Resistências n°4

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ANO IV – Nº 4 – junho de 2022 Revista da Associação dos Docentes da UFAM – ADUA Seção Sindical do ANDES-SN

AÇÕES DESTRUTIVAS DO GOVERNO FEDERAL NA AMAZÔNIA 3

SUMÁRIO

4 Resistências
ABRINDO O DEBATE DESTRUIÇÃO VISUALIZADA OPINIÕES INSTIGANTES Oito mentiras que os militares contam sobre interesses estrangeiros na Amazônia O Brasil fake na “Mensagem” enviada por Bolsonaro ao Congresso Seção de Fotografias Bolsonaro e o genocídio indígena - mata-se um povo quando se criam condições que podem levá-lo à destruição O vulto atroz do país: o que fazer com a nova consciência da nossa ruína? Bolsonaro promove a mineração predatória 10 13 20 24 26 30 22 Amazônia Ilegal RubensValente CaetanoScannavino MárcioSantilli DeborahDuprat JuliánFuks Fakebook.Eco
AÇÕES DESTRUTIVAS DO GOVERNO FEDERAL NA AMAZÔNIA 5 ECONOMIA PREDATÓRIA EXTRATIVISTA NO IDEÁRIO BOLSONARISTA O MEIO AMBIENTE NA MIRA DO GOVERNO NEOLIBERAL UMA REPORTAGEM EXEMPLAR EDUCAÇÃO COMO NEGÓCIO A que se deve o voto em Bolsonaro na Amazônia? Vai ter guerra na Amazônia “A crise da Ciência e Pesquisa no Brasil é um projeto”: os impactos das restrições Garimpo ilegal é praticado por parceiro do ex-presidente do ICMBio Governo Bolsonaro provocou o aumento da fome e miséria Bolsonaro, o ódio civilizacional contra a Amazônia e suas gentes A resistência da educação do campo contra os retrocessos em um governo neoliberal O vírus, a Amazônia e a vida no capitalismo global O garimpo ilegal como estratégia de extermínio dos povos indígenas na Amazônia 46 58 70 80 50 61 74 53 65 JoãoFranciscoKlebaLisboa LuizAntônioNascimentodeSouza MarceloSeráfico ClaudioÂngelo LinoJoãodeOliveiraNeves MárciaMariadeOliveira AngelinaMoreno PatrícioFreitasdeAndrade AnnaBeatrizAnjos,BrunoFonseca,CiroBarroseJoséCícero

Revista de artigos políticos da ADUA Seção Sindical do ANDES-SN

Os conceitos e afirmações contidos nos artigos são de total responsabilidade de seus autores.

Comissão Editorial

Iolete Ribeiro, Ivânia Vieira, Lino João de Oliveira Neves, Marcelo Vallina e Tomzé Costa

Editores deste número

Lino João de Oliveira Neves e Tomzé Costa

Revisão

Tomzé Costa e Daisy Melo

Revisão bibliográfica/Ficha catalográfica

Guilhermina Terra (CRB/11 – 396)

Projeto gráfico

Rafael Miranda

Editoração e ilustrações Rodrigo Moraes de Araújo

Arte da capa Rodrigo Moraes de Araújo

Tiragem 1.000 exemplares

Impressão Gráfica e Editora Silva

Diretoria Executiva da ADUA (2020-2022)

Ana Lúcia Silva Gomes, Aldair Oliveira de Andrade, José Alcimar de Oliveira, Maria Rosária do Carmo, Valmiene Florindo Farias Sousa, Antonio José Vale da Costa e Elciclei Faria dos Santos

Expedição

Associação dos Docentes da UFAM – ADUA – Seção Sindical do ANDES-SN Av. Rodrigo Octávio Jordão Ramos, 3000, Campus Universitário da UFAM Setor Sul - Coroado – CEP 69077-000 – Manaus – Amazonas Tel: (92) 98138-2677 / (92) 4104-0031 – Email: aduasindicato@gmail.com www.adua.org.br

R433

Resistências / Associação dos Docentes da Universidade Federal do Amazonas - Seção Sindical do ANDES-SN. ____ Ano I, n° 1 (jun. 2019). ____Manaus : Gráfica e Editora Silva, 2019v. : il., color.; 29 cm.

Anual.

Descrição baseada em: ano IV, Nº4 (jun. 2022). Disponível em: www.adua.org.br ISSN 2763-9711

1. Ensino superior - Periódicos. 2. Educação pública - Periódicos. l. Associação dos Docentes da Ufam. ll. ADUA.

CDU 378(05)

Defender a Educação Pública é nossa luta de sempre! #aduaveiadeguerra

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EDITORIAL

Desastre. Não há outra palavra para indicar o resultado dos atos e omissões deliberadas do governo Bolsonaro em suas implicações para a Amazônia. Na realidade um desgoverno, ou mais exatamente um anti-governo, cujo projeto para a região é claramente de destruição.

O presidente Bolsonaro não economizou tanto em atos e ações administrativas, como em projetos de lei e propostas parlamentares que agridem frontalmente a Amazônia em suas dimensões ambiental e social.

Queimadas, incêndios, desmatamentos, grilagens de terras públicas, invasões de áreas protegidas... A lista é interminável.

Assim, o tema desse número 4 da Revista Resistências não poderia ser outro: “Ações destrutivas do Go verno Federal na Amazônia”.

O governo Bolsonaro é, inegavelmente, um governo contra a Amazônia. Contra a Amazônia e as suas gentes.

A destruição da Amazônia está por toda parte: na economia predatória extrativista; no meio ambiente entendido apenas como fonte de matéria prima; na educação transformada em negócio e lucro, na desvalo rização e desqualificação das instituições promotoras de Cultura e Ciência; no risco de extermínio aos povos indígenas e populações tradicionais.

Um olhar sobre o nosso entorno deixa claro o tamanho da destruição, destruição que está aí, a olhos vistos. Esse é o mote para a sessão especial “Destruição Visualizada” que inserimos neste número da re vista Resistências. Se é verdade que uma imagem diz mais do que mil palavras, essas dez fotos dizem muito mais do que dez artigos, testemunhas visuais do descaso e agressão que devasta a Amazônia nestes tempos sombrios de incúria e irresponsabilidade ambiental e social.

Também especial é a sessão “Uma reportagem exemplar”, que fala por si da falta de zelo com que a Amazônia tem sido tratada.

Por mais oportuno e importante que seja refletirmos criticamente sobre o nosso tempo, e em especial sobre as forças políticas de destruição que tomam a Amazônia como inimiga, é com tristeza profunda que a ADUA apresenta este Nº 4 de Resistências. Uma tristeza profunda, irmã gêmea da esperança profunda de que como cidadãos sejamos capazes de reverter o cenário trágico que atualmente envolve a nossa região e recriar as condições de existência socioambiental, não apenas para nós amazônidas e brasileiros, mas para todos os seres humanos e não humanos que partilhamos este espaço de vida chamado Terra.

Este Nº 4 de Resistências é um grito de esperança frente as ações destrutivas do atual Governo Federal, que, afinal, não são apenas contra a Amazônia, mas contra a vida em si mesma.

É com a esperança em dias melhores para a Amazônia que convidamos à leitura deste Nº 4 de Resistências.

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A questão da Amazônia

Aquestão da Amazônia consiste na defesa dos povos da Floresta. Consideramos a questão da Amazônia um problema sério que não passa mais, hoje, pelo discurso, e sim pela prática que temos que desenvolver daqui pra frente.

A Amazônia está ocupada. Em todos os recantos há índios, há gente trabalhando, tirando borracha e, ao mesmo tempo, lutando pela conservação da natureza.

Queremos propiciar uma política que garanta o futuro desses trabalhadores, que há séculos vivem na Amazônia e a tornam produtiva ao mesmo tempo.

Enquanto existirem índios e seringueiros na selva amazônica, há esperança de salvá-la.

Esperamos que as pessoas que lutam em defesa da Amazônia possam realizar um trabalho que, de fato, consiga trazer uma esperança. Acredito que cada um de nós tem uma missão e um compromisso muito importantes em relação à defesa desta região. Essa luta não é só dos trabalhadores: ela é de toda a sociedade brasileira.

Chico Mendes

Herói nacional, seringueiro, sindicalista e ambientalista brasileiro. Liderou movimentos ativistas da região amazônica na década de 1980 até ser assassinado em dezembro de 1988.

registrado no livro “Vozes da Floresta”. Editora Xapuri, 2008)

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ABRINDO

O DEBATE

Oito mentiras que os militares contam sobre interesses estrangeiros na Amazônia

Sob o biombo do discurso nacionalista (“A Amazônia é nossa!”), fardados já inventaram muita coisa sobre a floresta tropical. Paranoias da caserna sobre a região passam por Atlas falso e ONGs como “máfia internacional”. Conheça algumas lorotas:

“INTEGRAR PARA NÃO ENTREGAR“

Inventados durante a Ditadura para estimular a ocupação da Amazônia, os lemas nacionalistas “A Amazônia é nossa” e “Integrar para não entregar” serviram para justificar um modelo de desenvolvimento que resultou no primeiro grande surto de destruição do bioma. Estradas cortaram a Amazônia de norte a sul (BR163) e de leste a oeste (BR-230). O governo criou projetos de colonização e abriu linhas de crédito especiais para que fazendeiros do Centro-Sul derrubassem a floresta e estabelecessem projetos agropecuários em grandes áreas. O objetivo era proteger o suposto “vazio demográfico”, enquanto indígenas eram expulsos de suas terras.

O general Golbery do Couto e Silva, um dos responsáveis pelo Golpe de 1964, escreveu, em sua Geopolítica do Brasil, que a Amazônia era um “deserto verde” e que a função do governo era “incorporá-la mesmo à nação”. Os militares se aproveitaram de fake news aventadas à época, como um projeto maluco do Instituto Hudson, nos EUA, de criar “grandes lagos” barrando o rio Amazonas, e de um instituto internacional proposto na Unesco para desenvolver a “Hileia amazônica” (termo usado no século 19 para designar a região). Obras adotadas em escolas militares, como A Amazônia e a cobiça internacional

(1960), de Arthur Ferreira Reis, e A geopolítica da PanAmazônia (1980), do general Carlos Alberto de Meira Mattos, defendem a ocupação da Amazônia como objetivo estratégico.

Em propagandas que apresentavam a região como um “pote de ouro” à espera de interessados, a Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), criada em 1966, subsidiava generosamente a eliminação da floresta. A área desmatada do bioma chegou a 14 milhões de hectares em 1978.

O projeto dos militares não mudou com o fim da Ditadura. Em 1985, no governo Sarney, foi criado o programa Calha Norte, que tinha entre seus objetivos abrir estradas e estimular fazendas e mineração na fronteira para proteger o Brasil de uma invasão do perigoso… Suriname.

“FAZENDAS AQUI, FLORESTAS LÁ“

Em 2010, no auge da discussão sobre a mudança do Código Florestal no Congresso, a bancada ruralista apresentou um relatório norte-americano intitulado Farms here, forests there (Fazendas aqui, florestas lá) como suposta prova de um lobby estrangeiro para minar o agronegócio brasileiro em favor do norte-americano. O método seria aprovar leis ambientais rigorosas no Brasil para deixar o país com florestas e manter a soja americana sem concorrência. O “guru” ambiental de Bolsonaro, Evaristo de Miranda, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), afirmou num vídeo muito compartilhado que o documento sugere financiar ONGs no Brasil “para impedir a expansão da agricultura

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brasileira”. É mentira.

O documento, citado por Miranda, foi feito por uma empresa de consultoria, sob encomenda da Farmers Union, dos EUA, e pela ONG Avoided Deforestation Partners, e diz simplesmente, com base em dados frágeis, que as políticas globais de combate à mudança do clima, ao promoverem a redução do desmatamento tropical, acabariam por beneficiar o agro norte-americano. O próprio argumento não para de pé, já que o PIB do agronegócio brasileiro subiu 75% e a produção de carne e soja na Amazônia cresceu no período em que o desmatamento na floresta caiu 80%, entre 2004 e 2012. Em nenhuma das suas páginas, há qualquer coisa que chegue perto da sugestão de financiar ONGs.

O “CORREDOR TRIPLO A“

Em novembro de 2018, o presidente eleito Jair Bolsonaro ameaçou tirar o Brasil do Acordo de Paris com base em uma mentira, afirmando: “está em jogo o Triplo A neste acordo. O que é o Triplo A? É uma grande faixa que pega o Andes, a Amazônia e o Atlântico, de 136 milhões de hectares, que poderá fazer com que percamos a nossa soberania nessa área”, disse ele, à época. Mas não há nada no Acordo de Paris sobre esse assunto. Para o antropólogo colombiano Martin von Hildebrand, que idealizou o projeto do Corredor Triplo A, tratava-se apenas de teoria da conspiração. A proposta do Triplo A nada mais era do que um programa transfronteiriço de conservação, pelo qual áreas protegidas nos países sul-americanos seriam conectadas – 80% dessa conexão já existe. “Meteram tudo junto nessa fake news. Eu acho que ele [Bolsonaro] já sabe que isso não tem nada a ver com o Acordo de Paris, mas me parece que está gostando do discurso”, disse Von Hildebrand ao Observatório do Clima (OC), na época.

ONGS SÃO “AGENTES ESTRANGEIROS“

É clássica, na caserna e em seu entorno, a ladainha de que organizações ambientalistas são agentes de interesses estrangeiros que querem prejudicar o Brasil. Segundo o exdeputado comunista Aldo Rebelo, o movimento ambientalista é um braço do imperialismo dos países ricos. Segundo o ex-chanceler Ernesto Araújo, as ONGs representam o “climatismo”, uma conspiração “da esquerda globalista” (um dos dois obrigatoriamente está mentindo).

Ao atacar ONGs ambientalistas e enfatizar a suposta ameaça de “interesses externos”, os militares que comandam o país desde 2019 repetem argumentos do livro Máfia verde – O ambientalismo a serviço do governo mundial”, de Lorenzo Carrasco, Silvia Palacius e Geraldo Luís Lino. De acordo com a teoria, países “soberanos” como o Brasil, “dotados de importantes recursos naturais”,

seriam alvo de uma “complexa rede de poderosos interesses supranacionais, que criaram, financiam e manipulam o movimento ambientalista-indigenista internacional como arma política para dividir e obstaculizar o desenvolvimento” e para “exercer controle sobre o uso de tais recursos”. O mexicano Carrasco e o brasileiro Lino (também autor do livro A fraude do aquecimento global) são coordenadores do Movimento de Solidariedade Iberoamericano (MSIa), um autoproclamado think tank de ultradireita que faz a cabeça de militares como o general Eduardo Villas Bôas. A tese da “máfia verde” tem origens profundas no meio militar: ainda no final dos anos 1980, um relatório da Escola Superior de Guerra apontava “o ativismo preservacionista” e “o governo próprio em áreas indígenas” como principais “óbices à consolidação do poder nacional”. Era uma reação a campanhas iniciadas naquela década por ativistas norte-americanos pressionando bancos multilaterais para não conceder empréstimos a obras ambientalmente destrutivas no Brasil, como a BR-364, em Rondônia. Até hoje não se viu o Greenpeace abrir uma empresa de mineração ou de extração de madeira na Amazônia – ou em qualquer outro lugar.

O INTERESSE “NÃO É NA PORRA DA ÁRVORE“

Acuado pela crise internacional provocada pelo aumento de queimadas e desmatamento em seu primeiro ano de governo, o presidente Bolsonaro afirmou, no fim de 2019, que “o interesse na Amazônia não é no índio nem na porra da árvore, é no minério”. Ele falou isso diante de uma plateia de garimpeiros, em evento no Palácio do Planalto.

O discurso dos interesses estrangeiros nos minérios da Amazônia é um velho espantalho criado pelos militares e, em mais de uma ocasião, foi usado, como vem sendo

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no regime Bolsonaro, para atacar a proteção às terras indígenas. O governo, porém, nunca deixou de conceder licenças a empresas estrangeiras para explorar minérios –e todas as outras coisas – na região. Em 1967, enquanto bradava que a Amazônia era nossa, a Ditadura vendeu 3,6 milhões de hectares de mata entre o Pará e o Amapá ao bilionário americano Daniel Ludwig. Nos anos 1970, a Volkswagen foi agraciada com 140 mil hectares para criar gado. Diversas mineradoras estrangeiras operam sem ser incomodadas pelo governo na Amazônia, como a norueguesa Hydro (bauxita), a australiana Rio Tinto (bauxita) e a britânica Serabi Gold (ouro). As canadenses Belo Sun e Potássio do Brasil aguardam licenças para extrair ouro, no Pará, e potássio, no Amazonas. Nenhuma foi acusada por generais de violar a soberania nacional.

Apesar do discurso oficial contra estrangeiros malvados, mais de 20 mil garimpeiros continuam atuando livremente na Terra Indígena Yanomami, com a conivência das Forças Armadas. Segundo o Instituto Escolhas, há indício de ilegalidade em 47% do ouro extraído no Brasil desde 2015. Isso sim, uma violação da soberania (e do fisco).

