E-ZINE (D)ESCREVENDO SONS #01

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E-ZINE (D)ESCREVENDO SONS #01

PAISAGEM MEMÓRIA SONORA AFETIVA



EXERCÍCIO DE ESCUTA-ESCRITA TURMA DE PLÁSTICA SONORA ARTES VISUAIS / CAHL-UFRB DOCENTE - ANDREA MAY AGOSTO/ 2021



E mais uma vez fui surpreendida. Na singeleza ou na desconstrução dos sonhos, palavras revelaram memórias descritas no exercício pleno de histórias reais às quais aumentei o volume do coração para ouvi-las. Agradeço pelas notas imaginárias que agora me instigam a pensar melhor o som e elevar a pesquisa da escuta a mais um aprendizado para as relações que o astral nos apresentar. Sigamos com olhos e ouvidos atentos às paisagens sonoras de outras dimensões.

ANDREA MAY

Artista visual e sonora, doutoranda em Artes Visuais/ UFBA



Subitâneo

Que acordes há no ar, no chão, nos objetos? Pesquises, ouças e verás um sem números de timbres, sons, tons... Deslizando ambiente afora; Acordas! Numa madrugada dessas; Em busca de uma estação; Sintonizei numa rádio; cujo nome, estranho à beça, dizia “Lá fora”! Água no chão, Passarinho entoando a letra da canção; Vruummm, bibi, vruummm Pensamentos embrulhados, Um novo amanhecer; Outra oportunidade de crescer. Acordes, Para a cifra da canção. Não te demores! Pois, por mais estranho que isso possa te parecer, Permita-se aprender e desprender Acorda!

ARIADNE DE ARAUJO ROCHA



Espaço sonoro

O sol já se despede, com cigarras anunciando o quente dia do amanhã em meio ao balé dos pássaros, a se recolher entre folhas e galhos que balançam em uma coreografia incansável. Grilos gritam de todos os lados; sapos, pererecas e gias se encontram para ensaiar o coral da próxima estação; a bomba d’água marca o ritmo da peça. A penumbra vem junto ao sopro suave e frio que vibra a antena de tv, que chuvisca e faz chiar imagens distorcidas; enquanto no nada lá fora as dobradiças imitam som de criaturas desconhecidas, silenciadas apenas pelo apito do soldado no fogão ao ferver, transmitindo emoção do sabor e cheiro; as mãos e colheres vão girando em sentido horário nas xícaras e os insetos se chocando contra a luz como camicases; sobreviventes atacam em todas as partes; pernas e tapas, zumbido não é segredo nem sussurro. As coisas vão se acalmando com o tempo, os guardiões já estão alimentados e cansados de latir, parece que tudo foi desligado quando de repente ondas curtas de um velho amigo mal sintonizado nos tira a concentração da Ave Maria. Alguém chora de lá, e as lagrimas, essas caem do céu, para todos os lados, sobre tudo; querendo brincar de adivinhação; já não escuto o velho amigo e a oração já se encerrou; novos elementos insistem em invadir meus sentidos, cada gota um esforço para saber quem está soando grave e agudo, ritmos sinceros se formam sozinhos e se diluem com o adormecer; chega um novo tempo com nosso astro maior e todos querem o reverenciar; quem é da noite se recolheu e quem do dia é alegria, é calor, canto, barulho e amor.

AYDANO MORAIS RIBEIRO JUNIOR



Sons estridentes e agudos têm o espaço de um ensaboar e outro para acontecer, enquanto a torneira aberta faz as águas se encontrarem causando um barulho de encontros sem pausas. O som é alegre e molhado. Ouço motores berrantes que vão esmaecendo, pequenos gritos agudos no telhados às vezes formam melodia. E volta outro som de motor, esse mais encorpado, jovem, veloz. Assim ouço chegar a tarde, na minha rua.

CARMEN ROBERTA DOS SANTOS



Na calmaria do bairro, escuto a melodia da água que pinga no filtro de barro dento de casa. Como se fosse o som de jazz no vinil, lembrando o barulho de chuva na praia. Toda caixa de ferramenta tem suas conexões. Ruído e barulho como construções. Lembrando de todas as vezes, ao abrir a porta às 7h00 da manhã, saía com meu pai para o trabalho na construção civil. Novos começos em novas obras. Quando ela foi embora deixou saudade. O barulho de cada segundo do relógio deixou solidão. Tempo, tempo em cada minuto do relógio uma oportunidade de ser feliz. Acredito no tempo de espera e de coisas boas. Oportunidade de saúde, de desenvolvimento. Tudo vai passar, o tempo não pára.

CLEITON DOS SANTOS ROCHA



Memória sonora

Já faz tempo que, nas primeiras horas da manhã, quase sempre por volta de 5h30min, ouço diferentes sons de pássaros dos quais consigo reconhecer apenas um, o som de bem-te-vis. Essa experiência com relativa frequência, traz à tona memória de meus anos numa chácara em um bairro afastado da zona urbana. Naquela época a vida era difícil mas a juventude sempre dissipou na inconsciência a maior parte das dificuldades. Hoje, morando numa área muito urbanizada, onde quase não há contato com a natureza, ouvir sons de pássaros como o bem-te-vi, me surpreende como a um estranho visitante e me alegro com as boas lembranças de uma época de dificuldades, mas também de muitas alegria.

DAVID RICARDO DE JESUS SILVA



A liberdade existe? O que é liberdade? Não acredito em liberdade, na verdade eu acredito na falsa sensação da liberdade. Em um mundo de ignorâncias, a liberdade não faz morada e a própria ignorância se camufla de liberdade para alimentar o próprio ego. Enquanto uns se vestem com sensação de liberdade, outros têm suas liberdades arrancadas.

FLAVIA NOVAIS DOS SANTOS



Miudezas sonoras

Meus olhos se abrem e quase ouvem tão somente o silêncio, não fosse pela fome de Gal que só conhece dois jeitos eficazes de se manifestar: fala com olhos compridos e com boca de dentes amostra num miado especificamente longo e dengoso que só quer dizer uma coisa. Depois que a fome morre, quase ouço o som do silêncio se não fosse pela vibração linear e constante do ronronar em resposta à satisfação das necessidades dela. São 7h da manhã e outros olhos se abrem para cumprir suas missões de outros ruídos diários. Olhos falam...? Como produzem sons? Olhos são a porta de entrada e saída do primeiro ruído diário de toda a rua. Se, na ausência do som, você fechar e abrir olhos e ouvidos, consegue captar o movimento mecânico da pálpebra. É sobre as percepções sonoras de quem se propõe a prestar atenção no que está amostra e implícito, paralelamente. Dos sons que que a tecnologia não capta. É preciso sensibilidade para ouvir as miudezas do corpo, do dia. Olhos se abrem para que corpos cumpram suas rotinas ruidosas... Do bocejo das 6h ao bocejo das 23h. Depois dos abrir dos olhos, vem o abrir das portas, o som correnteza de água filtrada, sons agudos do tilintar do alumínio, das panelas, dos talheres. Vassouras empurram resquícios de ontem ladeira abaixo. Portões se abrem para que sapatos e sandálias conversem com as calçadas desniveladas e denunciem o deslocamento dos corpos de acordo com o distanciamento do que e até ainda consigo ouvir. Ora ou outra, pneus de motos apressadas subindo a ladeira deixam rasgo no ar, inibindo o ruído constante de utensílios metalúrgicos que preenchem sons aleatórios das manhãs, e que se estendem à tarde.



Ao meio dia, sapatos e sandálias cansadas arrastam corpos famintos sobre a ladeira íngreme, sob a ventania que vem do morro. Novamente correntezas e tilintares. Conversas de sapatos às 14h abrem porta pro silêncio da tarde entrar e se deitar na rede da varanda, fazendo uma trança com o ranger do vai e vem. Bocas dos donos dos sapatos que ficam em casa se propõem a contar sobre mini acontecimentos das noites e manhãs, dos sonhos e das ligações durante o café, até que o sol se ponha... Todos os olhos se calam as 23h para que às 6h voltem a falar.

LARISSA EVANGELISTA NERES DA SILVA



Era por volta das 00h, já tinha tirado um cochilo, mas a sinfonia de latidos e uivos que, de certa forma, mantinham uma organização sonora, me fez despertar. Os animais estavam espalhados por diversos lugares do bairro. Ouvia, predominantemente e irritantemente, os sons da Nina, minha cachorra, mas os outros, do vizinho do lado, os da rua de cima e, até mesmo os da rua principal do bairro, bem ao fundo, também tinham sua vez nessa orquestra canina. Senti um leve medo quando abri a porta que leva até avaranda, me veio as histórias que ouvia quando criança, superstições que os mais velhos da minha família levavam muito a sério. Não fui a única que acordou, logo minha mãe explicou que o motivo de tanta agitação é o fato da noite estar clara, é Lua crescente.

KATIA APARECIDA DOS SANTOS



O som da vassoura em contato com o chão. Esse som é muito significativo para mim quando se trata da pessoa que o faz: minha mãe. Minha mãe sempre trabalhou em casa de família como empregada doméstica, mesmo em um tempo onde essa profissão não era reconhecida. Ela não possuía nenhum direito regularizado, mas dia após dia, ela exerceu essa profissão para poder sustentar nossa família, pois sempre quis que eu e minha irmã pudéssemos ter um futuro melhor, que hoje temos, apesar das dificuldades ainda existentes.

MARIA ISABEL CARNEIRO SANTOS



Surgem de repente aos poucos, quando percebo já tomaram conta, corro buscando alguma maneira de registrar o que escuto, os aplausos parecem ininterruptos, estalos e cliques numa sinfonia percussiva, batendo nas superfícies, escorrendo e pingando, ponto a ponto, ponto… quase código Morse, vários ao mesmo tempo, querendo falar algo, ou simplesmente querem falar, falar comigo? Falar com quem tentar ouvir, parece impossível entender, mas eu acho que a questão é sentir. Conversas paralelas se intrometem no espetáculo, estranhamente todas as vozes partem de uma única fonte, seria um imitador, um impostor, bipolar, múltiplas personalidades talvez. A sinfonia gradativamente se encerra dando lugar a outra, que no vácuo da antiga revela tanto que nem todas onomatopeias dariam conta. Nessa, o sósia é protagonista em meio a pios, ondas de quatro rodas, Jet Skis barulhentos complementando a praia de asfalto como plano de fundo.

ROGER BARBOSA OLIVEIRA SILVA



Meu mundinho onde canto do bem-te-vi e rei. Todos invejam sua graça. Bem-te-vi supremacia no meu quintal. Supera até dor do âmago e trata o mal. Trazendo melódico dia. Dizendo pra mim bem-te-vi. Bem estou junto ao me ser. Invadindo pelo canto. Te vi bem que bem-te-vi. Lembre-me da meninice. A liberdade do meu quintal Onde pássaros e as árvores fazem meu convívio. A fruta pega a mão. Onde pássaros reinam o ambiente verde

TIARA ALMEIDA SANTOS



Ao amanhecer do dia, numa caminhada diária em meio a uma paisagem sonora belíssima, com vento brando e uma brisa cheia de suavidade, cheiro de terra molhada, folhas de eucalipto que canta e dança no bater do vento num cenário de nostalgia, ouço o canto dos pássaros e outros habitantes da natureza, que me trazem significados únicos, emoção, se misturando a uma linguagem de natureza viva, ao mesmo tempo me beneficia com o ar puro que inspiro e me fortalece para mais uma jornada diária. Em um outro momento, entre paredes e objetos que compõem meu atelier de costura e bordados, o silêncio que faz parte do saber fazer do bordado me remete a dimensão de espaço e uma multiplicidade de possibilidades criativas, enquanto que no mesmo instante, ao som contínuo do motor da máquina de costura me permite sentir uma experiência aural com diferentes sensações e percepções ora vivenciadas. Assim sendo essas duas vivências me levam de volta às minhas origens, a primeira minha infância no campo e a segunda na minha vida cotidiana.

MARIA DO SOCORRO RODRIGUES PINTO



Corta o silêncio o som do vento que me assombra e me assusta na janela do meu quarto e bagunça meus pensamentos. No momento, estou eu aqui sentado, numa necessária solidão, onde escuto ao longe remendos de sons. Uma criança que chora, um carro que passa, um cachorro que late, uma porta que bate. Mas na minha janela, em primeiro plano, o vento sonoro e incontrolável assobia agudamente em mim lembranças de outros ventos, em outros tempos, onde eu vivia cada dia uma nova vida sem medo. Aqui e agora! Sons, lembranças e silêncios. Há uma vida sonora em movimento.


O vento, com sua força, emite sons graves e agudos, como que quisesse me falar algo novo sobre o amanhã. O vento acende um novo som ao tremer a janela, que quase aberta também atravessa sem pressa insistente assobio em loop de um pássaro que multiplica em mim o desejo de arriscar, de enfrentar, de multiplicar mais vida na minha vida. Som e movimento, no balanço das folhas pelo vento, nesse momento me sinto uma nova frequência, onde mergulho sonoramente, sem rumo. Faz nascer em mim com urgência, a vontade de acender novos dias.

ROSALVO MARQUES DA SILVA JUNIOR



Centro de Artes, Humanidades e Letras


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