Revista Amazônia Viva ed. 77 / março de 2017

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PATRIMÔNIO

Museu do Marajó guarda histórias desconhecidas do Pará

VISUAL

O artista plástico Marinaldo Santos e suas conexões urbanas

REVISTA ENCARTADA NO JORNAL O LIBERAL. NÃO PODE SER VENDIDA SEPARADAMENTE.

MARÇO 2O18 | EDIÇÃO NO 77 ANO 7 | ISSN 2237-2962

MODA CONSCIENTE Designers, como Taís Figueiredo e Isabela Sales, assumem o desafio de unir sustentabilidade, baixo consumo e mundo fashion ao criarem peças e acessórios com material reaproveitável, a exemplo de calçados feitos de câmara de ar de pneus velhos. A confecção de roupas sob a filosofia vegana também ganha espaço na moda do século XXI.


EDITORIAL

PUBLICAÇÃO MENSAL DELTA PUBLICIDADE - JORNAL O LIBERAL MARÇO 2018 / EDIÇÃO Nº 77 ANO 7 ISSN 2237-2962 Presidente LUCIDÉA BATISTA MAIORANA Presidente Executivo RONALDO MAIORANA Vice-Presidente ROSÂNGELA MAIORANA KZAM Diretora Comercial ROSEMARY MAIORANA

ESTILO SUSTENTÁVEL

As designers Isabela Sales e Taís Figueiredo saõa autoras de um projeto de confecção de calçados a partir da reutilização de câmaras de pneus

FELIPE JORGE DE MELO Editor-chefe

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A consciência ambiental nunca esteve tão em voga. Marcas já conhecidas no mercado e novos empreendimentos começam a se voltar para negócios mais sustentáveis, mais limpos e com uma pegada de economia “verde”. Os designers de moda têm um grande desafio neste século XXI: aliar sustentabilidade, novas formas de baixo consumo e mundo fashion num só conceito. E esses profissionais, com espírito visionário e criatividade, estão conseguindo transformar tendências ditadas por uma moda, muitas vezes fria e tediosa, em estilos cheios de causa e atitude. “Há séculos viemos produzindo lixo desenfreadamente. Vamos ficar apenas acumulando e uma hora os recursos natuMARÇO DE 2018

rais se esgotam. A maneira que vimos de tentar amenizar a situação é enxergando formas de reutilização, principalmente pelo potencial estético”, diz Isabela Sales, designer e que também viu na sustentabilidade uma forma de empreendimento. Em parceria com a designer Taís Figueiredo, criou uma linha de calçados fabricados com câmara de ar de pneus descartados no lixo. Essa moda ética também abre espaço para a filosofia vegana, que busca excluir formas de exploração de animais tanto na alimentação, quanto no vestuário, passando por outros setores como a cosmética e a farmacêutica, por exemplo. O conceito amplia o senso de responsabilidade de cada consumidor no planeta.

NAILANA THIELY/ UEPA

A sustentabilidade não sai de moda

Conselho editorial RONALDO MAIORANA ROSÂNGELA MAIORANA KZAM LÁZARO MORAES REDAÇÃO Jornalista responsável e editor-chefe FELIPE JORGE DE MELO (SRTE-PA 1769) Pesquisador e consultor técnico INOCÊNCIO GORAYEB Colaboraram para esta edição O Liberal, Agência Pará de Notícias, Agência Brasil, Museu Paraense Emílio Goeldi, Universidade Federal do Pará, Universidade do Estado do Pará, Fundação Cultural do Pará - Oficinas do Curro Velho (acervo); Filipe Sanches (edição de arte); Alinne Morais, Caio Oliveira, Dayane Baía, Jobson Marinho, Júlio Matos, Victor Furtado (reportagem); Carlos Borges, Fábio Pina, Fernando Sette, Nailana Thiely (fotos); Fabrício Queiroz (produção), Anderson Araújo e Inocêncio Gorayeb (artigos) J.Bosco, Jocelyn Alencar e Leonardo Nunes (ilustrações); Alexsandro Santos (tratamento de imagem). FOTO DA CAPA Taís Figueiredo e Isabela Sales calçam sandálias feitas de pneus, por Nailana Thiely AMAZÔNIA VIVA é editada por Delta Publicidade. CNPJ (MF) 04.929.683/0001-17. Inscrição estadual: Isenta Inscrição municipal: 032.632-5 Avenida Romulo Maiorana, 2473, Marco Belém - Pará amazoniaviva@orm.com.br

REALIZAÇÃO


NESTA EDIÇÃO

EDIÇÃO Nº 77 / ANO 7

NAILANA THIELY/ UEPA

MARÇO2018

32 Moda com

os pés no chão

A sustentabilidade inspira novas tendências no vestuário e linhas de calçados no século XXI CAPA FERNANDO SETTE

FERNANDO SETTE

FERNANDO SETTE

FÁBIO PINA

E MAIS

20 40 43 48

FOTOGRAFIA

ANCESTRAIS

MEMÓRIA

COTIDIANO

O fotógrafo Fábio Pina

Registros históricos e

Localizado no município

O artista plástico para-

faz um registro especial

arqueológicos mostram

de Cachoeira do Arari, o

ense Marinaldo Santos

da festa dos Pretinhos do

como era a vida da po-

Museu do Marajó é uma

fala das suas conexões

Mangue, bloco de carna-

pulação marajoara, suas

instituição que preserva

com a realidade multicor

val de Curuçá que levanta

origens, organização social

a história e valoriza a

impressa em seu trabalho

a bandeira sustentável.

e heranças de hoje.

vida do povo marajoara.

há 30 anos.

OLHARES NATIVOS

POPULAÇÕES

CULTURA

ARTES PLÁSTICAS

4 6 7 11 13 14 15 16 17 18 19 19 28 52 54 55 57 58

EDITORIAl AS MAIS CURTIDAS PRIMEIRO FOCO TRÊS QUESTÕES ELES SE ACHAM FATO REGISTRADO PERGUNTA-SE EU DISSE APPLICATIVOS CURIOSIDADES DA BIODIVERSIDADE DESENHOS NATURALISTAS CONCEITOS AMAZÔNICOS SUSTENTABILIDADE HISTÓRIA ESTANTE AMAZÔNICA FAÇA VOCÊ MESMO BOA HISTÓRIA NOVOS CAMINHOS

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ASMAISCURTIDAS DESTAQUES DAS EDIÇÕES ANTERIORES

BETTO SILVA

PEDRO PELOSO

ANFÍBIO FOTOGÊNICO

A foto da rãzinha feita pelo pesquisador Pedro Peloso para a reportagem de capa na edição de fevereiro teve o maior número de “likes” em nosso Instagram

PEDRO PELOSO/ MUSEU GOELDI MARÇO DE 2018

A seção Olhares Nativos da edição passada, com fotos de Betto Silva, foi a mais curtida e compartilhada pelos nossos seguidores no Facebook

fb.com/amazoniavivarevista

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O OUTRO LADO DO RIO XINGU

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PRIMEIROFOCO

O QUE É NOTÍCIA NA AMAZÔNIA

TEXTOS VICTOR FURTADO E ALINNE MORAIS

BELEZA NATURAL PRAIAS AMAZÔNICAS ENCANTAM PELOS CENÁRIOS PARADISÍACOS AO NORTE DO BRASIL PÁGINAS 8 A 11

FERNANDO SETTE

FAUNA

SAÚDE

O dançador-de-coroa-dourada é a primeira espécie de ave híbrida descoberta na Amazônia e a quarta registrada no mundo. PÁG.12

Pesquisadores de universidades de São Paulo, Rio Grande do Norte e Rondônia alertam para câncer causado por queimadas. PÁG.13

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PRIMEIRO FOCO

PRAIAS COM UM TOQUE AMAZÔNICO TEXTO JÚLIO MATOS

FOTOS FERNANDO SETTE

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FERNANDO SETTE

O Marajó é um dos destinos mais promissores do Pará e atrai cota significativa de visitantes nacionais e estrangeiros. São mais de 40 mil km² de área com encantadoras paisagens de campos alagados, mangues, florestas, multiplicidade de fauna e flora que o caracterizam como um dos mais importantes santuários ecológicos do planeta. O maior arquipélago fluviomarítimo do mundo exerce poder sobre seus visitantes, despertando o interesse pelas heranças deixadas por civilizações pré-históricas. Para além dos búfalos, dos guarás, dos queijos e das fazendas que se mantêm desde o século 17, o turista se perde nos encantos de praias paradisíacas. Soure e Salvaterra são as cidades mais procuradas pelos turistas e preservam belezas exuberantes. São duas belas oportunidades para conhecer praias de água doce com jeito de mar. A água salobra é uma realidade amazônica, quando as águas de diversos rios que cruzam a região se misturam ao Oceano Atlântico. Soure, a “Pérola do Marajó”, tem uma arquitetura que chama atenção pela simplicidade, casarios seculares, ruas largas e cheias de mangueiras. Salvaterra é caracterizada pelo seu cenário ecológico, campos, fazendas e rebanhos de búfalos. A “Princesinha do Marajó” já virou sinônimo de ecoturismo, afinal como não desejar um passeio em cima de um búfalo pelos campos marajoaras? Ir ao Marajó e não fotografar montando em cima de um búfalo é como ir ao Rio de Janeiro e não ir ao Corcovado. É na “Pérola do Marajó”, exatamente a 13 quilômetros da sede municipal, na foz do rio Amazonas, que está a Praia do Pesqueiro. Piscinas naturais, de areias finas e firmes, compõem o cenário deslumbrante.

Dunas que se espalham em quase toda sua extensão e inúmeros coqueiros e quiosques de palha são marcas registradas do lugar. O roteiro para quem deseja conhecer mais a fundo oferece variedade. Trilhas na floresta e nos mangues, canoagem pelo rio, passeio de búfalo, praia deserta, visita ao ateliê de cerâmica e também ao Centro de Processamento de Artesanato de Couro de Búfalo. Próximo dali, é possível conhecer a Fazenda São Jerônimo, onde foi gravada uma das edições do reality show “No Limite”, da TV Globo, que reúne densa vegetação, sobrevoo de pássaros, como os vermelhos guarás que riscam o espaço com suavidade e beleza. A fazenda é palco de ensaios fotográficos e locação de documentários e reportagens diversas. “Era 2012, fui convidado pela minha irmã para passarmos o carnaval em Soure. Entre as várias belezas típicas da região a tranquilidade da Praia do Pesqueiro me marcou bastante. E olha que era carnaval. Ah, os caranguejos comercializados nas barracas ao longo da praia são uma das melhores pedidas”, conta o jornalista Silvano Viana. As praias de Soure são de rio, mas se parecem mais com praias de mar. Entre os meses de julho e dezembro, com a influência do Atlântico, a coloração da água fica levemente esverdeada e ainda mais convidativa para o mergulho.

PRAIA GRANDE

A 500 metros do centro de Salvaterra, encontra-se a Praia Grande. O local é perfeito para quem quer aproveitar dias de descanso em meio a muito sol e natureza. A Praia Grande tem 1.500 quilômetros de extensão e é uma das

COMO CHEGAR? De barco Do Terminal Hidroviário de Belém, saem regularmente navios com destino ao Porto de Camará, no arquipélago do Marajó. A viagem dura aproximadamente três horas. De Camará, o deslocamento pode ser feito por vans até o centro de Salvaterra ou de Soure. Já de Salvaterra para Soure a travessia é feito por balsa, que saem de hora em hora.

De lancha Também no Terminal Hidroviário de Belém, há opção de transporte expresso para Soure e Salvaterra, com lanchas que saem todos os dias. O preço da passagem é mais alto do que de barco, mas compensa em comodidade, conforto e rapidez. A viagem dura cerca de duas horas, com paradas diretamente em Salvaterra e Soure.

De carro e balsa Saídas de balsas do distrito de Icoaraci, em Belém. A travessia dura entre três e quatro horas até o porto do Camará. De lá, o visitante chega de carro aos destinos de interesse. MARÇO DE 2018

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PRIMEIRO FOCO

CENÁRIO NATIVO Praias paradisíacas de água salobra formam a paisagem local FERNANDO SETTE

mais visitadas da região. Com localização na zona urbana, dispõe de infraestrutura turística que oferece serviços de bar, restaurante e hospedagem funcionando em horário integral, principalmente em períodos de alta temporada. No mês de julho e em feriados prolongados, há um grande fluxo de visitantes, em decorrência das programações desenvolvidas. A museóloga Larisse Rosa esteve na Praia Grande duas vezes. Ela reitera que viajar para

tudo é que você não precisa pegar nenhum tipo de condução para chegar na Praia Grande, pois ela fica no centro da cidade, extremamente acessível. Nos seus quase dois quilômetros de extensão podemos apreciar paisagens maravilhosas. A orla chama atenção e é muito bem feita, com boa vista da praia; tem um igarapé que desemboca na praia, para aqueles que não estão dispostos a mergulhar nela. É uma das melhores praias que já visitei”, conta Larisse. Ainda sobre a Praia Grande, o estudante de Engenharia Wagner Costa ressalta que a água é limpa e boa para o banho, a orla é um atrativo e as barracas oferecem cardápios variados. “Eu fui a primeira vez em 2014 e voltei em seguida levando meus pais e alguns amigos. É um lugar que encanta muito, o Marajó é encantador. O fato de a Praia Grande ser no centro da cidade é outro atrativo, principalmente para quem não vai com veículo próprio. O acesso é fácil e tranquilo. As barracas e quiosques oferecem serviço para todos os gostos e principalmente, para todos os bolsos”, destaca. AQUELE SOSSEGO

FERNANDO SETTE

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o Marajó de modo geral não é tão simples, mas Salvaterra, pela relativa proximidade de Belém, tem um acesso mais rápido. “Salvaterra é uma das cidades mais acessíveis em todos os sentidos, seja de rota, seja a nível financeiro. É a melhor opção para quem deseja conhecer o Marajó e não quer passar muito tempo viajando pelos rios da Amazônia”, diz. “A cidade dispõe de infraestrutura necessária para receber turistas. Bares, restaurantes, lanchonetes e pizzarias. E o melhor de

Os turistas encontram tranquilidade, em convívio direto com os pescadores locais

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TRÊSQUESTÕES

Pelo protagonismo das crianças e adolescentes O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, lei federal 8.069/1990) é de proteção desse público. A Ordem dos AdANDERSON SILVA / AGÊNCIA PARÁ

PARA O MUNDO Filme sobre o surf na pororoca deverá ser exibido no Reino Unido, França e Canadá

vogados do Brasil Seção Pará (OAB-PA) promoverá um curso prático sobre os crimes previstos no ECA.