“NAÇÕES INDÍGENAS INDEPENDENTES“

Indígenas brasileiros nunca reivindicaram a independência de qualquer território na Amazônia. Ao contrário, a presença de indígenas autoidentificados como brasileiros no extremo norte foi o que garantiu a incorporação de parte de Roraima ao território nacional, em disputa com a Inglaterra (Joaquim Nabuco os chamava de “muralhas dos sertões”). Mas a teoria de que haveria um movimento de criação de nações indígenas independentes ganhou força na Constituinte de 1986 e 1987, quando se discutiu um capítulo de direitos indígenas. Em agosto de 1987, o jornal O Estado de S. Paulo publicou uma semana de capas com notícias falsas sobre uma conspirata europeia com a Igreja Católica para separar o território Yanomami do Brasil. Segundo O Estadão, os indígenas eram “o caminho para os minérios”. As supostas denúncias do jornal deram origem a uma CPI, cujo relatório jamais foi publicado, na qual se demonstrou que documentos publicados pelo jornal haviam sido forjados. O desmonte da farsa não impediu que o Exército seguisse defendendo a demarcação da terra Yanomami em “ilhas” e não como território contínuo durante o governo Sarney. A demarcação só sairia, em 1992, contínua, graças a uma decisão judicial, e assinada, veja só, por um militar: o coronel e então ministro da Justiça Jarbas Passarinho.

Outras lendas sobre o assunto afloram de tempos em tempos nos grupos de WhatsApp, como a de que há territórios indígenas na Amazônia onde só se fala

inglês. O Exército age com notáveis padrões duplos nessa questão, aparentemente não se incomodando com missionários evangélicos norte-americanos invadindo áreas indígenas para converter seus habitantes. Um desses grupos estrangeiros é a antiga Missão Novas Tribos, na qual trabalha Edward Luz, pai do antropólogo bolsonarista homônimo. A Funai, no governo atual, chegou a nomear um missionário evangélico para chefiar o setor que cuida de indígenas isolados e de recente contato.

GUERRA PELA ÁGUA

Em apresentação no PowerPoint, feita em novembro de 2020, contendo os planos do Conselho Nacional da Amazônia Legal para a floresta, o general da reserva e vice-presidente Hamilton Mourão afirma que existe uma “crise global da água” e que as “potências hegemônicas” dependem de recursos naturais como a água doce para manter seu poder. A Amazônia, como detentora da maior reserva de água doce disponível no mundo, estaria no centro dessa disputa – e isso justificaria a presença das Forças Armadas para defender o território dos saqueadores internacionais de água (como essa pilhagem seria feita não é especificado).

Trata-se aqui de uma simples repaginação do velho argumento da cobiça internacional e da fronteira de recursos. Os estrangeiros, principalmente os chineses, já levam embora a água do Brasil hoje na forma de carne e soja exportadas. O governo Bolsonaro, formado por militares, apoia um projeto de lei que permite a venda de terras (portanto, de água) a estrangeiros.

O FALSO ATLAS AMERICANO

Desde os anos 2000 circula na internet uma montagem de um suposto livro escolar que seria adotado em escolas nos EUA sobre um “plano para transformar a Amazônia em um reserva internacional”. O livro citado, An introduction to geography, não existe nas bibliotecas norte-americanas. No entanto, a mensagem chegou a ser reproduzida em um clipping distribuído pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em 2001, o que levou a Embaixada do Brasil nos EUA a apontar a fraude.

Em entrevista ao G1, em 2010, o responsável pela “checagem” à época, o diplomata Paulo Roberto de Almeida, que então trabalhava como ministro conselheiro na Embaixada de Washington, atribuiu a origem da fake news a grupos de extrema direita militar no Brasil, “interessados em preservar a soberania brasileira sobre a Amazônia, supostamente ameaçada por alguma invasão estrangeira”.

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(publicado originalmente no site, em 22.04.2022)

O Brasil fake na

“Mensagem” enviada por Bolsonaro ao Congresso

Jornalista do UOL

Autor de “Os fuzis e as flechas, histórias de sangue e resitência indígena na ditadura”

A“Mensagem Presidencial” de 2022, encaminhada por Jair Bolsonaro no dia 02 de fevereiro de 2022, ao Congresso Nacional, na reabertura dos trabalhos do Legislativo, apresenta um Brasil de sucesso, tolerante, pujante e moderno, preocupado com o meio ambiente e os direitos humanos. São 250 páginas pontuadas de exageros, omissões, afirmações distorcidas e mesmo mentirosas. Juntas, desenham um país que não existe - ou que só existe no papel. O envio da “Mensagem” uma vez por ano, no início dos trabalhos legislativos, o que ocorre normalmente em fevereiro, é uma atribuição privativa do Presidente da República, prevista na Constituição (artigo 83). Seu objetivo é “expor a situação do país e solicitar as providências que [o Presidente] julgar necessárias”.

O documento é produzido a partir de contribuições enviadas meses antes pelos ministérios, autarquias, fundações e empresas do governo. Cada setor envia sua colaboração, que é cobrada, reunida, editada e formatada num texto único pela Presidência.

No papel, um amante da Ciência

A “Mensagem” de Bolsonaro descreve um país impressionante. O texto diz, por exemplo, que o governo deu “um sinal inequívoco” do seu “compromisso com o combate a todas as formas de racismo, intolerância e xenofobia, incluindo o antissemitismo”. Em todo o documento, a palavra negro inexiste; assim como menção à Fundação Palmares, antes de Bolsonaro uma referência

nas políticas públicas contra o racismo e responsável por emitir certidões às comunidades quilombolas, um passo importante no processo de demarcação dos territórios. Sob Bolsonaro, no entanto, as demarcações de territórios quilombolas desabaram e o presidente da Fundação, seguidas vezes, investiu contra o movimento negro e personalidades históricas negras.

Na “Mensagem”, o governo Bolsonaro é retratado como um verdadeiro amante da ciência. “O Governo Federal tem continuado os esforços de inserção do País na sociedade do conhecimento, onde o avanço na produção de ciência de boa qualidade, o desenvolvimento de grandes projetos de infraestrutura de Pesquisa & Desenvolvimento (P&D) e iniciativas de divulgação científica devem prosperar de forma articulada”.

Na dura realidade, o governo cortou 87% da verba para Ciência e Tecnologia em 2021, derrubando-a de R$ 690 milhões para R$ 89 milhões. No primeiro trimestre de 2021, mais de 200 cientistas assinaram uma carta aberta contra o governo Bolsonaro. Em novembro, 21 cientistas recusaram, em sinal de protesto, uma comenda oferecida pelo governo. Sem contar a campanha pelo uso de medicamentos sem eficácia contra a Covid-19 e a pregação contra a vacina para crianças, desrespeitando todos os cientistas e especialistas sérios no assunto.

Ao falar dos esforços para vacinação dos brasileiros, a “Mensagem” usa o truque de fazer o recorte de uma parcela da população, como se bebês e crianças também não estejam sendo acometidos e mortos pela Covid-19.

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RubensValente ABRINDO O DEBATE
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Diz que finalizou o ano de 2021 “com mais de 81% do público maior de 12 anos de idade completamente imunizado”. O dado, porém, não inclui a dose de reforço nem a população abaixo dos 12 anos. Na verdade, em 3 de fevereiro último, 70,1% da população como um todo estava com o primeiro ciclo vacinal completo e apenas 22,8% com a dose de reforço.

Governadores e prefeitos são excluídos

Quando trata de resultados positivos no combate à pandemia, a “Mensagem” omite o papel de governadores e prefeitos, os quais são responsáveis por grande parte da estrutura de atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS) nos Estados e municípios. “Os resultados positivos no combate à Covid-19 são produtos do esforço dos profissionais que integram o SUS e do papel coordenador exercido pelo Governo Federal”, diz o texto.

No campo dos direitos humanos, a “Mensagem” afirma: “O foco do Poder Executivo na promoção e defesa dos direitos humanos permanece sendo para todos, sem deixar ninguém para trás, de maneira universal e não segmentada, considerando a perspectiva de integralidade da pessoa e de valorização da família”.

Em seu relatório anual sobre 2021, a organização não governamental de direitos humanos “Human Rights Watch” (HRW, em português Observatório do Direitos Humanos) associou “ameaças a direitos políticos e civis” protagonizadas por Bolsonaro aos antigos e persistentes problemas do país como violência policial, cárceres insalubres, racismo, LGBTfobia, devastação ambiental e vulnerabilidade de ativistas. Citando dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o relatório lembra que 6.400 mortes foram provocadas por policiais, das quais 80% de pessoas negras. Isso representou 12,8% das mortes violentas intencionais no país, muito superior ao registrado no mesmo período em países como EUA (4,7%) e África do Sul (1,7%).

Governo cita ‘300’ barreiras sanitárias; indígenas apontam 3

Sobre os povos indígenas, Amazônia e preservação ambiental, o relatório contém delírios. Afirma que, “com o intuito de proteger a população indígena, o Governo tem atuado na elaboração de Planos de Barreiras Sanitárias para povos indígenas isolados e de recente contato” e que “foram investidos recursos para a implementação e o suporte a aproximadamente 300 barreiras e postos de controle de acesso em todo o território nacional, a fim de impedir a entrada de não indígenas nas aldeias. Tais ações devem ser ampliadas em 2022”.

Na realidade, a necessidade de criação de barreiras

sanitárias foi uma pauta toda apresentada e formulada pelas organizações representativas dos indígenas que reagiram à inação do governo nos primeiros meses da pandemia. A iniciativa ganhou corpo no decorrer de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) ajuizada pelas organizações, em 2020, no Supremo Tribunal Federal (STF), em processo sob a relatoria do ministro Luís Barroso. Desde então, houve reiteradas cobranças dos indígenas para que o governo de fato instale e coloque em funcionamento tais barreiras.

A situação é acompanhada de perto pela principal organização indígena, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que lançou um site como parte da campanha “Emergência Indígena”. O processo de instalação de cada barreira é analisado separadamente, com mapa e comentários. De acordo com o levantamento, até o momento, há apenas três barreiras instaladas, oito incompletas e 31 não instaladas.

O texto da “Mensagem” soma as barreiras a supostos “postos de controle de acesso”. As unidades que mais parecem com o que o governo diz são as bases de proteção etnoambiental. Elas são apenas 29 no país, porém três estão desativadas, uma em processo de ativação e duas com uso intermitente. Tudo somado – barreiras mais bases –, muito abaixo do número de 300.

“É mais uma falácia do governo “ Beto Marubo, liderança da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), no Amazonas, revelou que “não há nenhum compromisso do governo Bolsonaro em proteger os povos indígenas”. “Nós acreditamos que essa [‘Mensagem’] é mais uma falácia do governo, é muito mais uma retórica do governo do que o compromisso de proteger os parentes de fato”, disse Marubo.

“Nem as barreiras que nós sugerimos foram acatadas pelo governo, até hoje, faz que não tem visto nossas proposições, que dirá 300 como ele está falando ali. Na prática, não existe isso, nunca existiu isso nem vai existir. Um ano para fazer isso e não foi levado em consideração, que dirá agora no final do governo. É uma retórica política”.

A “Mensagem” de Bolsonaro diz ainda que o governo “criou uma Central de Atendimento, permitindo que as demandas da população indígena chegassem mais rápido aos órgãos competentes. Também foi instituída a Sala de Situação Nacional, no âmbito do Ministério da Saúde, que, em articulação com outros órgãos, é responsável pelo monitoramento e acompanhamento da situação dos povos indígenas frente à pandemia”.

O documento também não explica que a “Sala” só foi criada a partir das pressões da ADPF ajuizada no

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STF. Beto Marubo, que no começo chegou a participar de algumas reuniões, disse que hoje ela não tem eficácia nenhuma para resolver as demandas indígenas.

“Na prática, a ‘Sala de Situação’ em nenhum momento teve ou tem o compromisso de ouvir os povos indígenas. Não por acaso, hoje não passa de uma reunião com os advogados que nos representam lá e os técnicos do governo. Porque em nenhum momento foi levada em consideração a maior parte das nossas sugestões, inclusive sobre as barreiras sanitárias, não foram acatadas pelo governo e isso vem se protelando por mais de ano”.

Silêncio sobre a explosão do desmatamento

A respeito de desmatamento e incêndios no país, a “Mensagem” diz que são “pautas prioritárias do Governo Federal” e que “dobrou os recursos para os órgãos de fiscalização ambiental, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama) e Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), totalizando cerca de meio bilhão de reais especificamente para ações de comando e controle”.

Os dados colhidos por satélites e revisados por técnicos de diversas instituições, porém, indicam a explosão do desmatamento na Amazônia, que atinge níveis alarmantes e um crescimento de 56% durante o governo Bolsonaro. Sobre o Orçamento, um recente relatório da coalizão Observatório do Clima apontou que o Ibama liquidou apenas 41% do valor destinado à fiscalização em 2021 – de R$ 219 milhões, usou somente R$ 88 milhões.

A “Mensagem” afirma, sobre os incêndios, que, “nos meses mais críticos do ano, o número de focos de calor ficou abaixo da média histórica” e que os dados “demonstram uma redução no número de queimadas e incêndios no Brasil, tanto na comparação com 2020 quanto na série histórica de 1998 a 2021”.

Ane Alencar, diretora de Ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam Amazônia) e uma das principais especialistas em queimadas no país, indagada pela coluna sobre essas afirmações, disse que “os dados do Inpe [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais] mostram que os focos de calor foram menores em 2021, mas não foi o menor valor desde 1998” e também “não foi o mais baixo da série, se considerarmos somente de julho a outubro” – já que a “Mensagem” fala em “meses mais críticos”. Na comparação com 2021, houve menos registros de focos de calor em 2018, 2013, 2011, 2001, 2000, 1999 e 1998. No período de julho a outubro, houve menos focos de calor em 2018, 2016, 2014, 2013, 2011, 2009, 2001, 2000, 1999 e 1998.

Ane Alencar explicou que a redução de incêndios em

2021 está muito mais relacionada a questões climáticas do que a uma ação de governo, daí não fazer sentido o governo se vangloriar da queda. “É difícil atribuir isso ao governo, considerando a taxa tão alarmante de desmatamento. O fogo não anda sozinho nem separado do desmatamento.

As pessoas não tocaram fogo porque não tinha clima para isso. A redução foi decorrente do clima. Se a redução dos focos de calor fosse decorrente de uma ação governamental, o desmatamento também teria reduzido. Se houvesse mais transparência nas ações, dizendo, por exemplo, onde atuaram, quais foram as multas aplicadas, a gente conseguiria afirmar que, de fato, foi uma ação do governo. O que vemos é que não foi bem assim”.

Outras palavras inexistentes na “Mensagem” são jornalistas, jornalismo, imprensa (apenas quando vinculada à imprensa oficial ou Imprensa Nacional), liberdade de expressão e entrevistas. Quando fala em comunicação, trata apenas da oficial praticada pelo governo. Não à toa, a “Mensagem” nada explica sobre Bolsonaro ter atacado a imprensa em 86% das 46 lives que transmitiu pela internet ao longo de 2021. Referências à produção de arte, ao trabalho de artistas, ao cinema, à música e ao teatro também não existem na “Mensagem”.

Diferentemente de uma live na internet ou declarações para o “cercadinho”, a “Mensagem” tem um peso institucional maior, pois é uma informação oficial prestada diretamente por um Presidente da República a um Poder que também exerce o papel de fiscalização e controle, o Congresso Nacional. Deveria haver punição à autoridade que prestasse informação falsa ou distorcida num documento do gênero?

Para a deputada federal, Sâmia Bomfim (SP), líder da bancada do PSOL na Câmara, é “muito improvável” que Bolsonaro, que “até hoje já cometeu uma série de irregularidades e crimes”, vá sofrer “algum tipo de sanção” num ano eleitoral por conta da “Mensagem”.

“Há mecanismos que poderiam, sim, ser acionados, a própria Procuradoria-Geral da República poderia instá-lo a dar explicações, ele poderia ser convocado a comparecer na Câmara para dar esclarecimentos sobre eventuais mentiras. Num ano em que a situação econômica do país é tão frágil e dramática, ele deveria na ‘Mensagem’ era apontar algumas saídas, por exemplo, como vai fazer a articulação política, o problema orçamentário, responder ao problema da fome. Mas ele está mais preocupado com a própria reeleição do que em resolver os problemas do país e tirá-lo do atoleiro”. .

18 Resistências
(publicado originalmente no UOL , em 06.02.2022)
AÇÕES DESTRUTIVAS DO GOVERNO FEDERAL NA AMAZÔNIA 19

OPINIÕES INSTI GAN TES

Amazônia Ilegal

22 Resistências
Coordenador da ONG Projeto Saúde & Alegria, membro da coordenação do Observa tório do Clima e integrante da Rede Folha de Empreendedores Socioambientais.
OPINIÕES INSTIGANTES

Sabemos que, na Amazônia Legal, nossa sociobiodiversidade, a partir do açaí, cacau e outros, gera mais empregos e renda do que boi. Que com eficiência agrícola se produz mais, com menos terra, sem desmatamento. Que áreas protegidas prestam serviços ambientais de valor planetário. Que a Zona Franca de Manaus poderia ser o Vale do Silício da bioeconomia. E que o Brasil poderia ser o tal “país do futuro”.

