12ª Edição | Bienal de Curitiba 2017 | Antologia

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​Curitiba Literária | Bienal de Curitiba PRESIDENTE Luiz Ernesto Meyer Pereira VICE-PRESIDENTE Monica Machado Lima DIRETOR SECRETÁRIO Luiz Carlos Brugnera TESOUREIRO João Marcos Almeida

LIVRO A vida íntima das histórias ORGANIZAÇÃO Rogério Pereira PROJETO GRÁFICO E DESIGN Thapcom.com ILUSTRAÇÃO DA CAPA Robson Vilalba

Dados internacionais de catalogação na publicação Bibliotecária responsável: Mara Rejane Vicente Teixeira – CRB9 - 775

A vida íntima das histórias / João Anzanello Carrascoza … [et al.] ; organização: Rogério Pereira. - Curitiba, PR : Instituto Paranaense de Arte, 2018. 168 p. ; 21 cm. 1. Contos brasileiros. 2. Crônicas brasileiras. I. Carrascoza, João Anzanello, 1962- . II. Pereira, Rogério, 1973- .

CDD ( 22ª ed.)

B869.85


João Anzanello Carrascoza Dia, 9 Espinho, 17 Primeiras letras, 25 Cerâmica, 31 Umbilical, 35 Leticia Wierzchowski A história dos caroços, 45 A vida íntima das histórias, 49 O menino que inquietava as estrelas, 51 Feijão com bife, 57 Alma e o acendedor de lampiões, 61 Luci Collin Kozmic Blues, 75 Cotação do dia, 79 Coré etuba: tati kéva!, 83 Não vou falar sobre isso mas, por exemplo, 93 Nome: omen, 99 Luís Henrique Pellanda A escadinha dobrável, 109 A morte em cima do muro, 113 Sabiá de guerra, 117 Trampolim, 121 Ver os gols, 125 Luiz Ruffato Minha primeira vez, 131 Voando pelos ares, 135 Minha primeira namorada, 139 O dia mais triste da minha vida, 141 Um presente de Natal, 145 Os autores, 151 A Curitiba Literária, 155 Os patrocinadores, 161

M U S

I R Á

O



JO

ÃO AN CA Z A RR N AS ELL CO O ZA



DIA

E, enquanto aprendia a ler as pessoas, dentro e fora da escola, eu descobri outros esportes, não imaginava que eram tantos, jogar futebol com meu irmão e o Paulinho já tirava o mundo dos meus olhos, eu me entregava inteiramente ao jogo, como se vivesse só pra estar lá, fazendo e evitando gols. Foi o Urso, professor de educação física, quem me levou a gostar de salto em altura — ninguém acreditava que eu, pequeno, conseguiria saltar mais que os meninos maiores, mas era verdade: eu despegava fácil do chão, erguia a perna esquerda como um elástico e lançava o corpo sobre o sarrafo, no estilo “tesoura”, sem medo de me machucar ao cair na caixa de areia. 9


Então, comecei a treinar forte com o Urso e a pular bem mais alto, o Lucas até começou a me chamar de Sapo, Vai, Sapo, dá aquele seu pulo pra gente ver, mas eu nem liguei e o apelido não pegou. O Urso era do silêncio, igual o Seu Hermes, mas quando falava, fazia a gente melhorar, eu lembro bem de suas palavras, que o segredo de um bom salto não tava na corrida nem no impulso, mas na concentração, Fique olhando o sarrafo sem pressa, o Urso dizia, você vai ver que, de repente, ele desce, e aí é a hora de saltar!; eu, no começo, duvidava, sarrafo nenhum iria se mover, nem pra baixo nem pra cima, mas, depois, foi justamente seguindo o conselho dele que alcancei a minha melhor marca. Eu ali, os olhos presos no sarrafo e — de súbito, a mágica! —, o sarrafo se moveu, lentamente, como o ponteiro pequeno do relógio, eu pude captar a sua oscilação pra baixo e, então, corri, então saltei, e ultrapassei o sarrafo, que estremeceu com a brisa do meu corpo, Maravilha, maravilha, o Urso gritou e veio, com seus braços peludos, festejar comigo. Eu treinava duas vezes por semana e, sempre, o Urso repetia, Se você saltar mais quinze centímetros, eu te levo pro campeonato infantil, e começou a me ensinar a saltar de barriga, igual “peixinho” no futebol, e, aos poucos, eu fui aprendendo a pular também daquele jeito, até atingir o meu recorde, que não era lá grande coisa, mas o Urso disse, Com esta marca, já dá pra te inscrever!. E ele cumpriu o prometido, arrumou toda a papelada e, daí em diante, passamos a treinar quatro vezes por semana; pra mim, era uma mistura de desafio e diversão, mas minha mãe não estava gostando daquilo, principalmente quando eu chegava imundo, o joelho esfolado, a mão roída pelos pedriscos da areia. 10


Meu pai não ligava, desde que eu não descuidasse das lições; ele, que não pudera terminar o segundo grau, vivia dizendo, Sem estudo, ninguém vai pra frente, e, apesar de gostar de futebol, fanático pelo Corinthians, curtia corrida de longa distância, e falava sempre de um tal de Zatopek, Este, sim, foi um campeão!. Quando me via voltar feliz do treino, me incentivava, Parabéns, filho!, você vai longe..., e, se eu chegava cabisbaixo, me atiçava, Não desanime, não desanime!. Lembro um dia em que minha mãe, à mesa do jantar, depois de me dar uma dura por eu ter voltado do treino à noitinha, declarou que preferia me ver praticando, como meu irmão, algum esporte coletivo, Pelo menos você tá no meio dos amigos, e o pai, mastigando uma fatia de pão, comentou, Na hora do vamos ver, a gente tá sempre sozinho. O pai estava me lendo bem, não dissera aquilo apenas pelo meu empenho no salto em altura, não, na certa ele percebia o quanto eu andava só depois que a prima Teresa voltara pro Rio. Ela e a tia Imaculada tinham vindo passar o mês de julho com a gente, mas, estranhamente, nem deram duas semanas e elas retornaram pra lá. Eu nunca soube direito o motivo, Por quê? por quê?, perguntei, com insistência pra mãe, no dia em que partiram, como se alguma explicação, Porque o tio Carlos precisou delas, ou, porque aqui não tem nada pra fazer, fosse mudar o rumo das coisas. Eu ainda ignorava que os fatos eram o que eram, e de nada adiantaria conhecer as razões que os determinavam, eles jamais seriam alterados. Não supunha que se pareciam com o sarrafo nas traves: a gente passa ou não passa por ele, não tem outra opção. A mãe me consolava, 11


Elas vão voltar no Natal, mas o Natal, pra mim, era um tempo que jamais chegaria. Foi aí que, uma noite, na hora de dormir, lembrando o sorriso da prima Teresa, eu me dei conta de que não adiantava lamentar, eu só iria mesmo pra frente se a esquecesse. Resolvi então esvaziar os meus olhos dela e, silenciosamente, inundei o travesseiro. Chovi nele toda a tristeza que eu tentava disfarçar (e o pai percebera) e, no dia seguinte, me atirei com mais dedicação aos treinos: eu estava só, diante do sarrafo — e era melhor mesmo que estivesse! Mas todo começo é grande, está numa altura acima de nós, e só se a gente continuar, se persistirmos no caminho, é que o superamos — e aí dá pra subir mais o sarrafo. Eu ainda sentia muito a falta da prima Teresa, nós dois lá no quintal, à sombra da mangueira, distraídos, O que tem lá no Rio, prima?; Tem o mar; Que passarinho é aquele, primo?; É um coleirinho; Qual a sua cor preferida?; Azul e a sua?; Azul também; a gente naquelas conversas, e o mundo, ao nosso redor, no freio. Era tudo devagar, pra eu ter a prima Teresa um tempo maior, comigo; sua volta pro Rio seria lá adiante, numa manhã remota, na qual o Sol se recusaria a arder, nenhuma janela abriria nesse dia — assim eu pensava, assim eu queria. As aulas tinham terminado, fazia um friozinho gostoso em julho, tão bom era acordar e viver até a noite com a prima Teresa, quando, então, vinha o tempo de estar com ela, de outro jeito, recordando, na cama, os momentos que havíamos passado juntos. Ninguém tinha nascido em mim daquele jeito, e me habitado sem fazer força, e, assim, ela coincidia, do lado de fora, com aquela que ia 12


dentro do meu pensamento. Eu captava uma expansão em tudo, na conversa das pessoas, no movimento das ruas, nos farrapos de nuvens ao entardecer, eu mal sabia que estava me alargando. Mas tinha uma certeza: era a primeira vez que sentia aquilo — nenhuma seria superior, e isso eu só fui descobrir anos depois; todas as outras avalanches que vivi não foram mais do que cópias daquela. Eu me colei na prima Teresa, e ela em mim, o tempo todo: se a brincadeira era de esconde-esconde, corríamos juntos pro mesmo esconderijo, e se achavam um, lá estava o outro; na queimada, eu deixava que me matassem pra que ela continuasse viva; naquela festa junina, na casa do tio Zezo, eu e ela pertinho da fogueira, o rosto sujo de felicidade. O Lucas até reclamou, várias vezes quis empinar pipa, e eu nada, Então eu vou sozinho e não te chamo mais!; meu irmão e o Paulinho, Vamos pegar vaga-lume?, e eu, Não, vou ficar por aqui, e ficava; eu e ela na soleira da porta, vendo o mundo na mesma tela, igualzinho num filme. Mas aí a prima Teresa foi embora e, mesmo que não tivesse culpa pelo seu retorno abrupto ao Rio, eu estava dolorido com ela. Era hora de apagar as lembranças e me lançar sobre o futuro o mais alto que pudesse. Vamos, se concentre, gritava o Urso, você vai ver o sarrafo baixar, e, assim, colocando o sarrafo nos meus olhos no lugar da prima Teresa, eu fui melhorando a cada dia a minha impulsão no salto em altura. Chegou setembro, e também as provas do campeonato infantil — que seriam num estádio em Ribeirão Preto. Fomos pra lá num ônibus fretado, era dia de semana, e os meninos mais velhos, que também iam competir, fizeram 13


algazarra a viagem inteira — talvez pra esconder o medo do fracasso —, mas o Urso, na primeira poltrona, o Urso nem ligava, o Urso até sorria. Quando chegamos lá, vi dezenas de ônibus estacionando ao redor do estádio e uma multidão de garotos saindo deles, alguns calados e atônitos com o movimento, outros, a maioria, falando alto, às gargalhadas. Era um muito pra se ver, e eu não dava conta de me prender todo naquele acontecimento que se abria, sendo eu também parte dele, e, aí, achei melhor ficar perto do Urso, obediente às suas ordens, Venham, é por aqui!. No vestiário, na pista de saibro, no percurso até o local onde se daria a prova, eu sentia no ar, sob uma aparente normalidade, a presença de uma coisa grande prestes a acontecer. Como as competições eram simultâneas, o Urso foi orientar os meninos na corrida de revezamento, e eu fiquei ali, sozinho. Aprendera a me concentrar, as palavras do Urso, Fique olhando o sarrafo sem pressa, não estavam só na minha memória, elas comandavam todo o meu corpo, você vai ver que, de repente, ele desce, aí é a hora de saltar, e, como se estivesse treinando lá na escola, quando chegou a minha vez, eu dei o primeiro salto numa boa, e passei fácil, fácil. Aos poucos, a altura do sarrafo foi subindo e, pra surpresa de muitos, eu fui adiante, enquanto uns meninos maiores foram eliminados. Eu mirava o sarrafo um tempão, às vezes até enervava o juiz de prova, e, então, corria, corria e saltava no estilo tesoura, caindo, triunfante, na caixa de areia. Ouvia uns aplausos ao longe, mas me mantinha quieto, assistindo atento aos demais, à espera de ser chamado novamente. 14


Enquanto estava ali, fiquei de olho num dos meninos: ele ultrapassava o sarrafo com dificuldade, mas variava os saltos, ora no estilo tesoura, ora de barriga. Lendo o jeito dele correr e se concentrar, eu senti o sinal de um segredo, um segredo que só no fim da prova, quando nós dois disputávamos o primeiro lugar, ele revelou. Tentávamos superar a marca de um metro e vinte. Tínhamos queimado em duas tentativas, faltava a última. Era a minha vez de saltar e, de novo, seguindo a dica do Urso, observei o sarrafo um tempão, mas, estranhamente, ele não baixava; aí eu me lembrei das palavras do pai, Na hora do vamos ver, a gente tá sempre sozinho. O juiz de prova fez um gesto de ultimato e, então, eu corri, corri, corri e saltei o mais alto que podia, e, antes de mergulhar o rosto na caixa de areia, senti o sarrafo desabando sobre minha cabeça. A justiça estava lá, e o meu máximo não fora o suficiente. Levantei, limpei as mãos, bati a poeira da roupa e me sentei pra ver a terceira tentativa do garoto. E aí aconteceu o bonito, de tão imprevisível que foi: ele se concentrou, também sem pressa, e, então, correu, correu — do jeito que corria, eu notei-o diferente — e, quando estava bem perto, ele se virou e saltou de costas, flop, passando primeiro a cabeça, depois os ombros e, finalmente, as pernas. Por um instante, meus olhos ficaram desarrumados com o arco que o corpo dele desenhou no ar sobre o sarrafo. E aí eu só pude aplaudir, junto com o estádio inteirinho. Em vez de me sentir derrotado, eu me alegrei todo, por estar ali e ver aquela mágica. Saí com a medalha de prata no pescoço, e o Urso, o 15


Urso, eufórico e peludo, me abraçava, Não falei?, não falei?, ele também no seu muito feliz. De volta pra casa, o ônibus estava silencioso, os meninos maiores sem nada pra comemorar. No embalo do motor, de repente, não sei por quê, me lembrei forte, muito forte, da prima Teresa. Ela, na minha memória, com o seu sorriso. Então, livre da sua ausência, eu fiquei pensando que, às vezes, é preciso mesmo olhar pra trás se queremos ir em frente.

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ESPINHO

No princípio era o silêncio dos morros, uns de pedra, outros pontuados de capim, e eu não conseguia ver muito à distância, os olhos poucos para abraçar aquelas grandezas. Mas, como se soubesse de mim mais do que eu, André estava ali, para me ajudar. E eu via maior se ele estivesse perto, mesmo no estreito do milharal, quando íamos no lago do São Tomé, as folhagens sufocando o caminho, e, de repente, com sua voz de menos menino, ele dizia, Olha, já tem espiga, e aí eu a via, no relance da descoberta, e ele, Puxa pra frente, me ensinando a colher — a inesperada alegria. Chegávamos no São Tomé, o lago quieto, as pequeni17


nas árvores nas suas beiradas, a serra ao fundo, sem fim, se deitando em camadas, não cabia em meu olhar aquela beleza, e André, sentado na grande pedra, dizia, Primeiro você tem de ver tudo de uma vez. Eu então olhava o horizonte, e, Depois, ele completava, depois vai vendo de pouquinho, o convite para enxergar as miudezas. E aí eu me esquecia de mim, me via nas montanhas azuladas, no ipê levitando junto à casa-grande da fazenda, no fiapo de fumaça que saía de sua chaminé, no tufo branco de uma nuvem, nos seixos diante de nós, nos meus pés aonde, por fim, meus olhos, recolhendo-se, chegavam. Meu irmão e eu, sempre no vaivém da vista. Bom era brincar com ele, ou fazer o que o Pai pedia — consertar a cerca, varrer o terreiro, apanhar erva-cidreira. Vem, me ajuda, André dizia. Gostava de companhia, mesmo a dos cachorros, o Deco e o Lilau, e se punha no que fazia, plenamente. Eu lembro a vez em que estávamos armando uma arapuca, agachados na terra batida, e ele se levantou e disse, Veja, veja, e eu ergui os olhos — e era o céu azul sobre as nossas cabeças, tão lindo! O céu de todos os dias, mas para se ver diferente, o céu que tirava o peso da gente no seu flutuar. Com André o mundo se mostrava em novidades, o mundo acordava, e os dias, qualquer um e todos, eram dias de lembrar o que os olhos esqueciam no costume de ver demais, como na manhã em que a Tia Tereza apareceu de visita. Tínhamos ido no pasto, e lá as vacas vagavam, ruminando entre os cupinzeiros, e o sol subia de trás dos morros, as araras deixando no ar o seu rastro ruidoso, o André no seu desejo de crescer, Pra montar no cavalo do Pai, 18


ajudar ele com os bezerros!. Vimos a Mãe sair no alpendre, e apesar de estarmos longe, meu irmão falou, Você viu? A Mãe está alegre, e eu disse, Pra mim ela está igual sempre, e ele, É um outro jeito de alegre. Fomos para a casa, depressa, e, já nos degraus da escada, ouvimos a falação, a risada familiar, e, lá na cozinha, a Tia Tereza; ela vinha tão pouco ali, mas quanto bem a sua presença fazia para a Mãe, deviam ter sido em criança como André e eu. E aí eu queria crescer para comprar uma fazenda além da serra e um dia voltar, na mesma situação da Mãe e da Tia Tereza, para ver o meu irmão, a gente já grande, em outras brincadeiras. Mas aqueles eram os nossos tempos, de criança, tudo eu entendia menor, e ele me ajudava a aumentar. O André era, numas horas, como o Pai e a Mãe, adiantado, cheio dos conhecimentos: sabia, só de ver as estrelas, se ia chover; distinguia entre as ramagens das árvores se o pássaro era sanhaço, tuim, martim-pescador; falava, nas certezas, em qual semana ia começar a colheita no São Tomé. E ele inventava umas artes de a gente só se rir, como a de dizer com o que se pareciam as pessoas, um jogo nosso, de ninguém mais saber: o Pai? O Pai parece o sol do meio-dia, forte... E a Mãe, André? A Mãe tem os olhos de jabuticaba. E a Tia Tereza? Tia Tereza, ela é a maritaca mais barulhenta! E o vaqueiro João? Olha bem pra ele, o vaqueiro João tem cara de tatu-peba. E os cachorros, André? O Deco. O Deco é como um sapão gordo. E o Lilau? O Lilau parece a Zita Benzedeira. E a Zita Benzedeira? A Zita parece o Lilau. E ríamos, ríamos, a vida deslizando... Eu gostava daquelas horas suaves, era como entrar no 19


lago do São Tomé sem ir para o fundo, só na água tranquila do raso, sem os perigos. Mas tinham as horas do coração encolher, o dia terminando, o escuro do quarto. E aí o André comigo: ele me esperava pegar no sono todas as noites, Pode dormir, eu estou aqui, dizia, e era exato. Porque, a qualquer minuto, se eu perguntasse, Você tá acordado, André?, ele respondia, Estou, e me sossegava, Agora dorme, e eu rezava baixinho, e o anjo da guarda, que eu via ao fechar os olhos, tinha o rosto dele. E me surgiam os sonhos, uns retalhos misturados de coisas acontecidas, às vezes uma história nova, inteirinha, eu na roça com o Pai, depois com o vaqueiro João cuidando das vacas, e era um quase dia real, até o Deco e o Lilau estavam nele, se enroscando nas pernas da gente, e, de súbito, como na vida desperta, eu ajudava o André a selar o cavalo do Pai, e lá ia ele, a galope, para os morros de pedra, diminuindo, diminuindo, e, já nos verdes da serra, parecia um cisco na paisagem. Mas, num abrir de olhos, ele reaparecia, como se feliz do passeio no meu sonho, e chamava, Vamos, já tem sol, a manhã se espalhava em tudo, clareando os campos, a manhã igual à que eu vira dormindo. A gente levantava sem ninguém chamar, como os pássaros, naquela felicidade de voar, e as vacas e os bezerros e os cavalos, todos de pé, assim eles dormiam, porque, ao acordar, já estavam prontos, o mundo recomeçando. Mas enfiado nessas horas, como cobra na moita, lá estava o mal, guardando-se, e aí, quando a gente num descuido, ele saltava do bem onde se escondia, e vinha, e era como se amanhecesse não o dia em tudo, no seu normal, mas a noite, a noite sem estrelas, sequer os vaga-lumes, 20


os grilos, a noite que doía feito um espinho no pé. Veio a notícia de que o Zico, filho do Seu Manuel, dono do São Tomé, tinha se afogado no lago. Pai conhecia ele, tinha ido no seu batismo, uma festa de muito boi no espeto, músicos da cidade, o tempo das perdas saía de uma margem e ia até a outra, era a vez do Seu Manuel. O Pai contava, a festa tinha sido à beira do lago, outro dia mesmo se recordara dela, por sua raridade, as famílias da redondeza juntas na celebração, mas aí parou secamente de falar, parecia que se molhava em outras lembranças. A Mãe dizia, em choro, Podia ser um dos meus meninos, e abraçava a gente, Vocês não vão mais no São Tomé, entenderam?, até o Deco e o Lilau estavam em hora estranha, eles também sabiam das coisas. Veio o temporal, desses que se formam, maneiros entre as nuvens, e quando se vê, sendo ainda dia, já o horizonte escureceu, e tudo, com sua água e ventania, ele desordenou no nosso olhar — as telhas do estábulo, o poste de luz tombado, o lameiro à porta de casa e o triste maior: um raio matara dois bezerros que o Pai ia vender no Natal. Quando a chuva sumiu, tão rápida como viera, fomos ver mais de perto o seu recado: o vaqueiro João cutucava com a vara de bambu um dos bezerros que não se movia, como se dormisse no capim; o Pai triste, no seu espanto. E teve a vez do roubo na casa da Tia Tereza. Ela vivia no sítio do Água Rasa, além da serra das pedras, um lugar que Mãe dizia ser lindo, com uns espelhos d’água para o céu — o sol, os pássaros, a natureza de cima se admirava neles —, mas perto de uma estrada de muito sobe-e-desce. A Tia Tereza tinha ido com o Tio Alceu na cidade, 21


para umas compras, e, voltando, antes de entrar no sítio, viu espalhadas umas coisas suas, reconhecíveis: roupas, travesseiros, panelas. Na casa, um rebuliço; quase tudo, até a estatueta de Nossa Senhora, tinha sumido. A Tia Tereza sofria; quando veio contar para a Mãe, estava no seu avesso. Mas, indo embora, falou uma grandeza: não tinha mais o que perder, e era bom não ter as coisas, porque a gente ficava infeliz com elas, o medo de sumirem. Agora podia ser feliz de verdade, e deu uma risada, e era de novo a Tia Tereza. Chegavam outras histórias para a gente viver: o André veio correndo, do pasto, o Deco atrás, e disse, Tem um circo na cidade, o Pai vai levar a gente. Aí nós dois no alpendre num despropósito de alegria, inventando o nosso circo, os olhos vendo o verde mais bonito, em seu silêncio. Também o sítio do Pai, de repente, começou a amanhecer na maior satisfação, tinha uma diferença nas coisas que eu não sabia explicar, mas ela estava lá, tudo sendo o que era de um jeito mais forte, a Mãe até cantarolava, e, então, o André parou perto de um canteiro, Olha, veja!. E eu vi o que não via, apesar de tão aberto para mim: as roseiras em flor, os lírios, as margaridas. Entendi: era a primavera. As árvores lá paradas, no igual de sempre, mas com tanta vida, elas quase rebentavam, como as sementes, e os pássaros voavam e alvoroçavam mais, o Deco e o Lilau corriam para lá e para cá com altos latidos, eu percebia as mudanças mas não sabia que eram mudanças, e descobrir com André, daquele jeito, me dava um susto bom, e aí me vinham umas vontades novas, Vou pegar uma rosa pra Mãe... E sem a Mãe saber, um dia voltamos ao lago do São 22


