação, cujo elemento mais afetado 346


é o forro em estuque. A elevada umidade decorrente do alto índice pluviométrico amazônico ocasionou infiltrações no telhado, o que contribuiu para o apodrecimento da estrutura de sustentação do forro (em madeira) e o descolamento das peças decoradas. A presença de insetos xilófagos e o peso próprio da ornamentação são fatores adicionais à decomposição do forro. Partes significativas do forro se encontram danificadas e a estrutura encontra-se aparente e visivelmente inapropriada ao reaproveitamento. Figura 3: Deterioração dos fasquiados e elementos presentes no forro da Capela da SCMPA

Fonte: Bianca Barbosa (2016).

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3. OS FORROS ESTUCADOS E SUA REABILITAÇÃO

Segundo Caldas (2014), o estuque histórico é composto basicamente de cal, água e areia, com a adição de elementos como argila, pó de mármore e, em alguns casos, a presença de aditivos como sangue animal, urina, chifres moídos, açúcar, sal, dentre outros elementos que ajudavam a liga a ter mais resistência, elasticidade e durabilidade. A partir do século XVII, uma pasta composta por gesso, pó de mármore e cal começou a ser utilizada nas ornamentações em estuque, de modo a propiciar a plasticidade do gesso e a aceleração das sobreposições das fases (FIGUEIREDO, 2008). No Brasil, o estuque começou a ser difundido a partir da segunda metade do século XIX, durante o Ecletismo, como elemento decorativo de rebocos de alvenaria, forros, sancas, na composição de cimalhas e sobrevergas, e na decoração interna, através da reprodução de capitéis de colunas, frisos, molduras e elementos de ornamentação fitomórfica. Quanto a técnica para a execução dos forros estucados, a argamassa de estuque era estruturada em barrotes de madeira ou em telas importadas do tipo Deployée. Para a aplicação da pasta, era importante que a madeira da estrutura que recebesse a aplicação estivesse sempre umedecida, para garantir uma boa ligação entre a estrutura portante e o estuque. Tal procedimento serviria para impedir a absorção da água do estuque pela estrutura, prevenindo rachaduras e/ou em perdas das ligações da argamassa (CALDAS, 2014). O aumento da consciência sobre a conservação desse tipo de material se deu principalmente a partir do século XX, devido ao desenvolvimento nos setores de reabilitação e de conservação e restauro, que tornou visível o patrimônio como a ligação com o passado coletivo e com os valores de identidade. 348


A reabilitação pode ser considerada um processo de melhoria das condições de usabilidade do edifício, otimizando as instalações, reestruturando desde elementos decorativos a aspectos estruturais, com o objetivo de alongar a vida útil do edifício. Além disso, a reabilitação possui graus diferentes de intervenções, que vão desde a manutenção de um determinado revestimento, passando pela substituição parcial de um elemento por outro semelhante, até a remoção total e substituição de um elemento ou revestimento (PEREIRA, 2010). Para mais, é necessário assegurar a reversibilidade dessas intervenções e dar preferência aos materiais e soluções tecnológicas comprovados, em detrimento de técnicas e produtos sofisticados. Assim como é de grande importância ser efetivamente sustentável nas escolhas dos materiais, técnicas e soluções construtivas para contribuir com o melhoramento do desempenho da construção, não permitindo que os atributos arquitetônicos, funcionais e construtivos sejam inferiores aos preexistentes. A documentação clara da realidade preexistente e todas as alterações que serão introduzidas é necessária e promove a máxima coerência construtiva, prevendo a melhor e maior utilização dos elementos e partes da construção existente. Dessa forma, as intervenções não irão alterar ou destruir as evidências culturais, históricas ou artísticas detectadas no decorrer da obra. Para qualquer tipo de intervenção que se proponha fazer em um edifício, é necessário que haja compatibilidade entre os materiais e sistemas construtivos atuais e os que foram empregados na construção original. Além disso, essas intervenções devem objetivar a proteção e preservação da identidade do patrimônio arquitetônico presente na capela, através da reabilitação das suas particularidades com valor significativo.