Só que não adianta falar de desenvolvimento sustentável sem antes resolver a cultura do ilegalismo que impera na região, onde legal é o ilegal, onde aqueles que grilam terras, derrubam árvores ou contaminam rios ditam regras como “cidadãos de bem” que movem as economias locais em nome do progresso.

No quarto país mais perigoso do mundo para defensores ambientais, não se pode normalizar o fato de que, dos 300 assassinatos de ativistas na Amazônia brasileira, apenas 14 foram a julgamento na última década (Human Rights Watch, 2019).

Amazônia Legal, só nos mapas. Ela está mais para a Chicago gângster dos anos 1920. Mata-se e desmatase, num conluio entre atores privados e públicos. Uma minoria, porém, empoderada e dominante, detém um quinhão do maior patrimônio dos brasileiros a serviço da humanidade. Se a Amazônia fora da lei fosse um país, estaria entre os dez maiores emissores de gases de efeito estufa só pelo desmatamento ilegal.

Não é que “onde existe muita floresta também existe muita pobreza”, como disse o ministro Joaquim Leite (Meio Ambiente) na COP26, mas sim que esse modelo que desmata está nos deixando mais pobres. Os dados do Índice de Progresso Social (IPS) Amazônia 2021 identificam os piores índices de progresso social justamente nos municípios que mais desmataram.

Se Dilma Rousseff (PT) e Michel Temer (MDB) deixaram a desejar na área ambiental, o que era ruim ficou pior sob Jair Bolsonaro (PL), com o menor

número de multas do Ibama em 20 anos e a maior taxa de desmatamento desde 2006 (Prodes).

Não se acaba com o ilegalismo legalizando o ilegal, com projetos para liberar garimpos ou boi em reservas. Ou para premiar grileiros com descontos de até 98% para aquisição das terras públicas surrupiadas. É insistir num modelo que deu errado, sem mais tempo para errar. Compromete-se tudo para favorecer só alguns que se apropriam do que são de todos.

Quem quer fazer a coisa certa é punido. Como não consegue concorrer com o preço baixo da produção ilegal, quebra ou muda de lado, desestimulando investimentos responsáveis e a própria existência de um mercado como deveria ser. Em vez de empreendedores, o que temos atraído para a região são cartéis.

Já vimos o desmatamento na Amazônia cair mais de 80% entre 2004 e 2012, enquanto o agronegócio e a economia cresciam. Só que apenas lampejos de comando e controle não bastam.

Como ente soberano, é hora de a sociedade brasileira chamar a responsabilidade para si, pelo cumprimento das leis, pela questão socioambiental acima de direitas e esquerdas, como política de Estado, efetiva, que consolide uma nova cultura em que boas práticas predominem.

Sem uma mobilização nacional neste sentido, fica difícil falar em Amazônia Legal. E sustentável.

AÇÕES DESTRUTIVAS DO GOVERNO FEDERAL NA AMAZÔNIA 23 (publicado originalmente na Folha de S.Paulo/UOL, em 08.02.2022)

Bolsonaro promove a mineração predatória

Para quem acompanha a política mineral, o título acima é o óbvio ululante. Mas para a grande maioria das pessoas, os efeitos nefastos do atual governo nessas atividades são invisíveis em meio a tantas outras aberrações, como as centenas de milhares de mortes evitáveis na pandemia da Covid-19, a fome que atormenta milhões de pessoas, a devastação do meio ambiente em geral e a inflação que foge do controle.

Porém, a degradação da política mineral está associada a todos esses elementos e ainda provoca danos irreversíveis, decorrentes da própria natureza da atividade minerária quando praticada sem controles. Para começo de conversa, vale lembrar que os recursos minerais se incluem entre os bens da União e que o seu uso não é renovável. Significa que o benefício público e o zelo ambiental deveriam ser condições inerentes a ele.

Também importa destacar que a predação mineral realizada hoje, notadamente na Amazônia, tem caráter empresarial, requer elevados investimentos em maquinário pesado, logística aérea, terrestre e fluvial, além do acesso ao comércio ilegal do ouro e de outros minérios e a esquemas de proteção política, jurídica e policial. Nada a ver com o garimpo praticado em outros tempos, de forma espontânea e com tecnologias de baixo impacto.

A predação mineral se expandiu de forma vertiginosa nos três anos de governo Bolsonaro. É incentivada, de forma recorrente, pelo próprio presidente, através de lives, entrevistas e projetos de lei para legalizar o que é vedado pela Constituição. No caso das terras indígenas Munduruku, Kayapó e Yanomami, o garimpo empresarial se expandiu em mais de 300% sobre o acumulado histórico anterior, se valendo da impunidade, do alto preço dos minérios e da facilidade, em tempos de miséria, para recrutar pessoas dispostas a chafurdar na lama e enriquecer quadrilhas.

Os representantes das organizações criminosas que predam jazidas minerais em terras indígenas, unidades de conservação e outras terras públicas, inclusive em áreas formalmente requeridas por outras empresas junto à Agência Nacional de Mineração (ANM), circulam livremente pelos órgãos públicos e participam até de lives presidenciais. Não há estratégia de governo para responsabilizá-los pelos crimes em curso. As operações de repressão só ocorrem por força de decisões judiciais, com recursos precários e, assim mesmo, têm resultado em apreensões de aviões, embarcações, veículos terrestres, dragas, bombas, escavadeiras, além de toneladas de ouro e

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MárcioSantilli Filósofo, sócio fundador do Instituto Socioambiental (ISA) e presidente da Funai (1995 a 1996) Autor do livro “Subvertendo a gramática e outras crônicas socioambientais” (2019)
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de combustíveis. Está demonstrado o vínculo entre a mineração predatória e o narcotráfico, que se utiliza da sua logística, como as pistas de pouso clandestinas, e da própria atividade garimpeira para “lavar” dinheiro.

Código de mineração

O assalto das empresas de mineração predatória ao patrimônio público e privado conta, também, com o apoio de medidas administrativas e de iniciativas legislativas. A ANM tem facilitado a concessão de direitos de lavra garimpeira incidentes sobre o leito dos rios amazônicos, fazendo vista grossa ao status jurídico das terras às suas margens. Recentemente, encaminhou pedidos de autorização ao Conselho de Defesa Nacional (CDN) para a operação de balsas de garimpo no trecho do rio Negro entre as terras indígenas Médio Rio Negro I e II, situadas em faixa de fronteira. Esses requerimentos atingem, inclusive, as ilhas que resguardam a biodiversidade aquática e onde vivem dezenas de comunidades indígenas. As ilhas integram formalmente o território indígena, mas a ANM e o CDN estão burlando a exigência constitucional de autorização do Congresso Nacional e de consulta às comunidades afetadas para que tais atividades possam ser realizadas.

A pretexto de regulamentar a concessão de direitos de pesquisa e de lavra de minérios em terras indígenas, o que está previsto na Constituição, Bolsonaro encaminhou ao Congresso o Projeto de Lei (PL) 191/2019, que pretende legalizar as invasões já existentes de empresas predatórias nessas áreas, o que é expressamente vedado pela Constituição. O PL pretende expor as terras indígenas a todo tipo de interesse econômico de terceiros: instalação de hidrelétricas, exploração de gás natural e petróleo, arrendamento de terras, plantio de transgênicos e mineração industrial. Seria uma espécie de “liberou geral” para o esbulho desses territórios.

Neste final de ano [2021], a prioridade do governo e da mineração predatória é a adaptação do Código de Mineração aos seus interesses inconfessáveis. A prática pretende se camuflar sob o conceito de “pequena mineração familiar”. Quer se fazer passar pelo antigo garimpo manual, como se fosse um problema social. Apropria-se, então, de uma versão minerária do conceito de agricultura familiar para acessar diversas facilidades nos processos de concessão de direitos e privilégios em relação a todos os demais detentores de direitos territoriais ou minerários sobre as áreas que já invadiram ou que ainda pretendam ocupar. É um “valetudo” descarado em favor das empresas do garimpo predatório.

O projeto do governo é instituir dois códigos em um: o primeiro para atender à mineração predatória –que poderá ocupar qualquer lugar, arregimentar mão de obra sem respeito a direitos trabalhistas, destruir florestas e cursos d’água, contaminando tudo e todos com mercúrio, sonegar impostos, comercializar ilegalmente minérios, promover a prostituição e a criminalidade, corromper agentes públicos. E outro código que se aplicaria às empresas que atuam na legalidade e precisam cumprir as leis trabalhistas, ambientais e comerciais vigentes, dependem de investimentos externos e do cumprimento de condicionantes socioambientais crescentes e que poderão perder os direitos de acesso quando as áreas por elas requeridas interessarem ao crime organizado.

Há uma resistência crescente à mineração predatória por parte de organizações da sociedade civil e do movimento indígena, que a denunciam no Brasil e no exterior. O turismo e a pesca já sentem os impactos da contaminação e da destruição dos recursos naturais. Os meios de comunicação têm divulgado cenas e informações chocantes sobre a audácia com que atua a mineração predatória, como o recente bloqueio do rio Madeira por centenas de balsas de garimpo.

No entanto, apesar dos altos preços dos minérios e da sua lucratividade, as empresas formais de mineração não têm conseguido reagir à altura, mesmo diante da concorrência predatória incentivada pelo governo. Por um lado, ficaram debilitadas junto à opinião pública com os desastres socioambientais recentes ocorridos nas cidades de Mariana e Brumadinho (MG) e, por outro, vêm perdendo força política desde que foram vedadas as doações eleitorais por empresas privadas, o que dá grande vantagem às empresas predatórias, que não se constrangem em bancar, através de propinas e de doações ilegais, os políticos que promovem a subversão do Código de Mineração.

O ano de 2021 se encerra sem que o PL 191/2019 tenha conseguido avançar na sua tramitação. Mas, há um grupo de trabalho, constituído pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, para elaborar a proposta de alteração do Código de Mineração, que ainda pode ensejar algum golpe de mesa para a sua aprovação antes do recesso legislativo do final do ano. Ele estava encontrando dificuldade em reunir votos suficientes para isso, mas esse risco ainda exige atenção redobrada de todos.

(publicado originalmente

Mídia

AÇÕES DESTRUTIVAS DO GOVERNO FEDERAL NA AMAZÔNIA 25
por
Ninja, em 16.12.2021)

Bolsonaro e o genocídio indígena

Mata-se um povo quando se criam condições que podem levá-lo à destruição

Advogada e subprocuradora-geral da República aposentada, participou do Tribunal do Genocídio, no Teatro da Universidade Católica de São Paulo (Tuca/SP), como representante da sociedade na acusação.

Aconcepção dos povos originários da América como inferiores e a violência do projeto colonial vão alimentar, em larga medida, as teorias raciais do século 19 e a própria formação dos Estados nacionais, com a noção de homogeneidade que lhe é correlata. A combinação desses ingredientes culminou no nazismo e no Holocausto judeu, chamando a atenção da Europa, pela primeira vez, para o fenômeno da eliminação dos “seus outros”.

Em 11 de dezembro de 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio. Em ambos os casos, parte-se da premissa de que, se os direitos humanos são universais, é fundamental assegurar o pluralismo das sociedades nacionais, com abandono da ideia de superioridade de um grupo sobre os demais.

A convenção diz que o genocídio é crime tanto em tempo de paz como em tempo de guerra e o define como a prática de atos cometidos com a intenção de “destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. Já o seu artigo 2º, “c”, diz que constitui ato de genocídio “submeter

intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial”.

A Constituição Federal determina a demarcação das terras indígenas porque são espaços essenciais à autodeterminação desses povos. A negativa ou omissão deliberadas da demarcação configura o crime de genocídio na modalidade inscrita no artigo 2º, “c”, da convenção – ou seja, mata-se um povo quando lhe são impostas condições de vida capazes de levar à sua destruição física. Seus membros morrem, e os sobreviventes se submetem a um processo de integração à cultura dominante. O povo preexistente deixa de existir. Foi o que aconteceu com vários povos indígenas ao longo do projeto colonial.

Dito isso, é preciso denunciar que está em curso um processo de genocídio dos indígenas no Brasil, capitaneado pelo Presidente da República. Discursivamente, ele trata esse segmento da sociedade como inferior e diz que não irá demarcar – como não demarcou – um centímetro de área indígena. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), em ação proposta perante o Supremo Tribunal Federal (STF), evidenciou que esses discursos levaram a ondas de invasões de terras indígenas. Dados do Projeto de

26 Resistências
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Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes), sistema do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), revelam que, em 2019, a taxa anual de desmatamento em toda a Amazônia foi de 34,41%, mas que esse incremento foi de 80% quando consideradas apenas as terras indígenas.

No contexto da Covid-19, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) concedeu medida cautelar em favor dos povos indígenas Yanomami e Ye’kwana, apontando a presença, em seus territórios, de 20 mil garimpeiros. Também assim procedeu em relação aos povos indígenas Munduruku, Guajajara e Awá, todos com seus territórios invadidos e vítimas de ampla

disseminação da doença. Relatório de 2021 produzido pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) aponta que os casos de invasão de terras indígenas, em 2020, tiveram um acréscimo de 137% em relação a 2018. Foram atingidas, pelo menos, 201 terras indígenas, de 145 povos, em 19 estados.

Jair Bolsonaro organizou toda a burocracia para negar direitos territoriais a esses povos e abrir suas terras para atividades que ele considera produtivas. Embutidas nesse aparato, as velhas ideias da supremacia racial e da necessidade de assimilação das culturas dissidentes. Isso tem nome: genocídio.

AÇÕES DESTRUTIVAS DO GOVERNO FEDERAL NA AMAZÔNIA 27
(publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 14.01.2022)

O vulto atroz do país: o que fazer com a novaconsciência da nossa ruína?

De tudo fica o quê? O abandono de uma velha paz, de uma ilusão de paz, o lento despertar de uma nova lucidez. Éramos ignorantes e calmos, éramos festivos e sossegados, e então soubemos. Descobrimos, os que andávamos desatentos, que de um momento para o outro tudo pode estremecer, que pode desmoronar bem aquilo que julgávamos sólido, que podem ser soterradas de vez as nossas certezas caducas, tudo o que pensávamos garantir a nossa existência.

Descobrimos que de um mundo pode se abrir outro mundo, subitamente, mundo de ruas infectas, de museus esquecidos e parques desertos, mundo de escolas trancadas às crianças, perigosas inocentes. Descobrimos que se consegue cancelar um carnaval, que pode haver razão para não mais convocar nenhuma festa, nenhum encontro que transgrida a necessária continência. Descobrimos que o mundo aceita se comprimir entre as nossas paredes, cada um relegado aos seus, à sua pequenez. E entendemos, com assombro e tristeza, entendemos que, por trás de todo o vazio, pode haver hospitais cheios de pulmões aflitos, arfando por oxigênio. Entendemos que a vida pode ser essa coisa frágil que sorve o ar sem nunca se dar por satisfeita, e que então os pulmões podem desistir e deixar à míngua os corpos que deles dependem, tantos corpos a sucumbir ao mesmo tempo, massivamente.

E tudo isso bem quando acabávamos de descobrir que a nossa casa também pode ser hostil, pode ser infecta, que em suas paredes podem reverberar tantas palavras de ódio e insensatez. Bem quando acabávamos de descobrir

que em cada tio distante, em cada primo que perdemos de vista, e nos vizinhos com quem trocamos sorrisos e acenos, e nos desconhecidos que pelas calçadas passam rentes aos nossos ombros, bem quando acabávamos de descobrir que em cada um deles pode haver um pequeno tirano, um aprendiz de déspota, um intolerante. Alguém disposto a pensar com a bile de seu intestino, a exalar em discursos precários e turvos apenas sua raiva, seu desprezo, seu ressentimento.

A história já tentava nos dizer, a literatura tentava nos dizer, mas não entendíamos, ainda não era possível entender. Os que nunca viram não sabem ler os textos dos que viram, dos que alguma vez conheceram de perto a impiedade humana e a fragilidade da existência. Percebo agora que nada sabia sobre a guerra quando li pela primeira vez Natalia Ginzburg [As pequenas virtudes. Tradução Maurício Santana Dias. São Paulo: Companhia das Letras. 2020], nada sabia sobre o fascismo. Talvez não saiba nada ainda, mas leio um ensaio seu e vou grifando linha a linha, à espera da passagem que não nos contemple, que não fale nada sobre o nosso tempo e o nosso país, tão distantes do tempo dela, do país dela. Não encontro essa passagem, grifo tudo, em tudo nos reconheço, em tudo sinto que estamos presentes.

Ginzburg fala da guerra e fala do fascismo, diz que, uma vez sofrida, jamais se esquece essa experiência, diz que ninguém nunca se cura de uma visão dessas. “Quem viu as casas desabando sabe muito bem quanto são precários os vasos de flor, os quadros, as paredes brancas. Sabe muito bem de que é feita uma casa. Uma

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Jornalista, romancista e crítico literário, colunista do UOL

casa é feita de tijolos e argamassa, e pode desabar. Uma casa não é tão sólida”. Ginzburg diz que, por trás dos vasos e das flores, há “o outro vulto verdadeiro da casa, o vulto atroz da casa caída.” E eu, que leio guerra e penso em pandemia, e leio fascismo e penso no bolsonarismo rasteiro de cada dia, me pergunto se alguma vez esqueceremos, se nos curaremos dessa visão, ou se veremos por toda a vida o verdadeiro vulto do país por trás da estrutura que nos abriga, o vulto atroz do país caído.