Tomé e sentamos lá na grande pedra para ver a serra. André quis entrar na água, Vem, e eu fui, e entramos. Ele nadou até o meio e me acenou à margem, sob a sombra das árvores, e eu lembrava do filho do Seu Manuel, meu coração doloria; ali onde a gente se alegrava, o Zico morrera. No outro dia, acordei antes do meu irmão, ele ressonava barulhento. Chamei, Vamos, já tem sol!, e ele resmungava, queria o sono. A Mãe desconfiou, a mão na testa, Está queimando. Fez um chá e pediu, Fica aqui com ele, os dois no quarto, uma hora diversa, não estávamos habituados a ficar dentro, a gente era de lá fora. André tentou se erguer, não conseguiu, então falou, Me ajuda, abre mais a janela, e eu abri, e vimos — as montanhas azuladas no aperto daquele espaço, com fome de se abrir, para o seu tamanho certo, de amplidão. André rejeitou o almoço, Tô sem fome, Mãe, era o enjoo, a estranha canseira. À tardinha, Pai foi buscar a Zita Benzedeira, a Zita cara do Lilau; eu me animei quando ela chegou, o André, não estivesse doente, me olharia, daquela sua maneira, e eu riria com ele, a nossa brincadeira. Zita fez a reza, garantiu melhora e se foi. Mas, na noite funda, André gemeu, tremeu, Tá frio, tá muito frio, Mãe, murmurou umas desordens, o vaqueiro João, o circo, o ipê do São Tomé, misturava lembranças com invencionices. O sol saindo, Pai preparou a charrete para levar André na cidade, o Lilau e o Deco latindo até a porteira, eu e a Mãe no alpendre, olhando, o desejo grande de tirar aquele espinho. Veio a vontade de ter o mundo bom, e eu já via o Pai voltando com André, nós de novo nas nossas vidas, as coisas todas para se fazer, sem os sustos maus. Pai voltou 23


no meio da tarde com a Tia Tereza. Ela e Mãe se abraçaram sem os sorrisos e as tagarelices, a Tia Tereza sendo outra, faltava nela, o André ia dizer, A maritaca mais barulhenta. Vinha para cuidar de mim e da casa, Mãe ia com o Pai passar a noite no hospital. Mãe não retornou no dia seguinte, e nem nos outros, só o Pai voltava nas manhãs, para cuidar da roça e do gado com o vaqueiro João. Tia Tereza dizia que André ia ficar bom, logo eu ia visitar ele, Tio Alceu levaria nós dois no circo. Eu fechava os olhos e via meu irmão, sorrindo na charrete, no meio de Pai e Mãe, ele chegava muitas vezes de tanto que eu desejava, e a cada vez me acenava, e me dizia, Vamos brincar, eu sarei, e corria para o pasto, Vamos ajudar o Pai com os bezerros. Mas André demorava. O tempo passava doendo. Ainda mais quando o dia começava e eu abria a janela para a paisagem e lembrava de suas palavras: Primeiro você tem de ver tudo de uma vez. Depois, depois vai vendo de pouquinho... Assim íamos, até que uma manhã, eu e Tia Tereza na cozinha, a Mãe entrou de repente em casa com os olhos de sono, o Pai junto, amarrado no silêncio. O Deco e o Lilau entraram em seguida e se deitaram aos pés deles, sem festa. Mãe baixou a cabeça, Pai tomou as mãos dela nas suas: choravam. Era o começo da saudade. Saí pelo fundo da casa, a verdade vindo, devagar, num voo manso. Olhei os morros de pedra lá longe, o capim nas encostas, as montanhas azuladas. Sem o André, quem iria me ajudar a ver aquela imensidão?

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PRIMEIRAS LETRAS

Desculpe se eu me intrometo, mas o que você está lendo? Ah, eu já li, é uma história muito bonita, o final, então, você nem imagina... não, não se preocupe, eu não vou contar, logo você vai descobrir, faltam poucas páginas pra terminar, não é? Eu sempre fico inquieto quando estou no fim de um livro, me dá um alívio e ao mesmo tempo tristeza, eu gosto muito de ler, desde menino, em Barra do Pontal... Não, fica a trezentos quilômetros de Belém, é uma vila de pescadores, não é fácil chegar, se bem que já foi mais difícil, quando eu saí de lá não tinha ponte, agora vão inaugurar uma, eu soube pela minha irmã, quero só ver, estou indo justamente pra lá, visitar es25


sa minha irmã, foi ela quem me ensinou a ler e escrever... Faz mais de vinte anos que a gente não se vê, estou viajando há dois dias e ainda tenho umas seis horas de viagem, meu corpo dói todo, mas hoje, hoje eu vou encontrar com ela... Na semana passada, eu lembrei muito da minha irmã, parecia que ela me chamava, que precisava me ver, aí arranjei uma folga na firma e avisei lá em casa, Vou visitar a Maria; minha mulher ficou muda, à beira do fogão, como se olhasse além da água fervendo na panela, mas, de repente, ela disse, Vai, vai, sim... É que do nada eu senti saudades da minha irmã, daqueles dias em que a gente dormia no mesmo quarto, criança ainda, e conversávamos um tempão na cama, coisas sem importância, mas que pra nós era tudo, a nossa vida naquela hora; a gente pode esquecer as palavras, mas não o que sentimos, pelo menos é o que acontece comigo, eu só lembro das coisas que eu fiz com as pessoas, quando quero me recordar delas, eu fecho os olhos e busco na memória uma cena que vivemos juntos, eu não sei explicar direito, talvez por isso eu goste de ler tanto, eu vivo procurando histórias que digam o que eu sinto, é uma limitação minha, não saber expressar o que está aqui dentro, é como se a coisa fosse feita pra não ser dita, só pra ser experimentada, igual a uma fruta. Uma fruta a gente não explica, quer dizer, a gente até explica, que ela veio de uma árvore, uma árvore que antes foi semente, mas isso não tem graça, uma fruta é pra gente provar, uma fruta é pra gente se lambuzar, carregar o cheiro na ponta dos dedos, não é? Ou talvez seja igual a uma história que nos contam, você logo esquece as palavras, você fica só com a história, com o que ela des26


pertou em você, as palavras são como roupas, estão ali só pra contornar o corpo das coisas, a gente quer o que está por trás delas, a gente quer é o miolo, aquilo que nós somos, lá no fundo... Eu aprendi com a minha irmã, quando a gente não sabe o que dizer pra uma pessoa (porque tudo o que poderíamos dizer seria ainda menor do que sentimos), é melhor darmos um abraço nela, isso mesmo, um abraço, um abraço é como uma história, diz por si, diz por nós. Quando eu fui embora de Barra do Pontal, ela me disse uma porção de coisas, mas eu esqueci tudo, daquele dia só lembro de seu abraço, eu esqueci até o que eu disse a ela, quando, pra disfarçar minha comoção, fiz um carinho em seus cabelos, só pra dizer o quanto eu gostava dela, e tudo o que falamos se perdeu, e se se perdeu é porque não era mais importante do que dissemos com aquele abraço... Não, ela não é professora, assim, formada, mas tem uma delicadeza pra ensinar, uma calma, eu lembro quando me mostrava as figuras na cartilha, um sol, um gato, uma xícara, essas coisas simples, e eu ia entendendo como é que se escrevia o que já estava na minha vida, o sol que nascia na beira do rio, o gato da vizinha, a xícara da mãe, e ali, da minha mão, que ela segurava, me ajudando no contorno das letras, nascia o sol, o sol que na folha de papel era um sol-sol, porque era o sol na palavra sol, e o gato era um gato-gato, e a xícara era a xícara-xícara, e eu lembro de sua voz, eu ainda menino, ela um pouco maior do que eu, três anos de diferença, e era uma coisa de muito cuidado o que ela me ensinava, lembro que eu senti como se estivesse abrindo os olhos para o mundo, novamente, pela primeira vez... Outro dia vi a cartilha de um dos meus 27


meninos, é bem diferente daquela do meu tempo, mas lá encontrei também um sol, uma árvore, uma bola, um dado, um elefante, essas coisas, e acho que não tem outro jeito de aprender, não, a gente sempre começa do simples, do que já está em nós (e ainda não entendemos). Eu tenho muita saudade da minha irmã, e a saudade é como a fome, só acalma quando a gente come, não importa se temos talheres, se estamos sentados, se lavamos as mãos, a saudade, ou a gente devora, ou ela vai mastigando a gente, devagarinho, até ficarmos tão fracos que nem percebemos o que se passa diante de nós, igual a um livro que estamos lendo e, de repente, nos distraímos, e aí quando nos damos conta, estamos umas páginas adiante, deslizamos de uma palavra a outra, mas sem notar os seus sentidos, só escorrendo pelo papel, sem a gente se molhar, sem penetrar na sua pele, sem se enfiar todo no seu rio, e eu gosto daquilo que tira o fôlego, da vida que exige o mergulho, que arrasta tudo pra luz com o seu anzol, da vida que dá saudade do próprio instante que estamos vivendo... Sempre no fim do ano, eu mando uma foto dos meninos pra minha irmã, presente de Natal, é uma maneira de dizer que estamos bem, seguindo a nossa rotina, e ela também me envia seu retrato, mas não é a mesma coisa que ver uma pessoa de perto, vivendo, diante da gente, igual eu e você agora, principalmente uma pessoa que conhece o nosso livro sem precisar abrir, é uma coisa tão grande, é um milagre, não é? A vida é tão silenciosa, a gente nem percebe direito que está nela, pelo menos não o tempo todo, mas, se estamos atentos, se sentimos essa dor (sim, é uma dor, uma dor que dói aos poucos), aí descobrimos toda a sua intensidade... 28


Outro dia mesmo eu peguei a última foto dela, minha irmã não se casou, é uma pena, merecia um homem bom, pra seguir com ela até o fim, e olhando essa foto eu procurei naquela mulher a menina que me ensinou a ler, e aí, como se tivesse aberto uma represa, tudo voltou, e de repente ela estava ali, e parecia que esses anos todos não tinham se passado, e lá estava eu ao pé dela, feito um menino à sombra de uma árvore, ela sempre antes de mim no mundo, cuidando pra eu sofrer menos, pra aprender logo, e eu recordei todos os dias que vivemos juntos, num só instante, um instante que era como uma enchente, e a sua imagem, como um punhado de areia, ia escorregando pelos meus dedos, escorregando, mas consegui reter um grão, e aquele grão era um tesouro, e aí me deu vontade de dizer tudo o que eu sentia por ela, essa vontade que só temos quando estamos longe, e eu pensei, Por que esperar mais? Daqui a pouco vou encontrar ela, com essa seca vai ser difícil cruzar o rio, tem muitos bancos de areia, às vezes, em alguns trechos, é preciso carregar a canoa nos ombros até onde as águas voltam a ser profundas, mas não importa com quantas barreiras eu vou me deparar, a maior eu já passei, quer dizer, quero só ver quando eu estiver diante da minha irmã, nós dois, frente a frente, depois de tantos anos, cheios de tempo em nosso corpo, lembranças em nosso olhar, histórias em nossas mãos... Pois eu vou dizer isso a ela, vou dizer tudo com um abraço, e aí vou ficar olhando pra ela como um pescador que mira as ondas, sabendo que pode ser a sua última saída ao mar, e aí vou esperar ela dizer o que sente por mim, usando outras palavras, Senta aqui, vou coar um café, não repare a bagunça, sem saber o que fazer 29


com a sua felicidade (e eu com a minha). E eu vou entender tudo, vou entender o que cada um de seus gestos quer dizer — afinal, eu aprendi a ler com ela.


CERÂMICA

Ela estava no gramado, aguando as plantas, em frente à casa que dava diretamente na estrada por onde eu vinha. O sol da tarde figurava em seu rosto como se nele encontrasse a moldura perfeita, e a euforia dos pássaros, pressentindo a noite iminente, me bicava a consciência. Seria como das outras vezes, eu apenas passaria dali e a fitaria e, enquanto estivesse sob a minha mira, ela me ocuparia toda a mente como uma pedra cortante, mas no momento em que ficasse para trás, substituída nos meus olhos pela fileira de eucaliptos, eis que o desejo de me enfiar, pleno, na sua sombra, cairia como uma árvore — tão afinada é a resignação quanto um machado! Mas a trava, que em mim 31


vivia fechada, de repente se abriu, minhas pernas me moveram para outro rumo, e, se antes eu a via pelos vãos de uma cerca de arame farpado, agora a via entre o vazio dos moirões, à espera de alguém que os ultrapassasse. Se calculava errado ou não, só me restava avançar; ao contrário de Átila, e longe de ser uno, já me sentia mesmo dividido entre o que eu fora a vida toda e o passo que dava àquela hora; me cumpria então ser o homem a pisar no seu gramado, e eu floresceria a seus pés, embora não soubesse nada dela, senão que a via todas as tardes, ao voltar da olaria, sempre ali, como um sinal de que a máquina do mundo girava suas pás, indiferente à minha existência. Quando me aproximei, a relva que ela regara me molhou a barra da calça, o verde ondulou em meus olhos, e, tendo-a, tão fresca, ao alcance dos lábios, eu nada lhe disse, apenas a olhei como se olha uma vida, inteira, e, seguindo para a porta da casa que me chamava para cruzá-la, ouvi o rumor de suas sandálias atrás de mim, sabendo que se movia com o vento dos meus moinhos. Como um Ulisses, meu corpo sabia mais daquela casa do que minha mente, e fui me levando pela escada à planta de cima, e encontrei o quarto eleito, onde o sol se infiltrava pela janela com displicência. Deitei à cama e esperei-a e, se ela entrou logo em seguida, pela primeira e única vez, sei que nela me entrei para sempre. Ele vinha pela estrada de terra, a mesma que margeia o gramado de casa e segue pela linha de eucaliptos, e apesar de ignorar tudo de sua vida, eu sabia, como todo dia nasce do ventre de uma noite, que ele vinha da olaria. Não porque tivesse as mãos e o rosto sujos, mas porque 32


eu podia ver, a cada tarde, quando daqui ele passava, que tinha o barro no jeito de se mover e era essa humanidade que me atraía. Eu molhava o gramado, e não estranhei a sua mudança de passo, era como uma planta que espera a sua água — e eis que, de repente, a cortina de chuva se deslocava em minha direção! Ao redor, o silêncio se escoava, em gotas, engolido pelo canto dos pássaros, àquela hora de volta ao ninho, excitados pela escuridão que em breve se instalaria. Continuei na rega, fingindo que não percebera sua alteração de rota, mas, como uma árvore à brisa, apesar do tronco rijo e inerte, todo meu ser se agitava, o que era galho em mim ondulava, e subia e descia à superfície o meu desejo mudo de sereia. Então ele saiu da estrada e se acercou de minha relva úmida, e eu pude captar o que a terra sentia a cada um de seus passos, a sua coragem resoluta, porque se o instante era de areia movediça para nós dois, foi ele quem o pisou primeiro, e me pareceu, ou foi meu olhar que depois ele atravessou seguindo para a porta de casa, que o sol ainda vivo e rastejante tentava morder seus pés no calcanhar, mas como a sombra de Aquiles a barra da calça o protegia. Sem saber se havia alguém comigo, ou lá dentro, e, antes de subir as escadas à minha frente e deitar-se na cama, parou e me olhou de forma tão intensa com a sua vista verde, esculpindo-me de uma vez, como se tivesse a vida toda se habituado à minha argila. Fui ao seu encalço, as sandálias seguindo o mapa que ele desenhava no meu próprio terreno. E quando me deitei sobre ele, saí de mim, totalmente, como quem sai de dentro da pele, e atirei-me de lado feito uma roupa, para nunca mais deixar de ser a outra em que me transformei. 33



