Fronteiras em Aberto: Uma Antologia Digital

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Fronteiras em

Aberto

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Uma Antologia

Digital MINISTÉRIO DO TURISMO, GOVERNO DO PARANÁ E COPEL APRESENTAM: 3
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A literatura sempre esteve presente nas ações da Bienal Internacional de Arte Contemporânea de Curitiba e, desde 2016, passou a ter um circuito dedicado exclusivamente para ela, a Curitiba Literária, com mesas redondas, palestras, ações educativas e publicação de antologias. A 14ª Bienal de Curitiba, com o objetivo de tornar a antologia ainda mais acessível para outras cidades do Brasil, optou por lançar a antologia digital, reunindo textos e crônicas que já passaram pelo circuito nos últimos anos. Boa leitura!

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Bernardo Carvalho

B. Kucinski João Anzanello

Carrascoza José Castello 9 15 31 55 “Voando para mim” “Uma História de Amor” “Dia” “Primeiras Letras” “A Distância de Lagos” 6
Julie Fank Leticia Wierzchowski Luci Collin Autores 67 79 89 101 “Embaraço” “A História dos Caroços” “A Vida Íntima das Histórias” “Nome: Omen” 7
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“Voando para mim”

Descobri, no meio da vida, que tinha um homônimo. Não pode haver pior descoberta no meio da vida, quando trocar de nome acarreta problemas que seriam insignificantes no começo da vida. Quando eu fazia leituras públicas, eram os livros do homônimo que estavam expostos nas vitrines das livrarias e que os leitores me pediam para autografar. Passei a dar declarações vergonhosas para ver se o homônimo, envergonhado, trocava de nome. Adotei um comportamento dos mais estranhos com a mesma finalidade. Passei a escrever livros horríveis, para denegrir sua imagem. Mas nada demovia o homônimo, que continuava a escrever seus livros horríveis, com o meu nome.

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Me tornei um escritor ridículo. Passei a me vestir de palhaço. E so quando, por meio de uma fotografia no jornal, entendi que o homônimo fazia o mesmo, foi que decidi tomar um avião para convencê lo pessoalmente a deixar meu nome em paz. Não havia voos diretos para onde vivia o homônimo. Em cada aeroporto onde fiz escala, aproveitei para comprar uma lembrancinha para ele. Os aeroportos se tornaram shopping centers. É normal. É preciso dar uma utilidade às horas de espera cada vez mais longas entre as chegadas e as partidas cada vez mais numerosas. Os presentes não podiam fazer mal. É uma tradição desde que os brancos estabeleceram contato com os indígenas. Ao contrário dos brancos, entretanto, eu não escondia segundas intenções; os presentes so mostravam a minha boa vontade. Eu mesmo seria capaz de usar aquelas roupas. Nas livrarias dos aeropor-

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tos, eu via os livros do homônimo e tentava me controlar para não perguntar por que não vendiam também os meus. Ter um homônimo ja é humilhação suficiente. Terminei comprando um livro dele para ler no avião. Era tão mais ridículo que os meus já tão ridículos. Eu ria alto, de vergonha, enquanto os passageiros me lançavam olhares de reprovação. Eu virava as páginas com desenvoltura e ria da desenvoltura dele. Como é que tinha coragem? Como é que uma pessoa pode escrever uma coisa dessas? E ficava tão mais admirado por eu nunca ter pensado, mesmo quando quis ser mais ridículo, em escrever nada que lhe chegasse aos pés. Afinal, a aeromoça veio me pedir para rir mais baixo. Eu estava atrapalhando a leitura dos outros passageiros. Ninguém ria a bordo. Preferi não perguntar o que estavam lendo. Qual não foi a minha surpresa, quando finalmente che

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guei ao meu destino e, ao desembarcar do avião, carregado de pacotes e sacolas com os presentes para o homônimo, avistei o do outro lado da parede de vidro que separava a sala de embarque do corredor de desembarque por onde eu avançava com o resto dos passageiros do meu voo. O homônimo estava sentado, esperando para tomar o mesmo avião de volta para o lugar de onde eu vinha. Não adiantava gritar. Bati no vidro, agitei os braços, tentando chamar a atenção dele. Mas ele não me via. Estava demasiado absorto, lendo um livro que eu havia escrito. Ria e punha a mão na boca. Balançava a cabeça, incrédulo. Imaginei que, se estava sem pacotes e sem sacolas, é porque tinha deixado para comprar os meus presentes nas várias escalas que ainda teria que fazer para chegar a mim.

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B. Kucinski

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“Uma história de amor”*

1 . O retrato

Apoiada na amurada, Judith contempla as espumas desfazendo-se entre os sulcos deixados pelas hélices. A noite está escura e sem estrelas. O mar está calmo. As duas colunas de fumaça, que sobem densas das chaminés, parecem fundir se com as nuvens baixas. Navegam faz dez dias. Mais quinze e estarão em Buenos Aires. A popa balança ao sabor do vento irregular. Judith se distrai repassando mentalmente, mais uma vez, as peças de seu parco enxoval, as duas camisolas, o vestido longo, os panos de mesa, o pequeno candelabro de prata, protegido no fundo do bau pelo edredom de penas de ganso. No saquinho junto ao seio, mantém zelosamente o endereço e o retrato do noivo a quem fora prometida. Algo na fotografia a inquieta, seriam

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os seus olhos, opacos? Seria o sorriso, que agora lhe parece forçado? Não sabe. Desde ontem sente-se intranquila. Desde que travou conhecimento com a passageira, da cabine vizinha à sua. Também ela viaja só. Também ela viera da Polônia e embarcara em Gênova. Chama-se Lea. É uma moça bonita, de rosto oval e cabelos loiros em trança. Simpática. É estranho, so terem se encontrado após tantos dias de viagem, ela disse à outra. Eu quase não saio da cabine nem vou ao refeitório porque sinto muito enjoo, a outra respondera. Trocaram algumas palavras em polonês, logo descobriram pelo sotaque que eram ambas judias e passaram ao iídiche. Então a conversa se soltou. Foi quando ela puxou fora a bolsinha de pano e mostrou à outra a fotografia e lhe falou do noivo que a espera em Buenos Aires. A outra fitou o retrato longamente e disse: É bem apessoado, e tem bom gosto, a gravata tem um riscado mui-

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to bonito. Depois se calou, pediu licença e retornou à cabine. Agora, ela repassa o encontro e tenta entender por que a outra se retirou inopinadamente. Hoje não a viu, nem à tardinha, nem na mesa do jantar. Então se lembrou de que a outra sente enjoo. Por isso não a vê às refeições. Viajam na terceira classe. A comida é servida apressadamente, em tigelas, como se estivessem num quartel. Judith fala um pouco de francês, mas os garçons são grosseiros, fazem que não entendem. Pode ser que não entendam mesmo. Pelos olhinhos miúdos e repuxados, devem ser chineses. O navio vapor é velho e chacoalha continuamente. Há sempre muitos lugares vazios na longa mesa. Judith ergue o olhar em direção à linha do horizonte. O mar imenso parece guardar segredos. Súbito a porta do passadiço se abre e uma mulher de meia idade e andar inseguro alcança apressadamente a amurada, debruça-se e vomita. Enojada, Judith retorna ao interior do navio. Volta a pensar na Lea. Sera que está mal? Antes de entrar na sua cabine, bate na

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porta da outra. Lea, sou eu a Judith! Voce está bem? Passam-se alguns segundos. Ela eleva a voz: Lea, sou eu a Judith sua vizinha de cabine, posso entrar?! Então a porta se abre e ela depara com a outra sentada na beirada do beliche soluçando. Voce está chorando? O que aconteceu? A outra lhe estende uma fotografia. Esse é meu noivo, que está me esperando em Buenos Aires, ela diz. Judith fita o retrato e empalidece.