E o que faremos então dessa clareza, dessa revelação súbita, dessa lucidez que nunca desejamos e agora de surpresa nos visita? Bastará reconhecer o que tínhamos esquecido e seguir vivendo assim, a um só tempo mais conscientes e mais infelizes?

Ginzburg parece pensar que sim, que algo ganhamos nesse processo: que já não podemos, depois de tudo isso, mentir nos livros, e mentir para os nossos filhos como vínhamos mentindo para nós mesmos.

“E talvez este seja o único bem que nos veio da guerra. Não mentir e não tolerar que os outros mintam para nós”. Sim, se escaparmos à mentira talvez combatamos justamente aquilo que destrói a casa, que corrói por dentro seus alicerces.

Mas não pode ser suficiente, não pode ser aí que se encerra o pensamento. Ginzburg parece se dar por satisfeita, e dizer que com isso já temos “uma dureza e uma força que os outros, antes de nós, jamais conheceram”. Eu penso, embora não veja em nosso tempo tal ineditismo, e embora não consiga encontrar nada mais a dizer, penso que haveria outro mundo a construir com essa força e essa consciência que agora temos.

“ AÇÕES DESTRUTIVAS DO GOVERNO FEDERAL NA AMAZÔNIA 29 (publicado originalmente no site ECOA UOL, em 22.05.2021)
Ginzburg fala da guerra e fala do fascismo, diz que, uma vez sofrida, jamais se esquece essa experiência, que ninguém nunca se cura de uma visão dessas.”

A DESTRUIÇÃO

VISUALIZADA

Morador tenta conter fogo que ameaçava residências em área rural de Lábrea, sul do Amazonas

Rodrigues/11.11.2021)

(José

Lider da comunidade Paratizão desalojado pela Usina de Belo Monte vê o que sobrou do antigo rio Xingu (PA)

(Lilo Clareto/Amazônia Real/18.12.2019)

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Sem vegetação, sem peixes, sem vida. Rio Xingu destruído pelos efeitos da Usina de Belo Monte, em Altamira (PA) (Lilo Clareto/Amazônia Real/18.12.2019)

AÇÕES DESTRUTIVAS DO GOVERNO FEDERAL NA AMAZÔNIA 35

Condições precárias de saúde em Terra Indígena Yanomami, em Barcelos (AM), são agravadas pela presença de cerca de 20 mil garimpeiros (Edson Sato/HAY/maio.2021)

Indígenas armados recepcionam Jair Bolsonaro em Maturacá, na Terra Indígena Yanomami/São Gabriel da Cachoeira (AM) (Paulo Desana/Amazônia Real/27.05.2021)

Garimpo na região do Homoxi na Terra Indígena Yanomami/ Rio Mucajaí (RR) impactando a vida da população indígena (Bruno Kelly/Amazônia Real/04.08.2021)

Desmatamento em Terra Indígena Karipuna, na região do Rio Formoso (RO), para formação de pasto e produção de soja (Christian Braga/Greenpeace, novembro.2021)

Acampamento em área de garimpo no rio Uraricoera, na Terra Indígena Yanomami, território mais cobiçado para a exploração de mineração (Christian Braga/Greenpeace, abril.2021)

Queimada em Novo Progresso, sudoeste do Pará, no “Dia do Fogo” (Blog da Companhia/fevereiro.2022)
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Entre 2019 e 2020, pelo menos 24 crianças morreram por desnutrição e falta de assistência na Terra Indígena Yanomami, em Roraima e Amazonas (Augusta Lunardi/Agência Pública, 13.09.2021)

AÇÕES DESTRUTIVAS DO GOVERNO FEDERAL NA AMAZÔNIA 45

Economia predatória extrativista no ideário bolsonarista

A que se deve o voto em Bolsonaro na Amazônia?

JoãoFranciscoKlebaLisboa

Antropólogo e membro do Observatório dos Direitos e Políticas Indignistas

Norte não é com M (“Belém-Pará-Brasil”, Mosaico de Ravena)

Apesquisa de intenção de voto para presidente, realizada pelo PoderData entre 16 e 18 de janeiro de 2022, e divulgada no dia 20¹, em que pese apontar ampla e crescente vantagem de Lula sobre Bolsonaro, indicou que o segundo se sobressai ante o primeiro na região Norte do país (46% contra 37%), onde obtém sua melhor pontuação. A pesquisa indica ainda que no Sul a disputa está empatada, com 27% para cada, e no Centro-Oeste Bolsonaro tem 36% e Lula 35%. Lula lidera no Sudeste (40% a 28%) e Nordeste (57% a 22%).

A pergunta que não quer calar é: por que Bolsonaro lidera justamente na região Norte, que abriga o bioma amazônico e tem boa parte de seu território coberto por terras indígenas e unidades de conservação? Tanto a floresta como os povos indígenas, bem o sabemos, estão entre os principais alvos da depredação praticada pelo governo Bolsonaro, e já eram figuras frequentes nas bravatas e declarações que o então deputado e candidato Jair Messias lançava para movimentar sua base de apoiadores, como a já famosa “não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para quilombola”, proferida no clube Hebraica em 2017. Nessa toada, os estados do Acre, Roraima e Rondônia (assim como a sulista Santa Catarina) deram mais de 70% dos votos para Bolsonaro no segundo turno de 2018.

Fazendo jus ao que sua candidatura representava em termos de agenda antiambiental, o desmatamento bate recordes ano após ano e o garimpo ilegal, as invasões de terras públicas e a grilagem avançam descontroladamente

desde que Bolsonaro tomou o poder. Em Santarém (PA), a maior cidade do interior da Amazônia (desconsiderando as capitais e municípios de regiões metropolitanas), pesquisadores da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa) já constataram aumento na concentração de mercúrio no sangue da população², sem falar na poluição barrenta das águas até então cristalinas de seu principal destino turístico, as praias de Alter do Chão, no rio Tapajós. O estado do Amazonas, por sua vez, foi palco de cenas desesperadoras há um ano, com hospitais colapsando por falta de oxigênio para enfrentar a pandemia de Covid-19, apesar dos avisos feitos ao Ministério da Saúde. Em relação aos povos indígenas, a divergência no relatório final da CPI da Covid, no ano passado, foi entre indiciar Bolsonaro por genocídio ou por crimes contra a humanidade³. Ainda assim, a preferência pelo atual ocupante do Planalto permanece no Norte. Tento refletir neste artigo sobre possíveis fatores, tanto estruturais e históricos quanto ocasionais, dessa preferência apontada pelas pesquisas, ou, ao menos, da surpresa que ela causa em muita gente, listando-os a seguir:

1. Em primeiro lugar eu apontaria o histórico de violência da região Norte – uma constatação que visa menos a estigmatizar essa região em relação ao resto do Brasil, que compartilha do mesmo passado colonial, escravocrata e autoritário, do que a desmistificar as visões românticas que ainda possam existir sobre a Amazônia. Esse histórico de violência teria, no entanto, cores locais, revelando-se não apenas em índices estatísticos, mas

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ECONOMIA PREDATÓRIA EXTRATIVISTA NO IDEÁRIO BOLSONARISTA

remontando a acontecimentos que foram moldando essa região, como os apresamentos de escravos indígenas nos séculos 17 e 18; a repressão sangrenta ao grande movimento revoltoso dos cabanos, no século 19; o inferno da borracha entre os séculos 19 e 20; a escravidão em fazendas que dura até os dias de hoje; os massacres de indígenas em nome do “progresso”, cometidos ao longo do século 20 e em parte revelados pelo Relatório Figueiredo , ou de trabalhadores rurais como o de Eldorado dos Carajás; além das execuções de lideranças camponesas e de defensores dos direitos humanos, que demonstram uma cruel continuidade da prática da jagunçagem e da pistolagem no século 21. A face mais recente dessa violência é a explosão do crime organizado na região, visível nas matanças cometidas por facções rivais nos presídios do Amazonas e de Roraima, ou ainda nas incursões de vingança nas periferias do Pará que ocorrem sempre após a morte de um policial. Os reflexos de toda essa violência, que reprime movimentos populares e indígenas e mina as possibilidades de aprofundar relações horizontais e democráticas na região, estão não apenas nos vínculos atuais do garimpo com o crime organizado, mas na identificação de parte da população com discursos violentos e autoritários. Não à toa, foi no Acre que Bolsonaro soltou outra frase famosa, “vamos fuzilar a petralhada”, em setembro de 2018, menos de um mês após um acampamento de migrantes venezuelanos ser atacado e incendiado pela população de Pacaraima, em Roraima. A violência enquanto linguagem de afirmação, ou catarse coletiva, e ao mesmo tempo meio de intimidação, não é novidade na região (vide a revolta anti-indígena do município de Humaitá, no Natal de 2013) , mas encontrou eco profundo no submundo do bolsonarismo e passou a

ser utilizada como arma frequente contra lideranças e povos indígenas, como os Munduruku e os Yanomami, ou contra a própria floresta, como no “Dia do Fogo”, ocorrido em 10 de agosto de 2019.

2. A maior parte da população da região Norte se concentra em centros urbanos, apesar de viver em condições precárias, raramente é considerada pelas políticas ambientalistas ou de demarcação de terras, e não tem lugar na porção que a Amazônia ocupa no imaginário do resto do país. Logo, boa parte da esquerda ambientalista – e, num grande mea culpa, dos antropólogos – tende a ver essas pessoas como inimigas naturais de suas bandeiras preferidas, ou, no mínimo, como sujeitos absolutamente desinteressantes, o que, de certa forma, as joga no colo de quem se coloque no seu extremo oposto, como adversário do discurso preservacionista ou indigenista – aquilo que hoje é Bolsonaro quem melhor sabe fazer. O descompasso entre esses modelos de desenvolvimento para a região foi muito bem retratado por João Moreira Salles em sua série de reportagens-ensaios para a revista Piauí, intitulada Arrabalde e publicada entre 2020 e 2021. Não se trata apenas de um embate de ideias ou discursos, mas de encontrar alternativas econômicas concretas e opções de renda imediata para pessoas pauperizadas, vivendo em bairros pouco equipados e sofrendo de inúmeras mazelas, que parecem só se acumular. Abandonados pelo Estado e arregimentados por atividades predatórias e insalubres, como a extração de madeira, o desmate e o garimpo, não é difícil imaginar por que os agentes de órgãos como Funai e ICMBio sejam alvo da fúria desses trabalhadores, estimulados por seus patrões ocultos e pelas elites locais que lucram com a destruição. Afirmações de Bolsonaro em defesa das atividades ilícitas

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e que desautorizam a fiscalização ambiental (falas que contribuem para o desmonte sistemático das políticas de Meio Ambiente ) acionam esse sentimento de estarem à margem da lei – ou melhor, de serem a própria lei, respaldada pelo Presidente da República – e atiçam ainda mais o barril de pólvora em que algumas localidades se transformaram.

3. Ligado a esse último fator, e ainda que seja contraditório, há um rancor em parte legítimo contra o Sul do Brasil (conceito que, no Norte, indica mais o Sudeste e lugares como Brasília do que propriamente os estados da região Sul), mas que, em vez de se voltar contra os fazendeiros gaúchos que se estabeleceram na região ou os paulistas que controlam os garimpos – atividade que Bolsonaro diz que já exerceu com sua família –, acaba se voltando contra figuras meio reais meio imaginárias, como o pesquisador branco que chega de longe para roubar recursos e informações. A biopirataria aqui é o grande modelo de acusação – um problema de fato bastante grave, com casos concretos fartamente explorados pela mídia local, sobretudo quando envolve alguma terra indígena –, mas acaba se refletindo na repulsa ao trabalho de antropólogos e da academia em geral. Essa postura defensiva contra as universidades e a ‘ciência’ é vista por alguns acadêmicos de forma idealizada e chega a ser celebrada como demonstração cabal da ‘agência nativa’, ou seja, a autonomia das comunidades, que reagem contra uma divisão desigual do trabalho intelectual e dos dividendos que ele gera. Ocorre que, para além dos exemplos mais estereotípicos, os próprios pesquisadores indígenas têm relatado dificuldades em ter seus projetos aceitos nas comunidades, dado o teor negativo que a palavra ‘pesquisa’ passou a carregar na região como um todo. Além disso, essa postura antiacadêmica pode estar se refletindo nos baixos índices de vacinação na região (os estados do Acre, Roraima e Amapá têm os menores índices de vacinação do Brasil , sendo a baixa adesão uma das principais responsáveis por isso ), chegando inclusive em comunidades indígenas avessas à vacina. Tudo isso, é fácil perceber, é um prato cheio para o bolsonarismo e suas teses conspiracionistas delirantes, fortalecendo sua cruzada contra a ciência e aprofundando a desmoralização das universidades enquanto instituições de pensamento, ainda que cheias de problemas.

4. Por fim, acredito que a chave para a compreensão desse fenômeno esteja também na articulação entre o modelo fundiário-econômico predatório, de destruição de florestas para grilagem de terras, que vem explodindo na região , com seu correlato na forma predatória da política atual que culminou no governo Bolsonaro (mas

que não é exclusividade deste). Lugares caóticos, onde reina a lógica do cada um por si e do salve-se quem puder (como os balneários de Santa Catarina e São Paulo em que Bolsonaro vai andar de jet-ski) parecem se dar muito bem com a figura de um fanfarrão irresponsável e barulhento, que inviabiliza qualquer tentativa de construção de comunidade ou de um modelo de ordem “de baixo para cima”. Ao contrário, produz-se a impressão que a única forma de resolver certos problemas é pela via autoritária, numa tradição política brasileira que Benjamin Moser bem definiu em seu pequeno livro Autoimperialismo e que talvez seja melhor representada hoje pela figura do General Augusto Heleno, que foi Comandante Militar da Amazônia (uma grande obsessão sua), de 2007 a 2009, e atualmente ocupa o cargo de ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República. Não à toa, Bolsonaro mira na deslegitimação dos principais líderes e representantes do movimento indígena –, visando a atingir não essas pessoas em si, mas o próprio ‘sujeito coletivo’ que chamamos de movimento indígena, sabendo que este tem grande potencial aglutinativo e transformador. Bolsonaro explora as cisões entre diferentes organizações indígenas e seus representantes , assim como as limitações dos nossos marcos legais sobre o assunto, na verdade bastante tímidos, para dizer o mínimo, quanto ao reconhecimento da autonomia dos povos indígenas. Lembremos que a Amazônia ocupou um lugar de destaque na consolidação do “protobolsonarismo” entre os militares, com a difusão de fake news que, muito anteriores às redes sociais, circulavam por e-mail ou no “boca a boca”, alardeando a internacionalização e a perda de soberania nacional sobre a floresta, resultante de um conluio fictício entre ONGs, líderes indígenas e interesses estrangeiros. Tudo isso não passava, é claro, de pretexto para que o Exército, após o fim da Ditadura, continuasse espionando a sua própria população , dando continuidade ao conceito de ‘inimigo interno’ que ainda fundamenta suas práticas antidemocráticas, e que agora têm rosto e nome.

Isso tudo demonstra que, mais do que uma identificação imediata e inescapável da região Norte com o bolsonarismo, é este que tem nela a sua figura-chave, que investe nela boa parte de sua produção simbólica, extraindo dela imagens e bordões que geram engajamento no resto do país, ainda que pouco se conheça daquelas realidades. Assim como outras questões sensíveis, como a sexualidade e os supostos “valores da família”, Bolsonaro sabe que a Amazônia exerce um incrível poder de atração sobre o imaginário dos brasileiros e sobre a identidade nacional, e por isso posiciona suas fichas ali. Talvez agora seja a hora de reconhecermos isso e reagir.

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1 Disponível em https://www.poder360.com.br/poderdata/poderdata-lula-vai-a-42-e-empata-com-a- soma-dos-adversarios/.

2 Disponível em https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2022/01/19/cientistas-e-moradores-suspeitam-de-contaminacao-no-rio-de -uma-area-conhecida-como-o-caribe-amazonico-em-alter-do-chao-pa.ghtml.

3 Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58990245.

4 Trata-se de um documento importantíssimo, contendo inúmeras denúncias de violências contra os povos indígenas reunidas em sete mil páginas, apresentado pelo procurador Jader de Figueiredo Correa em 1967 e redescoberto pelo pesquisador Marcelo Zelic em 2012, no Museudo Índio, no Rio de Janeiro: http://armazemmemoria.com.br/documento-que-registra-exterminio-de-indios-e-resgatado-apos-decadas-desa parecido/.

5 Uma reportagem independente que cobriu a “Batalha de Humaitá” pode ser lida em https://apublica.org/2014/01/batalha-de-humaita-te nharim/.

6 Disponível em https://g1.globo.com/pa/para/noticia/2021/05/27/casa-de-lideranca-indigena-munduruku-e-incendiada-por-garimpeiros -em-jacareacanga-mpf-investiga-o-caso.ghtml.

7 Disponível em https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/terra-yanomami-completa-um-mes-sob-ataques-de-garim peiros-e-sem-protecao-do-estado.