UMBILICAL

Quando ele entrou em casa, eu estava na cozinha e não poderia escutar o ruído de sua chave girando na fechadura, nem o rangido da porta a se abrir, rascante como o da colher de pau no fundo da panela na qual àquela hora ela fazia o molho para a macarronada, porque as folhas da árvore no jardim zumbiam em meus ouvidos com a ventania e, pelo cheiro da comida no ar, eu logo pensei, A mãe deve estar acabando a janta, mas mesmo assim, pela vibração nova que eu podia sentir na casa e o calor que me subia pelo corpo, eu não tive dúvidas e concluí, Ele chegou, e, sem precisar mover a cabeça, sabia que meu filho atravessara a sala como tantos anos antes atravessara meu 35


ventre e vinha até a cozinha e me observava silenciosamente, e ela de costas para mim, com aqueles grampos brilhando na cabeça, que valiam mais que mil histórias, enfiados entre os cabelos grisalhos, como os espinhos que eu tantas vezes enfiara nos pés, mexia com a colher de pau o molho para engrossá-lo, e se outras vezes, sobretudo em criança, quando aparecia de repente e, vendo-me distraída, eu a assustava com minha presença súbita, agora eu sabia, pela serenidade de seus movimentos, que ela já tinha dado pela minha presença, porque na certa ele ignorava que uma mãe sempre sente quando um filho chega, e mais ainda se ele chega partido, mesmo que lhe faltem todos os sentidos, e como não tinha porque dar as costas para ele, virei-me e o vi me observando como tinha imaginado que estava e, apesar de dar pela sua presença antes que chegassem a mim seus passos sufocados pelas folhas da árvore no jardim que zumbiam com a ventania, estremeci, ao comparar aquele com o que vivia eternamente em minha memória, e para tranquilizá-la eu disse logo, Sou eu, mãe, e eu para agradá-lo respondi, Nem percebi você chegar, filho, como se a cruz que eu arrastava a cada passo não produzisse marca nem rumor algum no assoalho que ela encerava com tanto esmero, e, embora seu semblante parecesse calmo, eu podia ler muito além de seu rosto ensombrecido pela barba malfeita a agitação que lhe ia por dentro e nem precisava me dizer o que eu já sabia, que eu mais uma vez não conseguira emprego e fingia uma indiferença que ela não deixaria de perceber, e eu bem sabia que ele dissimulava não se preocupar com mais uma derrota, e, mesmo assim, eu perguntei-lhe para esmagar o 36


silêncio entre nós, como há pouco esmagara os dentes de alho para o molho, Como foi a entrevista?, e ele respondeu-me com a artimanha dos filhos que desejam poupar a mãe de seus malogros, Foi boa, mas não tenho perfil para o cargo, e num nítido esforço de me dar esperanças mais do que ele mesmo acreditava, inventou, Talvez me chamem para uma outra vaga, sem se dar conta de que entre nós dois, era eu quem mais vivia de dar esperanças, e, então, eu lhe disse, Vai tomar seu banho, vou colocar o macarrão para cozinhar, e eu não disse nada e mesmo se o dissesse ela não escutaria, porque a ventania aumentara e os galhos da árvore estrondavam no telhado, e ele foi, mais obediente do que quando dependia de mim para lavá-lo, e pensei nela, enquanto entrava no boxe e sentia a água cair sobre meus cabelos, no quanto devia sofrer por eu não ser um vencedor, como os filhos da vizinha, e eu ouvia o zumbido da ventania lutando com o barulho do chuveiro e o rumorejar da água engrossada pela espuma do sabonete e da sujeira que grudara no corpo dele e, provando o molho de tomate, percebi que faltava sal, assim como sobravam trevas nos meus olhos, quando na cama, me punha a pensar no fruto que ela gerara, mas que ninguém queria, talvez porque não houvesse mais espaço no mundo para os delicados, e, fechando os olhos, eu lembrei de repente de uma tarde em que eu e ela, andando pela rua, fomos surpreendidos pela chuva e corremos juntos até o beiral de um edifício e, a cada passo, ríamos de felicidade, ríamos por estarmos ensopados, e então coloquei a água com óleo para ferver e separei o pacote de macarrão e ralei o pedaço de queijo que sobrara, quase só casca, mas ele nem percebe37


ria, e então notei que enfim a chuva caía, e pensei que um não a mais não o abalaria, e recordei aquela tarde, ele ainda batia em meus quadris e eu podia tê-lo, bastava estender a mão, e a tempestade nos surpreendeu a meio caminho e corremos, e eu irritada com o que o destino nos reservava e ele começou a rir e me ensinou o que eu deveria ter ensinado a ele, o que parecia uma perseguição era em verdade uma bênção, e a água escorria pela minha cabeça, e eu comecei a rir também como ele, a gargalhar, e mal conseguíamos respirar quando nos abrigamos sob um beiral, e parecia que voltávamos a ser um só corpo, o fio se reatara, e eu estava ligado novamente nela para sempre e desliguei a torneira do chuveiro e vi que me esquecera de pegar a toalha, e eu a deixei pendurada na maçaneta da porta e disse, A toalha está aqui, filho, e ouvi seus passos no corredor e sua voz, longe, abafada pela zoeira do vento e o chiado da chuva, A tolha está aqui, filho, e eu ia dizer, Obrigado, mãe, mas apenas falei no volume suficiente para que ela ouvisse, Tá bom, e abri a porta e apanhei-a, a mesma toalha azul, já desbotada, que ela alternava com a branca, ainda felpuda e com goma, e, enquanto me enxugava, encompridei os olhos pela fresta do vitrô e vi, entre a escuridão do quintal, uma sombra mais negra a se mover e apanhar outras sombras menores que flutuavam e imaginei que ela recolhia umas mudas de roupa no varal, essas camisetas quase secas dele e agora ensopadas, Deus, como não percebi que choveria, e umas calcinhas dela cor da pele, as suas saias de tons tristes, os panos de prato rasgados, e depois os pendurei na área coberta, e vi as sombras menores novamente flutuando, agora em outro lugar 38


e a sombra dela imóvel, como se observando à contraluz as gotas da chuva como agulhas a cair na grama do quintal, feliz com aquela bênção inesperada, e fiquei um instante a ver o céu coberto pelo véu das águas, a procurar as estrelas e, se era difícil encontrá-las, mais difícil seria captar a massa opaca de seus satélites, que elas moviam com os cordões de sua gravidade, e senti a grandeza de seu silêncio e a dor de sua inércia, e desci os olhos do espaço sideral em tumulto para o meu firmamento e vi a janela do banheiro acesa e a sua sombra movimentando-se, na certa ele estava se enxugando e logo iria se enrolar na toalha e sair pelo corredor, e me enrolei na toalha, apaguei a luz e atravessei o corredor às escuras, o rumor dos galhos vergando-se e batendo no telhado com a força do vento, e entraria no quarto e se deitaria na cama para descansar alguns minutos antes de me levantar e me vestir, e então me apressei e voltei à cozinha, coloquei os fios do macarrão na água fervente e mexi-os para que se separassem e pudessem cozinhar melhor, e, enquanto esperava, conferi se a mesa estava posta com o que ele gostava, e peguei a garrafa com o que restara do vinho que eu abrira dias antes, e embrulhei o pão no pano para que não amolecesse com a umidade, e ouvi o burburinho em meu ventre, eu não comera nada depois do almoço, e pensei no pão que a mãe na certa tinha comprado, o pão que eu não conseguia ganhar com o suor de meu rosto, pois toda tarde eu descia a ladeira e atravessava a rua de terra e ia do outro lado esperar na fila da padaria a última fornada e comprava as duas bisnagas que ele devoraria, arrancando o miolo, roendo a casca crocante, o pão quente que, às ve39


zes, com o embrulho de encontro a meu peito, eu sentia queimar-me, como os lábios dele me ardiam quando o amamentei, e eu sabia que o pão também enchia sua boca de saliva e dizia, Hoje vou comer um só, pega esse outro, mãe, e ela mentia, Não, filho, pode comer, não quero, não, comprei pra você, e eu me sentia feliz em poder dar a ele o que eu mais queria, e vê-lo saciar sua fome, enquanto a minha não era difícil de enganar, e depois eu a via ciscar as migalhas antes de unir a toalha pelas pontas e sacudi-la no quintal, e ouvi o vento fustigando os galhos no telhado e imaginei as folhas lutando, sem poder vencer a força das águas, como eu diante de um mundo que me negava construir algo com a força de minhas mãos, a vontade do meu sangue, o sal de minhas lágrimas, e, como sabia que ele estava mais abatido que noutros dias, sem ter como desenrolar o fio de Ariadne para sair do labirinto, fui eu mesma recolhendo o novelo para ele, e eu me senti de repente atraída por algo que era meu mas há muito despregara-se de meu corpo, como a árvore talvez sinta a ausência da folha que dela se soltou e, apesar do macarrão ainda não estar pronto, fui em direção a seu quarto, chamá-lo para a vida, e no escuro, ouvindo o rumor da chuva e das folhas varrendo as telhas com a força da ventania, de olhos fechados para outra escuridão, percebi que ela se acercava da porta, e eu disse, Venha, filho, já está quase pronto, e eu abri os olhos e não me movi, como quem desperta para a última ceia e procura ganhar tempo, um tempo que de nada adiantará, mas que é vida, e falei, Estou indo, mãe, e eu permaneci à porta um instante, pensando que haviam cortado o cordão que o ligava a mim na noite de seu nasci40


mento, mas que um fio muito mais espesso e invisível nos atara, e eu fechei novamente os olhos e pensei no mundo ao qual ela me trouxera, e no seu primeiro choro, atônito, com a explosão de luz aqui fora, e não sei por quê, vendo-o ali, quieto, na escuridão, eu sabia que ele segurava o choro e que não podia mais trazê-lo para dentro de meu ventre, lá estava ele, repleto, nos meus vazios, e engoli de uma vez só o silêncio, e repeti, Venha, e ergui-me, e fui, e eu o movi sem mais palavras, com o sopro suave de minha esperança, ouvindo o ímpeto da ventania lá fora vergando os galhos da árvore sobre o telhado, o rumor do temporal, e pensei que, às vezes, a semente tarda a crescer porque cai na sombra da própria árvore que a gerou, mas eu sabia que a chuva poderia carregá-la até onde o sol a nutrisse, e sentei-me à mesa, e coloquei à sua frente a travessa de macarrão com o molho grosso, e vi os dedos longos e peludos dele abrindo o pano no qual eu embrulhara as bisnagas, e eu peguei um pedaço de pão, despejei o vinho no seu copo, as mãos dela num gesto solene, e sentei-me diante do meu filho, e ergui a cabeça e mirei minha mãe.

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A HISTÓRIA DOS CAROÇOS

Quando minhas irmãs e eu éramos crianças, o pai fazia questão de que comêssemos frutas. Muitas. Ele tinha o hábito de trazer caixas de fruta para casa, enchendo a geladeira de uvas, pêssegos, mangas e ameixas. Eu sempre gostei de frutas, mas era difícil dar cabo das quantidades que o pai trazia. No verão, quando a família ia para o litoral, e o pai passava a semana trabalhando na cidade, ele chegava na praia com o carro cheio de frutas, e a nossa obrigação era comer aquilo até a próxima sexta-feira. Nunca dávamos conta... Até que o pai criou o subterfúgio de pagar por caroços e sementes. Talvez hoje, neste mundo 45


asséptico onde o politicamente correto tornou tudo meio chato, alguns torçam o nariz para a ideia do pai — mas garanto que, nos anos 80, foi uma sacada genial. Naquele verão, caroços e sementes passaram a valer grana. Éramos várias crianças — eu e minhas duas irmãs, mais os dois filhos do meu tio que passavam as férias conosco. O pai chamou-nos e, muito sério, informou a cotação vigente. Era mais ou menos assim: 20 centavos por caroço de pêssego, 15 centavos por caroço de ameixa. Sementes de uva valiam 5 centavos. A gente deveria comer as frutas durante a semana, guardando os caroços para que o pai nos pagasse proporcionalmente na sexta-feira. Nunca comemos tantas frutas na vida! Os caroços viraram a moeda oficial daquele verão: um picolé se comprava com três caroços de pêssego, um sorvete de duas bolas necessitava cinco pêssegos, dez ameixas e um cacho de uvas. E a gente dê-lhe comer. Meu primo economizava caroços para comprar revistinhas, minha irmã torrava tudo em picolés. Na sexta, o pai chegava e, coitado, antes de se estirar na cadeira da varanda, tinha que sentar à mesa da sala e fazer a contabilidade dos caroços (e os caroços eram guardados em sacos, e ali ficavam fermentando durante dias e dias, no calor do verão). Contar aquilo era um nojo e uma trabalheira, mas o pai seguia firme. E cada vez trazia mais frutas para casa. Até que um dia a minha prima resolveu juntar sementes para comprar alguma coisa grande, acho que era uma boneca. Era uma guria obstinada, e naquela semana comeu ameixas dia e noite, até que amanheceu na sexta-feira com febre, vômitos e diarreia. A mãe ficou fula. Fruta demais soltava o intestino, foi o que ela disse para 46


o pai quando ele chegou naquela tarde com suas ameixas e pĂŞssegos. Diante do estado da sobrinha, o pai capitulou. Recebemos o nosso Ăşltimo pagamento consternados: acabava-se ali a mina de ouro. Eu sigo adorando frutas; mas, como naquele verĂŁo, nunca mais.

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A VIDA ÍNTIMA DAS HISTÓRIAS

Quando eu era pequena, a minha mãe lia para mim todas as noites. Eu gostava muito das histórias, então segurava o sono até não poder mais, e a mãe ali, lendo e lendo e lendo, louca — certamente — para tratar dos seus afazeres de mãe, de mulher, tomar um banho, vestir o pijama, ver a novela, ler o seu próprio livro. Com o tempo, fui desenvolvendo a artimanha de enganar o sono com as histórias, até que, em contrapartida, minha mãe revidou da seguinte maneira: ela lia meia hora para mim, depois dizia: “Me espera um pouquinho, só vou ali fazer xixi e já volto”. E saía. Saía e não voltava mais. Então, entediada 49


de mim mesmo, eu dormia rapidinho. Isso foi assim por um bom tempo, até o dia em que aprendi a ler. Que libertação! A minha mãe podia passar a noite inteira nos seus afazeres, eu mesma lia para mim. Eu entrava na pele da Alice, da Sofia (era um livro que eu adorava esse, mas já não lembro mais o título), eu me metia lá no Sítio do Picapau Amarelo, e sumia com o Pedrinho, a Narizinho, a Dona Benta e a Emília. O problema de dormir, no entanto, continuava o mesmo. Eu ficava lendo até a mãe perder a paciência. Eu sempre gostei de fugir para a ficção. Comecei lendo, e depois passei a escrever as minhas próprias histórias. Quando eu começo a escrever, quando mergulho numa história, com que facilidade vou me despindo das arestas de mim mesmo, vou ficando leve, incorpórea, feita de palavras... Eu volto a ter sete anos, mas, em vez de brincar de bonecas, jogo com os meus personagens, deixo eles me guiarem, danço de rosto colado com eles. Escrever é uma alegria e uma danação, é como um desses cãezinhos malucos que correm atrás do próprio rabo — quando um livro vai pelo meio, penso nele noite e dia, penso quando não escrevo, penso que deveria estar escrevendo, evidentemente, penso nele enquanto escrevo, e quando termino de escrever, sinto falta da história. Quando eu estou para terminar um livro, faço como a minha mãe fazia comigo, vou ali fazer xixi e já volto, eu digo para os personagens. E não volto mais. O ponto final já está lá, e os personagens acabam por mergulhar no seu sono. E dormem e dormem e dormem, até que o primeiro leitor finalmente os desperte.

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O MENINO QUE INQUIETAVA AS ESTRELAS

Quando perguntaram, ninguém mais soubera dizer se ele havia nascido num dia ensolarado, mas sabiam de certeza que não chovia e que soprava alguma brisa. Parece mesmo, isso foi garantido por uma alminha estrangeira que um dia passou por lá voando numa nuvem, que a cor azulíssima dos olhos dele tinha explicação nas visões de mar que tivera sua avó, uma polonesinha engraçada e miúda que viera para as terras brasileiras penduradinha num navio enorme. Diz-se por aí que essa tal polonesinha viu tanta e tanta água, e tanto e tanto céu durante os in51


contáveis dias que gastou atravessando o globo dum lado a outro, que esse azul todo ficou grudado na retina dela, depois na retina da filha dela, e depois na retina do filho da filha dela, o tal que nasceu nesse dia de tempo incerto. O tal que inquietava as estrelas. Isso foi desde que ele era menino, essa história de inquietar as estrelas. Parece mesmo que tudo começou quando ainda dormia em berço, com o buchinho cheio de leite. Foi numa noite de céu bem limpo que ele viu a janela pela abertura entre as gradezinhas do berço e, da janela, pôde ver também um céu. Devia ter uns meses o moleque, isso eu não garanto pois não estava lá, mas certo mesmo é que uma estrelinha miúda correu dum lado a outro do céu para saudar o menininho. Foi a primeira estrela que se inquietou por ele e depois disso vieram muitas outras que ele contou e recontou e colecionou como se fossem selos ou moedas ou insetos, ou qualquer dessas outras cousas engraçadas que as crianças colecionam para lembrar a vida e que guardam numa caixinha embaixo da cama. O menino, claro, não pôde enfiar as estrelas numa caixa de sapato sob a cama, até porque estrela não vive em caixa, é tipo passarinho do mato, vaga-lume, história de fantasma, essas coisas. Estrela é fugaz, cai depressa, risca o céu com timidez. E as estrelas gostavam tanto do menino porque se assemelhavam a ele. É verdade, eu não sei, mas me disseram, esse tal menino era tímido e cintilante e não parava quieto num lugar. Viajante, já no berço se imaginava num canto e noutro; cresceu um pouco e passeava nas páginas dos livros, voava. Isso lhe veio do azul que viu a avó, viajante primeira dessa família de meninos amigos de estrela. 52


O menino foi crescendo e ouvindo as histórias que a avó contava enquanto fazia rabanada para ele comer. As estrelas foram se sucedendo, intercalando-se com as frustrações, os amores e as descobertas. Ele perdeu um cachorro, ganhou um irmão, passou de ano, fez uma música, aprendeu com o pai a jogar bola feito craque, beijou uma menina, deu a mão para o avô quando atravessou avenida movimentada, caiu de bicicleta, mudou de casa umas três vezes, despertou atrasado para a escola, atirou laranja para calar o cachorro da vizinha numa noite de verão, sofreu o fim de um namoro, viajou para a Europa com uns amigos do peito, votou para presidente, virou personagem de poema, mudou de cidade, ganhou um prêmio, comprou um carro vermelho e, de uma certa forma, virou homem feito. Tudo isso, e as estrelas se sucedendo. Ainda bem que podia guardá-las na memória, não em caixinhas de sapato, senão andava ele dormindo toda a noite sobre uma constelação. É claro, todas essas estrelas gastaram muitos anos para passar pela vida do menino de olhos azuis, e com isso tudo a avozinha dele foi envelhecendo. Crescia o menino, diminuía a avó. Diminuída, a avó fez-se em duas, e de uma dessas metades surgiu uma menininha a qual chamaram Gabriela. Enfim, um dia, a avó polonesinha virou estrela e o menino a descobriu cadente. Quis chorar, mas já era grande. Saibam vocês aí que esse nosso menino, apesar de ser especial — claro, eu não iria ficar aqui contando historinhas de um moleque desinteressante — perdeu um pouco da inocência com o tempo, aliás como todos nós que, por azar, num dia qualquer acordamos adultos e com medo de sentir. Por isso é que ele não chorou, o boboca. Ficou ali, 53


coraçãozinho apertado, tomando providências, vestido de traje preto, pensando na avó e nas sopas de beterraba que ela fazia para ele. Mas a tristeza tem que sair de dentro do peito por algum lugar e ficou decidido desde sempre que sairia pelos olhos feito lágrima; então numa manhã meio opaca esse tal moleque acordou com os olhos inchados de lágrimas contidas e percebeu que precisava chorar. Um bom médico examinou-o e disse: — Ponha pra fora isso aí, que você não foi feito pra acumular tristeza no peito. O menino engoliu em seco e retrucou: — É que sou tímido. Mas na verdade, era espalhafatoso e, com espalhafato, chorou umas saudades ardidas da avó que lhe dera de presente aqueles olhos de céu. Nessa noite, as estrelas se inquietaram no firmamento, contentes, cadentes, para dar espaço à nova companhia que havia chegado pra ficar. Lá embaixo, na cama, o menino sentia saudades. Depois de tudo isso, muito tempo se passou. E então veio o dia em que ele entrou na minha vida. Eu mesma, desde sempre, gostava de histórias e vivia de inventá-las. Por sorte, não inventei esse menino, ele já existia bem antes de mim. Meu avô também veio da Polônia pendurado num navio, mas já era homem e tinha olhos de verde-mar. Herdei dele essa coisa de me inquietar, mas nunca inquietei estrelas do céu, eu pulava ondas na praia e, no máximo, agitei a vida de meia dúzia de estrelas-do-mar. Do meu avô, ficou-me apenas um punhado de histórias contadas numa língua repleta de consoantes e uma moeda de ouro com a cara de um menino bem dese54


nhadinha nela. Por ter dado nessas terras já homem feito, meu avô virou estrela quando eu ainda era pequenina, de modos que pude chorá-lo sem medos e nunca meu olho ficou inchado e nem meu peito. Foram as histórias que eu criava que me trouxeram esse menino que inquietava estrelas e ele veio, tímido e espalhafatoso, bater à minha vida num dia quente de verão. Tenho que dizer aqui que estava escrito nos olhos dele o fim de uma rima que eu havia começado há mais de vinte anos e para a qual não achava verbo, embora eu não tenha notado isso desde o primeiro dos olhares que trocamos, em parte porque sou distraída, em parte porque as grandes coisas nos passam despercebidas, ninguém percebe o céu sobre a cabeça, o coração dentro do tórax, o chão sob a sola dos pés. Mas aviso que é verdade uma coisa: no dia em que conheci o menino, meu peito deu uma balançadinha de leve, assim feito navio que corta uma onda; uma balançadinha que foi nada mais nada menos que o riso de dois avós que se encontraram no firmamento e que tramam a vida de um casal de netos aqui embaixo. Devo dizer mais uma cousa, e digo então que onde céu e mar se juntam é que nasce o sol, e é lá, nesse lugar misterioso e fresco e inalcançável, lugar que desperta a curiosidade de todas as crianças desse mundo, que se fazem as estrelas. Se fazem, sim senhor, não são feitas por ninguém coisa nenhuma; as estrelas brotam do avesso de si mesmas. Depois de bem prontinhas e cintilantes, é que os anjos pegam as estrelas e espalham pelo céu, para que elas caiam, pouco a pouco, aos pés desse menino que surgiu na minha vida. 55



FEIJÃO COM BIFE

Antigamente é uma palavra empoeirada feito essas velhas máquinas de costura que ficam escondidas nos quartinhos onde habita tudo o que nos foi importante o suficiente para ainda existir, mesmo que num exílio tão triste como este dos guardados. Pois, antigamente, a casa era azul feito um céu e ampla o suficiente, com suas altas paredes de madeira riscada, para acomodar todos os meus sonhos infantis. Ali, passávamos as férias. Ali, após o Natal, com o porta-malas repleto de todas as coisas de comer e de usar, mais os brinquedos que porventura o Bom Velhinho nos houvesse trazido, era que o pai estacionava sua caminhonete. 57