2 . O vi ú vo Zacarias

Zacarias perscruta o horizonte, ansioso. Em dois dias aportarão em Belém do Pará. Tinha tanta pressa de chegar e agora quer que o navio perca o rumo ou sofra uma avaria e demore alguns dias mais. A rapariga esbelta, de cabelos negros e olhos azuis rutilantes não lhe sai da cabeça. Ontem, à mesa, seus olhares novamente se encontraram; depois a avistou na amurada da popa, mas quando se aproximou, todo decidido, surgiu aquela velha vomitando e a moça se retirou apressada. Zacarias não é um tímido, contudo, depois

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morte da esposa, retraíra-se. Os filhos não gostariam de o ver com outra, exceto o menorzinho, o Bruno, que com cinco anos logo se acostumaria. Porém a Raquel ja tem dez e Daniel, oito. Nunca aceitariam. A Raquel não esquece a mãe. Mas essa mulher de olhos azuis mexeu com ele. Como é bonita! E parece tão delicada. Senta se à mesa como uma princesa! E com que suavidade se move! Pela primeira vez desde a morte de Halima, sente-se perturbado por uma mulher. Sera que está apaixonado? Uma mulher que ele nem conhece, com quem nunca falou? De quem nem sabe o nome? Deve ser o momento, raciocina, a solidão da travessia, tão demorada, esse mar imenso, deixando tudo para trás, os tios, a irma casada, a farmácia em Casablanca. Poderia ser outra mulher e de certo aconteceria o mesmo. Depois da faculdade em Marselha Zacarias nunca mais saiu do Marrocos. Quem iria imaginar que as arruaças chegariam a tal ponto? Quando soube que no Brasil farmacêuticos eram respeitados como se fossem médicos e que poucos

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tinham diploma de verdade, ele se decidiu. Escolheu Belém do Pará por causa das histórias que ouvia dos avós sobre uns tios que haviam emigrado para o Amazonas muito tempo antes e enriqueceram no comércio da pimenta do reino. E também por causa da ópera. Em Belém do Pará tem ópera. Em Marselha, nos seu tempo de estudante não perdia uma montagem. Podia não ter dinheiro, mas para a ópera sempre dava um jeito. Belém do Pará era uma Paris das Américas, assim se falava, o dinheiro jorrando da produção da borracha, mais ainda do que na época da pimenta. Ah... Essa mulher de cabelos negros e olhos azuis não me sai da cabeça. Tenho que tentar. Não vou me perdoar se não tentar. O imediato ja informou que sou o único passageiro da terceira classe que desembarca em Belém, então ela segue e eu vou perder a oportunidade. Deve seguir até o Rio de Janeiro ou quem sabe até Buenos Aires... Zacarias pondera. O que fazer? Não posso ofendê-la. Ela parece tão delicada! Mas o que ele tem a perder? Se for rejeitado pelo menos vai

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saber que tentou. E se der certo, que Deus me ouça, estudo um jeito de explicar às crianças. Vai ser dif ícil com a Raquel, temo que nunca aceite. Mas que coisa, nem cheguei perto da moça e ja penso em como convencer os filhos. Devo estar delirando. Não devo abordá-la de modo abrupto, isso nunca. Notei que ela se dirigiu em francês a um dos garçons. Vou perguntar educadamente, parlez vous français, mademoiselle? Sim, vou dizer mademoiselle. Notei que não leva aliança. Sim, é um bom começo, um bom pretexto, afinal dois viajantes solitários que falam a mesma língua já têm algo em comum. Est ce que vous êtes de Maroc? Je suis de Casablanca. Claro que ela não é do Marrocos, se fosse teria embarcado em Marselha, como ele. Mas é um modo de iniciar a conversação, e também saber um pouco sobre ela. Ele recorda vivamente que ela ja estava a bordo quando ele embarcou. Observou-a na amurada do convés ao subir a rampa com as crianças, os cabelos esvoaçando, e seus olhares se encontraram por alguns segundos. Depois, no re

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feitório fitou seus olhos e ela baixou os dela, como que envergonhada, entretanto nos dias seguintes trocaram muitos olhares rápidos e alguns longos. Zacarias se recolhe à cabine ainda ensaiando frases. As crianças dormem. Ele deita-se, porém custa a fechar os olhos. Não para de pensar na mulher de cabelos negros e olhos azuis que fala francês. Finalmente adormece.

É despertado por Raquel. Papai está na hora do café, ja estamos vestidos. Esperem um pouco la fora, ele diz. Elas saem e ele se veste para o cafe. No refeitório todos se mostram mais apressados que de hábito. Na manhã seguinte devem atracar em Belém. É sempre assim quando se aproximam de um porto. Ele hesita. Avista a mulher de seus pensamentos no extremo da longa mesa, de blusa banca e os cabelos amarrados para trás. Senta-se com as crianças próximo a ela, do lado oposto. Examina-a furtivamente. Evita encará-la. Súbito ela levanta os olhos e o fita demoradamente. Os olhos tão azuis parecem averme

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lhados, como se tivesse chorado. Ela sorri vagamente. Ele inclina a cabeça como que cumprimentando. Sontils votre fils? Ela pergunta. Oui, madame, ele diz. Ela corrige, mademoiselle. Pardon, ele diz. Ensaiou tanto e no momento decisivo errou. É o nervosismo, pensou. Súbito ela se ergue. Excusez moi. E se retira apressada. Seu olhar a acompanha, apreensivo, seu coração bate acelerado. Raquel tudo observa, atenta. Estende a mão, envolve o braço do pai e diz: papai por que você não se casa? Chega de ficar viúvo.

3. O encontro

Uma borrasca na altura do Equador atrasou a chegada do Aquitânia a Belém do Pará. Atracaria so no final da manhã do dia seguinte. À boca pequena correu que houve imperícia do copiloto. Teria se deixado surpreender e manobrado mal. Zacarias não é religioso, contudo tomou a providencial tempestade como um sinal de aprovação dos céus. E a fala da Raquel o animara sobremaneira. Sim, chega de ficar viúvo. Pois não deixou tudo para trás? Então estava

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na hora de deixar a viuvez também para trás. Porém, na mesa do almoço não encontrou a mulher de seu anseio. Ficou aflito. No jantar, ao entrar no refeitório percebeu que ela acabara de sair. Foi encontrá la na amurada, fitando o céu, no mesmo lugar da popa em que a vira da outra vez. A borrasca ja se desfizera; o céu estava coalhado de estrelas, num espetáculo deslumbrante. O mar, antes encapelado, estava calmo. O vento também amainara. Zacarias aproximou-se e apoiou-se na amurada, a pequena distância da mulher que o atraía de modo tão irresistível. Deixou passar meio minuto, voltou se para ela e disse: C’est une belle nuit! Oui , ela respondeu: Très belle . E assim ficaram, trocando poucas palavras, depois muitas. Ele contou a sua história, a perda da Halima, os distúrbios no Marrocos, os ataques às sinagogas, a decisão de emigrar para o Brasil; ela se mostrou reticente, disse apenas que era polonesa, vinha de uma cidadezinha muito pequena e muito pobre, para se encontrar com o noivo que a esperava em Buenos Aires.

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Judith era o seu nome. Ao falar no noivo sua voz se tornara quase inaudível. Súbito ela estremeceu, como se sentisse um calafrio. Ele desfez se do seu paleto e cobriu seus ombros. Suas mãos se tocaram de raspão. Então ele a atraiu para si, delicadamente como a protegê-la do vento e assim ficaram abraçados por um longo minuto. Inesperadamente ela se desvencilhou, devolveu o casaco e se retirou apressada. Antes fitou-o com olhar intenso.

Nessa noite Zacarias não dormiu. Sentia ainda no seu corpo a quentura do corpo da Judith. E tentava interpretar aquele olhar, que lhe pareceu de despedida. Ou seria de súplica? No cafe da manhã não a encontrou no refeitório e sentiu se agoniado. Seu coração disparou. Seus olhos a procuravam em meio ao azáfama da chegada a Belém. O vapor atracaria em poucas horas. O prático ja estava a bordo. Grumetes desfaziam rolos de cordoalha preparando a amarração. Embora, de toda a terceira classe apenas ele desembarcaria, os demais passageiros aproveitariam para passar o dia em terra firme, passear e comprar lembranças.

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O vapor atraca pouco depois do meio dia. O molhe está coalhado de batéis a descarregar fardos e balaios. O cais fervilha de gente de todo tipo, cocheiros com suas charretes, estivadores, agentes marítimos, marinheiros, e bandos de garotos oferecendo castanhas do Pará, doces de banana e cocadas. Zacarias desce o pranchão de desembarque de coração pesado. Dois carregadores vão à frente com seus baús. As crianças seguem atrás. A cada três passos, desolado, Zacarias volta os olhos para a amurada do convés da terceira classe. Retarda a descida o mais que pode e outros passageiros o ultrapassam com passadas impacientes.

Em terra, Zacarias procura se orientar em meio à multidão, enquanto Raquel, conforme ele ordenara, mantém as crianças juntinhas, perto de si. É quando Zacarias sente alguém segurando seu braço com firmeza in-

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comum. Ele se volta. É Judith. Vous ne continuez pas dans Buenos Aires? Ele pergunta, surpreso. Non, j’ai changé des plans, je reste ici. E ela acrescenta: avec toi . Zacarias é tomado por intenso júbilo. E votre baggage? Je ne necessite pas. Ele quer abraçá-la, mas ela não lhe dá tempo; puxa-o rapidamente com uma das mãos e envolve as crianças com a outra, para que saiam logo do cais, como se alguém a estivesse vigiando.

*Conto incluído posteriormente em "A cicatriz e outros contos, (quase) todosos contos deB . Kucinski , publicada pela Casa Editorial Alameda, de São Paulo, em 2021 com o título Uma singela história de amor e redenção .

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João Anzanello Carrascoza

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“Dia”

E, enquanto aprendia a ler as pessoas, dentro e fora da escola, eu descobri outros esportes, não imaginava que eram tantos, jogar futebol com meu irmão e o Paulinho ja tirava o mundo dos meus olhos, eu me entregava inteiramente ao jogo, como se vivesse so pra estar la, fazendo e evitando gols. Foi o Urso, professor de educação f ísica, quem me levou a gostar de salto em altura ninguém acreditava que eu, pequeno, conseguiria saltar mais que os meninos maiores, mas era verdade: eu despegava fácil do chão, erguia a perna esquerda como um elástico e lançava o corpo sobre o sarrafo, no estilo “tesoura”, sem medo de me machucar ao cair na caixa de areia.

