Objeção de consciência e obstáculos ao aborto em caso de estupro no Brasil

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Objeção de consciência e obstáculos ao aborto em caso de estupro: um estudo sobre médicos(as) no Brasil Débora Diniza, Alberto Madeirob, Cristião Rosasc a Professora, Programa de Graduação em Política Social, Universidade de Brasília (UNB)/Anis, Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, Brasília, Brasil. Contato: anis@anis.org.br b Professor, Centro de Pesquisa e Programa de Extensão em Saúde da Mulher, Universidade do Estado do Piauí (Uespi), Teresina, Brasil/Anis, Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, Brasília, Brasil c Médico, Comissão de Violência Sexual, Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO), São Paulo, Brasil

Resumo: No Brasil, o depoimento de uma mulher sobre a ocorrência de um estupro é considerado suficiente para garantir o direito legal ao aborto. O objetivo deste estudo foi entender as opiniões e práticas de ginecologistas e obstetras sobre a oferta do aborto em caso de estupro no Brasil. Entre abril e julho de 2012, foi conduzido um estudo com uso de métodos mistos junto a 1.690 médicos/as, que responderam a um questionário estruturado, por meio eletrônico. A análise quantitativa revelou que 81,6% dos médicos(as) exigiram boletim de ocorrência policial ou autorização judicial para conceder a assistência solicitada. Entrevistas em profundidade realizadas por telefone com 50 desses profissionais mostrou que eles frequentemente testaram a veracidade da alegação do estupro pedindo que as mulheres repetissem suas histórias para outros profissionais da saúde; 43,5% deles alegaram objeção de consciência quando não tinham certeza se a mulher contava a verdade. O contexto moral do aborto ilegal distorce o propósito de escuta da paciente – substituindo a oferta de cuidado pelo julgamento da mulher. Os dados sugerem que, apesar de ser um direito garantido por lei, o acesso das mulheres ao aborto legal está sendo bloqueado por esses obstáculos. Recomendamos que a FEBRASGO e o Ministério da Saúde trabalhem juntos para esclarecer os médicos(as) sobre a suficiência da declaração da mulher sobre o estupro para o acesso ao aborto legal. Palavras-chave: objeção de consciência, legislação e políticas sobre aborto, obstáculos ao aborto, aborto, violência sexual, relacionamento profissional-paciente, Brasil. O código penal brasileiro de 1940 autoriza o aborto apenas em caso de estupro ou quando a vida da gestante está em risco1. Uma decisão do Supremo Tribunal Federal de 2012 tornou legal o aborto também nos casos de anencefalia fetal2. Apesar das restrições legais, é alta a magnitude do aborto clandestino no país. Em 2010, um estudo nacional com métodos diretos de coleta de informação revelou que 15% das mulheres entre 18 e 39 anos já abortaram pelo menos uma vez3. A regulamentação atual dos serviços de assistência ao aborto foi formulada nos anos 1990. Mas, em 1996, apenas quatro estabelecimentos de saúde em todo o país ofereciam o acesso ao aborto legal4. Em 1999, o Ministério da Saúde divulgou uma norma técnica sobre A Prevenção e o Tratamento das Lesões Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes, que estimulava a organização de novos serviços. Em 2001, 63 hospitais em 24 dos 27 estados brasileiros autorizaram a oferta de serviços de aborto de acordo com essa 110

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norma. Entretanto, a maior parte dos serviços estava nas capitais e grandes cidades, o que, em um país de dimensões continentais, representa uma barreira ao acesso4,5. O acesso de mulheres a serviços de aborto legal pode ser dificultado por diversas razões: desde a objeção de consciência dos profissionais de saúde até a exigência de exames adicionais, documentos policiais ou autorização judicial todos esses fatores representam “obstáculos”. A imposição de obstáculos causa prejuízo para as mulheres principalmente por causa da demora na oferta da assistência6,7. No Brasil, as normas do Ministério da Saúde dispensam a vítima do registro policial, da autorização judicial ou de opinião médica sobre a ocorrência do estupro. O único documento necessário para a realização do aborto em caso de estupro é o consentimento assinado pela mulher8. De maneira similar às diretrizes internacionais, o Código de Ética Médica brasileiro e os padrões técnicos do Ministério da Saúde reconhecem o diDoi: (do artigo original) 10.1016/S0968-8080(14)43754-6


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