Já no caminho, disputando espaço no banco traseiro com as minhas irmãs, eu ia farejando o cheiro da areia. Era um cheiro característico que se insinuava numa curva certeira e que vinha pelas minhas narinas adentro com a magnitude do melhor dos perfumes. Então, como numa mágica de picadeiro, após esta anunciação olfativa, vinha a areia propriamente dita. O primeiro montinho, nada mais que um rastro de areia suja, às vezes pontilhada de capim: era preciso possuir um olhar apurado para percebê-la, mas sempre a víamos. — Já é praia! Já é praia! Urros e palmas explodiam no carro. Chegava, enfim, o veraneio. A mãe sorria, pedia calma. O pai, pelo retrovisor, deliciava-se com a bagunça. Quando teríamos a primeira pescaria? Frequentávamos um balneário sulista e, se o sul é pródigo em campos, suas praias deixam muito a desejar. Aquela não era diferente: mar escuro, achocolatado, areia compacta, horizonte limpo — podia-se perder o olhar pelo nada. Não havia um morro, uma ilha, uma elevação que quebrasse a monotonia daquele litoral varrido pelo vento. Mas era o nosso paraíso. Nunca o frio ou a cor parda daquelas águas nos proibiu um banho de mar. Nunca um temporal de areia nem o uivo do minuano nas venezianas de madeira nos roubou o sono. Contávamos os meses esperando aquele tempo de picolés e baldinhos de areia, vivíamos cada momento com uma sede típica das crianças, e ainda hoje, tantos verões depois e tantos litorais passados, ainda não recuperei em mim, perdida em alguma gaveta da memória, a 58


genuína alegria daqueles tempos. O sobrado de madeira, dos tempos do avô, reunia com galhardia os primos e tios. Tamborilando nossos passos pelo assoalho, corríamos, brincávamos, espiávamos o porão com um medo delicioso: noutros tempos, ali se guardava a manteiga — era a geladeira de minha avó. Para nós, ninho de bruxas, morríamos de medo do xixi noturno, era preciso pisar o alçapão para entrar no banheiro, e todo mundo sabe que as bruxas têm o sono muito leve. A casa cresceu conosco — a madeira tinha esse dom, o concreto de hoje, coitadinho, é como um sapato elegante e apertado. Sempre cabiam os novos, os primos nascidos pelo ano, a namorada do tio solteiro, os amigos. Multiplicavam-se as camas: pelos quartos, os beliches iam cheios; almoçava-se em dois turnos, crianças primeiro, adultos depois. Nunca haverá felicidade maior do que o almoço após o banho de mar, o feijão com bife, a mãe dando a garfada na boca, para ir mais rápido. — Se deixar, eles ficam a tarde inteira na mesa, e o pessoal está com fome. Após o almoço, a sesta. Antigamente (poeira outra vez), ainda sobrava tempo para as pequenas delícias. Houve um verão em que, já dispersa a maioria das gentes, uns casados, famílias aumentadas, outros morando longe, outros, ainda, morando no inalcançável, vendemos a casa e partimos para outras paragens de mar mais azul. Já não íamos pelas estradas farejando as areias, nem brigávamos por espaço no banco traseiro. Nunca mais voltei lá. A casa azul é que vem até mim, 59


toda a noite, e revivemos o porão da manteiga (que coisa mais estranha a avó guardar comida no porão!), os ventos que punham a mãe apavorada: a casa sempre poderia sair voando como acontecera certa vez, as tardes de brincadeira no quintal, os banhos de mar sujo, a romântica bandeira branca (uma vez, tive esta honra). Quantas alegrias esta infância dentro da gente ainda nos dá! Dá pena ver o tempo passar. Por isso, não voltei mais e, de medo, nem passei perto. Hoje, ando ocupada em preparar novas infâncias de bife com feijão. Nunca mais voltei à casa de madeira dos meus melhores anos. A gente não deve passar pelo tempo: o tempo é que passa pela gente. Assim, me disse alguém certa vez, dói menos.

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ALMA E O ACENDEDOR DE LAMPIÕES

A primeira vez que saiu de casa foi aos quatorze anos. A avó a vestiu de rendas, prendeu seus longos cabelos em duas tranças, colocou-lhe uma grinalda de minúsculas flores de laranjeira. Para o dia, ganhou sapatos novos — os primeiros sapatos da sua vida. Os dedos muito pálidos sufocaram um pouco, apertados pelo verniz, mas o resultado chegou a agradá-la, muito embora preferisse andar com os pés na terra, com havia feito até então. O mundo pareceu-lhe um amontoado confuso de coisas, de cheiros e de cores. E pareceu quente demais. A avó tentou explicar que era verão, portanto, fazia calor. Mas 61


estava havia muito acostumada com a penumbra úmida das peças vazias e tal ideia não lhe pareceu cabível. Sufocou-se um pouco com o ar pesado que subia do porto e que cheirava a salitre, pobreza e mistério, mas seguiu a avó pelas ruas e ladeiras, amparando-a quando perdia o prumo ou quando escorregava nas pedras limosas do calçamento. Chegaram à Igreja Matriz ao badalar das Vésperas. O porto, com seus homens parrudos, cujo dorso ia recoberto por incríveis tatuagens e cujo hálito de fogo tinha a fama de desonrar as virgens, havia ficado para trás. A avó respirou com certo alívio, temerosa pela santidade da neta, muito embora nada disso a tivesse sequer interessado, nem a masculinidade vertiginosa dos marinheiros, nem a balbúrdia fedorenta e alegre da feira de peixes, nem a cantoria despudorada das meretrizes que andavam pelas ruas atrás de clientela para seus amores. Chamara-lhe a atenção unicamente um sapo, um sapo gordo e pegajoso que vira coaxar numa poça agonizante, e dele se apiedara tanto que chegara a pedir à avó que permitisse levá-lo para a casa. Porém, antes que a senhora tecesse qualquer juízo, o sapo, compreendendo o olhar de cobiça da menina, saíra em largos pulos pela rua até jogar-se dentro de um canal pútrido, atulhado de lixo, e ali sumir num coaxar de franco prazer. A Igreja cheirava a velas e a mirra, e sua umidade silenciosa fez com que ela recuperasse um pouco o tino. A avó tomou-a pela mão. Seguiram pela nave, passando por algumas beatas que rezavam, e entraram na sacristia. Uma grande imagem de Cristo crucificado ungia a peça com uma espécie de tristeza. A avó sentou-se na única cadeira e disse: 62


— Vamos esperar o padre. Ela aquiesceu, sem tirar os olhos do Cristo. A avó tecera muitos planos para a menina. No princípio, tencionara casá-la com algum lorde ou conde, ou com qualquer homem idoso de fortuna e boa alma que zelasse pela menina e que lhes desse uma vida abastada e tranquila em alguma grande casa repleta de criados. Para isso, educou-a nas melhores artes, ensinando-a a bordar, costurar, ler em latim, dizer poemas e cantar. Inventou algumas outras modalidades de agradar, e a neta teve de haver-se então com a jardinagem, a mágica de escrever versos em grãos de arroz e a misteriosa arte de levitar. A menina conseguiu pairar um palmo acima do chão e, com o tempo e a prática, chegou até mesmo a dançar levitando, isso nos dias de maior concentração, combinando com mestria dois talentos de muito gosto. A avó achou então que tinham garantido o futuro. Mas, apesar dos muitos talentos da rapariga, nunca nenhum cortesão chegou a bater-lhes à porta, e o tempo foi passando numa modorra sem fim. Enquanto esperava algum pretendente para a menina, guardou-a a sete chaves dentro de casa, enchendo-a das mais variadas tarefas para que nunca demonstrasse desejo ou energia suficiente para descobrir o que escondiam os altos muros que a separavam de tudo. Eternamente exausta, de ossos finos e corpo delgado pelos exercícios e a comida pouca, a menina de olhos marinhos vivia seus primeiros anos na faina de agradar a avó exigente. Na casa, moravam as duas mais uma velha criada manca, que 63


era a responsável pelas parcas compras e pela transmissão de alguns acontecimentos que sacudiam o mundo lá fora. Assim souberam da aliança entre o príncipe e a duquesinha. A criada narrou o pomposo casamento e a festa que sacudiu todos os recantos da cidade, a avó riscou o último nome da lista de pretendentes que tinha feito havia alguns anos — estavam todos casados, mortos ou doentes demais, e enterrou no jardim das begônias os seus sonhos de riqueza e glória. De um dia para o outro, acabaram-se as aulas, as danças e as sessões de levitação. A avó, já vendo o mundo gelatinoso por causa de uma catarata que lhe turvava a vista, resolveu preocupar-se com o seu futuro. Chamou a neta num canto e lhe avisou: — Você vai ser filha do Senhor. — Entregou-lhe então uma velha Bíblia. — Estude-a até saber cada passagem e cada suspiro. Quando eu morrer, você terá amizade o suficiente com Deus para zelar pela minha eternidade. O padre Ramón usava uma batina bordada em fios de ouro e tinha um sorriso cinzento e acabrunhando. Entrou na sacristia ainda com a hóstia dissolvendo em sua boca e por isso permaneceu algum tempo em silêncio. A avó aproveitou para tomar a palavra. — Esta é minha neta, padre. Nasceu para a Igreja — a voz dela reverberava pela peça. — Sabe a Bíblia inteirinha de cor e quer ser freira. O padre olhou a menina e achou-a bela demais para o noviciado. — Como se chama? 64


— Alma — respondeu a avó. — E é pura como um passarinho. Nunca viu um homem de perto, o senhor é o primeiro. De fato, a menina olhava o padre com uma curiosidade atenta. Em verdade, tentava decifrar o ponto que fora usado nos bordados da rica batina. O padre se envaideceu. — E não fala? — Só quando eu mando. A avó cutucou-a então com o dedo em riste onde um anel de fantasia rebrilhava debilmente. A menina disse qualquer coisa, mas com voz tão sutil que foi impossível compreendê-la. O padre deitou-lhe um longo olhar, apreciando seus punhos estreitos e leitosos, e vendo sorrir a sua boca rosada e juvenil. Conteve um suspiro e, evitando a imagem que os espiava do seu canto na parede, falou: — Deixe-a aqui. Irei encaminhá-la para o convento. — Será freira, então? — A avó sorriu um riso desfalcado de dentes. — E quando? — Primeiro é preciso que preste o noviciado. Leva algum tempo, mas será freira, se tiver a vocação de Deus, é claro. A avó acarinhou os cabelos dourados da neta. — Tem a vocação — garantiu. Alma não voltou mais para a casa grande e escura, desfalcada de móveis e lúgubre, onde vivera até então. À partida da avó, não sentiu qualquer tristeza, mas pensou que era uma pena que não houvesse trazido o sapo, pois assim teria alguma companhia. Tinha um certo medo das imagens de santo. 65


O padre Ramón levou-a para a sua casa, que ficava nos fundos do terreno, e disse que ela ficaria uns dias por ali. Até que as freiras aparecessem. Arrumou para a menina uma pequena cama de campanha e colocou-a na pequenina sala quase sem móveis. Depois, pensando melhor, arrastou a cama e deixou-a no corredor, mais perto de sua própria alcova. — Você dormirá aqui. Alma deitou-se prontamente. O padre se espantou: — Não agora. Só à noite, após o jantar e a reza — saiu cheio de júbilo com o cheiro fresco que a menina exalava pela casa e foi tratar das suas rotinas. A noite caiu como um manto. Ambos cearam, Alma pensando nos estivadores do porto e comparando-os com o frágil e encurvado senhor; o padre Ramón pensando na curva delicada do pescoço da menina, e tentando adivinhar o que o vestido de renda escondia. Ponderara muito e chegou à boa conclusão de que não pecava, pois Deus a havia enviado a ele, de modo que seguia a sua vontade. Ademais, quando fosse para o convento, sugeriria que fizesse o voto de silêncio para que Deus a amasse ainda mais. Teria assim bem guardado o seu segredo. Alma deitou-se em sua cama usando apenas a combinação e dormiu rapidamente, tivera um dia cheio e estava cansada. Acordou com o toque frio e tímido das mãos do padre Ramón, que lhe desciam pela curva das pernas até tocarem os pés pequeninos, de unhas peroladas. — Minha santa — sussurrou o padre, e a voz dele foi abafada pelos lençóis. Estava de ceroulas e a visão do seu torso nu era um 66


triste espetáculo. Chegou-se mais perto da menina e com voz aliciante falou: — Vou consagrá-la, minha ovelhinha. Alma sabia pouco da vida, mas lera e decorara poemas suficientes para entender que alguma coisa errada estava acontecendo. Perguntou com voz trêmula sobre a falta da batina. Era tão bonita. — Depois a visto para você — respondeu o padre. E jogou-se na cama de campanha, a tempo de cair de boca sobre a menina. Deu com a cara nos travesseiros. Num impulso, Alma levitara uns cinco palmos, performance excelente mesmo para os seus muitos anos de treino, e suas tranças douradas dançavam frouxamente no ar. Padre Ramón ficou apoplético e não achou nada para fazer, a não ser o sinal da cruz. Mas nessas alturas, Alma já saía voando pela janela aberta, com a leveza de um canarinho, e acenava-lhe um adeus sorridente. O padre caiu de joelhos chorando e pedindo perdão em latim. Ali rezou até o alvorecer do dia, quando um coroinha o encontrou, já atrasado para a primeira missa do dia, com os olhos esbugalhados de espanto, e com o sexo aceso feito um Adão desesperado, marcando seu espaço sob o tecido fino das ceroulas. Alma ganhou os céus, dando graças que levava mais jeito para os mistérios da levitação do que para a arte de escrever poemas em grãos de arroz. De cima, achou o mundo mais bonito, concluindo que a distância era um dado muito importante para a apreciação de certas coisas. O padre, por exemplo, visto do púlpito tinha muito mais encantos do que à beira da sua cama, babando feito 67


um boi e com aqueles olhos desesperados e lacrimejantes. Vagou assim por muito tempo, até que deixou de lado o bulício da cidade e foi penetrando num espaço de céu muito tranquilo, onde a umidade esbranquiçada das nuvens lhe trazia uma fresca sensação. Em verdade, no afã de escapar aos abraços do padre Ramón, Alma saíra voando; tivera êxito, por certo, da janela por onde escapara, pudera ver o pasmo que escorria pela boca aberta do padre como uma espécie de baba esverdeada e espumosa. Porém, agora dava-se conta de que não sabia descer. Tampouco podia localizar-se. Os muitos anos de reclusão que a avó lhe tinha imposto haviam furtado sua chance de conhecer o mundo lá embaixo, menos ainda poderia decifrá-lo de cima. A noite caiu, passando pelos cabelos dourados de Alma como um sopro escuro sarapintado de estrelas. Achou que via o mais belo espetáculo da Terra e sentiu-se mais feliz do que quando lera o primeiro verso de amor num livro roubado à estante das leituras proibidas, que a avó guardava à chave. Lembrou-se da avó e da vida mesquinha que levava em sua casa tomada pelo musgo e pela solidão, e deu graças de não estar lá embaixo, no seu quartinho sem retratos, estudando aos versículos da Bíblia ou dançando valsas. O tempo foi passando e, com ele, seus dias e suas noites. Alma passou a sentir fome e solidão, apesar do grande prazer que desfrutava ao atravessar as nuvens e ver nascerem as estrelas. Conhecia então já o suficiente do mundo para compreendê-lo e amá-lo, porém ansiava por pisar na terra fofa, descalça, e por repousar a cabeça num bom travesseiro de penas. 68


Certa feita, ao anoitecer, olhou para baixo e viu que uma luz nascia numa rua deserta. Estranhou que a perspectiva da noite se invertesse assim, já que o céu estava sob sua cabeça e lhe roçasse os cabelos com sua umidade azulada, e não lá embaixo, perto da calçada e dos homens. Tomou-se de curiosidade tão forte que esta pesou-lhe no peito a ponto de fazê-la baixar muitos metros. Pairou então entre os sinos do campanário de uma igreja, e o que viu fez seu coração palpitar. Um rapaz alto, de cabelos muito negros, compenetrava-se numa estranha tarefa: como num bailado, erguendo um longo bastão em cuja ponta dançava uma chama, enchia de luz uma pequena redoma de vidro instalada no alto de um poste. Assim, com o delicado milagre, o rapaz fazia nascer uma estrela. Alma suspirou profundamente, encantada com aquela mágica e com o rosto doce do rapaz. Este, ao ouvir o suspiro vindo das nuvens, ergueu o rosto para o alto e deu de cara com a menina a fitá-lo. — Que faz você aí? — e sua voz era doce e profunda. Alma ignorou a pergunta. Pairava no ar com as mãozinhas segurando o rosto delicado, fitando o rapaz com uma espécie de adoração. — Nesses dias todos em que estou no céu — disse ela — vi nascerem muitas estrelas. Porém, nunca tinha visto uma estrela enclausurada. Como você a recolheu do céu e a pôs aí, nessa redoma? — Não sou caçador de estrelas, menina. Sou acendedor de lampiões. — Tínhamos um lampião em casa, mas a criada quebrou-o e avó nunca o repôs. Ele não era como esse, era pe69


quenino. Tenho para mim que não guardava estrelas, mas vaga-lumes, no máximo. O acendedor de lampiões sorriu docemente. E repetiu a pergunta: — Que faz você aí? Eu também já vi muitas meninas, algumas de cabelos negros, outras de cabelos dourados como os seus. Porém, estavam todas no chão, nenhuma flutuava feito um pássaro ou uma nuvem. — Eu fugia de um padre — explicou Alma, e contou-lhe toda a história. Enquanto Alma falava, o acendedor de lampiões seguiu seu caminho: tinha ainda muito serviço a fazer, pois os homens não gostavam de caminhar no escuro. Alma acompanhou-o. Ao acabar a sua narrativa, ele terminava de acender o último lampião. — Quando eu descer daqui, posso escrever seu nome num grão de arroz — disse Alma. — O problema é que não sei arriar. Uma fina agulhada feriu o coração do acendedor de lampiões: queria dar a mão à menina, mas era impossível, tampouco sabia como fazê-la descer. Disse: — Amanhã, nessa mesma hora, nos encontraremos no início da rua. Até lá, pensarei em algo para ajudá-la. Porém, se durante esse tempo chover, tome muito cuidado com os raios. Alma jurou cuidar-se e acenou-lhe um adeus úmido de lágrimas. O rapaz partiu com o bastão apoiado às costas, deixando atrás de si um rastro de luzes. Na noite seguinte, o acendedor de lampiões esperou e esperou. A noite já ia alta e fazia muito que as estrelas pis70


cavam no céu, mas Alma não apareceu. Trabalhou imerso numa tristeza insuportável e, no final da jornada, quando mais nenhum dos seus lampiões restava apagado, foi procurar o velho árabe. O velho árabe tinha um tapete que voava e alugou-o por um punhado de moedas. Sentado no tapete, o rapaz atravessou os céus da cidade, mas não encontrou Alma. Talvez uma correnteza a tivesse levado embora.

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LU C

IC

OL

LIN



KOZMIC BLUES

Ouvir vozes quando é um solo de guitarra é solidão. Esperar que a porta se abra. Suspirar é solidão. Não falar em corpo. Repetir o mesmo gesto. Repetir. Não saber dizer se repetiu o mesmo gesto é solidão. A paisagem igual a umidade por dentro o fogo o frio. As cores que se abandonam. As mãos que envelhecem, os toques melhores que aguardarão para sempre. A folha tombar no outono é solidão. Microfonia. Alguém tossindo na plateia. Ruídos num pianíssimo. Uma poltrona que range. Desafinar na noite de estreia. Sob as luzes. Desafinar em todas as noites subsequentes. Atrasar um tempo. Comer um compasso. Estar circundado 75


de não pode ser é solidão. Chorar no escuro. Plagiar. Quebrar um copo e não precisar varrer os cacos. Uma corda que arrebenta no meio da melodia perfeita. Cair de joelhos sem ter nada a dizer. Ouvir a série harmônica. Não ouvir a série harmônica. Janela de quarto de hotel. Dicionário onde se espera encontrar como se diz “eu gostaria” naquela língua remota. Varal vazio. Ritmo da colher no prato de sopa. Ouvir a própria voz compondo finais de frases medíocres. Tudo isto. A mecânica da representação. Seguir atentamente as coordenadas até a próxima estação e descer no lugar errado. Descer carregando peso é solidão. Escrever a própria história com mistérios. Ver ondas indo embora e esquecer que sempre cumprem voltar. Resumir as coisas da vida em uma página e meia. Pensar nas horas em que o coração existiu sendo alegria. É com certeza. Na água que evapora, o lentamente é solidão. O silêncio que soterra os objetos. Mantos imensos de vidro. Magma. Força da lava veloz que só se pode aceitar. O transparente que existe por si também é. Estar longe do porto de onde se parte de onde se chega de um onde. Enxergar tanta água. Catar por entre os escombros da noite o vago ainda de um sorriso. Desconsiderar que se nasce do fruto é solidão. Cisco no olho. Ter um medo palpável do tempo que perpetua estragos por dentro. Ter medo da resposta e da pergunta. Planta sem água. Água sem sede. Relógio sem corda. Ferida ex76


posta. Mosca contra o vidro. Vidro de veneno. Asa quebrada é solidão. Fogo na floresta. Chave sem fechadura. Estrada que virou um labirinto é solidão. Suor é a maior solidão. A fome ensurdecedora não dimensionável é. Detalhes vinte cento e oitenta vezes a mesma cena. O diamante que aguarda na caixinha escura escura e o macio daquele escondido também é. O nome da coisa sem um porquê é solidão. Querer aplacar as pretensões de infinito. Os restos da festa as garrafas vazias o canto da sala as sobras as flores e os copos em silêncio. As paredes impregnadas de apelos monódicos. O respirar solene um ar cansado. A pedra sobre o estar é solidão. O maestro baixou a batuta. Pensar em como será o longe nos olhos miúdos dos pássaros. O baixista disse “três”. Sou um lugar onde eu nunca fui.