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4. MÉTODOS, MATERIAIS E TÉCNICAS A pesquisa em questão é de base experimental, combinada com estudos bibliográficos acerca dos processos de reabilitação dos forros históricos e materiais compatíveis com argamassas de estuque antigo. Após a análise da placa do forro coletada na Capela, foram estudadas as possíveis composições a ser utilizadas na reabilitação do forro em estuque, adotando materiais antigos e contemporâneos para compor as novas argamassas. A fase experimental compôs-se de: definição dos traços das argamassas alternativas e ensaios de absorção e flexão; desenho de formas esquemáticas para as placas, confecção das argamassas selecionadas; ensaios das placas em escala reduzida e análise dos resultados dos ensaios. Segundo Sudani (2014), o forro predominante na Capela da SCMPA é estucado e recebe um acabamento de tinta na cor rosa. A partir das observações in loco, nota-se que o forro é sustentado por um fasquiado de madeira (Figura 3), em uma malha feita “com finas ripas de madeira espaçadas entre si” (MACDONALD, 2004), no qual a argamassa está fixada nos espaços entre os fasquiados. Essa estrutura de sustentação é geralmente fixada em barrotes de madeira, presentes na estrutura da cobertura. A ornamentação do forro é composta por uma moldura frisada com um florão ao centro, ambos na cor branca (Figura 3). Esta combinação de elementos se repete de forma modular ao longo do forro. A amostra utilizada na análise de DR-X foi coletada em 2013 dentre as placas desprendidas do forro, que se encontravam amontoadas no piso da capela. O fragmento coletado encontrava-se danificado devido à queda da altura de cerca de 5 metros desde o forro, com elementos faltantes, porém em condições adequadas para os estudos e análises necessárias para pesquisa. Em agosto de 2016 foram realizadas 350


as análises, quando houve a retirada de uma pequena parte da amostra para a execução da análise por DRX (Figura 4). Figura 4: Localização das amostras obtidas no fragmento do forro para a análise por DRX

Fonte: Bianca Barbosa (2016).

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Procedeu-se a raspagem das camadas do fragmento em uma peneira #200, sendo obtidas nove amostras de materiais. Estas foram encaminhadas ao Laboratório de Eco Compósitos, da Faculdade de Engenharia Mecânica da Universidade Federal do Pará (UFPA), para caracterização por DRX. No âmbito dos materiais eleitos para compor a argamassa proposta, Rodrigues (2013) explica que a cal deriva de formação sedimentar e metamórfica, advinda de rochas carbonáticas originadas pela decomposição de conchas somadas a outros elementos. A cal utilizada em argamassas necessita da adição de areia silicosa ou calcária para evitar a retração na secagem, servindo como lubrificante que une e diminui o atrito entre os grãos de areia (PEREIRA, 2010; MELO, 2009). Os resíduos de argila sílico-aluminosas empregados por Marques de Carvalho (2014) são constituídos de cerâmica vermelha e restos da construção civil. Através de um processo de britagem, moagem e peneiramento, esses materiais chegam à granulometria ideal para uso, utilizados como agregados em argamassas mistas e aglomerantes em argamassas com cal pozolânica. O pó de serragem é resíduo da indústria moveleira, e pode ser incluído na produção de argamassas a fim de conferir maior resistência à tração e ao impacto (DANTAS, 2004). O compósito pode agregar dois ou mais materiais, porém é fundamental ter sua parte reforçada com fibras que proporcionam resistência à parte ligante, além de melhorar o isolamento térmico e acústico (MATOSKI, 2005). O concreto celular, por sua vez, está classificado dentro dos concretos leves de alto desempenho, pois se diferenciam dos convencionais “pela redução da massa específica e alterações das propriedades térmicas e acústicas” (MELO, 2009, p. 15). A massa específica é diminuída conforme a quantidade de incorporadores de ar se injeta na massa, Melo classifica o concreto celular “em dois grandes grupos, aerados com agente espumígeno (espuma pré-formada) e os aerados quimicamente (também chamados de gasosos), onde as diferenças encontram-se no processo de formação dos poros e formas” (2009, p. 352