8 Disponível em https://piaui.folha.uol.com.br/arrabalde/.

9 Disponível em https://iieb.org.br/wp-content/uploads/2021/08/Ascema.pdf.

10 Disponível em https://arte.folha.uol.com.br/ciencia/2021/veja-como-esta-a-vacinacao/brasil/?origin=folha.

11 Disponível em https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2021/09/24/entenda-por-que-roraima-e-o-estado-com-menos-pessoas-totalmen te-imunizadas.ghtml.

12 Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-56433811.

13 Disponível em https://www.bloomberglinea.com.br/2021/10/17/amazonia-esta-a-beira-de-uma-inflexao-em-meio-a-grilagem-de-terras -no-brasil/.

14 Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52929263.

15 Disponível em reportagem de Josias de Souza de 2001 (https://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u23585.shtml) e artigo de Mar celo Leite de 2008 (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc0806200811.htm),

ambos na Folha de São Paulo, além do texto de Rubens Valente (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/08/teoria-conspiratoria-da-ditadura-guia-bolsonaro-na-amazonia.shtml ) também na Folha

(publicado no site do Observatório, por Monitoramento, em 24.01.2022)

AÇÕES DESTRUTIVAS DO GOVERNO FEDERAL NA AMAZÔNIA 51

Governo Bolsonaro provocou o aumento da fome e miséria

LuizAntônioNascimentodeSouza

Departamento de Ciências Sociais (IFCHS) Universidade Federal do Amazonas (Ufam) luizxixuau@gmail.com

As pessoas têm se perguntado sobre o que explica o aumento exponencial da fome e da miséria na cidade de Manaus, e na região Norte como um todo. Uma resposta lacônica poderia ser: “a culpa é do governo Bolsonaro”.

Mas por que o Bolsonaro tem culpa? Quais ações adotadas ou negligenciadas do Governo que resultaram objetivamente no aumento da fome das pessoas? Certamente não é tarefa fácil elencar todas as ações, atos e medidas do Governo Bolsonaro. Neste artigo, tentarei elencar algumas, as mais gritantes.

Primeira ação

Bolsonaro acabou com o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf).

O programa tinha como finalidade financiar a produção de alimentos consumidos pelos brasileiros, principalmente aquela parcela da população que mais dificuldade encontra para satisfazer as suas necessidades básicas de subsistência. Um programa que era central e fundamental na geração de emprego, renda e na oferta de alimentos em quantidade suficiente para regular o preço final no supermercado, garantindo que as pessoas pobres pudessem ter acesso aos gêneros alimentícios de primeira necessidade.

Deixe-me explicar: quando o agricultor planta, ele planta hoje para, se tudo der certo, colher meses depois. Veja o exemplo da mandioca: ele vai esperar nove, dez meses para colher. O arroz, vai levar, em média, cinco, seis meses para ser colhido. Raciocínio

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ECONOMIA PREDATÓRIA EXTRATIVISTA NO IDEÁRIO BOLSONARISTA

semelhante se aplica ao frango de granja, que levará, no mínimo, entre 45 e 60 dias para o abate.

O agricultor, quando começa um ciclo de produção de alimentos, precisa esperar esse tempo todo, contudo, nesse período, ele e sua família precisam comer, beber e dormir, e trabalhar na produção. Para isso, é que servia o Pronaf, para financiar o trabalho do agricultor de tal maneira que ele e a sua família pudessem se manter até a hora de colher. O agricultor familiar colhe, vende os seus produtos e paga o financiamento; e reinicia o ciclo, com um novo empréstimo. É assim no mundo inteiro. A agricultura familiar precisa ser subsidiada e financiada com juros baixos. Financiar a agricultura familiar não é apenas financiar o trabalhador rural, é financiar a alimentação para os trabalhadores do país, no campo e nas cidades.

Feito esse esclarecimento, o Governo Bolsonaro acabou com os recursos do Pronaf. O programa não tem dinheiro, então, na prática, acabou. Ou seja, sem o Pronaf, o agricultor não reúne condições de produzir; ele vai, no máximo, cultivar para o sustento familiar. O resultado da ação do Governo é a redução drástica da oferta de alimentos e isto faz com que os preços aumentem. E, subindo os preços dos alimentos, levando em conta que os salários não aumentam na mesma proporção, falta comida na mesa dos brasileiros.

Segunda ação

Bolsonaro também acabou com o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que andava casado com o Pronaf. O que é o PAA? É um programa em que o governo identifica os “preços médios” dos alimentos mais comuns, por regiões, e anuncia que os comprará, pagando cerca de 75% do preço médio. É o que se chama de “preço mínimo”.

Aquele nosso agricultor, quando colhe a sua produção, tem um problema: ele e todos os demais produtores terão disponíveis os mesmos produtos para vender ao mesmo tempo e isso derruba os preços de mercado. Em outras palavras, o agricultor não se sentirá estimulado a produzir se souber que não encontrará preços justos. Os mais velhos haverão de lembrar dos tempos em que os telejornais mostravam produtores jogando fora leite, batatas, cebolas etc., por falta de preço justo, ou por falta de preço mínimo.

O papel do PAA era antecipar aos produtores que poderiam sim produzir com segurança, pois o governo garantia o preço mínimo capaz de pagar os custos de produção e remunerar o trabalho. De

tal modo, os agricultores eram capazes de trabalhar já sabendo que teriam garantido o mercado e, por outro lado, ao comprar os alimentos da agricultura familiar, o governo estaria regulando o mercado, assegurando o equilíbrio entre oferta e procura, equilíbrio imprescindível para a garantia dos preços finais aos consumidores. Além disso, parte dos alimentos comprados pelo governo era usada para compor as “cestas básicas” doadas às famílias pobres, em situação de vulnerabilidade, entidades sociais de apoio aos moradores de ruas e idosos. E mais – a meu ver, uma das cerejas do bolo –, os alimentos também eram comprados pelo Programa Merenda Escolar (PME), que levava às escolas públicas alimentos de qualidade. Atualmente, sem PAA e PME, as escolas estão oferecendo “ki-suco” e bolacha, o que nem o maior dos eufemismos permite chamar de “merenda escolar”.

Então fica claro que, ao parar de comprar os alimentos pelo PAA, o governo causou a eliminação dos estoques e, como efeito dominó, produziu o desequilíbrio do mercado? E o desequilíbrio do mercado produz o que? Produz o aumento do preço, a escassez de alimentos, a inflação. Gera crise econômica, desemprego, fome, miséria. É uma bola de neve. Promoveu a volta do Brasil ao vergonhoso “Mapa da Fome”, do qual o país havia conseguido sair em 2014.

Terceira ação

O Governo Bolsonaro, por meio de ação direta, gerou mais miséria e fome ao promover o desmonte do programa “Minha Casa Minha Vida”. Alguns dirão que o Programa não morreu, mas apenas mudou de nome para “Casa Verde e Amarela”. Mas, os números falam por si: o orçamento, que era de R$ 1.400.000.000,00, (um bilhão e quatrocentos milhões de reais) suficientes para construir 40.000 mil casas e beneficiar diretamente cerca de 160.000 pessoas, sofreu um corte de 98%, tendo sobrado R$ 27.000.000,00, (vinte e sete milhões de reais) valor que daria para construir apenas 770 casas (28 casas, por estado) e beneficiar somente 2.800 pessoas.

Como efeito comparativo, em 2016, a previsão do Governo Dilma Rousseff era de construir 2.000.000 de casas populares, com orçamento de R$ 210 bilhões. Em 2017, após o Golpe, o Governo de Michel Temer reduziu a previsão de construção para 600.000 mil casas, com orçamento de R$ 64,7 bilhões. Até o final do seu governo, Temer não entregou sequer 200 mil casas.

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Mais do que isto, o programa de construção de casas populares tinha enorme poder gerador de empregos desde os canteiros de obras, passando pelas fábricas de cimento, ferragens, tijolos, azulejos, fábricas de móveis, eletroeletrônicos, fogões, geladeiras etc. E as famílias beneficiadas pelo “Minha Casa, Minha Vida” deixam de gastar dinheiro com aluguéis e passam a aplicar recursos na compra de produtos industrializados, serviços, lazer etc., todos geradores de trabalho e renda.

Assim, em três ações, que passaram despercebidas do grande público, o desgoverno Bolsonaro destruiu precisamente setores extremamente importantes para a geração de emprego, renda e alimentos baratos e em quantidade para garantir a segurança alimentar da população.

O quadro acima se agrava com a criminosa e entreguista política de preço dos combustíveis e outros derivados de petróleo que, nos últimos 12 meses, aumentou os valores da gasolina e do diesel em mais de 50% e do gás de cozinha em cerca de 35%. Aumentos de preços que impactam diretamente nos custos de produção e circulação de alimentos, fazendo com que, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o custo de vida das famílias mais pobres tenha elevação de até dez vezes, quando comparado com o custo de vida das famílias mais ricas.

Ou seja, o desgoverno Bolsonaro não só reconduziu o Brasil ao “Mapa da Fome”, da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), como também produziu um fato inédito: nenhuma das nações que saíram do Mapa da Fome voltaram.

Há que se considerar que o retorno do Brasil ao hall de países que compõem o “Mapa da Fome” implica em expor milhões de crianças a condições que as têm levado à desnutrição, adoecimentos, comprometimento escolar e mortes evitáveis. O resultado tem sido observado por meio do aumento da mortalidade infantil, da redução preocupante das taxas de cobertura vacinal e, ainda mais grave, da volta de doenças, como sarampo e paralisia infantil, que o Brasil havia eliminado nos anos 1990.

O que não falta nesses três anos e meio de Governo Bolsonaro são atos, ações e medidas de agir deliberados ou de omissão criminosa que provocaram o aumento da fome e miséria, o de pessoas desabrigadas e em situação de rua, de pessoas desempregadas e daquelas que foram jogadas para o trabalho informal, das doenças e da falta de assistência médico-sanitária.

Daí, há que se perguntar: como um governo tem sido capaz de causar tanta dor, vergonha e sofrimento a milhões de famílias brasileiras, famílias que Bolsonaro diz “defender”?

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O vírus, a Amazônia e a vida no capitalismo global

MarceloSeráfico

Departamento de Ciências Sociais - IFCHS Universidade Federal do Amazonas (Ufam) marcelo.serafico@gmail.com

Nos primeiros meses de 2020, duas questões distintas, mas convergentes, tomaram a cena brasileira. Uma delas tem amplitude mundial e outra é específica do país batizado com o nome de uma mercadoria, ambas sintomáticas de uma dupla tragédia cuja coincidência aponta para grandes desafios a serem enfrentados por todos os defensores de uma sociedade justa, livre e igualitária.

A primeira e nova questão tem a ver com a propagação do Coronavírus pelo mundo e com seus efeitos sobre a saúde dos cidadãos. Descoberto em Wuhan, China, no final de 2019, o vírus causador da doença Covid-19 ataca de maneira agressiva as pessoas cujo sistema imunológico está fragilizado por enfermidades pré-existentes e aquelas em que o organismo é cobrado a reagir com a mesma agressividade do ataque viral.

Passados pouco mais de dois anos do início da pandemia, são mais de quinhentas milhões de infecções registradas em todo o mundo, das quais cerca de seis milhões e duzentas mil resultaram em mortes.

Deixando de lado as hipóteses conspiratórias sobre a origem do vírus, as análises que dão conta de que esteja relacionada às repercussões da expansão da fronteira agrícola, na China, sobre as condições de vida de parte da população, são as mais prováveis. A observação, feita a propósito de outras enfermidades, revela que o desmatamento de florestas e sua substituição pela produção de monoculturas em escala industrial, ao expulsar trabalhadores dos lugares que antes habitavam e dos quais retiravam sua subsistência, obriga-os a encontrar em outras áreas e recursos – como as carnes de caça – cuja exploração permita a manutenção de sua sobrevivência. Esse processo tem levado ao contato dos

humanos com formas de vida que, inofensivas em outras espécies animais, para nós, podem ser fatais (WALLACE, 2016).

O Coronavírus, como o SARS, o H1N1 ou a AIDS, não é, portanto, fruto, puro e simples, do consumo proibido de proteínas valorizadas por determinadas “culturas”, como quiseram fazer crer alguns apologistas do “Ocidente”. Mais que isso, é expressão do modo como relações sociais locais se modificam no contraponto com processos globais.

A malária, a leishmaniose, a dengue e a chicungunha, para ficarmos em algumas bem conhecidas no Brasil e na Amazônia, são outras das enfermidades que nos chegam como desdobramento da racionalidade predominante do modo pelo qual nos apropriamos da natureza.

O Coronavírus encontrou no mercado de Wuhan os corpos nos quais pôde promover a síntese determinada pelos processos de exploração e espoliação econômica a que foi submetida parte da sociedade chinesa. Sua propagação pelo mundo é mais um emblema da dialética perversa do capitalismo global. A lógica da produção de mercadorias pariu o novo Coronavírus e este conquistou o planeta!

Uma epidemia converteu-se em pandemia graças à maneira pela qual organizamos, mundialmente, nossos modos de nos apropriarmos e usarmos a natureza.

Para minimizar o contágio do vírus, vimos sendo obrigados a nos distanciar ou isolar socialmente, expondo na arena política mundial alguns dos impasses civilizatórios da sociedade capitalista.

Como equilibrar a dinâmica econômica e a proteção da vida das pessoas? Como resguardar a integridade física das pessoas sem sacrificar ainda mais sua liberdade? Como assegurar que cada indivíduo disponha de condições suficientes para fazer frente a fenômenos “extremos”?

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ECONOMIA PREDATÓRIA EXTRATIVISTA NO IDEÁRIO BOLSONARISTA

Talvez devêssemos incluir as enfermidades derivadas da acumulação capitalista como parte dos “fenômenos extremos” desencadeados por nossos modos de apropriação e uso da natureza. Isto é, às ondas de calor e frio, aos ciclones tropicais, às secas e chuvas torrenciais resultantes do aquecimento global, deveríamos somar as doenças oriundas dos desmatamentos, do garimpo, da mineração, da agropecuária extensiva, da exploração madeireira e da pesca predatória.

Se aceitarmos essa hipótese, veremos que a destruição da vida no planeta, hoje, está intimamente relacionada às emissões de carbono na atmosfera, intensificadas pelo uso de combustíveis fósseis no processo de industrialização, e à redução da natureza em “recurso natural”, “ativo econômico” ou “fator de produção”.

O fato é que, subitamente, o mundo e a razão

que o guiava, neoliberal (DARDOT & LAVAL, 2016), foram desafiados pela realidade trágica dos hospitais em colapso, da carência de profissionais da área de saúde, da inexistência de estratégias de ação, da falta de meios para diagnosticar a doença, da morte em massa, dos corpos não velados e enterrados em valas comuns.

Claudicantes, os governos dos Estados nacionais buscaram respostas. Cada um a seu modo, negou ou aceitou a doença como um problema real. Cada um a seu modo, contribuiu para matar ou salvar vidas. Quanto maior a resistência patológica em aceitar a realidade, maior a tragédia.

Problemas guardados nos armários do poder por políticos, empresários e profissionais mais ou menos bem remunerados, voltam à cena pública, contra

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sua vontade e assombrando-os: o papel do Estado e do investimento público, a liquidação dos sistemas públicos de saúde, a desigualdade de acesso aos serviços públicos, as implicações políticas da concentração de renda etc. Uma série de temas tornados irrelevantes pelo neoliberalismo reinante voltou à cena mundial, exigindo respostas rápidas.

De fato, o que está em causa é nosso modo de produzir e reproduzir a vida. E isso não é pouco!

Há três respostas sendo formuladas por aqueles ocupados de imaginar o mundo depois da crise. Uns estão empenhados em aproveitar o momento para fazer o que se acostumaram a fazer: promover o butim do fundo público e aprofundar as desigualdades. Outros empenham-se em buscar formas de, combatendo os efeitos do vírus sobre a saúde humana, combater as práticas destrutivas da economia capitalista sobre o ambiente e as desigualdades sociais. Outros, ainda, ao fazer esse combate, têm em mente a necessidade de superação do próprio modo de produzir a vida material e espiritual que, ao fim e ao cabo, nos trouxe a essa situação.

É nesse quadro de alternativas que se colocam todas as sociedades do mundo, hoje. Suas histórias, impasses e expectativas específicas se mesclam ao desafio comum.

A sociedade brasileira experimenta os trágicos efeitos da convergência do problema sanitário e da morbidez política governamental. Aqui, a pandemia se combinou à extrema direita para produzir uma catástrofe.

Foram, até 2022, mais de trinta milhões de casos de Covid-19 notificados; mais de seiscentas mil mortes, em meio ao negacionismo patrocinado pelo Presidente da República, Jair Bolsonaro, e difundido por seus seguidores reais e robotizados.

Na Amazônia, a catástrofe é de proporções bíblicas. Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia e Roraima registram, em 2022, quase dois milhões e duzentos mil casos de infecção pelo novo Coronavírus e cerca de quarenta e cinco mil mortes.