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COTAÇÃO DO DIA

HOJE

não me diga

que o carro está vazando óleo que o almoço já está na mesa que talvez chova de tarde que eu tenho que apanhar as crianças na escola que o gerente ligou pedindo cpf e pis que a alda ligou pedindo referência que eu tenho que apanhar as roupas na lavanderia que é feriado na terça que acabou a margarina que eu tenho que apanhar flores do campo 79


que eu tenho que pagar aquela conta que talvez chova só à noite que amanhã é outro dia que o correio entregou um envelope errado que eu tenho que contar aquela história que acabou de novo o amaciante que talvez chova o mês inteiro que o certo é uma aspirina todo dia que eu tenho que esconder a roupa suja que talvez chova daqui a pouco que eu tenho que recolher aquela roupa que eu tenho que recolher este sorriso que eu tenho não me pergunte se eu sei onde está o guarda-chuva se eu sei a diferença entre isso e isto se achei o certificado de garantia quem entortou a chave do arquivo se eu lembro quem fez aquele filme de suspense se fui ao supermercado quem entrou aqui com o sapato sujo se é hoje o dia da secretária se eu marquei a hora do dentista se eu vi as chaves da casa da praia se já mandei consertar a torradeira se eu já encomendei os salgadinhos se não tinha a pasta de dentes da marca de sempre se foi bom se eu recomendei a empregada se coloquei gasolina aditivada 80


se eu coloquei pimenta nesse molho e se já terminei o colar de alho se o encanador ligou passando o orçamento se já terminei a sobremesa se vou no supermercado ainda hoje se é amanhã o dia da secretária se já terminei de contar aquela história se já terminei NÃO ouse interromper NEM meu discurso NEM meu silêncio ouse questionar NEM meu cansaço NEM o meu rosto descansado de um sono longo aliás longuíssimo NÃO me compare aos dividendos NÃO ouse interrogar NEM de leve sobre os lucros não confirme que a olga é dez anos mais velha que o everaldo que tenho medo de raio que eu nunca ganhei na loteria que a lasanha passou do ponto que a ingrid nunca foi irmã do ingmar que a prova vai ser difícil que esta caneta borra que eu tenho que parar com a coisa do chocolate que aquela vaga já está marcada que o jeito é não pensar em nada que o décio é um vida mansa que não vai sair aquela mancha de graxa que todos os irmãos da vó bebiam muito que é uma história banalíssima que é um carburador sujo 81


que o tratamento completo é uma fortuna que eu tenho alguém em segredo que eu morro de rir com piada boba que a lúcia usou o mesmo vestido que eu não tenho ninguém embutido que a mocinha não fica com o bandido que a ponte não vai ser construída este ano nem no próximo não sei os tempos do verbo os preços de ontem e nem lhe dizer se chove não penso em pagar a prazo não penso em chegar na hora nem penso no meu atraso enfim sós e assim enfim eu nada declaro enfim a vida nos foge e o sempre não passa de

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HOJE


CORÉ ETUBA: TATI KÉVA!

Do Correio Simples 29/08/2016 EM TRÊS ANOS CURITIBA SERÁ A MAIOR MEGALÓPOLE DO GLOBO Pela proximidade com belas praias, pelo peculiar clima trópico-mediterrâneo e, sobretudo, pelo caráter efusivo de seu povo, nossa linda Curitiba se transformou na cidade com o mais alto índice de CD (Crescimento Desenfreado) da América Latina. Entre as cidades mais populosas do planeta, ao lado de Seul e Bombaim, Curitiba vive a realidade apocalíptica das grandes aglomerações. 83


Gigantesco complexo urbano — único tecnopolo do País — Curitiba é sinônimo de caos e violência, que se intensificaram a partir de 1970, com o êxodo rural, a criação do primeiro metrô biarticulado telepresencial do Universo e, principalmente, com a chegada do movimento hippie à Cidade. Macrometrópole, tanto em aspectos culturais, quanto em aspectos sócio-ergonômicos, Curitiba sofre com a favelização, os congestionamentos e a criminalidade, mas também tem aspectos positivos como... (cont. p. 07) CUIDADO: Curitiba está cheia de HIPÓCRITAS. Se você é um Mocinha da Cidade NÃO se CONFORME com as IMITAÇÕES do sistema. Compras só no SHOPPING. Seje ORIGINAL. Confere dinheiro e sombrinha na bolsa e, então, fecha o portãozinho. Andar rápido, porque a cidade está in-fes-ta-da de desavergonhados. Só vai sair porque tem que comprar o sapato para o baile. Está aborrecida, em função dos acontecimentos. — Bom dia, Dona Cidália! Indo passear no Centro? — Bom dia, Alva! Vou dar um pulinho ali n’A Vencedora Calçados. Sábado é o baile de debutante da minha neta, a Anita, filha do José Américo. — Vi a vitrine: uns lindos! A Palmira vai lhe mostrar. — Dá medo de andar por aí, com estes détraqués soltos... — E nós aqui, com o açougue aberto! Curitiba foi verdadeiramente tomada por estes hippies! A Lourdes, do 84


Magazin, está fechando mais cedo. Só a Tipografia Miranda fecha depois das seis. — Moços de cabelo comprido e de bolsa a tiracolo!! Nem dá mais pra saber quem é moça quem é rapaz! — Pois domingo fui à Missa do Padre Gustavo e fiquei a-pa-vo-rada. Bendizer tomaram a Praça Garibaldi. E colocam os artesanatos no chão para vender!! É “prafrentex”! — Tenho ido mais tarde, na do Padre Affonso de Santa Cruz. Tem mais gente. Evito circular ali com esses comunistas da tal Feirinha! — “Feirinha das Pulgas”. Nem banho tomam! — Nem me diga! Ah, se chegar aquela posta branca me avise, por favor. E dê lembranças ao Seu Aldo. Treta entre tribos termina em caos generalizado, em Curitiba 29/08/2016 – 23h09 | do Correiomatinal.com Por AGAPANTO TCHUKORKOWSKI JR. Diretamente do São Francisco Uma briga entre franks, badaladeiros e slims terminou com um membro arranhado feiamente próximo à região do olho e um vaso, da Municipalidade, trincado na noite de ontem. De acordo com a Guarda do Bairro, adolescentes slims estavam calmamente sentados num banco da Garibaldi’s Square, em frente ao tradicional Flower’s Clock, quando iniciou-se o confronto com um grupo de 85


adolescentes franks, que calmamente passava pelo local. Subentendendo que seus inimigos haviam se unido para atacá-los, adolescentes badaladeiros, que circulavam por ali, reagiram. O Inspetor da GB, Ivo Sá, encontrou um dos franks (Lírio Pina, 37, estudante) estatelado no chão com lesão no supercílio. O segurança de um bar da região esclareceu que o mesmo não fora ameaçado pelos inimigos, tendo escorregado por si e ferido o próprio olho contra a calçada, que se encontrava cheia de grimpa. A vítima, removida para o Hospital Internacional do Cajuru, já recebeu alta. Os envolvidos se prontificaram a ser presos e responder inquérito, mas um deles, Thyagho Tiffa (29), tentou fugir porque estava atrasado para uma comemoração familiar. Em um terminal de ônibus próximo dali, os guardas conseguiram deter o jovem, que teve que responder a várias perguntas em público, mas não se atrasou para o evento. Entre os confrontistas três eram fumantes, três não estavam alcoolizados, três estudavam no mesmo colégio e três portavam faca, canivete ou estilete de plástico imitando originais. Ao final, descobriu-se que não havia badaladeiros no local, e que tudo fora um equívoco provocado pela passagem, no exato momento do conflito, de um Caminhão de ‘Lixo que Não é Lixo’ Municipal, cujo sino soava para indicar que estava na área. Não se conseguiu apurar se a trincadura do vaso público teve relação com o confronto ou se já existia previamente, mas isto será investigado pela delegada de Ações Especiais da 5ª DEPTRUP, Khamilla Fanny Neves Yamagushi. 86


Cont.: (...) a formação de tribos urbanas. Tribos urbanas, ou “grupelhos subculturais”, são micro sociedades cujo objetivo é a “solidariedade do coletivo”. Segundo a socióloga norte-coreana Michelle Raviolli, da Universidade de Nothingdale, elas se estruturam para “o combate contra o tédio existencial.” (RAVIOLLI, O coletivo pós-moderno, 1943). A convivência grupal reforça o pertencimento e estimula novas relações com a tolerância e com o meio ambiente. Contra as formas institucionalizadas de protesto, as tribos valorizam sobretudo a escultura. O paraíso é aqui Dois aspectos históricos demonstram que Curitiba nasceu para o conceito de grupo. O primeiro é seu nome. Como explica o filólogo argentino Juan Ruflo, a etimologia é reveladora: em guarani Curi’i significa “pinheiros”, tib é um verbo existencial e ba é um locativo traduzível por “lugar onde naturalmente se reúnem muitos”; em tupi, coré seria “pinheiros” e etuba indicaria “ajuntamento” — Curitiba é, portanto, uma “tribo de pinheiros”. O segundo aspecto remonta aos caingangues, nossos primeiros habitantes. Conforme o historiador sérvio Evilásio Afrânio, este povo, que já conhecia as Sagradas Escrituras (transmitidas pelos tcharuitecas do Suriname, que desceram até a bacia do Belém), identificando–se com a causa do personagem bíblico Caim, teria formado, então, a primeira gangue curitibana de que se teve notícia. Vale lembrar que foi do líder caingangue Xim’biica a famosa frase sobre Coré Etuba: “Tá! Tati Kéva! Ha Kantin!” (“Aqui! Aqui ó, é o lugar! Vinde!”) usada para indicar o 87


local ideal para a construção do Trevo do Atuba (posteriormente Cidade de Curitiba). Diz a lenda que, neste momento, a estátua de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais sorriu em aprovação ao sítio escolhido. (...) Andar pela Trajano Reis é temerário. Na esquina da Padaria América uma patotinha, em atitude suspeita, fuma e ri alto. Até moças! Dona Cidália segue pela rua: — Como tem passado, Dona Nair? — Bem, obrigada! E a senhora? — Nem me fale. A senhora acredita que depois de uma vida na casa em que cresci, e onde criei os meus filhos, vou ter que ir morar com a minha irmã, a Brasília, na Lapa. Soube o que nos fizeram? — Pois não soube! — Semana passada escreveram em nosso muro: “Fora, milicos...”, em referência ao papai... E grafaram uma obscenidade. São esses hippies! — Que despautério!! — E o pior nem lhe contei: defecaram próximo ao portão! — Santa Efigênia! — O José Américo e o José Ary, preocupados, decidiram vender a casa. — Pois a Getúlia, dos cristais, aqui na Trajano mesmo, me contou que tem medo de que invadam a loja. E na Funerária Stephan já estão trancados; só o aviso: Toque a campainha e aguarde... 88


— O Seu Arno, das Tintas, comentou o mesmo. Até a Dona Bianca Bianchinni, que viveu na Europa tantos anos, disse que está pas-sa-da com esta violência da região! — Até a Dona Bianca?! Pianista internacional!? — Eu queria comprar um traje n’A Modelar, mas não tenho coragem de cruzar a Praça Garibaldi! — Melhor não ir só! Ontem voltávamos da Novena na Igreja do Perpétuo Socorro e um barbudo, aqui na Duque de Caxias, gritou: “Paz e amor, bicho”. Que aflição! Me deu até uma batedeira no peito, a senhora sabe! — Vou só esperar o Finados, visitar o túmulo da mamãe e do papai no Cemitério Municipal e depois me mudo. — Quem diria? Tal devassidão! (...) A “Capital das Araucárias” lidera hoje o ranking das cidades mais visitadas da Terra, seguida por New York, Paris e Dubai. Afinal, todos querem desfrutar dos internacionalmente conhecidos Parques curitibanos: são mais de cinco zonas de puro lazer e adrenalina. Simbolizando a integração do nosso povo, cada parque homenageia uma das tribos urbanas mais representativas de Curitiba. E por falar em tribos, conheça as que mais se destacam: a) Os Mocinhas da Cidade — caracterizam-se pelo extremo bom gosto ao vestir-se; usam roupinhas de griffe e são fashion. Com o lema “O shopping é meu lar”, influenciaram várias tribos do mundo, como os True Blondies, de Beverly Halls. b) Os Árticos — inspirados no clima curitibano, são 89


identificáveis pelas roupas totalmente brancas. Descendem dos moradores da região setentrional da cidade, onde, outrora, nevava muito; com o degelo galopante da região migraram para outros bairros. Comunicam-se apenas pelo olhar e não têm lema. c) Os Franks — sua aparência dócil deriva da ideologia do grupo: “Seja franco!”. Primam pela simplicidade e costumam cantarolar canções de amor cortês. Abominando subterfúgios linguísticos e metáforas, comunicam-se por denotação. d) Os Badaladeiros — usando piercings em forma de sinos, se reúnem para soar. Seu lema: “Boas Festas!”. Regadas a suco de caju e marcadas pelo som intenso das badaladas, suas festas treinam o cidadão para suportar a poluição sonora das megalópoles. e) Os Slims — identificam-se com a ideia de estrutura fina e elegante. Suas roupas são desenhadas para alongar a silhueta. Consomem exclusivamente produtos de emagrecimento e inspiram-se em aparelhos eletrônicos com tela de LCD. Profusão de culturas, de panelinhas, de muvucas — isto é Curitiba! Vinde! Agora, para entender bem, veja abaixo o infográfico populacional sobre a cidade hoje e daqui a três anos: Kymberlon, voltando pra casa: Shit! Vou mudar de calçada. Um Ártico! Se encarar vou meter porrada. Kauíq, voltando pra casa: Fuck! Vou mudar de calçada. Um Mocinha! Se encarar vou moer ele.

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Dona Cidália, voltando para casa: Santíssimo! Vou mudar de calçada! Um mal encarado! Valha-me Nossa Senhora da Luz dos Pinhais!

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NÃO VOU FALAR SOBRE ISSO MAS, POR EXEMPLO

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. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Seu Frederíque sua mãe ligou dizendo que terminou de fazer o cachecol daquela cor que o Sr. pediu e que ela vai deixar em cima da sua cama já que quando o Sr. chega é sempre à noite e ela não tem aguentado ficar esperando até tão tarde. Talvez a cor não seja a mesma que o Sr. escolheu porque naquele dia estava escuro e os azuis eram frágeis os vermelhos débeis os cinzas absolutos e ela acabou confeccionando uma coisa bege mesmo e de sisal pro Sr. enrolar em volta do seu pescoço. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Frederic sua avó não aguentou a cirurgia e morreu, mas isto já faz doze anos. E também o nosso gato morreu no ano passado e a samambaia está definhando e as panelas estão sem cabo assim sendo: é melhor vc se acostumar com o que vai ver ao abrir a porta a janela a geladeira. Tem bem pouca coisa lá tem bem pouca coisa ali tem bem poucas pessoas na plateia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Fred perdi a escova de dentes, admito. Deve ter sido dentro do ônibus porque estava lotadíssimo e apertado e as pessoas suavam e bufavam e reclamavam e eu devo ter tentado tirar qualquer coisa do bolso como por assim dizer um lenço e a escova caiu e com ela lá se foram todas as manhãs na frente do espelho sorrindo e dizendo para si: sim, 94


estão brilhantes e perfeitos. Agora convém manter o estado de alerta porque às vezes a gente sorri do jeito errado. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Fredinho o quilo de carne está caríssimo e seu pai acabou preferindo roubar. Não foi um ato bonito. Seu pai está preso e sente a sua falta. Seu pai saiu pra comprar a carne e faz já doze anos que ainda não chegou o metrô deve estar lotado a rua deve estar longa a calçada deve estar esburacada e consome milhares de pares de sapato e até pés e pernas inteiras. Não está fácil comprar um bom par do que quer que seja hoje em dia. Acaba-se preferindo roubar. PS: Descobriram mais quatro palavras novas pra aquilo que vc estava sentindo. Volte. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . F.R.E. alguém ligou e deixou um recado: deve-se estar na mesma esquina de sempre assobiando a mesma canção de sempre com a mesma roupa de sempre com o mesmo penteado de sempre com a mesma bandeira de sempre com os mesmos livros debaixo do braço e com os mesmos óculos precisos e com a mesma gravata e com o mesmo sorrisinho de sempre mas deve-se mudar a altura da melodia: deve-se assobiar um tom acima porque caso contrário vc jamais será reconhecido. PS: Terminaram o mosaico. Pode comemorar. 95


. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Dr. Frederick enviaram a senha e será bem fácil conseguir a mala as passagens a roupa para colocar na mala e o destino. Vão financiar tudo. Pagarão também um lanchinho. Com a senha veio um manual que explica com todos os detalhes como cozinhar legumes no vapor como fazer a manutenção do chuveiro da suíte como dourar a pílula como escrever um ensaio com apenas meios parágrafos. Basta saber de cor o estribilho e repetir três vezes apenas. Três vezes a cada hora do dia. PS: Batizamos os peixes aqui em casa mesmo e lhes demos nomes. Desculpe, eu queria dizer “os meninos”. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Frédéric querido Infelizmente a tampa do bueiro que vc devolveu não coube, ficou folgada, e todos deduzimos que vc deve ter se enganado e enviado outra. Pode, por gentileza, dar uma olhada entre os teus pertences pra ver se não está aí? E também vasculha um dos bolsos pra ver se encontra as coisas que te pedi num bilhetinho de outro dia de outra manhã de outra época de outra envergadura. É, coisas como: baço, artérias e, se encontrar, um alicate. PS: Quando o galo cantar três vezes pode acordar.