16). Ademais, a mistura do concreto celular é bem comum, contendo cimento, areia, cal e materiais silicosos, além do pó de alumínio. 5. RESULTADOS 5.1 CARACTERIZAÇÃO POR DR-X

Após o DR-X, dividiu-se as amostras em três grupos: o primeiro grupo, formado pelas amostras de n.º 04, 08 e 09, permite deduzir que sejam compostas por vestígios de tintas presentes tanto no ornamento em si, quanto no forro, e indicam a presença de cimento, que pode ser atribuído a uma reparação executada posteriormente à construção do forro. O segundo grupo, formado pelas amostras de números 03, 06 e 07, apresentam caraterísticas provenientes de dois ou mais materiais. A amostra n.º 03, por exemplo, se encontra entre os estratos do ornamento e da camada de argamassa onde este está fixado; possui coloração diferenciada que se presume ser resultante da interação entre este material e a camada de tinta presente na superfície do forro. Já o terceiro grupo, formado pelas amostras de n.º 01, 02 e 05, caracteriza-se por conter amostras do ornamento (n.º 05), da argamassa de acabamento (n.º 02) e da argamassa de assentamento (n.º 01) (Figura 4). Figura 5: Desenho esquemático do perfil do forro da Capela da SCMPA realizado com o auxílio do CorelDRAW

Fonte: Bianca Barbosa (2017).

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A amostra n.º 01 foi retirada da argamassa que faz a ligação da estrutura, composta pelos fasquiados e os barrotes, com o acabamento e os ornamentos. Essa argamassa, que possui uma coloração mais escurecida, apresentou durante a raspagem fragmentos de diferentes materiais, sendo identificados visualmente pedaços de conchas marinhas. Na caracterização (Figura 6), os padrões encontrados foram a Gipsita (Ca S O4 !2), o Quartzo (Si O2) e Carlinite (Tl2 S), sendo o primeiro componente do gesso e o segundo, componente da areia. A terceira substância, sulfato de tálio, é um dos compostos químicos presentes em pesticidas, porém devido à sua toxidade, atualmente está proibido para este fim. Supõem-se que o sulfato de tálio esteja presente nessa amostra devido a sua aplicação, diretamente na imunização do fasquiado ou indiretamente, na dedetização da capela. A amostra n.º 02 se localiza acima de toda a camada da amostra n.º 01. Ela apresenta uma coloração esbranquiçada e aparenta ser uma argamassa mais porosa e com granulometria maior em relação às demais. A caracterização aponta que sua composição é feita por Calcita (Ca (C O3)), Gipsita (CaSO4. 2H2O) e Quartzo (Si O2), o que indica que tal argamassa é composta por gesso, areia e cal. A amostra n.º 05 corresponde ao material do ornamento presente no forro, mais precisamente do florão, de onde a amostra foi coletada. A caracterização indica que o ornamento é composto predominantemente por Gipsita (CaSO4. 2H2O), que é o principal componente químico do gesso. A granulometria fina da amostra, que possui a coloração branca, também reforça a ideia de que o ornamento é feito com uma argamassa de gesso.

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Figura 6: Difratograma das amostras n.º 01 e 02

Fonte: Laboratório de Eco-compósitos (2016).