Longe de ser entendida como uma situação pública gravíssima, a pandemia foi tratada, pelo Presidente da República e por seus ministros, como uma oportunidade de “passar a boiada”. Foi com essa expressão que o então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, propôs que a pandemia fosse aproveitada como uma oportunidade para fragilizar toda a legislação de controle e fiscalização ambiental, assim como para estimular as atividades de garimpo, mineração, desmatamento, agropecuária extensiva etc.

Ministro entre 01 de janeiro de 2019 e 23 de junho de 2021, Salles expôs seu raciocínio em reunião ministerial ocorrida, simbolicamente, em 22 de abril de 2020. E o que se viu em seguida, demonstrou a precisão de sua formulação.

Além do aprofundamento do desmonte da política ambiental, o governou federal, com ou sem a colaboração de governos estaduais da Amazônia, estimulou e patrocinou o garimpo ilegal, o desmatamento ilegal e a expansão da produção de commodities agrícolas na Amazônia.

Os resultados dessa política de morte são alarmantes: recordes de desmatamento, aumento da violência no campo, crescimento da poluição das águas e deterioração das condições de vida. Restauram-se na Amazônia padrões de espoliação e exploração típicos do processo a que Karl Marx chamou de “acumulação primitiva de capital”, isto é, o processo histórico de separar o produtor de seus meios de produção.

O avanço da extrema direita na cena política nacional corresponde, portanto, à brutal intensificação da exploração dos trabalhadores.

Pouco mais de três anos depois da posse de Bolsonaro, contabilizam-se retrocessos inegáveis em todos os setores da vida social brasileira, mas particularmente naqueles que dizem respeito aos direitos sociais assegurados pela Constituição de 1988.

Trabalhadores do campo e da cidade, povos indígenas, quilombolas, mulheres, LGBTQIA+, cientistas, professores, lutadores sociais, sem-teto e sem-terra, enfim, todos e todas, se tornaram alvos preferenciais da extrema direita organizada na sociedade civil e, a partir de janeiro de 2018, encrustada no Estado.

O candidato, que fez das mãos em forma de arma e de uma frase de inspiração nazista símbolos de sua campanha, tem demonstrado que nada do que faz ou diz tem cunho estritamente eleitoral. Não! Seus gestos e palavras expressam, realmente, o que pensa e deseja. E mais importante ainda, expressam o que pensa e deseja parcela substantiva da sociedade brasileira, desde setores que detêm, de fato, as armas políticas para alvejar a sociedade até segmentos desta já atingidos ou em vias de sê-lo.

Por isso, o desafio entre nós é duplo, pois a necropolítica e a economia da catástrofe encarnam-se de modo brutal em um governante e em uma horda de seguidores fanáticos. É preciso vencer a política de morte por eles proposta e caminhar no sentido de outra economia e sociedade.

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O Meio Ambiente na Mira do Governo Neoliberal

Vai ter guerra na Amazônia

ClaudioÂngelo

Jornalista, coordenador de Comunicação do Observatório do Clima e autor de “A Espiral da Morte - como a humanidade alterou a máquina do clima” (2016), ganhador do Prêmio Jabuti

No fim do ano passado tive o privilégio duvidoso de passar quase 20 dias viajando pela Amazônia. Desci a BR-163 de Santarém até Castelo dos Sonhos, no Pará, e, na volta, percorri a Transamazônica de Itaituba, a capital brasileira do ouro ilegal, até Altamira. Estava acompanhado de Tasso Azevedo, um dos arquitetos das políticas que levaram à queda do desmatamento entre 2005 e 2012 e, em alguns trechos, da jornalista Giovana Girardi, que cobre meio ambiente há mais tempo do que ela gosta de admitir.

Em todos os lugares, mas especialmente no sul do Pará, me senti no famigerado putsch de 7 de setembro, na Esplanada. Em Novo Progresso, cidade que come, bebe e respira crime ambiental, era difícil encontrar um estabelecimento comercial ou uma porteira de fazenda sem uma bandeira do Brasil na fachada. Adesivos do “mito” adornavam carros. Uma loja de caça e pesca exibia orgulhosa banners de “não é pelas armas, é pela liberdade”. Para andar sozinho sem despertar suspeitas, colei um adesivo de “Bozo 2022” na mochila, mas na porta do hotel Tasso logo me avisou da futilidade do esforço: “Você é a única pessoa de máscara na cidade, todo o mundo vai saber que você é de fora”.

Novo Progresso está vivendo seu grande momento. Em seus restaurantes lotados, onde uma pizza é vendida a 130 reais, em suas concessionárias de pás-carregadeiras e lojas de motosserras, em seus silos e frigoríficos, tudo recende a um lugar onde está

correndo dinheiro. Dinheiro de garimpo clandestino, de venda de terra grilada, de gado criado dentro de uma área protegida vizinha à cidade, de soja colhida onde antes era o gado e antes do gado era o grilo e antes do grilo era a mata. Novo Progresso e as vizinhas Castelo dos Sonhos (um distrito de Altamira), Trairão e Itaituba reelegerão Jair Messias Bolsonaro por larga margem em outubro deste ano.

Bolsonaro deu a essas e outras cidades amazônicas exatamente o que prometera na campanha e o que elas sempre desejaram: liberdade total. Seu governo arrancou o superego do chamado “setor produtivo” ao assegurar que o Estado, na forma do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), da Polícia Federal (PF), da Agência Nacional de Mineração e outras, não mais perturbaria o trabalho honesto e suado dessas pessoas de bem. Em janeiro deste ano, gabou-se do serviço bem-feito ao dizer que “reduzimos em 80% (sic) as multagens (sic)” no campo.

Embora a redução não tenha sido de 80% (por que Bolsonaro não mentiria sobre isso também?), todos os indicadores de desempenho do Ibama em sua gestão, ano após ano, são os piores das últimas duas décadas. O governo disponibiliza dinheiro para a fiscalização ambiental como um decoy. Enquanto a imprensa e John Kerry perseguem o fetiche dos recursos, o governo os disponibiliza, mas garante que eles não servirão para nada. O homem amazônico da fronteira ganhou segurança para fazer o que faz

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O MEIO AMBIENTE NA MIRA DO GOVERNO NEOLIBERAL

de melhor desde a década de 1970: privatizar terras públicas, incorporando sua madeira, os nutrientes de seu solo e seus minérios.

À primeira vista, Novo Progresso é a própria realização da visão de Paulo Guedes de um mundo onde o setor privado opera sem travas, sem regulações e sem o dedo do Estado. Quem chegar primeiro leva, escolhe-se entre ter emprego e ter direitos e, frequentemente, “meritocracia” se mede pela quantidade de balas no revólver. O problema é que, como toda utopia anarcocapitalista, essa também tem muito de “anarco” e pouco de “capitalista”. A economia da fronteira amazônica só prospera porque é enormemente subsidiada. A terra é de graça; os nutrientes do capim que engorda o boi são de graça; e os efeitos climáticos do desmatamento – a mãe de todas as falhas de mercado – não são abatidos do preço da arroba de carne nem da saca de soja. A conta quem paga é você a cada enchente em Itabuna, cada deslizamento em Franco da Rocha e cada seca que esgota a energia das hidrelétricas do Centro-Sul. Para os homens (porque são quase sempre homens) de bem da Amazônia, the mamata never ends. E a teta nunca foi tão generosa quanto na era Bolsonaro. E é por isso que em 2023, não se engane, a floresta vai entrar em guerra.

Com a possibilidade felizmente cada vez mais plausível de o facínora perder a eleição, o próximo presidente vai precisar fazer uma escolha muito difícil sobre a Amazônia. Pode deixar tudo como está, com a economia de metade do território entregue ao crime organizado. Ou pode intervir. E aí, o bicho vai pegar.

Porque qualquer intervenção que se faça para conter o ecocídio e o etnocídio em curso na Amazônia necessariamente terá de envolver a volta do Estado por meio de ações pesadas de comando e controle. As grandes investigações do Ibama e da PF, com prisões de funcionários públicos, apreensão de gado, embargo de fazenda de deputado e queima de equipamento de amigo de senador, terão de voltar a ser rotina. O finado Plano de Ação para a Prevenção e o Controle do Desmatamento na Amazônia, que vigorou de 2004 a 2019, vai ter de fazer um retorno triunfal. E o “setor produtivo” vai precisar voltar a ter medo de satélite.

Se o eleito for Luiz Inácio Lula da Silva, essa responsabilidade será redobrada. Em seu governo começaram a ser adotadas as medidas que levaram à queda do desmatamento (que ele próprio passou a torpedear depois, mas essa é outra história). Lula, que andou visitando os chefes de governo climaticamente conscienciosos da Europa, sabe que

um choque de gestão ambiental com drástica redução do desmatamento é a primeira medida a ser adotada para que o Brasil seja novamente aceito à mesa da comunidade internacional.

Nada disso vai acontecer com o Exército gastando meio bilhão de reais para distribuir panfletos educativos aos bandidos ou com o governo pedindo moderação à turma da motosserra. Há três anos, eles estão com a chave da adega e um passe livre no Bahamas; não serão simplesmente persuadidos a ficar sóbrios e castos só porque o filme do Brasil está queimado e o planeta está tostando. Haverá, anote, bloqueios de rodovia, passeatas, atentados a escritórios do Ibama, veículos queimados, agentes alvejados. O helicóptero do órgão ambiental incendiado, dentro de um aeroclube em Manaus, em janeiro, foi só um aperitivo do que vem por aí. Para citar apenas um exemplo, há um CAC (clube de atiradores, esse instrumento da milicianização oficial do país) sendo construído, no meio do nada numa fazenda em Castelo dos Sonhos, a 40 quilômetros de uma terra indígena. Ninguém faz uma coisa dessas num lugar desses para treinar atletas para a Olimpíada de Paris.

Haverá pressão total de prefeitos e parlamentares locais sobre governadores recém-eleitos e do “Centrão” sobre o Planalto para um enorme “deixa disso”, um acordo “com Supremo, com tudo” para mudar a legislação ambiental e “pacificar de vez” o campo. Foi esse o papo usado em 2010 para mudar o Código Florestal, em 2012, o que não apenas não pacificou coisa alguma como pôs fim ao ciclo virtuoso de queda na devastação da Amazônia.

O próximo ocupante do Palácio do Planalto terá de chegar a Brasília em janeiro com tampões no ouvido e amarrado ao mastro para não sucumbir ao canto de sereia da flexibilização das leis. Ao mesmo tempo, terá de estar preparado para uma reação violenta de patriotas armados a qualquer plano sistemático para reduzir as taxas de desmatamento. Bolsonaro pode até ir embora, mas o bolsonarismo criou raízes na floresta e não vai largar o osso fácil. Dois mil e vinte e três será um ano tenso, ruidoso e possivelmente sangrento na Amazônia.

AÇÕES DESTRUTIVAS DO GOVERNO FEDERAL NA AMAZÔNIA 61 (publicado no Blog da Companhia, em 21.02.2022)
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Bolsonaro, o ódio civilizacional contra a Amazônia e suas gentes

Departamento de Antropologia (IFCHS)

Universidade Federal do Amazonas (Ufam) linojoaokaemo@gmail.com

Oque não falta ao governo de Jair Bolsonaro são atos e omissões que mais beiram a ações destrutivas do que a governo propriamente dito.

Eles – Bolsonaro e seus aliados, ou talvez mais precisamente, seus cumplices – dia a dia se superam em impropérios, em ameaças anunciadas e em atos praticados contra a Amazônia e os demais biomas do país e suas populações.

Cada nova situação da crise nacional ou mundial é potencializada para agredir o país e a sua gente. O mais novo álibi para o ataque bolsonarista é a guerra Rússia x Ucrânia.

Em sua mais nova “criatividade” de ódio, o Presidente Jair Bolsonaro produziu o argumento de que, em consequência da guerra, vai faltar potássio, matéria-prima para a produção de fertilizantes para o agronegócio. E mais grave, que, sem agronegócio, vai faltar comida na mesa dos brasileiros. Argumento falacioso e fantasioso, mas que ganha adeptos entre os seus fantasiosos e falaciosos adeptos. Mentira sem tamanho, afinal não é o agronegócio que bota comida no prato e na barriga dos brasileiros. O agro, que só “é pop”, só “é tudo” na propaganda televisiva, bota soja e milho no cocho para a ração dos porcos criados em abatedouros na Alemanha, bota carne nos supermercados dos países Árabes, da Europa, dos Estados Unidos da América, do Japão etc. E, principalmente, bota $$ – muitos, em Dólar e em Euro – nas fortunas do agronegócio.

Enquanto os latifúndios do agronegócio imobilizam 45% das terras agricultáveis, sob o domínio de apenas 1% dos proprietários rurais, com os seus pastos para a pecuária, com enormes áreas para o cultivo de soja, arroz, milho, cana-de-açúcar e outras commodities destinadas à exportação, quem bota comida na mesa dos brasileiros é

a agricultura familiar, responsável pela produção de 70% dos alimentos consumidos no país.

O pequeno produtor rural alimenta a fome dos brasileiros; o agronegócio produz a fome do brasileiro, na razão direta que engorda os porcos que vão virar presunto e salsicha no estrangeiro e engorda, principalmente, as já gordas – mais que gordas, obesas – contas bancárias dos milionários empresários do agronegócio, sediadas em paraísos fiscais pelo mundo a fora, isentas dos impostos que pesam sobre o orçamento de todo brasileiro não ligado ao “agro pop”.

A maldita guerra na Europa – maldita, como todas as guerras – é usada como a mais nova desfaçatez retórica para abrir as terras públicas à exploração mineral. Uma insensatez desmedida, uma maldade sórdida, mais uma mentira descarada. Afinal, a imensa maioria das jazidas de potássio existentes no Brasil não está localizada em terras indígenas ou quilombolas, ou mesmo em áreas protegidas. Estão em terras já sob o domínio de conglomerados empresariais internacionais que controlam a produção mundial de fertilizantes. E mesmo estas não estão sendo exploradas, porque não há interesse empresarial para produzir os fertilizantes no país.

O falso argumento não se sustenta: para produzir fertilizantes no Brasil não é necessário alterar a legislação nacional para permitir a mineração em terras públicas. Basta explorar as reservas já cedidas em concessão e que permanecem inoperantes por não apresentarem competitividade econômica no mercado internacional. Permitir a exploração mineral em áreas protegidas não tem por objetivo viabilizar a produção de fertilizantes, tem como único propósito “abrir a porteira” – como no dizer do tristemente famoso ex-Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles – da mineração em terras públicas, sejam

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elas terras indígenas ou parques nacionais. O primeiro passo, primeiro movimento legislativo para abrir todas as terras públicas à exploração mineral, em si mesma uma prática predatória, está muito longe de qualquer parâmetro que possa indicar uma prática produtivaeconômica sustentável.

Ódio ideológico, ódio civilizacional

A guerra entre Rússia e Ucrânia serve apenas para evidenciar aquilo que já sabemos: o ódio atávico contra indígenas, quilombolas, as populações tradicionais e, principalmente, contra a floresta em pé, tomados, cada um em si e todos em conjunto, pela (i)lógica bolsonarista como signos de atraso e falta de progresso.

O ódio profundo contra os indígenas, os quilombolas, as populações tradicionais, é mais do que ódio social. É ódio patológico. Ódio ideológico.

Um ódio absoluto, não apenas por considerar indígenas, quilombolas e populações tradicionais como “primitivos”, mas porque a própria existência desses diferentes grupos humanos mostra a possibilidade de outra forma de ser enquanto pessoas, de agir enquanto sujeitos políticos e constituídos segundo outros modelos de organização social e política. Ódio ideológico que se vale da eliminação, do extermínio, do genocídio como instrumento para impor uma visão única de mundo, um mundo em que não há lugar possível para o Outro, em que não há lugar para a diversidade, em que não há lugar para o pensar e o agir coletivo. E a possibilidade de existência de um Outro diferente, de um Outro coletivo, é tudo que o autoritarismo, característico de Jair Bolsonaro e seus aliados, não admite.

O ódio predador contra a floresta, contra os mananciais hídricos, contra as reservas minerais, é mais do que ódio ambiental. É ódio patológico. Ódio civilizacional.

Um ódio irracional – como todo ódio – conformado por uma concepção utilitarista que valora os recursos naturais – terra, água, árvores, solo, subsolo – a partir do potencial exclusivamente econômico a eles associados. Ódio civilizacional que, ao tomar a floresta unicamente como espaço a ser colonizado, como natureza a ser civilizada, com pouco ou nenhum compromisso ambiental com as gerações futuras, e sem considerar de maneira mais criteriosa as afinidades imateriais e simbólicas que definem as condições socioculturais de existência em ecossistemas específicos, tem como único resultado possível a depredação ambiental e a extinção das condições sociais de vida.

Ações destrutivas

Enquanto ambientalistas e ativistas sociais falam em sustentabilidade, em compromisso com gerações futuras, em preservação e conservação da sociobiodiversidade,

Bolsonaro e seus aliados terraplanistas respondem com um projeto de exploração predatória dos recursos naturais das florestas, um projeto que, sem margem de erro, produzirá na Amazônia, e outros biomas no país, condições impróprias de vida.

Um balanço das políticas não apenas promovidas, mas estimuladas pelo Governo Federal fornece um quadro bastante negativo de atos, ações e medidas destrutivas ambiental e socialmente para a Amazônia.