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NOME: OMEN

Inventei um homem que se chamava Almíscar e depois alguém me disse que isso não era nome de gente. Acho que eu tinha lido numa revista, paciência. Então eu mudei pra Cambraia e alguém me disse que isso também não era nome de gente e então eu vim com essa: é o sobrenome. Escapei. Escapei das críticas. Mas agora eu estava pensando, pensando em retrospectiva que na verdade eu nem devia me lixar com esses comentários e nem mudar uma vírgula do que eu tinha inventado antes. Que têm a ver com o homem? Inventei um homem que se chamava Rim porque eu 99


peguei um dicionário em inglês que dizia que rim quer dizer borda. Achei bonita a palavra rim. Depois, pra não ficar só nas coisas que a gente considera bonito, eu achei importante que ele tivesse uma idade qualquer achei que seria maravilhoso se ele tivesse 39 anos porque é bastante mas não muito, quer dizer é o suficiente pra algumas coisas. Depois que eu percebi que eu também queria ter 39 anos mas não tinha. E algumas daquelas pessoas que apareceram criticando lá no parágrafo de cima vieram com um papo de que “na invenção há sempre uma parcela de reprodução do próprio desejo da própria pessoa que está inventando a própria invenção” e o resto não lembro mas eu fiz questão de citar com aspas porque é frase alheia e não fica bem se apossar de frase dos outros. Eu não entendi o falatório todo porque de cara eu empaquei na palavra parcela que me pareceu disparatada. Intrigante. Passei o dia pronunciando aquilo parcela parcela parcela. E depois pintei a palavra na parede do quarto primeiro pequenininho parcela e depois médio e depois grande. É uma palavra e tanto. Inventei um homem que se chamava Parcela. É não tenho muita criatividade. Esqueça. O homem, eu inventei, deveria ter barba porque se algum dia estivesse com um problema grave um problema gravíssimo — como alguém com hectestoplagite na família ou a sogra que vem morar na casa da gente ou a filha adolescente que lascou uma unha ou ainda uma lesma enorme e visguenta que apareceu na sala-de-visita — poderia se 100


trancar no banheiro, pra ganhar tempo sabe como? E dizer Dá licença, gente, que eu tenho que tirar esta barba primeiro. Dá licença, volto em instantes. “Dá licença” porque ele é um sujeito educado, a gente percebe até pelo modelo da barba que ele deixou. E depois fez cortes estupendos naquele rosto macio que não estava mais acostumado ao ato de barbear ao ato delicado e puro de se escanhoar e as mãos tremiam devido ao problema gravíssimo. Aí aparece com a cara cheia de esparadrapos e as pessoas em volta dirão Oh! E outras dirão Oh! Meu Deus! E outros dirão, mais lentamente, Oh Meu Deus do Céu!! E mediante aos talhos comoventes no rosto se evidenciará que o problema outrora gravíssimo não era tão nobre assim que amanhã é outro dia que vão-se os anéis mas ficam os dedos que água mole em pedra dura tanto bate até que fura e que a corda sempre rompe do lado mais fraco. O homem que eu inventei sabia falar latim. Levou anos e anos estudando num quartinho sombrio levando uma vida sombria pra não perder tempo senão não aprendia direito a pronunciar todas aquelas palavras solenes. Segundo relato do mesmo ele aprendeu direitinho. Mas nunca ninguém viu ele de fato falando e nem ele mesmo pôde checar se sabia realmente declinar conforme as regras ou pronunciar tivervorum ou pitombae adequadamente que não fosse com aquele sotaque de lá pras bandas de Ijoporuca (cidade natal do dito cujo e onde permanecera apesar do clima ruim) e ele foi até uma cidade vizinha pra falar com um padre que rezava missa em latim esperançoso de encontrar alguém pra praticar a língua com ele e já chegou 101


perguntando pro padre comis estavat e o indivíduo (o padre) ficou olhando com cara de asinorum e nem falava latim coisa alguma: tinha decorado tudo. Ele era uma farsa (o padre). Era um padreco, não passava de um padrusqueta desses por aí, a paróquia toda ficou sabendo e as senhoras horrorizadas quiseram até tirar o cara (o padre) do posto alegando falsidade ideológica mas não deu quorum. E será que ele (o homem) não era uma farsa também? Foi o que ele pensou depois daqueles anos todos passados em vão não podia nem mesmo saber se era uma perfeitíssima farsa. Quantos bailes não idos quantas valsas não dançadas quanta noite insone decorando figus figuae trimera trimerae pritricus pritricae quantas cervejas que jamais tomara quanta besteira tinha deixado de dizer. Agora ia pro resto da vida (um restinho que sobrara) ter que sonhar tudo na língua desconhecida. Condenara-se à condição de homorum hominorusquiat. O que talvez pudesse ter sido bem pior se tivesse se dedicado ao sânscrito. Quem sabe. Quem sabe inventei um homem que era uma verdadeira piada. Primeiro que a barba era postiça. E a palavra postiça dá margem a muitas outras associações cerebrais por exemplo: filho postiço, da famosa expressão Tal pai tal filho postiço. Ou dente postiço. Da usual expressão Olho por olho, dente postiço por dente postiço. E se eu errar a digitação: postigo. Naquele livrinho da Condessa de Ségur a menina morava num sótão gelado na França e tinha um postigo. Foi a única situação real da minha vida em que me confrontei com a palavra postigo. E agora me lembrei da palavra prestígio, essa sim tem uma vida digna de ser


contada. Todo mundo fala: fulano tem um prestígio e-nooor-me tenho prestígio entre os membros da Cúpula o Alpheu tem prestígio com os carinhas que têm prestígio lá na Corregedoria. E eu fiquei pensando se vou adquirir um certo prestígio inventando um homem que é uma farsa. Farsa pura: primeiro que a barba era espessa demais pra ser verdadeira. E o nariz muito bem desenhado e nunca escorria. E os dentes sorriam sem o menor esforço. Na medida certa. E depois inventei uma coisa engraçadíssima mas não vou contar. Não vou conseguir contar porque eu sempre rio na metade da coisa e não tem nada mais chato do que alguém contando uma coisa engraçada e rindo misturado com a coisa que a gente está esperando ser contada e a gente fica olhando o idiota e pensa Como é idiota. E no meio da coisa a gente também pensa Estou fazendo papel de idiota. Esse homem que eu inventei que era uma farsa esse sim alcançou um prestígio enorme inventando frases filosófico-filológicas que podiam ser usadas em várias línguas. Consagrou-se com a máxima É a vida. That’s life. C’est la vie. Hasta la vista. Mas vá lá: Rim Almíscar y Cambraia, um tipo de homorum, nunca foi a um baile em sua vida, nunca jogou conversa fora, nunca bebeu um hi-fi quanto mais dois mas mesmo assim casou-se (sabe-se pela presença de uma sogra num dos parágrafos anteriores) e um dia retalhou sua própria cara tentando fazer uma barba falsa que descobriu que nunca tinha sido sua, paciência. Foi um susto quando olhou pro próprio rosto no espelho lisinho macio (o rosto) liberto da pelagem intensa uma maravilha se não fos103


sem os pontos em vermelho. Vermelho escorrendo. É, até que é um sujeito boa-pinta! É, ali pra vidinha pacata de Ipojoruca, até que conseguira um certo prestígio naqueles 39 anos de vida, uma família até que saudável apesar da filha com unhas fracas, casa com postigo e tudo, aquela empresinha modesta mas que estava indo bem, especializada em eliminação definitiva de eventuais lesmas nojentas em salas-de-visitas finas. Vinha prestando um serviço à comunidade. E no domingo ia na missa só pra ver o padre falando naquela língua bonita. Sabia de cor alguns trechinhos (ele mesmo e não o padre). E depois, era considerado um intelectual, desde que no batizado da Thaíseleyne, filha do prefeito, ele pedira a palavra e dissera: A vida é uma sucessão de alegrias, fringências e desprantamentos. O que é a vida do homem senão um sermício de obnivolências? Um longo esmático de implacidices frângicas que nos vliquêiam nos momentos de infúncias? O prefeito quase chorou. E a dona Adelaide Eumira, professora do Grupo Escolar Dr. Adherbaldo Matta, disse pra todo mundo Foi o melhor aluno que tive em toda a minha lida no magistério! Um homem inventou-se. E todos pensarão que é brincadeira. E todos dirão que, faça-me o favor, falta alguma coisa essencial neste arremedo de escrito. Aliás, convenhamos, falta muita coisa de essencial! Sejamos francos. Perdemos um tempo importante das nossas vidas lendo besteiras inconsequentes. Coisa insalubre. Coisa insensata. Coisa nefasta e nefanda. Exclamações. Ao que responderei: Ô, gente! Sai pra lá! Quer saber uma coisa? Eu vou pagar o preço pela piadinha. Mas me diverti desde o 104


título, tá certo que perdi um pouco o fio da meada quando bateu o telefone e era o Geraldo e eu tava naquele afã criativo. Podia ter sido mais engraçado mas não era pra ser engraçado. Eu inventei um homem. Só isso. Inventei um homem e depois um sobrenome uma cidade um padre uma idade importante lesmas em dois momentos do texto um prefeito e uma professora e ainda consegui encaixar a palavra postigo que eu tinha sempre vontade de colocar no papel eu irritei meio mundo com aquela coisa toda de parcela parcela parcela. (Coisa nefária e infanda). Eu irritei aqueles que usam corretamente as normas para o emprego correto das “aspas”. Eu irritei profundamente os críticos. Principalmente os que dominam a nossa língua. E o resto. O homem que eu inventei não é homem de negócios nem homem de sete instrumentos. Não é sequer um homem de letras. Porque falta uma. O homem que eu inventei não é nem de longe um homem daqueles com agá. Que assim seja: Omen.

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LU Í

SH E PE NRI LL QU AN E DA



A ESCADINHA DOBRÁVEL

Há um menino com quem sempre cruzo, bem cedo, na Rua São Francisco. Digo menino e já alerto: é um exagero de minha parte. Ele tem uns vinte anos. Esclareço que não o classifico assim por vontade própria, e sim por respeito a um desejo seu, de imaturidade. Afinal, sempre que me vê, o cara avalia meu rosto e me saúda, sem qualquer ponta de sarcasmo: — Bom dia, tio! Diz isso tirando da boca um finíssimo baseado, como se erguesse o boné à passagem de um senhorzinho de um século. Bom dia, piá, eu respondo, e ele se satisfaz com o vocativo, talvez por farejar em mim um afeto ridículo, po109


rém sincero, de que porventura careça. Ou talvez por não ver mal nenhum nisso de se prolongar a infância, escancarando de vez os fossos geracionais. É um jeito dos mais novos se afastarem da morte, e quem poderá culpá-los? É assim com a gente, oi e tchau. Um sobe, o outro desce a São Francisco, nossa antiga Rua do Fogo. Duvido que o menino conheça o velho nome deste lugar, ou mesmo que se interesse pela história das pedras onde pisa. Gosto de pensar que o desinteresse é uma forma ligeira de felicidade, mas lamento esta ironia — o fogo do presente ignorando o do passado — tanto quanto aprecio os modos livres do menino, que se contenta em fumegar manhã afora, feito uma locomotiva. Fuma maconha a caminho do trabalho, com um destemor invejável. Cumprimenta a todos, acreditando que a educação o torna imune às delações. Inocente, confia nos curitibanos. Segue adiante, parecendo descer uma montanha de responsabilidades acumuladas durante a noite, a mochila nas costas, os tênis de um profundo azul-celeste. É o negativo de um alpinista, busca não o topo das coisas, mas a sua base, o mar ou a planície, 360 graus de horizonte. Engraçado. Um dia, no meio da tarde, o flagrei no serviço. O endereço não dou, pois não sou dedo-duro. Só conto que o vi diante de duas ou três lojas, sentado no cume de uma escadinha dobrável. Sim, é segurança de calçada. Do alto de sua pequena torre, lança um olhar tranquilo sobre dezenas de balaios ao sol. Não, não é um menino forte. Nem parece violento. Penso que aceitou o emprego por necessidade, e que o vai tolerando enquanto os ladrões o permitem. Impossível 110


imaginá-lo saltando da escada, perseguindo moleques, recuperando tiaras e calcinhas à base de tapas e pontapés. Não. Acho que apenas se posta lá, no seu trêmulo mirante de alumínio, e relaxa, aproveitando o pouquinho de vista que ainda se pode ter da vida, quando tudo que ela nos dá é uma escada de quatro degraus. Não, ele não se sente um rei, nem um deus, mas quem sabe um anjo, cujo espírito paire, displicente, sobre os comércios humanos. Quando nos vemos, no entanto, ele ainda não é aquele ser levemente superior e vigilante, a um só tempo homenzinho e totem de monitoramento. É um menino curtindo o seu fumo matinal, marchando pela São Francisco como quem desfila durante os créditos de abertura de seu próprio filme. Ele faz fumaça, nada além de fumaça, e toda fumaça é uma ponte entre o céu e a terra, feita de fogo e de ar. Nisso, talvez, o cronista seja como o menino: nunca um pontífice, mas um fazedor de pontes.

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A MORTE EM CIMA DO MURO

São três meninos. Sempre os vejo na saída de sua escola. Vêm uniformizados pela Comendador Araújo, em formação de ataque. À frente, avançam os dois maiores, não parecendo haver distinção entre eles. Ali não há líder, nem prevalência de um sobre o outro. Com o terceiro, bem menor, a coisa muda. Ele persegue os colegas, obstinado, tentando alcançá-los na corrida. E estão sempre correndo, os três, pois diante deles se abrem todas as ruas do mundo. Não sei dizer que tipo de amizade se estabeleceu ali. Parecem sócios que se amam. Quando os vejo, penso logo na cândida definição de Manuel Bandeira para os mo113


leques da Trinca do Curvelo, gangue infantil que rondava sua casa, no bairro carioca de Santa Teresa. Eram “os piores malandros da Terra”. Representavam o “microcosmo da política”. E é mais ou menos assim. Vivem de negócios mínimos, transações vedadas ao entendimento adulto. Trocam objetos miúdos por objetos miúdos. Os dois maiores se exaltam, brigam e finalmente se abraçam, sorrindo, após fecharem seus acordos. Tudo para eles é lucro e aprendizado. O pequeno, porém, não participa desses congraçamentos. É um satélite de ansiedade saltando da órbita de um para a de outro. Indeciso, não sabe qual daquelas indiferenças ele ama mais. Notem que, ao falar “o pequeno”, não quero dizer “o mais novo”. Os três têm a mesma idade, são colegas de classe, vestem os mesmos uniformes, usam mochilas de super-heróis comuns: Homem-Aranha, Batman, SuperHomem. Velhos projetos de masculinidade. Mas, se não são originais no que fantasiam, são no que aprontam. Em especial, o pequeno. Ele se esforça para agradar. Vê um saco de lixo na rua, à espera da coleta, e corre apanhá-lo. Faz pose de executivo e o carrega por meia quadra, como se fosse uma valise. Entra numa loja de presentes e, ao sair, segundos depois, já está de mãos vazias. O saco de lixo ficou lá dentro, escondido no balaio de brinquedos chineses. Os outros aplaudem com parcimônia, não dão o braço a torcer. Gostam de diminuir o menorzinho, apaixonados pelo triângulo isósceles que forjaram. E não é sempre assim quando o amor trafega entre três corações? O pequeno 114


encontra um vira-lata na esquina, pega o cachorro no colo, é quase do seu tamanho, dança com ele, aceita suas pulgas em troca do riso dos colegas. Mas isso não o faz crescer. Só não pensem que é manso, imune a explosões. Dia desses subiram os três num muro da Visconde do Rio Branco. Os maiores o puxaram para cima e, sacanas, pularam de volta à calçada. Abandonado nas alturas, o pequeno uivou, pediu ajuda, implorou, esperem, não me deixem aqui. Mas os traidores nem olharam para trás, sumiram na correnteza das seis da tarde. Aflito, o rejeitado surtou. Percebendo o chão tão distante de seus pés, começou a gritar: — Eu vou morrer aqui, alguém me ajude, eu vou morrer! O povo em volta acudiu, mas às gargalhadas, fascinado pelo medo do menino no muro, o Homem-Aranha às suas costas, impotente, incapaz de vencer dois metros de descida. E foi aí que o guri, enraivecido, mudou de atitude. Encheu o peito e os olhos de fogo e vociferou sobre nossas cabeças, os punhos minúsculos para o céu, qual é a graça? Disfarçamos, ninguém queria ofendê-lo, mas já era tarde demais, nosso destino estava selado. Impiedoso, aproveitando-se do palanque e da emoção, o pequeno incorporou um profeta: — Eu vou morrer, sim, mas vocês também vão! Todo mundo vai morrer, já esqueceram? Todo mundo aqui vai morrer! Dito isso, valente, saltou em meio ao pasmo geral. Caiu de pé, torceu o tornozelo e chorou, mas foi logo socorrido e consolado por nós, seus companheiros de infortúnio. 115



SABIÁ DE GUERRA

Era tão comum menino matar passarinho. Hoje vocês vão dizer que não, mas era. Entre meninos e passarinhos parecia haver certa atração ancestral, uma inveja recíproca, uma dor que vinha de longe e com tanta força que não podia ser relevada. Não sei, era como se disputassem um mesmo trono na natureza, a criança e a ave, o canto de um sabiá pela manhã lembrando um chamado de guerra, uma convocação ao combate. Os meninos o ouviam e já saltavam apanhar a setra, botar no ombro a espingarda de pressão, os chumbinhos esquentando no bolso. Corriam sondar a arapuca armada na tarde de ontem, aquele pequeno prisioneiro na neblina. O que fazer 117


com ele, soltá-lo ou submetê-lo? Não, os meninos não tinham o céu, mas decidiam que destino dar aos pássaros. Hoje vocês vão dizer que não, e realmente as coisas mudaram, o convívio entre crianças e passarinhos se tornou raro, são mínimas as chances de confronto. Por isso me espantei ao encontrar, semana passada, na Pracinha do Amor, um menino debruçado sobre o cadáver de um laranjeira. Já tinha visto o piá por ali antes, andando de bicicleta ou jogando bola sozinho, praticando embaixadas. Devia ter dez anos, não mais que isso e, quando nos cruzamos, sustentamos o olhar por uns quatro, cinco segundos, uma eternidade para a concentração infantil. Eu estava curioso e ele, logo vi, ansioso para falar comigo, revelar algum prodígio. Oi, eu o cumprimentei, e ele me respondeu, circunspecto, oi. Era óbvio que vivia um momento solene, e fazia questão de demonstrá-lo, era fácil ler em seu rosto o respeito que sentia pela morte estendida diante de nós. Perguntei o que tinha acontecido com o passarinho e, sem rodeios, ele falou: — Morreu. Fiquei quieto, e me mantive assim por um bom tempo, na esperança de que ele me explicasse como e por que o bicho havia morrido. Queria que me apontasse um culpado, me contasse a história de um crime, pois aquele também parecia ser o seu desejo. O menino entendeu o meu silêncio e as minhas intenções, mas tudo que disse foi: — Não fui eu. Continuei na minha, embora tivesse mais perguntas engatilhadas. Por exemplo, o que o menino planejava fa118


zer com o sabiá, enterrá-lo? Ele me ouviu sem olhar para mim. Puxou do bolso uma fita vermelha, bem fina e cacheada, dessas de enfeitar presente. Com a fita, enlaçou uma das pernas do animal. Enquanto dava o nó, com delicadeza, respondeu: — Não, não vou enterrar. Levantou-se, limpou a calça gasta, o pó dos joelhos, apanhou o sabiá amolecido, aquele pescoço pendurado e tão triste, e o escondeu dentro da jaqueta de náilon. Depois assoprou a penugem presa entre seus dedos e anunciou, muito sério e seguro: — Vou pra casa, ressuscitar esse passarinho. Consegui disfarçar a minha surpresa, mas não a minha incredulidade. Quis saber como ele faria aquilo. É segredo, rebateu o menino. Mas me pediu atenção: se nos próximos dias eu avistasse algum sabiá-laranjeira voando pelo Centro de Curitiba, com uma fita vermelha na perna, eu saberia que o procedimento tinha dado certo. Não sei se funcionou, e repasso a vocês minha expectativa. Duvidei dos poderes do menino, confesso, mas isso não significa que eu não esteja torcendo por ele. É um milagre que espero sem ansiedade, sem fé, sem preocupação. Mas com sinceridade. E torço para que, na madrugada de amanhã, ou depois, ou ainda mais tarde, daqui a mil anos, tanto faz, aquele mesmo sabiá me acorde no meio da noite, com seu doce canto de guerra, sua voz de flauta prenunciando novas luzes e lutas, num mundo onde os meninos ressuscitam passarinhos.

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TRAMPOLIM

Quando passo com minhas filhas pela Padre Antônio, nos fascina o grande trampolim azul do Colégio Estadual. Bem, na verdade, não se trata de um trampolim, não tecnicamente, pois nele não há pranchas. É mais uma plataforma de concreto, talvez da altura de um segundo andar. Sobe-se até ela por duas escadinhas verticais. Aliás, falo em subir, mas jamais vi gente lá em cima. Também nunca vimos a piscina atrás do muro escolar, nem ouvimos o barulho de suas águas. Somente supomos que a piscina existe, e essa presunção já nos basta para que, nas tardes de mormaço, desejemos saltar dentro dela. Na mesma rua, bate ponto um homem de muletas, de 121


meia-idade. Ele me lembra um ferido de guerra, daqueles que, no cinema, marcham enfileirados ao fim das batalhas perdidas. Um de seus pés nunca toca o chão, a gaze suja de um laranja ferruginoso. Não sei o que faz na Padre Antônio. Não vende nada, não guarda carros, não pede esmolas. Às vezes, fantasio que seja o guardião do muro que nos separa da plataforma de saltos. Quando passamos por ali, aquele homem nunca fala conosco, nem nos olha. Por outro lado, quando volto da escola, sozinho, faz questão de puxar conversa comigo, o que, de início, me incomodava. Depois, vendo que ele vivia machucado, coberto de escoriações, fui relaxando, me sentindo mais seguro. Era um sentimento egoísta, do qual me envergonho, mas se aquele cara não estivesse literalmente partido em pedaços, ninguém se disporia a falar com ele. O homem me pergunta sobre o calor e, em seguida, balança o corpo quebrado em direção ao muro atrás de si, como se o quisesse transpor em sonhos: — Um mergulho agora, já pensou? Sorrio convencionalmente e, em geral, nossa interação termina aí. Há tardes, no entanto, em que o homem quer falar mais, e sou forçado a parar. Seu tema é a plataforma. Não sei por que razão a estrutura o obceca. Diz que o essencial, em relação a trampolins, é saber que, uma vez sobre eles, só nos restará duas saídas: voltar ao nível do chão, retomando as escadas, num recuo triste e vexatório; ou despencar de suas bordas de concreto, fazendo de nossa queda um salto e conferindo a ela, se possível, algum valor maior, um significado moral ou estético travestido de diversão, graça ou esporte. 122


É claro que ele não fala nesses termos, mas creio ser este o sentido de suas elucubrações. Para testá-lo, certa vez afirmei existir uma terceira via: pode-se simplesmente ficar lá em cima. Rindo dessa hipótese, que julgou tola, o homem defendeu o óbvio: não há no mundo quem seja capaz de ser manter no alto para sempre. E de modo a provar seu ponto de vista, me apontou o trampolim vazio: os atletas que, até hoje, já o escalaram, onde estão? Me fechei num silêncio lógico, e ele aproveitou para encaixar uma história. Contou que no fim do ano viu a plataforma cheia de estudantes alegres, de uniforme azul. Saltavam vestidos, porém descalços, e aos gritos, buscando uma água que só se anunciava fresca e real enquanto ruído, explosão, promessa de prazer e refrigério. Celebravam a formatura, sugeri. Não exatamente, me disse o homem de muletas. Celebravam o fato de que nunca mais voltariam a se ver. Pelo menos não naquelas alturas.