5.2 TRAÇOS

Nesta etapa, procurou-se manter o equilíbrio da proporção dos materiais em cada traço de argamassa a ser confeccionado. Deste modo, chegou-se em três traços de argamassas, diferenciando-os pela porcentagem ou pelo tipo dos materiais:

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Traço 01: com 30% de Cal, 40% de Resíduos de argilas aluminosas/sílica (Rejeitos) e 30% de Pó de serragem;

Traço 02: com 30% de Cal, 30% de Resíduos de argilas aluminosas/sílica (Rejeitos) e 40% de Pó de serragem;

Traço 03 (Concreto Celular): contendo 20% de Cal, 79,5% de Resíduos de argilas aluminosas/sílica (Rejeitos), 0,5% de pó de alumínio.


Assim, foram propostos corpos de prova com traços diferentes, a fim de analisar e testar essas argamassas, submetidas aos ensaios de flexão e absorção. Foram confeccionados 18 corpos de prova, sendo necessários três corpos para cada ensaio, multiplicados pelos três tipos de traços de argamassas. Para se calcular a quantidade de material utilizado em cada corpo de prova, cada traço e o total necessário de material, calculou-se o volume dos corpos de prova, a partir das dimensões da forma onde eles foram confeccionados. A forma possui medidas internas de 10cm x 4,80cm x 2,25cm, com volume de 108 cm³; assim, utilizando-se as proporções acima e o volume dos corpos de prova, chegou-se aos volumes de todos os materiais. Após essa etapa, multiplicou-se o volume pelo peso específico de cada material, resultando na massa em gramas a ser usada em cada corpo de prova. Para cada traço foram feitos seis corpos de prova e se multiplicou esse total em gramas por seis, em que se chegou à quantidade total necessária para se produzir os corpos de prova. 5.3 CONFECÇÃO DOS CORPOS DE PROVA

Os dezoito corpos de prova foram produzidos no LAMEMO/ UFPA utilizando formas em madeira com as mesmas dimensões da forma em aço, esta disponível no Laboratório de Engenharia Química da UFPA. Para a confecção dos corpos de prova, foram peneirados o pó de serragem, obtido em uma carpintaria em Belém do Pará e os resíduos sílico-aluminosos, excedentes da pesquisa de doutoramento (MARQUES DE CARVALHO, 2014), os quais haviam passado por moagem. A peneiragem do pó de serragem foi realizada em uma peneira 2mm; durante a peneiragem, constatou-se que a serragem utilizada é formada por madeira vermelha, com predominância de

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madeira branca (Cedro e Angelim). O mesmo processo foi realizado com os rejeitos sílico-aluminosos, com peneira #100. Posteriormente, os materiais utilizados em cada traço foram pesados de acordo com as quantidades de massa para seis corpos de prova. A primeira argamassa produzida foi a referente ao traço 1, com cal, rejeitos e pó de serragem. Após a pesagem, os materiais foram colocados em um recipiente de vidro com peso de 826g, onde foi feita a mistura da argamassa com água. Eles totalizaram um peso de 868g sem água, após a mistura de água na argamassa verificou-se que o peso subiu para 1,7kg. Em seguida, foi feito o preenchimento das formas para os corpos de prova. Para o traço 2, foram repetidos os mesmos procedimentos, pois os materiais eram os mesmos, apenas em proporções diferentes do traço 1. Verificou-se que o peso dos materiais misturados e sem água era de 848g, já com a mistura da água era de 1,9kg, ou seja, foi utilizada uma maior quantidade de água. Para a argamassa em concreto celular, foram usados a cal, os rejeitos e pó de alumínio. Misturados e sem adição de água, esses materiais totalizaram 946 g, já com a água o peso subiu para 1,4kg. Figura 7: Formas preenchidas com as argamassas. Da esquerda para a direita: traços 01 (argamassa amarelada), 02 (argamassa mais escura) e Concreto Celular (argamassa rosada).

Fonte: Larissa Leal (2017).

