o prumo como consciência da gravidade, e a massa como corporeidade. Esse corpo mínimo não é uma descarnação, mas a busca extrema onde signo de presença e economia absoluta se confundem. Giacometti opera uma espécie de economia fenomenológica. Alain Cuefffala de seu endocanibalismo, porque é eqüidistante da experiência literal e da especulação metafórica. Michelleiris celebrou sua escultura com "iguarias de pedra, comidas de bronze maravilhosamente vivas". Uma obra de José Resende promove o diálogo da escultura contemporânea brasileira com Giacometti. René Magritte é singularem sua capacidade de dialogarcom o espectador justamente por aquilo que poderia afastá-lo do público: o estranhamento. Sua pintura fascina ao desafiare canibalizar a lógica do olhar e operar sobre as fantasias mentais, superando os limites da racionalidade. Algumas obras tratam das metáforas políticas e psicológicas de devoração. Em Magritte, as palavras negam seu significado e se chocam com as figuras a que erroneamente pareciam corresponder. Didier Ottinger com a obra de Magritte propõe questões epistemológicas e a colagem tem parte com o canibalismo, tendendo a fundir os registros formais e semânticos mais heterogêneos. Nossa mostra conta com o apoio dos Musées Royaux des Beaux-Arts da Bélgica no ano de centenário do artista. Matta aparta vitalidade ao surrealismo, que se esgotava pela banalização de seus jogos visuais. Justo Pastor Mellado, cu radar de Matta, trata da morfologia da oralidade e sua relações com a geografia e a sociedade do Chile. "Quando pinto uma tela, pinto à minha volta; tentei agir como se estivesse situado no centro do cubo e do quadro, em lugarde ser umajanela diante de mim, eram os seis lados de um cubo", diz Matta no catálogo Lam, Matta, Penalba-Totems et tabous (Musée d'Art Moderne de la Ville de Paris, 1968). Em sua pintura, o cubo, poderíamos dizer, é o estômago do mundo. Pintar é digerir. A obra de Matta se marca pela gestualidade aparentemente brutal e selvagem, testemunho da capacidade do indivíduo em lidarcom os fantasmas do inconsciente. Seu discurso visual é jorro de imagens, gozo, em que a paisagem monumental do Chile tomaria caráterde escritura da fantasmática. Paisagens bizarras, máquinas interplanetárias e indivíduos que parecem aterrissar de outras regiões galáxicas-tudo está mais próximo do universo contemporâneo das devorações do homem pela tecnologia e dos indivíduos por meio do desejo. Para a curadora Mari Carmen Ramírez, David Siqueiros é um dos três grandes formuladores de um projeto de vanguarda para a América Latina, ao lado de Torres-García e Oswald de Andrade. Sua teoria da arte envolvia a valorização da cultura nacional, das civilizações nativas e das conquistas tecnológicas. Em sua obra já não há uma vítima da apropriação. Siqueiros se apropriou do cinema de Eisenstein, que se marca pela arte mexicana. Sua obra realizada na prisão transgride os cânones da pintura. Filiado à ideologia marxista, Siqueiros oferece exemplos da idéia de canibalismo como metáfora da exploração econômica da mais-valia, a diferença que o capital obtém sobre o trabalho, uma espécie de expropriação voraz da energia do outro. A tela A barca do fascismo, impregnada de política, remete à Ajangada da Medusa, de Géricault, uma arte não desvinculada das lutas sociais de seu tempo. Francis Bacon é pintor da condição humana. É daqueles pintores que, como diria Valéry, "trazem seu corpo" à pintura. A figura humana emerge como conversão da materialidade da pintura em fenomenologia da carnalidade e hipótese extrema do figurai, conforme analisa Deleuze. Seríamos também pintura. Bacon captura os limites físicos do corpo humano, a realidade finita da carne, a violência dos sentidos e da fusão dos corpos. A curadora Dawn Ades discute os modos antropofágicos de Bacon (as apropriações de Eisenstein, Muybridge, Velázquez, Manet e van Gogh, e de imagens banais), sua relação com o canibalismo via Elliot.
30 XXIV Bienal Núcleo Histórico Antropofagia e Histórias de Canibalismos