Então, comecei a treinar forte com o Urso e a pular bem mais alto, o Lucas até começou a me chamar de Sapo, Vai, Sapo, dá aquele seu pulo pra gente ver, mas eu nem liguei e o apelido não pegou. O Urso era do silêncio, igual o

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Seu Hermes, mas quando falava, fazia a gente melhorar, eu lembro bem de suas palavras, que o segredo de um bom salto não tava na corrida nem no impulso, mas na concentracão, Fique olhando o sarrafo sem pressa, o Urso dizia, voce vai ver que, de repente, ele desce, e aí é a hora de saltar! ; eu, no começo, duvidava, sarrafo nenhum iria se mover, nem pra baixo nem pra cima, mas, depois, foi justamente seguindo o conselho dele que alcancei a minha melhor marca. Eu ali, os olhos presos no sarrafo e de súbito, a mágica! , o sarrafo se moveu, lentamente, como o ponteiro pequeno do relógio, eu pude captar a sua oscilação pra baixo e, então, corri, então saltei, e ultrapassei o sarrafo, que estremeceu com a brisa do meu corpo, Maravilha,maravilha , o Urso gritou e veio, com seus braços peludos, festejar comigo.

Eu treinava duas vezes por semana e, sempre, o Urso repetia, Se você saltar mais quinze centímetros, eu te levo pro campeonato infantil , e começou a me ensinar a saltar de barriga, igual “peixinho” no futebol, e, aos poucos, eu fui apren-

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dendo a pular também daquele jeito, até atingir o meu recorde, que não era la grande coisa, mas o Urso disse, Com esta marca, ja dá pra te inscrever! . E ele cumpriu o prometi do, arrumou toda a papelada e, daí em diante, passamos a treinar quatro vezes por semana; pra mim, era uma mistura de desafio e diversão, mas minha mãe não estava gostando daquilo, principalmente quando eu chegava imundo, o joelho esfolado, a mão roída pelos pedriscos da areia.

Meu pai não ligava, desde que eu não descuidasse das lições; ele, que não pudera terminar o segundo grau, vivia dizendo, Sem estudo, ninguém vai pra frente , e, apesar de gostar de futebol, fanático pelo Corinthians, curtia corrida de longa distância, e falava sempre de um tal de Zatopek, Este, sim, foi um campeão! . Quando me via voltar feliz do treino, me incentivava, Parabéns, filho!, você vai longe..., e, se eu chegava cabisbaixo, me atiçava, Não desanime, não desanime! . Lembro um dia em que minha mãe, à mesa do jantar, depois de me dar uma dura por eu ter voltado do trei-

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no à noitinha, declarou que preferia me ver praticando, como meu irmão, algum esporte coletivo, Pelo menos você ta no meio dos amigos , e o pai, mastigando uma fatia de pão, comentou, Na hora do vamos ver, a gente ta sempre sozinho . O pai estava me lendo bem, não dissera aquilo apenas pelo meu empenho no salto em altura, não, na certa ele percebia o quanto eu andava so depois que a prima Teresa voltara pro Rio. Ela e a tia Imaculada tinham vindo passar o mês de julho com a gente, mas, estranhamente, nem deram duas semanas e elas retornaram pra la. Eu nunca soube direito o motivo, Por quê? por quê? , perguntei, com insistência pra mãe, no dia em que partiram, como se al guma explicação, Porque o tio Carlosprecisoudelas,ou, por que aqui não tem nada pra fazer , fosse mudar o rumo das coisas. Eu ainda ignorava que os fatos eram o que eram, e de nada adiantaria conhecer as razões que os determinavam,

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eles jamais seriam alterados. Não supunha que se pareciam com o sarrafo nas traves: a gente passa ou não passa por ele, não tem outra opção. A mãe me consolava, Elasvão voltarno Natal , mas o Natal, pra mim, era um tempo que jamais chegaria.

Foi aí que, uma noite, na hora de dormir, lembrando o sorriso da prima Teresa, eu me dei conta de que não adian tava lamentar, eu so iria mesmo pra frente se a esquecesse. Resolvi então esvaziar os meus olhos dela e, silenciosamente, inundei o travesseiro. Chovi nele toda a tristeza que eu tentava disfarçar (e o pai percebera) e, no dia seguinte, me atirei com mais dedicação aos treinos: eu estava so, diante do sarrafo e era melhor mesmo que estivesse!

Mas todo começo é grande, está numa altura acima de nós, e so se a gente continuar, se persistirmos no caminho, é que o superamos — e aí dá pra subir mais o sarrafo. Eu ainda sentia muito a falta da prima Teresa, nós dois la no quintal, à sombra da mangueira, distraídos, Oque tem la no

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Rio, prima?; Tem o mar; Que passarinho é aquele, primo?; É um coleirinho; Qual a sua cor preferida?; Azul e a sua?; Azul também; a gente naquelas conversas, e o mundo, ao nosso redor, no freio. Era tudo devagar, pra eu ter a prima Teresa um tempo maior, comigo; sua volta pro Rio seria la adiante, numa manhã remota, na qual o Sol se recusaria a arder, nenhuma janela abriria nesse dia assim eu pensava, assim eu queria.

As aulas tinham terminado, fazia um friozinho gostoso em julho, tão bom era acordar e viver até a noite com a prima Teresa, quando, então, vinha o tempo de estar com ela, de outro jeito, recordando, na cama, os momentos que havíamos passado juntos. Ninguém tinha nascido em mim daquele jeito, e me habitado sem fazer força, e, assim, ela coincidia, do lado de fora, com aquela que ia dentro do meu pensamento. Eu captava uma expansão em tudo, na conversa das pessoas, no movimento das ruas, nos farrapos de nuvens ao entardecer, eu mal sabia que estava me alar

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gando. Mas tinha uma certeza: era a primeira vez que sentia aquilo nenhuma seria superior, e isso eu so fui descobrir anos depois; todas as outras avalanches que vivi não foram mais do que cópias daquela.

Eu me colei na prima Teresa, e ela em mim, o tempo todo: se a brincadeira era de esconde esconde, corríamos juntos pro mesmo esconderijo, e se achavam um, la estava o outro; na queimada, eu deixava que me matassem pra que ela continuasse viva; naquela festa junina, na casa do tio Zezo, eu e ela pertinho da fogueira, o rosto sujo de fe licidade. O Lucas até reclamou, várias vezes quis empinar pipa, e eu nada, Então eu vou sozinho e não te chamo mais! ; meu irmão e o Paulinho, Vamospegar vagalume? , e eu, Não, vou ficarporaqui , e ficava; eu e ela na soleira da porta, vendo o mundo na mesma tela, igualzinho num filme.

Mas aí a prima Teresa foi embora e, mesmo que não tivesse culpa pelo seu retorno abrupto ao Rio, eu estava dolorido com ela. Era hora de apagar as lembranças e me

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lançar sobre o futuro o mais alto que pudesse. Vamos, se concentre , gritava o Urso, você vai ver o sarrafo baixar , e, assim, colocando o sarrafo nos meus olhos no lugar da prima Teresa, eu fui melhorando a cada dia a minha impulsão no salto em altura.

Chegou setembro, e também as provas do campeonato infantil que seriam num estádio em Ribeirão Preto. Fomos pra la num ônibus fretado, era dia de semana, e os meninos mais velhos, que também iam competir, fizeram algazarra a viagem inteira talvez pra esconder o medo do fracasso , mas o Urso, na primeira poltrona, o Urso nem ligava, o Urso até sorria. Quando chegamos la, vi dezenas de ônibus estacionando ao redor do estádio e uma multidão de garotos saindo deles, alguns calados e atônitos com o movimento, outros, a maioria, falando alto, às gargalhadas. Era um muito pra se ver, e eu não dava conta de me prender todo naquele acontecimento que se abria, sendo eu também parte dele, e, aí, achei melhor ficar perto do Urso,

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obediente às suas ordens, Venham,époraqui! .

No vestiário, na pista de saibro, no percurso até o lo cal onde se daria a prova, eu sentia no ar, sob uma aparente normalidade, a presença de uma coisa grande prestes a acontecer. Como as competições eram simultâneas, o Urso foi orientar os meninos na corrida de revezamento, e eu fiquei ali, sozinho. Aprendera a me concentrar, as palavras do Urso, Fique olhando o sarrafo sem pressa, não estavam so na minha memória, elas comandavam todo o meu corpo, voce vai ver que, de repente, ele desce, aí é a hora de saltar , e, como se estivesse treinando la na escola, quando chegou a minha vez, eu dei o primeiro salto numa boa, e passei fácil, fácil.