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VER OS GOLS

Aconteceu numa segunda-feira. Mas, para dar um caráter factual a esta crônica, digamos que tenha sido ontem. Faminto, o povo se espalhava pelas lanchonetes do Centro. Saí da Galeria Andrade e, ao cruzar a Riachuelo, um cara me puxou o braço. Sua expressão era séria, e tinha alguma urgência na voz. Primeiro, ele me comunicou as horas: era quase meio-dia. Depois, ordenou: — Vá pra casa, não perca tempo. Respondi que deixasse comigo, eu já estava indo, mas não resisti e perguntei a ele o porquê da advertência. Sucinto, esclareceu: — É hora de ver os gols. 125


Agradeci a lembrança e vim para casa. Quando um doido manda, em geral obedeço. Vi os gols na tevê, só tomando o cuidado de assisti-los sem o áudio, como prefiro fazer. Era hora de almoçar, sim, e a coincidência entre estes dois horários, o de comer e o de ver os gols do dia anterior, sempre me fascinou. Para Paulo Mendes Campos, por exemplo, o gol era um artigo necessário — mas não como a arte, inútil ou não, nos seria necessária. Para ele, gol era alimento, era o “pão do povo”. Já Drummond via no estufamento das redes uma “grande ilusão”, quem sabe se a representação plástica, no fundo inexplicável, de nossas emoções mais primitivas, a implosão simbólica das frustrações masculinas, a beleza a nossos pés? De minha parte, nunca encontrei palavra, dentro ou fora da literatura, que definisse bem um gol. E olhem que já fui muito solicitado nessa área. Quando criança, jogava bola com um guri da minha idade — botemos aí uns dez anos — que era simplesmente incapaz de compreender não só os objetivos do futebol, mas também a sua graça infantil, o seu poder de enfeitiçamento. E essa lacuna na lógica das coisas o paralisava. Notem que não estou falando de alguém que não gostava do esporte; falo de um menino inviável, um solitário original. Jogávamos numa ruazinha de pedra e pó, onde nunca passavam carros. Não havia linhas de fundo ou laterais, apenas aquelas típicas balizas de tijolo, a cada jogador cumprindo defendê-las a qualquer custo, embora o fundamental, claro, fosse marcar gols. Meu adversário, no entanto, mal se mexia em campo. Partida após partida, sua postura era de perplexidade. Eu 126


metia gol atrás de gol, sem me importar com sua imobilidade filosófica, e comemorava aos urros, tentando extrair, daqueles sucessos, algum sentido maior. Meu rival, porém, se mantinha impassível, não se deixava abater nem ferir, absorto em sua missão de compreender o mundo. Não esqueço seus olhos azuis: olhavam para mim, jamais para a bola, este brinquedo essencial do homem (novamente cito Paulo Mendes Campos). Para aquele menino, a bola valia menos que os furos dos tijolos que roubávamos na olaria ali perto. Ele me perguntava por que era tão importante fazer gols, e eu dizia o óbvio: para ganhar o jogo, ora. Mas não, as vitórias não lhe interessavam. Anos depois, aquele menino matou o pai a facadas. Foi preso e, segundo me contaram, assassinado. Nunca entendi o que houve com ele, perdemos o contato na adolescência. Mas me recordo de tê-lo visto na tevê, dando uma entrevista a um programa policial, no dia de sua prisão. Não respondia a nenhuma das perguntas que o repórter lhe fazia, somente olhava para os próprios pés. Mas seu rosto lívido continuava a nos enviar uma mensagem de aturdimento. Sim, era o mesmo piá a quem a bola era invisível — e ele ainda tentava enxergá-la, apreendê-la, diante de si. Em outra emissora, no mesmo horário, outros meninos corriam pelo Brasil, riscando gramados mais ou menos verdes. Lembro que, atento às panelas no fogo, abaixei o volume e mudei de canal. Para ver os gols. De rodada em rodada, afinal, é que vamos vivendo.

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LU I

ZR

UF

FA TO



MINHA PRIMEIRA VEZ

Foi assim: meu pai era o segundo mais importante pipoqueiro de Cataguases, já que nosso carrinho verde-musgo ficava estacionado na praça da igreja-matriz de Santa Rita de Cássia (hoje Santuário), e o do nosso concorrente, mais bem-sucedido, na Praça Rui Barbosa, que monopolizava os dois únicos cinemas da cidade, Cine-Teatro Edgard e Cine Machado. Eu auxiliava meu pai aos sábados e domingos, quando aumentava o movimento, e tomava conta do negócio sozinho nas tardes do resto da semana. Um domingo, na saída da missa das sete horas da noite, um homem aproximou-se e, após comprar um pacote de pipoca, perguntou se eu estudava e onde. Antecipando-se, 131


meu pai respondeu que sim e declinou o nome de um lugar com fama de ensino ruim. Surpreso, o homem indagou por que não me matriculava no excelente Colégio Cataguases, entidade pública que congregava a elite local. Meu pai explicou que todos os anos tentava, mas nunca havia conseguido. Talvez condoído pelo aspecto humildemente decepcionado de meu pai, o homem, apresentando-se como diretor da escola, prometeu que arranjaria uma vaga para mim. Em fevereiro de 1973, lá estava eu, dentro de um uniforme novo, arrastando meu desconforto pelos longos corredores do Colégio Cataguases. Até então, cursara a quinta e sexta séries no Ginásio Comercial Antônio Amaro, ligado à Campanha Nacional de Escolas da Comunidade, que alugava o horário noturno de prédios de instituições públicas com o propósito de oferecer educação a baixo custo. Pela manhã, montado em minha bicicleta, carregava, para cima e para baixo, as trouxas de roupa que minha mãe lavava e passava. À tarde, entediava-me no carrinho de pipoca, a observar um bicho-preguiça desescalando os galhos das figueiras que ornamentam a praça. À noite, sentado em duros bancos, tentava assimilar coisa que prestasse ao meu corpo cansado. No Colégio Cataguases, onde as aulas ocorriam pela manhã, fui designado para uma classe de repetentes, a maioria por indisciplina, e enfrentei a franca hostilidade dos colegas, que me lembravam a todo momento minha origem pobre, filho de lavadeira e pipoqueiro. Assim, decorridas apenas duas semanas, tornou-se claro que não me adaptaria àquele ambiente. Ao mesmo tempo, não po132


dia frustrar as expectativas de meus pais, que acreditavam que o simples ingresso ao mundo de pessoas mais bem situadas financeiramente me garantiria um futuro melhor. Tentei tornar-me invisível, deslizando acuado rente às paredes da escola, até descobrir, sem querer, um enorme salão vazio, silencioso e pouco iluminado, que passei a frequentar. Ao me observar sempre por ali, quieto, sem nada fazer, a mulher de óculos e coque que permanecia sozinha atrás de um longo balcão, rodeada de livros, pensou talvez que eu quisesse fazer um empréstimo, mas que, por algum motivo, timidez talvez, não tivesse coragem de me dirigir a ela. Então, tomando a iniciativa, me chamou, colheu alguns dados, preencheu uma ficha, colocou um livro em minha mão e disse: “Leve, leia e devolva daqui a cinco dias”... Em pânico, não contestei. Enrubescido, peguei a brochura, coloquei na pasta e deixei rapidamente a biblioteca. Ao chegar, meu pai questionou, como fazia sempre que aparecíamos com algo diferente em casa, “O que é isso, menino?”. Respondi, sem graça: “Um livro”. Ele: “Onde você pegou isso?!” Eu: “Peguei não, a moça lá do colégio que deu”... Ele: “Como assim?!” Eu: “Ela falou pra eu ler e devolver”. Ele: “Se ela falou pra ler e devolver, leia e devolva, que não quero nada dos outros aqui não!”. Dois dias depois, aliviado, depositei o volume sobre o balcão e já me afastava, ligeiro, quando a bibliotecária, desconfiada, indagou: “Você leu o livro, menino?”. Eu: “Sim, senhora”. Ela, feliz: “Que bom!”. E, virando-se para a estante, tomou outro título e disse: “Tome este, leia e devolva em cinco dias”. Contrariado, mas obediente, peguei a brochura, co133


loquei na pasta e deixei rapidamente a biblioteca. Ao chegar em casa, meu pai questionou: “O que é isso, menino, não entregou o livro pra mulher, não?”. Respondi que sim, esclarecendo, aborrecido, que aquele era outro... Ele, impaciente, falou: “Então leia e devolva logo!”. Dois dias depois, aliviado, depositei o volume sobre o balcão, crente que me livrava de um tormento, quando a mulher, óculos e coque, indagou: “Você leu este também, menino?”. Eu: “Sim, senhora”. Ela, exultante: “Que ótimo!”. E, virando-se para a estante, tomou outro título e disse: “Tome, leia e devolva em cinco dias”. Contrariado, mas obediente, peguei a brochura, coloquei na pasta e deixei rapidamente a biblioteca. Enfim, a bibliotecária transformou minha vida num inferno... Eu lia os livros que ela me impingia, devolvia e, cada vez mais feliz com minha voracidade, me repassava outros volumes... No fim do ano, inadaptado, deixei o Colégio Cataguases e voltei a estudar no Ginásio Antônio Amaro, à noite, retomando minha vida. Mas o vírus da leitura já havia me contaminado...

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VOANDO PELOS ARES

Na minha infância dizia-se que Cataguases tinha a maior ou pelo menos uma das maiores concentrações de bicicletas do Brasil. Nunca verifiquei a veracidade dessa informação, mas fato é que, às seis horas da manhã e às seis horas da tarde, elas inundavam as ruas cobertas por paralelepípedos e margeadas por árvores onde frutificavam passarinhos. Para singularizá-las, os proprietários e proprietárias (mais aqueles que essas) buscavam adornar seus “veículos de locomoção”: preenchiam os aros das rodas com cânulas de plástico coloridas, que, em movimento, além de formar desmaiados arco-íris, proporcionavam irritante barulho de chocalho; enfeitavam os punhos com 135


rabiolas e os selins com franjas; penduravam espelhos retrovisores e bolsas para carregar bombas de ar para encher os pneus; e, os mais sofisticados, acoplavam um farol, alimentado por dínamos de fricção. Meu desejo era crescer logo para ter a minha própria bicicleta e perambular pela cidade, derramando alegria dos bolsos. Enquanto isso não ocorria, ansiava pela chegada do fim de semana. No sábado, após deixar a fábrica, meu irmão entregava-me a sua Göricke verde e branca para lavar. Eu então iniciava um ritual. Tirava a corrente e mergulhava numa lata de querosene. Enchia um balde de água e polvilhava com sabão em pó. Mansas, as mãos esfregavam um pano encharcado em cada milímetro da ferragem, livrando-a de toda poeira que a maculara ao longo daqueles dias exaustivos. Repetia a operação até achar que ela se encontrava de novo fresca e cheirosa. Depois, um pano seco percorria carinhoso o mesmo itinerário. Por fim, colocava de volta a corrente, lambuzando-a de graxa. Terminado o serviço, exibia-a orgulhoso ao meu irmão, que mais tarde nela se deixaria conduzir aos braços da namorada. Em casa, aguardando o pagamento, a insônia incendiava meu corpo noturno. Dia seguinte, acordava ao primeiro galo, pegava a Göricke e, peito estufado de felicidade, dirigia-me à Praça da Estação para comprar o Jornal do Brasil e O Cataguases. Eu não pedalava uma bicicleta — eu me equilibrava sobre um tapete que voava por sobre os bairros operários, planava sobre o telhado das tecelagens, sumia entre as nuvens de que se nutria o tempo. Ainda se falava do heroico feito de João do Pulo, ganha136


dor da medalha de bronze de salto triplo nas Olimpíadas de Montreal, quando arrumei meu primeiro emprego de carteira-assinada, encaixotador no setor de algodão hidrófilo da Manufatora. Era agosto e para me deslocar entre minha casa, a fábrica e a escola, que frequentava à noite, necessitava de uma bicicleta. Meu irmão conseguiu emprestado uma Philips preta com frisos dourados, freio contra-pedal, com um colega, Tainha, que se encontrava encostado por causa de um problema na coluna — bico-de-papagaio, uma dessas doenças que, mudando de nome, mudou também de endereço. Eu a usei por três meses, o suficiente para juntar dinheiro para dar entrada na compra de uma zero quilômetro. Na loja do Ulisses escolhi, olhos de amante, a marca (Monark), a cor (laranja), o modelo (aro 26, barra reforçada) e a forma de pagamento (12 prestações fixas). O sol de novembro castigava a cabeça dos munícipes cataguasenses, preocupados todos com a proximidade das eleições para vereador e com as enchentes que, como a morte, chegariam com o verão — todos estavam aflitos, menos eu. Meu corpo apropriara-se de tal maneira de minha bicicleta que meus olhos, meu nariz, minha boca, meus ouvidos, minha pele, todo o meu ser vibrava no ritmo sincopado dos pneus deslizando pelos paralelepípedos irregulares. Eu batia cartão contrariado por abandoná-la na rua, exposta às intempéries e aos olhares dos ímpios... Eu entrava na sala de aula apreensivo e me distraía querendo adivinhar como estaria ela naquele momento, sozinha no sereno da noite. Eu ia dormir e acordava sobressaltado, necessitando contemplá-la à luz da lua... Se o paraíso existe, eu estive acampado nele... 137


Durou pouco, no entanto, meu idílio. O dia 23 de dezembro de 1976 caiu numa quinta-feira. Eu guardei minha bicicleta no pequeno galpão coberto de folhas de amianto, no quintal. À noite, ribombaram trovões, denunciando a tempestade. O calor e a umidade afugentavam os sonhos. Devia passar da meia-noite quando o vento, sacudindo os galhos das árvores, arrancou as mudas de roupas do varal, espalhou a poeira das ruas descalças. Ouvi estranhos barulhos, mas na escuridão tudo se move com demasiado desespero. Dia seguinte, acordei com minha mãe me convocando para o mingau de fubá com ovo, nosso café da manhã. Espreguicei, espiei pela janela e ela não estava lá. Por um momento, meu coração parou de bater. Meu pai perguntou o que havia acontecido, não respondi. Eu me tornara adulto.

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MINHA PRIMEIRA NAMORADA

Chamava-se Maria Aparecida Albino, Cidinha. Loura, cabelos lisos, rebeldes a qualquer elástico, cara de sono, a melhor aluna da escola. Sempre dela, a redação estampada no quadro-negro, modelo de ideias claras, correção gramatical e boa caligrafia. Pela manhã, após o repicar do sino alertando para o início da aula, entrava na sala sobraçando o diário da professora Aurora, corpo aprumado, orgulhosa da incumbência. Asseada, uniforme limpo, bem passado, no recreio afastava-se de nós, que colhíamos, em canecas esmaltadas, o mingau de fubá da merenda. Ela trazia de casa uma banana ou alguns biscoitos que saciavam sua fo139


me até a hora da saída, quando, sozinha, atravessava a rua e caminhava impávida em direção à Vila Minalda, bairro distante e inimigo da nossa turma. Antipática e metida, assim a caracterizávamos — no fundo, invejando-a, porque, para nós, insuportável a ideia de uma menina bonita também inteligente. Com o tempo, os cochichos do corredor tornaram-se insatisfatórios, e passamos a agredi-la com apelidos que gritávamos quando distantes dos professores: Pombinha, Branquela, Leite Azedo, Espiga de Milho, Alemoa... No entanto, talvez a maneira estoica com que suportava nossos ataques tenha corroído meu coração: percebi pouco a pouco que algo em mim mudava. Uma manhã, levantei disposto a defendê-la. Já me via rolando na poeira com outro menino, o nariz sagrando, o cotovelo ralado, o uniforme roto, e preparava-me para o castigo que em seguida viria — feliz, entretanto, por saber que ao longe Cidinha espiava, suspirando por mim. No recreio, uma roda se fechou em torno dela e começaram a xingá-la. Enfiei-me no meio do burburinho e me coloquei à frente do Dinim, colega parrudo e ignorante. Me encarando, ele perguntou o que eu queria. Eu ia dizer, Parem de implicar com a Cidinha, mas na hora perdi a coragem. Afastei-me, em silêncio, cabisbaixo, e até hoje me persegue o choro sentido da minha primeira namorada.

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O DIA MAIS TRISTE DA MINHA VIDA

Até então haviam desaparecido gatos, cachorros, vizinhos. Estes mudavam de casa, de bairro, de cidade. Aqueles, de endereço, talvez; de dono, quem sabe. Não atinava ainda com a gratuidade da vida: o tempo, infinito, recomeçava a cada manhã. Meu corpo franzino, ignorando certezas, desbravava os espaços com a altivez dos puros de espírito — as únicas amarras, mas terríveis amarras, tonitruavam aos domingos entre as paredes da igreja de Santa Rita de Cássia, onde o monsenhor Solino descrevia, com pena hiper-realista, a sombria morada dos pecadores. Para mim, aos sete anos, a metafísica dos ensina141


mentos religiosos confundia-se com a ética prática cotidiana. Obedecer às normas da convivência comunitária ultrapassava a mera exigência social, era caminhar em linha reta pelo estreito corredor dos mandamentos cristãos — infringir as regras, mais que submeter à extrema desonra do julgamento público, significava sujeitar à nossa própria consciência, palco em que não há possibilidade de atenuantes. (Eis um exemplo: eu trabalhava num botequim próximo da minha casa. Passava lá a manhã vendendo pães, doces, ninharias. Um dia, varrendo as folhas caídas dos pés de amêndoa que sombreavam a rua, deparei com uma cédula de um cruzeiro, com a estampa do Almirante Tamandaré. Não sei quanto valia, mas valia alguma coisa, ainda mais para mim, cujos bolsos desconheciam dinheiro. Em pânico, sem coragem para pegar a nota, que não me pertencia, me dirigi a um grupo de meninos, meus conhecidos do bairro, e comuniquei o achado. Um deles, o mais forte e valente, tomou meu braço com rudeza, e grunhiu: Se for mentira, te encho de pancada. Seguido pelos asseclas, abaixou-se junto ao lixo, catou a cédula, empurrou-me, falou qualquer coisa como otário, e saíram todos rumo ao centro da cidade em busca de guloseimas...) Eu tomava lições de catequese com dona Eulália, baixinha, óculos grossos, sisuda, ranzinza, sempre vestida de preto, promotora de sua escrupulosa viuvez. As aulas nos preparavam para a primeira comunhão, cerimônia aguardada com ansiedade por nós e por nossas famílias, momento em que nos entronizávamos efetivamente nos umbrais do catolicismo. Corria o mês de maio, época em que 142


as manhãs se entremostravam aos poucos, embuçadas pela cerração. Na véspera do dia tão vigiado, comprados roupa nova e sapatos, a cabeça da diretora, dona Jânua, surgiu na porta da sala, e, após pedir licença para a professora, dona Maria Cristina, mandou que a acompanhasse. O irmão caçula da minha mãe, Olavo, havia sofrido um acidente estúpido e morrera de forma quase instantânea, deixando em dificuldades a mulher e uma cadeia de filhos pequenos. Tomamos um carro de praça e nos dirigimos a Rodeiro, a pequena colônia italiana de onde provínhamos. Confuso, observei de longe o tumulto do velório, a desolação na missa de corpo presente, a dor durante o cortejo da igreja ao cemitério, o desespero na hora da despedida final, a melancolia da volta para casa. A noite desabou sobre a cidade, e, por deferência, nem os cães ladravam, nem os saguis da praça São Sebastião guinchavam, nem as crianças resmungavam — até os galos adiaram a instauração da manhã. Regressamos a Cataguases, retomamos a sanha das horas que se sucedem, inexoráveis. Perdida a celebração da eucaristia, apenas no ano seguinte poderia realizá-la novamente, o que me provocou profunda frustração, já que permanecia a interdição de experimentar a hóstia, veículo que viabilizava aos adultos o contato direto com aquele Deus que nós, crianças, somente adivinhávamos por trás do véu das coisas banais. Então, afinal, julho chegou. Minha mãe me colocou no ônibus da Viação Marotti, como em todas as férias, recomendou-me ao motorista e despachou-me para Rodeiro. Eu costumava revezar as casas dos tios, uma noite 143


aqui, outra ali, procurando a melhor maneira de despender minha soberania, que, por alguma razão improvável, pressagiava não duraria muito. Após os primeiros dias zanzando de um lado a outro, percebi que algo substantivo havia mudado. Um imenso e implacável desamparo nublava os olhos de todos, como se expiassem a culpa por continuar vivos ou purgassem a indignação pelo injusto desaparecimento daquele ente querido, caído quando ainda não havia percorrido nem metade da caminhada. Só então compreendi, atônito que meu tio não havia sido guindado aos céus por um coro de anjos — mas sucumbira ao instante presente, para sempre. E agora me perguntava se todos aqueles adultos, que comungavam e rezavam e seguiam os mandamentos, acreditavam realmente que a morte marcava não o fim de tudo mas o começo da vida eterna, como aprendíamos no catecismo. Se acreditavam, por que o desespero? Por que o horror? Por que a revolta? Não fiz a primeira comunhão...