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Além dos seis corpos de prova necessários para os testes, foram confeccionados mais dois de cada traço por segurança. Vale ressaltar que é fácil observar a diferença das cores das argamassas, de acordo com a predominância de cada material. A argamassa do traço 1, (à esquerda na Figura 7) contém uma coloração mais amarelada devido à utilização da serragem em sua composição, sendo um pouco mais clara que a argamassa do traço 2, cuja tonalidade mais escura se dá em razão da maior quantidade de serragem utilizada. O concreto celular, por sua vez, apresenta uma tonalidade mais rosada, da cor dos resíduos silico-aluminosos, material que predomina em quase 80% da argamassa. 5.4 ENSAIOS

Nas argamassas, as primeiras 24 horas foram fundamentais para o processo de pega e seguiu-se o período da cura, totalizando 14 dias. 5.4.1 ENSAIO DE FLEXÃO

Os ensaios de flexão foram realizados em um equipamento de medição de resistência à flexão de materiais cerâmicos, no Laboratório de Engenharia Química da UFPA. Nesse equipamento, foi utilizado um balde de 400g, o qual foi cheio aos poucos com água, produzindo esforços no corpo, até o rompimento dele. Foram utilizados três corpos de prova para cada traço. Nos traços 1 e 2, os três corpos de cada traço romperam com o peso do equipamento, 1,1kg (no ponto de corte do equipamento). O primeiro corpo de prova testado referente ao traço de Concreto Celular suportou o peso do equipamento, de 1,1kg e mais 7,1kg, referente ao peso do balde plástico com água, totalizando 8,2kg. Já o segundo corpo de prova rompeu com um peso de 4,2kg mais 358


1,1kg do equipamento, totalizando 5,3kg. O terceiro corpo de prova suportou um peso 8,2kg e mais o peso do equipamento de 1,1kg, totalizando 9,3kg. Figura 8: Equipamento de medição, durante os ensaios.

Foto: Larissa Leal (2017).

5.4.2 ENSAIO DE ABSORÇÃO

Após o período da cura, foram feitos os ensaios de absorção dos corpos de prova. Estes corpos foram pesados um a um e depois submersos em água, sob temperatura média de 30°, durante 24 horas. Os pesos dos corpos de prova antes e depois da imersão foram: Quadro 1: Traços 1, 2 e 3 – peso antes e depois da imersão

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Fonte: Larissa Leal (2017) Figura 9: Pesagem dos corpos após imersão

Fonte: Larissa Leal (2017).

5.5 A ARGAMASSA PARA MOLDAGEM E A FORMA DA PLACA

A moldagem da placa foi feita com as argamassas correspondentes ao traço 2 e traço 3, pois os resultados das análises de ambas as argamassas foram satisfatórios. Após os ensaios de flexão e absorção com as placas foi escolhido um traço de argamassa. A placa original do forro é ornamentada em estuque de relevo, com adornos florais sob a temática fitomorfa, segundo Sudani (2014). Para a reprodução da moldagem dessas placas, os ornamentos foram desconsiderados. Como a amostra da placa original está fragmentada e incompleta, não foi possível precisar o peso e consequentemente o volume, mas de acordo com análises de proporções, foram 360


estabelecidas as seguintes medidas em centímetros para a moldagem da placa, ainda para testes: Figura 10: Molde da placa em tamanho real e reduzido

Fonte: Larissa Leal (2017).

A forma da nova placa pode ser descrita como um prisma retangular e uma pirâmide com sua base centralizada no prisma, como podem ser observados acima, com dimensões de 45 cm x 45 cm e uma altura total de 9 cm. Para as placas de teste, o volume foi reduzido para 25%, a fim de facilitar a confecção e testes das placas, além de consumir um volume menor de material. As formas foram confeccionadas em madeira e tiveram um emassamento para deixar a superfície mais lisa, que irá influenciar tanto na desforma quanto no resultado dos ensaios. 5.6 MOLDAGEM DA PLACA

A quantidade de materiais necessários para a moldagem das placas foi calculada de acordo com o volume delas, repetindo-se o processo 361


realizado com os corpos de prova. De acordo com os resultados dos corpos de prova, foram alteradas proporções de alguns materiais: nos dois tipos de argamassas produzidos, foram adicionados 5% de cimento e a quantidade de pó de alumínio foi triplicada, em relação às porcentagens iniciais. •

