da câmera e arranca a toalha com que a "vítima" esconde suas partes pudendas. No curso desta vivissecção lenta e minuciosa, o homem, tendo desfrutado os prazeres e enfrentado os perigos do oceano amniótico, é acossado, encurralado e agilmente desmembrado, literal e metaforicamente, por u ma predadora terrestre.
Só me interessa o que não é meu ... Em seus respectivos projetos, Lowe, Adams e Moffatt exploram aspectos daquilo que eu denominarei "síndrome de coração das trevas", a forma de sentimento psicótico tão vividamente articulado e dramatizado nos primeiros encontros históricos entre homem branco e "selvagem", subseqüentemente fantasiado na literatura e filmografia enlatadaaquele efeito de adrenalina provocado pelo não saber, pelo medo de ser diferente e enxergar de modo diverso em espaço alheio. As narrativas de primeiros contatos são em grande parte histórias violentas, uma implosão em espiral que transforma esse sentimento conflitante em formas mais sutise sinistras de desejo esquizóide, a impulsionarobjetivos de longo prazo de controle, possessão, assimilação e destruição-a apropriação do "canibal", a partirde sua estrutura cultural específica, pelo "civilizado" de modo a permitir-lhe atos de violência e promiscuidade sem limites. Só me interessa o que não é meu ... Por outro lado, enquanto reconhecem a presença do estranho em si próprios como condição imanente, os artistas criam contextos dinâmicos, de performance e de confrontação, por meio dos quais exploram esse mesmo sentimento ao invés de tentarem defini-lo e fixá-lo no espaço estático e distendido da história. E, ao converter suas contradições inatas em vez de coibi-Ias, lançam o sentimento como um discurso fértil e ativo nos espaços infinitamente contestados de terra e corpo. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Bem no espírito de verdadeiros canibais modernos, nossa curadoria apropriou o título de sua seção do manifesto visionário de Oswald de Andrade, que reivindicava uma cultura brasileira nativa e moderna. Outros excertos do manifesto aparecem ao longo do meu textoS. Minha reação instintiva à topografia escarrapachada de nossos roteiros exploratórios, no conceito abrangente de antropofagia, foi tratar a Oceania como um projeto de história espacial e corpórea, uma entidade antropomorfizada que havia se transformado no próprio objeto antropofágico, ou seja, aquilo que estava sendo canibalizado. Este raciocínio reflete a idéia de que todos nós temos uma relação de consumo com a terra que habitamos, em virtude de nossos desejos e ações. Em outras palavras, somos todos "devoradores do futuro"6. Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente ... Poder-se-ia até mesmo sugerir que a terra não existe até que seja reconhecida e se torne objeto de ações, até que entre para a linguagem. Assim, a história de uma terra é uma história intersubjetiva do quão diferentemente as pessoas se comportam na paisagem e a respeito desse fenômeno, e do conflito que surge do fato de pessoas habitarem um mesmo lugar, de modos diferentes. A obra fundamental de GeoffLowe, Tower Hill [Monte Torre] (1g84)-produzida na mesma época que o ciclo de pinturas Ten famous feelings for men [Dez sentimentos famosos para homens], o qual inclui Impersonation-originou-se de sua fascinação com Tower Hill, morro de primordial beleza situado na região agrícola de Victoria, desnudado para receber culturas aráveis no final do século XIX, e que mais de um século depois foi reflorestado, tendo como modelo a paisagem original reproduzida pelo pintor romântico austriaco Eugene von Guerard. Como resposta a essa extraordinária caixinha chinesa? de arte e vida-a reconstrução de uma paisagem natural com base numa representação evidentemente resultante do modelo interior do próprio artista imigrante do século XIX, o qual assimilava nos termos formais que conhecia a paisagem alienígena diante de si-, Lowe convidou Greg Page, artista que vivia de pintara óleo e in loco paisagens do cotidiano, que vendia diretamente do cavalete para excursionistas de fins-de-semana, e seu equivalente urbano e pós-moderno, Tony Clark, que à época conduzia uma investigação acanhada de temas de paisagens históricas, para colaborar com ele num grande trabalho de
44 XXIV Bienal "Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros."