esquerda desse rio. Durante muitos, muitos séculos, aquela comuni dade krenak cultivou o relacionamento com essa entidade do rio, can tando para ele, dançando para ele, vivendo sua existência e presença, até que ele foi colapsado por um desastre, por um crime ambiental, que ainda está sem resposta quatro anos depois do evento inicial, que foi derramar lama de mineração sobre o corpo do rio, numa extensão de seiscentos e tantos quilômetros. Na nossa família, tem pessoas que vivem essa conexão com o sonho de uma maneira muito sensível e consciente. Uma das mulheres de lá da nossa aldeia, quando todo mundo ainda estava impactado com o isolamento do rio – e ele está em estado de coma, sem acesso para as pessoas –, foi despertada por uma visão dentro do sonho (porque tem mais sentido com a ideia da visão do que propriamente com a experiência do sonho) em que viu, ouviu o rio chamando por ela. Ela estava dormindo, de madrugada, e ouviu o rio chamando por ela. Ela despertou do lugar em que estava, dentro do sonho, e foi até a margem do rio, que estava interditado – tem uma cerca de 19 quilômetros que separa a aldeia do rio. Ela transpôs a cerca, transpôs a margem interditada do rio, chegou na beira da água, daquele material líquido e, assustada, disse: “Eu não posso entrar aí”. O Watu falou: “Pode saltar. Salta!”. Ela obedeceu a ordem do Watu e saltou. O primeiro sentimento do corpo dela foi de atravessar aquele material denso, aquela lama, pesada, com dificul dade. Depois, quando ela estava atravessando as lajes de pedra, ela foi apanhada por um fluxo enorme, uma pressão imensa de água pura e limpa, subterrânea, que capturou o corpo dela e o levou para viajar naquele mundo de água. Uma água com vitalidade, com potên cia, cheia de vida, cheia de peixes. Ela nadava, o corpo dela estava no meio dos peixes, dos seres das águas, numa velocidade absurda, incomum. Quando ela despertou dessa visão, estava dentro de casa, na cama dela, perto da mãe, que tinha sofrido um choque tão grande com a lama chegando no rio que tinha adoecido e perdido a fala; era levada diariamente para o terreiro, botada ao sol, para se curar. Ela contou de manhã cedo para a mãe a visão e a mãe sarou, agradeceu a filha e disse: “É isso mesmo, o Watu veio me curar, ele te chamou pra você ir lá, você é o meu curativo”. Então, essas experiências de troca com os não humanos é proporcionada pela montanha, pelo rio, pela floresta. Às vezes, você está em algum lugar, num estado de contem plação, e uma planta fala com você. Uma plantinha rasteira fala com você, um arbusto, uma árvore, uma palmeira. Eu já experimentei e continuo experimentando essa troca com não humanos; ganho muito com essa troca. Experimento isso na perspectiva de sujeito coletivo e isso amplia minha subjetividade; ao invés de consumir, reduzir, ele amplia. Ele torna a sua experiência
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