Aos poucos, a altura do sarrafo foi subindo e, pra sur presa de muitos, eu fui adiante, enquanto uns meninos maiores foram eliminados. Eu mirava o sarrafo um tempão, às vezes até enervava o juiz de prova, e, então, corria, corria

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e saltava no estilo tesoura, caindo, triunfante, na caixa de areia. Ouvia uns aplausos ao longe, mas me mantinha quieto, assistindo atento aos demais, à espera de ser chamado novamente.

Enquanto estava ali, fiquei de olho num dos meninos: ele ultrapassava o sarrafo com dificuldade, mas variava os saltos, ora no estilo tesoura, ora de barriga. Lendo o jeito dele correr e se concentrar, eu senti o sinal de um segredo, um segredo que so no fim da prova, quando nós dois disputávamos o primeiro lugar, ele revelou.

Tentávamos superar a marca de um metro e vinte. Tínhamos queimado em duas tentativas, faltava a última. Era a minha vez de saltar e, de novo, seguindo a dica do Urso, observei o sarrafo um tempão, mas, estranhamente, ele não baixava; aí eu me lembrei das palavras do pai, Na hora do vamos ver, a gente ta sempre sozinho . O juiz de prova fez um gesto de ultimato e, então, eu corri, corri, corri e saltei o mais alto que podia, e, antes de mergulhar o rosto na caixa de areia

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senti o sarrafo desabando sobre minha cabeça. A justiça estava la, e o meu máximo não fora o suficiente.

Levantei, limpei as mãos, bati a poeira da roupa e me sentei pra ver a terceira tentativa do garoto. E aí aconteceu o bonito, de tão imprevisível que foi: ele se concentrou, também sem pressa, e, então, correu, correu do jeito que corria, eu notei o diferente e, quando estava bem perto, ele se virou e saltou de costas, flop , passando primeiro a cabeça, depois os ombros e, finalmente, as pernas. Por um instante, meus olhos ficaram desarrumados com o arco que o corpo dele desenhou no ar sobre o sarrafo. E aí eu so pude aplaudir, junto com o estádio inteirinho. Em vez de me sentir derrotado, eu me alegrei todo, por estar ali e ver aquela mágica.

Saí com a medalha de prata no pescoço, e o Urso, o Urso, eufórico e peludo, me abraçava, Não falei?, não falei? , ele também no seu muito feliz.

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De volta pra casa, o ônibus estava silencioso, os meninos maiores sem nada pra comemorar. No embalo do motor, de repente, não sei por quê, me lembrei forte, muito forte, da prima Teresa. Ela, na minha memória, com o seu sorriso. Então, livre da sua ausência, eu fiquei pensando que, às vezes, é preciso mesmo olhar pra trás se queremos ir em frente.

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“Primeiras Letras”

Desculpe se eu me intrometo, mas o que voce está lendo? Ah, eu ja li, é uma história muito bonita, o final, então, você nem imagina... não, não se preocupe, eu não vou contar, logo você vai descobrir, faltam poucas páginas pra terminar, não é? Eu sempre fico inquieto quando estou no fim de um livro, me dá um alívio e ao mesmo tempo tristeza, eu gosto muito de ler, desde menino, em Barra do Pontal... Não, fica a trezentos quilômetros de Belém, é uma vila de pescadores, não é fácil chegar, se bem que ja foi mais dif ícil, quando eu saí de lá não tinha ponte, agora vão inaugurar uma, eu soube pela minha irma, quero so ver, estou indo justamente pra la, visitar essa minha irma, foi ela quem me ensinou a ler e escrever... Faz mais de vinte anos que a gente não se ve, estou viajando há dois dias e ainda tenho umas seis horas de viagem, meu corpo dói todo, mas hoje, hoje eu vou encontrar com ela... Na semana passada, eu lembrei muito

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da minha irma, parecia que ela me chamava, que precisava me ver, aí arranjei uma folga na firma e avisei la em casa, Vou visitar a Maria ; minha mulher ficou muda, à beira do fogão, como se olhasse além da água fervendo na panela, mas, de repente, ela disse, Vai, vai, sim... É que do nada eu senti saudades da minha irma, daqueles dias em que a gente dormia no mesmo quarto, criança ainda, e conversávamos um tempão na cama, coisas sem importância, mas que pra nós era tudo, a nossa vida naquela hora; a gente pode esquecer as palavras, mas não o que sentimos, pelo menos é o que acontece comigo, eu so lembro das coisas que eu fiz com as pessoas, quando quero me recordar delas, eu fecho os olhos e busco na memória uma cena que vivemos juntos, eu não sei explicar direito, talvez por isso eu goste de ler tanto, eu vivo procurando histórias que digam o que eu sinto, é uma limitação minha, não saber expressar o que está aqui dentro, é como se a coisa fosse feita pra não ser dita, so pra ser experimentada,

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igual a uma fruta. Uma fruta a gente não explica, quer dizer, a gente até explica, que ela veio de uma árvore, uma árvore que antes foi semente, mas isso não tem graça, uma fruta é pra gente provar, uma fruta é pra gente se lambuzar, carregar o cheiro na ponta dos dedos, não é? Ou talvez seja igual a uma história que nos contam, você logo esquece as palavras, você fica so com a história, com o que ela des pertou em você, as palavras são como roupas, estão ali so pra contornar o corpo das coisas, a gente quer o que está por trás delas, a gente quer é o miolo, aquilo que nós somos, la no fundo... Eu aprendi com a minha irma, quando a gente não sabe o que dizer pra uma pessoa (porque tudo o que poderíamos dizer seria ainda menor do que sentimos), é melhor darmos um abraço nela, isso mesmo, um abraço, um abraço é como uma história, diz por si, diz por nós. Quando eu fui embora de Barra do Pontal, ela me disse uma porção de coisas, mas eu esqueci tudo, daquele dia so lembro de seu abraço, eu esqueci até o que eu disse a ela, quando, pra

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disfarçar minha comoção, fiz um carinho em seus cabelos, so pra dizer o quanto eu gostava dela, e tudo o que falamos se perdeu, e se se perdeu é porque não era mais importante do que dissemos com aquele abraço... Não, ela não é professora, assim, formada, mas tem uma delicadeza pra ensinar, uma calma, eu lembro quando me mostrava as figuras na cartilha, um sol, um gato, uma xicara, essas coisas simples, e eu ia entendendo como é que se escrevia o que ja estava na minha vida, o sol que nascia na beira do rio, o gato da vizinha, a xícara da mãe, e ali, da minha mão, que ela segurava, me ajudando no contorno das letras, nascia o sol, o sol que na folha de papel era um sol sol, porque era o sol na palavra sol, e o gato era um gato gato, e a xícara era a xícara xícara, e eu lembro de sua voz, eu ainda menino, ela um pouco maior do que eu, três anos de diferença, e era uma coisa de muito cuidado o que ela me ensinava, lembro que eu senti como se estivesse abrindo os olhos para o mundo, novamente, pela primeira vez... Outro dia vi a cartilha de um

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dos meus meninos, é bem diferente daquela do meu tempo, mas la encontrei também um sol, uma árvore, uma bola, um dado, um elefante, essas coisas, e acho que não tem outro jeito de aprender, não, a gente sempre começa do simples, do que ja está em nós (e ainda não entendemos). Eu tenho muita saudade da minha irma, e a saudade é como a fome, so acalma quando a gente come, não importa se temos talheres, se estamos sentados, se lavamos as mãos, a saudade, ou a gente devora, ou ela vai mastigando a gente, devagarinho, até ficarmos tão fracos que nem percebemos o que se passa diante de nós, igual a um livro que estamos lendo e, de repente, nos distraímos, e aí quando nos damos conta, estamos umas páginas adiante, deslizamos de uma palavra a outra, mas sem notar os seus sentidos, so escorrendo pelo papel, sem a gente se molhar, sem penetrar na sua pele, sem se enfiar todo no seu rio, e eu gosto daquilo que tira o fôlego, da vida que exige o mergulho, que arrasta tudo pra luz com o seu anzol, da vida que dá saudade do

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próprio instante que estamos vivendo... Sempre no fim do ano, eu mando uma foto dos meninos pra minha irma, presente de Natal, é uma maneira de dizer que estamos bem, seguindo a nossa rotina, e ela também me envia seu retrato, mas não é a mesma coisa que ver uma pessoa de perto, vivendo, diante da gente, igual eu e voce agora, principalmente uma pessoa que conhece o nosso livro sem precisar abrir, é uma coisa tão grande, é um milagre, não é? A vida é tão silenciosa, a gente nem percebe direito que está nela, pelo menos não o tempo todo, mas, se estamos atentos, se sentimos essa dor (sim, é uma dor, uma dor que dói aos poucos), aí descobrimos toda a sua intensidade... Outro dia mesmo eu peguei a última foto dela, minha irmã não se casou, é uma pena, merecia um homem bom, pra seguir com ela até o fim, e olhando essa foto eu procurei naquela mulher a menina que me ensinou a ler, e aí, como se tivesse aberto uma represa, tudo voltou, e de repente ela estava ali, e parecia que esses anos todos não tinham se pas

