Resistências nº 1

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Ecos e Permanência da Ditadura na Amazônia

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Ano I – Nº 1 – dezembro de 2019 Revista da Associação dos Docentes da Ufam – ADUA–Seção Sindical do ANDES-SN

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SUMÁRIO ABRINDO O DEBATE

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O significado da Ditadura Militar Florestan Fernandes

ECOS DA DITADURA NA AMAZÔNIA

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BR-1964 x BR-2019

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1964: a Manaus proposta por Arthur Reis

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Para não esquecermos o golpe Militar de 31 de março de 1964 no Brasil

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Povos do Vale do Javari e a Ditadura Civil-Militar

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A Ditadura que eu não vi, mas vivi

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Ares ditatoriais numa perspectiva intimista

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Jornalismo, medo e autocensura

José Seráfico

Otoni Mesquita

Jaci Guilherme Vieira

Rodrigo Oliveira Braga Reis

Aquiles Santos Pinheiro

Aldair Oliveira de Andrade

Ivânia Vieira

PERMANÊNCIAS DA DITADURA

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De golpe em golpe, o Brasil vai revivendo a violência contra o seu povo

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Os processos autoritários na América Latina

Isaac Warden Lewis

Norma Sandro

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Um Brasil de horizontes nublados

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Ditadura no interior e na capital

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1964: 55 anos depois, como tragédia, farsa e escárnio

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Os mortos imponderáveis da Ditadura Militar brasileira

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O fim das ditaduras na América Latina

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O uso mercantil da terra como sintoma do autoritarismo

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Ditadura não se comemora!

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O Brazil talhado a golpes

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A aurora que procuramos

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Colonialismos, ditaduras e resistências indígenas no Brasil

54

Vivemos uma ditadura?

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O golpe e o Regime Militar reeditatos

Alfredo Coello

Araci Maria Labiak

José Alcimar de Oliveira

Christian Crevels

Osvaldo Coggiola

Cláudio Rezende Ribeiro

César Augusto B. Queirós

Marcelo Seráfico

José Basini

Ely Macuxi

Welton Yudi Oda

Lino João de Oliveira Neves

A DITADURA REEDITADA

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Conspiração e corrupção: uma hipótese muito provável José Luís Fiori e William Nozaki

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Revista semestral de artigos políticos da ADUA Seção Sindical do ANDES-SN Os artigos assinados são de total responsabilidade de seus autores. O material pode ser reproduzido para atividades sem fins lucrativos, desde que citada a fonte. Comissão Editorial Lino João de Oliveira Neves, Marcelo Mario Vallina e Tomzé Costa Editor deste número Lino João de Oliveira Neves Revisão Tomzé Costa e Daisy Melo Projeto Gráfico, Editoração e Ilustrações Rafael Miranda Foto da capa Movimento docente, Manaus, 1984. Foto: Arquivo da ADUA-S.Sind. Tiragem 1.500 exemplares Impressão Gráfica e Editora Silva Diretoria Executiva da ADUA (2018-2020) Marcelo Mario Vallina, Luiz Fernando Souza Santos, Milena Fernandes Barroso, Ana Cristina Fernandes Martins, Nereide de Oliveira Santiago, Ana Lúcia Silva Gomes e Leonardo Dourado de Azevedo Neto Expedição Associação dos Docentes da Ufam – ADUA – Seção Sindical do ANDES-SN Av. Gen. Rodrigo Octavio Jordão Ramos, 6200, Campus Universitário da Ufam Coroado I – CEP 69080-005 – Manaus – Amazonas Fone: (92) 98138-2677 www.adua.org.br

Defender a Educação Pública é nossa luta de sempre! #aduavéiadeguerra 4

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omo parte das comemorações pelos seus 40 anos de resistência na defesa do ensino superior a atual direção da ADUA-SSind. decidiu criar uma revista de estudos e debates sobre o nosso tempo e os temas que nos dizem respeito. Nesse sentido o nome da nossa revista não poderia ser outro: Resistências, afirmando o papel do nosso sindicato e de cada um de nós como sujeitos políticos críticos no mundo e resistentes no tempo em que vivemos. Para este primeiro número o tema escolhido foi "Ecos e Permanência da Ditadura na Amazônia". Com esse tema, Resistências aprofunda o debate sobre o atual momento político que vive o Brasil, um momento delicado, marcado por permanente crise política que se arrasta há vários anos colocando em risco tanto as instituições nacionais como as próprias condições de vida em sociedade. A escolha deste tema não foi gratuita. Em artigo de 1997, Florestan Fernandes descreve as alianças de interesses que levaram ao golpe de 1964. Palavras premonitórias e incrivelmente oportunas para descrever os dias atuais em nosso país: “A ditadura, como constelação social de um bloco histórico de estratos militares e civis, não se dissolveu”. E se hoje podemos dizer que vivemos uma ditadura disfarçada, devemos reconhecer que essa é ainda pior, ainda mais “pobre” do que a de 1964, uma vez que a concepção de país e sociedade que têm os militares hoje no poder, e os civis que a eles se aliam, é ainda pior, ainda mais “pobre” do que a de 1964 que levou o país aos desastrosos 21 anos de Regime Militar e Ditadura. Os 23 artigos reunidos nesta 1ª edição, escritos por colegas docentes da Ufam e outras Universidades, apresentam formatos diversos – ensaios, testemunhos, artigos de opinião e artigos acadêmicos – conformando quatro seções: - Abrindo o Debate, seção especial com o mencionado artigo de Florestan, que, atualíssimo, lança luzes sobre o atual contexto político brasileiro; - Ecos da Ditadura na Amazônia, artigos que discutem o impacto da Ditadura na formação pessoal e da sociedade local amazonense; - Permanências da Ditadura, artigos que analisam a herança do Regime Militar e da Ditadura ainda hoje presentes na vida nacional; - A Ditadura Reeditada, seção especial com artigo de José Luís Fiori e William Nozaki, que explicita antigos interesses sempre renovados, que constrangem a política nacional à regimes de exceção, que assinala estratégias, sempre renovadas, de perpetuação da subordinação nacional à interesses imperialistas. Com Resistências, a Diretoria da ADUA-SSind. convida à reflexão crítica sobre o nosso país e o tempo em que vivemos, condição indispensável para a construção de uma sociedade mais justa, que acreditamos seja o propósito de todos nós, docentes, sindicalizados ou não. Boa leitura a todos.

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ABRINDO O DEBATE

O significado da 1 Ditadura Militar Florestan Fernandes (1920-1995) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Universidade de São Paulo (USP) aposentado compulsoriamente pela Ditadura Militar em 1969

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ditadura militar tem sido caracterizada por uma peculiaridade: pela “primeira vez” os militares não resolveram apenas dilemas da crise de poder dos políticos e estratos privados civis. Tomaram-no para si. Essa equação ambígua é mistificadora. Como país de origem colonial e que oscilou, depois da Independência, do neocolonialismo para a dependência (preservando e fortalecendo certas funções sociais coloniais e neocoloniais, nascidas da dominação externa conjuminada aos interesses das elites do poder), aqui militares e civis sempre formaram uma comunidade indissolúvel. Possuíam a mesma origem social, malgrado o desnivelamento de “famílias tradicionais”, escolhiam a “carreira das armas” por contingências, reforçando sua estabilidade social; cruzavam o público e o privado em seu proveito: faziam frente comum aos escravos, aos libertos, aos “homens pobres livres”, aos trabalhadores assalariados. Viam através da mesma ótica a necessidade da opressão e da repressão, usavam o Estado como instrumento de “preservação da ordem” e o “meio legal” de defesa coletiva em disputas defensivas e ofensivas para conter “a gentinha em seu lugar”. Só em casos excepcionais – que confirmam a regra – desfaziam essa aliança sagrada e batiam-se em campos opostos (na aparência ou na realidade). A união reestabelecia-se prontamente, pois o antagonismo permanente seria a ruína de militares e civis. A comunidade política comportava e resolvia a “lógica militar”. Esta operava como tática de compensação, pela qual a suscetibilidade do militar em converter críticas e desentendimentos em ofensa de toda a corporação extorquia rapidamente as acomodações pretendidas, como exemplifica a “questão militar”, no Segun6

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do Império e posteriormente. Oliveira Viana interpretou magistralmente essa tática. Eu mesmo tive a oportunidade de constatar o quanto a interpretação continua verdadeira, quando da redação do artigo 142 da Constituição de 1988. O texto definitivo brotou do consenso militar, não da vontade dos constituintes. O grupo encarregado do assunto aguardou que os bons ofícios do senador Fernando Henrique Cardoso trouxessem a fórmula salvadora, assimilável aos desígnios militares e compatível com as concessões civis. O caminho percorrido no 1º de abril de 1964 foi incomum, porém, dentro da moldura histórica convencional e da associação indissolúvel (até aquele momento) entre as elites das classes dominantes civis e militares. Esse padrão, aliás, é genérico e tem vigência tanto nos países centrais quanto na periferia. O que escapou da rotina e causou estupefação foi o deslocamento dos civis para as posições atribuídas pelos líderes militares e que estes se apossaram abertamente da hegemonia do poder “institucional”, procurando salvar as aparências da “normalidade democrática”. Li, em uma revista de circulação de massas, declarações do general Meira Matos (infelizmente não recortei a “importante matéria”2) verdadeiras e esclarecedoras. À pergunta do entrevistador, a respeito da “revolução”, ele corrigiu prontamente: “Revolução não, contrarrevolução”; e não aconteceu uma contrarrevolução, ocorreram duas, que se separaram por um curto intervalo. A da tomada do poder por militares e civis (especialmente dos governadores aliados); e a decisão de manter os militares à frente do governo e do Estado. Ele colocou claramente o dedo na ferida! Dez dias depois da ocupação do governo, os mi-


litares já haviam arrebatado para si a “responsabilidade” de governar segundo sua ótica geopolítica das causas, da gravidade e da solução da crise brasileira. Atravessando por dentro a mentalidade militar “moderna”, é por aqui que se desnuda a razão militar. Depois do suicídio de Getúlio Vargas, os militares imprimiram nova orientação à “sua” interpretação do Brasil e consideravam-se, de sua perspectiva histórica, em condições de arcar sozinhos, com a colaboração de alguns civis de confiança, com as exigências da situação. Não fizeram do general Golbery um mago de poções certeiras nem do general Castello Branco o sacerdote de uma nova ordem democrática. Viam neles e em alguns outros mestres, com quem aprenderam, seus verdadeiros guias. A própria assessoria civil adaptava-se às pautas de um saber tenso e decepcionado, que simplificava os meios e complicava os fins. Aqueles provinham dos modelos tecnocráticos recentes, descobertos por uma prática rápida e superficial demais; estes vinham de longe, na sucessão de malogros que atingiram o ápice durante a década de 1950 e foram vasculhados depois da renúncia de Jânio Quadros. Esses motivos levaram os militares a procurar na esfera do saber civil (principalmente acadêmico) o encantamento do “Abre-te Sésamo”. Em 1962 se inicia, sob o impulso da intelligentzia militar, tanto a “limpeza da área” (a demissão de intelectuais “radicais” nos meios de comunicação de massa e a redução do espaço de dissidência consentida pelos patrões), quanto as “sondagens” do que os luminares da cultura civil tinham a fornecer aos líderes da direita do movimento militar. Encontraram o talento conservador, disposto à contrarrevolução. Mas os “teóricos da contrarrevolução” raramente estavam enfronhados da práxis contrarrevolucionária. Eram, na maioria, auxiliares de segunda categoria, em um campo no qual o “uso da força” e o “comando vertical” tecnocrático já tinham amadurecido entre os militares sediciosos. Aproveitaram o que puderam e organizaram seus quadros civis para secundar a ação decisiva, que viria de cima, do intelectual militar orgânico. A assessoria norte-americana (e estrangeira em geral) revelou-se desastrosa. Limitada pelo “contraterrorismo” e a concomitância de “inimigo interno” e “inimigo externo”, caiu em um anticomunismo primário e devastador para a mencionada relação desequilibrada entre meios e fins, moldada na imaginação militar do fato político. Essa assessoria só foi produtiva para os mentores de certos países, particularmente os Estados Unidos e aliados que podiam aumentar suas interferências reacionárias no Brasil (inclusive Portugal). Impõe-se perguntar: por que os militares julgaram-se no dever de dar um golpe de Estado cujo paradigma procede da contrarrevolução “preventiva”? Indo além, por que quebraram uma tradição secular, incumbindo-se de uma missão que rompia com a conciliação específica de civis e

militares no Império e na República, adotando uma crítica implícita (poucas vezes explícita), que pressupunha sérias restrições aos civis aliados, reduzidos a técnicos? Ambas as perguntas conduzem à mesma resposta: sem a presença ativa dos militares, o governo ditatorial seria incapaz de defrontar-se com algo mais grave que “turbulências” e a restauração da ordem continuaria ameaçada (ou condenada). A nova lógica militar salientava, a um tempo, a insuficiência de um golpe armado e a debilidade congênita de um governo que tornasse de imediato ou rapidamente à hegemonia civil, ainda que contasse com forte sustentação civil-militar. A hipótese dos “brasilianistas” e de estudiosos brasileiros, que subestimaram a necessidade histórica de um horizonte militar sólido, ostentava várias fraturas explicativas. Os militares de direita aceitaram os riscos apontados pelos assessores estrangeiros. Mas foram muito mais longe, pois intuíram (ou perceberam) que se impunha encarar o poder como prática militar por meios políticos. A democracia, por imperfeita que fosse, abriria seus flancos às lutas de classe e à propagação e ao crescimento de forças sociais desestabilizadoras incontroláveis a partir de uma tirania civil com apoio militar. “Cortar o mal pela raiz” era, em essência, a opção de uma contrarrevolução, e o “mal menor” requeria a montagem de um Estado subfascista e de um governo militar ditatorial! Isso não resolveria a crise social crônica, mas permitiria salvar as classes dominantes Ecos e Permanência da Ditadura na Amazônia

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e suas elites de uma tragédia histórica. Nota-se que essa problemática elementar repunha o passado no presente e favoreceria o influxo contínuo da “modernização conservadora”, com todos os seus efeitos nocivos. As revoluções e as reformas capitalistas frustradas, interrompidas pela ganância e pelo espírito estreito da burguesia brasileira, poderiam permanecer estranguladas. Por sua vez, os requisitos do desenvolvimento capitalista associado foram intensificados e desvinculados de qualquer contexto democrático, agravando em profundidade e extensão os problemas e dilemas sociais herdados do passado remoto e recente ou pelas condições anormais de opressão, repressão e espoliação dos trabalhadores e dos oprimidos. A cegueira e a tibieza do governo Goulart permitiram e facilitaram essa espantosa evolução. Ela não deve, contudo, ser atribuída àquelas condições. Tão pouco seria razoável debitar à desmobilização das massas alguma importância incentivadora. As massas responderam, do Norte ao Sul, ao apelo da devolução do poder a Goulart. Ele e o seu “dispositivo militar” abrem dois elos. Um, o da incompetência de um governo débil, que viu nascer e crescer a contrarrevolução e só tomou providências inócuas (para a defesa da estabilidade política) e assustadoras (para os setores civis e militares reacionários e parafascistas, interA ditadura, como constelação social de um bloco histórico de estratos militares e civis, não se dissolveu. [...]A hegemonia militar perde terreno. A posição estratégica das elites militares – antigas ou renovadas – adquire, todavia, perspectivas de duração e influência ultra-compensadoras. nos e externos). A bandeira da contrarrevolução tremulou sozinha, pois não se pode tomar como resistência iniciativas desesperadas e levianas de agitação, que multiplicaram por mil o terror disseminado pela “república sindicalista”. Ações de desespero não se confundem com o dever de um governo responsável, paralisado diante da alternativa de desencadear e levar às últimas consequências uma guerra civil, incubada na sociedade brasileira há um século e meio (sob o referencial da Independência) e há mais de três quartos de século (considerando a “Lei Áurea”). Classes e elites no poder brecaram a história por todo esse tempo e viam-se, repentinamente, diante das imposições de uma guerra civil. É neste nível que se deve separar a história descritiva da história interpretativa. O topo, especialmente os conservadores, reacionários e parafascistas, moveu-se em busca do socorro militar. Contaram com diagnósticos simétricos e corroborantes dos parceiros militares. Só que estes haviam 8

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avançado mais em suas concepções táticas defensivas e na estratégia político-militar “restauradora”. Não se engajaram na propalada “defesa da democracia” e na “defesa da ordem”. Avaliaram os argumentos com outro olhar, que ligava o anticomunismo à construção da “Pátria Grande”. As discrepâncias e as contradições entre a imaginação política dos militares e a imaginação política dos civis iriam expandir-se em seguida e produziriam consequências imprevistas, embora os beneficiários maiores tivessem de ser os civis. Ocorreu, portanto, um deslizamento ideológico, grávido de história para os de cima. Como o substrato das divergências se circunscrevia na mesma órbita, os militares ocuparam o poder, resguardaram para eles a hegemonia global e abstiveram-se de se alinhar sob um denominador comum, pelo menos antiimperialista e de abertura social. Com o tempo, tiveram que ceder e acabaram presos às cadeias da conciliação tradicional. Serviram de mão-de-gato da burguesia, nacional e estrangeira, e servos do capital financeiro. No conjunto, venceu a dinâmica da fraca sociedade civil. Essa descrição, como um todo, fica incompleta se forem omitidos três questionamentos. O principal diz respeito ao fio condutor de toda a evolução apontada (englobando-se civis e militares, ressalvando-se a percepção mais fina das contingências pelos últimos). Como, durante a Independência, as crises que desagregaram o Império e a chamada “revolução” de 1930, a “questão social” sempre foi o núcleo mascarado dos conflitos que subiam à tona, na sociedade civil e na esfera do Estado. À representação ideológica de que o povo brasileiro “é ordeiro e pacífico” está inevitavelmente colada a consciência opaca ou clara das opressões, repressões e amputações da condição humana, que semelhante inércia aparentemente implica. Passando para os dias que correm, vem a ser uma loucura tentar fortalecer uma ordem social cujo eixo estrutural e dinâmico se baseia na violência sistemática. Os militares – pela própria responsabilidade que decorre de suas funções – são sensíveis a esse fardo histórico, que recai sobre seus ombros. E não recebem compensações pelo porte de algoz que devem suportar. Estudaram, à luz das doutrinas militares geopolíticas que fermentaram depois da II Grande Guerra, o que tudo isso pressupõe como fator do desequilíbrio da nação, da instabilidade do Estado e das compulsões ardentes de contra-violência das massas e das classes trabalhadoras. A mão-de-ferro armada se adiantou para impedir uma insurgência, que desabrochava nos quarteis e nas ruas. Por isso, as predisposições conservadoras, reacionárias e pró-fascistas fervilharam em suas cabeças, produzindo uma avalanche que despertou os acontecimentos mais horríveis de nossa história. Outro questionamento relaciona-se a uma contraprova. Na atualidade, as resistências mais duras à universalização da democracia e da cidadania procedem dos oficiais refor-


mados e dos que poderiam ser indigitados como seus discípulos fiéis nas gerações militares mais jovens. Publicações, jornais, manifestações de rebeldia e intolerância até contra o governo e algumas de suas instituições, decisivas para a associação do desenvolvimento político à consolidação de uma República democrática, medram entre eles. Li vários desses documentos. Só uma extrema violência favorece sua circulação livre. Filtrou-se o que havia de pior no caldo de cultura do antigo governo ditatorial. Um subfascismo infantil é servido como um elixir de “salvação da ordem”. Sua predisposição para a tirania ultrapassou todos os limites toleráveis. Ele não é posto de quarentena nem repelido no cume do governo. Dadas as dificuldades econômicas com que se defrontam os funcionários militares, ativos e reformados, e o “sucateamento” do aparato militar aplica-se como instrumento de chantagem política. Distante da ótica militar, de que se alimentou a virada ditatorial, a junta militar e a intervenção diabólica da “transição lenta, gradual e segura”, ainda em vigor clandestino, a situação como um todo confirma o nervo da contrarrevolução e seu significado político crucial. O terceiro questionamento refere-se ao “quantum” de democracia que as elites militares admitem “em nossas circunstâncias”. Embora sejam, no governo, as principais beneficiárias de uma instauração democrática vigorosa, elas refluem para as fórmulas arcaicas de integração ao universo cultural das classes dominantes e as ajudam a robustecer uma “revisão constitucional” perversa. Há uma revisão a ser feita: a que está na ordem do dia das classes dominantes e dos países centrais e é destrutiva para o Brasil. Cheguei a designar a constituição vigente de “constituição inacabada”. Ela não responde a necessidades vitais da nação como um todo; não solta as revoluções e reformas capitalistas interrompidas, persistindo à altura dos interesses estreitos das classes dominantes e das nações capitalistas centrais; não atende à humanização das classes subalternas e dos excluídos (a começar da educação, das oportunidades de trabalho e nível de vida, à saúde, à hesitação, etc.); e retém privilégios que deveriam ter sidos expurgados da herança constitucional brasileira, deixando o Estado e o governo como bunkers dos que mandam. As elites militares têm diante de si vários caminhos a seguir, inclusive por causa da precariedade de suas instalações e meios de ataque ou de defesa. Pois bem, apenas oficiais jovens e algumas figuras da “intelligentzia militar” empenharam-se contra a “revisão ultra-conservadora” e apresentaram-se como paladinos da autêntica revisão saneadora. Os fios da contrarrevolução chegaram nos nossos dias e de uma perspectiva militar que empobrece e inquieta as próprias forças armadas. Falhando nesse dever, elas malogram no dever maior de um entendimento do que deverá ser uma nação periférica na era da revolução capitalista dos robôs. Sem uma boa Constituição, o país fica a mercê da

dominação externa e de ondas de pseudomodernizações e “privatizações”. Essa é a herança dramática de uma contrarrevolução e de uma ditadura militar, que viraram o país de cabeça para baixo e forjaram uma concepção que insiste em enxergá-lo nessa condição degradada. A ditadura, como constelação social de um bloco histórico de estratos militares e civis, não se dissolveu. A “transição lenta, gradual e segura” resguardou a composição, graças à derrota do movimento das “diretas já”, conciliação elástica manobrada por Tancredo Neves e a transfiguração de Sarney – grão-vizir da ditadura – em presidente da República (com o recuo do PMDB3 como “frente democrática”), a ascensão e o colapso de Collor e sua substituição por um vice-presidente disposto a jogar simultaneamente com os ganhos e com as perdas alternativas do “fortalecimento da democracia” e com a redefinição dos papéis ativos dos líderes militares, em posições-chave do governo “civil” e nos seus bastidores. A dita “Constituição cidadã” não poderia tolher, por si só, os usos e abusos que suportou. A sociedade civil alterou-se, conferindo maior alcance à presença e às atividades dissidentes de grupos de interesses populares, entidades e movimentos sociais de franca ruptura progressista com o status quo. A centralização e a monopolização do poder especificamente político, como no passado recente, conseguiram barrar essas tendências construtivas, mas demolidoras para os de cima. O centro radical, que se autoqualificou como social-democracia, graças ao PSDB4, conferiu um passaporte de credibilidade às figuras e configurações-chave emblemáticas (que se situam como “partidos”) daquele bloco histórico. O que havia de pior, mistificador e hipócrita no tancredismo – o “mudancismo” como profissão de fé – ressurge como força política “moderna”. A hegemonia militar perde terreno. A posição estratégica das elites militares – antigas ou renovadas – adquire, todavia, perspectivas de duração e influência ultra-compensadoras. Aquelas elites fixam-se ainda mais como esteio da defesa da ordem. Em suma, elas desprenderam-se da batalha militar (que não ultrapassou a encenação e alguns combates singulares), mas ganharam a guerra política. Para inverter esse quadro histórico seria necessário que a sociedade civil caísse sob uma comoção interna extensa e profunda, que reduzisse a cacos o bloco histórico no poder e repercutisse na forma, na infraestrutura institucional e nas funções político-sociais do Estado. Parece pouco provável, conservando-se estáveis as demais condições, que a via eleitoral se torne o agente de um parto histórico tão difícil. Publicado originalmente em: 1964: Visões Críticas do Golpe: Democracia e Reformas no Populismo. Caio Navarro de Toledo (Org.), Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1997; pág. 141-148. A versão aqui publicada foi digitada, a partir do artigo original, por André Moraes. 2 O ódio do governador Carlos Lacerda à pessoa do presidente Castello Branco – tido como o “marco” democrático da contrarrevolução – é emblemático. 3 Partido do Movimento Democrático Brasileiro. 4 Partido da Social Democracia Brasileira. 1

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ECOS DA DITADURA NA AMAZÔNIA

BR-1964 x BR-2019 José Seráfico Faculdade de Estudos Sociais Universidade Federal do Amazonas (Ufam) josiseascar1@gmail.com

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bofetada desferida contra meu rosto não encerrava todo o significado do gesto, embora ato inaugural do período que então se iniciava. As circunstâncias, porém, traziam todo o simbolismo dos próximos vinte anos. Uma espécie de anúncio. Estávamos, eu e centenas de estudantes universitários, participando de um ato de resistência, reunidos na sede da União Acadêmica Paraense (UAP). O comandante da tropa que invadiu a casa onde funcionava a entidade representativa trazia na mão direita um revólver engatilhado. Foi a esquerda que me esbofeteou. Com a força possível, impelida pela coragem dos que costumam trazê-la em uma arma. Passáramos os dias anteriores entregues à tarefa de resistir ao golpe de Estado previsível. Como a maioria dos estudantes universitários brasileiros, àquela época cerca de 1% da população escolarizável, visitávamos as unidades de ensino da Universidade Federal do Pará, cujos alunos esperávamos arrebanhar para a resistência democrática. Afinal, todos seríamos beneficiados, caso respeitada a Constituição e mantido o governo que mal iniciara o que conhecemos por reformas de base. Naquela noite de 1 de abril de 1964, voltamos à UAP com o ânimo gratificado: lográramos a adesão dos alunos do Curso de Agronomia, depois de rica e acalorada assembleia. Tínhamos vencido metade do trajeto de volta, a má notícia: o manifesto com que pretendíamos atrair a população e ganhar a adesão da minoria dos colegas para a greve fora confiscado por um oficial do Exército. Além 10

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da notícia, o atendente da gráfica acrescentou o nome do oficial e o telefone. Se fosse do nosso interesse, eu poderia estabelecer contato telefônico com ele. Foi o que fiz. Não me estendi muito no contato, bastando o tempo gasto para mostrar-lhe quem caía na ilegalidade, naquele momento. Não nós, os que defendiam um governo constitucionalmente eleito, mas quem desobedecia às ordens do comandante-em-chefe das forças armadas, o Presidente da República. Recusei o convite para ir visitá-lo no quartel. Novo manifesto foi redigido. E a invasão e a bofetada ocorreram quando se iniciava a distribuição do documento, para passageiros de ônibus e pessoas que, a pé, passassem pela porta da UAP. Não demorou, era grande o número de pessoas que, mãos postas na parede da frente da UAP e das casas vizinhas, tinham tocadas suas costas o cano das armas que os soldados ostentavam. No meio da rua, cerca de uma dezena de metralhadoras apontavam na direção da União Acadêmica. Poucos minutos mais, três homens desfilavam nas costas dos aprisionados, a caminho de transportes que os golpistas civis tinham posto à disposição dos militares. Dois deles, em cuecas. A indignidade dos repressores, transparente no gesto covarde. Levado dali por intervenção do meu pai, de casa pude dar informações às famílias dos colegas retidos no local. E ouvir e ver, nas emissoras de rádio e televisão, as consequências daquele atentado contra os estudantes, a educação, as instituições e o povo brasileiros.


Daquela data em diante, os maus prenúncios se concretizaram, um a um, cada qual ao seu tempo. Vimos retiradas do armário aspirações que pareciam destinadas à sepultura, desde quando Getúlio Vargas pôs fim à vida para entrar na História1. A destituição do Presidente, tentada desde 1954, frustrou-se na primeira tentativa. A injusta e infame campanha liderada por Carlos Werneck de Lacerda, apoiada por certos círculos militares e financiada por organizações norte-americanas e empresas brasileiras, teve que adiar a usurpação do poder. O povo, em monumental e emocionada manifestação, foi ao velório do Presidente constitucionalmente eleito, e depois mostrou nas ruas por onde passou o féretro do fazendeiro e político gaúcho sua rejeição à derrubada dele. Foi quanto bastou para silenciar o rugido dos tigres enfurecidos. O silêncio, porém, foi apenas aparente. Uma nova tentativa haveria de alimentar os conciliábulos, as alianças, a atração de forças com interesses semelhantes. No País e no exterior. A renúncia de Jânio Quadros, em 24 de agosto de 1961, abriu novas perspectivas aos inimigos da democracia. Os carrascos do povo. Era preciso castrar os poderes constitucionais encerrados nas mãos do sucessor de Jânio, fazendeiro como Getúlio e filho político do antigo ditador, consagrado Presidente em escrutínio popular. João Marques Belchior Goulart, eleito Vice-Presidente, tinha o direito de assumir o posto abandonado pelo controverso mato-grossense que fizera carreira política em São Paulo. Impediram-no de voltar ao País, enquanto não fosse alterado o sistema político2. Assim, passamos a toque de caixa e tarol ao parlamentarismo. Jango tinha cometido o grave pecado de majorar o salário mínimo, quando era Ministro do Trabalho de Getúlio. Nesse período (1954-1964), vivia-se sob a regência da Constituição de 1946. A fase conhecida como os anos dourados3. Fazer o Brasil crescer 50 anos em 5 era a promessa de Juscelino Kubitscheck de Oliveira, eleito Presidente pela aliança PTB-PSD. A construção e inauguração de Brasília são o grande marco histórico do período, o mesmo em que se registraram a conquista da primeira Copa do Mundo de Futebol e o surgimento do Cinema Novo e da Bossa Nova. Constituição liberal, a de 1946 teve dentre seus elaboradores representantes do Partido Comunista Brasileiro, cassados em 1947, após a posse de Eurico Gaspar Dutra, eleito sucessor de Getúlio Vargas. Em certo sentido, os comunistas, mesmo postos na ilegalidade, conseguiram pouco a pouco espaços próximos do poder central. Sempre, admita-se, em posição pouco influente. Nem por isso algumas de suas teses puderam

ser ignoradas pelos governantes. Sem isso, majoração do salário mínimo conquistada quando Jango era Ministro do Trabalho não seria alcançada. Nem o 13 de março de 1964 teria registrado a sanção da Lei de Remessa de Lucros, diante de mais de um milhão de brasileiros. Todos esses atos, reclamados pelos trabalhadores e simpáticos aos interesses de certos segmentos do capital nacional4, compunham o que se chamava reformas de base, bandeira que também animou a estudantada, em todos os Estados. Hoje, veem-se repetidas práticas que se têm atribuído aos países mais atrasados do planeta. O discurso anti-Estado dos liberais não corresponde às suas ações, todas elas no sentido de capturar o aparelho governamental. De lá, impor as decisões que criam e implantam as políticas públicas. Nesse sentido, talvez valha mencionar meu testemunho pessoal, quando integrante do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), da Presidência da República5. O esvaziamento do CDES e sua perda gradativa de importância e prestígio talvez sejam o sinal mais característico do que experimentamos hoje. Outros textos – se do interesse do leitor – poderão acrescentar informações pertinentes. Trecho da carta-testamento deixada pelo Presidente Getúlio Dornelles Vargas, ao suicidar-se, em 24 de agosto de 1954. 2 O Parlamentarismo foi aprovado em setembro de 1961 e um plebiscito, realizado em janeiro de 1963, o revogou. 3 Medidas econômicas constante do Plano de Metas de Juscelino (1955-1960) geraram certa euforia e despertaram esperanças no povo brasileiro. Tudo, sem renunciar ao modelo capitalista. 4 A aliança com a chamada burguesia nacional criava condições para amenizar os rigores do capitalismo em que o Brasil desejava inserir-se. 5 Como integrante do CDES (março de 2003 a agosto de 2005), indicado pela bancada amazonense ao Presidente da República, pude constatar o peso do capital, no colegiado. 1

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ECOS DA DITADURA NA AMAZÔNIA

1964: a Manaus proposta por Arthur Reis Otoni Mesquita Faculdade de Artes Universidade Federal do Amazonas (Ufam) otoni_mesquita@hotmail.com

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om esse ensaio sobre as transformações urbanas ocorridas na cidade de Manaus, durante o regime militar, pretendo destacar alguns fatos simbólicos que talvez possam explicar um pouco sobre o caráter dos projetos públicos que estavam sendo pensados e a relevância que ganhavam perante as novas promessas de progresso para a região. Naquele momento, a capital do Amazonas se mantinha isolada do restante do país, não somente do ponto de vista geográfico, mas, sobretudo, cultural. A mudança era uma aspiração que decorria da insatisfação perante a estagnação em que se encontrava a economia regional desde a perda do monopólio internacional da borracha, no final da primeira década do século XX, momento em que a Amazônia mergulhou num sono profundo que já durava cinco décadas, sonhando ainda em resgatar a efervescência e as extravagâncias de uma economia que ficara estagnada e retomara o ritmo de seu antigo estado de pobreza. Perante aquele contexto, qualquer sugestão de mudança era bem-vinda e significava muito para a população, que se encontrava ávida por qualquer novidade. Portanto, ao falar sobre as transformações processadas na cidade de Manaus, na segunda metade da década de 1960, não podemos deixar de alertar sobre a predisposição que havia em todos os setores para as mais variadas propostas de mudanças projetadas pelos programas desenvolvimentistas da Ditadura Militar. Para tal, é significativo observar a voz oficial do Estado do Amazonas, o governador Arthur Cézar Ferreira Reis, que se manteve no cargo no período de 27 de junho de 1964 a 31 de janeiro de 1967. 12

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Personalidade destacada na intelectualidade nacional e respaldado por uma produção relevante sobre a região, além de seu conhecimento teórico em diferentes áreas (História, Geografia, Direito, Sociologia), Reis alguns anos antes atuara como diretor do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Ao assumir o governo, Arthur Reis demonstrou grande habilidade administrativa, articulando e valorizando diferentes setores da sociedade. Uma ação governamental até então pouco usual, sobretudo do ponto de vista cultural. Encontro algumas dificuldades iniciais para esclarecer sobre o funcionamento da estrutura de poder que se instalara no Amazonas em 1964, e ajustar a esclarecida atuação do intelectual Arthur Reis com o autoritarismo que caracterizou o regime militar, sobretudo pós-1968. Como governador interventor do Amazonas, Arthur Reis teve um papel significativo na história do Estado, pois se cercou de uma equipe qualificada e também recorreu a competência de instituições nacionais para programar o seu primeiro biênio. Na introdução de seu Relatório “Como governei o Amazonas” uma das primeiras afirmações é que “a vida municipal era modorrenta e realizada sem obediência a bons padrões morais” (Reis, 1967, p. 11). Sem dúvida, a sua fala representa o poder de uma elite conservadora e autoritária, com seus conceitos tradicionais de ordem e progresso. O curioso é que Arthur Reis assume a mesma postura etnocêntrica de muitos dos viajantes estrangeiros que passaram pela cidade e se surpreenderam com as “limitações” da cultura local. Ao mesmo tempo, o administrador exaltava os resultados de seu trabalho afirmando que as obras realiza-


das em Manaus e no interior eram “espelhos muito claros de toda uma decisão para criar na infraestrutura estadual, as bases físicas que permitem o bom funcionamento dos serviços públicos” (Idem, p. 22), conforme a orientação que o Regime Militar imprimiu para a Amazônia. O pensamento crítico de Reis estimulou a criação de setores fundamentais para respaldar ações governamentais, assim como a realização de obras públicas, além de outras implantadas em seu governo. Provavelmente por confiar em ações apoiadas em projetos, o governador anunciava a criação do Plano Diretor para a capital e argumentava com grande expectativa que a sua realização “dentro da melhor técnica urbanística, assegurará a Manaus uma posição ímpar no quadro da rede urbana brasileira” (Ibidem, p. 23). Contudo, acontecimentos mais recentes têm provado que perante articulações de grupos de interesse essas projeções tão necessárias e requisitadas, em geral, não são respeitadas e ainda carecem de aplicabilidade. Nesse período é destacável a atuação de um grupo de profissionais de diferentes áreas, sobretudo nos setores públicos, e que atuaram na execução das obras, destacadamente o arquiteto mineiro Severiano Mário Porto, que realizou inúmeros projetos públicos e privados, sendo alguns deles premiados nacionalmente. Uma das características de suas obras foi estabelecer um constante diálogo entre as construções de tradição popular e a arquitetura moderna, aplicando diferentes materiais e soluções construtivas. A criação da Companhia de Habitação do Amazonas (COHAB-AM) era uma tentativa para solucionar o problema de moradias populares e manter maior controle do planejamento e crescimento da cidade. Lembrando que, naquele momento, com a chegada de novas populações ribeirinhas, começava a ocorrer um adensamento maior no centro e nos bairros mais tradicionais e surgiam ocupações irregulares, não somente nos igarapés do perímetro urbano, mas também nas áreas periféricas da cidade. Pelas falas do governador Reis, é possível deduzir que ele pretendia evitar o surgimento de outros complexos

como a Cidade Flutuante, que classificava como “uma excrescência”. Assim, as novas construções eram realizadas em alvenaria, um recurso até então pouco acessível a maior parte da população manauara, sendo que grande parte dos bairros ainda se compunham de construções de madeiras e até uma parte coberta com palha. Para o governador aquelas construções “apareciam como páginas degradantes na vida de uma Cidade” (Ibidem, p. 24). Portanto, decidiu extingui-la, e para tanto confiou a seus alunos da Pontifícia Universidade Católica (PUC), do Rio de Janeiro, “habilitados e amorosos da tarefa” (Ibidem, p. 24), contando com a participação da Capitania dos Portos, que retirou os moradores e extinguiu a Cidade Flutuante. Uma das novas formas de ocupação proposta pelo governo do estado foi o Bairro da Raiz, um dos primeiros conjuntos habitacionais da cidade. Traçado a partir de um plano urbanístico e arquitetônico, composto por 132 casas, destinadas aos antigos moradores da Cidade Flutuante, das quais 46 já se encontravam ocupadas em 1967. Para aquele momento, esse número era bastante significativo, uma vez que a população de Manaus era de cerca de 225 mil habitantes. Naquela mesma época surgiram outros conjuntos habitacionais, como Flores, Japiim e Parque Dez. Talvez pelo fato do governo estadual considerar que as novas moradias já eram uma grande melhoria na vida daquelas famílias, oferecia um conjunto de casas magrelas, com um pequeno quintal e ruas estreitas. As ruas eram como um grande canudo, desertas, amareladas pelo barro revolvido e sem qualquer vegetação que domesticasse e humanizasse um pouco a ocupação. Sem dúvida, era o novo que se apresentava, ainda que triste e desolador, sobretudo para aqueles originários dos beiradões, acostumados com a beleza do verde, do rio e do vai e vem das embarcações, com a perda do burburinho provocado pelo movimento comercial da praia do mercado e até mesmo a animação dos lazeres mundanos. Mas certamente a maioria não conseguia externar a insatisfação com aquela nova proposta de vida. Muitos foram atuar nas linhas de montagem que surgiram depois de alguns anos, outros adormeceram na letargia do pensar crítico imposta pelos anos de força da Ditatura. Contudo, ao final de suas análises o caráter acadêmico do intelectual Arthur Reis alerta que no futuro, inevitavelmente, surgiriam outras interpretações: “A Revolução de 31 de março funcionou no Amazonas, em todas as áreas. Seus resultados estão à vista. É preciso não esquecer, todavia, que através dos novos textos legais, que reformulam integralmente a sistemática política, social, financeira e cultural do país, ela está prosseguindo. Os dias vindouros dirão se estas reflexões são ou não exatas.” (Idem, p. 215). REIS, Arthur Cézar Ferreira, Como governei o Amazonas. Manaus: Imprensa Oficial. 1967.

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ECOS DA DITADURA NA AMAZÔNIA

Para não esquecermos o golpe Militar de 31 de março de 1964 no Brasil Jaci Guilherme Vieira Professor do Departamento de História Universidade Federal de Roraima (UFRR) jacivieira@uol.com.br

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golpe que colocou os militares no poder não foi um movimento conspiratório apenas, mas, ao contrário disto, uma campanha bem elaborada do ponto de vista ideológico, político e militar, organizada através de grupos multinacionais e associados dentro do complexo Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) (Dreifuss, 1981). Completando essa ideia, poderíamos acrescentar que, além dessas instituições, participaram da derrubada da democracia no Brasil, em 1964: a Escola Superior de Guerra (ESG), o Estado Norte Americano, a Igreja Católica, a mídia e, por fim, a classe média que depois viu seus filhos morrerem torturados. Esta campanha teve o seu auge em abril de 1964 com uma ação militar para derrubar o governo de João Goulart e conter, daí para frente, como um todo, a participação dos movimentos sociais tanto do campo como da cidade. Vivia-se a expectativa de termos, finalmente, uma reforma agrária, mas, para uma burguesia tão atrasada como a nossa, seria inadmissível até mesmo aceitar que Jango ousasse fazer uma reforma agrária em terras públicas controladas pelo Estado. E foi o que ocorreu. Jango anuncia a reforma agrária no dia 15 de março de 1964, no comício da Central do Brasil, e não chega ao final do mês como chefe de Estado. Uma das melhores descrições do sentido do golpe está contida nas palavras de Herbert de Souza, o Betinho: […] num primeiro momento o golpe paralisou, para em seguida desarticular as forças embaladas na mobilização social por um país novo, diferente, mais

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justo e mais livre. Era um processo que seguramente levaria o Brasil para o caminho das reformas. Não estávamos a caminho da revolução, mas da libertação. Mas aqueles setores extremamente atrasados, temendo que isto se transformasse na revolução, resolveram se unir para matar a criança ainda no útero. Foi o primeiro golpe absolutamente preventivo contra a liberalização e a democratização da sociedade brasileira (BARROS, 1991, p. 18). Todos sofremos ainda hoje com o golpe civil militar, implantado em 1964. Não foi um período apenas de retirada de direitos, do fim da democracia, mas foi o período de muita, mas muita repressão e intervenção em todos os setores da sociedade brasileira. Nos sindicatos, nas universidades, na imprensa. Repressão sobre todos aqueles que não estavam alinhados com o novo projeto de governo, baseado na Doutrina de Segurança Nacional (Desenvolvimento e Segurança). Em nome dessa doutrina, para legitimar o golpe, eles mataram, prenderam, estupraram, torturaram, exilaram e a lista poderia ser ainda mais estendida, deixando um rastro de miséria, de subnutridos e de analfabetos, de abandonados, e uma dívida externa para ser paga com o trabalho e com o suor da classe trabalhadora, além de uma inflação que beirava os 80% ao mês. Esse foi o resultado final desse famigerado golpe, que teve seu último presidente, João Batista Figueiredo, saindo pela porta dos fundos, afirmando para a grande imprensa preferir o cheiro de cavalos ao cheiro de povo. Mas isso não é tudo. Neste pequeno artigo, gostaría-


mos ainda de lembrar o assassinato de mais de 2.000 índios Waimiri-Atroari em função da construção da BR-174 que fez a ligação entre Boa Vista, capital do ex-território de Roraima, e Manaus, além da perseguição ao clero progressista em toda a Amazônia devido à sua atuação junto aos índios. Tais fatos já eram de conhecimento público há anos, mas em função de uma nova documentação que aparece depois da Comissão Nacional da Verdade criada

pela presidente Dilma Rousseff, em 2012, essas questões ressurgem, devem e podem ser rediscutidas. Esse foi o sentido do golpe: atender aos grandes interesses econômicos do capital, seja na Amazônia ou fora dela, não se importando com o que estivesse à sua frente. BARROS, Edgar Luiz. Os governos militares. São Paulo, Ed. Contexto, 1991. DREIFUSS, René Armand. 1964 A conquista do Estado: Ação política, poder e golpe de classe. 3ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1981.

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ECOS DA DITADURA NA AMAZÔNIA

Povos do Vale do Javari e a Ditadura Civil-Militar Rodrigo Oliveira Braga Reis Instituto de Natureza e Cultura Universidade Federal do Amazonas (Ufam) roliveiraam@gmail.com

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inda que uma grande parcela da população brasileira desconheça, ou faça de conta que desconheça, vários foram os casos de violência contra os povos indígenas durante a vigência da Ditadura Civil-Militar no país. Referências sobre as agressões cometidas contra estes povos são encontradas, na maioria das vezes, em relatos sobre grandes empreendimentos, como a abertura da Rodovia Transamazônica BR-230 ou a construção das hidrelétricas de Itaipu , localizada no Rio Paraná, na fronteira entre o Brasil e o Paraguai, e a de Tucuruí, localizada no município de mesmo nome, no estado do Pará. Investigações conduzidas pela Comissão Nacional da Verdade recentemente trouxeram à luz informações que demonstram a violência extrema cometida contra estes povos. A estimativa da referida Comissão nos aponta para um verdadeiro genocídio: ao menos 8.350 índios foram assassinados entre 1964 e 1988. Se antes do Ato Institucional Nº 5 (AI-5) os massacres eram atribuídos à omissão do Estado, após a decretação do mesmo, em 1968, as investigações revelam que o grande responsável pelos homicídios foi o próprio regime militar. No sudoeste do Amazonas, na fronteira Brasil-Peru, está localizada a terceira maior Terra Indígena (TI) do país, a do Vale do Javari, abrangendo uma área de 8.544.448 hectares, na qual vivem cerca de 5.481 indígenas (SESAI, 2013) das etnias Kanamari, Korubo, Kulina, Marubo, Matis, Matsés, além de grupos isolados/autônomos localizados no Alto Rio Jutaí, no Rio Jandiatuba e no Rio Quixito. Nessa Terra Indígena, a violência do período ditatorial está marcada nos territórios e nas memórias de seus habitantes. O projeto econômico desenvolvimentista e o discurso de “integrar para não entregar” – que orientava diversas 16

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ações de forte impacto em outras partes da Amazônia – vigoraram nesta região a partir de, pelo menos, duas iniciativas: a construção da Rodovia Perimetral Norte (BR 307) e as ações de prospecção da Petrobras. A Rodovia atravessou os territórios dos povos que habitavam a região até o município de Cruzeiro do Sul (Acre) e mobilizou a ação de indigenistas e a instalação da Fundação Nacional do Índio (Funai) na região a partir do ano de 1971. A Petrobras realizou ações de prospecção em diferentes pontos do Vale do Javari nas décadas de 1970 e 1980, tais ações compreendiam a abertura de picadas e inúmeras detonações para pesquisa sismográfica (CEDI, 1981; Coutinho Jr., 1998). Em um caso relatado por indígenas do povo Matsés e por um ex-funcionário de uma das companhias que prestaram serviços à Petrobras, os explosivos também foram utilizados para “amansar os índios”. Assim, após fugas e eventuais confrontos na região conhecida como Alto Jaquirana, a utilização de explosivos amedrontou um segmento do povo Matsés forçando-os a estabelecer “contato pacífico” com os trabalhadores da companhia. Entre 1983 e 1985, a Petrobras atuou nos territórios de povos isolados do Jandiatuba e do Itacoaí causando uma série de confrontos que resultaram em mortes de indígenas e de trabalhadores a serviço desta empresa. Relatos sobre os ataques e mortes, assim como a denúncia sobre as operações do governo para silenciar as situações de violência, foram feitos por indigenistas que atuavam na região e publicados na edição de 1984 de Povos Indígenas no Brasil (CEDI, 1984). Também sobre a atuação da Petrobras nos territórios de isolados do Jandiatuba, o sertanista Sidney Possuelo relata: [...] A movimentação de helicópteros, abertura de dezenas de clareiras, o barulho de centenas de ex-


plosões, formaram um quadro de tal forma agressivo aos grupos arredios, motivo que determinou o abandono de suas roças e a queima de malocas. Concluindo, informo que tais trabalhos se constituíram em violenta agressão que desorganiza, amedronta e afugenta os grupos arredios de tal forma que não devem se repetir. [...] Não devemos pois permitir pura e simplesmente a entrada da PETROBRÁS (sic.) em terras habitadas por grupos arredios. (Possuelo, 1984). Outras situações de violência também constituem os relatos de indígenas sobre este período. Alguns remontam ao envolvimento de funcionários da Funai na exploração

ilegal de madeira e de militares em expedições punitivas conhecidas regionalmente como correrias. Apesar de que já existia proposta para criação do Parque Indígena do Vale do Javari, em tramitação desde o início dos anos 1970, relatos deste período indicam a forte presença de madeireiros nesta região e a omissão da agência indigenista, favorecendo a atuação predatória sobre os territórios indígenas e os confrontos violentos entre indígenas e não indígenas. Página infeliz da nossa história sobre a qual devemos nos aprofundar para a devida reparação a estes povos e para que não sejamos vencidos pela produção oficial dos esquecimentos.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria Especial de Saúde Indígena. Dados Populacionais de 2013 das Etnias cadastradas no SIASI por Distrito Sanitário Especial Indígena – DSEI. Disponível em: http://dw.saude.gov.br/gsid/servlet/mstrWeb CEDI (Centro Ecumênico de Documentação e Informação). Povos Indígenas no Brasil. São Paulo, 1981, volume 5 (Javari). CEDI (Centro Ecumênico de Documentação e Informação). Povos Indígenas no Brasil. São Paulo, 1984. COUTINHO JR., W. Relatório de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Vale do Javari. Brasília: FUNAI, 1998. POSSUELO, Sidney. Relatório sobre os trabalhos da Petrobras no Alto Solimões. Brasília: FUNAI, 05 de novembro de 1984.

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ECOS DA DITADURA NA AMAZÔNIA

A Ditadura que eu não vi, mas vivi Aquiles Santos Pinheiro Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social Universidade Federal do Amazonas (Ufam) achilespinheiro@hotmail.com

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o ano em que aconteceu o golpe Militar (1964) eu tinha apenas sete anos de idade e não fazia a menor ideia do que estava acontecendo. Meus pais não comentavam nada a respeito, talvez pelo fato de pertencerem a um grupo religioso que impunha aos seus membros não se envolverem com política. Os poucos livros que havia em nossa casa eram de cunho religioso, não tínhamos o hábito de ler jornais e o nosso contato com a vizinhança era mínimo por causa da religião que professávamos. Naquela época eu estudava no Grupo Escolar Euclides da Cunha, no bairro da Cachoeirinha, e não me lembro de alguma professora ou meus colegas fazerem comentários sobre a ditadura que se instalara no país. A única lembrança que eu tenho dessa época era a frase “ABAIXO A DITADURA!” com o desenho da foice e do martelo ao lado do letreiro. Porém, devido ao meu alto grau de alienação e ignorância, não podia sequer imaginar 18

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o que aquela frase significava, e agora, enquanto escrevo estas linhas, me vem à lembrança algo um tanto irônico. É que, às vezes, no mesmo muro ou parede onde estava escrito “ABAIXO A DITADURA!” também se podia ler “PREPARA-TE, BREVE JESUS VOLTARÁ!” ou “BRASIL, AME-O OU DEIXE-O!”. Portanto, por estranho que pareça, só tomei conhecimento do que estava acontecendo em 1974, quando, aos 17 anos, viajei a Brasília em companhia de um amigo um pouco mais velho e mais bem informado. O mais irônico é que a caminho do aeroporto o rádio do carro tocava a música No woman no cry, de Bob Marley, interpretada por Gilberto Gil, e lembro-me bem de um trecho da letra que diz: “amigos presos, sumindo assim, pra nunca mais”. Só que na minha ingenuidade e ignorância provincianas não me dava conta de que aquela música denunciava os abusos do regime. Hoje, sempre que ouço essa canção acho-a du-


plamente triste, primeiro porque a letra faz referência aos crimes cometidos pelo regime, segundo, porque evoca a lembrança da minha partida. Em Brasília, pernoitamos na casa de uma família que era do mesmo grupo religioso de meus pais, e não tenho lembrança de alguém ter comentado algo sobre o regime militar. Entretanto, no dia seguinte, quando estávamos a caminho da rodoviária para tomar o ônibus com destino a São Paulo, pude perceber um clima pouco amistoso nas ruas, com muitos militares e blindados. Foi quando perguntei ao meu amigo o que significava tudo aquilo e ele então passou a me explicar que estávamos sendo governados por militares que haviam tomado o poder com ajuda de políticos de direita e segmentos conservadores da sociedade brasileira, e que havia muita repressão aos opositores do regime. Acho que foi nesse momento que a “ficha caiu” e eu tomei, mini-

mamente, consciência do que estava acontecendo. Hoje, com um pouco mais de 60 anos, o que posso dizer honestamente é que não vi ao seu tempo a ditadura, mas vivi os seus efeitos, inclusive o “apagamento” pela opressão que nos foi imposta pelo regime. De 2005 a 2009, durante a minha formação em Ciências Sociais, todas as vezes que meus professores faziam referência à repressão promovida pelo regime, eu me esforçava por me lembrar de algum episódio que tivesse ligação com esse período, mas, por mais que tentasse, não conseguia. Entretanto, o que aprendi na universidade foi o suficiente para me convencer da necessidade de monitorarmos continuamente os eventos que acontecem em nossa sociedade para sermos capazes de identificar possíveis ameaças, ainda em suas fases iniciais, à nossa democracia, pois, afinal, “o preço da liberdade é a eterna vigilância!”, frase atribuída a Thomas Jefferson. Ecos e Permanência da Ditadura na Amazônia

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ECOS DA DITADURA NA AMAZÔNIA

Sob ares ditatoriais de 1964: uma leitura pessoal Aldair Oliveira de Andrade Instituto de Ciências Sociais, Educação e Zootecnia Universidade Federal do Amazonas (Ufam) aldairufam@gmail.com

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uando nasci, em 1967, a ditadura no Brasil já andava e falava bastante, ou melhor, já andava a cercear o ir e vir e já fazia falar à custa de muita “persuasão” em seus porões. Minha infância teve como palco político o Estado de Exceção. Efetivamente me falta a consciência histórica, empírica, racional e crua do que eram aqueles tempos. Contudo, me recordo da atmosfera, da sensação de medo, do velado, da sombra, da “ordem” que reinavam em nossa pequena cidade de Eirunepé, no interior do Amazonas. Hoje, adulto, aprendi o que significaram aqueles tempos. A Literatura, a História, o “Brasil nunca mais”, o testemunho pessoal dos que viveram aqueles anos de horror e terror, me revelaram a face obscura, a corrosão da liberdade, a face do não. Passadas décadas, após ter respirado aqueles ares dos anos de chumbo, me recordo e ao mesmo tempo descubro porque desenvolvi total e completa ojeriza à farda, seja ela qualquer, que sempre me cheirou à uniformidade, determinação, enquadramento, nivelamento, subalternidade. Percebo que foi daí. A atmosfera era pesada. Já tentei em inúmeras vezes recordar as poucas conversas que tínhamos em casa e nelas identificar qualquer espécie de crítica ou desconforto sobre o que lá estava. Não recordo. Não consigo ver. Aí percebo que lá estava. No mutismo. No não falar. No calar. No cerrar para não ver, o que efetivamente se via. Com mais idade, não sei exatamente qual, recordo que meu pai era “convidado” para os comícios públicos, e na 20

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algibeira lá estava eu. Não entendia quase nada de tanta falação, tantas falas exaltadas e redentoras. Eram deuses astronautas que prometiam melhorar a vida: mais saúde, mais educação, mais saneamento, mais escolas, etc. Coisas que nunca aconteciam. O de que me recordo bem era o ar falso de disputa, a farsa dicotômica, a oposição entre dois partidos chapa branca, Movimento Democrático Brasileiro (MDB) e Aliança Renovadora Nacional (Arena), os dois únicos partidos políticos permitidos pelos militares no poder. Disso me lembro de forma cristalina. O jingle de campanha, “MDB, MDB, o povo agora espera por você”. Uma falsa disputa, uma falsa competição, falsos lados. Os caciques da cidade se revezavam publicamente na disputa, tua vez e minha vez, quando no privado sentavam à mesma mesa e dividiam o bolo da festa. E os demais, categoria a que pertencíamos, esperavam, acreditavam, e até se digladiavam em disputas viscerais por A ou B, as duas faces da mesma moeda. Uma atmosfera de falsa moralidade, de capa austeridade, de civismo vazio. O nacionalismo, como um fantasma, rondava a vida na cidade. As missas, celebradas por ex-capelão do exército alemão na Segunda Guerra Mundial, tinham um tom de ordem, de punição, de medo escatológico. O grupo escolar, que pertencia à igreja, tinha como autoridade máxima o mesmo capelão, chefe da igreja e da educação. O civismo se fazia presente na ritualística matinal de hastear a bandeira e cantar o hino nacional, no sol


escaldante do sudeste do Amazonas. As lições de civismo eram regadas à leitura e decoreba dos hinos pátrios, que pouco ou nada significavam, palavras que não faziam sentido em nossas mentes infantes, mas que deviam ser repetidas, recitadas, declamadas. Efetivamente não eram aprendidas, eram decoradas, como um mantra cívico, uma lavagem cerebral, um reforço cognitivo para a aceitação do que estava posto. A vida era recheada pelo civismo e as práticas cívicas não eram apenas valorizadas como necessárias, eram obrigatórias. A Semana da Pátria era o ápice do espírito cívico. Um dos meses mais quentes do ano, era recheado pela batida binária dos tambores, e pelo som desengonçado dos pés descompassados dos estudantes a desfilar nas ruas esburacadas e cheias de lama, para o grande dia, sete de setembro. Não importando o sol ou a chuva, os ensaios eram obrigatórios. Não menos obrigatório era a roupa de gala, que o pelotão de destaque tinha que portar. A ralé, os pobres, faziam parte do pelotão dos comuns, lá atrás, como massa, número. Lembro que a pressão era terrível. Meus pais tinham por um malabarismo explicativo justificar porque os filhos não participariam dos desfiles da pátria. Não passando incólume às críticas dos outros pais,

que fazendo das tripas coração, ou melhor, tirando das tripas, mandavam seus filhos “no dia” desfilar e orgulhosos e posar para a foto do Grilo (fotógrafo oficial da cidade), que depois placidamente desfilavam na estante da casa junto às demais fotos domésticas e dos santos de devoção familiar. As poucas ruas da cidade tinham nomes de autoridades republicanas, Getúlio Vargas, Marechal Deodoro. As poucas praças tinham ou busto ou uma placa comemorativa que aluziam aos grandes feitos republicanos ou a grandes vultos da nação. Para mim, esses eventos foram significativos. Ainda hoje me recordo do peso daquele ar sinistro, ar de caserna, de vigilância, de silêncio obsequioso, de obediência.Sinto no presente que a atmosfera está mudando, vejo um certo saudosismo recalcado se esgueirando nas consciências. Percebo que a autonomia, o juízo claro e distinto, a liberdade, os direitos há tempos conquistados estão sendo surrupiados com a conivência e mesmo adesão ao que deveria ter passado, mas que ressurge. Vejo que se aproxima um tempo de mutismo, e se apossam do poder os aloprados, os celerados, os amantes do nada, o Zé-Ninguém. Tempos sombrios!

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ECOS DA DITADURA NA AMAZÔNIA

Jornalismo, medo e autocensura Ivânia Vieira Faculdade de Informação e Comunicação Universidade Federal do Amazonas (Ufam) ivvieira@uol.com.br

O

s “fenômenos extremos”1 são uma das trilhas por onde a reflexão pode andar e colher dados sobre o comportamento de jornalistas no exercício da “servidão voluntária”2 . Os elementos recolhidos possibilitam compreender as interações feitas na prática jornalística e a conhecer percepções que moldam a média do agir desse profissional neste século 21. Um século para responder à necessidade de ampliar as noções de autonomia, liberdade, pluralidade, a cultura do respeito. As tragédias e as guerras do século passado, na visão de estudiosos, impulsionariam novas atitudes globais e locais nas profissões, nos processos de formação dos indivíduos, nos critérios dos acordos de governança dos países e no avanço da conscientização dos humanos quanto a emergência de se colocar como parte da Natureza e não predadores dela. O script do neocapitalismo também estava em impulsão. Diariamente, realiza a colisão com o outro plano para as sociedades e cuja batalha era e é superar as desigualdades socioeconômicas e culturais. As mídias, em diferentes plataformas, tornaram-se peças estratégicas para promover e disseminar as narrativas desse confronto, das guerras pós-modernas. 22

Resistências

Nos conglomerados midiáticos, jornalistas atuam como peças das engrenagens que são movimentadas em nome de interesses onde a informação é mercadoria a ser negociada de acordo com os valores da tabela confeccionada pelos agenciadores do capital e o panorama do lugar. A Amazônia, nesse cerco comercial/jornalístico, problematiza as ações de resistência e de apoio; encarna a guerra das narrativas pela conquista das mentes e dos corações por esse ou aquele projeto. No Brasil, as vivências de mais de duas décadas de Ditadura Militar deixaram vestígios profundos e estes pedem cada vez mais estudos nas diferentes áreas como tentativa de situar nossas atitudes no passado e no presente. A atuação da mídia no regime militar é uma das marcas à espera da produção de mais textos, de leituras e releituras: como se posicionaram os jornalistas do Amazonas nos anos de chumbo? Qual o perfil do jornalismo praticado nesse período? A fase pós-ditadura e a de lutas pela redemocratização do país pressionaram em direção a exigência de rupturas e de consolidar garantias constitucionais, o que se pensava ter sido feito com a promulgação da Constituição de 1988. Os eventos das duas últimas eleições presidenciais e, nota-


damente a de 2018, escancararam a manutenção de acordos de elites e de segmentos conservadores da sociedade brasileira. As rupturas não foram realizadas. Para uma parcela de jornalistas, a repressão de ontem configurou-se em aprendizado do medo, essa sensação de ameaça que se instala física e psicologicamente. E a autocensura passou a sentar na mesma cadeira da redação onde sentava o repórter, tornou-se companheira invisível e de forte atuação no fazer jornalístico. Já não era preciso acionar a censura patrocinada pelos censores, esta estava e está incrustrada na mente de jornalistas, anda de mãos dadas com o medo de enfrentar sensibilidades, preferências e prevaricação do agente público. Na lista dos profissionais que mais praticam a autocensura, os jornalistas ocupam uma das primeiras posições. Por quê? Afinal, o jornalismo está diretamente vinculado com o interesse público. Se organiza e se exprime pela imbricação da atividade com essa dimensão pública. O culto à autocensura degenera o jornalismo e apequena o papel do jornalista. Daí a importância de retomar o tema e colocá-lo na pauta do dia nos sindicatos, na federação da categoria, nos coletivos que reúnem os profissionais de jornalismo e noutros ambientes sociais. Aos estudantes de Jornalismo, é preciso reapresentá-lo, naturalizando o processo de reflexão e de estudo sobre a cultura do autocensurismo e o vigor dele nas redações das diferentes plataformas de mídia, nas sucursais virtuais de notícias. A autocensura no jornalismo ganhou outras camadas (complicações) na medida em que o ente econômico tomou conta dos processos decisórios sobre a confecção da notícia, da reportagem e dos formatos de edição para atender as ordens mercadológicas. Um quadro igualmente vigente nas escolas de jornalismo nas quais matrizes curriculares prezam o tecnicismo, desprezam a formação crítica e humanística e reforçam o discurso do jornalista empreendedor, não na perspectiva freiriana, e sim na lógica do mercado. Na soma das experiências no espaço de formação e no trabalho profissional, a autocensura e o medo estão fortemente configurados, acariciados pela pressa na qual a sociedade está moldada – e se faz escudo da postura do não ouvir relatos mais abrangentes –, impulsionados por uma técnica conformizada com o hegemônico. Passados 55 anos da instalação da Ditadura Militar no Brasil, o jornalismo está imerso em novas-velhas controvérsias. Para lidar com elas, é necessário conhecê-las. Decidir se mantém o espírito e a mente aprisionados ou exercita a dúvida no percurso das incertezas do modo de ser no mundo. A referência contempla um quadro teórico no qual a modernidade é tratada como “orgia”. Para saber mais: BAUDRILLARD, Jean. A transparência do mal. Ensaios sobre fenômenos extremos. 2. ed. Campinas (SP): Papirus, 1992. 2 Sobre o termo ler BOÉTIE, Etienne de La. Discurso da Servidão Voluntária. Trad. Layment Garcia dos Santos. Editora Brasiliense; MAFFESOLI, M. A conquista do presente. Rio de Janeiro (RJ): Rocco, 1984. 1

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PERMANÊNCIAS DA DITADURA

De golpe em golpe, o Brasil vai revivendo a violência contra o seu povo Isaac Warden Lewis Faculdade de Educação Universidade Federal do Amazonas (Ufam) isaac.lewis@bol.com.br

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m 1889, os falidos senhores escravagistas instalaram a República no Brasil sem a participação popular e conformaram o Estado burocrático de direito aos seus interesses imediatos – manutenção dos latifúndios, exploração violenta daqueles que eufemisticamente passaram a ser chamados de “trabalhadores livres” – mantendo o país exportador de produtos agrícolas (café, cacau, borracha), de matérias-primas, minerais e importador de produtos industrializados. O sistema político, jurídico, militar, policial reprimia violentamente negros, mestiços, índios e imigrantes que se recusavam a serem tratados como escravos (Lewis, 2019). Na verdade, a República brasileira nasce oligárquica, latifundiária, antidemocrática, autoritária, colonizada e, paradoxalmente, colonizadora, impondo ao povo a mesma subordinação e colonização que fora a marca da Colônia e do Império. De 1939 a 1945, Getúlio Vargas consolidou um governo que propôs mudanças trabalhistas tuteladas, favoráveis aos trabalhadores urbanos, ofereceu incentivos para a burguesia industrial e comercial emergente, manteve os direitos dos latifundiários colonialistas e a exploração dos trabalhadores rurais, perseguiu comunistas, sindicatos ou associações populares independentes, prendeu, exilou e matou intelectuais críticos de seu governo. Embora assumisse compromisso com a política econômica liberal dos países hegemônicos do Ocidente (Grã-Bretanha e Estados Unidos, principalmente), Getúlio apreciava os ideais políticos do fascismo italiano e do nazismo alemão, os quais

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Resistências

pareciam lhe oferecer fundamentos políticos para o desenvolvimento de uma indústria nacional independente. Lilia Schwarcz e Heloísa Starling sintetizam a política trabalhista do Governo Vargas da seguinte maneira: Um assunto dominava a atenção de Getúlio: a política trabalhista. Foi nessa área que ele mostrou quem era e a que viera. Dividiu sua política em duas metades. Numa, criou as leis de proteção ao trabalhador – jornada de oito horas, regulação do trabalho da mulher e do menor, lei de férias, instituição da carteira do trabalho e do direito a pensões e à aposentadoria. Na outra, reprimiu qualquer esforço de organização dos trabalhadores fora do controle do Estado – sufocou, com particular violência, a atuação dos comunistas. Para completar, liquidou com o sindicalismo autônomo, enquadrou os sindicatos como órgãos de colaboração com o Estado e excluiu o acesso dos trabalhadores rurais aos benefícios da legislação protetora do trabalho (2015, p. 362). Nessa conjuntura, latifundiários assassinaram trabalhadores sem terra; homens mataram mulheres em nome da honra; índios tiveram suas terras invadidas e muitos foram assassinados; sindicalistas, advogados, juízes, jornalistas, religiosos, políticos e policiais que criticaram as injustiças, as desigualdades e a corrupção estrutural na sociedade foram perseguidos e até mortos; criminosos foram arregimentados por autoridades políticas e policiais para cometerem delitos e badernas, criando clima de instabilidade e de medo na população; detentos foram mortos nas


prisões; grupos de extermínio atuaram impunemente em todo o país. Na década de 1950, empresários e latifundiários retomaram ideais das classes favorecidas do século XIX. Defendem que o Brasil deve permanecer associado aos países industriais desenvolvidos do Ocidente e seu desenvolvimento deve estar vinculado aos interesses desses países. Esses setores favorecidos deliberaram a criação da ESG – Escola Superior de Guerra “[...] orientada por uma noção de guerra interna que redirecionava o papel das forças militares para o controle da sociedade, propunha um modelo de desenvolvimento econômico para o país e enfatizava a importância da atividade de inteligência e informação para maior eficiência do Estado” (Schwarcz; Starling, 2015, p. 440). De 1964 a 1985, oficiais das Forças Armadas Brasileiras assumiram ditatorialmente o governo, apoiados por instituições públicas e privadas dos Estados Unidos e por empresários emergentes e latifundiários brasileiros. Militares e policiais, e seus aliados, perseguiram, mataram ou massacraram indivíduos ou grupo de indivíduos que se manifestaram contra o golpe militar. Desse modo, brasileiros e brasileiras de todas as camadas e grupos sociais (índios, negros, brancos, mulatos, mamelucos, pardos) tornaram-se inimigos preferenciais do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Por vinte e um anos, brasileiros e brasileiras foram perseguidos, punidos, mortos pelas forças colonialistas formadas no país, orientadas por assessorias militares estrangeiras (norte-americanas e britânicas, principalmente). Nesse período, missionários e pastores de igrejas evangélicas norte-americanas invadiram o território nacional para

cristianizar setores espiritualmente pobres da população brasileira sob o argumento de resguardá-la de ideologias anticapitalistas e prejudiciais aos interesses das classes internacionais privilegiadas e das classes nacionais favorecidas. Alguns intelectuais orgânicos do capital e pseudo-esquerdistas defendem que a violência, a perseguição, a tortura e o assassinato nas prisões só ocorreram durante a Ditadura Militar, entre 1964 e 1985, o período mais sombrio da história do Brasil. Também a censura à livre produção de opiniões não ocorreu somente no período colonial e na Ditadura Militar. No ambiente de incertezas políticas construídas, parcela significativa da população aceita essas anomalias e irracionalidades com naturalidade. O clima de instabilidade na segurança e de medo favorece não só a institucionalização de corrupção policial, de juízes e de setores de segurança, em geral, como a implantação de segurança particular, o que se coaduna com os projetos de privatização do Estado em favor das elites dominantes. A violência institucional, a discriminação seletiva contra determinados segmentos da sociedade nacional, o culto à tortura e a apologia ao uso da força e ao assassinato como formas de superar conflitos sociais são hoje revividos em toda a sua força e virulência antissocietária, colocando em risco a existência do Estado democrático de direito pelo qual muitos de nós nos empenhamos nas lutas de resistência à ditadura e pela reconstrução da redemocratização do país. LEWIS, Isaac Warden. Violência histórica na sociedade brasileira colonizada. Manaus: Editora Mundo Novo, 2019. SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloísa Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

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PERMANÊNCIAS DA DITADURA

Os processos autoritários na América Latina Norma Sandro Exilada política da Ditadura Militar uruguaia, militante social pela causa dos desaparecidos pelo autoritarismo de Estado nmscastadiva@gmail.com

A

s ditaduras militares no Cone Sul da América instauram-se para impor a sangue e fogo o modelo bancário financeiro neoliberal. Os “benefícios” econômicos que deixaram a Segunda Guerra Mundial e a guerra da Coréia se diluíram a partir de 1957 e 1958 quando se inicia uma profunda crise econômica que atinge com mais rigor países que haviam exportado suas matérias-primas para a Europa, como os casos de Brasil, Argentina e Uruguai. E, devido à localização de novos enclaves econômicos, dentro de processos neocoloniais globais, a Europa já não necessitava de nossas matérias, após a sua reconstrução favorecida pelo Plano Marshall. A Europa começara uma rápida e sustentável industrialização com um pesado protecionismo e uma agressiva venda de seus produtos dirigida aos países menos industrializados. No plano mundial, a instalação da guerra fria condicionara fortemente a política dos Estados Unidos da América sobre o nosso continente. Outro fato importante do pós-guerra foi o triunfo da Revolução Chinesa e, logo após, o da Revolução Cubana. Os partidos de esquerda no Uruguai, Chile e Brasil surgem no início do século XX, mas é a partir de 1960, devido principalmente à influência da Revolução Cubana, que os movimentos de esquerda se radicalizam. Assim chegamos a 1968 quando no mundo ocidental 26

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acontece um movimento questionador dos jovens que reivindicam novas formas de olhar o mundo. Estes novos postulados são apropriados pelos jovens que ingressam nos movimentos de guerrilha, enquanto as reivindicações dos trabalhadores somam-se em massa aos estudantes, fazendo como próprias as lutas estudantis, mas também mantendo as suas próprias reivindicações trabalhistas. Os movimentos guerrilheiros mais influentes do Cone Sul foram: o Movimento de Libertação Nacional (MLN-T), Tupamaros, no Uruguai; os Montoneros e o Exército Revolucionário do Povo, na Argentina; os grupos liderados por Carlos Marighella e Carlos Lamarca, no Brasil; e o Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR, sigla em espanhol), no Chile. O primeiro Golpe de Estado na região foi produzido pelos militares brasileiros em 1964; o segundo, aconteceu no Uruguai, em junho de 1973, mas já estava urdido desde 1963. No mesmo ano, em setembro, acontece o Golpe no Chile, que tem a particularidade de ser um Golpe Militar contra o primeiro governo de esquerda eleito, de forma inquestionável, no mundo, pelo socialista Salvador Allende. Finalmente, o último Golpe de Estado produz-se na Argentina, em 1976. Hoje, se conhece os crimes e horrores cometidos contra estas sociedades, e, em particular, contra os jovens lutadores de esquerda e suas famílias.


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PERMANÊNCIAS DA DITADURA

Um Brasil de horizontes nublados Alfredo Coello Antropólogo Social pessoa240156@gmail.com

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m dia de domingo, 7 de setembro de 1969, chegam ao aeroporto internacional “Benito Juárez”, à cidade do México, quinze cidadãos brasileiros. Viajam a bordo de um avião Hércules da Força Aérea Brasileira (FAB). Quem são estes brasileiros e por que chegaram ao México? Uma rápida resposta: são cidadãos que tomaram consciência crítica de seu momento histórico e participaram, desde diferentes campos de ação, na resistência contra a Ditadura Militar que se instalou no poder de seu país e com um Golpe Militar destituiu o presidente João Goulart em março de 1964. São dirigentes do movimento estudantil, são dirigentes do movimento sindical de trabalhadores na indústria, são dirigentes do movimento de trabalhadores rurais no Brasil e são também jornalistas e intelectuais, que nesse momento histórico vivem oprimidos sob a bota militar. Todos eles foram presos e brutalmente torturados nas masmorras dos cárceres militares em São Paulo e no Rio de Janeiro. Mas, por que estão chegando ao México naquele domingo que jamais esquecerão em suas vidas? Aqui vai a explicação: acontece que no dia 4 de setembro de 1969 o embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Charles Burke Elbrick, foi sequestrado por um comando da Aliança Libertadora Nacional (ALN) e do Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8). A notícia foge ao controle com que os militares oprimiam os meios de comunicação sujeitos à censura. Alguns jornais e estações de rádio publicam uma carta redigida pelo mesmíssimo embaixador, onde consta a exigência de libertar quinze presos políticos em troca do diplomata estadunidense. A Junta Militar “brasileira”, sob pressão de Nixon, cede

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e decide que será no México que se efetuará a troca de quinze seres humanos por um. Brasil é o país pioneiro na América Latina a implementar a Lei de Segurança Nacional (1968), até então inédita em qualquer país de nosso continente. O Ato Institucional Número Cinco (AI-5) decreta o que todo mundo já sabe: criminalizar a oposição e, inclusive, permitir a morte, a tortura e o desaparecimento de cidadãos de seu próprio país que tiveram diferenças com a ideologia militar que usurpou o processo democrático em que vivia o Brasil nos anos 1960. Como sucedeu? Com um Golpe Militar. Qualquer coincidência com os tempos de hoje, nesta segunda década do século XXI, é tristemente uma coincidência difícil de acreditar. Talvez tinha razão John Dewey quando afirmou que: “O que ocorre no passado volta a ser vivido na memória”1. Com exceção de que, nos dias de 2019, os mesmos slogans fascistas e práticas ideológicas vividas naquelas décadas dos anos sessenta aos oitenta no Brasil se repetem na realidade. Aparentemente, ao final da segunda década do século XXI, o setor “universitário” que decidiu votar em “liberdade para eleger” um presidente militar, esqueceu a História de seu país. Hoje são abundantes, em nível internacional, as análises críticas de historiadores, politólogos, sociólogos, antropólogos e jornalistas, que caracterizam o atual governo brasileiro como neofascista. Aqui, então, está a coincidência atual com os fascistas da Ditadura Militar de 64. O fascismo é o regime em que a soberania pertence (de fato, e não de direito) a um partido militarizado que delega o poder a um caudilho, enquanto este viva. Sobram exemplos: Hitler, Mussolini… É uma definição clássica. E, por


isso, é necessário deixar claro que se fala de neofascismo e Bem, no Brasil, diríamos que boa parte da não de fascismo clássico. É uma primeira abordagem à sua sociedade foi "democraticamente" usada e definição “moderna”. Bem, no Brasil, diríamos que boa alienada e votou nas fake news e não em um parte da sociedade foi "democraticamente" usada e alienada e votou nas fake news e não em um candidato. Resulcandidato. Resultado: demência e ignorância tado: demência e ignorância dominam o cenário brasileiro dominam o cenário brasileiro hoje. hoje. A pergunta necessária que deve ser feita hoje: é deste período selvagem de Ditadura que têm saudade as “massas dos direitos humanos; saudade da violência contra a digpopulares” que saíram às ruas para manifestar a favor do nidade de cidadania; saudade da possibilidade de que as neofascismo em seu país? Saudade da tortura, da violação suas filhas, irmãs, primas ou mães jovens bonitas - nunca Ecos e Permanência da Ditadura na Amazônia

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as feias -, sejam violadas fisicamente por um presidente racista, homofóbico, psicopata e fascista hoje no poder? Minha Nossa Senhora! E nisso, onde foi parar a saudade da alegria e do sorriso moreno dos Povos Indígenas, do mulato, do negro e do branco, amarelo, vermelho ou azul e de todas as cores que brilham humanas neste belo país que, embora hoje triste, se chama Brasil? Minha Nossa Senhora! Falemos, pois, do contexto histórico em que no final dos anos 1960 se movia o mundo. Na Europa, no Japão, na China e em boa parte das capitais da América do Norte e da América Latina, quando os movimentos estudantis brotavam em sua rebeldia e questionavam o poder autoritário de seus governos. A rebelião era contra o Estado repressor. A França é um dos paradigmas mais recorrentes para demonstrar como os estudantes unidos aos trabalhadores em seus protestos e nas ruas de Paris questionaram e colocaram em xeque o poder déspota dos Estados em todo o mundo. Às manifestações estudantis se unem mais de dez milhões de trabalhadores apoiando o movimento dos estudantes da Universidade de Sorbonne, na Semana Raivosa, no bairro Latino de Paris. É maio de 1968 e os slogans que os jovens estudantes 30

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exigiam, correram o mundo: “Proibido Proibir”, “A Imaginação ao Poder”, “Sejamos Realistas, Exijamos o Impossível”, “Vocês devem abrir o cérebro todos os dias e tantas vezes como a braguilha” e muitos mais, hoje tão atuais como nos anos 1960. Como e por que no Brasil a grande maioria dos estudantes universitários ignorava a realidade dos estudantes em outros países? Por que toda uma geração de jovens brasileiros não leram Marx ou Kropotkin? Porque estava proibido pelos militares ler, pensar, criticar. Porque os militares que “governaram o país” não pensavam, não liam senão suas ordens e tampouco estavam capacitados politicamente para dirigir, no contexto internacional, uma economia tão importante como a brasileira. Foram os militares que geraram a maior dívida econômica, até os dias atuais, de seu país no período de Ditadura Militar. A Década Prodigiosa dos anos 1960 decretava na voz do poeta beat Allen Ginsberg, em seu poema Howl (Uivo): “Estou contigo em Rockland onde as faculdades do crânio já não admitem os parasitas dos sentidos”.2 Também nos muros da Universidade de Sorbonne, em Paris, apareciam


tintas de uma geração que pintava suas demandas, suas reivindicações de pertencer como geração a um futuro incerto, ou então: “Nas avaliações, respondam com perguntas”. O leitor deste escrito se perguntará: e o que tem a ver esta história com o Golpe Militar dos gorilas em 1964? “Por favor!”, diriam os jovens estudantes do mundo em 1968, com muita razão. “Vocês devem abrir o cérebro todos os dias e tantas vezes como a braguilha”. Em 1968, o movimento estudantil em São Paulo e no Rio de Janeiro foi brutalmente reprimido. Já é clássica a lembrança do dia que a polícia militar entrou na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e prendeu Caetano Veloso e Gilberto Gil e os mandou para o exílio em Londres. Os militares expulsaram de seu país os melhores cérebros. O exílio forçado ou voluntário de cientistas e artistas ameaçados de morte foi resultado do simples fato de contribuírem com sua inteligência e conhecimento crítico para um mundo livre e de liberdade no Brasil que começava a caminhar, alegre e saudavelmente para o seu futuro. A fuga de cérebros foi massiva depois do Golpe Militar em 1964. Um Golpe. Em termos sociológicos e de teoria política, “Golpe” não se define como “Revolução”, como pretende

fazer acreditar uma historiografia golpista. A escuridão atravessa todas as palavras de liberdade, ameaça as calçadas de sua vida com baionetas militares. A sombra das palavras "ordem e progresso" semeia medo em todas as portas e janelas do povo brasileiro, para que a história se esconda nas prateleiras de uma memória perdida de muitas memórias perdidas. A memória hoje não é a simples lembrança do passado; é um ato comemorativo do presente. “A memória não é útil apenas para adquirir erudição, mas também para a conduta da vida. É a memória de eventos passados que dá um exemplo para deliberar sabiamente sobre os próximos eventos.” (Plauto).3 É necessário falar e lembrar os anos 1960 em outros países, para que os estudantes de hoje nas universidades no Brasil conheçam e aprendam, estudem, saibam e analisem em suas aulas e comparem o momento histórico que viveram os seus pais ou avós em 1968 sob a ditadura fascista-militar brasileira e o que eles vivem hoje cinquenta e cinco anos depois. DEWEY, John. El arte como experiencia, 1934. GINSBERG, Allen. Howl and other poems, 1956. 3 PLAUTO. Los dos Menecmos (cerca de 205 A.C.). 1 2

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PERMANÊNCIAS DA DITADURA

Ditadura no interior e na capital Araci Maria Labiak Antropóloga madjawe@hotmail.com

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cabara de sair do Ensino Médio, vim para a capital estudar na Universidade Federal do Paraná. Trabalhei um ano até que fosse o tempo de prestar vestibular. Carregando a ingenuidade característica dos que vêm do interior, aventurei-me. Era início dos anos 1970. Pude dedicar-me aos estudos sem necessidade de trabalhar nos dois primeiros anos. Isto possibilitou-me aulas de manhã, de tarde e uma ou outra disciplina no início da noite. Como havia um núcleo comum, cursava disciplinas em diversos cursos. Logo de início, um impacto. Não conseguia entender. A Sociologia da Universidade se apresentava tão diferente da que estudara no Ensino Médio. Aquela, ministrada por um professor vindo do Sul do país, que face a perseguição das forças militares, num autoexílio se refugiara na cidadezinha, tinha uma função social. Era uma ciência possível de auferir e sanar mazelas sociais através da ação tendo como base aportes metodológicos e científicos apropriados. Estudava a sociedade, “descobria” onde havia falhas, e intervinha, propondo soluções. A Sociologia, que ora me era apresentada na Universidade, continha uma neutralidade científica que não lhe permitia intervir... “Como assim?”, eu me perguntava. Era outra, e eu não entendia. Os autores, os teóricos, eram os mesmos... Em algum lugar eu perdera algo. Expus ao professor minha dificuldade e solicitei mais leitura, bibliografia. 32

Resistências

Ao ouvir que não se tratava de mais leitura, mas alcance de compreensão, obviamente, tomei como alusão possível falha intelectual minha. Indignada lhe coloquei sobre a Sociologia que aprendera no interior. Tão visceral fora minha reação que o professor me deu nota máxima até o final do período... Odiei também. Pois eu continuava na mesma dúvida... Mesmo tendo colocado com clareza a situação pela qual passara e fora submetida, como alvo da ditadura reinante no país, hoje muita gente lá do interior, amigo, parente, aluno ou vizinho do referido professor autoexilado, afirma que a ditadura não existiu, que foi um tempo muito bom, de muita ordem. E sabe que, para nós daquele tempo lá, foi mesmo. Nada mudara. Vivíamos como que numa bolha feliz, colorida pelos sonhos de criança promovida à juventude assepticamente. A ditadura era real para o professor e seus colegas, que também vieram para a cidadezinha, na mesma situação. Fui vivendo também na Universidade, numa bolha protetora da inocência, que mesmo sendo chamada pelo DOI-CODI para ser uma “espiã”, “dedo duro”, como se queira, levar-lhes informações sobre conversas e atos suspeitos de meus colegas, não aceitei porque jamais me vi numa situação de delatora! Mas não entendi a gravidade do que estava ocorrendo. Somente mais tarde, quando, através de programas de pastorais que participava, entre elas a Pas-


toral Carcerária, deparei-me com a realidade, nua e crua. Dentre os presos que visitávamos levando alento, conforto e assessoria jurídica, estavam os presos políticos! Soube de suas famílias, as torturas passadas por uns e outros. Conhecê-los, e às suas famílias, foi aterrador. Aí sim, caíram muitas fichas, a casa, a cara, o mundo. Analisando este quadro, penso que por isso me seja possível compreender um pouco e/ou relevar quem diz que não houve Ditadura, que afirme ter sido um tempo bom. Viver numa bolha ilusória do distanciamento seja pelo ar condicionado dos escritórios, das pastas 007, dos paletós e das gravatas, das estatais, ou das empresas e instituições privadas, seja pelo entorno incauto, asséptico, higienizado pelos estrangeiros trabalhadores, sedentos de ascensão socioeconômica, ou escravizados por compatriotas, seja pelo laurel dourado das escolas e universidades que ensinavam e

ensinam antigas e suaves lições de viver para a guerra (santa ou da conquista, do domínio, contra o perigoso inimigo distante que um dia poderá se fazer presente) e morrer sem razão. Hoje, olhando o passado, nem tão distante, mas o suficiente para aflorar profundo entorpecimento, pode-se perceber a existência de quem pense, quem diga, não ter existido a Ditadura. Amenizada ou negada que foi, a tortura, a morte, a perseguição, a perversidade no campo e na cidade parecem inexistirem. Ocorrida somente no corpo e na alma dos “brancos” pobres, dos negros, dos indígenas, dos intelectuais, das classes trabalhadora e média. Na elite, jamais. Foram, no entanto, violentados, atingidos, massacrados, tantos quantos os agentes da Ditadura puderam abater, perseguir, torturar, desaparecer, no interior e nas capitais.

Ecos e Permanência da Ditadura na Amazônia

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PERMANÊNCIAS DA DITADURA

1964: 55 anos depois, como tragédia, farsa e escárnio José Alcimar de Oliveira Departamento de Filosofia Instituto de Filosofia, Ciências Humanas e Sociais Universidade Federal do Amazonas (Ufam) profalcimar@bol.com.br

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uando foi desencadeado o Golpe de 1º de abril de 1964, eu tinha sete anos e morava no interior da cidade de Jaguaruana, Ceará, às margens do maior rio seco do mundo, o Jaguaribe. Morava igualmente às margens da história e da geografia, do tempo e do espaço e, criança pobre, ouvia com temor e sem nada compreender o que outros diziam ter escutado no rádio de válvulas e a pilha (dispositivo fora das nossas posses familiares): o fantasma do comunismo rondava o sertão e, por dentro dos carnaubais, numa carruagem de tração bovina, homens encapuzados e armados levavam as crianças para delas vampirizar o sangue já pouco e anêmico. À miséria da existência cercada pelas cercas do capital e do latifúndio – menos do que pela seca – somava-se o medo, funcional ontem e hoje, da abrangente, aterradora e socialmente propalada ameaça comunista. O comunismo era como a palavra “câncer”, que ninguém ousava pronunciar, e quem o fizesse, de imediato se benzia e recitava pelo menos três vezes, “Ave-maria, Ave-maria, Ave-maria”, para que o dito não atraísse o real maldito. Como proteção, recorríamos à reza e às promessas. Além do rosário, lembro-me que em progressão geométrica me comprometia a rezar 10, depois 20, depois 40 pais34

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-nossos e ave-marias para esconjurar o perigo vermelho. Como não conseguia dar conta das promessas, lembro-me que dormia com fome combinada à culpa, em razão da dívida devocional. Jamais revelei essa dívida da infância aos meus pais. Guardava comigo a culpa e o medo. Lendo depois o texto de Walter Benjamin, O capitalismo como religião, percebi que é pela culpa (dívida) que se fortalece a cópula entre capital e alienação religiosa. Ao mirar em retrospectiva, agora perto dos 63 anos, nesse 2019 regressivo, me vêm à memória as duas mãos num cumprimento de força e união do programa “Aliança para o Progresso”. Leite em pó e óleo da generosidade anticomunista chegavam à pobre Jaguaruana e, regularmente, meu pai dirigia-se em montaria de jumento para pegar na igreja de Nossa Senhora Santana a porção ideológica do leite e do óleo da benemerência norte-americana. À época, com menos de dez anos, nada percebia da aliança programática entre anticomunismo e “Aliança para o Progresso”. Numa ocasião, bem me lembro, minha mãe Ana Nilda discutia com meu pai Marcondes por ter chamado de ladrão o vigário que indevidamente cobrava uma taxa pela esmola ianque (óleo e leite em pó) que gratuitamente deveria ser distribuída aos pobres. Pais católicos, formados pela


religiosidade devocional do medo trazida da Idade Média para aqueles confins, minha mãe de forma peremptória exigiu que meu pai deveria confessar-se com o padre e pedir perdão pela ofensa. Seguramente não o fez. Dois anos depois, em dezembro de 1966, meus pais, com cinco filhos entre dez e um ano, sendo eu o mais velho, faziam a viagem retirante de Jaguaruana para Manaus. Da Jaguaruana de 1964 à Manaus de 2019, 55 anos depois, o passado se faz presente num golpe em processo, em que se combinam tragédia, farsa e escárnio. Quanto a mim, a mesma filosofia que me expurgou o medo religioso e, para falar com Sartre, ainda hoje me assegura a unidade do que faço, nem na Universidade encontra ela abrigo seguro, diante do ódio ao pensamento e do obscurantismo que torna presente o passado dos tempos medievais, de medo e tutela. 1964 vivido na infância pobre de Jaguaruana, Ceará, volta numa combinação de espectro e ameaça real na Manaus de 2019 em que vivo. A verdade é que 1964, morto sem sepultura, permaneceu vivo sob camadas de sombra. O que se julgava passado, emergiu do submundo das pulsões mais inconfessáveis. De 1964 para cá, é certo, a luta pela democracia fez

avanços formais, materializados na Constituição de 1988, mas não alterou as raízes da desigualdade social. O Estado permaneceu burguês, autoritário e bem controlado pelo capital sem controle. A direita em sua mais extremada configuração se desinibiu de vez, submeteu até a direita clássica, a ponto de propor uma nova hermenêutica histórica e regressiva: como se o Brasil de 2019, para se redimir, devesse buscar em 1964 a axiologia que o libertou da ameaça vermelha. O que fazer? Como evitar ou travar a velocidade da regressão? Como lutar contra o sono da razão? A tragédia, a farsa e o escárnio, ou nos unem, ou sucumbiremos todos no individualismo imobilizante de quem pensa salvar-se a si mesmo como o Barão de Münchhausen. Se alguma unidade for possível, será a dos que coletivamente lutam e resistem ao obscurantismo ensandecido e a cada dia mais desinibido, destravado e arrogantemente ignorante. Veredas de libertação, de verdade, só as que abrirmos na luta, com braços e mentes. Que 1964 retorne a 1964, e 2019 volte a se encontrar com os ares do Estado Democrático de Direito, a partir dos empobrecidos e no contracurso da burguesia autoritária e presidida pela arrogância financeira da baixa política. Ecos e Permanência da Ditadura na Amazônia

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PERMANÊNCIAS DA DITADURA

Os mortos imponderáveis da Ditadura Militar brasileira Christian Crevels Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social Universidade Federal do Amazonas (Ufam) christian.crevels@gmail.com

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fastam-se já os trinta anos do fim da ditadura e ainda não lidamos adequadamente com os indígenas mortos pelo regime. Na esteira do pouco, mas louvável, trabalho de acerto de contas com a história realizado após a redemocratização, o Brasil hesita frente a um dado recalcitrante: ao menos oito mil indígenas assassinados - possivelmente mais. Esse número vem do Volume II do Relatório da Comissão Nacional da Verdade, no “texto temático” 5: “Violações de Direitos Humanos dos Povos Indígenas”, que veio a público em 2012. Há uma ambiguidade peculiar aí. Nota-se que este Volume do Relatório recomenda o reconhecimento da perseguição aos povos indígenas como “crime de motivação política, por incidir sobre o próprio modo de ser indígena” (p. 253). O Volume III do mesmo Relatório, dedicado a “Mortos e Desaparecidos Políticos”, que arrola uma lista de 434 vítimas, faz apenas menção à necessidade de se dar continuidade às investigações “no que se refere à repressão contra camponeses e indígenas”, o que pode parecer uma hesitação frente à recomendação anterior. É comum que o número de 434 vítimas encontre seu caminho nos campos argumentativos onde a temática da ditadura se faz presente, como na mídia, espaços de formação social, salas de aula, entre outros, enquanto que os milhares de casos indígenas, não tão facilmente. A pergunta latente, então, é: por quê? Mesmo se considerando que são centenas as vítimas políticas não indígenas do regime 36

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militar, são milhares de indígenas, e esse é um número desconcertantemente alto para que simplesmente desapareça do debate público e político. Vale reiterar, a aferida necessidade de dar continuidade a essas investigações, de modo algum significa que o que se tem até hoje são dados incertos. Muito antes do Relatório da Comissão Nacional da Verdade, o chamado Relatório Figueiredo já denunciava o genocídio sistemático dos povos indígenas pelo governo brasileiro, contribuindo assim para a extinção do Serviço de Proteção ao Índio, em 1967, antecessor da Fundação Nacional do Índio (Funai). Para o caso dos Waimiri Atroari, o Relatório do Comitê Estadual de Direito à Verdade, à Memória e à Justiça do Amazonas aponta o desaparecimento de pelo menos dois mil indígenas Waimiri Atroari, sob táticas de extermínio do governo militar durante a construção da BR-174. Muito mais ainda há por ser feito, mas essa afirmação incide apenas sobre o conhecimento de nossa ignorância dessas histórias. Já não é possível negar a solidez dos indícios de uma política deliberada de extermínio dos povos indígenas por parte da ditadura militar. Há algo de vil, sim, e de uma envergonhada cumplicidade nas reticências com que essas mortes, tornadas números, são tratadas. Talvez seja que, frente à sociedade brasileira, a morte indígena não gere tanto apelo, não vincule comoção, por ter um quê mais difícil de ser imaginada, por não associar identificação. Talvez, por outro lado, encaixe-


-se de subterfúgio em uma crença arraigada na inevitável extinção dos povos indígenas no correr da modernidade, sendo assim sobremaneira naturalizada. Certo parece ser que há um descompasso entre a imagem que o Brasil tem de si, amparada ainda nos ideais de uma pacífica democracia racial freyriana, e a constatação de que massacrou, dizimou e exterminou uma multidão indígena em seus anos militares. Pois que reconhecer esse genocídio seria ferir a ilusão do bem-estar brasileiros entre os

povos; seria assumir a responsabilidade social de processos históricos de depopulação antes tidos como naturais e inevitáveis; seria trazer para o escopo do recente uma violência que o Brasil insiste em pensar no passado longínquo e colonial, onde a culpa pode recair, fortuitamente, sobre Portugal. É para não assumir essa autocrítica severa de sua identidade nacional que o Brasil hesita e titubeia em lidar com suas mortes indígenas.

Ecos e Permanência da Ditadura na Amazônia

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PERMANÊNCIAS DA DITADURA

O fim das ditaduras na América Latina Osvaldo Coggiola Departamento de História Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Universidade de São Paulo (USP) coggiola@usp.br

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a América Latina, a transição política para regimes civis foi motivada pelo esgotamento econômico e político dos regimes militares, no quadro de uma crise econômica mundial: a “crise das dívidas”, em 1982, evidenciara a incapacidade desses regimes em continuar pagando a dívida externa mediante os métodos econômicos e políticos vigentes. A política democratizante foi impulsionada pelos Estados Unidos da América e surgiu no bojo dos problemas criados pela crise política mundial: ela foi impulsionada pelo governo Reagan (19801988) depois das derrotas norte-americanas nas guerras do Vietnã e do Sudeste asiático, e da revolução nicaraguense. Explicitando o sentido da mudança política afirmou um documento oficial dos EUA: “O autoritarismo de extrema direita tem sido um importante fator que contribuiu para uma nova e crescente ameaça à democracia: a ameaça do 38

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totalitarismo comunista... O apoio à democracia, a própria essência da sociedade americana, está se tornando o novo princípio em torno do qual se organiza a política externa norte-americana. O apoio à democracia promove os interesses dos Estados Unidos de várias formas importantes. A democracia ajuda a garantir a segurança dos Estados Unidos. Os governos democráticos, precisamente porque devem ser sensíveis aos desejos dos seus povos, tendem a serem bons vizinhos. A competição política aberta e regular diminui a polarização e as extremas oscilações do pêndulo (como aconteceu no Chile, em Cuba e na Nicarágua) e torna as nações mais resistentes à subversão. Os governos democráticos são mais confiáveis como signatários de acordos e tratados porque seus atos são sujeitos ao exame do público. A democracia também favorece importantes interesses políticos e econômicos dos Estados Unidos” (grifo nos-


so)1. Essa política visava resolver a contradição entre a necessidade de uma política intervencionista, e a de manobras diante da crise econômica e a tendência ascendente do movimento operário e popular latino-americano. Ela capitalizou o entrelaçamento inédito das burguesias nacionais latino-americanas com o capital financeiro internacional. A passagem das ditaduras militares para regimes democráticos, na América do Sul, foi um processo de complexas dimensões: não se esperava apenas a mudança das normas políticas, mas também a afirmação independente das nações latino-americanas (ou a “verdadeira” constituição das mesmas), assim como o combate às desigualdades sociais. Do ponto de vista estritamente político, não se tratava da volta ao status quo ante, nem da simples reedição das alianças políticas e de classe existentes antes do “interregno” militar. Isto era particularmente válido para o Brasil, o país, dentre o conjunto da América Latina, que produzira a maior e mais densa tradição crítica quanto aos rumos seguidos desde a sua constituição como sociedade independente, em todos seus aspectos – econômicos, sociais, políticos, culturais –, com um embasamento predominantemente nacionalista2. Em pouco tempo, os rumos seguidos pelos governos civis latino-americanos começaram a desfazer a ilusão de se atingir os objetivos sociais e nacionais por meio de mudanças só políticas, sem tocar nas relações de propriedade. Não se pôs em questão o pagamento da dívida externa, diante das exauridas reservas nacionais. Os governos aceitaram o princípio da “capitalização da dívida’’, liquidando o aparelho produtivo, e entregando, em troca dos títulos desvalorizados da dívida, aceitos por seu valor nominal ou de face, o patrimônio nacional: no Brasil, o governo civil acabou com a reserva de mercado para os setores estratégicos (informática, petroquímica); na Argentina, foram privatizadas as linhas aéreas e todo o sistema de comunicações. Os “modelos” desse “liberalismo modernizante” (Chile e Bolívia) falaram por ele. No Chile, em 1965, 96% das exportações estavam compostas por matérias-primas; em 1986 (depois de 13 anos de “liberalismo” pinochetiano), essa percentagem era ainda de 92%, a diferença de 4% era produto da lenta recuperação da desindustrialização operada entre 1973 e 1986, que elevara o desemprego de 4,7% a 25,7%. A estrutura do atraso econômico relativo da América Latina se aprofundou. Na Bolívia, o desemprego, em certos setores, chegou a 75%, com os antigos trabalhadores mineiros transformados em nômades, que se deslocavam em barracas à procura de emprego, enquanto a massa camponesa viu-se obrigada a sobreviver com a plantação de coca. O estanho só produzia US$ 70 milhões anuais, enquanto as exportações de pasta de cocaína se elevaram até US$ 600 milhões. Na Argentina, triplicou o número de pobres. No México, o avanço do latifúndio e a crise industrial fizeram com que os trabalhadores agrícolas sem-terra pas-

sassem de 1,5 milhão em 1950 (30% da força de trabalho) para mais de seis milhões (60%), preparando uma crise agrária que explodiria na década de 1990. A América Latina, que detinha 12% das exportações mundiais em 1950, passou para 5,4% em 1975, e para 4% em 1990. Simultaneamente, diante da crise mundial e da perda de posições pelos EUA, Paul Volcker, presidente do Federal Reserve Bank (banco central norte-americano), em outubro de 1979, por meio de um choque monetário e financeiro, elevou os juros básicos da economia americana (que estavam em torno de 4% ao ano) para 19%, provocando a “crise das dívidas externas” da década de 1980. Vários países da América Latina e África foram à bancarrota. O primeiro foi o México em 1982; o Brasil, em 1983, foi obrigado a dar um “calote técnico”, recebendo em seguida a visita do Fundo Monetário Internacional (FMI). Em apenas três anos (1981 a 1983), a América Latina pagou 81,7 bilhões de dólares em conceito de serviço da dívida, o dobro do que pagara na década de 1970. Em 1982, o governo mexicano não conseguiu continuar pagando a dívida e declarou moratória. Os banqueiros privados internacionais reagiram interrompendo os créditos para os países devedores, inviabilizando a rolagem da dívida e buscando que o FMI assegurasse o pagamento da dívida externa, com sua reprogramação e refinanciamento: criado com a função básica de fornecer recursos financeiros para os países que apresentassem déficits nas contas externas, o FMI passou a ser um órgão gerenciador dos países endividados, utilizando “cartas de intenções” para implementar programas de ajuste. A deterioração do nível de vida dos trabalhadores era palpável. Em toda a América Latina, na década de 1980, a “década perdida”, a renda per capita caíra aos níveis de 1970; o retrocesso econômico, com queda absoluta do Produto Interno Burto (PIB) (-1% para todo o continente) coexistiu com o crescimento demográfico, determinando uma queda maior ainda da renda per capita (que não chega a medir a queda real do nível de vida, devido ao avanço da concentração de renda); o investimento caiu de 25% do PIB (na década de 1970) para 16% em 1987; a inflação estava fora de controle; a dívida externa continental pulou de US$ 100 bilhões em 1980 para US$ 420 bilhões em 1989; a produção de alimentos caiu em 17 dos 23 países latino-americanos entre 1981 e 1987. No Brasil, enquanto o crescimento anual médio do PIB atingira uma média de 7,1% anual no período 1947/1980, essa taxa se reduziu para 1,6% nos anos 1980. A crise econômica e a deterioração social produziram as condições de uma crescente irrupção popular que, junto com aquela crise, criou a necessidade imperativa do fim dos regimes militares. Departamento de Estado dos EUA/Bureau de Assuntos Públicos. Democracia na América Latina e no Caribe. A promessa e o desafio. Relatório Especial n° 158, Washington DC, março 1987. 2 COGGIOLA, Osvaldo. Ideologia brasileira e crítica latino-americana: as raízes de uma agonia. Crítica Marxista n° 20, São Paulo, abril 2005. 1