Traço 02: com 27,5% de Cal, 27,5% de Resíduos sílico-aluminosos (Rejeitos), 40% de Pó de serragem e 5% de Cimento;

Concreto Celular: contendo 23% de Cal, 70% de Resíduos sílico-aluminosos (Rejeitos), 1,6% de pó de alumínio e 5,4% de Cimento. Figura 11: Placas fundidas

Fonte: Larissa Leal (2017).

5.7 ENSAIOS

Primeiramente, a desforma das placas foi realizada com o uso de um aparelho que emite calor direcionando o jato para o fundo das formas, a fim de propiciar o descolamento das placas. Durante a 362


desforma, algumas placas fragmentaram em algumas partes, porém não comprometeram os ensaios de flexão e absorção. Os mesmos processos de ensaios que foram realizados no experimento com os corpos de prova, foram reproduzidos com as placas, obtendo-se, contudo, resultados diferentes. Nos ensaios de flexão, as placas do traço 2, cujo peso é de 780g, resistiram em média a 900 g e o rompimento das placas foi imediato. Já as placas do traço 3, que pesaram em média 1kg, resistiram a uma carga de 23kg. Para o ensaio de absorção, os corpos imergidos foram coletados de fragmentos das placas após o ensaio de flexão. Estes foram inicialmente pesados, e posteriormente submersos em água durante 24 horas, à uma temperatura média de 30°C. Após pesagem, obteve-se os seguintes resultados: Quadro 02: Traços 2 e 3 - peso antes e depois da imersão dos fragmentos das placas

Fonte: Larissa Leal (2017).

6. DISCUSSÃO Após as análises dos corpos de prova submetidos ao ensaio de absorção, no traço 1, o corpo 1 aumentou 55 g ou 71% do seu peso inicial, o corpo de prova 2 sofreu um aumento em seu peso de 62g ou 77% do seu peso inicial e o corpo de prova 3 aumentou seu peso em 60g ou 81% do seu peso inicial. O traço 2, obteve os seguintes resultados: o corpo 1 aumentou 49g em relação ao seu peso inicial ou 75%, o corpo 2 apresentou um aumento de 84,8% em relação ao

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seu peso inicial, aumentando assim 56g, o corpo 3 teve um aumento de 52g ou 74% no seu peso em relação ao peso inicial. Sobre o traço 3, obtivera-se os seguintes dados: o corpo 1 aumentou o peso em 76g ou 67% em relação ao seu peso inicial, o corpo 2 teve um aumento de 42g ou 33% em relação ao seu peso inicial. Já o corpo tendo um aumento de apenas 10g ou 7% em relação ao seu peso inicial. Todos os traços apresentaram características favoráveis à utilização da argamassa para a reprodução das placas. Porém, algumas observações foram fundamentais para a escolha da argamassa que será utilizada: •

Foi observada a diferença de coloração dos traços 1 e 2, que são bem mais escuros que o traço 3, que é rosado. Entretanto, qualquer traço que for escolhido necessitará de acabamento;

Os corpos de prova dos traços 1 e 2 permaneceram com sua forma intacta, diferentemente dos corpos de prova do traço 3, que liberaram mais matéria durante a imersão, em relação aos outros traços;

Sobre a perda de água após o ensaio de absorção, o traço 2 apresentou perda de água mais rápida que os outros traços. O traço 2 também adquiriu mais dureza após a absorção;

Com a pesagem dos corpos, após a cura total e durante os ensaios de absorção percebeu-se que o traço 3 ficou mais pesado que os outros dois traços;

Nos ensaios de flexão, a argamassa mais favorável e que resistiu a uma carga maior foi à correspondente ao traço 3, sendo que a correspondente ao traço 1 foi a que rompeu mais rapidamente com pouca carga e os corpos de prova do traço 2 romperam com uma carga um pouco maior.