DIVULGAÇÃO / OAB

uma das mais completas legislações

Será nos dias 16 e 17 de maio. Ricardo Washington, presidente da Comissão da Criança e do Adolescente da OAB-PA, faz uma análise sobre os avanços e obstáculos da legislação. Entre os diversos crimes contra crianças e

FENÔMENO

adolescentes quais são os mais comuns?

POROROCA SERÁ TEMA DE DOCUMENTÁRIO NA EUROPA E CANADÁ

O fenômeno da Pororoca, que ocorre no Pará, será registrado em imagens para a produção de um documentário. A obra audiovisual deverá ser exibida no Reino Unido, França e Canadá. A equipe da Associação Brasileira de Surf na Pororoca (Abraspo) coordenou, entre o fim de janeiro e início de fevereiro, todos os trabalhos relacionados a produção. A obra tem como objetivo apresentar o fenômeno da pororoca, que resulta do encontro das águas do mar com as do rio, aos telespectadores das redes de telecomunicações BBC, de Londres; CBC, do Canadá; e France 5, da França. Além disso, a intenção dos diretores é mostrar a onda mais longa do mundo e os aspectos culturais que criam um plano de fundo que torna toda essa operação

uma experiência única, explicitando como o fenômeno influencia na vida de surfistas ribeirinhos. Dois diretores da produção vieram diretamente da Inglaterra para coordenarem a captação das imagens, que ficará sob a responsabilidade da produtora brasileira Zumbi Filmes. Além deles, o documentário terá uma equipe composta por alguns dos mais experientes surfistas de pororoca do Brasil e do mundo como: Sandro Buguelo, Nayson Costa, Walmecy Espinola, Reginaldo Beringo, Gilvandro Júnior, Franco Piserchia, Marcelo Bibita, George Noronha e Noélio Sobrinho. Além de mostrar o encontro das águas o documentário vai possibilitar ainda que as belezas naturais do Pará e cultura da região sejam levadas para os olhos do mundo.

As violências sexual, física e psicológica, maus-tratos e abandono. Mudanças no ECA tentam contornar esse cenário e reduzir esse tipo de violência. Em 2017, tivemos uma alteração no ECA, que traz diversos tipos de violência conceituadas, além da institucional, a cometida por órgãos públicos. Onde se encontra a maior falha na prevenção desses tipos de crimes? O foco na família e como ela pode ser melhor atendida pelo poder público, grupos de apoio, organizações sociais, escola e comunidade. A rede de atendimento enfrenta a precarização do serviço público. Muitos órgãos não têm tanta prioridade e especificidades para atendimento de crianças e adolescentes, como a demanda pede e a legislação exige. Crianças e adolescentes, hoje, estão mais amparadas pelos próprios direitos? A difusão dos direitos está maior pela internet, pelas abordagens nas mídias e tem lei que obriga a apresentação do ECA de forma transversal nas escolas. O que precisamos é que essas crianças e adolescentes sejam mais protagonistas na formulação de seus próprios direitos. Há iniciativas, mas ainda falta muito para isso.

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PRIMEIRO FOCO

MAYA FACCIO/ MUSEU GOELDI

DESCOBERTA PRIMEIRA ESPÉCIE DE AVE HÍBRIDA DA AMAZÔNIA O dançador-de-coroa-dourada (Lepidothrix vilasboasi), foto acima, é a primeira espécie de ave híbrida reconhecida na Amazônia e a quarta registrada no mundo. A descoberta é resultado de uma parceria estabelecida em 2010 entre o Museu Paraense Emílio Goeldi e a Universidade de Toronto, Canadá. Ave endêmica do Estado, o Lepidothrix vilasboasi habita a região sul da Floresta Amazônica. Mais especificamente, a espécie pode ser encontrada à margem direita do rio Tapajós e à margem esquerda do rio Jamanxim, onde está localizada um complexo de unida12 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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des de conservação que inclui o Parque Nacional do Jamanxim. O animal é resultante do cruzamento de duas espécies distintas: o Lepidothrix nattereri e o Lepidothrix iris. Para chegar a essa conclusão os pesquisadores coletaram amostras em duas pesquisas de campo no Brasil e sequenciaram uma boa parte do genoma do Lepidothrix vilasboasi. Os resultados mostraram que a espécie tem 20% do genoma originário do L. nattereri e o restante do L. iris. O grande diferencial entre as três espécies é a coloração das penas da cabeça. No L. iris as penas são coloridas e no L. nat-

tereri, brancas. Já no L. vilasboasi a coroa de penas apresenta um amarelo único, bastante diferente das espécies parentais, resultado da hibridação da ave. Com a confirmação da origem híbrida do dançador-de-coroa-dourada os pesquisadores confi rmam que a hibridização pode ser um importante fator na geração da maior riqueza de aves na Amazônia além de alertarem para preservação da espécie, já ameaçada de extinção. Isso ocorre porque a ave habita uma área vem apresentando um aumento expressivo do desmatamento nos últimos anos.


SAÚDE

Partículas carregadas de toxinas, que são liberadas durante as queimadas na Amazônia, se inaladas por um longo período de tempo podem causar estresse oxidativo das células e danos genéticos irreversíveis, que podem levar ao câncer de pulmão. A descoberta é resultado de um estudo realizado por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Fundação Oswaldo Cruz e Universidade Federal de Rondônia (UFRO). Para o estudo, os pesquisadores coletaram amostras de material particulado fino em Porto Velho, uma das áreas mais afetadas pelas queimadas na região amazônica. Em seguida, para entender como ocorre a contaminação, eles expuseram em laboratório uma linhagem de células pulmonares às partículas de material

tóxico. Essas análises permitiram medir o grau de inflamação e de lesão no DNA. Foi comprovado que o dano no DNA pode ser tão grave a ponto da célula perder o controle e começar a se reproduzir desordenadamente, evoluindo para câncer de pulmão. Para a pesquisadora Sandra Hacon, da Escola Nacional de Saúde Pública, as conclusões do trabalho são inéditas. Segundo ela, pela primeira vez foi possível demonstrar que as partículas de queimadas da Amazônia, ao entrarem nos alvéolos pulmonares, causam danos genéticos nas células, podendo levar ao câncer de pulmão. A estudiosa alertou ainda que as crianças menores de cinco anos, prejudicadas pelo impacto das partículas com componentes cancerígenos da fumaça das queimadas, podem desenvolver alergias respiratórias.

CESAR AUGUSTO FAVACHO

FUMAÇA DE QUEIMADAS NA AMAZÔNIA PODE CAUSAR CÂNCER

ELESSEACHAM

Cuíca ameaçada Existem 272 espécies de marsupiais no mundo, cerca de 70 espécies são nativas da América do Sul. No Brasil são conhecidas 44 espécies e apenas uma delas, a cuícade-colete-de-rondônia (Caluromysiops

irrupta) está na lista oficial de ameaçada de extinção, na categoria crítica. São solitárias e orientam-se pelo cheiro para encontrar parceiros. Fazem trilhas de odores por onde passam usando saliva e substâncias eliminadas por suas glândulas das axilas. As cuícas são menores que os gambás, mais graciosas e quase todas são arborícolas, movimentando-se com ajuda das mãos, que são bem articuladas e da cauda preênsil. Não possuem uma bolsa e sim pregas de pele nas laterais, o que ajuda os filhotes a se manterem agarrados às glândulas mamárias. O exemplar fotografado é da espécie

Caluromys philander (Linnaeus, 1758). Como tem comportamento noturno desenvolveu mecanismos para não ficar vulnerável aos predadores, como corujas, mamíferos carnívoros e serpentes. Têm coloração marrom e se confundem com folhagens mortas. O fotógrafo a ANDRÉ BORGES / AGÊNCIA BRASÍLIA

CAUSA DE DOENÇAS

surpreendeu durante o dia, quando estava em repouso em uma folha seca enrolada de Heliconia. Os marsupiais arborícolas têm sofrido grandes perdas de habitats pelas ações humanas de desmatamento. Por INOCÊNCIO GORAYEB

Partículas carregadas de toxinas liberadas nas queimadas podem colocar a saúde em risco

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FATO REGISTRADO

Maria de Jesus, uma educadora exemplar TEXTO E FOTOS INOCÊNCIO GORAYEB

Esta foto é de 1983 e registra a dra. Maria de Jesus da Conceição Ferreira Fonseca com outros alunos universitários, quando eram estagiários da entomologia do Museu Paraense Emílio Goeldi, em atividade de coleta de campo no município de Bujaru, Pará. A professora Maria de Jesus tinha graduação de Licenciatura Curta em Ciências e de Licenciatura Plena em Ciências Biológicas, ambas pela Universidade Federal do Pará, em 1981; além de mestrado em Educação, em 1996; e doutorado em Ciências Biológicas, em 2003. Entrou para Universidade do Estado do Pará em 1989, quando ainda pertencia à Fundação Educacional do Pará e foi uma das fundadoras do 14 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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mestrado em Educação, onde assumiu a coordenação até março de 2012. A doutora Maria de Jesus era professora do curso de Pedagogia e dos cursos de especialização do Centro de Ciências Sociais e Educação. Foi uma educadora destacada com um currículo brilhante que foi homenageada várias vezes pelos alunos, por seus pares e por instituições onde trabalhou. Foi fundadora do Núcleo de Estudos em Educação Científica, Ambiental e Práticas Sociais (NECAPS) da Universidade do Estado do Pará, que instituiu em sua homenagem o prêmio “Professora Maria de Jesus para Educadores Ambientais”, concedido para educadores que de-

senvolvem práticas em educação ambiental no contexto escolar. O Encontro de Educação Ambiental em Contextos Escolares (EEACE) promovido pelo NECAPS promove a discussão e a difusão das pesquisas em Educação Ambiental desenvolvidas por profissionais e instituições de ensino superior para tornar as práticas de educação ambiental nas escolas um processo permanente de ação e reflexão, além de possibilitar um diálogo entre as diferentes regiões do país. Este encontro traz profissionais de diversos estados brasileiros e proporciona discussões amplas sobre o que estão pesquisando e trabalhando na área de educação.


PERGUNTA-SE PRESERVAÇÃO

É PRECISO ESCLARECER MITOS E VERDADES

ARARAJUBAS SÃO SOLTAS NA ÁREA DO PARQUE DO UTINGA Dez ararajubas foram devolvidas à natureza no fi m de janeiro, no Parque Estadual do Utinga, em Belém. A reintegração das aves ao seu habitat natural faz parte do projeto “Reintrodução e Monitoramento de Ararajubas (Guaruba guarouba) em Unidades de Conservação da Região Metropolitana de Belém”, desenvolvido pelo Instituto de Desenvolvimento Florestal e da Biodiversidade do Estado do Pará (Ideflor-bio) e pela Fundação Lymington, de São Paulo. Trazidas de São Paulo, as aves, que estavam extintas em Belém há anos, passaram por um processo de adaptação que durou seis meses. Durante esse tempo os animais foram instalados em dois viveiros de ambientação e tiveram uma dieta com base em alimentos encontrados no parque,

Sabonete antibacteriano pode fazer mal? As propagandas prometem saúde e felicidade, mas o uso de sabonetes antibacterianos precisa

como açaí, caju, goiaba e maracujá. Além alimentação, os animais foram incentivados a voarem diariamente entre os viveiros para garantir a manutenção de suas aptidões físicas. O comportamento em relação a predadores naturais também foi sendo construído com o tempo, de forma que as aves pudessem reconhecer as principais ameaças, como cobras e gaviões. Diferente das solturas tradicionais, em que as gaiolas são abertas e os animais voam aleatoriamente, a reintrodução é realizada de forma gradual. Assim, o viveiro foi mantido aberto até que as aves se sentissem seguras para sair. Agora, já soltas no Utinga, elas vão ajudar na recomposição da fauna e recuperação do meio ambiente da região metropolitana de Belém.

ser muito controlado e específico. Do contrário, o resultado que se busca, saúde e proteção, pode acabar sendo o oposto. É o que explica a professora Adreanne Oliveira, coordenadora do curso de Farmácia da Universidade da Amazônia (Unama). Sair tomando banho o tempo todo com esse tipo de produto realmente vai matar bactérias. Mas vai matar até o que não deveria. “Em alguns momentos não faz tão bem. Precisamos ter a proteção de nossa própria pele. Quando usamos produtos com características bactericidas, tiramos até as bactérias boas do organismo. Assim, acabamos ficando mais expostos a infecções diversas. Então é melhor usar os tipos certos de sabonetes para cada tipo de pele”, orienta a professora. O que é pior: assim como ocorre antibióticos, as bactérias ruins podem criar resistência e ficarem mais fortes e causarem doenças mais graves. Adreanne alerta também para produtos antibacterianos que tenham triclosan. Essa substância pode ser prejudicial ao organismo.

Dez ararajubas foram devolvidas à natureza. Elas eram consideradas extintas na capital paraense.

DANIEL DUCHON / FREEIMAGES

THIAGO GOMES / AGÊNCIA PARÁ

DE VOLTA AO LAR

MANDE A SUA PERGUNTA

Envie perguntas instigantes sobre hábitos, costumes e fenômenos da região amazônica para o e-mail: amazoniaviva@orm.com.br

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EU DISSE

Miguel Chikaoka, paulista radicado em Belém sobre seu trabalho de fotografia na Amazônia.

REPRODUÇÃO / CC BY-SA 2.0

“Acredito que o fotógrafo é quem se apropria da linguagem fotográfica e se expressa por meio dela, mesmo que para si. É um exercício humano, de sensibilidade. A fotografia é uma fala, uma linguagem.”

“Você não vai ter uma boa ideia se não se desconectar do seu telefone um pouco.” Randi Zuckerberg, empresária e irmã de Marck Zuckerberg, um dos fundadores do Facebook.

“É necessário respondermos de forma urgente, com investimento em energias renováveis, incentivo a opções mais sustentáveis de mobilidade, maior controle do desmatamento, práticas agrícolas de baixo carbono, entre outros” André Nahur, coordenador do Programa Mudanças Climáticas e Energia do WWF-Brasil, sobre as formas de combate aos problemas climáticos.

“O ano passado pode cair na história como o ano em que os impactos das mudanças climáticas finalmente se tornaram inegáveis.” Chris Weber, líder de Ciência de Clima e Energia da rede World Wildlife Fund (WWF)

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GUTEMBERG BRITO / FIOCRUZ

“Mesmo que acabem todos os macacos de uma aérea, durante algumas gerações o vírus vai ficar ali. E o mosquito vai procurar o ser humano para se alimentar. Se você diminui a população de macacos, mais gente será picada.”

APPLICATIVOS

Localizador Familiar e de Telefone Uma ferramenta gratuita e disponível para Android e iOS. Basta criar uma lista dos dispositivos a serem rastreados e ligar o GPS para acompanhar. Com alguns ajustes, a ferramenta pode até ser usada para trabalho e rastrear de veículos.

Ricardo Lourenço, pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz, ao fazer um alerta de que o massacre de primatas não é a solução contra febre amarela.

“Com a internet, o Brasil ficou mais evidente, suas idiossincrasias aparentes. Isso é bom para o desenvolvimento de uma nação.”

Pocket Você tem links demais para ver depois e acaba se esquecendo de tantos textos e vídeos, em meio a tanta informação? É um problema comum para usuários de redes sociais digitais, mas é para resolver isso que o Pocket foi criado. Todos os links guardados são colocados lá. Daí basta adicionar lembretes. Gratuito para Android e iOS.

Frank Borges, ator da série Brasil a Bordo, da rede Globo.

“Levanto as bandeiras que trazem amor.” Pabllo Vittar, cantora drag queen,

sobre o seu repertório musical e carreira.

Drops Cursos de idiomas em apps são comuns. Mas a ideia do Drops é ensinar pelo menos um entre 24 idiomas, como japonês e coreano, de uma forma diferente: associação de palavras, conceitos e imagens. As sessões de estudo foram programadas para serem curtas, com uma média de 5 minutos. Gratuito para Android e iOS. FONTES: PLAY STORE E ITUNES

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CURIOSIDADES DA BIODIVERSIDADE

Mimetismo de filhotes de pássaro com lagartas urticantes

FOTOS: REPRODUÇÃO

TEXTO INOCÊNCIO GORAYEB

O pássaro da espécie Laniocera hypopyrra foi descrito por Vieillot, em 1817. É conhecido vulgarmente como maria-pintada, chorona-cinza e irapuru-grande. Ocorre ao longo de toda a Amazônia brasileira e na Mata Atlântica, do sul da Bahia ao norte do Espírito Santo, e também nos demais países amazônicos. A espécie é citada no livro de Novaes & Lima (1998 e 2009) “Aves da grande Belém” por registros de coletas em Belém, no Utinga (mata), Murutucu (capoeira), Igarapé-Aurá (capoeira, transição de mata de terra firme e mata de várzea e igapó) e na estrada de Mos18 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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queiro. Um desenho do macho adulto (de A. C. S. Martins) só foi apresentado no livro “Brasil 500 Pássaros” (2000). Mais recentemente, Londoño, García & Martínez (2014) escreveram um artigo onde comentam que a predação é a principal causa da falha do ninho de aves, por isso a seleção natural deve favorecer estratégias que reduzam a probabilidade de predação do ninho. Eles também descreveram o mimetismo aparente na morfologia e comportamento desta espécie. Os estudiosos destacam que no período

de incubação o ninho tem uma cor laranja brilhante evidente e os filhotes tem penas da mesma cor em todo o corpo. Com seis dias após a incubação, começam a mover a cabeça muito devagar de um lado para o outro, em um movimento semelhante ao de lagartas, quando perturbados. A coloração, o aspecto plumoso e o comportamento são semelhantes a uma lagarta peluda e urticante. Esta espécie tem um longo período de ninhada - 20 dias -, isso se deve talvez às baixas taxas de provisionamento de alimento aos imaturos (cerca de uma alimentação por hora). Já a taxa de crescimento lento, combinada com a alta predação do ninho, favorece a evolução dos mecanismos de antipredação como as características morfológicas e comportamentais únicas desta espécie.


DESENHOS NATURALISTAS

CONCEITOSAMAZÔNICOS O VOCABULÁRIO REGIONAL É UM PATRIMÔNIO

Aguado Nos dicionários, o termo aguado, ou aguada, refere-se a lugares de provisão de água doce para viagens marítimas; lugar onde as embarcações se abastecem de água doce. Também é relativo à manancial, onde os animais bebem água ou lugares onde existem cacimbas, fontes ou poços. Ainda é relativo a gênero de pintura ou técnica pictorial em que se dilui a tinta com água e goma, ou simplesmente água, obtendo cores transparentes. No Pará, é mais aplicado em outra

ACERVO MUSEU GOELDI

Primeiro registro sobre a mucura

“Entre estas árvores achou-se aquele animal monstruoso com focinho de raposa, cauda de cercopiteco, orelhas de morcego e mãos humanas, imitando nos pés o macaco, que transporta seus filhos já nascidos, para onde quer que vá, em um útero externo a modo de uma grande bolsa. Este animal, embora morto, tu mesmo viste comigo e o manuseaste e admiraste aquela bolsa, novo útero, novo remédio da natureza, com o qual livra dos caçadores e dos outros animais violentos e rapaces os filhos, levando-os consigo. Capturaram com os filhotes o próprio animal; as crias morreram pouco depois nos navios, mas a mãe sobreviveu alguns meses; por fim ela tampouco pode suportar uma mudança tão grande de clima e de alimentos ...” Este texto sobre a mucura está na versão da obra “De orbe nouo Decades”, escrita por Martyr, em 1511, sobre a viagem de Vicente Yánez Piñzón

(1499-1500) ao Brasil. Os navegantes encontraram e comentaram sobre o animal; a figura que fizeram é um desenho da fêmea com os filhotes na bolsa da barriga. O texto foi retirado do livro “Os primeiros documentos sobre a história natural do Brasil. Viagens de Piñzón, Cabral, Vespucci, Albuquerque, do Capitão Gonneville e da Nau Bretoa”, publicado por Dante M. Teixeira & Nelson Papavero em 2009, 2ª edição, pelo Museu Paraense Emílio Goeldi. A mucura é um mamífero da infraclasse Marsupialia, da espécie Didelphis marsupialis, descrita por Linnaeus, em 1758. Um exemplar desta espécie foi o primeiro marsupial a ser conhecido pelos europeus. Pinzón foi quem, em 1500, levou este animal para a Europa, o que causou estranheza, uma vez que os marsupiais, na Europa, haviam se extinguido no período terciário, há mais de 60 milhões de anos.

conotação. Por exemplo: “Belém sempre tem um céu com nuvens, algumas escuras e outras brancas, mas com um fundo azul aguado, único”; “Esse mingau está aguado”; “No passado, em Belém, o leite de vaca era vendido e entregue em casa em litros de vidro, produzido em vacarias da periferia da cidade, geralmente de portugueses, mas o povo brincava chamando-os de bombeiros, porque o leite era aguado”; “Essa moça é aguada, branquela, pálida demais”. Por INOCÊNCIO GORAYEB

Por INOCÊNCIO GORAYEB

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OLHARES NATIVOS

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Com o pé na lama

A brincadeira de se sujar é certa. Só que sempre fica a indecisão de quem vai primeiro. Basta um corajoso perder a vergonha que os demais seguem como uma manada. Costuma passar de 10 mil foliões facilmente. Muitos são turistas. FOTO: FÁBIO PINA REVISTA AMAZÔNIA VIVA • 21


OLHARES NATIVOS

Matinta no mangue

É uma figura que sempre está presente. Não se sabe se é uma tradição mais significativa - algo incomum para o Carnaval -, mas é uma representação do respeito à natureza. A pessoa que encarna a personagem fala sobre a proteção ao bioma. Claro que ela se suja também. FOTO: FÁBIO PINA

Um passeio cultural pelo mangue Os Pretinhos do Mangue, bloco de carnaval do município de Curuçá, visualmente são um espetáculo que mistura a folia carnavalesca com a lama do mangue. O fotógrafo Fábio Pina gosta de registrar as tradições mais curiosas com identidade amazônica. É o que ele define como “universo chamado Pará”. As fotos no carnaval de Curuçá ilustram a seção deste mês. Pina, no começo da carreira, costumava fazer viagens para desbravar esse universo. Quando montou o próprio estúdio, acabou deixando as viagens de lado. Agora vem resgatando esse trabalho artístico e documental. Foi a primeira vez no pitoresco carnaval de Curuçá, apesar de já ter acompanhado os trabalhos de outros fotógrafos. Quando começou a fotografar, sentiu uma nostalgia. “Já fui moleque. Tínhamos um sítio em Marituba. Sempre fazia guerra de lama lá pelos igarapés, não só no carnaval, mas sempre que chovia, eu e meus amigos, primos e outros garotos de lá”, conta, resistindo à tentação de se sujar também. Até para preservar o equipamento e trazer as imagens de volta de Curuçá.

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Saídos do pântano

Depois de se sujarem, aqueles que se sujaram no mangue invadem as ruas da cidade de Curuçá. Vão atacar o mau humor com algazarra e folia. É quando começam os desfiles dos blocos. Quem não tem coragem de se sujar de alegria, assiste da porta ou varanda de casa. FOTO: FÁBIO PINA

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Lama e diversão

Mesmo autoproclamado como um carnaval mais naturalista, ninguém costuma ficar totalmente pelado. Os foliões misturam a lama como uma maquiagem e adereços para as fantasias de carnaval. E assim formam vestimentas únicas. Mas a regra do carnaval ecológico é clara: tudo deve ser levado de volta. O resultado é que as fantasias “cinza mangue” contrastam com outras cores. FOTOS: FÁBIO PINA

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OLHARES NATIVOS

Guardado na memória

As crianças são as que mais aproveitam a folia do mangue. Se sujam, atiram lama para todos os lados e se divertem de uma maneira muito sadia e tradicional. Desde cedo já aprendem que o mangue fornece a diversão, mas precisa ser cuidado para manter o equilíbrio ecológico. Foi a parte mais nostálgica para Fábio Pina.

Envie as suas fotos para a seção Olhares Nativos 26 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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Para participar da seção “Olhares Nativos” da revista Amazônia Viva basta enviar fotos com temática amazônica para o e-mail amazoniaviva@orm.com.br acompanhadas pelo nome completo do autor, número de identidade e uma breve informação sobre o contexto do registro fotográfico. As imagens devem ser autorais e com resolução de no mínimo 300 dpi. A publicação das fotos tem fins meramente de divulgação de trabalhos profissionais ou amadores, não implicando em qualquer tipo de remuneração aos autores. Participe!


OPINIÃO, IDENTIDADE, INICIATIVAS E SOLUÇÕES ACERVO / PEABIRU

IDEIASVERDES

MAIS RENDA NO AÇAIZAL RIBEIRINHOS APRENDEM A GERIR

MELHOR OS RECURSOS NATURAIS PÁGINA 28

CONSCIENTIZAÇÃO

MEMÓRIA

Designers assumem o desafio de criar peças e acessórios voltados para a promoção da sustentabilidade com conceitos do baixo consumo. PÁG.32

Museu do Marajó guarda um legado inestimável da cultura amazônica com seu acervo exclusivo e peculiar. PÁG.43


SUSTENTABILIDADE

Riquezas que saem da floresta

ARTESÃOS E PRODUTORES RURAIS AMPLIAM CONHECIMENTOS EM GESTÃO E COMERCIALIZAÇÃO COM APOIO DE TÉCNICOS E AMBIENTALISTAS TEXTO JÚLIO MATOS

M

ercado por rios e matas, o arquipélago do Marajó é uma das regiões mais ricas do Brasil em biodiversidade. Sua população tem cerca de 500 mil habitantes, espalhados por 16 municípios, que encontram na floresta morada, fonte de renda e subsistência. A extração ou retirada da floresta de recursos naturais em sua forma original continua gerando emprego no arquipélago marajoara. Nos últimos anos, dispõe do auxílio de organizações que dão suporte aos ribeirinhos para o manejo consciente e sustentável das riquezas florestais. Derivados da floresta, à exceção da madeira - fibras, frutos, raízes, cascas, folhas, cogumelos, mel, plantas medicinais, lenha e carvão, entre outros -, são denominados, literalmente, Pro-

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dutos Florestais Não Madeireiros (PFNM). Em meio a um mundo preocupado com questões ligadas ao aquecimento global e desmatamento florestal, a extração e a comercialização dos PFNM têm apresentado grande importância social, econômica e ambiental, principalmente por preservar parte importante da biodiversidade das florestas nativas e gerar renda. No coração da Amazônia, artesãos e produtores rurais ampliam seus conhecimentos em gestão e comercialização junto a equipes técnicas que realizam levantamentos socioambientais para planejar a assistência técnica e extensão rural sobre as comunidades. As populações tradicionais amazônicas buscam incessantemente melhoria na qualidade de vida e gradativamente vão alian-


UNINASSAU BELÉM/ DIVULGAÇÃO

Populações tradicionais amazônicas buscam melhor a qualidade de vida e, gradativamente, vão aliando geração de renda ao desenvolvimento sustentável do geração de renda ao desenvolvimento sustentável. Organizações sociais, como o Instituto Peabiru, apresentam novos mercados para as cadeias produtivas locais e geram inclusão social. Presidente da Cooperativa de Sementes do Marajó, Herde Barreto conta que o Peabiru contribuiu para a constituição do grupo, em 2015. Antes disso, tinha status apenas de movimento comunitário, reunindo onze associações de moradores. Atualmente alcançam 71 cooperados. “O trabalho na cooperativa com o apoio do instituto nos ajuda a desenvolver a comunidade, mudar a vida dos produtores rurais, agregar valor aos produtos através da qualidade. São oferecidas capacitações e consultorias da produção ao manejo, além de incentiACERVO / PEABIRU

SUBSISTÊNCIA

A extração de recursos da floresta, como o açaí, gera emprego e renda para os marajoaras

vos. O produtor ganha qualidade, preço e conforto”, diz Barreto. De acordo com o diretor-geral do Instituto Peabiru, João Meirelles Filho, os extrativistas do Marajó sofrem com um descaso histórico que contribuiria para baixos índices de desenvolvimento humano. “O Marajó é uma região historicamente excluída, com indicadores sociais entre os piores do Brasil, ausência de bancos, falta de crédito, educação precária e há poucos projetos voltados para solucionar problemas estruturais dali”, diz. Açaí, palmito, mel de abelha, castanha-do-pará, andiroba e copaíba - para citar alguns dos principais produtos de comercialização por parte dos ribeirinhos - são encontrados nos mercados municipais, nas tabernas e também nas feiras livres espalhadas pelos trapiches, associações ou cooperativas. Aos finais de semana, é comum ver movimentação maior pelos rios, dos mais variados tipos de barcos, que os ribeirinhos utilizam como meio de transporte e para escoar a produção. Por vezes sem o trato adequado, manuseio equivocado e sem padrão de higiene, os extrativistas encontram dificuldades para o comércio de seus produtos e até perdem parte da produção pela má conservação. A falta de segurança também expõe os ribeirinhos ao perigo. A colheita do açaí, com técnica tradicional de subir nos açaizeiros com a peconha e sem proteção, é motivo de preocupação. Entre 2010 e 2012, o Peabiru realizou uma primeira ação para o diagnóstico socioeconômico, ambiental e cultural da região do arquipélago. Chamado de Escuta Marajó, foi o primeiro passo do instituto para se posicionar e fundamentar a elaboração de projetos. Além de conhecer as necessidades, anseios e potencialidades das populações dos 16 municípios da mesorregião do Marajó, a Escuta buscou integrar as dimensões individuais, sociais, políticas e ambientais da realidade marajoara. MARÇO DE 2018

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SUSTENTABILIDADE

Logo após o Escuta Marajó, em 2013 teve início o projeto Marajó Viva Pesca, cujas ações estimulam acordos de pesca artesanal com 16 associações das comunidades ribeirinhas e colônias de pescadores do Rio Canaticu, no município de Curralinho. O objetivo é a conservação e recuperação de espécies em estado de sobrepesca - pesca excessiva e insustentável praticada pela ação humana, além da mobilização dos atores locais para discutir e implementar um Núcleo de Gestão de Pesca do Rio Canaticu. “Depois de ouvir os anseios dos atores sociais, iniciamos uma primeira atividade relacionada à pesca. Tivemos um alcance de 1.500 famílias e o propósito era a sensibilização para que as próprias pessoas definissem regras de

uso dos recursos aquáticos. Quando se tem uma comunidade organizada, projetos como esse são levados adiante”, conta Meirelles Filho. As comunidades locais do Marajó encontram no açaí 70% de sua renda. O açaizeiro dá tanto o fruto quanto o palmito extraído do caule, constituindo-se, portanto, uma palmeira economicamente rentável. Entre 2015 e 2016, o Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região (TRT-8) financiou pesquisa realizada pelo Peabiru e a Fundacentro, órgão do Ministério do Trabalho e Emprego, que orienta políticas FONTE DE RENDA

As comunidades tradicionais do Marajó encontram no açaí 70% de sua renda familiar

públicas em Segurança e Saúde no Trabalho e Meio Ambiente, para avaliar os riscos das atividades do açaí. Analisou-se o cotidiano do trabalho investigando suas características, riscos e desafios. O estudo mostrou que a partir do momento em que o açaí se torna um produto com demanda crescente, nacional e internacional, comportando-se como uma commodity, os produtores ribeirinhos sobem dezenas de vezes ao dia nas palmeiras, e as comunidades manejam áreas cada vez maiores. Isto aumenta exponencialmente os riscos de acidentes. Anteriormente, entre 2013 e 2015, o Projeto de Fortalecimentos do Arranjo Produtivo Local (APL) do Açaí e da Andiroba ofereceu as atividades de capacitação, qualificação e aprimoramento dos ACERVO / PEABIRU

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FORMAÇÃO

As ações do Peabiru junto às comunidades tradicionais e extrativistas do Marajó estão pautadas na capacitação da comunidade e na organização para a gestão dos recursos naturais visando à sustentabilidade

ACERVO / PEABIRU

O Peabiru promove cursos de capacitação para os extrativistas marajoaras

processos operacionais das cadeias de valor do açaí e andiroba no Marajó, discutindo questões sobre a produção, armazenamento, transporte e comercialização. O projeto foi financiado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e o Ministério do Meio Ambiente. “As ações do Peabiru junto às comunidades tradicionais e extrativistas do Marajó estão pautadas na capacitação da comunidade e na organização para a gestão dos recursos naturais visando a sustentabilidade. O instituto atua na captação de recursos para que possamos ter autonomia para gerir nossos próprios projetos”, conta o presidente do Colegiado de Desenvolvimento Territorial e Sustentável do Marajó (Codetem), Cacau Novaes. “O Peabiru foi essencial para a implantação do nosso centro de informática. Dez computadores movidos à energia solar atendem hoje escolas e a comunidade da Ponta Alegre.”, lembra Cacau Novaes.

Depois disso, o município de Curralinho aprovou uma lei que tornou a inclusão digital uma de suas prioridades. A cidade é beneficiada pelo Programa Serpro de Inclusão Digita l, iniciativa do Ser viço Federal de Processamento de Dados (Serpro) em parceria com o Peabiru. “Todos os nossos projetos ocorrem para que as comunidades busquem a sustentabilidade. Nós queremos que as comunidades reconheçam e tratem as questões sociais – trabalho infantil, trabalho escravo, o papel da mulher e dos jovens, se o manejo do açaí está provocando desmatamento, que se adotem medidas de segurança, enf im. O nosso papel enqua nto orga nização socia l é dar condições para as populações tradicionais enfrentarem os problemas diários, que se organizem, que haja uma democracia e isso está inteiramente ligado ao se destacar o trabalho de mulheres e jovens também”, explica João Meirelles Filho, diretor-geral do Peabiru. MARÇO DE 2018

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CAPA

VERDE FASHION Roupa vegana, calçado de pneu e baixo consumo: pesquisas de designers paraenses indicam que sustentabilidade está na moda TEXTO DAYANE BAÍA 32 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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FOTOS NAILANA THIELY


P

esquisas desenvolvidas no Centro de Ciências Naturais e Tecnologia (CCNT) da Universidade do Estado do Pará (Uepa) fizeram surgir projetos de Design de Moda a partir da reutilização de insumos. Roupas foram produzidas levando em conta a filosofia vegana e calçados tiveram origem em câmaras de ar de pneus. Inovações que vão ao encontro das tendências mundiais e conquistam adeptos do consumo consciente. As monografias integram as ganhadoras do Prêmio Melhor TCC da instituição. O século XXI está marcado por preocupações com o meio ambiente e a finitude dos recursos naturais. Esse pensamento está presente em vários segmentos da vida cotidiana. Na Uepa, os alunos da graduação em Design são incentivados, desde as primeiras aulas, a pensar em alternativas sustentáveis para compor seus trabalhos profissionais e acadêmicos. A proposta do curso é formar designers aptos a conceber projetos integrados, considerando a cultura material, a história e o contexto socioeconômico onde serão inseridos, sem descolar das vertentes globais. De olho nesses aspectos socioculturais, a empreendedora criativa, então estudante de Design, Luana Pereira, estudou possibilidades de comportamentos no consumo da moda. O projeto incluiu a criação de uma coleção de roupas femininas inspiradas nos conceitos de Sustentabilidade, Lowsumerism (baixo consumismo, em tradução livre) e ética vegana como forma de promover o pensamento crítico de produtores e consumidores de vestuário.

Os modelos foram pensados a partir de peças sintéticas e de algodão, compradas a baixo custo em brechós e retalhos doados por ateliês de costuras em Belém. A ideia já vem sendo adotada por algumas marcas que descosturam roupas em desuso, aproveitam restos de tecido e exemplares com pequenos defeitos para confeccionar novos feitios, estendendo, de forma inovadora, o ciclo de vida de resíduos têxteis que podem levar até centenas de anos para se decompor no meio ambiente. O estudo de Luana questiona hábitos no ato de comprar e propõe revisões de pequenas atitudes para gerar impacto no dia a dia. Adquirir roupas usadas, em pouca quantidade e cujas cadeias produtivas não utilizam animais são algumas das alternativas discutidas no mundo todo. O levantamento da pesquisa expõe processos industriais e ciclos de vida dos produtos que, muitas vezes, são decorrentes de mão de obra escrava e descaso com os impactos ambientais ocasionados. “O trabalho de quem costura precisa ser valorizado e, ao reutilizar uma peça que estava colocada de lado, parada, você acaba impedindo que o material vá para o lixo. É muito melhor do que investir dinheiro em uma roupa nova, que teve que extrair material da natureza e consumir energia para ser fabricada”, defende a designer, autora da pesquisa “Re.Ver: Sustentabilidade, Lowsumerism e ética vegana no design de moda”.

Fotografia deste ensaio Tereza Maciel @terezaearyanne Produção | Styling Luana Alice @llunallice Modelo Camila de Sá @acamiladesa Make Up Artist Mel Correa @mell.correa

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CAPA

A história de vida de Luana Pereira é muito perceptível na monografia. Filha de costureira, ela sempre teve o desejo de trabalhar com moda. “Minha mãe ajudou muito para viabilizar outras profissionais que pudessem doar os tecidos e também ajudar no projeto”, lembra. Além disso, há dois anos e meio, Luana é adepta do veganismo, prática que busca, na medida do possível, excluir formas de exploração de animais tanto na alimentação, quanto no vestuário, passando por outras finalidades como a cosmética e a farmacêutica, por exemplo. A filosofia, por extensão, busca promover o desenvolvimento e o uso de alternativas livres de animais para o benefício das espécies, dos seres humanos, e do meio ambiente. Na indústria têxtil, tecidos de algodão e materiais sintéticos podem substituir seda, lã, couro e peles, que são de origem animal. “Os estudos sobre veganismo me abriram a mente para a moda sustentável. Comecei a pesquisar marcas que já fazem a reutilização e o incentivo à proteção dos animais, trazendo essas referências para trabalhar a desaceleração do consumo”, conta. Luana relacionou novos hábitos que se manifestam por meio de microtendências como a adoção do armário-cápsula, o uso de bicicletas como meio de transporte principal e o próprio veganismo. “É uma mudança de consciência, quando você olha mais para dentro e entende quem você é e o que quer, passa a ignorar o excesso. É uma busca pelo autoconhecimento que se expande por toda sua vida”, pontua. O trabalho levou o primeiro lugar do prêmio Melhor TCC da Uepa, no curso de Design. Para a orientadora, Ana Paula Nazaré Freitas, não foi uma surpresa. “Recebi a proposta de orientação com 34 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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alegria, pois sabia que seria um tema inovador. Apesar de já ter orientado vários trabalhos sobre moda, nenhum foi sobre lowsumerism e veganismo, então realmente não fazia ideia como ela iria aliar isso. Mas apostei e acreditei no trabalho e, ao longo da pesquisa, fomos ajustando algumas coisas necessárias e o resultado foi excelente. Quando o TCC foi premiado fiquei muito grata, mas não surpreendida pois já sabia que tinha uma qualidade excepcional”, afirma. Para a pró-reitora de Graduação, Ana da Conceição Oliveira, o objetivo maior do prêmio é socializar as pesquisas dos estudantes. “Para alguns, o trabalho de conclusão de curso simboliza a primeira produção científica. A partir dessa pesquisa, eles podem fazer vários desdobramentos, como seguir para o exercício da pós-graduação, aprofundando na maioria dos casos o que foi estudado na monografia. Para a instituição, isso representa compartilhar os principais estudos que foram desenvolvidos durante o ciclo acadêmico”, destaca a docente. A defesa do trabalho foi um marco para Luana Pereira. De lá para cá, ela já foi convidada para dar palestras sobre o assunto, ganhou o prêmio Expressões Artísticas da Fundação Cultural do Pará e participou da organização da Fashion Revolution Week 2017, na capital paraense. O evento integra um movimento global sobre moda consciente que discute um novo caminho, fortalecendo toda cadeia produtiva, com transparência e justiça, e em memória aos trabalhadores atingidos no desastre da queda do Rana Plaza, em Bangladesh,no dia 24 de abril de 2013. REVER CONCEITOS

Na indústria têxtil, tecidos de algodão e materiais sintéticos podem substituir seda, lã, couro e peles, que são de origem animal


QUESTÃO DE VALORES A empreendedora Luana Pereira criou uma coleção de roupas femininas inspiradas nos conceitos de Lowsumerism (baixo consumismo, em tradução livre) e ética vegana

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CALÇADOS SUSTENTÁVEIS

Caminho semelhante passou a ser trilhado pela microempresária Isabela Sales. Da mesma forma, ela e a parceira de TCC, a também designer Taís Figueiredo, foram contempladas na premiação da Uepa, pelo projeto de confecção de uma linha de calçados a partir da reutilização de câmaras de pneus. Da pesquisa iniciada na graduação nasceu a marca e o modelo de negócios dos acessórios produzidos por encomenda e de forma artesanal. O pneu é componente básico para o funcionamento dos veículos. Cada carro possui cinco unidades (contando com o estepe) e, dependendo da rodagem, em dez anos esse número pode triplicar com a troca regular das rodas. O resultado pode ser conferido nas ruas e lixões, em que são despejados irregularmente montanhas de círculos de borracha. “Há séculos viemos produzindo lixo desenfreadamente. Vamos ficar apenas acumulando e uma hora os recursos naturais se esgotam. Quantos carros têm por aí? Milhões e milhões. Os pneus têm um problema muito grande de descarte, não podem ser queimados por liberarem gases tóxicos nocivos à saúde e também não devem ser depositados em aterros sanitários, por serem volumosos. A maneira que vimos de tentar amenizar a situação, é enxergando formas de reutilização, principalmente pelo potencial estético”, diz Isabela. Durante o trabalho, elas buscaram coletar materiais gratuitamente em borracharias parceiras e depois levá-los para análise no Laboratório de Modelos da Uepa. Coordenado pelo professor e orientador da monografia, Alacy Rodrigues, o espaço é utilizado para o desenvolvimento de trabalhos de pesquisa e das disciplinas, bem 36 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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COM OS PÉS NO CHÃO As designers Taís Figueiredo (em primeiro plano) e Isabela Sales criaram uma linha de calçados confeccionados com câmara de ar de pneus encontrados no lixo


como para a realização de oficinas de materiais como madeira, papel e recursos alternativos. Inicialmente foram realizados testes com o próprio pneu, uma vez que os solados de calçados já são produzidos a partir dele, em técnicas artesanais e industriais. Entretanto, por ser um compósito, ou seja, composto pela união de materiais de naturezas diferentes com a finalidade de melhorar a resistência e as propriedades, o corte foi mais difícil. As pesquisadoras decidiram, então, substituir o insumo pelas câmaras de ar, que possuem maior flexibilidade. O protótipo do produto deu origem a um artigo científico publicado antes de propriamente ser desenvolvida a monografia. Com a validação dele, as ex-alunas desenvolveram uma coleção e foram além, propondo desde o design, a marca e todo o ciclo do produto, aplicando conceitos de empreendedorismo que aprenderam durante o curso. Além da borracha, os modelos são revestidos com jeans, tecido recebido em doações e que se caracteriza por ser mais grosso e resistente, que demora mais para se decompor. As peças propostas buscaram ofertar uma opção confortável e ergonômica para os usuários, ajustando-se aos pés e à forma de andar das pessoas, de modo a não criar machucados. Os modelos também apresentaram um grau de durabilidade, para que não fossem descartados rapidamente no meio ambiente. “Queríamos fugir do esperado, temos a missão de lançar novas propostas, partindo da preocupação de envolver todas as etapas, desde o processo criativo, o lançamento da marca e o plano de negócios”, explica Taís. MARÇO DE 2018

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CAPA

Todo o projeto foi baseado em ecodesign, que visa produzir sem destruir e conceber um objeto do cotidiano, do mais elementar ao mais sutil, tornando seu uso durável e seu fim assimilável. “Para tanto é fundamental minimizar os impactos ambientais na produção, e estender a vida útil do produto gerado e a sua biodegradabilidade. Parte-se do princípio de que, para suprir a necessidade humana de assegurar a própria sobrevivência, deve-se construir uma relação menos predatória e mais amigável com o planeta. É uma questão de compreensão de limites”, afirmam. As duas aliaram o interesse na técnica de produção e de gestão para prosseguirem com o trabalho. Após a formatura, as parceiras seguiram trajetos profissionais distintos e apenas Isabela segue com o processo de produção, que foi aperfeiçoado. Os modelos estão disponíveis à venda, por meio das mídias sociais. Cada par pode ser comprado a preços que variam entre R$ 60 e R$ 120 e leva em média 15 dias para ficar pronto. A proposta caiu no gosto dos clientes, como Diego Ramos, que adota uma postura consciente antes de ir às compras. “Elas reutilizam um material que demora muito tempo para se decompor no meio ambiente. É a primeira coisa que eu levo em conta e depois a estética, a função dos produtos. Gostei muito dessa percepção ambiental que elas tiveram, além da praticidade do calçado. Não precisa de meia, é adequado para o nosso clima. Quando chove eu não tenho problema com o sapato encharcado. Vou andando na rua e daqui a pouco ele seca, isso é ótimo”, elogia.

RECURSOS AMAZÔNICOS

O curso de Design, inicialmente chamado de Desenho Industrial, nasceu da verticalização da produção com foco principal na madeira. Evoluindo no ritmo da tecnologia, hoje a graduação forma profissionais em diversas áreas, como 38 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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CRIATIVIDADE EM EBULIÇÃO

Isabela e Taís foram orientadas pelo professor Alacy Rodrigues. “A cada turma, os alunos trazem novos olhares e tendências”, diz o orientador.


CONSUMIDOR CONSCIENTE

O estudante Diego Ramos aderiu à proposta de calçados de pneu e está satisfeito com o produto

moda, móveis, joias, interiores etc. “A cada turma, os alunos trazem novos olhares e tendências. Vemos projetos com aplicativos, multimídia e dessa vez tivemos destaque com reuso na moda”, diz o professor Alacy Rodrigues. “A grande diferença do curso de Design da Uepa está no olhar para os materiais amazônicos. Percebemos que algumas fibras são mais resistentes, como o miriti, o jupati, por exemplo, que podem substituir materiais sintéticos”, afirma o docente, que integra o Grupo de Pesquisa Design de Produtos Amazônicos (Deproma), dedicado à investigado do potencial de insumos

naturais da região, avaliando as possibilidades de produção em escala respeitando o meio ambiente. Para as comunidades que participam deste contexto, através da coleta, beneficiamento e processamento dos recursos naturais da biodiversidade, a inserção dos conceitos de design pode levar à diversificação da produção artesanal, com consequente geração de renda e melhoria da qualidade de vida. A busca por materiais alternativos é uma necessidade de mercado, principalmente em uma região com poucas indústrias de materiais e se configura em oportunidade para a coletividade científica. MARÇO DE 2018

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POPULAÇÕES

Marcas da nossa história

LEGADO

De uma geração a outra, a cerâmica marajoara chegou até os dias de hoje

Amazônia possuiu uma das civilizações mais avançadas das Américas e que deixou uma vasta herança cultural registrada em cerâmicas TEXTO CAIO OLIVEIRA FOTO FERNANDO SETTE

T

oda civilização deixa marcas de sua passagem pelo planeta. Seja por meio de pinturas em paredes de cavernas ou por escritos detalhados de sua religião, organização social e costumes, dificilmente algum resquício não persiste às forças do tempo para ser redescoberto e decifrado pelas gerações futuras. Para Denise Schaan, doutora em Antropologia Social, o povo que habitava o 40 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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Marajó era uma das civilizações mais avançadas das Américas e isso fica evidente justamente pela herança cultural deixada por eles, que permitiu que conhecêssemos detalhes da vida de uma sociedade inteira. “A organização social dos povos marajoaras eram os cacicados, semelhantes aos que (Cristóvão) Colombo encontrou quando chegou às Antilhas. Eles moravam em pequenas cidades-estado de

duas a três mil pessoas, que eram governadas por um cacique e sua linhagem. Havia duas castas, a dos nobres e das pessoas comuns, em cacicados que se encontravam em vários pontos da ilha, que competiam por prestígio e poder, mas mantinham alianças entre eles através de casamentos. Eram povos de diversas etnias diferentes. Não se sabe que língua falavam”, comenta a professora da Universidade Federal do Pará (UFPA).


O povo nativo do Marajó era muito avançado em termos de organização social e manejo de recursos, vivendo na ilha e espalhando-se pela região dos campos entre os séculos 5 e 13. Uma civilização imensamente rica, cujos costumes e tradições reverberam até hoje na cultura de toda a Amazônia, um povo que não deixa em nada a desejar aos maias, astecas e incas, e outros povos que habitavam as Américas pré-colombianas e pré-cabralianas. Essas semelhanças com outros grandes povos nativos era tão grande que, até a década de 1950, os arqueólogos e estudiosos pensavam que as tribos marajoaras tinham vindo dos Andes, atravessando a vasta cadeia montanhosa e se estabelecendo na região insular. Contudo, após o advento das datações por carbono 14, ficou provado que os estilos cerâmicos policrômicos, cheios de cores com significados distintos, são mais antigos no arquipélago do Marajó do que os encontrados junto à Cordilheira Andina. A cerâmica marajoara originou-se da própria criatividade do ilhéu, a partir de influências próprias que foram percebidas na região desde 1500 a.C. Como, originalmente, ninguém “é” da América, e sim “veio” a América, o marajoara veio de algum lugar para começar a criar sua civilização. “Os primeiros povos podem ter chegado pelo Norte, pelas Guianas, e foram se estabelecendo no Marajó, na parte dos campos”, deduz a professora Denise Schaan. Ao chegar a essa terra nova, o povo foi impactado com toda a riqueza das ilhas amazônicas e suas divindades assumiram as formas da natureza. A cultura dos povos marajoaras tinha como deidades os ancestrais, que eram reverenciados e respeitados, e os deuses com formas de animais, como a Cobra Grande, ícone que está representado em quase todas as peças de cerâmica. A

natureza de fauna e flora incomparável inspirou até mesmo nas representações das linhagens, com as genealogias sendo representadas por animais como o jacaré, a tartaruga, urubu-rei e outros. A cerâmica, misto de arte e registro histórico, era fabricada somente por pessoas da elite que moravam nos tesos – estruturas residenciais – maiores, onde faziam as festas e rituais. Todo esse contato tão íntimo com o meio ambiente fez com que surgisse uma relação sinérgica entre homem e natureza. “A população marajoara aprendeu cedo sobre a ecologia da ilha e se aproveitou disso. Eles moravam nas cabeceiras dos rios, que são os lugares mais produtivos para a pesca. Lá, eles construíram reservatórios para aprisionar peixes, barragens e montes elevados, que hoje chamamos de tesos, onde moravam e enterravam seus mortos. Desde pelo menos o ano 700 sabe-se que eles cultivavam e consumiam o açaí, além de plantar mandioca. Mas a base da alimentação era o peixe”, conta Schaan. Fica claro que abundância dos rios da região teve grande impacto no modo de vida do povo marajoara, que ainda tentava entender todas as facetas da terra

Os símbolos presentes na cerâmica marajoara Para Denise Schaan, trata-se de uma forma de escrita, não a escrita como nós conhecemos, mas um registro mitológico, que é utilizado para que sempre se lembrassem de suas histórias. As tangas de cerâmica, por exemplo, têm uma faixa superior que representa a mulher, uma faixa do meio que representa a cobra grande e outro campo decorativo que representa a linhagem da família da menina que usava. A professora acredita que as tangas eram utilizadas em rituais da puberdade.

CERÂMICA

Pequenos objetos são repletos de significado e simbolismos da cultura marajoara

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POPULAÇÕES

CULTURA

A cerâmica é o principal resquício arqueológico deixado pelos marajoaras

onde moravam. Em suma, a ilha dava ao ilhéu tudo que ele poderia precisar para viver bem e criar uma sociedade: comida, água, abrigo e inspiração. Os marajoaras eram um povo tão inventivo e criativo que, até hoje, o principal resquício de sua passagem pelo mundo são as cerâmicas, objetos cheios de grafismos e simbologias próprias, que nos contam histórias de um tempo em que o povo amazônico era senhor de sua própria terra, antes da interferência de pretensos conquistadores. A partir dos registros arqueológicos, foi possível deduzir que a presença do europeu, principalmente holandeses e portugueses no século 16, teria abalado, de forma irremediável, o delicado equilíbrio político marajoara. Antes, acreditava-se que os marajoaras tinham desapareci42 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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do por volta de 1.300, em confronto com os aruans, tribo que invadiu o Marajó vinda do Baixo Amazonas. A durabilidade da cerâmica fez com que ela pudesse atravessar as intempéries dos milênios e chegassem às mãos dos arqueólogos que puderam deduzir detalhes sobre a misteriosa extinção deste povo. Todas essas informações estão ali, criptografadas, nos artefatos que os habitantes deixaram para trás. “O material retirado dos sítios arqueológicos é valioso para os estudos, pois, a partir da análise das peças, se pode ter uma boa ideia do conjunto de expressões culturais”, comenta a professora Denise Schaan. Para pesquisadora, que saiu do Rio Grande do Sul para estudar as civilizações amazônicas, talvez o que fique de mais relevante de

todas essas descobertas sobre a cultura ancestral paraense seja o sentimento de orgulho que ela traz para os habitantes atuais da região. “A cerâmica marajoara hoje é utilizada como símbolo da identidade paraense. Esses símbolos são importantes no mundo globalizado em que as pessoas sentem necessidade de se diferenciar. Há muitos anos existem polos de produção de cerâmica no Pará, em Icoaraci, em Soure, em Ponta de Pedras e em Cachoeira do Arari. São cerâmicas feitas por artesãos que conhecem as coleções de cerâmica arqueológica e fazem réplicas ou simplesmente peças inspiradas nas verdadeiras. Por isso a maior parte da cerâmica marajoaraonclui produzida no Pará é inspirada na cerâmica arqueológica”, avalia Schaan.


CULTURA

Legado da cultura marajoara

Natiasitatur as et aut vel explanduci andae volorec usapellatur aut mossimil ex eiundi blab ipictorere, consedis sequatur sitibus eum eiunt, omnihicias sim atiae TEXTO SÁVIO SENNA FOTOS FERNANDO SETTE

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erto dia, seu Vadico bate à porta do amigo Giovanni Gallo e deixa um embrulho na mesa, sem falar nada. Curioso, Gallo questiona do que se trata o pacote. “Aí estão uns negócios que não prestam, que o senhor gosta”, soltou Vadico.

Dentro do presente, havia pequenos pedaços de cerâmica encontrados nos quintais alagados de Santa Cruz do Arari. Com os olhos nas pontas dos dedos, Giovanni Gallo resolve se dedicar a reconstruir os cacos arqueológicos da ilha, recriando fragmentos desse universo amazônico

para poder avistar melhor um fragmento essa vastidão marajoara. Hoje, quem chega às margens de Cachoeira do Arari, do trapiche consegue avistar o Museu do Marajó, composto por uma fachada branca e letras em tipos vitorianos preto e vermelho, emoldurada com grafismos MARÇO DE 2018

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OUTRAS HISTÓRIACABEÇAS MUSEU

FÉ E DEVOÇÃO A religiosidade do povo marajoara é expressa através de imagens e altares de santos católicos

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marajoaras, também presentes em vários pontos da cidade. Ao lado, lê-se “O Nosso Museu”, título antigo da casa, quando a sede ainda ficava no município de Santa Cruz do Arari. Por divergências políticas com o antigo prefeito de Santa Cruz do Arari, atualmente, o museu fica em uma antiga fábrica de extração de óleo vegetal e o espaço ocupa uma área extensa de bosque com árvores nativas e pântanos da Prefeitura Municipal de Cachoeira do Arari, que também cede funcionários e o valor mensal de um salário mínimo para custos operacionais. Inaugurado oficialmente em 12 de dezembro de 1987, um dia dedeMARÇO DE 2018

dicado ao Círio de Nossa Senhora da Conceição na cidade, o Museu do Marajó hoje é reconhecido internacionalmente como o maior acervo inventivo marajoara, recebendo visitantes durante a semana inteira, que podem mexer em 169 vitrines, já que é “proibido não tocar nos saberes do Museu do Marajó”, como diz a placa. Logo na entrada do salão há uma peça escrita “Quanto anos tem o objeto mais antigo do Museu? É da Era Mesozoica, período Jurássico”, diz a tábua. “E qual a peça mais nova do museu?”. Daí é preciso levantar a tabuleta com um espelho, onde está escrito: “É você”, revela o

“computador” de marca cabocla. A reflexão feita logo na entrada caracteriza o perfil do museu, como descreve o idealizador, o padre italiano Giovanni Gallo em um de seus livros. “No nosso museu o homem marajoara é doador e receptor. Ele é a maior fonte de informação e ao mesmo tempo o maior beneficiado. Nesta perspectiva, o nosso museu tem um ciclo completo: nasce da comunidade, cresce com a comunidade e volta à comunidade. Agora é fácil entender porque o museu aceitou o desafio de escolher um lugar carente das infraestruturas essenciais porque assumiu o compromisso de pro-


mover estas infraestruturas, provocando o desenvolvimento do homem através da cultura”, relata, em trecho do livro autobiográfico “O Homem que Implodiu”, publicado em 1996 pela Secretaria de Estado de Cultura do Pará (Secult). Como polo de desenvolvimento econômico e social, o Museu do Marajó abrigou a primeira escola de informática da ilha, além de projetos de produção de bordado, cerâmica, corte e costura, serigrafia e de musicalização, o único projeto que ainda continua em atividade, ensinando flauta doce para crianças e senhoras. Porém, devido a uma inadimplência de prestação de contas da gestão anterior com o Ministério da Cultura, o Museu do Marajó sofreu com o corte de verbas nos

últimos dez anos, prejudicando a conservação e revitalização do espaço. Graças à “teimosia marajoara” da mestra de cultura Zezé Gama, acompanhada dos outros membros da atual direção, que também ajudaram durante a instalação em Cachoeira do Arari, o Museu conseguiu regularizar a situação fiscal recentemente. “Se o museu está aberto hoje é por perseverança nossa, porque se dependesse de esperar ajuda ou apoio isso daqui estaria fechado. Então como o povo marajoara é teimoso e questionador, a gente continua aqui, de portas abertas, com todo sacrifício, com todas as dificuldades”, afirma Zezé. Ela lembra que a preocupação em realimentar o trabalho deixado por Giovanni

Gallo foi essencial para o fortalecimento do sentimento de preservação da memória marajoara. “Nós temos dois momentos: antes e depois da vinda de Giovanni Gallo. Antes da vinda dele não havia interesse nenhum em conhecer da onde a gente tinha vindo, quem nós éramos, quem foram nossos antepassados, nossas raízes. Giovanni Gallo veio trazer isso de graça para nós, resgatou a nossa cultura, a nossa identidade e aí depois de todo esse trabalho, ele morre e fica por isso mesmo? Eu não achava justo e foi aí que nós abraçamos a causa, formamos um grupo, sabendo da nossa responsabilidade e fazer um pouco pelo muito que ele deixou para gente”, conta Zezé, que mora em frente ao museu e sempre é atraída pela sala da pajelança. MARÇO DE 2018

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OUTRAS HISTÓRIACABEÇAS

TEM DE TUDO Moedas antigas, animais empalhados e esqueletos fazem parte da coleção

Quem for ao Museu do Marajó irá conhecer um grande salão, dividido em seções de exposição com peças arqueológicas, tangas, tigelas, vasos estatuetas e voltadas para temáticas como os negros, caboclo marajoara, vaqueiros, pescadores, mas também permeada pela língua, utensílios, tecnologias, medos, lendas, a partir de portas que se abrem, alavancas que rodam, fios que puxam, tabuletas que viram, peões que giram, de um jeito instigante, cheio de humor e seriedade. Na primeira parte da exposição, reservada à arqueologia, há peças de indígenas marajoaras que habitaram o arquipélago por volta de 400 a 1.300 a.C., além de informações do vocabulário tupi. Após a sala da cerâmica, utensílios variados como objetos domésticos e evoluções, a imagem do ‘caboclo marajoara’ em tamanho natural, ‘vaqueiro marajoara’ e o ‘vaqueiro nordestino’, esqueletos de cavalo e cavalo embalsamado. Na ala dedicada à cultura 46 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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afro-brasileira, estão expostos instrumentos de tortura e utensílios que os escravos usavam para comer, além de ditados, fotos, relatos e um dossiê sobre a opressão contra negros e negras. No mezanino, a cosmologia cabocla abre mais espaço para as curiosidades: o famigerado bezerro de duas cabeças, lendas, orixás e ditados populares. Lendas amazônicas com plaquetas que contam histórias das protagonistas da cerâmica por meio de textos escritos. Explicações para lendas inscritas em discursos como jandiá vira sapo, o bicho que nasce do tucumã e o caranguejo morto que ressuscita são alguns dos aspectos que compõem uma parte da experiência de habitantes da Amazônia marajoara. O padre jesuíta Giovanni Gallo veio para o Brasil em 1970, desembarcando na Bahia, para realizar trabalhos missionários e conhecer as igrejas da Companhia de Jesus. Após atuação como

vigário é que Gallo foi transferido para o Marajó, em 1973, para a Vila de Jenipapo, em Cachoeira do Arari. Em uma cidade no interior da ilha, cercado por palafitas sem saneamento básico, fornecimento de água potável, energia elétrica, telefone e alimentação precária, o padre recebeu a missão da Prelazia de Ponta de Pedras de criar uma cooperativa de pesca, que antes mesmo de nascer, abortou por falta de conhecimento do padre. Mas, com o financiamento municipal, ele ergueu pontes na comunidade para interligar as casas, que sempre alagavam por causa do período de cheias. Além de erguer as pontes, com o Museu do Marajó, Giovanni Gallo também edificou vínculos históricos entre moradores da cidade e a cultura indígena que habitava a região tempos atrás. Gallo morreu em março de 2003, deixando um legado inestimável para a cultura do Marajó.


PENSELIMPO

ARTE, CULTURA E REFLEXÃO

TRAÇOS E CORES O ARTISTA PLÁSTICO MARINALDO SANTOS TRATA A URBANIDADE FERNANDO SETTE

REGIONAL EM SUA OBRA PÁGINA 48

HISTÓRIA

GRATIDÃO

Presença jesuíta no Marajó ajudou a desenvolver a história da região no período do Brasil Colônia, com marcas que duram até hoje. PÁG.52

A ciência na Amazônia se despede do ambientalista Waldemar Vergara, que faleceu em 16 de janeiro deste ano. PÁG.58

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ARTES PLÁSTICAS

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O cotidiano como inspiração

O artista plástico Marinaldo Santos fala das suas conexões com a realidade multicor impressa em seu trabalho há 30 anos

TEXTO JOBSON MARINHO FOTOS FERNANDO SETTE

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om mais de 30 anos de profissão, o artista plástico Marinaldo Santos se tornou um dos maiores nomes da arte contemporânea no Pará. Natural de Icoaraci, ele conquistou espaço em salões e galerias de importantes cidades do Brasil e do mundo com suas obras coloridas, que misturam desenho, colagem, pintura e objetos recolhidos durante longas caminhadas pelos bairros de Belém. Na entrevista a seguir, Marinaldo Santos relembra os principais momentos da carreira, fala sobre a inspiração para as suas obras, comenta as dificuldades da classe artística na capital paraense, além de revelar seus próximos projetos. Como foi a sua descoberta do universo artístico? Como começou o seu interesse pela arte?

Quando criança, o que eu fazia muito era riscar na rua, fazer desenhos com caco, desenhar besouros. Só que aí eu dei uma parada, e nessa trajetória eu fui entregar jornal, trabalhei em uma fábrica de castanhas, parei de estudar, mas continuei a riscar por gostar. Não tinha a intenção de ser artista, era mais uma forma de me expressar. Em 1984, fui convidado para uma exposição coletiva no Teatro Waldemar Henrique. Eu tinha algumas pinturas e foi a primeira vez que as pessoas viram o meu trabalho, porque antes eu desenhava e escondia tudo debaixo da cama. A partir daí eu fui participando de salões. Depois, trabalhei com galeria e a filha de Oscar Niemeyer, Anna Maria Niemeyer, era minha galerista no Rio de Janeiro. Logo no início foi muito difícil, não tinha essa facilidade de acesso a informação que se tem hoje. MARÇO DE 2018

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ARTES PLÁSTICAS

O seu trabalho tem influências da infância, dos seus pais, da cidade de Belém. Algum artista também o influencia? Um artista com quem eu me identifiquei muito foi Emmanuel Nassar. Até cheguei a trabalhar com ele em um ateliê e ele exerce uma influência muito grande nessa descoberta da coisa amazônica. Gosto muito de Bispo do Rosário, que é um cara que viveu por um tempo em um hospício e tem uma trajetória muito legal. Tem o Andy Warhol, gosto muito da arte pop dele. Você utiliza desenho, pintura, objetos e colagem dentro do seu trabalho. O que o motiva a buscar essa diversidade de linguagens? O que sempre me motivou foi essa coisa de descobrir novas formas, novos suportes. Quando comecei a dominar o desenho, pensei em não ficar só nisso e comecei a me desafiar, a buscar uma outra linguagem, mas ainda não sabia qual. Um dia, quando eu estava no ateliê em Icoaraci, meti um pedaço de madeira no trabalho e a coisa dos objetos começou a surgir. É engraçado, eu sempre digo que foi nessa hora que Deus desceu na Terra e me direcionou a isso. Então eu passei dois ou três dias trancado no ateliê e coisas novas surgiram de uma forma tão brilhante que eu até me emociono de lembrar. Isso foi um grande amadurecimento do meu trabalho artístico. Eu não tenho pudor em relação ao material. Há uma seleção, mas é resto de madeira, prato, azulejo, coisas que de repente estão aí e ninguém quer. Eu trabalho com resto de alumínio, com coisas de gráfica, gosto muito daqueles impressos de cartão de visita, diploma de colação de grau, esse universo todo está na minha obra. 50 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

Aos poucos, surgiu novamente a pintura. A pintura me consome muito, mas acho legal esse desafio. Ela me faz ir por uma trajetória que até eu mesmo desconheço.

“Belém tem muito a coisa da cor. Tem esse desprendimento que as pessoas da periferia têm de pintar sua grade, a janela, a casa, o portão. Tem também a questão dos barcos, da água, do barro, da própria terra, essas são coisas que observo muito.” livre e me guie.”

A sua obra dialoga muito com Belém, apesar de ter também referências mais globais. Qual é a Belém que você tem buscado mostrar nos seus trabalhos? Eu acho que Belém tem muito a coisa da cor. Tem esse desprendimento que as pessoas da periferia têm de pintar sua grade, a janela, a casa, o portão. Tem também a questão dos barcos, da água, do barro, da própria terra, essas são coisas que observo muito. Se você observar, as minhas obras mostram Belém dentro de um mundo, não só focado aqui. Eu sempre digo que o tempo não erra. Um pedaço de madeira de barco que é desgastado pela água mostra uma trajetória, camadas de cor que são pintadas duas, três, quatro vezes. Esse desgaste já vira uma obra. O muro das casas também tem isso de descascar. São pequenas coisas que têm na cidade e eu vou trazendo para o meu trabalho, mas criando um outro universo. Quais foram as exposições e os lugares mais marcantes por onde você e suas obras já passaram? Já participei de uma exposição coletiva na Alemanha. Estive em uma feira de arte na Holanda e em Miami também. Em 2015, tive uma exposição individual em São Paulo, a Urbano-Pop, e foi muito marcante porque levei objeto, pintura e desenho para lá. A exposição foi bem aceita e entrou na capa do jornal Estado de S. Paulo, o que para mim foi uma surpresa muito grande. Eu sempre acreditei que o meu trabalho poderia estar em qualquer lugar. As obras também estiveram em uma feira latino-americana em Nova York e em salões do Brasil - em Salvador, Goiânia, Minas - fora OBRAS DA COLEÇÃO PARTICULAR SÉRGIO VILLAR

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ONONNONONO

MIta inctotam, apienis atem dis vel ipsam, qui dolor aspe si cus rem vide sam facienda expersp erferi que pa que nullut optate re repre cust arumquam, secto cuptatem nos

a minha trajetória em Belém, onde eu ganhei três vezes o primeiro prêmio no Arte Pará. Como você enxerga o espaço da arte em Belém? Existe alguma facilidade para encontrar incentivos para artistas? Para gente que é artista, realmente tem uma necessidade muito grande. Quantas galerias particulares nós temos aqui? Temos praticamente uma. Fora isso, tem a Casa das Onze Janelas, o Centur, mas eu sempre digo que esses espaços são para cumprir pauta. Belém necessita de uma galeria de grande porte e de um incentivo maior, porque aqui, como artista, você depende muito de você. Em um órgão de governo é muita burocracia para conseguir um patrocínio. Se você incentiva os artistas, você vai ter um retorno cultural e até mesmo turístico. Aqui a gente sofre muito com essa falta de espaço. Ainda hoje, com mais de três décadas de carreira, você sente essa dificuldade para mostrar o seu trabalho em Belém? A gente precisa, na verdade, de uma logística maior para divulgar o artista. Muitas vezes as pessoas não sabem nem quem você é. Eu acho que nós, artistas

plásticos, ficamos muito isolados desse contexto social da cidade. Eu já fiz exposição que eu pedi uma ajuda de custo e fui receber depois que eu voltei, quando a exposição já tinha sido feita. Se muitos artistas desistem é por causa disso, você vê trabalhos bons, mas também esse desânimo. Como está o seu trabalho hoje? Você está preparando alguma exposição nova? Estou montando um projeto tridimensional. São armários com dois ou três metros de altura. A ideia nesse projeto é que eles se abram e que você tenha contato com vários objetos que estarão dentro deles. É um projeto, ainda não sei pra quando. Também quero mexer com uma outra linguagem: a escultura. Eu estou me educando, descobrindo, fazendo esse reconhecimento de todo o processo da escultura com o ferro. Acho que tudo é uma fase. Tem horas que gosto muito de pintar, tem horas que quero fazer objeto, tem horas que não quero fazer nada, só quero pensar e realmente pesquisar outras coisas para adaptar às obras. Em qualquer linguagem que eu vá trabalhar, gosto da surpresa com o que vai acontecer. MARÇO DE 2018

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HISTÓRIA

ruínas contam o passado TEXTO ALINNE MORAIS FOTO FERNANDO SETTE

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s ruínas da Igreja Nossa Senhora do Rosário, construída em 1716, são um dos grandes marcos da passagem dos Jesuítas pelo Marajó. O santuário, que era usado para a catequese dos índios da região, é parte importante da história e memória da colonização marajoara. Localizadas em frente ao rio grande de Joanes, na baía do Marajó, as ruínas do Rosário são hoje um dos principais atrativos turísticos da região e fazem parte do projeto de educação continuada “Joanes, Conta sua História”. Em sua fundação original, a igreja contava com três altares: um para Nossa Senhora do Rosário, atual padroeira da ilha, outro para Jesus Crucificado e um terceiro para Santo Antônio. O santuário ficava localizado na fazenda de Nossa Senhora do Rosário, uma das propriedades dos Jesuítas, e ajudou a propagar a fé e o catolicismo pelo Marajó. Doutor em História pela Universidade Federal do Pará, Joel Santos Dias explica que, com o fim da presença dos missionários na região, a propriedade, assim como a igreja, sofreu um processo de depredação. “Quase nada ficou de pé, consumido pelo confisco da expulsão deles, descaso dos órgãos públicos e pela ação do tempo”, afirma.

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Atualmente, ao lado das ruínas do Rosário existe uma nova igreja dedicada à padroeira. O local foi construído na década de 1940 e até os dias de hoje ajuda a preservar parte desse traço da colonização. No período da colonização, o território do Marajó era densamente habitado por indígenas. Eles tinham uma intensa rede de trocas e matérias-primas, fato que logo chamou a atenção de companhias de comércio holandesas, inglesas e estrangeiras, que se deslocaram até o conjunto de ilhas em busca de novas riquezas. Joel destaca que os portugueses tinham interesse de controlar aquela área por sua localização privilegiada, na entrada do Rio Amazonas. “O Marajó era um local estratégico. Por lá eles poderiam alcançar basicamente três regiões, todas elas no Norte: o Amapá, a região de Roraima e o alto Rio Negro”, explica o historiador. Nesse período, algumas tribos povoavam o oriente e o ocidente Marajoara. Do lado oriental, os aruãs, e do lado ocidental, os nhengaíbas. Segundo alguns cronistas, como o Padre Antônio Daniel, esses povos eram dotados de inúmeras habilidades e sabiam elaborar táticas de combate,


caça, pesca e canoas, além de serem profundos conhecedores da região. Após algumas tentativas frustradas de controlar esses indígenas, sobretudo os aruãs, já que eles tinham estabelecido fortes laços com franceses, André Vidal de Medeiros, então governador da época, sugeriu o envio dos missionários da Companhia de Jesus ao arquipélago. Ele determinou que o grupo fosse comandado pelo padre Antônio Vieira que, anos antes, já tinha iniciado os contatos com os índios do Marajó. A Companhia de Jesus foi uma ordem religiosa fundada em 1534 por um grupo de estudantes da Universidade de Paris, cujos membros eram conhecidos como jesuítas. Em escritos de meados dos séculos 17 e 18, os cronistas sempre procuravam engrandecer o trabalho que os missionários faziam nas comunidades indígenas para torná-los pacíficos diante da invasão portuguesa. Durante o processo de catequização, o padre Antônio Vieira fez contato com os índios da ilha maior, uma vez que o arquipélago marajoara é recortado geograficamente e dividido em ilhas pequenas, médias e grandes. A ilha, que mais tarde levou o nome de Ilha Grande de Joanes, possuía a maior densidade populacional indígena. “Esse nome, Ilha Grande de Joanes, que foi o primeiro nome da ilha do Marajó, tem a ver com os índios que viviam lá, os ioanes”, explica o historiador Joel Santos Dias. “Eles eram índios que acabaram se aliando aos portugueses e por isso viviam em guerra com os aruãs, que eram aliados dos franceses e não queriam a presença dos portugueses nessas terras”, explica. Com o trabalho de catequização jesuítica, muitos índios se aliaram aos colonizadores. Joel conta que a tática empregada pelos missionários foi a de fazer o aldeamento dos caci-

ques, uma vez que esses tinham um papel decisivo dentro de suas tribos e assim acabavam aceitando a presença portuguesa. Em 1665, a Ilha Grande de Joanes se torna a Capitania de Joanes, doada a Antônio Cesar de Macedo, pelo Rei Dom Afonso VI, de Portugal. O novo administrador das terras marajoaras, no entanto, nunca chegou a pisar na região. Durante esse período, ele governou a ilha por intermédio de procuradores e fez muitos planos. “A ideia dele era criar as primeiras vilas com os índios que já tinham sido aldeados pelos jesuítas”, conta o historiador. O problema é que a administração à distância não deu certo e os planos de Antônio não saíram do papel. Então, após esse período, a coroa portuguesa começou a distribuir sesmarias – lotes de terras – para colonos interessados na região. Joel explica que a partir desse momento muitos moradores começaram a se estabelecer no Marajó, ocupando e tomando posse da região. Com a saída dos jesuítas da ilha, durante o governo de Pombal, todo o patrimônio conquistado passou a ser do Estado. Este por sua vez, passou a doar as terras a particulares, criando

assim uma elite econômica e latifundiária e delineando a sociedade atual do Marajó. “Essa elite já vinha se formando com a doação de sesmarias, e quando eles receberam essas propriedades que pertenciam aos jesuítas essa atividade foi se consolidando. Isso ocorreu a partir do século 19 em diante”, explica Joel. A passagem dos jesuítas pelo Marajó deixou grandes marcas na história desse povo. Além das ruínas da Igreja Nossa Senhora do Rosário, há também outros resquícios de construções desse período pela ilha. Acredita-se ainda que os missionários também foram os responsáveis por levarem o gado para a região. A atividade configura hoje um dos mais importantes meios econômicos marajoaras. Os religiosos e os colonizadores, de uma maneira geral, também deixaram fortes influências na cultura desse povo. Joel destaca que com a chegada de novos costumes e tradições se produziu um sincretismo que ajudou na construção da atual identidade marajoara. A colonização refletiu diretamente na fé da população. Grande parte do Marajó hoje segue o catolicismo e isso, segundo ele, tem uma relação direta com as missões. MARÇO DE 2018

LADO A LADO A atual Igreja de Nossa Senhora do Rosário foi construída próximo às ruínas do antigo templo

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ESTANTE AMAZÔNICA

Livros sobre a Amazônia produzidos na região

INTERPRETAÇÃO DE LIBRAS: RETEXTUALIZANDO SINALIZAÇÕES DE UM PROFESSOR SURDO A Língua Brasileira de Sinais (Libras) é o tema central da obra feita por Ozivan Santos, professor da Universidade do Estado do Pará (Uepa). A publicação é resultado da dissertação de mestrado do autor. O livro desperta um novo olhar para a tradução e interpretação da Libras. No total o livro traz três capítulos contendo discussões sobre os estudos de tradução em Libras, traços linguísticos e gramaticais da linguagem, além de um histórico sobre a tradução no Brasil, enfocando a existência e criação do Sindicato de Tradutores (Sintra) e os aspectos do papel educacional do intérprete de Libras. O livro contém ainda partes da história de vida do professor e ator surdo Cleber Couto, integrante da comunidade surda de Belém. AUTOR: Ozivan Santos PÁGINAS: 97 EDITORA: Editora Appris 54 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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REVOLUÇÃO CABANA E CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE AMAZÔNIDA

HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NA AMAZÔNIA O livro traz uma série de textos que foram apresentados originalmente no “I Colóquio de História da Educação do Pará”. As pesquisas incluídas na obra relatam aspectos educacionais que vão desde o período imperial até o começo da República Velha. Entre as temáticas do livro estão assuntos como a feminização do magistério, educação e religião e a escola rural. A obra ajuda, por meio dos temas relevantes, o leitor a ter uma melhor compreensão da história da educação no Pará, além de contribuir para a difusão do conhecimento acadêmico na região. O livro é voltado para profissionais da área de educação e para o público no geral que tenha interesse no assunto. AUTORAS: Clarice Nascimento de Melo e Maria de Souza França (Org.) PÁGINAS: 199 EDITORA: EDUEPA

CHORO POR TI, BELTERRA! Em 19 capítulos, o autor reconstitui o dia em que retornou às ruínas da cidade de Belterra, situada no oeste do Pará. Ele revisitou o local ao lado do pai, de 81 anos, que viveu em Belterra na adolescência, durante o período da Segunda Guerra Mundial. Nessa época, a cidade era administrada pelos norte-americanos sob o controle de Henry Ford e sua companhia Ford Motor Company. Ao longo da narrativa, Sena mostra o reencontro do pai com o local e as mudanças ocorridas na cidade ao longo dos anos. A história também se assume como uma crônica repleta de lirismo, e traz ao público detalhes das aventuras da dupla pela cidade. AUTOR: Nicodemos Sena PÁGINAS: 192 EDITORA: Letra Selvagem

Neste livro, Denise Simões analisa as relações entre um movimento revolucionário - a Cabanagem - e o processo de estruturação da identidade cultural da população amazônida. A autora também destaca, em especial, a emergência da identidade nacional na Amazônia do século XIX. Na obra, a autora explica as características do movimento cabano - que contou com ampla participação das camadas inferiores da sociedade da época - e a intensidade do movimento, além de mostrar a extensão e expansão da Cabanagem pela região. O leitor pode revisitar um dos movimentos mais significativos da história local e a entender melhor o que ocorreu no período. A autora também mostra, de forma detalhada, como esses aspectos da Cabanagem ajudaram na estruturação da identidade amazônida. AUTORA: Denise de Sousa Simões Rodrigues PÁGINAS: 270 EDITORA: EDUEPA


FAÇA VOCÊ MESMO

Brinquedo que vai e vem

EDUCAÇÃO E INSTRUÇÃO PÚBLICA NO PARÁ IMPERIAL E REPUBLICANO

Autor: Sônia Araújo, Maria do Socorro Avelino e Laura Alves (org.) Páginas: 307 Editora: Eduepa O famoso vai e vem, aquele brinquedo com o qual Composto por onze capítulos, livro des-movem uma bola através de cordas, até duaso pessoas taca estudos de pesquisadores quede se diversas vende em lojas, mas há ainda mais diversão na Universidades da Amazônia Legal. Os textos Apesar do ápice da fama ter acontecido sua confecção. organizados da obra consolidam estudos de o vai e vem, surgido em 1976, na Itália, nos anos de 1980, sujeitos, instituições e de práticas ao longo no Brasil e ainda hoje é um bom passase popularizou do período do Império a República tempo brasileipara crianças, jovens e adultos. ra. Os artigos dão ao leitor a dimensão de Não há vencedores. O vai e vem é como o frescobol, como a educação pública alcançava poucos o objetivo é encontrar a harmonia para realizar a ida e era invisível para as políticas daum mesmo compasso. E ainda mais: a e a públicas vinda em época. A educação de mulheres e de órfãos, brincadeira é ótimo exercício físico, que envolve forbem como as reformas educacionais pela qual o Estado passou também são alvo das - 2 garrafas PET limpas; pesquisas contidas no livro, organizado pelas professoras Sônia Araújo, Maria do So- Fita durex larga; corro Avelino e Laura Alves. - 2 pincéis;

Do que vamos precisar?

ça, equilíbrio e capacidade motora. Nesta edição, as oficinas Curro Velho apresenta a confecção alternativa do brinquedo. É simples. As garrafas PET que iriam parar no lixo são a matéria-prima. Querendo deixar o brinquedo todo pavulagem, é só explorar a criatividade, fazendo uso dos materiais que cada um possuir em casa, como tinta, purpurina, recortes de revistas e retalhos de pano. Aos que quiserem fazer mais vaivéns, tentar novas técnicas e até outras artes, é só procurar o Curro Velho, que oferta mensalmente oficinas em diversas áreas.

- 2 tesouras: uma com ponta e outra sem ponta; - Tinta guache; - 1 corda de varal; - Cola branca; - Purpurina; - 1 recipiente para tinta e cola.

INSTRUTOR MARCELO LOBATO / COLABORAÇÃO CLÁUDIA RÊGO BARROS / FOTOGRAFIA IONALDO RODRIGUES MARÇO DE 2018

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FAÇA VOCÊ MESMO

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Vamos lá: com a tesoura de ponta faça dois furos em cada garrafa. Os furos têm de estar distantes dois centímetros um do outro.

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A partir dos furos, usando a tesoura sem ponta, corte as garrafas ao meio;

Encaixe as duas partes das garrafas e prenda-as com a fita durex. Coloque a tinta no recipiente e adicione cola branca;

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Pinte toda a peça, aplicando duas demãos, intercalando a secagem. Espere secar, passe cola e aplique purpurina;

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Por fim, amarre cada extremidade da corda em uma argola. Dobre o plástico das argolas e encape com a fita durex para não machucar as mãos.

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Corte a corda do varal ao meio, depois junte uma ponta de cada parte para transpassar pelo interior da peça;

Agora, retire duas argolas com aproximadamente dois centímetros de largura na parte do fundo de cada uma das garrafas;

Em seguida, espere secar novamente. Você formar desenhos ou grafismos, basta contornar a garrafa com cola e jogar purpurina;

Com o brinquedo pronto, é só aproveitar e se divertir.

Para saber mais Quem quiser conhecer mais sobre técnicas artísticas pode se inscrever nas oficinas Curro Velho, da Fundação Cultural do Pará. Crianças a partir de 12 anos podem participar. O Curro Velho fica localizada na rua Professor Nelson Ribeiro, nº 287, esquina com a travessa Djalma Dutra, bairro do Telégrafo. Telefones: (91) 3184-9100 e 3184-9109. 56 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

MARÇO DE 2018

RECORTE AQUI

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ATENÇÃO: Essa atividade pode ser feita por crianças, desde que acompanhadas por um adulto responsável


LEONARDO NUNES

BOA HISTÓRIA

Cinza

Fim do carnaval e Ernesto se escondeu atrás da igreja para chorar.

Os olhos vermelhos de rancor, pesados de álcool, sentidos pelo que viu. Ainda estava com as calças de brincar de boi faceiro. Era ele quem dava os pulos com as patas dianteiras enquanto Euclides balançava a traseira entre os cabeçudos e mascarados fazendo todo mundo rir. Mas, naquela quarta, a brincadeira terminou melancólica para a parte da frente. Catarina, Catarina, Catarina, ele repetia entre um fungado e outro do nariz escorrendo. Logo ela. Aquela que o recusou a vida inteira, que o enxovalhava na escola, que não deixava barato com nenhum menino da rua, que trapaceava na peteca e no fura-fura, que cortava o oponente de rabo e gasgo com suas pipinhas de sacola de supermercado e sobras do miritizeiro, que nadava nos igarapés melhor do que todo mundo, que tinha respostas pra tudo, mesmo que não

soubesse o assunto, que acabava com os moleques no bolo na hora da tabuada, inclusive a da divisão, que tomava banho de chuva e nunca gripava, que o surrava quando ele se metia a besta, que cantava as músicas estrangeiras da aparelhagem como se soubesse outro idioma desde que nasceu, que encantava os cachorros da praça e assustava os gatos dos quintais, que dizia que assim que pudesse sumiria daquela cidade perdida no meio do mato sem nada pra fazer, como ela reclamava, a Catarina. Ah, Catarina, Catarina. Ca-ta-ri-na. As sílabas rebimbavam com o sino da missa das seis e ele ali, entocado, sem camisa com as calças do boi, fingido não existir, com medo daquela folia do avesso ser verdade. Um fingido, isso que era, pensou. Por que não disse antes, por que evitou tanto tempo e não admitiu para si. Burro, burro, burro, relinchava ainda com as pantalonas fel-

pudas do faceiro. Poderia ter sido mais diligente. Claro que não pensou com esse palavras, mas foi isso que quis dizer. Burro. Era ele um farrapo duas semanas depois. Prostrado de tristeza. Dona Maroca já preocupada. O que esse um tem já? Mas, ah, ela dizia. E ele ali olhando o boizinho faceiro, oco de todo. Ocos. Os dois. Ele e o boi. O boi e ele. Eles metade, agora, sem Euclides. Ah, Euclides. Ah, Catarina. Ela bem que sempre avisou, sempre, que sumiria para sempre daquela cidadezinha sem graça, esquecida e enterrada na poeira. Mas, naquela quarta, inaugurou um período de cinzas para Ernesto. Agora sem parceiro Euclides, que jamais falara nada, nem um pio, agora sem o boi, sem folguedo no fevereiro, para nunca mais. Ah, Catarina. Ah, Catarina. MARÇO DE 2018

Anderson Araújo

é jornalista e escritor

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NOVOS CAMINHOS

Encantado nos manguezais Amazônicos

INOCÊNCIO GORAYEB é mestre e doutor em Entomologia, pós-doutor em sistemática zoológica e pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi

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O ambientalista Waldemar Vergara faleceu em 16 de janeiro de 2018. Amante da natureza costeira, parceiro e defensor dos povos e comunidades das marés, chefiava pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) a Reserva Extrativista São João da Ponta, no Pará. Seu trabalho e dedicação foram fundamentais para a criação de várias Reservas Extrativistas Marinhas na costa paraense, como em Soure, Ilha do Marajó (2001); Mãe Grande de Curuçá (2002); São João da Ponta (2002); Maracanã e Salinópolis (2002); Chocoaré Mato Grosso, Santarém Novo (2002); Gurupí-Piriá, Viseu (2005); Caeté Taperaçu, Bragança (2012); e Tracuateua (2015). Isso configura uma área que é a maior faixa de ambiente costeiro protegida como unidade de conservação da terra. Entretanto, o trabalho desenvolvido por Vergara deixa um legado importante para o futuro do processo de uso e exploração sustentável das áreas costeiras. Atuando junto com as comunidades das marés, considerou estas pessoas como protagonistas deste processo. Vergara promoveu muitas ações de educação ambiental envolvendo enfaticamente os jovens e as famílias de pescadores. Estudou a participação das mulheres e em parceria com os caranguejeiros desenvolveu processos melhorados de conservação e transporte de caranguejos. É surpreendente a profundidade de suas relações convividas indistintamente com pessoas simples das comunidades das marés, pesquisadores e intelectuais e o número de amigos. MARÇO DE 2018

A equipe do Grupo de Estudos Paisagens e Planejamento Ambiental (GEPPAM) destaca a sua imensa importância para todos nós, alunos e ex-alunos. Diversos trabalhos de conclusões de cursos, artigos científicos, dissertações, teses, livros, Entre Marés (evento), trilhas ecológicas, batismo no mangue (trilha), capacitação de agentes ambientais voluntários e tantas outras ações viabilizadas graças a sua articulação com a comunidade local. Seus ensinamentos ressoam até hoje em nossas memórias e nos fazem lembrar sempre a importância de aprender o que os livros e a universidade não podem nos ensinar. Pois esses saberes estão escritos com sons, gestos, olhares expressos na comunicação do pescador, da marisqueira, do tirador de caranguejo, do pequeno agricultor, da população local, ou seja, os mestres da maré com os quais todos nós aprendemos durante esses mais de oito anos de trabalhos de extensão, pesquisa e ensino nas Reservas Extrativistas de nosso Estado. Vergara nos mostrava um mundo para além dos muros da universidade, um mundo para além das teorias e métodos gravados em folhas apáticas de grossos livros. Um mundo cheio de significados, colorido e vibrante. Um mundo menos denso e mais profundo, orquestrado pelo enigmático e terno ritmo da maré. Como poeta e compositor deixou material artístico rico, sendo um dos maiores sobre zona costeira, com ênfase a Amazônia. Por tudo isso é considerado uma entidade encantada sempre ajudando a vida das comunidades e a conservação da costa amazônica.

“Vergara nos mostrava um mundo para além dos muros da universidade, um mundo para além das teorias e métodos gravados em folhas apáticas de grossos livros. Um mundo menos denso e mais profundo, orquestrado pelo enigmático e terno ritmo da maré.”


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