Longe de apresentar um levantamento exaustivo, aqui podem ser citadas como ações destrutivas com fortes impactos sobre a Amazônia e suas populações:

- Incentivo à invasão de terras públicas, presente no discurso de Jair Bolsonaro já desde a campanha eleitoral e que se intensificou após a sua posse na Presidência da República com a promessa de legalização de ocupações fundiárias resultantes de atos ilegais e ações fraudulentas, responsáveis pelo aumento dos casos de violência e assassinatos, particularmente em terras indígenas e assentamentos rurais;

- Encaminhamento ao Congresso Nacional do chamado “Projeto de Mineração”, de interesse do Poder Executivo Federal, para regularizar a exploração mineral no país, medida que funcionou como autorização prévia para as invasões de garimpeiros e sinal verde para empresários da mineração requisitassem junto à Agência Nacional de Mineração (ANM) alvarás de prospecção e exploração mineral tanto em terras indígenas e outras áreas protegidas, como em seus entornos, o que promove os chamados “impactos indiretos”, tão destrutivos quanto os “impactos diretos”;

- Apresentação de projetos de leis e atos governamentais, nas esferas federal e estaduais, para a extinção de áreas protegidas – parques nacionais, reservas biológicas, reservas de biosfera etc. –, de modo a permitir a concessão dessas terras para a exploração privada e/ ou para implantação de programas governamentais, ao mesmo tempo de resultados duvidosos e com elevados danos sociais e ambientais;

- Opção pelo extrativismo dos recursos naturais como modelo de produção econômica para o desenvolvimento da Amazônia, decisão que vai na contramão de tudo que é defendido por economistas e ecologistas como prática para a proteção, conservação e sustentabilidade das florestas tropicais;

- Alteração das normas administrativas para o registro no Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (CAR) com a criação da autodeclaração, procedimento através do qual os próprios interessados efetivem o registro de suas intenções de apropriação e expansão fundiária, dispensando o trabalho técnico de “auditores” do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) que, antes, confirmavam ou não a pretensão de

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posse, deferindo ou indeferindo o pedido, mais um claro exemplo de “porteira aberta” para a ocupação fundiária;

- Autorização do início de obras, públicas e privadas, sem a realização de licenciamentos ambientais, com motivações claramente políticas, absolutamente ilegais que passaram a ser conceituados como “flexibilização” das exigências ambientais, termo neutro que mascara a ação criminosa e irresponsável ambiental e socialmente de autorizar o funcionamento de grandes empreendimentos, mesmo com o conhecimento prévio de impactos severos que serão produzidos ao meio ambiente e à vida das populações locais;

- Dispensa de consultas prévias livres e informadas, conforme determinam as legislações nacionais e internacionais, procedimento político-administrativo que retira das populações locais o direito de manifestar concordância ou refutar projetos e programas cujos impactos irão atingir as suas vidas e os seus territórios;

- Punição administrativa, e mesmo exoneração, de servidores de órgãos de vigilância e controle ambiental - Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) – que, no cumprimento de suas atribuições, aplicaram multas por crimes ambientais, um “recado” direto da administração Bolsonaro aos exploradores ilegais de madeira para a comercialização internacional e aos desmatadores da floresta para o agronegócio de que as suas ações estão autorizadas ou, no jargão do próprio Governo Bolsonaro, que a “porteira está aberta”;

- Desmonte das políticas públicas de controle, vigilância e proteção ambiental, através da desestruturação de órgãos públicos – Ibama e ICMBio –, que teve como resultado imediato o aumento exponencial das invasões, desmatamentos, queimadas e depredação dos recursos naturais;

- Esvaziamento das atribuições e descaracterização institucional da Fundação Nacional do Índio (Funai), que passou de agência do Estado para o tratamento das questões étnicas para a principal instância legitimadora da política anti-indígena com que o Governo Bolsonaro constantemente viola os direitos dos povos indígenas;

- Paralisação dos processos de reconhecimento e demarcação de terras indígenas e quilombolas, medida administrativa associada a propostas do Governo Federal e de parlamentares de alterações na Constituição Federal com o objetivo de obstruir a demarcação de terras indígenas e quilombolas e mesmo levar à “des-demarcação”, a anulação daquelas já oficializadas;

- Emissão de portarias, normativas e outros atos administrativos, no âmbito de autarquias e órgão públicos, como o Incra e a Funai, com a finalidade de inibir e cercear a atuação de servidores públicos no cumprimento de suas ações de vigilância, monitoramento e proteção das terras indígenas;

- Repressão e criminalização das organizações não governamentais e ativistas aliados dos povos indígenas e populações tradicionais, desestimulando a defesa dos Direitos Humanos das populações amazônicas.

Como se não bastassem tantas ações destrutivas, é notório a aliança política do Governo Federal com autoridades públicas regionais, tanto dos legislativos Federal e Estaduais, como de Poderes Executivos Municipais, sabidamente envolvidos com a indústria da mineração ilegal, da grilagem de terras e com fortes indícios de ligação com o narcotráfico.

Um projeto de morte

É impossível não reconhecer que o projeto de governo do Presidente Bolsonaro para a Amazônia, o Cerrado e o Pantanal, não é um projeto de vida, um projeto de futuro. É, ao contrário, um projeto de ódio, ódio ideológico e civilizacional, que coloca em risco tanto as populações locais como as condições de vida nestas regiões.

No projeto de apropriação econômica dos recursos naturais, adotada como programa de governo de Jair Bolsonaro, a ocupação produtiva das florestas é sinônimo de exploração predatória. Um projeto de morte para a Amazônia e outros biomas do país, que, embora não seja novidade, porque no fundo representa a atualização do programa desenvolvimentista da Ditadura Militar, é, agora, mais virulento, mais ostensivo, um projeto que tem apenas um nome novo: “ecocídio”, crime de extinção do meio ambiente e das condições de sobrevivência de todos os seres vivos.

As ações do Governo Bolsonaro inegavelmente conformam um projeto de terra arrasada. Reduzir a Amazônia, o Cerrado e o Pantanal a campos de pasto de baixa produtividade, a floresta derrubada, a árvores destruídas por queimadas, a áreas degradadas por exploração mineral predatória, sem espaços propícios à vida é o que, na concepção do Governo Bolsonaro, vem a ser “desenvolvimento” e “progresso”, justificados falsamente por “eles” como porta de entrada para melhoria do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), para “melhores condições de vida”. Na verdade, uma porta só de saída, sem volta, para uma existência ambiental e humana degradada.

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O garimpo ilegal como estratégia de extermínio dos povos indígenas na Amazônia

MárciaMariadeOliveira

Departamento de Ciências Sociais e Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Fronteiras Universidade Federal de Roraima (UFRR) marcia.oliveira@ufrr.br

No mês de abril deste ano, a notícia do estupro e a omami, no dia 26.

De acordo com as informações repassadas ao presidente do Condisi-YY, os garimpeiros levaram uma mulher e suas crianças numa canoa. No meio do rio, teriam jogado a criança de 3 anos. Desesperada, a mãe pulou para tentar salvar o bebê, mas não teve êxito. A mãe conseguiu se desvencilhar dos criminosos. Mas, a filha de 12 anos não teve a mesma sorte. Foi levada, estuprada até a morte e o corpo deixado às margens do rio.

Como ocorre em qualquer situação de morte, não importando as circunstâncias, a comunidade realizou os rituais fúnebres nos quais os corpos são cremados. Isto inviabilizou a confirmação do fato por parte de agentes da Polícia Federal e da Fundação Nacional do Índio (Funai), que foram ao local indicado para buscar o corpo e apurar o acontecido, mas não encontraram nada. Como era de se esperar, após os rituais fúnebres, a comunidade se deslocou para lugar ignorado para fugir de novos ataques. De modo especial, para proteger a única sobrevivente.

A invasão de garimpeiros nas comunidades indígenas

em toda a Amazônia tem sido constante desde a retomada do garimpo ilegal, intensificado a partir de 2018. Encorajados pelo discurso do governo federal, que vem insistindo no direito de exploração dos recursos naturais com justificativas meramente econômicas, milhares de garimpeiros invadem territórios indígenas com estratégias de controle e exploração. Os crimes sexuais contra mulheres e crianças Yanomami são estratégias utilizadas por garimpeiros para desestabilizar as comunidades e suas resistências.

Uma leitura atenciosa desse bárbaro acontecimento revela diversas estratégias de controle vinculadas ao garimpo ou para sua viabilidade. Além da violência explícita que representa a invasão garimpeira com a destruição e contaminação do território, a violência sexual é uma forma de desmoralização de toda a comunidade e representa especialmente um ataque aos homens. O sequestro de mulheres é outro código importante. Novamente estão desafiando os homens e afirmando que eles não são capazes de proteger suas famílias. Essas estratégias covardes desestabilizam a comunidade emocionalmente.

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O estupro e assassinato de uma criança é um recado de grupos que fazem do garimpo um espaço de controle e dominação. Com essa atitude, estão dizendo para os indígenas e para outros garimpeiros que quem está no comando não tem escrúpulos e é capaz de tudo para se manter no controle da atividade econômica que envolve outras atividades ilícitas além do garimpo ilegal. Especialmente o tráfico de drogas e de pessoas e a exploração do trabalho análogo à escravidão.

Outra leitura necessária é a identificação da estratégia da expulsão. Os operadores do garimpo ilegal conhecem os códigos culturais dos povos indígenas com os quais disputam espaços, desde a década de 1960, na Amazônia. De modo especial no caso Yanomami, diante de fatos como estes, de violência sexual e assassinato de crianças, se configura um forte fator de contribuição ao deslocamento do grupo violentado. A comunidade entende esses fatos como uma violação do território sagrado. Na sequência do acontecimento, o grupo tende a se deslocar para outro local a fim de recuperar a relação com o território sem a marca da morte e do sofrimento. Assim aconteceu no caso do genocídio da comunidade de Haximu, localizada na fronteira com a Venezuela, em meados de 1993.

O genocídio de Haximu é conhecido no mundo inteiro e pouco comentado no Brasil. Fundamentado na Lei 2.889, de 1º de outubro de 1956, que define e pune o crime de genocídio, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu o massacre Yanomami em Haximu como crime de genocídio e referendou a decisão do juiz federal Itagiba Catta Preta Neto, da Justiça Federal de Roraima, em 19 de dezembro de 1996. Oficialmente, o massacre bárbaro resultou na morte, a pauladas, terçadadas, tiros e pontapés, de 16 pessoas e deixou muitos feridos. Segundo os autos do processo, foram mortos quatro homens adultos, uma idosa, três mulheres adultas, três adolescentes, quatro crianças e um bebê recém-nascido. Entretanto, as narrativas dos sobreviventes indicam que pode ter ocorrido mais de 70 mortes, resultando no quase extermínio da comunidade, o que configura genocídio.

Desde o acontecido em Haximu, pouco se fez em nível institucional para a proteção dos povos indígenas e de seus territórios no Brasil. De modo especial nos últimos anos, os conflitos socioambientais envolvendo povos indígenas e garimpeiros, madeireiros, fazendeiros e grileiros têm se intensificado assustadoramente. No caso dos ataques à comunidade do Palimiú, localizada às margens do rio Uraricuera, no município de São Luiz (distante 320 quilômetros de Boa Vista), se nota que o garimpo atual não é mais como aquele da década de 1990 que quase levou ao extermínio uma comunidade inteira. Os garimpos de hoje são ainda mais perigosos para os povos indígenas porque convivem com o crime

organizado que controla, além do contrabando de ouro, o tráfico de drogas, de armas e de pessoas para o trabalho análogo ao escravo e para a prostituição, no caso do tráfico de mulheres.

As fontes que alimentam o garimpo são diversas e obscuras. No centro da cidade de Boa Vista, há vários locais de negociação de compra e venda de ouro, ligados a lojas especializadas na venda de todo equipamento para a extração de ouro. Nas lojas circulam muitas pessoas para comprar desde uma simples máscara de mergulho até moinhos, motores caríssimos, comprados à vista ou, quando o dono da loja sabe que o cliente está “em cima do ouro”, ele faz um crédito e deixa o pagamento para quando o garimpeiro voltar carregado de ouro. Esta descrição levanta, mas não aprofunda o tema da economia garimpeira em Roraima e em toda a Amazônia, vinculada ao capitalismo nefasto que coloca o lucro acima de tudo e de todos ao determinar a exploração ilegal de ouro e outros minérios priorizando somente o crescimento do mercado.

Os migrantes internos e internacionais também têm sido muito recrutados para trabalhar nos garimpos ilegais de Roraima e sofrem todo tipo de violência e exploração do trabalho. Mesmo os operadores de máquinas pesadas, reclamam de exploração do trabalho e do baixo pagamento das diárias. Absolutamente todos trabalham por diárias que nem sempre são devidamente pagas. Os garimpos de hoje são equipados com pistas de pouso de aviões, com amplas frotas de embarcações orientadas por satélites e acompanhadas em tempo real no traslado permanente de garimpeiros e equipamentos de garimpagem de alta tecnologia nos rios de médio e grande porte localizados em toda Amazônia.

Entretanto, a maior diferença entre os garimpeiros que massacraram Haximu e os que agora aterrorizam Palimiú, a comunidade Aracaçá, na região de Waikás, é o arsenal de armas. Com a facilidade existente em adquirir e portar armas compradas e vendidas em qualquer loja

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“O estupro e assassinato de uma criança é um recado de grupos que fazem do garimpo um espaço de controle e dominação.”

de materiais de pesca nos pequenos e grandes centros urbanos de toda a Amazônia, os garimpeiros exibem em seus ataques um verdadeiro arsenal de guerra que aterroriza até a bem equipada Polícia Federal.

Se em Haximu, armados com terçados e pedaços de pau, foram capazes de exterminar uma comunidade quase por inteiro, com a quantidade exorbitante de armas que atualmente possuem, se não forem evitados, os garimpeiros ilegais poderão executar massacres muito mais letais que no passado. A título de intimidação ou talvez para exibição do seu poder armamentista, os garimpeiros atiraram até mesmo contra agentes da Polícia Federal que estavam na comunidade do Palimiú, em 11 de maio de 2021.

Uma semana depois do acontecido na comunidade Aracaçá, a mídia local e os meios de comunicação ligados às redes sociais começaram a circular discursos falaciosos colocando em dúvida o acontecimento e jogando a população contra os povos indígenas. Isso não é novidade na tensa relação com os povos indígenas. Os discursos de desqualificação desses povos são reproduzidos no Brasil desde os sangrentos tempos da colonização. As estratégias de intimidação e deslegitimação dos povos indígenas de hoje são as mesmas dos colonizadores. A diferença é que os meios

utilizados para sua disseminação são infinitamente mais eficazes e mais rápidos que há 500 anos atrás.

Além disso, as instituições encarregadas da proteção dos povos indígenas não levam em conta os códigos culturais como a cremação dos corpos nos ritos fúnebres. O que faz com que neguem o crime pela ausência do corpo. O negacionismo, aliás, se reproduz intensamente na mídia oficial que se deixa enganar ou se vende aos políticos locais, redes de comerciantes ligados ao mercado do ouro ilegal e ao controle do tráfico de armas, drogas e pessoas. Todos os dias, mulheres e meninas/crianças indígenas são aliciadas ou raptadas.

Neste momento tenso e conflituoso, se torna necessário saber mais sobre o que aconteceu em Haximu, conhecer a covardia e a crueldade do massacre de idosos, mulheres, crianças e recém-nascidos que tiveram seus corpos esquartejados e espalhados pela floresta, entender por que este crime foi reconhecido como genocídio, para nos posicionarmos como sociedade, em defesa dos povos indígenas e de suas lutas e evitar que novos genocídios ocorram nos conflitos com garimpeiros, especialmente na Amazônia.

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Educação Como Negócio

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“A crise da Ciência e Pesquisa no Brasil é um projeto”: os impactos das restrições

Recomposição orçamentária emergencial da Capes demonstra a falta de prioridade e compromisso com os recursos

Após o “apagão” do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnoló gico (CNPq), que deixou cientistas sem acesso à plataforma Currículo Lattes no mês de julho de 2021, iniciou-se, em outubro, um novo retrocesso para a área de Ciência e Pesquisa no país.

É ainda surpreendente a tímida visibilidade dada pela imprensa ao corte de 92% dos recursos destinados à ciência pelo governo Bolsonaro e suas implicações futuras, que ameaçam, inicialmente, o Edital Universal da agência de fomento à pesquisa CNPq, considerado um dos mais relevantes do país, além da suspensão de pagamento dos bolsistas dos Programas Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid) e Residência Pedagógica.

Esse novo capítulo se estende agora com esforços da comunidade acadêmica e parte civil para a imedia ta recomposição orçamentária, e que, se não realizada, prevê cenários assustadores para a pesquisa no contex to nacional.

Em 7 de outubro, a Coordenação de Aperfeiçoa mento de Pessoal de Nível Superior (Capes) divulgou uma nota de esclarecimento no site governamental re lativo ao atraso dos pagamentos dos bolsistas vincula dos aos programas Pibid e de Residência Pedagógica, no qual informou que os pagamentos seriam realizados nos próximos dias, sem precisar uma data específica.