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sado, e la estava eu ao pe dela, feito um menino à sombra de uma árvore, ela sempre antes de mim no mundo, cuidando pra eu sofrer menos, pra aprender logo, e eu recordei todos os dias que vivemos juntos, num so instante, um instante que era como uma enchente, e a sua imagem, como um punhado de areia, ia escorregando pelos meus dedos, escorregando, mas consegui reter um grão, e aquele grão era um tesouro, e aí me deu vontade de dizer tudo o que eu sentia por ela, essa vontade que so temos quando estamos longe, e eu pensei, Porque esperar mais?Daqui a pouco vou encontrar ela, com essa seca vai ser dif ícil cruzar o rio, tem muitos bancos de areia, às vezes, em alguns trechos, é preciso carregar a canoa nos ombros até onde as águas voltam a ser profundas, mas não importa com quantas barreiras eu vou me deparar, a maior eu ja passei, quer dizer, quero so ver quando eu estiver diante da minha irmã, nós dois, frente a frente, depois de tantos anos, cheios de tempo em nosso corpo, lembranças em nosso olhar, histórias em

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nossas mãos... Pois eu vou dizer isso a ela, vou dizer tudo com um abraço, e aí vou ficar olhando pra ela como um pescador que mira as ondas, sabendo que pode ser a sua última saída ao mar, e aí vou esperar ela dizer o que sente por mim, usando outras palavras, Senta aqui, vou coar um café , não repare a bagunça, sem saber o que fazer com a sua felicidade (e eu com a minha). E eu vou entender tudo, vou entender o que cada um de seus gestos quer dizer — afinal, eu aprendi a ler com ela.

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José Castello

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“A distância de Lagos”

Quando chamei um táxi, o violoncelista se aproximou e disse: “Para que um carro, se Lagos é logo ali?”. Olhei para o gerente, que também me olhava, mas sua expressão era indecifrável. Por isso continuei a ouvir o músico. Para chegar ao Jardim das Telhas, bastava descer a estrada em direção à represa, tomar a segunda ponte e atravessar uma pequena planície, ele detalhou. Um pouco mais à frente, eu encontraria uma igreja com um relógio invertido, em que os ponteiros giram ao contrário. Ali é o centro de Lagos, ele disse. O jardim, que guarda a mais bela coleção de cactos da província, começa logo depois. Em vinte minutos de caminhada lenta você estará la, o violoncelista me garantiu. Para que um táxi, se pode fazer um pouco de exercício?

Dispensei o carro e comecei minha caminhada rumo a Lagos, a vila histórica dos Entalhadores, local da chamada Revolta das Facas. Sou curioso a respeito de cidadezinhas

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perdidas, que os turistas costumam ignorar. Lendo os discursos de Plácido, aprendi a preferir o desprezo à grandiloquência. No Jardim das Telhas, voce entenderá por que os entalhadores lutaram pela independência, o violoncelista me disse ainda. Se sair agora do hotel, chegará em menos de uma hora. Não vale a pena? Andei durante meia hora, observando as iguanas que cruzavam o caminho, e não vi ponte alguma. Até porque, uns cinco minutos depois de minha partida, o rio se lançou para um lado e a estrada, inesperadamente, como se dele se esquivasse, deslizou para o outro. Mas so havia uma estrada, a rota menor que, depois de Lagos, se embrenha no deserto e ruma para o norte; em consequência, eu não podia estar na direção errada.

Depois de se afastar do rio (mas não era na represa que o rio devia desaguar?), a estrada menor descia em ziguezague irregular, coberta de cactos com as folhas dentadas, e rumava, insegura, em direção à planície. Talvez

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no meio do trajeto ela retomasse seu curso, eu pensei, e enfim eu chegaria à represa. Não havia placas, ou qualquer sinalização, apenas uns postes escuros. Eles não tinham luminárias, de modo que, com aquelas curvas desprovidas de acostamento, seria quase impossível viajar durante a noite. So que ainda era de manhã. Não devo me deixar tomar por pensamentos descabidos, pensei. E tratei de olhar para a frente e seguir.

O violoncelista, que chamam apenas de Zuto, vive na Cidade de Quevedo, mas nasceu em Lagos. Além disso, passa grande parte do ano na região, recolhido em um sítio sem luz, onde trabalha em suas composições. Por que iria se enganar, ou me enganar? Talvez fosse um homem de hábitos atléticos e por isso considerasse a distância que nos separava da vila quase desprezível, eu pensei. Mas, com aquelas mamas femininas, retidas em um colete de cetim, e ainda com aqueles lábios de glutão, ele tinha, ao contrário, a aparência de um sujeito indolente. Uma hora, ele disse: mas

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eu ja andava há quase duas. E olha que eu caminhava rápido, com passadas cada vez mais largas, usando o fôlego que acumulei praticando Tue Wu. Que estúpido fui, por que não chamei um táxi? Por que confiei nas palavras do músico? Ia pensando coisas assim quando avistei, bem na borda da estrada, um vendedor de galinhas. As aves, muito nervosas, se jogavam contra a armação de arame que sustentava os caixotes, como se desejassem dançar. Sobre a mesa, havia uma balança, um facão de açougueiro e uma tigela cheia de sangue. Eram garnisés, brigonas e tagarelas; mas, quando me aproximei mais um pouco, talvez temendo a sombra desconhecida de meu corpo, elas silenciaram. Parece que gostaram de você, o vendedor de galinhas comentou, sem muito entusiasmo. Pouco entusiasmado eu também com o elogio, perguntei quanto tempo faltava para chegar a Lagos. Uma bobagem, ele respondeu. Está vendo aquela árvore alta, de copa arrebitada, que se destaca na paisagem? Pois é logo depois. E falou com tanta convicção

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que preferi mudar de assunto. O senhor vende muitas galinhas? perguntei então. Aqui ninguém se interessa por galinhas, ele respondeu. Agachou se, escolheu uma ave mais gorda, que lembrava uma coruja, e a pegou no colo. Não desista, ele me disse ainda, enquanto acariciava a garnisé. Voce logo chegará. E beijou a galinha no bico.

Pois continuei a andar e nada. A vegetação, é verdade, foi se adensando, o que contrariava a descrição que me fora oferecida pelo guia turístico oficial da Província de Quevedo. Já não parecia mais um deserto. Talvez eu ja estivesse no jardim, pensei, so que aquilo também não parecia um jardim. Em vez de subir, como ele dissera, a estrada continuava a descer. Logo depois da tal árvore, que deveria me servir de marca, havia uma infinidade de outras árvores, muito semelhantes entre si. Não demarcavam coisa alguma.

Ao contrário, repetidas e iguais, dispostas de modo desordenado na paisagem, anulavam qualquer sentido de direção. Voltei a procurar por alguma placa que indicasse o

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caminho para Lagos. Mas era uma estrada antiga, quase abandonada depois da construção da perimetral norte, e além de tudo muito feia. Atrás de mim, ainda ouvi a zoeira das garnisés que, sem a minha presença, recomeçaram a gritar. À minha frente, depois das árvores em fila indiana, so uma vegetação muito seca, na qual a estrada menor, num traçado inseguro, se enfiava. Talvez fosse melhor voltar para o hotel, pensei. Amanhã tomo uma charrete emprestada e venho. Mas, contrariando esses pensamentos, meus pés continuavam a marchar. E eu os segui.

No meio desses pensamentos, um trovão espocou no horizonte. Vi quando nuvens grossas, como travesseiros, se enfileiraram ao longo das copas, bem na direção de Lagos, ou onde Lagos deveria estar. Ainda essa, pensei. E, se chover, não terei como me proteger. É verdade que a terra seca não confirmava a possibilidade de chuvas. Em Lagos, me disseram, a população vivia em grandes dificuldades, os poços vazios, as flores murchas, as caixas d’água transforma

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das em dormitórios para cabras. Não ia chover, me acalmei. Eram so raios perdidos, a estourar a muitos quilômetros de distância. Até que uma bala passou bem a meu lado. Foi por pouco.

Ouvi quando alguém gritou: “Agora para o norte!”. Ouvi galopes de cavalos, mas fui tragado por uma nuvem de poeira e nada mais pude ver. Outras balas cruzaram o espaço que me separava da vila. Ainda não disse que, antes de ter esses pensamentos, joguei-me no chão, a cabeça protegida pelos braços em cruz, o gosto de areia na boca. “Vamos avançar!”, outra voz ordenou, mas eu nada via. Ouvia os galopes, ouvia os gritos, sentia a proximidade do desastre, nada mais. Vou morrer pisoteado pelos cavalos, pensei. Mas logo os gritos vigorosos silenciaram. Quando dei por mim, estava deitado no chão quente, os braços e as pernas esparramados, a pose de nadador em meio a um mergulho no nada. Custei a me erguer, não por fraqueza, mas por medo.

