Paulo Herkenhoff
Introdução geral Que ualor tem para ti meu desejo? Questão eterna que se põe no diálogo dos amantes 1 • Éramos capazes de atrocidades muito piores 2 -Que fantasma é esse que emerge nos momentos de maior plenitude do desejo? Que metáfora é essa que simboliza terrível medo da alteridade? Este texto revela os parâmetros curatoriais adotados na constituição do Núcleo Histórico da XXIV Bienal de São Paulo. Nunca pretendemos uma visão totalizadora ou triunfante da questão da antropofagia. A curadoria da XXIV Bienal de São Paulo iniciou-se com a tomada da "espessura do olhar", na linha de Jean-François Lyotard em Discours, figure, como conceito operacional deslocado para a idéia de densidade. A espessura não deveria estar apenas na arte (muito menos seria sua ilustração como "tema"), na ação dos curadores e, sobretudo, na instituição. A idéia de Núcleo Histórico indica uma pauta, diferente da tradição das "salas especiais". Abdicamos das idéias de status ("especial") ou territorialização ("salas"), porque carecia definir nosso debate histórico concreto, integrado por critérios conceituais efetivamente desenvolvidos em termos de forma de olharem exposição e texto. A XXIV Bienal toma sua posição frente à disciplina da história da arte. Compreendemos com Giulio Cario Argan que história e crítica contemporânea não prescindem uma da outra, de modo que não deveria haver cisão no contexto da Bienal. Também reconhecemos a multiplicidade dos fios da história e que, no caso da arte, a postura eurocêntrica, com sua orientação hegeliana, havia criado parâmetros excludentes no circuito da arte. Nossa opção, na negociação dos empréstimos de obras, implicou um debate com di retores de museus que tradicionalmente negam empréstimo para exposições temáticas, contrapostas a mostras históricas, que agregam conhecimento novo. Os curadores da Tate, do Pompidou ou do MoMAjá conheciam a antropofagia e puderam mais facilmente compreender seu sentido histórico dentro da perspectiva da formação cultural do Brasil. A abertura conceituai, para aceitar uma história outra da arte, foi a posição do Louvre, do Orsay, do Besançon e do Prado. Muitos compreenderam aquele "diferenciai" da cultura brasileira 3 , alguns não. O Núcleo Histórico deveria partir de uma visão não eurocêntrica. Qual o momento denso da história da arte no Brasil? O conceito de "espessura" demarcava respostas: barroco, modernismo, neoconcretismo ou anos 60/70. O modernismo ofereceu uma resposta desafiadora: a antropofagia. O movimento que toma corpo em São Paulo em 1928 com Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade se espalha no tempo pela cultura brasileira enquanto estratégia de emancipação cultural 4 • Estranhamente, o Brasil nunca realizara uma grande mostra sobre a antropofagia para discutir sua pluralidade cultural. Ademais, a antropofagia admite precedentes e paralelos na história da arte. Permite uma abertura conceituai complexa para vários campos anunciados no "Manifesto antropófago", como história, antropologia, política, filosofia, religião, lingüística, psicanálise. Já sabíamos que o canibalismo propiciou a Montaigne dados pragmáticos e espaço para a criação de argumentos em seus Ensaios para discutir a relatividade dos valores humanos. Como imaginar que o primeiro debate filosófico ocorrido no Brasil, na França Antártica, envolvesse questões do canibalismo?
22 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos