Em torno da obra "Casa da Malta"

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Em torno da obra "Casa da Malta" de Fernando Namora 8.ยบ A Ano Letivo 2018/2019


Preâmbulo Esta publicação resulta da atividade realizada com a turma do 8.º A da Escola Básica 2,3 de Condeixa-a-Nova, na disciplina de Português, no ano letivo de 2018-2019, no âmbito da comemoração do Centenário de Fernando Namora (Condeixa-a-Nova, 15 de Abril de 1919 Lisboa, 31 de Janeiro de 1989). Tendo a Comissão organizadora promovido o Concurso de Expressão Plástica e Literária "Um Olhar sobre Fernando Namora" [cf. http://bit.do/eR3K5 ], julgamos interessante dar a conhecer uma obra do autor e, partindo da leitura orientada de excertos, desenvolvermos uma oficina de escrita de texto narrativo. Procuramos, neste trabalho, observar como se estrutura a narrativa na obra Casa da Malta e percebemos que a novela de Namora inclui seis narrativas inseridas por encaixe na narrativa principal, onde se contam as histórias pessoais de seis personagens que se encontram numa casa da malta, algures, "nas abas retalhadas da Gardunha", conforme esclarece o autor. "Havia em frente ao meu consultório um pequeno adro e nele um casebre meio derroído, sem dono, ou assim poderia imaginá-lo, pois quem a habitava era gente erradia que vinha e partia sem saber quando. Vagabundos, quase sempre, malteses a cumprir um fado de nómadas que a desconfiança dos outros atiçava, que a miséria deles e dos outros parecia legitimar, ambulantes que mercadejavam adornos ingénuos, campónios de passagem para gloriosos eldorados. A malta. Ali de abrigavam, para ali, sem hesitações, dirigiam os seus passos, fosse qual fosse o seu destino, pois reparem quanto os simples têm o pressentimento de onde existe um texto familiar." [Namora, F. (1961), in Prefácio à 15.ª Ed.] A ação aberta desta novela é um convite ao leitor para que imagine o destino de cada uma das personagens. Cada um sai daquela casa para a errância de um outro destino, na esperança de encontrar dias melhores. Ali fica apenas o Velho Troupas, amargando a vida, pensando que encontrara o seu fim. Em grupo, os alunos deram continuidade ao futuro hipotético dos malteses, criando caminhos diversos. Os textos foram apresentados a concurso nominalmente, ficando um elemento do grupo destacado para o efeito. A aluna Inês Domingues, representante do grupo que produziu o texto "A missão do Velho Troupas", venceu o primeiro prémio. São esses novos contextos ficcionais, pensados por alunos entre os 14 e os 16 anos, que encontraremos nesta publicação e vos damos agora a conhecer. Carla Fernandes


ABÍLIO, O REGRESSADO

Naquele começo de dia, Abílio saiu da casa da malta. Deixara sua aldeia por causa do circo. Foi explorado, maltratado, passou fome, mas daquela experiência horrível trazia bons momentos, os momentos que passara com o amigo Leopoldino. Não havia um dia que ele não pensasse nisso. Estava na altura de mudar a sua vida e ele sabia-o. Será que o iam receber bem? Era quase de manhã quando chegara ao centro da aldeia. As casas estavam com uma cor triste. Só restavam os mais velhos e a sua terra natal dormia. Ficou a mirar a sua casa. Era uma casa despida, com as flores a murchar. Olhou pela janela e viu uma fotografia de família. Todas as lembranças vieram de repente: a voz avisada do avô que impedia o voo, a raiva do pai que assustava, a infância de alvoroço. Assim que viu luz, Abílio escondeu-se. A lenha crepitava na lareira, mas não havia ninguém. Com um nó na garganta, voltou à casa da malta. Quando lá chegou à casa, encontrou a cigana muito doente com o bebé ao colo. As suas faces estavam arroxeadas e as rugas da testa afundavam-se na sua expressão de dor. - Ele abandonou-me no bosque, e eu adoeci. Consegui caminhar até aqui. Afinal esta casa é sempre nossa… - respondeu ela. - Espera aqui, eu vou buscar ajuda! O médico hoje vem à aldeia. Chegará no burrico para ver a Ti Maria que sofre das bexigas. - Não, não aguento mais! Promete-me que tomas conta do bebé. – retorquiu. - Por favor, espera! Deixa-me ir buscar ajuda! - exclamou Abílio, assustado. - Promete-me. Jura-me por Deus que tomas conta do meu filho. - Ssss… sim, eu... prometo - gaguejou. E naquele momento a cigana deu um beijo no bebé e morreu. O menino esbracejava num pano sujo e parecia bem nutrido. A sua mãe partira e, no entanto, nem dera conta. Abílio ficara a olhar para a cigana sem saber o que fazer. Sentia medo e terror. Era para isso que voltara!? Que destino seria o seu? Será que iria ter capacidades de tomar conta de uma criança? Como a iria alimentar? Os receios invadiam-no a cada madrugada. O futuro adivinhava-se difícil. Certa manhã, Abílio acordou com coragem. Estava decidido a enfrentar o pai. Caminhou até ao centro da aldeia com o menino ao colo. Assim que chegou ao largo da igreja a primeira pessoa que vira foi o Luisinho, a sair de casa, para ir para a taberna. Tinha ar de cansado,


estava velho e cheio de cabelos brancos. Abílio olhou-o e foi imediatamente ter com ele, pois sentia remorsos de o ter roubado: - Desculpa, peço-te mil desculpas do que eu fiz. Eu não sou nenhum ladrão. Deslumbrei-me com a gente do circo. As gémeas eram tão atraentes e os artistas tão… eu não sei o que me aconteceu. Roubei para eles, pronto! - Não te preocupes. Eu perdoo-te pelo que aconteceu. Já foi há muito tempo se não me engano, foi há… - Três anos. - interrompeu Abílio – três anos de amargura para mim. Abílio seguiu caminho com menos um peso na consciência, pois emendara o primeiro erro que o fez cometer o pior deles todos. Mais à frente estava a sua rua. Assim que chegou à porta de casa, olhou para a janela e viu o pai com um olhar triste e solitário a mirar para o fogo. Era a última lenha que tinha em casa. Abílio ainda hesitou, mas logo bateu à porta, apertando o bebé no colo. Esperava que o conforto desse abraço lhe desse a coragem para o que havia a fazer. A porta abria-se lentamente. O rapaz estava com medo, mas ao mesmo tempo determinado. Assim que o pai viu o filho que desaparecera, abraçou-o. O rapaz pousou o menino em cima da cama. Aproximou-se do pai e começaram a chorar. Ficaram muito tempo a descarregar toda a sua amargura, como se tivessem guardado nos olhos todo o ardor daqueles anos. Abílio entrou em casa. Olhou para todos os cantos e lembrou-se de tudo o que vivera naquelas quatro paredes. Via agora que o seu pai estava velho e só. O isolamento tornara-o amolecido e resignado. Deixara de pensar nas revoltas, na vida dos poderosos. Importava-lhe apenas sobreviver ao passar dos dias. É claro que ele não poderia deixar de reparar no que Abílio trazia nos braços. E perguntoulhe: - O menino é meu neto? - Não! Uma rapariga que eu conheci na casa da malta pariu-o, mas o cigano abandonou-a e ela acabou por morrer. Pediu-me para tomar conta dele. Não tive coragem de negar. Abílio dizia estas palavras com um ar um pouco envergonhado, como se, mais uma vez tivesse de se desculpar. Ali estava, perante o seu pai, homem enfraquecido e triste, a acrescentar mais um enguiço às suas vidas. De repente, escuta a voz do pai enrouquecida: - Esse menino vai alegrar as nossas vidas!... De repente, escuta a voz do pai enrouquecida: - Esse menino vai alegrar as nossas vidas!... Naquele dia aquela tornava-se a sua casa. Pela vidraça observava a sua aldeia, uma terra que aparecia naquela hora com um espírito rejuvenescido. Mulheres a irem para a fonte lavar a roupa, as idosas à janela a contar as cusquices que acontecera, os homens na lida do campo, o Luisinho o mesmo bêbado com a cabeça debruçada sobre a mesa. E a taberna do Raimundo, ao fim do dia, ponto de encontro entre homens e mulheres. E o pai a lavrar a terra, à frente da casa. Nada mudara, mas a vida começava agora nesta criança que ali nascera. Afonso Fonseca Duarte Batista Eduarda de Almeida


O SONHO DE CARMINDA Carminda chegara à casa da malta. Foi em direção à porta do saguão, donde vinha o choro de uma criança. Abriu a porta. Deparou-se com a jovem mãe cigana acabada de dar à luz. Apertou o seu filho recém-nascido para que se acalmasse. O choro das duas crianças invadia o ar denso e húmido. Cheirava a madeira velha e a sangue. Eram os panos do parto. Ali estavam quietos, a um canto, encharcados de memórias: os gritos da parturiente, as horas de dor, as faces sérias dos homens que assistiam, as mãos de uma mulher perdida. - Desculpe a minha entrada repentina, mas precisava de ajuda, e além disso ouvi um choro e fiquei assustada - diz Carminda à cigana. - O meu filho nasceu há poucas horas. Estou muito cansada, preciso de dormir - respondelhe. O ambiente ficou subitamente mais quente. Sentia-se o respirar dos rebentos que agora dormiam. Ficou ali o silêncio. As mulheres puderam pernoitar sobre as palhas enquanto, ao longe, se escutavam vozes de gente. Seriam mais habitantes para a casa? No dia seguinte, Carminda amamentou o seu filho e abandonou aquele local. Havia mais uns quantos homens, encavalitados numa carruagem antiga, que ainda partilhavam escassas palavras. Um velho ajeitava os paus que crepitavam e aqueciam as horas da madrugada. Ela ignorou-os (não sabia que gente era aquela) e saiu porta fora, com o seu filho ao colo. Espreitou por uma nesga, a cigana ainda dormia, mas a criança já agitava as mãos e os pés, como que a querer despertar para a vida. Olhou em volta e viu aquela aldeia pequena com casas de pedra que a fizeram recordar dos seus tempos de infância, e percebeu que não sabia para onde ir, não sabia o que fazer... Tinha de sair dali! Ao seu filho havia de dar o nome de Brás, para se recordar da forma como escaparam daquela investida dos malfeitores. Escaparam! Foi o santo que os guiou até aquele abrigo coletivo, salvação de muitos. Foi naquele momento decidiu que tinha de voltar para junto do seu marido, onde tinha amparo para a vida. Mas como iria ela voltar? Do beco escondido da escadaria da igreja, apareceu um homem, velho, careca, com uma pequena barba branca, que lhe perguntou: - A senhora precisa de ajuda? - Estou perdida, não sei o que fazer com um filho nos braços, sem saber como voltar para o litoral… - respondeu Carminda.


- A senhora disse “litoral”? Mas que litoral? Conhece alguém lá? - Sim, tenho lá o meu marido. Quis vir aqui, quis que o meu filho nascesse junto da terra, quis que respirasse as raízes da sua mãe. Sou de cá, sabe? Saí há muito, quando não via nisto mais do que um fim de mundo sem futuro. Agora não penso assim. Faz-me falta este pó, faz-me falta este ar, faz-me falta... Mas, vir assim, sem proteção… - Vou sair da zona amanhã. Vou rumar a Setúbal. Se quiser, eu posso levá-la. Dali depois vai à sua vida! - Sim, ficaria muito agradecida. O nosso lugar não é aqui. Mas há outro problema: não tenho onde dormir nem o que comer, entretanto… Fomos apanhados na serra… a quadrilha do Rouba-Rabos... fiquei sem nada. - Esteja descansada. Sempre tenho um cantinho em casa e a minha mulher faz uns bons petiscos. Passou um dia e uma noite e voltou a amanhecer. Bem alimentada e acarinhada, Carminda já se sentia novamente em casa. Porém, era hora de partir. Foi então que ela, o seu filho e o homem começaram a sua jornada rumo ao mar. A cada metro, Carminda virava a cabeça para a sua amada serra. Conseguia ver despontar os primeiros botões da giesta na berma das estradas e já sonhava vê-las florir debaixo dos raios da primavera. Mas era cedo ainda para o sol. A viagem não foi fácil. O carro velho e ruidoso do homem, trepidava naquelas estradas íngremes. Carminda, calada, ruminando, mal ouvia o filho que chorava de fome. Foi num momento de choro agudo que o condutor resolveu gritar: - Oh mulher, cale-me o cachopo! Nisto, desconcentrou-se e, de repente, desviaram-se e caíram numa ravina baixa. Carminda olhou em frente, tonta, e viu o homem inconsciente. O seu filho berrava mais e mais. Estaria bem? Saiu do carro com o menino ao colo, embalou-o, falou-lhe umas palavras e logo reparou no braço do condutor. Estava preso à porta, por isso ele nunca conseguiria escapar dali. O pequeno Brás tinha acalmado. Ela subiu a colina, embrulhou-o numa flanela velha, que enrolou sobre as costas, e pôs-se a caminhar. As pernas já estavam fracas, mas confiava em São Brás. Sim, ele havia de ajudá-la! As horas passavam e a planície, lá ao longe, pintalgava-se de grandes pedras. Uma paisagem sem fim que passava diante daquela mãe desesperada. - A terra… a terra… a minha terra - repetia, quase enlouquecida. Ia ela nesta passada quando ouviu uma máquina agrícola, daquelas que aravam os campos nos vales imensos. Vinha atrás uma mulher que parou e disse: - Precisam de ajuda? A minha aldeia é já ali à frente. Suba a este arado. Vamos até lá. Coitadinha da criança! E continuou: - Se necessário, posso ligar ao posto da guarda mais próximo. Há no lugar uma parteira que pode ajudar com o menino. Como se chama o anjinho? Carminda, esgotada, já não ouvia. Os seus lábios estavam secos e gretados, a sua barriga pesava toneladas. O sangue escorria-lhe pelas pernas. Aceitou o auxílio, com um gesto afirmativo com a cabeça e mais nada disse. Descansou o anjinho nos braços e deixou-se embalar pelos altos e baixos das estradas. Estavam salvos.


Assim que chegaram à aldeia, a mulher foi buscar água para dar de beber a Carminda. Era preciso recuperá-la para que pudesse amamentar o menino. - Coitadinho do anjinho! A parteira veio de imediato, chamada pelo homem que trazia a máquina. Lavaram Carminda, limparam-lhe o sangue com água quente e acenderam o lume. Deram-lhe laranjas e broa para que comesse. - O que importa é que recupere rápido, para alimentar o anjinho! - sussurrava a mulher. Era hora da sesta. Poucos habitantes andavam por ali. Aquela terra era mais rica e verdejante. As casas eram feitas de tijolo e bem caiadas. Tudo era diferente do que a Carminda estava habituada. Mais recuperada, disse em voz baixa: - Há um homem... há um homem no caminho. Viemos com ele. Tivemos um acidente. Vão, por favor. Vão e salvem-no! Os homens do posto da guarda foram informados e rapidamente encontraram o condutor do carro, que foi levado para a vila mais próxima, onde havia médico e uma enfermeira. - Haveria de curar-se - acreditou Carminda. Acabara de alimentar o seu rebento, que, entretanto adormecera ao seu colo. Então, aproveitou a oportunidade para também dormir um pouco. - Acorde, acorde! - gritou a mulher. - Desculpe, não queria acordar o anjinho. Já passaram cinco horas. Tem de comer alguma coisa. A ceia está na mesa. À mesa puderam conversar. Conheceu então a família dos Pernas. Chamavam-lhe assim porque todos eram muito rápidos a chegar a qualquer lado. Grandes caminheiros, grandes corredores. - Há uma estação de comboios não muito longe daqui - afirmou o filho mais velho. Amanhã posso levá-la lá. Acompanho-a a pé e levo o menino. Há de passar uma carruagem, vai ver! Carminda tomou a decisão de retomar a sua caminhada. Afinal, tinha de chegar ao pai do seu filho. Foi ao pino do meio-dia que chegaram à linha do caminho de ferro. Para grande sorte dela, havia um comboio para a vila naquela noite. Carminda tira as poucas moedas que a mulher lhe dera para pagar a viagem, mas o funcionário da estação logo lhe disse: - Isto não chega! O jovem Perna logo se levantou e pôs em cima do balcão a sua jorna do dia anterior. Era pelo anjinho, caramba, pelo anjinho! O comboio tinha um aspeto degradante, com os bancos rasgados, e os vidros estavam tão sujos que Carminda não conseguira ver o lado de fora. Apenas teve tempo de lançar o seu lenço para o jovem, em sinal de agradecimento. Foi uma viagem longa, mas Carminda conseguiu aguentar. A vila era grande. Vendia-se pescado e cheirava a mar. O litoral estava próximo. Soube então que não faltava muito para chegar a sua casa. Fez umas breves perguntas às peixeiras e logo se alegrou. Os poucos quilómetros que tinha ainda de percorrer iam trazer a areia aos seus pés. Ali cresceria o seu Brás. O seu lugar era, afinal, onde estava a família. E agora tinha uma. Catarina Acúrcio Rodrigo Reis


CAMINHOS DE UMA MULHER Dentro de si havia apenas esquecimento e tranquilidade. O passado apagara-se e já não lhe doía. Saíra assim da Casa da Malta entre sombras, com Ricocas a seu lado. Nas longas conversas, ambos já haviam pensado no seu destino para lá das portas daquela casa amiga. Eram duas almas a vaguear. Ela, sem destino, em terras desconhecidas. Ele, sem rumo, numa terra que já não era sua. Assim fizeram. Caminharam durante dias. Sem mantimentos e quase sem esperança, foram-se apeando em palheiros no meio das planícies. Rumaram a sul. Sim, lá seria mais quente. Numa noite, avistaram o inesperado - uma luz que espreitava entre as planícies escuras do Alentejo. Após tanto tempo a caminhar na pesada e triste noite uma luz tão colorida, fazia sobressair a beleza daquelas terras. Quando Graça e Ricocas chegaram ao cume do monte, avistaram, com os olhos cansados, uma pequena aldeia isolada, longe do mundo. Festejava-se ali um dia peculiar. Passo a passo, aproximaram-se da povoação, com curiosidade e dúvida. No centro, um homem lançava foguetes que causavam alarido e emitiam um clarão imenso na noite – aquela era a luz, estava explicado. Foram-se então aproximando e ficaram a observar o baile, à distância. Havia chouriço assado no espeto. Um velho aldeão manuseava lentamente os enchidos que cheiravam maravilhas. O casal percebeu que o manjar era partilhado, por isso resolveu acudir à fila. Comeram broa e chouriço até fartar. Ao fim da noite, ficaram sós, no meio do largo, onde o velho arrumava as últimas coisas. Chegou-se até eles e perguntou-lhes quem eram. Não obteve resposta. Enfartados, ficaram mudos perante a questão do velho, que os olhava com suspeita. - Ó amigo, não tenha medo! – exclamou Ricocas – somos gente de bem. Apenas temos vidas embrulhadas que preferimos esquecer. O passado está morto. O velho virou-lhes as costas e foi à sua vida. Graça chorou. Estava a precisar de um chão, uma cama onde repousar, uma terra sua. No dia seguinte, a aldeia abriu-se aos forasteiros. Deram com eles debaixo do alpendre do padre. Ela, embora triste e esgotada, mantinha a sua beleza e elegância. Gostaram deles e, sem querer saber mais, deram-lhe abrigo na casa paroquial. Ali estiveram dois meses até decidirem arranjar um emprego. Graça começou por trabalhava como empregada na loja e


e recebia um salário pequeno, mas que os alimentava. O seu local de trabalho era pequeno embora acolhedor. Vendia um pouco de tudo, desde carne, passava pelos legumes e acabava na fruta da época. O patrão dela era velho, carrancudo, bêbado com uma grande pança. Vivia numa pequena casa: uma casa de banho, um quarto e uma cozinha. Não tinha familiares nas redondezas, tinham todos emigrado para o estrangeiro. Só, envelhecia agarrado à bebida. Graça e Ricocas viviam numa pequena casita. Estava abandonada, mas conseguiram arranjá-la. Ricocas fez um bonito e colorido alpendre onde havia sempre plantas para acolher abelhas famintas. Na parte de trás da casa, havia uma pequena horta, onde Ricocas tentava plantar qualquer coisa que pegasse. A maior parte das pessoas eram idosos - almas de cabelo branco, corcundas, cheios de rugas e de pouca estatura. Contudo, havia também um grupo de crianças que largava uma juvenil aragem naquelas ruas – eram as únicas almas realmente felizes. Junto da loja onde Graça trabalhava, as crianças encontravam-se para as brincadeiras de rua. E durante anos a rotina de Graça era sempre a mesma. Corria para o trabalho de amanhã e volta para casa à noitinha. Um dia, algo invulgar aconteceu - com tanta bebida e álcool, Jorge, o patrão de Graça, faleceu de cirrose. A loja ficara sem dono. Graça não teve dúvidas. - Ricocas, vamos ficar com ela! Podemos fazer disto vida. – afirmou, entusiasmada. E assim foi. Assumiram a loja da aldeia. Quem fazia as encomendas era a Graça, quem ia buscar os produtos era o Ricocas, num velho carro que arranjara. - Agora que a loja é dela, a mulherzinha nova pode fazer o que lhe bem apetecer - dizia uma vizinha, que ia muitas vezes para as suas compras diárias e por isso sabia muito do assunto. - E parece que tem grandes planos para aquela barraca degrada que o velho lhe deixou. Quer transformar aquilo no negócio da sua vida! - exclamava outra. Os mexericos rapidamente se espalharam por aquelas ruas apertadas, por onde só passava dois cavalos lado a lado e pouco mais chegava. O costume era que os mexericos fossem falsos, mas este era verdadeiro. Graça tinha mesmo planos grandiosos para aquela lojinha. Queria apostar todas as suas poupanças, para ser o maior feito da sua vida. Transformar aquele buraquinho, que depois do velho Jorge falecer ficou mais degradada que nunca. - A tinta das paredes está cheia de bolor, quase metade da mercadoria que está no armazém está em péssimas condições! Quero revirar tudo, começar do zero! Alargou o espaço, encomendou nova mercadoria, pintou e redecorou. Virava mais uma página da sua vida, como fizera há pouco mais de um ano e meio. Vivia agora dias cheios. Desempacotar, vender, construir, arranjar. É claro que Ricocas ajudava, mas apenas duas pessoas para aquele gigantesco lugar não eram suficientes. Apesar de tudo, aquele lugar ficou ainda mais bonito do que previsto. Ricocas e Graça estavam num tempo de encantamento. Para além da sua relação profissional, tinham também a relação amorosa, que os unia cada vez mais. Por causa daquela loja - que tinha televisão para a gente da vila - até a aldeia ficara mais famosa. Cresceu, em tamanho, em estabelecimentos e população. Até alguns dos familiares dos habitantes tinham voltado às suas origens. Uns arranjaram emprego na loja da Graça e outros pelas redondezas.


Graça e Ricocas tinham melhorado a sua casa. Era agora de dois andares: três quartos, para os futuros filhos - uma sala de estar, uma antiga sala de jantar remodelada, duas casas de banho e uma cozinha maior. Uma casa de ricos! Tinha construído o seu império. Pela primeira vez na vida sentia que não tinha feito asneira. Não precisava de depender de um homem. Certa vez, estava Graça a regressar do trabalho, quando se deparou com uma cara familiar. De roupas gastas e olhar sombrio, com o rosto envelhecido, um homem dizia: - Andei a vaguear, durante meses, por todo o lado à tua procura. Ajuda-me, por favor! Transformei-me nisto pela má escolha de uma companheira para a vida que me tirou tudo o que tinha. Abandonado em ruas degradantes, sem pavio, procurei-te sempre. Encontrei-te, finalmente! - O quê? Como chegaste aqui? - Foi naquela casa, a casa dos que vinham de longe para roubar, pedir, emigrar… e que sabiam que era ali a sua casa. Dormi num resto de palha da malhada que forrava o chão. Um velho, o Troupas, trouxe-me mais um molho de urze para que descansasse. Percebeu o meu desespero. Falámos. Contou-me de ti. - “Uma rapariga passou por aqui. A mais bela criatura que estas paredes viram. Trazia uma mala, vestia impecavelmente, mas ficou aqui. Saiu com outro: o Ricocas. Oxalá estejam bem!” - Vi logo que eras tu. Caminhei dias e dias. Aqui estou. Vamos embora os dois! Fez-se silêncio. Ricocas respirava rápido e quase sufocava. Conteve-se. - Sabes às vezes muito esforço e dedicação valem a pena – respondeu-lhe Graça- As coisas não caem assim de mão beijada. Obrigada pela tentadora oferta, mas vou ter de recusar. Talvez assim aprendas o quanto custa a vida. Antes de seguir em frente, Graça virou-se e estendeu a mão a Ricocas, dizendo: - Já agora, espero que encontres uma companhia como eu encontrei. Se me dás licença, tenho de voltar para casa. Ambos saíram pela porta entreaberta. Graça segue em frente, com um sorriso matreiro nos lábios e deixa o passado para trás, sem mais palavras.

Ana Preces Beatriz Branco Cristiano Pinto


OS PASSOS DE UM RATINHO Os dias na casa da malta foram-se tornando cada vez mais solitários e repetitivos. Os Ratinhos juntavam-se. Eram aí uma dúzia de homens, às vezes com ganapos à mistura. Manel sabia que tinha que abandonar aquela casa e tomar um novo rumo. Porém, não queria partir sem saber para onde ir. Talvez para os campos alagadiços dos arrozais ou para os descampados do Alentejo… Numa tarde, ao passar na taberna do Luisinho, conseguiu arranjar trabalho na Quinta do Sr. João. Não ficava muito longe e teria direito a alimentação e a um bom local para pernoitar. Estava decidido. Chegou o dia de deixar os seus companheiros. Pegou nas suas roupas e despediu-se de todos. Estava entristecido, pois custava-lhe despedir-se da Casa da Malta. Este tinha sido o seu lar e o seu abrigo, mas estava confiante de que melhores tempos se aproximavam. Queria começar uma vida nova. Fechou a porta de casa e caminhou em frente. Ainda olhou para trás e, qual não foi o seu espanto, quando viu Ricocas acompanhado da rapariga a despedirem-se também da casa. Não lhes falou. Engoliu as despedidas. Determinado, continuou o seu rumo. Percorreu todo o caminho de cabeça erguida. Naquele dia, o sol estava quente, o calor fazia-se sentir. Quando chegou à quinta, foi recebido com um sorriso. O proprietário mostrou-lhe onde era o seu quarto e todos os lugares da casa. Explicou-lhe também como seria o seu trabalho e que estaria sempre disponível para ajudá-lo. Ali moravam também a mulher e a filha do sr. João. Ambas eram bastante bonitas, mas a filha, Carolina, fez com que os seus olhos brilhassem. De cabelos loiros que esvoaçavam ao vento, olhos azuis que lembravam o oceano, vestia uma saia cinzenta e uma camisola amarela. Cumprimentaram-se, mas nada aconteceu para além disso. O pôr-do-sol já se apoderava do céu e Manel foi para o seu quarto. Não era muito grande, mas conseguia ver a magnífica paisagem através de uma janela. Manteve a boa disposição e o sorriso durante os dias seguintes. Porém, certa noite, teve um sonho. Ou melhor, um pesadelo. Imagens do seu passado torturaram-no miseravelmente. Desapareceu o brilho do seu olhar. Estes sonhos foram-se repetindo noite após noite. Manel parecia outra pessoa. Sentia que às vezes ainda lhe apetecia ir por aí matar gente ou fugir para outro lado do mundo.


Carolina reparou que algo não estava bem, mas teve receio e apenas observava ao longe. Quando estava na cozinha, viu Manel encostado a uma grande árvore lá fora. Não aguentava. Tinha de ir ter com ele. - O que se passa Manel? Tenho visto que andas muito triste ultimamente. Quero ver o teu sorriso novamente. - Não te preocupes, é apenas uma má fase - respondeu Manel, um pouco surpreendido com a atitude de Carolina, visto que eram poucas as vezes que trocavam palavras entre si. Porém, Carolina sabia que era algo mais que isso, que era algo profundo e que o afetava de uma forma extraordinária. - Eu percebo que não te sintas à vontade para me contar, mas eu só te quero ajudar. O sofrimento de Manel era tal que deixou escapar algumas lágrimas que percorreram lentamente o seu rosto. O braço de Carolina voou para os ombros de Manel, foi um movimento instantâneo. Queria que ele sentisse apoio, segurança. Foi tentando que ele soltasse algumas palavras e conseguiu. Pouco a pouco, Manel foi contando a sua história de vida, as tragédias da sua infância, a solidão que o invadia. Estava sozinho, não tinha família nem amigo. A princípio, a rapariga não sabia o que dizer, tinha medo que alguma palavra mal pensada ferisse Manel. Lamento o teu passado. Acredito que não tenha sido fácil. Admiro a tua força. Mas agora não estás sozinho. Podes contar comigo. A conversa foi-se desenrolando, as horas foram passando e o céu começou a escurecer. Aquela conversa não sarou as feridas de Manel, mas aqueceu o seu coração. O seu sorriso voltou e deitou-se na cama com um longo suspiro, foi o melhor dia que vivera na quinta. O mesmo aconteceu com Carolina, que, quando se sentou ao lado de Manel, não fazia ideia que os dois se iriam entender tão bem. Que história aquela! Ambos adormeceram, cada um em seu quarto, mas juntos no pensamento. Na manhã seguinte parecia que o mundo sofrera uma reviravolta. Os olhares, os sorrisos… Fortes laços estabelecidos entre os dois. Seria amor? A cada dia que passava, a distância ia diminuindo, o sentimento aumentando e nada se conseguia explicar. O sr. João não precisava de perguntar nada. Ver a sua filha tão feliz deixava-o mais feliz ainda. Não passava despercebido. Era amor. Passaram meses, o sentimento foi se intensificando e tornando-se cada vez mais sério. Por vezes, algumas recordações vinham ao encontro de Manel, mas as feridas cicatrizaram pouco a pouco. Manel e Carolina sabiam o que queriam para o seu futuro, mas estavam a espera da altura perfeita. Quando chegou, Manel não fazia ideia de que ia ficar por tanto tempo. Agora tem a certeza que vai partir, mas não sozinho. Carolina falou com os pais e, com o seu apoio, planearam uma viagem à volta do mundo. Desejavam espalhar o seu amor por todos os cantinhos do planeta redondo. Nunca tinham andado de avião e isso tornou a viagem ainda mais divertida. Sobrevoar as nuvens, ver as casas em miniatura, uma certa adrenalina. O primeiro destino foi o arquipélago de San Blas no Panamá, um conjunto de ilhas paradisíacas. Havia calor no Alentejo, mas a temperatura nas ilhas era superior. Em


compensação, a água transparente refrescava-os sempre que queriam. A cumplicidade entre o casal notava-se ao longe. Brincavam como irmãos, confiavam como melhores amigos e acarinhavam-se como namorados. Interagiram com outro povo, língua, gastronomia e costumes. Passavam o dia em fato de banho, as noites eram quentes e o céu estrelado. Tudo era perfeito. Vivenciaram esta experiência durante uma semana. Quase que se habituavam a este estilo de vida, mas outros caminhos estavam na sua rota. Seguiu-se o Parque Nacional de Yosemite, nos Estados Unidos. Um lugar completamente diferente, com montanhas e vida selvagem. Tinham como objetivo realizar um dos maiores sonhos que tinham em comum: acampar no topo de uma montanha. No topo da montanha tudo era calmo, escutava-se o som da natureza. Montaram a tenda e fizeram uma fogueira para cozinhar. Observaram o luar como aves e aperceberam-se da sua beleza. Com estas viagens foram descobrindo o mundo maravilhoso em que vivem. A tenda era confortável e eles adormeceram mal as suas pálpebras desceram. Carolina estava num sono profundo, quando começou a sentir algo viscoso a deslizar pela sua perna. Acordou sobressaltada e aos gritos. Manel levantou-se e apressou-se a acender a lanterna. A tenda iluminou-se e viram uma enorme cobra em cima de Carolina. Manel estava com medo, mas tinha de fazer alguma coisa. Pegou no pescoço da cobra e ofereceu-lhe um voo para fora da montanha. Por momentos sentiram aflição, mas acabaram por rir-se da situação. Que susto! Na manhã do outro dia partiram. Durante a viagem para o próximo destino, Carolina sentiu fortes enjoos e vómitos. Pensavam serem normais, dado que é frequente enjoar nas viagens de avião. Contudo, quando chegaram ao México, os sintomas continuaram e Manel começou a desconfiar. Fizeram o teste e era mesmo uma gravidez. Decidiram ficar no México até que o bebé nascesse para depois continuarem as viagens. A partir daquele momento não seriam apenas dois. Manuel transformara-se como homem. Sabia que aquele tiro que matara o seu pai tinha passado à história. Não queria que o seu filho passasse pelo mesmo. Já não era apenas um ratinho, sem ninguém, sem família. Já não era um qualquer da casa da malta. Iria até ao fim do mundo, de memória cheia, com quem mais amava. Era feliz.

Beatriz Facas Pedro Marques


UM DIA ATRÁS DO OUTRO Ricocas olhou para trás e despediu-se da casa da Malta. Novos caminhos estavam pela frente. Graça saíra com ele e seguiram a pé para a aldeia mais próxima, mas ainda distante. O tempo estava um cinzento e gélido. Já perto da aldeia, a chuva intensa batia nas suas faces e as suas botas molhadas, que cascavam no chão, não ajudavam nada. As dores daquela caminhada duraram até Graça se queixar com fome, pois a última vez que tinham comido foi ainda na casa, acompanhados dos velho Troupas. - Onde pensas ficar para descansar? – perguntou Graça. - Não te preocupes, haveremos de encontrar abrigo. – respondeu o companheiro, tranquilizando-a. Mais adiante… - Onde vamos comer? Já sinto o meu estômago vazio! – insistiu a mulher. A única preocupação de Ricocas era agradar à sua nova amiga, para que ela confiasse nele. Sentia que ela poderia fazer parte da sua transformação de vida. Ele estava disposto a arriscar tudo para que não a perdesse. Tinha em mente um único objetivo: viver com Graça, livre do seu passado de álcool, de brigas e desavenças. Queria ir para um lugar onde pudesse recomeçar tudo, onde pudesse viver sem o peso do seu julgamento. A sua afeição por Graça era cada vez maior. Via nela o renascimento. A sua jovialidade inspirava-o, embora sentisse que ela era uma mulher entristecida por algum passado. Acordaram não falar disso. Foram, partiram, eram o presente. Na chegada à aldeia com o nome de Alpedreira, encontraram um cigano conhecido de Ricocas chamado Pavel. Era um homem moreno de estrutura média, que tinha estado na mesma prisão. Falaram um pouco, o cigano elogiou-lhe a “garina” e disse que havia uma tenda livre perto dali. Pavel já não via Ricocas há um bom tempo e perguntou-lhe: - Atão, compadre, o que te traz à minha aldeia? - Venho dos lados da serra. Regressei à terra, mas tudo o que encontrei foi o abrigo da Casa da Malta! - O que é isso? - Era um alojamento de Ratinhos que se tornou casa de ambulantes e casa de ambulantes é de todos. Foi onde fiquei depois da choça e onde conheci melhor a Graça. Ali pernoitamos, ali falamos, ali ajudamos a por mais uma criatura no mundo.


- O quê? Estava lá uma mulher parida? - Parida não, por parir! Foi o cabo dos trabalhos, mas a Gracinha foi um apoio importante para que tudo corresse bem. Sabes como é… panos e água quente… mais uma mão amiga. Ela é… - Deixa-te de lamechices, homem! Então, mas queres ajuda? - incentivou o cigano. - Se puderes… Tens comida? – apressou-se Ricocas. A barriga já dava horas e não havia amor que acalmasse o estômago e a fraqueza que já sentiam nas pernas. Tinham sido muitas horas a caminhar e no caminho não viram nada comestível que desse para entreter. - Está tudo na tenda. – respondeu, prontamente, o homem. - Obrigado, camarada! - Sempre às ordens! Já na tenda, num grande campo agrícola, Graça comia a sua deliciosa sandes de carne com uma bela pinga de vinho. Não queria sujar a sua saia vermelha, mas mordia o pão com toda a sofreguidão. Soube-lhe a figos! Comeram, beberam, conversaram longamente com o cigano, até que ela pediu para tomar um banho. - Um banho? Só se for no rio!!! – gargalhou o cigano. E assim foi. Ao rio gelado foi buscar a água, que Ricocas aqueceu na fogueira. Enquanto enxaguava, Graça reclamava de todo o caminho que fez, da tenda gelada, dos pés doridos. Não era isto que procurava, não era isto que esperava quando deixou Coimbra, após o longo historial de desencontros amorosos. Passado algum tempo, já de noite, ambos estavam deitados sobre a palha. Lá fora estava uma noite silenciosa e escura. Só se ouvia o pio do mocho distante. Ricocas pensava no seu futuro com a Graça. Estava nervoso. Devia ou não seguir os seus sonhos? Ficaria como simples alfaiate? E se o negócio fosse à falência? E se a Graça não o aceitar? Parecia ser um homem descontraído e positivo, mas por dentro ele sentia medo do futuro. Na verdade, o plano de Ricocas era ter o seu próprio negócio, algo diferente, onde pudesse conviver com os seus camaradas, algo como um café ou uma taberna. Porém, não tinha dinheiro para investir. Para atingir este objetivo foi preciso um ano de trabalho árduo como alfaiate, a sua primeira profissão. Sabia cortar como ninguém. Os bolsos de casacos feitos por ele ficavam um primor. Ora, se ficavam! Cada fato, um brinco! Começou de porta em porta a fazer os seus trabalhos, junto dos habitantes da aldeia e nas localidades vizinhas. Tirava medidas e recolhia encomendas, levava novamente a provar. Vivia na pequena tenda com Graça, que o ajudava a pregar os botões e a fazer as bainhas. Afinal tinha aprendido com a costureira, nas tardes que passavam entre as conversetas com estudantes matreiros. Um dia, Ricocas acordou mais cedo. Foi dar uma volta para espairecer. Decidiu ir pelos campos de trigo, que agora crescia, quase dourado. Pavel andava por lá e perguntou: - O que aconteceu depois daquele dia? Ainda estão na tenda? - Decidi começar um novo caminho ao lado desta mulher. - E o que estás a pensar fazer na aldeia? - Por agora, estou a arranjar trabalhos como alfaiate. Tem dado para comer e juntar algum dinheiro, mas eu queria abrir o meu próprio negócio, talvez um café.


Pavel incentivou-o e voltou para o seu campo com a sua família. A feira de junho estava aí a chegar. Tinham de ir buscar mercadoria ao litoral. - Se precisares de fazenda, é só dizer, camarada! – disse. Passaram alguns meses e Ricocas estava cada vez mais decidido a abandonar quela tenda. Queria dar uma casa digna a Graça. Ela merecia mais do que aquilo. Era uma mulher forte e bela. Sempre elegante com os fatos que o Ricocas lhe talhava. Estava na hora de mudarem. Comprou um pequeno espaço no largo da aldeia. Parecia ser um bom espaço. Não era muito pequeno, nem muito grande, e tinha as melhores condições para fazer habitação por cima e abrir um negócio por baixo. Com a ajuda de Pavel e Graça, transformaram aquele espaço num café acolhedor, mesas redondas e com cadeiras confortáveis. Era um espaço com cores vivas que dava alegria àquele sítio. Tiveram de pagar algumas contas grandes, o que não foi o problema, pois Pavel ajudou-os. Chegara a hora da abertura e vieram imensas pessoas. Ricocas e Graça não tiveram mãos a medir, mas ele não parava de sorrir. Estavam a servir os cafés quando o polícia em que Ricocas batera se aproximou do balcão. Este, quando o viu, ficou nervoso. O seu coração estava a bater imenso, mas não se escondeu. Afinal já nada devia à autoridade. Havia cumprido o seu castigo e agora era um homem novo, guiado pela sua estrela. Graça dera um outro sentido à sua vida. E, quem havia de dizer, agora servia bebidas e não bebia uma gota. - Precisa de alguma coisa? – perguntou, decidido. O polícia olhou-o e reconheceu na sua expressão uma atitude que desconhecia. Diante dele estava outro Ricocas. Sentiu nas suas palavras uma força invulgar. O seu aspeto cuidado e sóbrio afastava qualquer investida que provocasse o atrito. Sabia que ali não faria mais do que beber um copo. - Boa tarde! Um fino, por favor. – solicitou, imperioso. Em silêncio bebeu, deixou umas poucas moedas em cima do balcão e saiu. Ricocas dirigiu a Graça um olhar cúmplice. Ela sorriu e caminhou para ele. Deu-lhe um beijo na testa. Aquele beijo de carinho quase maternal confortou-o tanto que fez desaparecer todas as dúvidas, todas as questões sobre o futuro. Estava feliz. O resto seria um dia atrás do outro.

Lara Cardoso Laura Ferro Matilde Ribeiro Miguel Francisco


A MISSÃO DO VELHO TROUPAS O Velho Troupas foi o único que não saiu da casa da Malta. Aquela era a sua casa. Continuou ali dia após dia procurando meios para se sustentar. A casa da Malta era simples, parcialmente em ruínas, com cheiro a mofo e maioritariamente com vidros estilhaçados. Chamava-lhe a atenção uma estante bastante singular, onde se encontravam alguns livros antigos, cobertos de pó em avançado estado de degradação. Existia uma lombada de um livro que era irradiada pelo sol, o que lhe despertava o olhar e a curiosidade. Numa certa tarde de verão, com raios de sol intensos, o velho Troupas não resistiu à singularidade da lombada daquele livro e sentou-se numa cadeira deteriorada e começou a desfolhá-lo. Imediatamente percebeu que se tratava de um diário de alguém que já teria passado pela casa. Isso tornava-se um mistério! Não descansou, pois, enquanto não leu o diário, acompanhando a sua leitura com um copo de cachaça. Aquele diário era um testemunho de alguém que vivera toda a sua vida atormentada, como não se pudesse expressar. Quem seria?Começou a ler a velha página humedecida e gasta. Nela as palavras do passado adivinhavam-se de desespero. Serra da Gardunha, 28 de dezembro de 1973. Não aguento mais! Hoje finalmente cheguei à Serra. Estou quase em Espanha. Já consegui vero país vizinho do ponto mais alto da serra. É perto. Estou a viver no meu íntimo um sofrimento profundo. Faltam-me as palavras para descrever toda esta perseguição. Estes têm sido os momentos mais obscurecidos da minha vida. Ter de fugir, de deixar a minha casa, trazer apenas a roupa do corpo. Esta noite sonhei que estava outra vez a ser perseguida pela PIDE. Foi um autêntico pesadelo. Vou permanecer nesta casa até chegar o momento mais oportuno. Não deitarei tudo a perder. Amanhã espero estar em Espanha, em plena paz e liberdade. L.M. vítima de Salazar.


Lendo estas palavras e tantas outras que povoavam aqueles escritos, o velho Troupas apercebeu se da imensa dor em que esta mulher tinha vivido durante a Ditadura. - Será que conseguiu chegar à terra prometida? - pensava Troupas. Com este diário na mão, sentindo todas as dificuldades daquela mulher que relatava toda a insegurança vivida na época de salazarista, Troupas sentiu a necessidade de tornar este diário público. A revolução chegara, mas para muitos ainda era desconhecida. Ele tinha sabido na taberna, vira os homens de gravata na televisão e ouvira as músicas de resistência. A reforma agrária chegara, mas não lhe tinha calhado grande coisa. A sua vida ficara igual. Agora que acompanhara os dias da autora daquele diário percebeu que muitos lutaram por um país melhor. Para quem não testemunhou esta época, aquele diário oferecia a oportunidade de retratar a realidade que se fazia sentir em Portugal naquela altura. - É preciso que saia daqui! Colocou o diário num cesto, como se tivesse a guardar uma relíquia, e dirigiu-se ao café da aldeia. - Bom dia, Troupas. Vai o fino habitual? - perguntou o proprietário. - Não. Hoje, por muito estranho que pareça, venho informar-me acerca de uma mulher que se refugiou na casa da malta no tempo da ditadura. Queria fugir para Espanha. Uma tal L.M. Sabe alguma coisa desta mulher? - Não sei se isso se trata da mesma mulher, mas o que é certo é que, pouco antes da revolução, apareceu uma morta na casa da malta. Nunca se soube a sua identidade. Veio a polícia. Levaram-na para a morgue da vila. Troupas ficou indignado com o desfecho desta história. Que mulher aquela! Que época trágica que pôs o ponto final nas vidas de tantos inocentes. Houve mulheres, como ela, que viveram anos perseguidas nas grandes cidades, sem o direito da liberdade. Morreram a procurar a paz e este país esqueceu-as. Porém, ele tinha de fazer alguma coisa com o objeto que encontrara. Ele iria fazer a diferença. Aquela história iria ser publicada, custasse o que custasse. No dia seguinte, resolveu vestir a única roupa que lhe restava e que deixara em casa do seu amigo Joaquim. Iria à cidade, onde o médico, que bem o conhecia, lhe indicaria a porta onde bater. Assim foi. Era a porta da rua do Alecrim, onde o esperava o famoso editor. Era o mesmo que publicava os livros que o médico escrevia. Deixou-lhe o diário, envolto em folhas de jornal velho. Era o mais digno que tinha encontrado no caminho. Naquele dia que amanheceu chuvoso, Troupas acendia o seu cigarro no canto do saguão. Vinha a mulher da venda chamá-lo para a atender o telefone. Era da tal editora. O diário iria ser lançado. As lágrimas vieram-lhe aos olhos e a sua voz falhou-lhe. Troupas não estava a acreditar. Ao fim de tantos anos desamparado, viu-se a fazer que realmente tinha valido a pena. Fizera-o sóbrio, sem álcool e com intenção de bem. Pela tarde, regressou à cidade para tratar dos papéis. Parou no consultório para agradecer ao Dr. Fernando, que agora partia para Monsanto, um lugar longínquo na fronteira, onde muitos fizeram o salto, através de pedregulhos imensos e serras agrestes. Era final de dia e queria resolver as coisas. Afinal de contas, quanto mais rápido o fizesse melhor.


Passara o testemunho de uma época. Quem diria? A história daquela mulher falava por si. Era um velho, sabia-o bem. Podia morrer. Alegrou-se, pois. Estava cumprida a sua missão de vida.

André Amado Maria Inês Domingues Mariana Martins Simão Pires


Edição Digital Ana Catarina Ventura Estagiária da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra


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