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Andei mais um bom tempo até encontrar o Casal Silva. Assim, como dois seres acoplados, eles são conhecidos nas imediações da represa. O Casal Silva tem muitos filhos, todos sujos, magros e com barrigas desproporcionais. So comem farinha e macarrão. “Pobre homem”, a senhora Silva comentou antes de me oferecer uma concha de água barrenta. Amparando me, o Sr. Silva me levou para seu casebre e me estirou numa cama. Dizem que dormi mais de doze horas. Quando acordei, ja amanhecia. Só então, com uma xícara de cafe nas mãos, relatei meu encontro com a cavalaria. Os Silva me ouviram em silêncio. Depois, dirigindo se ao marido, como se eu não estivesse mais ali, a mulher se limitou a dizer: “Coitado do moço. Mas é melhor não dizer nada”. Não sou moço, ja passo dos sessenta anos. Sim, pobre de mim, eu pensei, voltando a fechar os olhos. Por que preferiam o silêncio?

E agora que estou de volta, estirado em uma espreguiçadeira, à beira da piscina do hotel, posso pensar

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que tive muita sorte. O ônibus para a Cidade de Quevedo parte amanhã, ainda de madrugada. Não devo perdê-lo. De Quevedo, tomarei um avião para Trujillo. Não posso mais me arriscar, não por tão pouco. Foi um sonho, eu bem que tentei realizá-lo, mas não consegui. Não se consegue tudo. A viagem de volta para casa será rápida e confortável, não levará mais que quarenta minutos, pensei ainda mas este pensamento me encheu de aflição.

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Julie Fank

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“Embaraço”

Nunca vi ônibus com termômetro no banheiro, eu precisava era tirar aquilo da parede e colocar debaixo do braço, apesar de saber muito bem em que lugar do corpo a temperatura beirava o caos. Faz um frio la fora, a fronteira passou faz tempo, Assunção não devia ser longe e a dor tinha que parar até lá, ja fazia 3 dias, no quarto, dizem que para. Não para. Mentira do maldito que vendeu essa merda de cytotec , maldita merda necessária, sabia que o homem tem menos dificuldade de comprar o remédio?, dois na boca, quatro na vagina, mas tem que deixar la, o mais fundo possível, avisaram, tô aqui, o mais fundo possível no ônibus, segurando o grito. Essas contrações na velocidade do motorista. Que dor é essa? Lavo minhas mãos compulsivamente. Não podem encontrar nem resquício do remédio. Não vão encontrar, faz três dias,

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digo a mim mesma. No quarto dia, nem a vagina te incrimina. Mas não para de sair sangue, não para. Ali, sozinha, naquele lugar que não parava de balançar, so pensava nele e no que seria capaz de fazer para não perdê lo. Ja sabia até como ia chamar o filho, esse ser despedaçado na minha barriga. Ia se chamar Jonas. Parece ironia depois que descobri de onde veio, os hebreus sabiam o que diziam. Faz décadas que eu tô aqui, o ônibus ja deve ter chegado a Assunção e voltado. Ninguém bateu na porta, ainda bem. Não comi nada. Ou comi? Tem um vazio aqui. Lembro vagamente que antes de entrar neste buraco chamado banheiro uma senhora nativa entrou com uma cesta de chipa. Eu e os meus nem dois reais fomos completados pelo senhor do lado, ainda aceitavam real naquele tempo da estrada. Um saquinho e mais nada. Três horas de viagem ja foram, no mínimo, não é possível.

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Essa dor, essa dor, e esse tempo que não passa. O oco aqui no fundo, o banheiro desabitado, e eu preenchendo esse cubículo inteiro. Acho que o útero é o porão da gente lotado de vozes da consciência pesada.

Não sei quando sento ou fico em pe. Nem sinal do último resquício, so a sensação e o quase. O quase. Nosso corpo avisa. Sei que, mais hora, menos hora, desce um coágulo. Ou qualquer coisa com um pedaço de víscera. A gente se coagula às vezes na vida e se esquece de olhar para frente. Um coágulo. Deve ser viscoso que nem saliva. Morno? Tomara que seja o último, três dias cuspindo coisas por baixo de mim, não aguento. Não sois digno de que entrei em minha morada, era o que eu entendia da missa. Mas agora não adianta rezar, a desobediência veio antes, três dias antes, o tempo dentro da baleia. Não consigo nem me mexer aqui. Se decido lavar as mãos, levanto. Se decido obedecer aos impul

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sos do corpo, sento.

Nunca quis isso. Ainda nem aprendi a morar em mim e ja tenho que dividir apartamento. E se eu sair justamente na hora do sangue escorrendo?, e se eu ficar e a polícia parar o carro e baterem na porta e todo esse sangue aqui?, essa dor. Essa dor. Levanto. Lavo a mão. Não vai sobrar um resquício desse remédio, ô, saco. A essa hora, minha bolsa ja deve ter sido revirada por algum nativo que acha que tô aqui dentro me... ¡Chica! ¿Hace tiempo que estás en el baño, necesita algo?

Apoiou se na pia, não havia espaço para cair, os cabelos ja estavam molhados de suor, tanto quanto estariam em um parto ou numa corrida. A corrida, ela gostava de correr, gostava porque era um esporte solitário. E o esporte nem era parte de sua lista de prioridades, mas como sentia falta. Um ano nessa vida desajeitada, vontades arrastadas para dentro do futuro que deixaria de acontecer. Havia abandonado a si mesma, nenhum vestígio de quem era ou

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quem planejava ter sido. Como se soubesse. Como se se soubesse. Abandonaria a carreira, mas ele, não. E ela, emendada nessa vida sem se desatar, cedeu. Mais um nó. Sem saber como voltar, em silêncio. Esmagada pelos sonhos dos outros e calcificada, sem chance de palpite. Seguia para o lado oposto. Nesta hora, ele ja devia estar no litoral.

Na corrida, não há risco de um problema de comunicação afetar o time, é você com você mesma. Não há como ser interrompida se você fala sozin... ¡Jovencita! ¡Estoy bién, un rato y libero el baño!, grito sem convencer. Ouço qualquer cochicho do outro lado da porta e entendo que há pelo menos dois homens do lado de la irritados com o monopólio do banheiro e tentando adi vinhar o que acontece aqui. Não acontece nada, esse é o problema.

Emparedada, não sei se faço força ou seguro. Como deve ser o parto? Tem mãe que acho que segura so para ter o filho mais um pouco ali dentro. O que era para ter sido um Jonas ficou três dias saindo de mim, agora não posso mais. Não

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Sou nem serei mãe, terei que lidar com isso, sou aquela mulher que vai morrer crua, sem pedaços espalhados por aí, mas em pedaços por abrir mão de alguma coisa que ainda não sabia o que era. É o que ele quer para mim, eu também quero — talvez. So há redenção no espaço do mito. Na vida real, teria sido mais fácil remover com o aspirador. E o medo de médico? Fico velha e não perco. Agora essa dor, essa dor. Essa porra de dor. É tudo egoísmo, eu sei, não posso ser descoberta. Aquelas clínicas todas registram seus dados para te chantagear depois se o médico for pego. A pena para a mãe existe também. E aqui, e se me pararem e verem isso? As coisas só são permitidas nas ruas labirínticas, duas quadras para dentro da avenida principal, de Ciudad del Este. Lá onde um menino te carrega pela mão por alguns dólares, te deixa na porta da loja de cobertores com estoque de farmácia e desaparece sem deixar vestígio. Tenho que aprender com aqueles moleques. Aqui, mais para dentro, deve ter lei. Preciso sair, eu sei. Mesmo sabendo que está

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quase. Quase. Essa dor. Já não tenho mais parâmetro para a velocidade de fora ou de dentro. Para onde sera que vão as coisas depois que puxam a descarga de um banheiro de ônibus? Onde fica acumulada toda essa sujeira? Desisto. Aperto um botão ja sem fôlego que murcha e não empurra nada para baixo. E todo esse sangue? O papel acabou. ¡Por favor, el baño! ¡Un rato, un ratito!, mais aflita e menos convincente. Esse sangue, essa dor, esse ônibus e daqui a pouco eles aparecem com a polícia. Vou sair como se nada tivesse acontecido. A mulher não tem paz nem mesmo quando precisa lidar com um corpo temperamental.

O coágulo! O coágulo Vindo e eu sei que não é um

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coágulo, que é mais que isso, que é um punhado de resto de células, que é você, Jonas, se escorrendo pelo que resta de voce. É você, quebrado e fluido, pedaço por pedaço. Tua vantagem é que você nunca foi um sonho. A gente se adapta. Sento. Ele sai. Mãe, eu me des [colo.

Não tenho muito tempo e o que faço com isso?, a janela emperrada. O ônibus para. Malditos paraguaios. Ligo a torneira e um fio de água. Um fio de água. Ele escorre. Não consigo nem tirar as manchas do meio das pernas. Se eu fechar minha mão e sair carregando, ninguém vai desconfiar. Vai, sim, vai pingar. Cada gota é mais um rastro,

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não vão acreditar na minha desculpa feminina de todos os meses. Ja deixei rastros demais. Fazia tempo que não viajava. Lembro que a embalagem do remédio ta na bolsa com um comprimido para enfiar no caso de... ¡Pronto, basta! Mais uma batida, agora impaciente. Engulo sem mastigar. É, sim, morno, desconfiava. Meu estômago, teu túmulo. Isso é so mais um resto. Por dentro, um berro. Abro a porta. O senhor que gritava me pergunta se ¿todo bién?. Faço que sim com a cabeça e coloco a mão no estômago para sinalizar que a culpa vem dali. O outro senhor não se convence. Respiro, passo os dois, me dirijo à poltrona, sento e agradeço pela bolsa intacta, aquele cheiro de banheiro impregnado em mim.

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Leticia Wierzchowski

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“A História dos Caroços”

Quando minhas irmãs e eu éramos crianças, o pai fazia questão de que comêssemos frutas. Muitas. Ele tinha o hábito de trazer caixas de fruta para casa, enchendo a geladeira de uvas, pêssegos, mangas e ameixas. Eu sempre gostei de frutas, mas era dif ícil dar cabo das quantidades que o pai trazia. No verão, quando a família ia para o litoral, e o pai passava a semana trabalhando na cidade, ele chegava na praia com o carro cheio de frutas, e a nossa obrigação era comer aquilo até a próxima sexta-feira. Nunca dávamos conta... Até que o pai criou o subterfúgio de pagar por caroços e sementes. Talvez hoje, neste mundo asséptico onde o politicamente correto tornou tudo meio chato, alguns torçam o nariz para a ideia do pai mas garanto que, nos anos 80, foi uma sacada genial.

Naquele verão, caroços e sementes passaram a valer grana. Éramos várias crianças — eu e minhas duas irmãs,

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mais os dois filhos do meu tio que passavam as férias conosco. O pai chamou-nos e, muito sério, informou a cotação vigente. Era mais ou menos assim: 20 centavos por caroço de pêssego, 15 centavos por caroço de ameixa. Sementes de uva valiam 5 centavos. A gente deveria comer as frutas durante a semana, guardando os caroços para que o pai nos pagasse proporcionalmente na sexta feira. Nunca comemos tantas frutas na vida! Os caroços viraram a moeda oficial daquele verão: um picole se comprava com três caroços de pêssego, um sorvete de duas bolas necessitava cinco pêssegos, dez ameixas e um cacho de uvas. E a gente dê lhe comer. Meu primo economizava caroços para comprar revistinhas, minha irma torrava tudo em picolés. Na sexta, o pai chegava e, coitado, antes de se estirar na cadeira da varanda, tinha que sentar à mesa da sala e fazer a contabilidade dos caroços (e os caroços eram guardados em sacos, e ali ficavam fermentando durante dias e dias, no calor do verão). Contar aquilo era um nojo e uma trabalheira,

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mas o pai seguia firme. E cada vez trazia mais frutas para casa. Até que um dia a minha prima resolveu juntar sementes para comprar alguma coisa grande, acho que era uma boneca. Era uma guria obstinada, e naquela semana comeu ameixas dia e noite, até que amanheceu na sextafeira com febre, vômitos e diarreia. A mãe ficou fula. Fruta demais soltava o intestino, foi o que ela disse para o pai quando ele chegou naquela tarde com suas ameixas e pêssegos. Diante do estado da sobrinha, o pai capitulou. Recebemos o nosso último pagamento consternados: acabava se ali a mina de ouro. Eu sigo adorando frutas; mas, como naquele verão, nunca mais.

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“A Vida Íntima das Histórias”

Quando eu era pequena, a minha mãe lia para mim todas as noites. Eu gostava muito das histórias, então segurava o sono até não poder mais, e a mãe ali, lendo e lendo e lendo, louca certamente para tratar dos seus afazeres de mãe, de mulher, tomar um banho, vestir o pijama, ver a novela, ler o seu próprio livro. Com o tempo, fui desenvolvendo a artimanha de enganar o sono com as histórias, até que, em contrapartida, minha mãe revidou da seguinte maneira: ela lia meia hora para mim, depois dizia: “Me espera um pouquinho, so vou ali fazer xixi e ja volto”. E saía. Saía e não voltava mais. Então, entediada de mim mesmo, eu dormia rapidinho. Isso foi assim por um bom tempo, até o dia em que aprendi a ler. Que libertação! A minha mãe podia passar a noite inteira nos seus afazeres, eu mesma lia para mim. Eu entrava na pele da Alice, da Sofia (era um livro que eu adorava esse, mas já não lembro mais o

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título), eu me metia la no Sítio do Pica-pau Amarelo, e sumia com o Pedrinho, a Narizinho, a Dona Benta e a Emília. O problema de dormir, no entanto, continuava o mesmo. Eu ficava lendo até a mãe perder a paciência. Eu sempre gostei de fugir para a ficção. Comecei lendo, e depois passei a escrever as minhas próprias histórias. Quando eu começo a escrever, quando mergulho numa história, com que facilidade vou me despindo das arestas de mim mesmo, vou ficando leve, incorpórea, feita de palavras... Eu volto a ter sete anos, mas, em vez de brincar de bonecas, jogo com os meus personagens, deixo eles me guiarem, danço de rosto colado com eles. Escrever é uma alegria e uma danação, é como um desses cãezinhos malucos que correm atrás do próprio rabo quando um livro vai pelo meio, penso nele noite e dia, penso quando não escrevo, penso que deveria estar escrevendo, evidentemente, penso nele enquanto escrevo, e quando termino de escrever, sinto falta da história. Quando eu estou para terminar um livro, faço como a minha mãe fa

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zia comigo, vou ali fazer xixi e ja volto , eu digo para os personagens. E não volto mais. O ponto final ja está la, e os personagens acabam por mergulhar no seu sono. E dormem e dormem e dormem, até que o primeiro leitor finalmente os desperte.

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Luci Collin

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“Nome: Omen”

Inventei um homem que se chamava Almíscar e depois alguém me disse que isso não era nome de gente. Acho que eu tinha lido numa revista, paciência. Então eu mudei pra Cambraia e alguém me disse que isso também não era nome de gente e então eu vim com essa: é o sobrenome. Escapei. Escapei das críticas. Mas agora eu estava pensando, pensando em retrospectiva que na verdade eu nem devia me lixar com esses comentários e nem mudar uma vírgula do que eu tinha inventado antes. Que têm a ver com o homem?

Inventei um homem que se chamava Rim porque eu peguei um dicionário em inglês que dizia que rim quer dizer borda. Achei bonita a palavra rim. Depois, pra não ficar so nas coisas que a gente considera bonito, eu achei importante que ele tivesse uma idade qualquer achei que

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seria maravilhoso se ele tivesse 39 anos porque é bastante mas não muito, quer dizer é o suficiente pra algumas coisas. Depois que eu percebi que eu também queria ter 39 anos mas não tinha. E algumas daquelas pessoas que apareceram criticando la no parágrafo de cima vieram com um papo de que “na invenção há sempre uma parcela de reprodução do próprio desejo da própria pessoa que está inventando a própria invenção” e o resto não lembro mas eu fiz questão de citar com aspas porque é frase alheia e não fica bem se apossar de frase dos outros. Eu não entendi o falatório todo porque de cara eu empaquei na palavra parcela que me pareceu disparatada. Intrigante. Passei o dia pronunciando aquilo parcela parcela parcela. E depois pintei a palavra na parede do quarto primeiro pequenininho parcela e depois médio e depois grande. É uma palavra e tanto. Inventei um homem que se chamava Parcela. É não tenho muita criatividade. Esqueça.

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O homem, eu inventei, deveria ter barba porque se algum dia estivesse com um problema grave um problema gravíssimo como alguém com hectestoplagite na família ou a sogra que vem morar na casa da gente ou a filha adolescente que lascou uma unha ou ainda uma lesma enorme e visguenta que apareceu na sala de visita poderia se trancar no banheiro, pra ganhar tempo sabe como? E dizer Dá licença, gente, que eu tenho que tirar esta barba primeiro. Dá licença, volto em instantes. “Dá licença” porque ele é um sujeito educado, a gente percebe até pelo modelo da barba que ele deixou. E depois fez cortes estupendos naquele rosto macio que não estava mais acostumado ao ato de barbear ao ato delicado e puro de se escanhoar e as mãos tremiam devido ao problema gravíssimo. Aí aparece com a cara cheia de esparadrapos e as pessoas em volta dirão Oh! E outras dirão Oh! Meu Deus! E outros dirão, mais lentamente, Oh Meu Deus do Céu!! E mediante aos talhos comoventes no rosto se evidenciará que

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o problema outrora gravíssimo não era tão nobre assim que amanhã é outro dia que vão-se os anéis mas ficam os dedos que água mole em pedra dura tanto bate até que fura e que a corda sempre rompe do lado mais fraco.

