Entrevista a Teresa Nunes da Ponte

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Entrevista

"Onde não há mulheres, penso que devia haver" É uma das pioneiras da cultura de projecto em Portugal mas diz que, quando formou atelier em nome próprio, em 1988, não sentiu dificuldades acrescidas por ser mulher. “Recentemente, em obras públicas e obras de grande impacto, tenho tido mais problemas do que antes”, diz Teresa Nunes da Ponte em entrevista à TRAÇO Texto: Ana Rita Sevilha Fotos: DR

omo foi ser mulher, estudante de arquitectura e arquitecta em Lisboa no pós-25 de Abril? Teresa Nunes da Ponte: Foi um período muito agitado, mas muito rico. Na Escola [de Belas Artes], o meu curso teve quatro reformas, contando com aquela que vigorava nos dois anos iniciais. Tanto tinha 12 cadeiras, como quatro no ano seguinte. Mas a experiência de um curso assim também é formadora, tornamonos bastante autodidactas. A Escola fechou e durante esse período trabalhei com um Secretário de Estado – que era uma enciclopédia - no seu gabinete. Quando a Escola reabriu estava na Comissão Nacional de Eleições, pelo que fiz esse ano à noite para poder dar continuidade e trabalhar para as primeiras eleições livres. Tive assim, muito nova, um conhecimento do funcionamento das instituições, que constituiu um enriquecimento significativo. Quando acabei o curso e me inscrevi na Ordem dos Arquitectos, inscrevi-me também para fazer parte da equipa que fez o GUAL – Guia Urbanístico e Arquitectónico de Lisboa. Aprendi imenso com os meus colegas e durante quase nove anos palmilhei Lisboa, o que me deu um conhecimento da cidade importante para a minha vida profissional. Para além disso, tivemos o privilégio de usufruir do apoio, na selecção final e elaboração dos textos, de Nuno Teotónio Pereira e Francisco Silva Dias.

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Olhando para trás, o que mais recorda desse período? Talvez o ambiente que vivíamos, com grande idealismo, que também significava amizade e entreajuda. Havia uma generosidade contagiosa que fica e nos molda. Conservei os amigos dessa altura, e mesmo quando algumas dificuldades ou divergências nos afastaram, voltamos sempre a encontrarnos, porque há um sentido de “irmandade” muito especial. É uma das pioneiras na cultura de projecto em Portugal. Na altura que formou atelier em nome próprio sentiu dificuldades acrescidas por ser mulher? Penso que não. Formei o atelier em 1988, porque a empresa onde trabalhava, uma promotora que construía e tinha um gabinete de projecto e onde tive um grande contacto com a realidade de uma obra, fechou. Já tinha alguns trabalhos em profissão liberal e foi a oportunidade para continuar. Embora pudesse haver alguma reserva por parte de algumas pessoas, havia muita ajuda e tive muito apoio dos engenheiros das especiali-

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dades, dos fornecedores e dos construtores e dos próprios Donos de Obra. Sentia até uma certa “ternura” positiva, no sentido de ajudar e não de depreciar. Talvez hoje as coisas estejam mais difíceis, estamos num período de muita competitividade e os processos complicaram-se muito. Assim, as reservas tornam-se maiores…Penso que hoje seria mais difícil fazer o que eu fiz, para uma mulher com certeza, mas também para um homem. A questão do género e da paridade na arquitectura, no design e na engenharia têm sido focados nos últimos tempos. Acha que ainda é um factor de desigualdade na profissão? É uma pergunta difícil, porque sempre consegui ir dando a volta a essa questão, mas, recentemente, em obras públicas e obras de grande impacto, tenho tido mais problemas do que antes, que normalmente partem de pessoas misóginas…


Entrevista Sendo uma das referências da arquitectura contemporânea portuguesa e conhecedora da cidade de Lisboa, acha que se constrói, projecta e pensa a cidade para um neutro que é muito masculino? Ainda hoje me pergunto muito se há uma maneira de projectar mais feminina e outra mais masculina. Penso que há diferenças, mas não há uma regra. No atelier sempre fomos mulheres e homens, quando começávamos a ter uma grande desproporção com mais mulheres, o que aconteceu, dizíamos sempre que tínhamos de arranjar cotas para homens. Acho muito importante que as equipas sejam paritárias em termos de género. E onde não há mulheres acho que devia haver, porque o resultado será com certeza melhor. Existem inúmeros exemplos na História da Arquitectura, de Mulheres que ficaram na sombra. Em 40 anos, o Pritzker foi apenas entregue a duas mulheres. Por outro lado, a profissão tem registado taxas de feminização elevadas, mas poucas têm lugares de liderança. Como olha para estes dados? Penso que há mulheres competentíssimas e algumas, não muitas como sabemos, estão em cargos de liderança. Tenho tido a oportunidade de trabalhar com algumas dessas mulheres e são sempre pessoas especiais com quem gosto muito de estar. Algumas têm uma capacidade de racionalizar as questões, de equacionar os problemas e a sua resolução, invejável, o que geralmente se atribui a uma característica masculina. Mas muitos homens não a têm. Mas, concentrando-me na sua pergunta, para além das dificuldades que sabemos existirem, nós mulheres usufruímos desta coisa única de podermos ser mães, que, evidentemente, nos dará diferentes características, e creio que uma delas poderá ser não termos tanta necessidade de protagonismo. No entanto, penso também que a vontade de realização profissional, que os tempos, desde as sufragistas de finais do século XIX, felizmente exacerbaram, juntamente com a necessidade crescente de sermos autónomas, alterará com certeza a situação, passando a haver mais mulheres na liderança. Com ajudas irá certamente mais depressa. O que é que mudou verdadeiramente na profissão nos últimos 40 anos? No que respeita ao projecto, as referências são sempre as mesmas, só vão aumentando os exemplos. Continuamos a consultar tanto os cânones gregos como os modernos. Na metodologia, a organização dos processos também não mudou muito, mas as ferramentas são completamente diferentes; o suporte digital alterou radicalmente a maneira de trabalhar, e penso que, nós arquitectos, temos de ter cuidado para não deixarmos de desenhar, de esquiçar… Consequência da era digital, o tempo mudou muito, sendo cada vez mais curto. Por outro lado, o tempo vale dinheiro e na arquitectura já não há, normalmente, o tempo que havia para pensar…, para desenvolver um projecto, seja grande ou pequeno. Tende-se a dividir os projectos, e quem faz a concepção por vezes já não está com quem faz a execução, o que pode ser uma perda, porque o projecto é um todo. Penso que o arquitecto é o coordenador por excelência, porque deve gerir as intenções dos Donos de Obra, as normativas legais e as directrizes de quem aprecia os projectos, as especialidades, as obras. E penso que o deve ser até ao final do processo, como acontecia normalmente. E os processos estão muito mais complicados, por um lado mais burocratizados e por outro mais agressivos. Temos de encontrar uma maneira de viver com estas realidades, mas também de lutar contra elas quando não se encaixam nos parâmetros que nos parecem correctos.

“Sempre consegui ir dando a volta a essa questão, mas, recentemente, em obras públicas e obras de grande impacto, tenho tido mais problemas do que antes, que normalmente partem de pessoas misóginas…” Durante 9 anos, no âmbito do GUAL, diz que “palmilhou Lisboa de lés a lés”. Como olha hoje para esta cidade em rápida transformação, que se reabilitou em bloco, mas que pode não estar assente num modelo sustentável a longo prazo? Lisboa está num momento de viragem, a reabilitação tomou, felizmente, conta da cidade. A cidade está muito mais bonita e daqui a uns anos vai estar ainda melhor com todos os planos que se estão a desenvolver. O problema pode ser como e para quem, o que é muito difícil de controlar. No entanto, porque chegámos mais tarde, temos a possibilidade de tentar corrigir os erros que outras cidades fizeram. Penso que pode ser preocupante, do ponto de vista da resistência ao sismo, não haver mais exigências, mas sei que há profissionais muito competentes a estudar o assunto no sentido de conseguir introduzir, sempre, esta variante nas obras de reabilitação, oferecendo vantagens aos Donos de Obra. Por outro lado, a cidade está a ser apropriada por turistas e estrangeiros, e no centro histórico a população está a alterar-se. Mas também vejo que começa a haver cuidado, nos projectos, para que as infra-estruturas para turismo tenham as características necessárias para mais tarde, quando e se as coisas mudarem, possam servir, agrupadas ou não, para os habitantes da cidade. Ouço ainda, cada vez mais, falar-se de casas de renda acessível a fazer no centro histórico. E tenho um contacto privilegiado com uma empresa promotora que reabilita edifícios no centro histórico, que constitui um exemplo. Mantém os inquilinos remanescentes e dá-lhes boas condições, renovando também as suas habitações em vez de lhes propor saírem. Cumpre assim um importante papel social e cívico. Isto quer dizer que, neste momento, é possível ter rentabilidade preservando parte da população residente. Gostava que este exemplo fizesse escola. Nutre apreço especial por algum dos seus projectos/obras, ou é a mesma coisa que perguntar de que filho se gosta mais? Não é como com os filhos! Os programas são diferentes, e há Donos de Obra excepcionais que contribuem para que se façam bons projectos. E também há momentos mais felizes do que outros, ou porque as dificuldades são mais difíceis de resolver, ou porque as condicionantes não se conseguem transformar em mais valias, que é sempre a situação ideal. Gosto de trabalhar a todas as escalas, do objecto ao desenho urbano. E em todas tenho projectos que conseguiram ser melhores do que outros. No entanto, todos os projectos, pequenos ou grandes, são sempre um desafio a que nos entregamos de “alma e coração”. Só assim se percebe que, perante a actual difícil situação dos arquitectos, haja tantos e cada vez mais. É uma profissão com uma capacidade de realização extraordinária… assim vá havendo trabalho. I

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