o ARTISTA PLÁSTICO FLÁVIO
CARVALHO
Rui Moreira Leite
A obra plástica de Flávio de Carvalho encerra complexidade considerável. Marcado pelo expressionismo e surrealismo, ele exerce sua atividade sob o signo da inquietação e da procura, mantendo-se como "uma curiosidade estética disponível" (1). Em 1932 realiza experiências surrealistas próximas às de Arp e Picabia; desenhos seus de dois anos mais tarde revelam a familiaridade com Matisse, que transparece ainda no Retrato de Marion Konder Schteinitz, de 1938. A intensa vibração colorística dos retratos, somada à deformação das figuras, leva a considerar o expressionismo alemão, e talvez Nolde e Kokoschka, como ponto de partida. Nesta visão retrospectiva de seus mais de cinqüenta anos de dedicação às artes plásticas, cabe destacar a unidade profunda de seu trabalho, moldada pelo equilíbrio tenso e pela densidade nascidos da busca de um estilo (2) • Flávio de Carvalho pertence à segunda geração modernista. Sua formação é marcadamente européia. Ainda antes de iniciar estudos na França, seu interesse pelo desenho é despertado por revistas de ilustração inglesas O ). E é na Inglaterra que, como estudante de engenharia civil, passa a freqüentar o curso noturno da King Edward the Seventh School of Fine Arts. No regresso, afirma sua presença entre os modernos de São Paulo pela participação nos salões e como organizador de exposições e conferências. Realiza, no entanto, uma obra à margem do grupo, recusando qualquer compromisso com a concepção nacionalista em voga, optando firmemente pela investigação pessoal. Até o início dos anos 30, sua atividade como artista plástico é conhecida apenas através da imprensa, por ilustrações e projetos de monumentos (4) publicados, sem regularidade, a partir de 1927. Em 1931 expõe, pela primeira vez, no Salão Moderno da Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro. Em 1934, apresenta-se no 1.° Salão Paulista de Belas Artes e, em junho desse mesmo ano, inaugura sua primeira individual, mostra que reúne 131 trabalhos e que se transforma em escândalo artístico-policial. Segue em viagem para a Europa, onde permanece por cinco meses, realizando contatos com artistas e freqüentando museus e galerias. O retorno ao Brasil é marcado em especial por sua participação nos Salões de Maio,
quando contribui de maneira para a vinda de obras importantes do exterior. Expõe com regularidade em mostras coletivas, até provocar novo impacto, em 1948, com vigorosa individual no Museu de Arte de São Paulo, posteriormente exibida em Buenos Aires. A partir de então, estabelecidas em São Paulo as primeiras galerias de arte moderna, passa a dispor de espaço com certa freqüência. Seguem-se novas individuais no exterior: Roma, em 1956, e Paris, em 1958. O reconhecimento chega tardio com a premiação atribuída pelo júri internacional da 9. a Bienal de São Paulo, em 1967. De seus estudos na Inglaterra conservam-se desenhos e pastéis, cujo interesse é apenas documental, à exceção de Cabeça do Meu Modelo (1918), que se destaca pelos traços esfumados e uso de um cromatismo intenso, atenuado já em Retrato de Marina Crissiuma (1922), realizado logo após seu regresso ao país. Auto-retrato (1923) insinua a vibração dos trabalhos posteriores, fazendo uso do empastamento e do relevo obtido pelo uso de um pincel sem pêlos. A aquarela tem certo destaque nos trabalhos dos anos 20, possivelmente por permitir que o artista a ela se dedique nos intervalos de seu trabalho como calculista. Retrato (1925), Retrato do Eng. Silva Neves (1928), Mulher Sentada Esperando (1928) são representativas do momento em que a delicadeza irá cedendo lugar ao vigor e à deformação (5) • Desse período são as ilustrações que realiza para comentários sobre espetáculos de bailado publicados na imprensa, em que combina a linearidade com a sugestão do movimento. O início dos anos 30 caracteriza-se pela confluênd~ de estilos que marca em definitivo a produção de Flávio Carvalho. Realiza trabalhos de nítida filiação surrealista, bem como retratos e nus expressionistas. Entre os primeiros situam-se as ilustrações de Experiência n.O 2 e os óleos A Inferioridade de Deus (1931) e Ascensão Definitiva Cristo (1932). A Inferioridade de Deus remete diretamente às ilustrações. Ao centro, a cabeça, definida por traços em rosa, apóia-se em uma superfície redonda, da qual emerge, imensa, uma perna, cujo pé está sobre o degrau de uma escadaria que leva a um ambiente urbano, sugerido por silhuetas de edifícios e um lampião, do qual se avoluma enorme chama à direita da composição; à esquerda, um vazio cinza com uma forma geometrizada em negro.
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