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PERMANÊNCIAS DA DITADURA

O uso mercantil da terra como sintoma do autoritarismo Cláudio Rezende Ribeiro Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) claudioreri@gmail.com

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ste texto pretende destacar sintomas e tendências das movimentações das classes dominantes, adiantando o sentido de suas tomadas de decisão e sua avaliação da correlação de forças: as formas de manutenção do padrão mercantil do uso da terra rural e urbana no Brasil. Dois momentos diferentes da recente história brasileira evidenciam dinâmicas complexas que se tangenciam no conteúdo, mas que podem adotar diferentes formas. Seja no golpe empresarial-militar de 1964, seja na atual diminuição das liberdades democráticas a partir de um golpe em processo desde 2016, a relação com a propriedade fundiária possibilita perceber o sentido da movimentação política brasileira. Dentro das Reformas de Base do período pré-64, estavam incluídas as reformas agrária e urbana. A luta pela distribuição da terra no campo percorre uma trajetória longa na história brasileira e latino-americana, remetendo à concentração de poder oriunda da colonização escravocrata e que permanece na estrutura social como traço característico e definidor do capitalismo dependente. Não menos importante, a reforma urbana era uma bandeira mais recente, inclusive devido ao fato de que, à época,

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apesar do vertiginoso crescimento urbano, o Brasil permanecia como um país “rural”, na medida em que foi somente durante a década de 1960 que a maioria da população passou a habitar em cidades. De todo modo, esta reforma estava em fase de pleno amadurecimento como demonstra o importante Seminário Nacional de Habitação e Reforma Urbana, promovido pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil, em 1963, no Hotel Quitandinha, em Petrópolis. Ambas foram alvo direto do golpe de 64. Não foi poupada nem mesmo a proposta de reforma agrária que, ao focar no assentamento de famílias no campo na forma de pequenos proprietários, promovia a ampliação da noção de propriedade privada dentro dos limites do capitalismo. A mera percepção de que a necessidade de regularização da terra, alterando o caráter absoluto da propriedade privada, começava a ganhar força e disputar a hegemonia no pensamento social reforça a decisão da realização de um golpe de Estado. Naquela época, dentre outras questões, o anticomunismo serviu de argumento para o golpe. Como ilustra a fala do general Odylio Denys: “Felizmente todo mundo acabou vendo que nós é que estávamos defendendo a legalidade, pois queríamos manter o regime democrático vigente no


Saltando da tragédia para a farsa contemporânea, é sintomático que a função social da terra seja, mais uma vez, um dos alvos prioritários da reação. País, em desacordo com o governo constituído, que com um golpe de Estado ia implantar nele a revolução marxista, instituindo o regime sindicalista.” (Denys apud De Melo, 2015). Saltando da tragédia para a farsa contemporânea, é sintomático que a função social da terra seja, mais uma vez, um dos alvos prioritários da reação. Através de forte luta popular capitaneada pelo Fórum Nacional da Reforma Urbana (FNRU), a função social da propriedade do solo nas cidades foi inserida na Constituição Federal de 1988 nos artigos 182 e 183, acompanhados do186 que trata da função social da propriedade rural. O FNRU foi criado em 1987 por diversas entidades e movimentos populares que se reorganizaram após o golpe de 64 em torno da retomada da agenda da reforma urbana, refletindo, inclusive, um importante e fértil debate teórico-acadêmico sobre cidade, desenvolvimento, urbanização e capitalismo periférico como resposta ao autoritarismo em diversos campos do saber (Maricato, 2011). A inserção da função social da propriedade urbana na

Constituição de 1988, no entanto, exigiu a realização de Planos Diretores, impedindo que determinadas ações mais diretas fossem realizadas. Deve ser destacado que se levou treze anos para ser aprovado o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) que destravava obstruções ideológicas do judiciário que seguia defendendo o uso da propriedade da terra como um direito absoluto em suas interpretações contrárias a determinados Planos Diretores socialmente avançados que começaram a ser elaborados nas décadas de 1980 e 1990. Villaça (1999) indica os Planos Diretores como discursos necessários para uma elite que perde o seu poder hegemônico de anunciar, de maneira explícita, suas ações na cidade. Seria necessário, assim, construir um discurso concretizado em uma mediação legal e programática (Planos Diretores) para garantir continuidade da extração de mais-valor por parte dos setores organizados em torno da produção do espaço imobiliário especulativo financeiro: As facções da classe dominante brasileira […] têm cada vez menos condições de fazer planos que revelem suas reais propostas para nossas cidades [mas] não têm condições de fazer planos que atendam às necessidades da maioria de suas populações. Por paradoxal que possa parecer, a obrigatoriedade de elaboração de plano diretor, constante da Constituição de 88, não representa outra coisa senão um discurso com o qual aquelas facções procuram ocultar esse Ecos e Permanência da Ditadura na Amazônia

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dilema. [...] Tudo indica que aquela classe deverá evitar planos diretores num futuro próximo, pois, em que pese a pequena participação das organizações populares, a elaboração dos planos vem sendo crescentemente politizada e se transformando, no mínimo, em momentos desagradáveis para os interesses dominantes. (Villaça, 1999, p. 246). Diante desta colocação podemos perceber sintomas que demonstram um aumento da hegemonia da classe dominante na última década, que deságua na atual conjuntura que flerta com um golpe que utiliza de “ferramentas democráticas” para se consolidar. Neste período, as políticas urbanas deixaram de ser mediadas pelos Planos Diretores. Os chamados planos estratégicos, organizados segundo finalidades e métodos mercantis, tomaram conta, sobretudo das grandes cidades, e se fortaleceram com os megaeventos. Na cidade do Rio de Janeiro, de forma mais aguda, estas transformações autoritárias voltaram a ser reveladas e anunciadas pelos representantes do poder que se utilizavam, por exemplo, do discurso olímpico para justificar de forma pública e notória remoções de favelas e demais espaços de moradia da população pobre da cidade (Ribeiro, 2014). O poder hegemônico de anunciação direta de seu projeto para a cidade foi reconquistado pela elite, um sintoma importante da fragilidade de determinadas liberdades democráticas, como o cumprimento da função social da propriedade, que já estavam, de fato, sendo arruinadas. Em seguida, no ano de 2017, foi aprovada uma Medida Provisória (que virou a Lei 13.465/2017) alterando mais de 20 leis referentes à regularização fundiária, incidindo, inclusive, na ocupação urbana predatória da Amazônia Legal, num esboço avançado da substituição da função social da propriedade rural e urbana por uma função mercantil (Ribeiro, 2017). Em 2019, num movimento mais explícito, é enviada ao Senado, por Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC 80/2019) que “Altera os artigos 182 e 186 da Constituição Federal para dispor sobre a função social da propriedade urbana e rural”. Na prática, elimina a função social da propriedade, retomando o projeto desenvolvimentista de 1964 em mais um afrontoso ataque aos direitos sociais. Na sua justificativa, lembrando o golpe anterior, é citada a defesa do “bem sagrado” da propriedade privada que “deve ser protegida de injustiças”; e no parecer favorável da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, com relatoria da Senadora Juíza Selma (PSL-MT), o discurso anticomunista também retorna, com seu verniz atual de revisionismo histórico no pior estilo fake news: Os regimes totalitários, em especial o nazismo e o comunismo, que foram responsáveis pelas maiores tragédias humanas do Século XX, tinham em comum a ideia de que o Estado ou o partido hegemônico 42

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O direito à terra e o direito à cidade são lutas constantes. As ações para o seu sequestro são atitudes permanentes da elite brasileira. estavam acima dos interesses pessoais e detinham o poder coercitivo para limitar muitos aspectos da vida de cada indivíduo, especialmente no que se refere à liberdade para adquirir e dispor de seus bens (Brasil, Senado Federal, 2019). O direito à terra e o direito à cidade são lutas constantes. As ações para o seu sequestro são atitudes permanentes da elite brasileira. A ditadura empresarial-militar de 1964 teve como uma de suas medidas o impedimento da distribuição de terra e da democratização do espaço urbano; as tentativas que ocorreram, sobretudo na década de 1990 e início dos anos 2000, de inversão desta tendência foram sufocadas aos poucos e, mais recentemente, atacadas de maneira explícita, dando indicativos de um crescimento do autoritarismo pelo viés mercantil do uso da terra. Remoções de favelas; operações urbanas financeirizadas; fundos de pensão se apropriando de infraestruturas de mobilidade; facilidade e ampliação de crédito para o agronegócio que se apoia em monoculturas dependentes de agrotóxicos, ao mesmo tempo em que investe no mercado da especulação imobiliária. Estas ações indicavam um termômetro da correlação de forças, isto é, uma avaliação de que havia espaço para o crescimento de uma ação autoritária mais estruturada, ampla, veloz e menos conciliatória. Discursos mais explícitos e menos mediados que os Planos Diretores cada vez mais ganhavam espaço. Agora, o ataque torna-se ainda mais intenso. Identificar os rumos brutais de mercantilização da terra para lutar contra o aprofundamento do autoritarismo exige o reconhecimento de que a paisagem que percorremos cotidianamente é pavimentada por um entulho autoritário que precisa ser removido para que possa aflorar um chão de justiça. BRASIL, SENADO FEDERAL. Da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, sobre a Proposta de Emenda à Constituição nº 80, de 2019, que altera os artigos 182 e 186 da Constituição Federal para dispor sobre a função social da propriedade urbana e rural. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/ documento?dm=7977608&ts=1567534377956&disposition=inline DE MELO, W. F. (2015). “Processualidades do Golpe de Estado de 1964”. História Revista, 20(1), 92-118. Disponível em: https://doi.org/10.5216/hr.v20il.39367 MARICATO, Ermínia. O impasse da política urbana no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2011. RIBEIRO, Cláudio Rezende. “Urbanismo VIP: a mudança da finalidade do espaço público como resultado da técnica do urbanismo hegemônico contemporâneo”. In: SANTOS, Angela Moulin S. Penalva; SANT’ANNA, Maria Josefina G. (Orgs.), Transformações territoriais no Rio de Janeiro do século XXI. Rio de Janeiro: Gramma, 2014. RIBEIRO, Cláudio Rezende. Notas sobre a MP 759: o fim da função social da propriedade urbana e rural, 2017. Disponível em: https://direitoeurbanismo. wordpress.com/2017/05/15/notas-sobre-a-mp-759-o-fim-da-funcao-social-dapropriedade-urbana-e-rural/ VILLAÇA, Flávio. “Dilemas do Plano Diretor”. In: SEIXAS, Sérgio Gabriel (Coord.), O Município no Século XXI: Cenários e Perspectivas. São Paulo: Fundação Prefeito Faria Lima/Cepam, 1999.

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PERMANÊNCIAS DA DITADURA

Ditadura não se comemora! César Augusto B. Queirós Departamento de História Instituto de Filosofia, Ciências Humanas e Sociais Universidade Federal do Amazonas (Ufam) cesardequeiros@gmail.com

À

s vésperas do dia 31 de março de 2019, a sociedade brasileira se viu assombrada diante de uma determinação feita pela presidência ao Ministério da Defesa para que as unidades militares realizassem comemorações em referência ao 31 de março de 1964, data que marca a deflagração do golpe civil-militar ocorrido no Brasil que deu início a uma ditadura que se prolongou por longos 21 anos. Essa determinação provocou imediata reação de organizações como o Instituto Vladimir Herzog, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associação Nacional de História (ANPUH) e o próprio Ministério Público Federal (MPF). O Relator Especial do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, Fabián Salvioli, afirmou que é dever do Estado preservar as evidências de crimes horrendos como os cometidos durante a ditadura, e não celebrá-los. Tal iniciativa parte de uma clara tentativa de realizar um uso político do passado, promovendo reabilitação da ditadura militar e significativa inversão das narrativas consolidadas em anos de árdua pesquisa de historiadores e de toda a comunidade acadêmica e que, com a liberação de variado leque de documentação para a pesquisa científica, vem conseguindo lançar luzes sobre um período que deve ser lembrado para que nunca mais venha a ocorrer novamente. Possibilitar que as severas violações sobre os direitos humanos ocorridas ao longo da ditadura militar cheguem ao conhecimento da comunidade em geral, sensibilizando 44

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a sociedade para os absurdos promovidos nesse período, é tarefa premente! É um direito de todos conhecer os crimes e violações praticados em nosso passado recente! Celebrar o golpe militar é imoral e representa um insulto à memória de todas e todos aqueles que foram perseguidos, torturados, desaparecidos, mortos e/ou tiveram seus direitos e liberdades cerceados durante os 21 anos em que o Brasil foi governado pelos militares. Significa celebrar a tortura, o cerceamento das liberdades individuais, a perseguição de minorias e o sadismo a serviço do Estado. Da mesma forma, celebrar um golpe é um gravíssimo atentado à democracia! Neste ano, completamos 30 anos desde a primeira vez em que a população brasileira pôde eleger, de forma direta, o presidente do país após o final da ditadura militar. Foram 29 anos sem que pudéssemos exercer integralmente nossos direitos políticos! É inadmissível, portanto, que não tenhamos aprendido nada em todos esses anos e que a democracia esteja novamente sendo ameaçada. Deste modo, convém destacarmos Winston Churchill ao salientar que “ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem defeito. Tem-se dito que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos”. A sociedade brasileira não pode mais tolerar discursos de ódio e tentativas de reabilitar um período marcado pelas perseguições políticas, torturas e violações. Ditadura não se comemora!


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PERMANÊNCIAS DA DITADURA

O Brazil talhado a golpes Marcelo Seráfico Departamento de Ciências Sociais Instituto de Filosofia, Ciências Humanas e Sociais Universidade Federal do Amazonas (Ufam) marcelo.serafico@gmail.com

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m 31 de março de 1964, as forças armadas brasileiras depuseram o governo João Goulart e passaram a comandar uma ditadura patrocinada por empresários de origem nacional e estrangeira, com o apoio do governo norte-americano. O golpe militar foi, porém, a culminância do movimento inaugurado pela renúncia de Jânio Quadros, em 25 de agosto de 1961, contra todo e qualquer tipo de reforma nacional que apontasse no sentido da democratização da riqueza e do poder. Não é outro o sentido da aprovação do parlamentarismo como modo de tutelar o governo de João Goulart, o vice de Jânio, em 02 de setembro de 1961. Foi a forma pela qual o Congresso, as forças armadas, o empresariado, os

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grandes proprietários de terra, as elites eclesiais e a classe média acionaram os dispositivos da contrarreforma. O que João Goulart representava? A possibilidade de reformas de base necessárias para o avanço da revolução burguesa no Brasil. Eis, porém, que em tempos de capitalismo monopolista burguesias nacionais não sejam portadoras de projetos de desenvolvimento minimamente vinculados à nação, portanto, de perspectivas de moldar as sociedades nacionais à sua imagem. Ocorre que burguesias-compradoras, lumpemburguesias, têm apenas uma cara, a de tudo que lhes assegure lucro, nada mais. Foi assim que, sepultada a experiência de democratização populista, militares, burguesias e classe média alienaram a maioria dos cidadãos dos processos decisórios na-


cionais e subordinaram as forças produtivas do país aos interesses de quem as quisesse explorar desde dentro, fora ou em associação. Esse regime de superexploração e ultradominação durou 21 anos. Uma crise econômica, política e social pôs fim àquela barbárie. Mas a saída dela não se fez com ruptura, mas sim, como é da tradição das elites nacionais, por meio de uma ampla e irrestrita transição transada que frustrou as Diretas Já! e permitiu que o passado se impusesse sobre o futuro. A reconquista dos direitos políticos, civis e sociais veio acompanhada das ameaças e chantagens econômicas do abstrato mercado, cuja encarnação material se revela nos agentes das finanças globalizadas operando em bancos, corretoras de valores, fundos de pensão, empresas, ministérios, think tanks, ONGs, universidades e imprensa. As chantagens e ameaças convertidas em políticas assumiram a forma do consenso das elites globais, forjado em Washington, em 1989, e imposto aos Estados nacionais com a doce aceitação de muitos dos que os governavam. Nuns cantos do mundo, tratava-se de restaurar as condições globais da acumulação capitalista; noutros, de definir o novo catecismo a ser seguido pelos países que viviam a falência do Socialismo Real. Erigia-se, assim, sobre os escombros das ditaduras capitalistas e socialistas, a Nova Ordem Mundial. O mundo foi transformado em uma vasta oportunidade de investimento. O que dele não era, precisava tornar-se. A lógica racional, em relação aos lucros, e irracional, em relação a seus efeitos sobre a sociedade, arrebatou corações e mentes. Desregulamentar e desestatizar eram as palavras de ordem. Lucrar, o mantra. E, de par com medidas pontuais que ajudavam a minimizar os danos do compromisso das elites nacionais com o globalitarismo, os governos nacionais brasileiros, entre 1985 e 2016, criaram e mantiveram todas as condições necessárias e favoráveis à dinamização econômica capitalista monopolista-financeira, dentre as quais o câmbio flutuante e as metas de inflação e fiscal. Para tanto, as elites nacionais promoveram uma profunda contrarreforma do Estado, ajustando-o, estruturalmente, ao que era necessário para ampliar o poder das finanças globalizadas sobre as decisões políticas tomadas nacionalmente. Seguiram à risca o receituário prescrito pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Mundial. O “Príncipe dos Sociólogos” sumarizou esse compromisso com a ideia de “liquidar a era Vargas”. Muitos criam serem essas medidas democráticas, democratizantes e destinadas a estabilizar a economia em crise. Em 31 de agosto de 2016, portanto, 31 anos depois da “transição transada” e de experiência neoliberal total e matizada, o Congresso, o Supremo Tribunal Federal e as Forças Armadas asseguraram novo golpe, agora contra a presidenta reeleita em outubro de 2014, Dilma Roussef. Dessa vez, porém, não se depôs alguém que se notabili-

Que seja uma figura tão rebaixada a que preside o país assusta menos do que o fato de o fazer com o referendo do voto da maioria dos que foram às urnas em outubro de 2018.

zasse pela luta por reformas de base. Muito ao contrário. Açoitada pelos desdobramentos da crise econômica mundial de 2008, a militante que fez frente à ditadura militar tornara-se vítima das políticas de conciliação nacional com o neoliberalismo global e, para driblá-las, aprofundou-as, com medidas de austeridade e controle social combinadas com generosidade fiscal para os mais ricos. Ainda assim, caiu! Tomou seu lugar Michel Temer, cujo projeto era construir uma ponte para o futuro. Em seus pouco mais de dois anos de governo, liquidou com a legislação trabalhista e aprovou o congelamento de investimentos públicos em saúde e educação por vinte anos, para ficar em dois exemplos que indicam que o futuro do país sonhado pelas elites nacionais nos remete ao Brasil escravocrata e pré-republicano. O futurismo reacionário segue com o sucessor de Temer. Com o voto da maioria dos eleitores, um capitão expulso do Exército, cuja bandeira política é a violência acima de tudo e contra todos os que não correspondam a seu moralismo epidérmico, além do compromisso com a liquidação do que resta da nação. Que seja uma figura tão rebaixada a que preside o país assusta menos do que o fato de o fazer com o referendo do voto da maioria dos que foram às urnas em outubro de 2018. O sucesso político do neoliberalismo só é proporcional ao fracasso econômico e social do capitalismo que nele se inspira, quando se pensa nas condições de vida da maioria dos cidadãos do planeta. As ditaduras continuam a nos assombrar. Agora, porém, com a aura do voto e da vontade popular a revesti-las. A unificá-las, ontem e hoje, um mesmo propósito: aprofundar a superexploração e a ultra dominação. A diferenciá-las, as de ontem e as de hoje, as técnicas golpistas. Ontem, golpes militares sustentados por civis. Hoje, golpes civis sustentados por militares. Nos dois casos, golpes “com o Supremo e com tudo”. Em qualquer caso e em qualquer tempo, estão em causa os limites da democracia burguesa e a capacidade dos setores progressistas das sociedades nacionais de, num esforço global, confrontar os cães de guarda das “democracias globalitárias” hoje existentes, com vistas a criar as condições para que Estados sejam governados pelo compromisso político e econômico de liquidar as desigualdades e assegurar a liberdade para todos. Ecos e Permanência da Ditadura na Amazônia

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A aurora que procuramos José Basini Departamento de Antropologia Instituto de Filosofia, Ciências Humanas e Sociais Universidade Federal do Amazonas (Ufam) lupusesteparium@gmail.com

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omo explicar o eterno retorno do autoritarismo de Estado? Onde procurar os motivos que identifiquem a barbárie que tomou conta da nação brasileira com a chegada de Jair “Messias” Bolsonaro à presidência? De forma imediata pode-se até cogitar num voto de castigo ao lulismo sobre a base do ressentimento de setores políticos e sociais que perderam lucratividade, e da mídia oportunista e global inflamada intencionalmente sobre a cleptocracia do Partido dos Trabalhadores. Mas, contudo, os efeitos produzidos pelas insatisfações e manipulações mencionadas, motivos mais substanciais, acredito, podemos encontrá-los olhando muito mais atrás. E neste sentido imagino as tarefas não feitas pelos diversos governos nacionais advindos ao cessar da ditadura militar de 1964 a 1985. A procura de verdade, justiça, paz, responsabilização aos militares, investigação dos desaparecimentos forçados, compensação das vítimas e suas famílias, pouco ou nada se avançou, apesar da atuação da Comissão Nacional da Verdade. Os governos de turno lavaram as mãos e a classe política-jurídica foi conivente; tampouco a sociedade civil conseguiu se organizar de forma efetiva para evidenciar ante a opinião pública e internacional as suas reclamações. Tudo isso sem considerar que pendências ainda mais básicas, porém simbolicamente significativas, não foram acertadas. Refiro-me à mudança de nomenclaturas autoritárias, verdadeiras toponímias do terror engessadas na memória do povo brasileiro, e recorrentes no nome de ruas, prefeituras e diversas localizações urbanas. Os nomes Presidente Figueiredo, Castelo Branco e de 48

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outros personagens infames, responsáveis pela morte e desaparecimento de centos de cidadãos brasileiros, formam parte de um cotidiano fantasmagórico e aterrorizante, naturalizado sócio-espacialmente com o passar dos anos. Outro assunto ritornello, que guarda relação com correlatos promovidos pelo Plano Condor dos anos 1970-1980 na América Latina, e que eu gostaria de destacar de forma mais categórica, refere-se à “delação premiada”. Como que tirado de um pesadelo de alguma ficção cinematográfica, o Brasil se transforma num breve lapso no país do “dedo duro” sob a falsa visão corretiva e pseudo-moralizante do super-herói Juiz Moro, “premiado”, nos primeiros momentos do atual governo, como plenipotenciário representante da Justiça do país. A delação premiada teve e tem um efeito simbólico poderosíssimo, uma espécie do desastroso 7x1 no futebol imposto pela Alemanha à seleção brasileira, no imaginário nacional mais recente: desmoralizou, desarmou, humilhou o povo brasileiro, deixando-o impotente e com vergonha, sem voz e sem expressão. Mas, a delação premiada também alentou as cinzas ainda quentes do fascismo e fundamentalismo presentes em setores políticos, jurídicos e empresariais, que convivem historicamente com o status quo e os privilégios usurpados pela classe política-empresarial e judiciária, e seus obedientes lacaios, sedentos do revanchismo e da justiça por mãos próprias. Deste pesadelo devemos despertar, nutrindo a vigília militante com os sonhos de um país mais justo, combatendo os privilégios, superando as desconfianças, medos e discriminações para assim voltarmos a acreditar no melhor que temos.


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Colonialismos, ditaduras e resistências indígenas no Brasil Ely Macuxi Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social Universidade Federal do Amazonas (Ufam) elymacuxi@hotmail.com

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a história do Brasil, do período colonial ao período atual, a presença militar sempre foi uma constante dentro dos territórios indígenas. A partir do século XV os militares atuaram para dominar e controlar os Povos Indígenas, como todos sabem, a serviço da implantação e administração do sistema colonial

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europeu e na construção de fortalezas, estruturas habitacionais e administrativas que garantissem domínio sobre as terras invadidas. Inicialmente, é importante compreender a posição estratégica das Forças Armadas (Exército, Marinha, Aeronáutica), no contexto das forças políticas que amparam o poder central dos ideários do Estado nacional para, grosso modo, integrá-lo ao contexto das engrenagens capitalistas e imperialistas de exploração/dominação, sendo seu principal objetivo o papel repressivo no processo histórico de colonização, atuando como membros ativos de sucessivos impérios invasores, sucessivas oligarquias e sucessivos governos pelo controle dos territórios e das riquezas contidas nas terras indígenas. Os Cariús1 de fardas trouxeram em suas mochilas, além das armas de ferro e pólvoras, todas as experiências, estratégias e ações desenvolvidas nos saques e pilhagens que fizeram por séculos junto aos povos de outros continentes, estando entre suas principais estratégias o uso da força física e bélica, na confrontação direta com o propósito de subordinar e eliminar os povos que habitavam os territórios a serem invadidos e explorados. Sua missão, acobertada, camuflada e dissimulada por sua boina ideológica – política indigenista oficial brasileira – teve como propósito a cobiça, a pilhagem e o controle sobre os territórios tradicionais, com ações genocidas: de conquistas, escravizações, remoções, prisões, torturas, aliciamentos, repressões culturais e linguísticas, aldeamentos e confinamentos, integração, favelização e marginalização. Tratou os Povos Indígenas como inimigos e obstáculos à implantação dos programas nacionalistas e desenvolvimentista do estado liberal. Por isso, no Brasil, e mais diretamente durante o regime militar, os Povos Indígenas foram tratados como assunto de segurança nacional, sendo atribuído às forças armadas o seu controle e repressão, ficando sob sua responsabilidade a condução dos trabalhos de integração e assimilação dos Povos Indígenas à comunhão nacional, a administração de agências governamentais, como o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e, depois a Fundação Nacional do Índio (Funai), a implantação de sistemas de segurança de fronteiras, a abertura de estradas, construção de hidrelétricas e a concessão de fortes subsídios econômicos aos que quisessem explorar as riquezas naturais, estratégias de ação que provocaram um processo de ocupação maciça, desordenada e predatória que impactou social e culturalmente os Povos Indígenas e suas terras, provocando um grande rastro de destruição, sobretudo na região amazônica. O contexto acima mencionado demonstra a ação desastrosa praticada pelo exército brasileiro nos territórios indígenas. Antes mesmo do golpe militar de 1964, a ação do exército foi assegurar às elites capitalistas o domínio e controle das terras indígenas, assaltando as riquezas nelas

...não se concebia mais na história do Brasil, um recuo tão significativo e perverso na política indigenista brasileira, como se observa no atual governo brasileiro, presidido por Jair Bolsonaro.

contidas e dizimando enorme quantitativo de povos que delas dependiam. Em que pese os dispositivos legais para a defesa dos direitos indígenas que o próprio governo criou ao longo da história política do Brasil, na prática o que ocorreu foi um processo sistemático de negação dos direitos territoriais indígenas, demarcando terras diminutas e permitindo a exploração das áreas remanescentes por empresas, sobretudo, ligadas ao agronegócio e à mineração. Destaca-se, no entanto, que não se concebia mais na história do Brasil um recuo tão significativo e perverso na política indigenista brasileira, como se observa no atual governo brasileiro, presidido por Jair Bolsonaro. Militar de formação, travestido de “caçador de índio”, vem promovendo um verdadeiro desmonte da política indigenista, modificando ou retirando direitos conquistados ao longo das últimas três décadas, escritos com tinta sangue e demarcados na Constituição brasileira de 1988. O ex-capitão e agora presidente Jair Bolsonaro, representante das oligarquias tradicionais do Brasil, de forma centralizadora, à revelia dos direitos constitucionais, tentou promover um conjunto de atos administrativos, como a Medida Provisória n° 870, como manobra para sucatear e inviabilizar as ações da Funai, transferindo-a do Ministério da Justiça para o recém-criado Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Retirava suas atribuições de demarcação de terras indígenas e licenciamento ambiental, repassando-as à Secretaria de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, sob o comando de políticos da bancada ruralista, inimigos declarados dos Povos Indígenas. Com isto, efetivava-se o desmonte da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI) e a extinção do subsistema de saúde indígena, objetivando a sua municipalização. Em um rasgo de sensatez democrática, o Congresso Nacional barrou essas iniciativas do governo Bolsonaro. Embora eleito democraticamente, o presidente Bolsonaro e o governo militar que montou, demonstra tratar-se de um ditador com característica nazifascista; usa de sua baioneta e caneta para extinguir toda a política social indígena, suprimindo a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi), órgão que era responsável pelos programas, ações e políticas de Educação Especial, Educação de Jovens e Adultos, Educação do Campo, Educação Escolar Indígena, Educação Escolar Quilombola, Educação para as relações Étnico-Raciais e Ecos e Permanência da Ditadura na Amazônia

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Educação em Direitos Humanos. Mesmo sem o bigode embaixo do nariz, o ex-capitão é centralizador e ataca a política indigenista, com ações sistêmicas de desmantelamento de mecanismos de participação social, com o único propósito de impedir o acesso, retirar direitos e dificultar o controle e vigilância dos territórios tradicionais, por parte dos Povos Indígenas. Essa é a prática perversa do ex-capitão, que cinicamente exalta personalidades que cometeram crimes bárbaros durante o golpe militar no Brasil, entre os anos de 1964 a 1985, em total desrespeito às vítimas, suas famílias e aos Povos Indígenas. Junto com seus antigos e novos companheiros de caserna, aqueles mesmos que o expulsaram da corporação militar no passado, o agora presidente, na busca de redenção, como forma de minimizar os efeitos dos distúrbios emocionais produzidos por sua exclusão do serviço militar, enxerta a administração pública com os sisudos e prepotentes senhores da guerra. Se não fosse tão trágico o resultado de sua esquizofrenia, seria só mais um bufão de ocasião, que a história relegaria ao ostracismo. Mas, é sobre o controle desses oportunistas que os poderes econômicos e políticos se redefinem e recuperam o comando, ameaçado pelos levantes livres e populares que historicamente aparecem em contexto de desigualdade social, como a que se verifica hoje no Brasil. Felizmente, nós, indígenas, temos os nossos exércitos. Na adversidade, aprendemos e resistimos, jamais desistimos de lutar pela vida e por nossos territórios. Herdeiros de guerreiros, caçadores, fazedores de farinha e beiju, sempre fomos fortes para combater todo tipo de dificuldade. Comedores de batata e jerimum, somos fortes, baixinhos, mas atarracados, seguros e decididos na luta pela vida. Assim, nos apropriamos, redefinimos nossas estratégias de luta e agimos cautelosamente, ou ferozmente contra nossos inimigos. Assim, recentemente, realizamos mais um levante de resistência, convocando todos os guerreiros para participarem do 15º Acampamento Terra Livre (ATL/2019), a maior assembleia indígena do Brasil. Concentramos mais de 4 mil indígenas em Brasília, com o propósito de dizer aos ditadores e chefes militares que chega de perseguição política aos Povos Indígenas. Colocamos nossos adornos, nos pintamos com tintas urucum e jenipapo, realizamos rituais, invocamos os espíritos ancestrais, dançamos e cantamos, batemos nossos pés no chão e fizemos cara feia para os ditadores. Gritamos e denunciamos as improbidades administrativas do governo federal; exigimos respeito ao direito constitucional pela demarcação, homologação e segurança de nossas terras; exigimos respeito a nossa forma de viver, nossa cultura, línguas e tradições. É isso... Ou vai ou racha! Termo do Tupi Kariuóka (cariuá, cariú), utilizado para se referir negativamente ao homem branco europeu.

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Vivemos uma Ditadura? Welton Yudi Oda Departamento de Biologia Instituto de Ciências Biológicas Universidade Federal do Amazonas (Ufam) yudioda@yahoo.com.br

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de abril de 2019. O músico Evaldo Rosa estava com a família em seu veículo, Ford Ka Sedan branco, indo à um chá de bebê, quando teve o veículo metralhado por militares do exército, que dispararam nada menos do que 257 tiros de fuzil contra o carro, “confundido” com outro veículo branco que perseguiam. 62 disparos acertaram o Ford Ka, matando imediatamente o condutor. Luciano Macedo, que passava pelo local e tentou socorrer as vítimas da chacina, foi também alvejado e morreu dias depois. Doze militares foram arrolados no caso por homicídio qualificado e omissão de socorro. Nove deles foram presos pela Justiça Militar. Somente o tenente Ítalo disparou 77 vezes, enquanto outro acusado, o cabo Oliveira deu 54 tiros. Três dos envolvidos mal chegaram a esquentar a cela, sendo libertados dias depois. No dia 23 de maio, o Superior Tribunal Militar decidiu, por maioria de votos, pela soltura dos demais envolvidos. O caso é emblemático. Aconteceu nos primeiros meses do Governo Bolsonaro, envolveu uma ação brutal e desmedida de militares, vitimou uma família inocente e parece que caminha para a impunidade: a absolvição descarada dos milicos envolvidos. Maria Elizabeth Guimarães, única jurada a votar pela manutenção da prisão dos militares, afirmou, em seu voto, que houve violação das regras de conduta que os militares recebem antes de cada operação. Afirmou ainda “quando um negro pobre no subúrbio do Rio de Janeiro é confundido com um assaltante, tenho dúvidas se o mesmo ocorreria com um loiro em Ipanema vestindo camisa Hugo Boss”. Emblemático porque a marca da ditadura militar no

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Brasil é a mentira e a impunidade. Segundo Egydio Schwade1, o Exército passou anos negando a presença de indígenas na região em que se construía a rodovia BR-174, nos governos militares. Mataram, silenciosamente, milhares de indígenas Waimiri-Atroari para conseguir passar o trator por sobre aldeias e sobreviventes. Mataram Anísio Teixeira e Wladimir Herzog e também mentiram sobre isso. Negaram enquanto puderam. A pior das mentiras dos assassinos fardados, entretanto, é a comparação injustificada entre as mortes brutais causadas por agentes da lei com a reação de grupos armados que combatiam o regime, mentira esta que usaram para manter impunes militares de alta patente, policiais que assassinavam à paisana, militares de baixa patente e também civis aliados dos governos militares. Tripudiar da lei, impunemente, para, em tese, combater grupos politicamente adversários, torturar e matar crianças, gestantes, idosos, estudantes, trabalhadores rurais, indígenas, jornalistas e intelectuais na condição de “agentes da lei” constitui uma situação quase única no mundo. Nossos vizinhos argentinos e chilenos, por exemplo, puniram exemplarmente os militares criminosos daquele período. No Brasil, a pior porção destes militares é aliada do Presidente da República, admirador de uma das piores bestas-feras da ditadura militar, o coronel Brilhante Ustra. Se o que vivemos hoje não é uma ditadura militar, tese que defendo, por outro lado, a sensação de déjà vu é inquestionável. A absolvição descarada dos assassinos de Evaldo sinaliza, ao que tudo indica, a abertura da Caixa de Pandora do governo Bolsonaro.


Egídio Schwade é filósofo, ex-jesuíta e fundador do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), nos anos 1970, e integrou a Comissão da Verdade no Estado do Amazonas, quando denunciou – com documentação – o massacre dos povos Waimiri-Atroari pelo exército da Ditadura Militar

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O Golpe e o Regime Militar reeditados Lino João de Oliveira Neves Departamento de Antropologia Instituto de Filosofia, Ciências Humanas e Sociais Universidade Federal do Amazonas (Ufam) linojoaokaemo@gmail.com

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1 de março de 1964, data trágica na vida do Brasil; início de um dos períodos mais sombrios de nossa história, que perdurou até 1985 suportado pelo autoritarismo militar e a subserviência oportunista e interesseira de civis colaboracionistas. O Golpe Militar que implantou a Ditadura no país foi responsável por 21 longuíssimos anos de tirania militar apoiada por civis aliados reduzidos a funções técnicas e a submissão política. 21 anos em que o arbítrio dos quartéis comandou o medo, a perseguição, o denuncismo, a desconfiança contra tudo e contra todos, a tristeza, o medo de ser livre e a vergonha de ser brasileiro. Para todos nós que comemos o pão que o diabo amassou com o coturno militar, qualquer menção, qualquer lembrança dos “anos de chumbo” do Regime Militar será sempre traumática. Qualquer eufemismo que tente escamotear a violência do pesadelo da Ditadura a que fomos submetidos é erro conceitual inadmissível, é tentativa vã de falsear a história com o propósito de apagar da memória e das mentes a tragédia cívica que foi o Golpe e o seu Regime Militar. “Saudades da Ditadura”, “eu era feliz e não sabia”, “ditamole”, “redentora”, termos e expressões usados no passado, ou “movimento” e “revolução democrática”, como mais recentemente alguns pretendem conceituar, é revisionismo grotesco que só interessa àqueles que sofrem de amnésia histórica ou que têm uma visão distorcida do passado 56

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recente imposto ao país e ao seu povo pela caserna, ou àqueles que se fizeram cúmplices dos militares no poder usufruindo benefícios que hoje buscam preservar. Ditadura é ditadura, e não há como dourar a pílula. É inadmissível para todos nós que vivemos os anos de repressão, de retirada de direitos civis e políticos, de medo, de incerteza, de futuro perdido, negar a obviedade histórica de que o golpe militar de 1964 foi uma contrarrevolução conservadora de direita destinada a impedir a possibilidade das “reformas de base” propostas pelo governo Goulart, reformas institucionais que pudessem conduzir à uma revolução com avanços sociais populares. É impossível negar os fatos: a Ditadura foi o episódio de maior violência na história recente da vida nacional; foi o evento político-social que deixou as cicatrizes mais profundas no tecido social brasileiro superando a comoção do suicídio do presidente Getúlio Vargas. Mesmo as promessas de um “Brasil Grande” e os empreendimentos faraônicos de um país “em desenvolvimento” – abertura de rodovias, construção de grandes empreendimentos hidrelétricos, modernização industrial do país – e a conquista do tricampeonato mundial de futebol em 1970, feitos explorados pelo regime militar ao extremo, não permitem que os brasileiros esqueçam o trauma que foi viver sob a Ditadura. Superados a intimidação, o amedrontamento, a perseguição política, a restrição de direitos civis, a violência


instituída, as prisões arbitrárias, os interrogatórios ilegais, as torturas, os sequestros e o terrorismo de Estado, chegamos à “abertura democrática”, à Assembleia Constituinte e à promulgação, em 1988, da nova Constituição Federal, a Carta Magna da esperança de reconquista da cidadania, e à democracia dos tempos atuais, ela própria fraturada pelos tempos de exclusão imposta sob o peso do coturno e a ordem unida. Uma democracia frágil, sem dúvida, mas na qual depositamos os nossos sonhos de um país mais justo do qual pudéssemos nos orgulhar. A sociedade brasileira acreditou na possibilidade de (re)construção de um país livre, tomado pela esperança de “Ditadura nunca mais”. O Golpe que institui a Ditadura no país foi terrível. Isso é, incontestavelmente, uma unanimidade nacional. Como também é unanimidade que 1964 foi um golpe anunciado, já se sabia que poderia acontecer. Da mesma forma, o golpe político que destituiu a presidente Dilma Rousseff e abriu caminho para o “golpe eleitoral”, verdadeira operação “fake eleitoral”, que levou ao poder os militares pela via democrática da eleição do capitão Jair Bolsonaro, foi um golpe anunciado, golpe que anunciava sem subterfúgios ou meias palavras a intenção de alguns de reinstalar na vida pública brasileira um regime autoritário nos moldes do regime militar da Ditadura de 1964. Mas, ainda assim, como explicar que apenas passados 54 anos de superação da Ditadura o povo brasileiro tenha dado uma guinada tão à extrema direita, elegendo através

“Saudades da Ditadura”, “eu era feliz e não sabia”, “ditamole”, “redentora”, termos e expressões usados no passado, ou “movimento” e “revolução democrática”, como mais recentemente alguns pretendem conceituar, é revisionismo grotesco... do voto direto nas urnas para presidente da República uma pessoa com o perfil de Jair Bolsonaro? Um cidadão de limitada capacidade intelectual e cognitiva; um militar de baixa patente com vasto comprometimento ético e moral em toda a sua trajetória de quartel; um político com medíocre desempenho parlamentar que construiu toda a sua trajetória pessoal e política no elogio à Ditadura, na defesa da prática da tortura e na mitificação de torturadores; e que como candidato pautou sua campanha à presidência na disseminação do ódio como instrumento de construção de uma sociedade fraturada. Talvez, a única explicação seja, como assinala Florestan Fernandes, pelo fato de que “Os fios da contrarrevolução chegam aos nossos dias e de uma perspectiva militar que empobrece e inquieta as próprias forças armadas. [...] A ditadura, como constelação social de um bloco histórico de estratos militares e civis, não se dissolveu.”. 1 Ainda hoje o espectro da Ditadura continua a povoar o Ecos e Permanência da Ditadura na Amazônia

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Como explicar que apenas passados 54 anos de superação da Ditadura o povo brasileiro tenha dado uma guinada tão à extrema direita, elegendo através do voto direto nas urnas para presidente da República uma pessoa com o perfil de Jair Bolsonaro? imaginário de certos segmentos sociais da população brasileira não apenas por ignorância histórica, mas também por afinidade ideológica subfascista e ditatorial, no cenário atual no qual os militares não mais se limitam às suas funções institucionais de defesa da ordem interna e da, para eles tão cara e ao mesmo tempo tão mal concebida, soberania nacional, mas partem para o exercício da vida política, para a qual, por sua própria formação específica, não estão preparados, ou, se muito, estão precariamente preparados a partir da concepção anacrônica, positivista de extrema direita, e portanto antissocial, que domina historicamente as forças armadas brasileiras. Mas, tentar compreender as motivações que levaram os eleitores a confiar em Bolsonaro como presidente do país é desafio praticamente inatingível. Como sabemos todos, Jair Messias Bolsonaro é pessoa de poucas letras, pouquíssimas. E dele, como já nos deu

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mostras, se pode esperar qualquer barbarismo, qualquer violência à língua mãe, qualquer atrocidade linguística, qualquer desrespeito aos direitos fundamentais, qualquer quebra de protocolo, qualquer leviandade política, qualquer cumplicidade criminal. Mas como Presidente eleito que foi – não pelo meu voto! –, dele era de se esperar ao menos um pouco mais de “competência linguística”. As suas impropriedades, os seus destemperos cívicos, as suas sandices ideologizantes, as suas agressões verbais contra os direitos humanos, os seus incentivos à violência seletiva contra determinados segmentos da população (indígenas, negros, mulheres, gays e lésbicas, principalmente), podem até agradar às “viúvas da ditadura”, os saudosistas de um tempo que foi tudo, menos democracia, e a outros insanos que em nome de privilégios amigalhados de sua adesão submissa ao regime ditatorial, esquecem, ou, pior ainda, fingem esquecer, as atrocidades cometidas a partir do lema “ordem e progresso” militarista. Em seu primeiro ano de mandato, pleno de afrontas às normas éticas que orientam a vida em sociedade, como a querer se desculpar perante os seus antigos superiores que no passado lhe expulsaram da corporação militar e que hoje ocupam postos no seu governo, Bolsonaro decretou ao país a celebrar o trágico 31 de março. Pretender da nação “comemorar”, rememorar, relembrar, celebrar, festejar, ou, seja lá o que for, a Ditadura


Militar, como pretende o Presidente Bolsonaro é falsear os acontecimentos políticos ocorridos na história recente do país. “Comemorar” a Ditadura e tudo de ruim que ela representa para vida brasileira não é só deboche, é uma afronta a todos que resistiram à imposição das armas. É ainda mais grave; é um desrespeito à memória daqueles que lutaram e perderam as suas vidas, tiradas pela truculência do terrorismo do Estado militar, para que o país voltasse a ser democrático, para que os brasileiros voltassem a ter a possibilidade de ser e viver livres com democracia. A Ditadura, seja a “descarada”, imposta ao país e ao seu povo pelo Golpe Militar de 1964, seja a de agora, reeditada pelo arbítrio militar levado ao poder pelos resultados das urnas, não são para serem comemoradas, ou rememoradas, ou celebradas, ou lembradas, ou qualquer outro termo que de modo escamoteado tenha por objetivo celebrar o desastre democrático que foi o regime militar que o governo Bolsonado pretende reeditar no país. Assim como descreveu Florestan Fernandes para o contexto pós-64 que deu sustentação ao regime militar, no atual contexto político nacional se repete “Um subfascismo infantil [que] é servido como um elixir de ‘salvação da ordem’. Sua predisposição para a tirania ultrapassou todos os limites toleráveis.[...]” (Fernandes, 1997, 146). Depois de tudo que o país e o seu povo passou sob o peso da Ditadura Militar, o que precisamos é respeito cívi-

Ainda hoje o espectro da Ditadura continua a povoar o imaginário de certos segmentos sociais da população brasileira não apenas por ignorância histórica, mas também por afinidade ideológica subfascista e ditatorial... co para voltarmos a nos orgulhar enquanto nação. Respeito cívico e orgulho nacional não são impostos de cima para baixo, não são criados por decretos lei ou medidas provisórias ou projetos de emenda à Constituição, e muito menos por ordens do dia emanadas de um qualquer quartel, são construções coletivas afirmadas no exercício da cidadania livre, são conquistas partilhadas das quais o povo não pode ser excluído, nem mandado. A Ditadura Militar, como fato histórico concreto, por mais aterrador que nos tenha sido, não é algo a ser esquecido. A Ditadura é para ser revista criticamente, para ser pensada como alerta para que não mais volte a se repetir como um imperdoável acontecimento errático da história que mancha a vida democrática do país e de seu povo. Mesmo que a memória nos permitisse, Ditadura Militar não é para ser esquecida. Mas, de nenhuma forma, é para ser “comemorada”. FERNANDES, Florestan (1997) “O significado da ditadura militar”, in: Caio Navarro de Toledo (Org.), 1964: Visões Críticas do Golpe: Democracia e Reformas no Populismo. Campinas, SP: Editora da Unicamp; pág. 141-148.

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A DITADURA REEDITADA

Conspiração e corrupção: uma hipótese muito 1 provável José Luís Fiori Instituto de Economia Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Instituto de Estudos Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (INEEP)

William Nozaki Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) Instituto de Estudos Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (INEEP)

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comum falar de “teoria da conspiração”, toda vez que alguém revela ou denuncia práticas ou articulações políticas “irregulares”, ocultas do grande público, e que só são conhecidas pelos insiders, ou pelas pessoas mais bem informadas. E quase sempre que se usa esta expressão, é com o objetivo de desqualificar a denúncia que foi feita, ou a própria pessoa que tornou público o que era para ficar escondido, na sombra ou no esquecimento da história. Mas de fato, em termos mais rigorosos, não existe nenhuma “teoria da conspiração”. O que existem são “teorias do poder”, e “conspiração” é apenas uma das práticas mais comuns e necessárias de quem participa da luta política diária pelo próprio poder. Esta distinção conceitual é muito importante para quem se proponha analisar a conjuntura política nacional ou internacional, sem receio de ser acusada de “conspiracionista”. E é um ponto de partida fundamental para a pesquisa que estamos nos propondo fazer sobre qual tenha sido o verdadeiro papel do governo norte-americano no Golpe de Estado de 2015/2016, e na eleição do capitão Bolsonaro, em 2018. Neste caso, não há como não seguir a trilha da chamada 60

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“conspiração”, que culminou com a ruptura institucional e a mudança do governo brasileiro. E nossa hipótese preliminar é que a história desta conspiração começou na primeira década do século XXI, durante o “mandarinato” do vice-presidente americano, Dick Cheney, apesar de que ela tenha adquirido uma outra direção e velocidade a partir da posse de Donald Trump, e da formulação da sua nova “estratégia de segurança nacional”, em dezembro de 2017. No início houve surpresa, mas hoje todos já entenderam que essa nova estratégia abandonou os antigos parâmetros ideológicos e morais da política externa dos Estados Unidos, de defesa da democracia, dos direitos humanos e do desenvolvimento econômico, e assumiu de forma explícita o projeto de construção de um império militar global, com a fragmentação e multiplicação dos conflitos, e a utilização de várias formas de intervenção externa, nos países que se transformam em alvos dos norte-americanos. Seja através da manipulação inconsciente dos eleitores e da vontade política dessas sociedades; seja através de novas formas “constitucionais” de golpes de Estado; seja através de sanções econômicas cada vez mais extensas e letais, capazes


de paralisar e destruir a economia nacional dos países atingidos; seja, finalmente, através das chamadas “guerras híbridas” que visam destruir a vontade política do adversário, utilizando-se da informação mais do que da força, das sanções mais do que dos bombardeios, e da desmoralização intelectual dos opositores mais do que da tortura. Desse ponto de vista, é interessante acompanhar a evolução dessas propostas nos próprios documentos americanos, nos quais são definidos os objetivos estratégicos do país e as suas principais formas de ação. Assim, por exemplo, no Manual de Treinamento das Forças Especiais Americanas Preparadas para Guerras Não-Convencionais, publicado pelo Pentágono em 2010, já está dito explicitamente que “o objetivo dos EUA nesse tipo de guerra é explorar as vulnerabilidades políticas, militares, econômicas e psicológicas de potências hostis, desenvolvendo e apoiando forças internas de resistência para atingir os objetivos estratégicos dos Estados Unidos”. Com o reconhecimento de que “em um futuro não muito distante, as forças dos EUA se engajarão predominantemente em operações de guerra irregulares”. Uma orientação que foi explicitada, de maneira ainda mais clara, no documento no qual se define, pela primeira vez, a nova Estratégia de Segurança Nacional dos EUA do governo de Donald Trump, em dezembro de 2017. Ali se pode ler, com todas as letras, que o “combate à corrupção” deve ter lugar central na desestabilização dos governos dos países que sejam “competidores” ou “inimigos” dos Estados Unidos. Uma proposta que foi detalhada no novo documento sobre a Estratégia de Defesa Nacional dos EUA, publicado em 2018, em que se pode ler que “uma nova modalidade de conflito não armado tem tido presença cada vez mais intensa no cenário internacional, com o uso de práticas econômicas predatórias, rebeliões sociais, cyber-ataques, fake news, métodos anticorrupção”.

Uma proposta que foi detalhada no novo documento sobre a Estratégia de Defesa Nacional dos EUA, publicado em 2018, em que se pode ler que “uma nova modalidade de conflito não armado tem tido presença cada vez mais intensa no cenário internacional, com o uso de práticas econômicas predatórias, rebeliões sociais, cyberataques, fake news, métodos anticorrupção” É importante destacar que nenhum desses documentos deixa a menor dúvida de que todas estas novas formas de “guerra não convencional” devem ser utilizadas – prioritariamente – contra os Estados e as empresas que desafiem ou ameacem os objetivos estratégicos dos EUA. Agora bem, neste ponto da nossa pesquisa, cabe formular a pergunta fundamental: quando foi – na história recente – que o Brasil entrou no radar dessas novas normas de segurança e defesa dos EUA? E aqui não há dúvida de que cabem muitos fatos e decisões que foram tomadas pelo Brasil, sobretudo depois de 2003, como foi o caso da sua política externa soberana, da sua liderança autônoma do processo de integração sul-americano, ou mesmo, da participação no bloco econômico do BRICS, liderado pela China. Mas não há a menor dúvida de que a descoberta das reservas de petróleo do pré-sal, em 2006, foi o momento decisivo em que o Brasil mudou de posição na agenda geopolítica dos Estados Unidos. Basta ler o Blueprint for a Secure Energy Future, publicado em 2011, pelo governo de Barack Obama, para ver que naquele momento o Brasil já ocupava posição de destaque em 3 das 7 prioridades estratégicas da política energética norte-americana: (i) como uma fonte de experiência para a produção de biocombustíveis; (ii) como um parceiro fundamental para a exploração

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Se todos estes dados estiverem corretamente conectados, e nossa hipótese for verossímel, não é de estranhar que depois de cinco anos do início desta “Operação LavaJato”, os vazamentos divulgados pelo site The Intercept Brasil, dando notícias da parcialidade dos procuradores, e do principal juiz envolvido nessa operação, tenham provocado uma reação repentina e extemporânea dois principais acusados desta história que se homiziaram, praticamente, nos Estados Unidos. e produção de petróleo em águas profundas; (iii) como um território estratégico para a prospecção do Atlântico Sul. A partir daí, não é difícil de rastrear e conectar alguns acontecimentos, sobretudo a partir do momento em que o governo brasileiro promulgou – em 2003 – sua nova política de proteção dos produtores nacionais de equipamentos, com relação aos antigos fornecedores estrangeiros da Petrobras, como era o caso, por exemplo, da empresa norte-americana Halliburton, a maior empresa mundial em serviços em campos de petróleo, e uma das principais fornecedoras internacionais das sondas e plataformas marítimas, e que havia sido dirigida, até os anos 2000, pelo mesmo Dick Cheney que viria a ser o vice-presidente mais poderoso da história dos Estados Unidos, entre 2001 e 2009. A Odebrecht, a OAS e outras grandes empresas brasileiras entram nessa história, a partir de 2003, exatamente no lugar dessas grandes fornecedoras internacionais que perderam seu lugar no mercado brasileiro. Cabendo lembrar aqui o início da complexa negociação entre a Halliburton e a Petrobras, em torno da compra e entrega das plataformas P 43 e P 48, envolvendo US$ 2,5 bilhões, que começou na gestão de Dick Cheney e se estendeu até 2003/4, com a participação do Gerente de Serviços da Petrobras, na época, Pedro José Barusco, que depois se transformaria no primeiro delator conhecido da Operação Lava-Jato. Nesse ponto, aliás, seria sempre muito bom lembrar a famosa tese de Fernand Braudel, o maior historiador econômico do século XX, de que “o capitalismo é o antimercado”, ou seja, um sistema econômico que acumula riqueza através da conquista e preservação de monopólios, utilizando-se de todo e qualquer meio que esteja ao seu alcance. Ou ainda, traduzindo em miúdos o argumento de Braudel: o capitalismo não é uma organização ética nem religiosa, e não tem nenhum compromisso com qualquer tipo de moral privada ou pública que não seja a da multiplicação dos lucros e a da expansão contínua dos seus mercados. E isto é que se pode observar, mais do que em qualquer outro lugar, no mundo selvagem da indústria mundial 62

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do petróleo, desde o início de sua exploração comercial, desde a descoberta do seu primeiro poço pelo “coronel” E. L. Drake, na Pensilvânia, em 1859. Agora bem, voltando ao eixo central da nossa pesquisa e do nosso argumento, é bom lembrar que este mesmo Dick Cheney que vinha do mundo do petróleo, e teve papel decisivo como vice-presidente de George W. Bush, foi quem concebeu e iniciou a chamada “guerra ao terrorismo”, conseguindo o consentimento do Congresso Americano para iniciar novas guerras, mesmo sem aprovação prévia do parlamento; e o que é mais importante, para nossos efeitos, conseguiu aprovar o direito de acesso a todas as operações financeiras do sistema bancário mundial, praticamente sem restrições, incluindo o velho segredo bancário suíço, e o sistema e pagamento europeus, o SWIFT. Por isso, aliás, não é absurdo pensar que tenha sido por esse caminho que o Departamento de Justiça norte-americano tenha tido acesso às informações financeiras que depois foram repassadas às autoridades locais dos países que os Estados Unidos se propuseram a desestabilizar com campanhas seletivas “contra a corrupção”. No caso brasileiro, pelo menos, foi depois desses acontecimentos que ocorreu o assalto e o furto de informações geológicas sigilosas e estratégicas da Petrobras, no ano de 2008, exatamente dois anos depois da descoberta das reservas petrolíferas do pré-sal brasileiro, no mesmo ano em que os EUA reativaram sua IV Frota Naval de monitoramento do Atlântico Sul. E foi no ano seguinte, em 2009, que começou o intercâmbio entre o Departamento de Justiça dos EUA e integrantes do Judiciário, do MP e da PF brasileira para tratar de temas ligados à lavagem de dinheiro e “combate à corrupção”, num encontro que resultou na iniciativa de cooperação denominada Bridge Project, da qual participou o então juiz Sérgio Moro. Mais à frente, em 2010, a Chevron negociou sigilosamente, com um dos candidatos à eleição presidencial brasileira, mudanças no marco regulatório do pré-sal, numa “conspiração” que veio à tona com os vazamentos da Wikileaks, e que acabou se transformando num projeto apresentado e aprovado pelo Senado brasileiro. E três anos depois, em 2013, soube-se que a presidência da República, ministros de Estado e dirigentes da Petrobras vinham sendo alvo, há muito tempo, de grampo e espionagem, como revelaram as denúncias de Edward Snowden. No mesmo ano em que a embaixadora dos EUA que acompanhou o golpe de Estado do Paraguai contra o presidente Fernando Lugo foi deslocada para a embaixada do Brasil. E foi exatamente depois desta mudança diplomática, no ano de 2014, que começou a Operação Lava Jato, que tomou a instigante decisão de investigar as propinas pagas aos diretores da Petrobrás, exatamente a partir de 2003, deixando fora portanto os antigos fornecedores internacionais, no momento exato em que concluíam as negociações da empresa com


a Halliburton , em trono da entrega das plataformas P 43 e P 48. Se todos estes dados estiverem corretamente conectados, e nossa hipótese for verossímel, não é de estranhar que depois de cinco anos do início desta “Operação Lava Jato”, os vazamentos divulgados pelo site The Intercept Brasil, dando notícias da parcialidade dos procuradores, e do principal juiz envolvido nessa operação, tenham provocado uma reação repentina e extemporânea nos dois principais acusados desta história que se homiziaram, praticamente, nos Estados Unidos. Provavelmente, em busca das instruções e informações que lhe permitissem sair das cordas, e voltar a fazer com seus novos acusadores o que sempre fizeram no passado, utilizando-se de informações repassadas para destruir seus adversários políticos. Entretanto, o pânico do ex-juiz e seu despreparo para enfrentar a nova situação fizeram-no comportar-se de forma atabalhoada, pedindo licença ministerial e viajando uma segunda vez para os Estados Unidos, e com isto tornou público o seu lugar na cadeia de comando de uma operação que tudo

indica que possa ter sido a única operação de intervenção internacional bem-sucedida – até agora – da dupla John Bolton e Mike Pompeu, os dois “homens-bomba” que comandam a política externa do governo de Donald Trump. Uma operação tutelada pelos norte-americanos e avalizada pelos militares brasileiros. Por isso, se nossa hipótese estiver correta, não há a menor possibilidade de que as pessoas envolvidas neste escândalo sejam denunciadas e julgadas com imparcialidade, porque todos os envolvidos sempre tiveram pleno conhecimento e sempre aprovaram as práticas ilegais do ex-juiz e de seu “procurador-assistente”, práticas que foram decisivas para a instalação do capitão Bolsonaro na Presidência da República. O único que lhes incomoda neste momento é o fato de que sua “conspiração” tenha se tornado pública, e que todos tenham entendido quem é o verdadeiro poder que está por trás dos chamados “Beatos de Curitiba”. Publicado originalmente em: Jornal do Brasil, 25 de julho de 2019. Disponível em: https://www.jb.com.br/pais/artigo/2019/07/1011357-conspiracao-e-corrupcao-uma-hipotese-muito-provavel.html

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