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Após a análise dos ensaios, chegou-se à conclusão de que a adição de 5,4% de cimento nas argamassas traria uma dureza maior a elas. Como os corpos de prova correspondentes ao traço 3 estavam mais pesados, outra conclusão foi de que não houvera a criação suficiente de bolhas de ar dentro da argamassa, triplicando-se assim a quantidade de Pó de alumínio no traço 3. No que diz respeito à flexão, os traços 1 e 2 resistem pelo menos ao peso próprio e o traço 3 é bem favorável para suportar grandes quantidades de peso. Portanto, a partir do desempenho dos ensaios realizados, optou-se pelos traços 2 e 3 para confecção das placas, acrescidos de 5,4% de cimento e a quantidade do pó de alumínio foi triplicada, em relação à porcentagem inicial. Na placa referente ao traço 2, a adição de cimento não foi eficaz, pois ainda assim sua resistência à flexão foi muito baixa, pois a placa não foi capaz de suportar seu próprio peso. No traço 3, o aumento da quantidade de Pó de alumínio foi satisfatório, pois houve maior criação de bolhas de ar no interior da argamassa, havendo, portanto, uma expansão de cerca de 30%. A adição de cimento na placa resultou em uma resistência mais elevada à flexão, sendo que as placas, em média, suportaram 23kg. Assim, o traço 3 demonstrou melhor desempenho, tendo sido a opção a ser utilizada na futura intervenção de recomposição do forro em estuque. O objetivo principal da pesquisa foi conceber uma argamassa mais leve e que substituísse a argamassa à base de gesso utilizada no forro de estuque da Capela da Santa Casa. Procedeu-se o comparativo entre o peso próprio das duas placas: a original, contendo a base e os elementos ornamentais, e a nova placa proposta com a argamassa correspondente ao concreto celular. O peso próprio das placas foi calculado a partir do fragmento da placa original, comparando-o com a nova placa, levando em consideração a proporcionalidade volumétrica de cada uma. A partir de 365


cálculo matemático, chegou-se a determinação de que o peso por cm³ da placa proposta é de 1g/cm³, enquanto na original o valor é de 1,3g/cm³. Quanto a absorção, a placa proposta obteve o índice de 36%, enquanto a placa original obteve o índice de 32%. É bom frisar que a placa original é centenária e, portanto, com um longo período de cura, enquanto a nova placa foi ensaiada com 14 dias de cura. Figura 12: Fragmento da placa original e a placa proposta

Fonte: Ronaldo Marques de Carvalho (2017)

Apesar da placa confeccionada com a argamassa proposta responder aos objetivos almejados neste estudo, a confecção de um protótipo substitutivo das placas originais em estuque demanda aprofundamento das pesquisas, quanto à forma de reprodução dos motivos ornamentais, além de novas formas de sustentação das placas no teto. Contudo, os resultados alcançados foram promissores, no sentido da utilização sustentável de rejeitos de construção civil, além de outros rejeitos da indústria moveleira e da indústria mineral.

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REFERÊNCIAS

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em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de arquitetura e urbanismo, Universidade Federal do Pará, Belém, 2014.

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ORGANIZADORES

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CYBELLE SALVADOR MIRANDA Arquiteta e Urbanista, Doutora em Antropologia, com Pós-doutoramento em História da Arte pela Universidade de Lisboa; professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará e pesquisadora associada ao CLEPUL / UL; lidera o Grupo de pesquisa Arquitetura, memória e Etnografia, com os temas Memória e Patrimônio Cultural, Estética da Arquitetura Amazônia, Arquitetura assistencial e saúde e coordena o Laboratório de Memória e Patrimônio Cultural (LAMEMO). Em 2018 publicou o livro Hospitais e Saúde no Oitocentos: diálogos entre Brasil e Portugal, em parceria com o professor Renato da Gama-Rosa Costa e em 2019 os livros Olhares sensíveis ao Centro Histórico de Belém com Luiz de Jesus Dias da Silva e organizou o livro O Cinema é mais real que a vida: crônicas cinematográficas de Maiolino de Castro Miranda.