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UM PRESENTE DE NATAL

Minha primeira lembrança do Natal remonta ao final dos anos 1960. Morávamos num cortiço na Vila Teresa, em Cataguases, interior de Minas Gerais. Meu pai ganhava a vida vendendo pipoca na praça Santa Rita, o segundo mais importante ponto para este tipo de negócio na cidade — o melhor era o da praça Rui Barbosa, com seus cinemas e bares, desaguadouro das lojas da rua do Comércio. Minha mãe lavava, nesta época, uma dezena de trouxas de roupa por semana. Junto, o dinheiro que arrecadavam pagava as despesas do aluguel (que incluía luz e pena d’água), do armazém (anotadas em cadernetas) e da farmácia (tínha145


mos conta numa delas!). Quase nada sobrava para comprar bobiças para as crianças. Meu irmão cursava tornearia no Senai e estudava, por correspondência, desenho mecânico. Ainda hoje me vem à memória a curiosidade que me coçava quando aportavam em nossa casa os envelopes pardos, gordos, do Instituto Universal Brasileiro. Ele saía cedo para a escola, retornava para o almoço, guiando sua bicicleta Philips preta com frisos dourados, freio contra-pedal, voltava para a escola e no finzinho da tarde, após uma longa jornada, que incluía às vezes exaustivas partidas de futebol de salão, é que afinal sentava na pequena sala e abria os envelopes. Ali permanecia até o começo da madrugada, munido de régua, compasso, transferidor, a responder as questões propostas pelos exercícios. Minha irmã, que tomava conta de mim, liberando minha mãe para se dedicar, com tranquilidade, a bater roupa no tanque e quarar as peças na capoeira, aproveitava para ouvir os programas da Rádio Cataguases, sonhadeira. Ela gostava de, junto com as outras meninas das casas vizinhas, tomar sol no quintal minúsculo, separados todos por frágeis cercas de bambu, esticadas em toalhas e lambuzadas com um líquido, que bem poderia ser urucum, que bem poderia ser Coca-Cola, que as deixavam sempre com a pele vermelha, nunca bronzeadas. Eu não entendia, como ainda não entendo, aquelas tardes de silêncio e suor, em que elas se entregavam à tarefa de imitar lagartixas... Em geral, pela época do Natal, com todos nós em férias na escola, minha mãe carregava a família, menos meu pai, para a roça, em Rodeiro, uma colônia italiana a uns 50 146


quilômetros de Cataguases. Lá não havia festa, com distribuição de presentes e ceia à meia-noite. Limitávamos a assistir à Missa do Galo e regressar a pé, palmilhando uma légua de brutal escuridão, até a casa-sede da pequena porção de terra coberta de capim-gordura, voçoroca e cupim, que chamavam pomposamente de Fazenda do Paiol. O 25 de dezembro, para mim e para meus primos, era um dia qualquer. Mas, por um motivo que não sei precisar, não viajamos naquele ano. E, então, senti no ar a corrente que eletrizava os colegas do cortiço. Caminhávamos pelas imediações e de dentro das casas piscavam as luzinhas das árvores-de-natal. Na rua do Comércio e adjacências, papais-noéis balançando sinos convidavam os fregueses a entrar nas lojas, enfeitadas de estrelas cadentes e cobertas de papel-crepom vermelho. No coreto da praça Rui Barbosa, um enorme presépio encenava para os transeuntes a pobreza do nascimento de Cristo numa manjedoura, entre animais. De todos os lugares jorravam músicas natalinas. As pessoas aparentavam possuídas por algo que não sabia determinar, mas que as deixavam diferentes. Não fiquei desapontado quando descobri que todas as crianças recebiam presentes do Papai Noel, menos eu e meus primos — apenas constatei que, evidentemente, ele nunca iria nos encontrar naquela lonjura, que nem luz elétrica tinha. Mas agora com toda certeza ele me compensaria por todos aqueles anos de atraso. E manifestei, pela primeira vez, meu desejo: queria ganhar vários carrinhos, um para cada ano enfurnado em Rodeiro. Disse isso para minha irmã, disse isso para meu pai, disse isso para mi147


nha mãe. E devorei ansioso os dias quentes e sufocantes que me separavam da mágica Noite de Natal. Dezembro é a estação das enchentes em Cataguases. O rio Pomba, que corta a cidade ao meio, impávido e cordato, resolve, nas proximidades do Natal, tornar-se turbulento e ganancioso, invadindo as ruas e as casas e expulsando a população para os lugares mais altos. O cortiço no qual morávamos ficava a poucos metros da margem e no verão havia sempre alguém de olho nas nuvens escuras que se formavam lá para os lados de Barbacena, nascedouro do rio Pomba, e de ouvidos atentos na Rádio Cataguases, que, em contato com cidades rio acima, transmitia boletins de hora em hora sobre o volume das chuvas. Não foi diferente aquele ano. Na manhã do dia 24 de dezembro, acordamos com as águas beirando as casas e subindo a tal velocidade que os últimos móveis já foram retirados com os adultos mergulhados até a cintura. Pessoas corriam de um lado para outro e a todo momento carreavam notícias cada vez mais preocupantes. Caiu uma tromba d’água em Tabuleiro do Pomba. Tem uma barragem prestes a estourar. A rodoviária está inundada. Boatos logo desmentidos, mas que alvoroçavam a nós, os indigentes. Fato era que das casas geminadas que compunham o cortiço onde morávamos só vislumbrávamos os tetos. Perto da meia-noite, reunidos em torno de uma fogueira, ao relento, observando as águas baixarem devagar e manhosamente, alguém lembrou que era a Noite de Natal. De repente, surgiram, não se sabe de onde, uns dois ou três frangos assados, duas garrafas grandes de refrigerantes, uma travessa de arroz com petipoá e uva-passa. O 148


Zé Preguiça, normalmente malvisto por sua boemia, pegou do violão e com a voz possante iniciou o “Noite Feliz”, logo seguido pelo entusiasmo de um coro desafinado. E todos sorriam, e se abraçavam, Feliz Natal! Feliz Natal! Meu pai, que passara o dia inteiro sumido, ajudando a transportar mudanças das casas atingidas pela enchente, aproximou-se de mim e, encabulado, me exibiu uma embalagem azul-celeste, que acomodava toda em sua mão direita. Desapontado, pois a frota por mim imaginada não caberia naquele ridículo pacotinho, o choro travado na garganta, rasguei com raiva o embrulho. Lá estavam seis minúsculos carrinhos de plástico, um para cada Natal perdido.

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JOÃO ANZANELLO CARRASCOZA É escritor e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e da Escola Superior de Propaganda e Marketing. Publicou os romances Caderno de um ausente, Menina escrevendo com pai e A pele da terra, que compõem da Trilogia do adeus, e várias coletâneas de contos, entre as quais O volume do silêncio, Espinhos e alfinetes e Aquela água toda. É também autor de obras para o público infantojuvenil. Algumas de suas histórias foram traduzidas para o bengali, croata, espanhol, francês, inglês, italiano, sueco e tamil. Recebeu os prêmios Jabuti, Fundação Biblioteca Nacional, Associação Paulista de Críticos de Arte, Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil e os internacionais Radio France e White Ravens (Library Munich). LETICIA WIERZCHOWSKI Nasceu em Porto Alegre (RS). Estreou na literatura em 1998 com o romance O anjo e o resto de nós. De lá para cá, já publicou outros 27 títulos de ficção adulta e infantil, entre eles, A casa das sete mulheres, que deu origem a uma série da Rede Globo — veiculada em mais de 40 países. LUCI COLLIN É ficcionista, poeta e tradutora. Entre seus livros publicados destacam-se Querer falar (poesia, finalista do Prêmio Oceanos 2015), A palavra algo (poesia, Prêmio Jabuti 2017), Nossa Senhora D’Aqui (romance) e A árvore todas (contos). Participou de diversas antologias nacionais e internacionais (nos Estados Unidos, Alemanha, França, Bélgica, Uruguai, Argentina, Peru e México). Ocupa a Cadeira 32 na Academia Paranaense de Letras. É doutora em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês. Leciona Literaturas de Língua Inglesa no Departamento de Letras Estrangeiras Modernas da UFPR.

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LUÍS HENRIQUE PELLANDA Nasceu em Curitiba (PR), em 1973. Escritor e jornalista, é autor dos livros O macaco ornamental (contos), Nós passaremos em branco (crônicas, finalista do Prêmio Jabuti 2012), Asa de sereia (crônicas, finalista do Prêmio Portugal Telecom 2014), Detetive à deriva (crônicas). Em 2018, lançou a coletânea de contos A fada sem cabeça. Organizou os dois volumes da antologia As melhores entrevistas do Rascunho. LUIZ RUFFATO Nasceu em Cataguases (MG), em 1961. É autor de Eles eram muitos cavalos, Estive em Lisboa e lembrei de você, Flores artificiais, De mim já nem se lembra e Inferno provisório, todos romances; As máscaras singulares (poemas) e Minha primeira vez (crônicas); e A história verdadeira do Sapo Luiz (infantil) e A cidade dorme (contos). Seus livros ganharam os prêmios Machado de Assis, APCA, Jabuti e Casa de las Américas e estão publicados na Argentina, Colômbia, Cuba, México, Estados Unidos, Portugal, França, Itália, Alemanha, Finlândia, Macedônia e Moçambique. Em 2012, foi escritor residente na universidade de Berkeley (EUA) e em 2016 recebeu o Prêmio Internacional Hermann Hesse, na Alemanha. Mantém uma coluna semanal no jornal El Pais – Brasil e é consultor de literatura no Instituto Itaú Cultural.

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Luiz Ernesto Meyer Pereira A Curitiba Literária | Bienal de Curitiba cumpre um papel central no desenvolvimento da literatura brasileira. A Bienal é uma realização do Ministério da Cultura, do Museu Oscar Niemeyer, da Secretaria de Estado da Cultura do Paraná, da Fundação Cultural de Curitiba e da Prefeitura Municipal de Curitiba, com o patrocínio indispensável da Copel, Sanepar, Elejor, Fomento Paraná, Huawei, Velsis, Eletrobrás Furnas e Rumo, através da Lei Federal de Incentivo à Cultura. Conta com a curadoria do jornalista e escritor Rogério Pereira. A Bienal leva a diversos espaços de Curitiba grandes nomes da literatura brasileira, paranaense e curitibana para um debate contínuo com o público. Partindo de um breve histórico, a Bienal de Curitiba nasceu em 1993 e, a partir de 2007, traz a literatura como um de seus focos de programação e divulgação. A inspiração para a realização de atividades e exposições que valorizassem a literatura em sua programação veio de dentro da própria cidade, primeiramente através do projeto Farol do Saber. Realizado durante a primeira gestão do prefeito Rafael Greca, o projeto consistiu na construção de bibliotecas com arquitetura motivada pelo Farol de Alexandria, no Egito Antigo. É uma iniciativa que incentiva a democratização do conhecimento e da cultura. Também o Paiol Literário, iniciativa idealizada por Rogério Pereira, em 2006, foi grande fonte de inspiração para a realização das mesas literárias promovidas pela Curitiba Literária | Bienal de Curitiba 2017. O Mês da 156


Literatura é outro grande projeto inspirador, de iniciativa do secretário de Estado da Cultura, João Luiz Fiani. A programação de literatura do Sesc Paraná, com a Feira do Livro & Semana Literária, também foi uma fonte de motivação para o evento. A escritora Rachel Liberato Meyer, minha querida avó, apaixonada pela leitura, e que publicou o livro Uma menina de Itajaí, lançado em 1961 — com segunda edição publicada em 1999 —, foi um nome marcante para inspirar o projeto e conscientizar sobre a importância de ações que incentivem a literatura. Inspirada por essas iniciativas de aproximação da literatura com o público, a Bienal de Curitiba realizou, em 2013, o projeto “A Literatura e a Cidade”, que obteve grande interesse do público participante. O projeto contemplou também a leitura de textos em ônibus biarticulados e a publicação da antologia Fantasma civil, sob curadoria de Ricardo Corona, com textos sobre Curitiba escritos por 42 autores. A publicação foi disponibilizada nas estações-tubo da capital e distribuída em bibliotecas de cidades do Paraná. Então, em 2016, a Bienal decide fortalecer esse cenário e colocar a literatura como o foco principal do evento, propondo que todas as atenções se voltem para a arte literária, por meio da realização de mesas literárias, lançamentos de livro, oficinas de poesia, saraus literários, exposições de poesia visual e muito mais. Por meio de sua programação, a Curitiba Literária | Bienal de Curitiba 2016 ocupou museus, galerias de arte, livrarias, bibliotecas, auditórios, escolas e espaços culturais em toda a cidade. Assim, a Curitiba Literária | Bienal de Curitiba 2016 não 157


somente aproximou a literatura do público, mas também a apresentou como arte, estética, exposição, interferência urbana, movimento social, cultura, audiovisual e, em sua mais bruta forma, palavra. A Curitiba Literária | Bienal de Curitiba 2017 conta com a parceria cultural da Biblioteca Pública do Paraná e de entidades literárias históricas na capital paranaense. Graças ao Centro de Letras do Paraná, ao Centro Paranaense Feminino de Cultura e à Academia Paranaense da Poesia, a Curitiba Literária chegou até espaços que representam os pilares fundamentais da literatura paranaense, enriquecendo sua programação e envolvendo em sua realização personalidades tradicionalmente envolvidas com a história da literatura no Paraná. A realização deste projeto teve apoio da Academia de Cultura de Curitiba, Academia Paranaense de Letras, Academia Feminina de Letras do Paraná, União Brasileira de Trovadores (UBT Seção de Curitiba), Instituto Histórico e Geográfico do Paraná, Honorífica e Nobiliárquica Soberana Ordem do Sapo do Brasil e Academia de Letras José de Alencar. Agradeço aos autores que integram a antologia A vida íntima das histórias, que será distribuída em bibliotecas públicas, universidades e escolas do Paraná e do Brasil. É o resultado de uma intensa programação cultural, sendo ainda um instrumento de divulgação da produção literária brasileira, de grande valor artístico. A antologia, organizada por Rogério Pereira, é um legado da Bienal, por ser um produto cultural de expansivo alcance e a memória de acontecimentos da Curitiba Literária. 158


A Bienal contou ainda com trabalho de uma equipe dedicada e apaixonada por literatura. Agradeço à equipe realizadora da Curitiba Literária pela dedicação e pela paixão com que trabalharam para organizar e realizar o evento. Agradeço imensamente aos ex-governadores do Paraná, Mario Pereira e Jaime Lerner; ao atual governador, Beto Richa; à vice-governadora do Estado, Cida Borghetti; ao secretário de Estado da Cultura, João Luiz Fiani, e sua equipe; ao prefeito de Curitiba, Rafael Greca; ao vice-prefeito de Curitiba, Eduardo Pimentel; ao presidente da Fundação Cultural de Curitiba, Marcelo Cattani; à superintendente da Fundação Cultural de Curitiba, Ana Cristina de Castro; ao diretor Administrativo Financeiro da Fundação Cultural de Curitiba, Cristiano Augusto Sollis Figueiredo Morrissy; à diretora de Comunicação da Fundação Cultural de Curitiba, Thaísa Marques Teixeira Sade, e ao diretor de Ação Cultural da Fundação Cultural de Curitiba, José Roberto Lança. Aos co-realizadores da Bienal, o Centro de Letras do Paraná, presidido por Ney Fernando Perracini de Azevedo, o Centro Paranaense Feminino de Cultura, presidido por Chloris Casagrande Justen, e a Academia Paranaense da Poesia, presidida por Lilia Souza, e seus associados. Agradeço também à imprensa, em especial à Gazeta do Povo, à RPC, à Mundo Livre FM, à e-Paraná, além de todos os veículos que colaboraram com a divulgação da Bienal. LUIZ ERNESTO MEYER PEREIRA É PRESIDENTE DA CURITIBA LITERÁRIA | BIENAL DE CURITIBA.

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NARRATIVAS QUE MOVEM O MUNDO Assim como a energia, que se transforma e movimenta o mundo, a literatura é a força-propulsora que combina palavras, símbolos e metáforas, e transforma histórias e narrativas em grandes reflexões. Para a Copel, a literatura é mais do que uma manifestação artística, é uma ferramenta para a transformação social e o crescimento do ser humano. Por isso, a Companhia patrocina a Curitiba Literária. Nesta edição, o evento reúne grandes nomes da literatura brasileira para refletir sobre o papel da literatura em uma época marcada pelos estímulos visuais. A Copel convida os paranaenses a conhecerem o que a literatura tem de melhor. O resultado é um movimento pujante em busca de novos públicos leitores, com o objetivo de promover a literatura em suas mais variadas formas. É por isso que a Copel mergulha junto nessa história e patrocina a Curitiba Literária da Bienal de Curitiba 2017 através da Lei de Incentivo à Cultura e acredita que o projeto engrandece o Paraná e o Brasil. Afinal, para nós, incentivar a arte é iluminar a vida!

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PATROCÍNIO


ÁGUA E LITERATURA, PARA O CORPO E A ALMA A Companhia de Saneamento do Paraná (Sanepar) completou 55 anos em janeiro de 2018 e tem a água como o seu principal insumo. Dos mananciais para as estações de tratamento, a água tratada é entregue pela Sanepar nos lares paranaenses. Água é saúde, é vida. E, para que a vida seja plena, o ser humano deve suprir o corpo e a alma. Enquanto a água hidrata e garante funções essenciais ao corpo, entre os principais alimentos da alma está a literatura. Quem bebe água vive. Quem lê se educa, adquire cultura, aprende, se entretém. Como fez em edições anteriores, a Sanepar está presente na Curitiba Literária 2018 para valorizar a iniciativa e seguir disseminando conhecimento e criando consciência sobre a importância da leitura para as pessoas. Conhecimento é a chave para o desenvolvimento social. A consciência ambiental, cultural e o respeito mútuo nascem do conhecimento. Aliás, para a Sanepar, conhecimento é mais que um propósito. É parte do seu cotidiano. A Companhia trabalha diariamente com educação socioambiental. São dezenas de ações que unem conhecimento, respeito ao meio ambiente e inovação, proporcionando um ciclo sustentável no saneamento, mais saúde e qualidade de vida para a população. PATROCÍNIO

A Sanepar se orgulha, mais uma vez, de fazer parte do evento. A Companhia e seus colaboradores desejam a todos os participantes uma experiência rica em conhecimento.

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PODEROSO INSTRUMENTO DE TRANSFORMAÇÃO A Elejor acredita num mundo sustentável nos seus três aspectos de sustentação: econômico, social e ambiental. A sustentabilidade perpassa pela transformação das pessoas, assim teremos agentes sociais mais reflexivos e responsáveis utilizando a leitura como alimento modificador da realidade. Acreditamos que a literatura é um dos mais poderosos instrumentos desta metamorfose, tornando-nos seres humanos melhores para a sociedade e o planeta como um todo. Neste sentido, é uma honra para a Elejor poder ser uma das parceiras e incentivadoras de projetos culturais do quilate da Curitiba Literária. PATROCÍNIO

Ações fundamentais como estas nos propiciam, através da Lei de Incentivo à Cultura, cumprir nosso papel social de fomentação para o atingimento de um mundo melhor.

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PELO DESENVOLVIMENTO DO PARANÁ A Fomento Paraná é uma instituição financeira de desenvolvimento do Governo do Paraná. Integra o Sistema de Financiamento aos Municípios, em conjunto com a Secretaria de Estado do Desenvolvimento Urbano e o Paranacidade, para financiar obras de infraestrutura e a compra de máquinas e equipamentos para os municípios. Também financia empreendedores de micro, pequeno e médio porte, em projetos de modernização e ampliação de atividades comerciais, industriais e de serviços visando ampliar o acesso ao crédito e promover a geração de emprego e renda. Em parceria com prefeituras, associações comerciais, Sebrae-PR e outras entidades, a Fomento Paraná formou uma rede de agentes de crédito e correspondentes autorizados, que são responsáveis pela oferta do crédito aos empreendedores. A instituição é responsável ainda pela gestão de fundos públicos de desenvolvimento e garantidores e é cotista de fundos de investimento e participação em empreendimentos inovadores com alto potencial de crescimento. PATROCÍNIO

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PARCERIA CULTURAL

PARCERIA EDUCACIONAL

APOIO ACADEMIA DE CULTURA DE CURITIBA ACCUR

APOIO DE MÍDIA

HOTEL OFICIAL

REALIZAÇÃO


ESTE LIVRO FOI COMPOSTO PELA THAPCOM EM TIPO MERRIWEATHER EM PAPEL PÓLEN SOFT 80G/M2, EM CURITIBA-PR.




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