O homem que eu inventei sabia falar latim. Levou anos e anos estudando num quartinho sombrio levando uma vida sombria pra não perder tempo senão não aprendia direito a pronunciar todas aquelas palavras solenes. Segundo relato do mesmo ele aprendeu direitinho. Mas nunca ninguém viu ele de fato falando e nem ele mesmo pôde checar se sabia realmente declinar conforme as regras ou pronunciar tivervorum ou pitombae adequadamente que não fosse com aquele sotaque de la pras bandas de Ijoporuca (cidade natal do dito cujo e onde permanecera apesar do clima ruim) e ele foi até uma cidade vizinha pra falar com um padre que rezava missa em latim esperançoso de encontrar alguém pra praticar a língua com ele e ja chegou perguntando pro padre comisestavat e o indivíduo (o padre)

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ficou olhando com cara de asinorum e nem falava latim coisa alguma: tinha decorado tudo. Ele era uma farsa (o padre). Era um padreco, não passava de um padrusqueta desses por aí, a paróquia toda ficou sabendo e as senhoras horrorizadas quiseram até tirar o cara (o padre) do posto alegando falsidade ideológica mas não deu quorum. E sera que ele (o homem) não era uma farsa também? Foi o que ele pensou depois daqueles anos todos passados em vão não podia nem mesmo saber se era uma perfeitíssima farsa. Quantos bailes não idos quantas valsas não dançadas quanta noite insone decorando figus figuae trimera trimerae pritricus pritricae quantas cervejas que jamais tomara quanta besteira tinha deixado de dizer. Agora ia pro resto da vida (um restinho que sobrara) ter que sonhar tudo na língua desconhecida. Condenara-se à condição de homorum hominorusquiat . O que talvez pudesse ter sido bem pior se tivesse se dedicado ao sânscrito. Quem sabe.

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Quem sabe inventei um homem que era uma verdadeira piada. Primeiro que a barba era postiça. E a palavra postiça dá margem a muitas outras associações cerebrais por exemplo: filho postiço, da famosa expressão Tal pai tal filho postiço. Ou dente postiço. Da usual expressão Olho por olho, dente postiço por dente postiço. E se eu errar a digitação: postigo. Naquele livrinho da Condessa de Ségur a menina morava num sótão gelado na França e tinha um postigo. Foi a única situação real da minha vida em que me confrontei com a palavra postigo. E agora me lembrei da palavra prestígio, essa sim tem uma vida digna de ser contada. Todo mundo fala: fulano tem um prestígio e nooor me tenho prestígio entre os membros da Cúpula o Alpheu tem prestígio com os carinhas que têm prestígio la na Corregedoria. E eu fiquei pensando se vou adquirir um certo prestígio inventando um homem que é uma farsa. Farsa pura: primeiro que a barba era espessa demais pra ser verdadeira. E o nariz muito bem desenhado e nunca escorria.

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E os dentes sorriam sem o menor esforço. Na medida certa.

E depois inventei uma coisa engraçadíssima mas não vou contar. Não vou conseguir contar porque eu sempre rio na metade da coisa e não tem nada mais chato do que alguém contando uma coisa engraçada e rindo misturado com a coisa que a gente está esperando ser contada e a gente fica olhando o idiota e pensa Como é idiota. E no meio da coisa a gente também pensa Estou fazendo papel de idiota. Esse homem que eu inventei que era uma farsa esse sim alcançou um prestígio enorme inventando frases filosófico filológicas que podiam ser usadas em várias línguas. Consagrou se com a máxima É a vida. That’s life . C’est la vie . Hasta lavista . Mas vá la: Rim Almíscar y Cambraia, um tipo de homorum , nunca foi a um baile em sua vida, nunca jogou conversa fora, nunca bebeu um hifi quanto mais dois mas mesmo assim casou-se (sabe-se pela presença de uma sogra num dos parágrafos anteriores) e um dia retalhou sua própria cara

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tentando fazer uma barba falsa que descobriu que nunca tinha sido sua, paciência. Foi um susto quando olhou pro próprio rosto no espelho lisinho macio (o rosto) liberto da pelagem intensa uma maravilha se não fos sem os pontos em vermelho. Vermelho escorrendo. É, até que é um sujeito boa pinta! É, ali pra vidinha pacata de Ipojoruca, até que conseguira um certo prestígio naqueles 39 anos de vida, uma família até que saudável apesar da filha com unhas fracas, casa com postigo e tudo, aquela empresinha modesta mas que estava indo bem, especializada em eliminação definitiva de eventuais lesmas nojentas em salas de visitas finas. Vinha prestando um serviço à comunidade. E no domingo ia na missa so pra ver o padre falando naquela língua bonita. Sabia de cor alguns trechinhos (ele mesmo e não o padre). E depois, era considerado um intelectual, desde que no batizado da Thaíseleyne, filha do prefeito, ele pedira a palavra e dissera: A vida é uma sucessão de alegrias, fringências e desprantamentos. O que é a vida do homem

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senão um sermício de obnivolências? Um longo esmático de implacidices frângicas que nos vliquêiam nos momentos de infúncias? O prefeito quase chorou. E a dona Adelaide Eumira, professora do Grupo Escolar Dr. Adherbaldo Matta, disse pra todo mundo Foi o melhor aluno que tive em toda a minha lida no magistério!

Um homem inventou se. E todos pensarão que é brincadeira. E todos dirão que, faça-me o favor, falta alguma coisa essencial neste arremedo de escrito. Aliás, convenhamos, falta muita coisa de essencial! Sejamos francos. Perdemos um tempo importante das nossas vidas lendo besteiras inconsequentes. Coisa insalubre. Coisa insensata. Coisa nefasta e nefanda. Exclamações. Ao que responderei: Ô, gente! Sai pra la! Quer saber uma coisa? Eu vou pagar o preço pela piadinha. Mas me diverti desde o título, ta certo que perdi um pouco o fio da meada quando bateu o telefone e era o Geraldo e eu tava naquele afa criativo. Podia ter sido mais engraçado mas não era pra ser

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engraçado. Eu inventei um homem. So isso. Inventei um homem e depois um sobrenome uma cidade um padre uma idade importante lesmas em dois momentos do texto um prefeito e uma professora e ainda consegui encaixar a palavra postigo que eu tinha sempre vontade de colocar no papel eu irritei meio mundo com aquela coisa toda de parcela parcela parcela. (Coisa nefária e infanda). Eu irritei aqueles que usam corretamente as normas para o emprego correto das “aspas”. Eu irritei profundamente os críticos. Principalmente os que dominam a nossa língua. E o resto.

O homem que eu inventei não é homem de negócios nem homem de sete instrumentos. Não é sequer um homem de letras. Porque falta uma. O homem que eu inventei não é nem de longe um homem daqueles com agá. Que assim seja: Omen.

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AUTORES

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Bernardo Carvalho

Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1960. É escritor, jornalista, dramaturgo e tradutor. Publicou, entre outros, os romances Nove noites, Reprodução e Simpatia pelo demônio , todos pela Companhia das Letras. Ja recebeu os prêmios Jabuti, APCA e Portugal Telecom. Tem livros publicados na França, Estados Unidos, Espanha, Portugal, Itália, entre outros países.

B Kucisnki

Nasceu em São Paulo (SP), em 1937. Publicou obras sobre economia, política e jornalismo e foi assessor da Presidência da República entre 2003 e 2005. Sua estreia na ficção com K: Relato de uma busca aconteceu quando ja tinha 74 anos. É autor, entre outros, de Os visitantes, Alice e Você vai voltar pra mim .

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Jo ã o Anzanello Carrascoza

É escritor e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e da Escola Superior de Propaganda e Marketing. Publicou os romances Caderno de um ausente , Menina escrevendo com pai e A pele da terra , que compõem da Trilogia do adeus , e várias coletâneas de contos, entre as quais O volume do silêncio , Espinhos e alfinetes e Aquela água toda . É também autor de obras para o público infantojuvenil. Recebeu os prêmios Jabuti, Fundação Biblioteca Nacional, Associação Paulista de Críticos de Arte, Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil e os internacionais Radio France e White Ravens (Library Munich).

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Jos é Castello

Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1951. Escritor e jornalista, é autor Vinicius de Moraes: o poeta dapaixão, Na cobertura de Rubem Braga, O inventário das sombras, A literatura na poltrona e do romance Ribamar , ganhador do prêmio Jabuti em 2011.

Julie Fank

É escritora, artista visual e diretora fundadora da Esc . Escola de Escrita. É doutoranda em Escrita Criativa pela PUC RS .

Tem contos e poemas publicados em periódicos como RelevO , Arte&Letra: Estórias , Escrivae Raimunda .

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Leticia Wierzchowski

Nasceu em Porto Alegre (RS). Estreou na literatura em 1998 com o romance O anjo e o resto de nós. De la para cá, ja publicou outros 27 títulos de ficção adulta e infantil, entre eles, A casa das sete mulheres , que deu origem a uma série da Rede Globo veiculada em mais de 40 países.

Luci Collin

Nasceu em Curitiba (PR), em 1964. Poeta e ficcionista, tem 16 livros publicados, entre os quais Querer falar (finalista do Prêmio Oceanos), Nossa Senhora D’Aqui e A árvore todas (contos, 2015). Participou de antologias nacionais (como Geração 90 os transgressores e 25 Mulheres que estão fazendo a literatura brasileira) e internacionais (nos Estados Unidos, Alemanha, França, Uruguai, Argentina, Peru e México).

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