DINAH REIKO TUTYIA Arquiteta e Urbanista (UFPA), professora do Curso de Arquitetura e Urbanismo da (UNIFAP), pesquisadora colaboradora do Laboratório de Memória e Patrimônio Cultural (LAMEMO/FAU-UFPA). Possui mestrado em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU-UFPA e é Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Pará (PPHIST-UFPA). Atua principalmente nos seguintes temas: preservação do patrimônio cultural, história da arquitetura na Amazônia, arquitetura vernacular na Amazônia. 372


RONALDO MARQUES DE CARVALHO Arquiteto e urbanista, Especialista em Arquitetura nos trópicos, Mestre em Ciências da Arquitetura e Doutor em Engenharia de Recursos Naturais da Amazônia, com Pós-doutoramento em História da Arte pela Universidade de Lisboa; professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará e pesquisador associado ao Grupo de pesquisa Arquitetura, memória e Etnografia e ao Laboratório de Memória e Patrimônio Cultural (LAMEMO).

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AUTORES

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BEATRIZ MARTINS MANESCHY Arquiteta e urbanista. Mestranda junto ao Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFPA. Pesquisadora do Laboratório de Memória e Patrimônio Cultural da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFPA. BIANCA BARBOSA DO NASCIMENTO Arquiteta e Urbanista graduada pela Universidade Federal do Pará (UFPA), foi bolsista de iniciação científica do Laboratório de Memória e Patrimônio Cultural (LAMEMO). Pós-graduanda em Marketing Digital e Gestão de Projetos pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci (UNIASSELVI). Atua no desenvolvimento de Projetos Arquitetônicos e de Interiores e Consultorias de Arquitetura e Decoração. FELIPE MOREIRA AZEVEDO Arquiteto e Urbanista, graduado pela Universidade Federal do Pará. Mestre em Arquitetura e Urbanismo pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU), na Universidade Federal do Pará (UFPA). Doutorando em Arquitetura e Urbanismo pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU), na Universidade Federal do Pará (UFPA). Professor do Centro de Ensino Superior do Amapá (CEAP). Pesquisador e colaborador do Laboratório de Memória e Patrimônio Cultural (LAMEMO) - LAMEMO/FAU/UFPA. FLAVIA GALENDE MARQUES DE CARVALHO Arquiteta e urbanista pela UFPA. Foi bolsista de extensão do Laboratório de Memória e Patrimônio Cultural (LAMEMO). 376


GUILHERME PANTOJA ALFAIA Graduando em Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal do Amapá (UNIFAP) LARISSA SILVA LEAL Arquiteta e urbanista formada pela Universidade Federal do Pará. Mestre em Arquitetura e Urbanismo pelo Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFPA. Integrante das pesquisas do Laboratório de Memória e Patrimônio Cultural, bem como do Grupo Arquitetura, Memória, Etnografia (AME). RAIMUNDO LOBATO MARQUES Arquiteto e Urbanista pela Universidade Federal do Amapá (UNIFAP) RONY HELDER NOGUEIRA CORDEIRO Arquiteto e urbanista pela Universidade da Amazônia (1999), especialista em Gerenciamento e Gestão da Qualidade na Indústria da Construção Civil pela Universidade Federal do Pará (2000), mestrado em Engenharia Civil pela Universidade Federal do Pará (2003) e doutorando do Programa Doutoral em História, Filosofia e Património da Ciência e da Tecnologia da Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa. É Chefe da Unidade Estadual do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística no Pará, atuando, no planejamento, coordenação, execução e controle das atividades técnicas e administrativas.

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esta obra foi composta em adobe garamond pro, para a editora folheando em novembro de 2021


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