Como justificativa, a nota explica que “os recursos necessários já foram liberados pelo governo federal,

restando, entretanto, a necessidade de aprovação do Pro jeto de Lei 17/2021, que já está em trâmite na Comissão Mista de Orçamento do Congresso Nacional”.

Além de se tratar um completo desrespeito com os bol sistas, pela ausência de verbas e de planejamento com esta categoria, a recomposição orçamentária emergencial do programa demonstra a falta de prioridade e compromisso com os recursos da educação, pesquisa, docência e ciência. Não há previsão oficial de recomposição do orçamento, assim como não há data prevista para a votação.

Ao sancionar lei que retira R$ 690 milhões dos recursos voltados para pesquisa no país, coloca-se em risco também o futuro da agência de fomento à pesquisa CNPq.

A alteração no orçamento ocorreu a pedido do Minis tério da Economia, de forma que os recursos foram realo cados para a produção de radiofármacos, remédios usual mente utilizados no tratamento de pacientes com câncer e que se encontram com produção parada por ausência de verba.

É importante ainda observar que o corte dos recur sos foi encaminhado pelo próprio governo, com a altera ção do Ofício do Projeto de Lei do Congresso Nacional (PLN) 16/2021, composta pelos ministros da Economia e da Secretaria de Governo e que liberaram os valores de R$ 690 milhões ao CNPq. A alteração realizada no PLN 16/2021 manteve apenas os recursos do Instituto de Pes quisas Energéticas Nucleares (Ipen), que totalizaria o valor de R$ 63 milhões.

É de espantar, contudo, que no meio de uma pande

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AngelinaMoreno Faculdade de Ciências e Letras (Araraquara) Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp)
EDUCAÇÃO COMO NEGÓCIO

mia mundial, em que as palavras “vacina”, “imunização”, “pesquisa”, “variante” e a expressão “imunidade de re banho” tenham agora se tornado parte do nosso léxico diário, ao mesmo tempo não se cobre as discussões sobre reajustes e investimentos públicos de pesquisa, em um momento tão fundamental de nossa história contempo rânea.

Talvez esta ausência apresente algumas fundamen tações que não são amplamente questionadas quando discutimos sobre investimentos públicos, como, por exemplo, a defasagem dos valores das bolsas e o que elas significam de forma prática.

Lembremos que a remuneração intitulada como “bolsa”, vinculada ao pesquisador e aos programas de fomento à pesquisa das universidades, pode dar a ilusão de que estamos falando de um privilégio concedido a es tudantes com a finalidade que eles estudem.

A realidade é que a bolsa se trata de uma solução do governo federal para comprar força de trabalho bem qualificada e de forma barateada, ao invés de oferecer um salário com direitos trabalhistas. As próprias bolsas de iniciação científica, que há muitos anos apresentam valores desatualizados com a inflação galopante brasilei ra, não são condizentes para a atuação de dedicação ex clusiva, requisitada pelas agências de fomento à pesquisa.

Considerando a ausência de reajustes periódicos dos fomentos oferecidos para a área de pesquisa, é preocu pante como os pesquisadores do país são tratados com tanto descaso. Atualmente, as principais bolsas de inicia ção científica orbitam entre os valores de R$ 400 a R$ 695, a depender da agência de fomento (se vinculada ao CNPq ou à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado).

Fato é que, apresentando vínculo que requer dedi cação exclusiva, a bolsa de iniciação científica ilustra em valores e em termos práticos, o nível de precarização que os pesquisadores se encontram no país em um mo mento que essa área nunca foi tão importante. Contu do, culpabilizar apenas a imprensa na tratativa de mais um capítulo lamentável no desmonte da Ciência do país é inadequado. Outra parcela reside na letargia e sem ba rulho de mobilização (ou mais especificamente, na falta dela) de uma classe de trabalhadores que não apresenta cultura de reivindicação e de ação coletiva.

O trabalho de pesquisa é construído em sua maioria no âmbito solitário, nas bibliotecas, laboratórios e revis tas científicas, no ambiente acadêmico para os pares de área, sem transpassar os muros das universidades, e que raramente constrói uma ponte de conscientização sobre suas práticas e resultados com a sociedade civil.

O silêncio dos pesquisadores, que observam estu pefatos o desmoronamento de seus direitos e insumos

serem cortados, deve-se a um coletivo que precisa pagar aluguel, cuidar de suas trajetórias acadêmicas, atualizar com cuidado seus Currículos Lattes com certificados, publicar em revistas de alto padrão científico, mas sem publicizar os bastidores de suas condições de trabalho precarizado e necessidades individuais que há muito não são contempladas.

Embora tenha sido realizada uma paralisação de ati vidades em parte das universidades públicas no final do mês de outubro, o alcance da mobilização é pontual para o tamanho da categoria afetada e seus efeitos a longo prazo.

Considerando o número de bolsistas vinculados aos dois programas concomitante, estima-se que 60 mil pro fessores foram afetados em todo o país pelo não paga mento de suas respectivas bolsas. Após atravessar uma pandemia, em que os investimentos de Ciência e Tecno logia (C&T) demonstraram-se essenciais para a área de pesquisa e produção de vacinas, o contexto brasileiro vai de contramão às tendências de investimentos mundiais em Pesquisa e Educação.

Segundo relatório da Organização das Nações Uni das para a Educação (Unesco), entre os anos de 2014 a 2018, a porcentagem de investimento do Produto Inter no Bruto (PIB) brasileiro em ciência oscilou entre 1,26%, enquanto a média mundial esteve com 1,79%. Com as novas sanções e cortes, estima-se que a verba destina da para Pesquisa, Ciência e Tecnologia apresenta apenas 0,00069% percentuais de investimentos do PIB.

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As próprias bolsas de iniciação científica, que há muitos anos apresentam valores desatualizados com a inflação galopante brasileira, não são condizentes para a atuação de dedicação exclusiva, requisitada pelas agências de fomento à pesquisa.”

Além do retrocesso dos investimentos na área de pes quisa que compromete a manutenção das bolsas vigen tes, somente a chamada universal do CNPq, lançada no início de setembro, previa a utilização de R$ 250 milhões para pesquisadores de todas as áreas.

Os cortes orçamentários também ameaçam a criação do Centro Nacional Vacinas, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), voltado principalmente ao com bate da Malária, Covid-19, Zika, Chikungunya, Dengue e Leishmaniose. A expectativa era a de que com a cria ção desse centro fosse possível realizar uma produção nacional de insumos, sem necessitar importar vacinas de laboratórios estrangeiros.

Em um país que apresenta mais de 600 mil mortos por Covid-19, fora os números de vítimas subnotificadas, e que uma parcela significativa passou a procurar comida no lixo e implorar por restos de ossos em frigoríficos, afetados pela inflação e níveis de desemprego recorde, o avanço de uma nova onda pandêmica poderia afundar ainda mais economicamente o contexto nacional, que de pendeu, em grande parte, no último ano e meio de pan demia, enormemente de laboratórios estrangeiros para importar e fabricar insumos de vacina, Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), e máscaras PFF2.

No dia 8 de outubro a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a Academia Brasileira de Ciências (ABC), a Associação Nacional de Pós-Graduan

dos (ANPG) e a Academia Nacional de Medicina (ANM) publicaram nota informando que estavam tomando to das as “medidas cabíveis” para impedir o trâmite de des vio dos recursos, e na qual alegam que a retenção de re cursos da Ciência para a quitação da dívida pública seria um trâmite ilegal.

Complementar a este contexto, R$ 2 bilhões do Fun do Nacional de Desenvolvimento Científico (FNDCT) continuam sem destino, o que descumpre a Lei Comple mentar nº 177/2021. Nesse sentido, Renato Janine Ribei ro, diretor da SBPC, ainda afirma que “o Brasil precisa de ciência, precisa de tecnologia, precisa de inovação, preci sa de educação. E é inaceitável que os recursos destina dos para o setor sejam desviados para outras funções, à revelia da legislação”.

Parafraseando a citação de Darcy Ribeiro, “a crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto”, e ser ve também para nos alertar que a retirada dos recursos de fomento à pesquisa no país faz prelúdio a consequências desastrosas na saúde pública e no projeto nacional de au tonomia da pesquisa. Para não somente citar a soberania nacional na produção de vacinas, insumos e manutenção da pesquisa em laboratórios, no plano individual, tam bém ceifam sonhos e carreiras, nos desprotegendo de forma significativa para uma próxima pandemia.

(Publicado originalmente no Brasil de Fato, em 12.11.2021)

A resistência da educação do campo contra os retrocessos em um governo neoliberal

PatrícioFreitasdeAndrade

Instituto de Natureza e Cultura (INC/Benjamin Constant) Universidade Federal do Amazonas (UFAM)

Esse texto busca refletir sobre o cenário brasileiro nos últimos seis anos, a partir da perspectiva de resistência da educação no campo contra os ata ques políticos ideológicos, ocasionando retroces sos culturais, sociais e, principalmente, educacionais que vem cada vez mais assolando as populações tradicionais da Amazônia e do Brasil. essaltar inicialmente sobre a intensificação da educação no campo, que ocorreu a partir de meados da década de 1990, quando se intensificaram as lutas dos Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) por traba lho, saúde, infraestrutura, melhores condições de vida no campo e educação. No ano de 1998 ocorreu a 1ª Confe rência Nacional por uma Educação Básica do Campo, momento em que se considera o nascimento oficial do Movimento Por Uma Educação do Campo, que envol veu diversos grupos organizados, pesquisadores e uni versidades, numa articulação que visou o melhoramento das primeiras séries do Ensino Fundamental e iniciando a construção de políticas educacionais para os sujeitos do campo. Uma conquista para a população do campo, prin cipalmente da Amazônia, local de muitas singularidades.

Para o Decreto nº 7.352, de 4 de novembro de 2010, população do campo são os agricultores familiares, os extrativistas, os pescadores artesanais, os ribeirinhos, os assentados e acampados da reforma agrária, os trabalha dores assalariados rurais, os quilombolas, os caiçaras, os povos da floresta, os caboclos e outros que produzam suas condições materiais de existência a partir do traba lho no meio rural.

O texto é resultado de um estudo com caráter qua litativo, procede de pesquisa bibliográfica e documental, utilizando como técnicas de coleta de dados estudos so bre o tema, reportagens noticiadas por sites e análise do cumental em legislações educacionais, políticas públicas e outros registros voltados ao desmonte da educação do campo, com ataques aos direitos constitucionais dessas populações.

A educação do campo no cenário contemporâneo e seus retrocessos

Muitos avanços político-educacionais foram conquis tados mediante a luta dos movimentos sociais e parcei ros, mas Santos nos afirma que o golpe midiático-jurídi

76 Resistências
patricio@ufam.edu.br
EDUCAÇÃO COMO NEGÓCIO
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co-parlamentar, em 2016, e a eleição do atual presidente, em 2018, alteraram definitivamente as condições políticas objetivas e subjetivas que deram origem e sustentaram as políticas de Educação do Campo e comprometeram sua continuidade1.

As investidas para a desestruturação das escolas do campo pelo governo atual começaram em sua campa nha eleitoral, quando afirmava que iria fechar as escolas do campo e que o MST era uma organização crimino sa, como afirma uma reportagem no site BRASIL DE FATO:

Desde a campanha eleitoral, o atual presidente já ata cava as escolas do campo afirmando que iria fechá-las. Em entrevista à revista Veja, o secretário especial de As suntos Fundiários, Luiz Antônio Nabhan Garcia, afirmou que pretende fechar as escolas do Movimento dos Traba lhadores Rurais Sem Terra (MST), e chamou as escolas públicas do campo de ‘fabriquinhas de ditadores’. Além disso, o governo qualificou o MST como organização cri minosa e defendeu o direito de os fazendeiros utilizarem armas de fogo quando tiverem suas propriedades impro dutivas ocupadas.

ral de Educação do Campo e Cidadania do Instituto Na cional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). O que se percebe com esses desmontes é que o governo traba lha em prol do agronegócio, do sistema capitalista, passa a ver a educação como negócio, colocando nas mãos das empresas a responsabilidade do ensino. Isso, mais do que nunca, é o fortalecimento do neoliberalismo que assola não somente a Amazônia, mas o Brasil como um todo.

O movimento atual das contradições da realidade em que vivemos inclui o confronto às investidas ostensivas e insanas de inserção direta das escolas públicas no “cami nho usual dos negócios ”. A escola na contemporaneida de passa a ser conhecida como empresa educacional, pois o sistema neoliberal injeta informações que hibridizam a educação na tentativa de capitanear os humanos (for mar capital humano profissionalizante), na acumulação primitiva de conhecimento. São nomenclaturas confi guradas pelo neoliberalismo: gestão pedagógica, gestão escolar, entre outros termos. Para Laval, “o modelo es colar e educativo que tende a se impor cada vez mais está fundamentado, inicialmente, na sujeição mais direta da escola à razão econômica ”.

Também houve cortes nas verbas orçamentárias des tinadas à educação como um todo, seja para o Ensino Básico ou Superior, aumentando ainda mais o descaso contra as populações tradicionais da Amazônia, sucate ando/dificultando o acesso ao ensino. Os recursos finan ceiros eram destinados para despesas de custeio e manu tenção, visando à garantia do funcionamento e melhoria da infraestrutura física e pedagógica dos estabelecimen tos de ensino do campo.

3

Após a posse do presidente, os ataques foram mais incisivos contra a educação para os povos do campo, como diminuição de recursos do Programa Nacional de Educação em Reforma Agrária (Pronera) e sucateamen to das universidades públicas. Uma regressão político -social, aumentando ainda mais os índices de exclusão educacional, principalmente na parte rural da Amazônia. Para Silva, Rodrigues e Silva, o Pronera foi resultado de grandes lutas dos movimentos sociais do campo articu lados a movimentos sindicais e universidades. Consoli dado em 1998, o programa tinha o principal objetivo de garantir os Ensinos Básico e Superior aos assentados de reforma agrária.

A extinção do Pronera faz parte de um dos pacotes para desestruturação das políticas sociais voltadas para os trabalhadores rurais. O governo atual é obstinado a man ter a educação na mão da propriedade privada, resultan do no aumento de concentração fundiária, da pobreza de muitos e enriquecimento de poucos, ou seja, o governo é a favor do capitalismo.

Também houve o desmonte/exclusão de organismos que atuavam diretamente em prol da educação do campo, como a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetiza ção, Diversidade e Inclusão (Secadi/MEC), a Comissão Nacional de Educação do Campo (Conec), órgão cole giado cuja finalidade era auxiliar o Ministério da Educa ção na formulação, implementação e acompanhamento da política de educação do campo, e a Coordenação-Ge

O que acarreta com estes cortes é a diminuição de novas escolas ou até mesmo de reformas, afeta os gastos com transporte que são de fundamental relevância nos rios da Amazônia. Se já há falta de materiais nas escolas do campo, com esses cortes vai aumentar ainda mais a precarização, como também afetará a merenda escolar.

Fica evidente que a educação do campo é um alvo político-ideológico do governo atual, que não se preo cupa em aplicar uma proposta pedagógica que possa atentar para as características locais, muito pelo contrário busca desestabilizar e desvalorizar o agricultor familiar e seu direito de ter acesso a uma escola com currículo próprio, conectando seus conhecimentos locais aos uni versais. Todo esse processo de desconstrução de políti cas públicas educacionais para as populações do campo tem um significado voltado para a economia, ou seja, é a prospecção do neoliberalismo.

Ressaltando que esse pacote neoliberal

o viés de

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tem
2 5 6 4

fortalecimento da economia, hibridiza a educação como negócio, enfraquece e desestabiliza a educação do campo na Amazônia. Pois, vivemos em uma região que as estra das são os rios e florestas, que nossas crianças percorrem todos os dias para terem acesso à educação.

Prazeres e Carmo corroboram afirmando que:

Esse é somente um aspecto da realidade rural amazôni ca, outros aspectos também se apresentam com bastante in tensidade e dificultam cada vez mais o cotidiano dos sujei tos do campo. Entre eles podemos citar a precária condição estrutural em que as escolas funcionam, algumas vezes em barracões comunitários, onde as condições físicas não favo recem a aprendizagem, a escassa oferta de material didático e pedagógico, a delicada oferta do transporte escolar e falta de formação dos docentes, o currículo deslocado da realidade local. São alguns dos aspectos que torna a educação do cam po na Amazônia, carente de políticas públicas educacionais que deem conta de contemplar sua realidade complexa e he terogênea.

Pode-se inferir com total convicção que esta região amazônica com suas riquezas naturais, culturais, étnico -raciais está sofrendo com os ataques aos direitos consti tucionais dos sujeitos do campo, direitos estes que estão sendo negados pelo governo e que vão contra os princí pios da Constituição Federal de 1988, quando esta afir ma em seu artigo 205 que a educação é um direito do cidadão, portanto é dever do Estado e da sociedade fazer com que seja igualitária e de acesso para todos.

Uma das condições de manter a educação para a po pulação do campo é na resistência coletiva, afirmando seu legado histórico, sua produção agroecológica contra o agronegócio e construindo redes de diálogo, a fim de não esmorecer suas forças e sim aumentar, para juntos cons truir futuramente uma educação do campo de qualidade para os sujeitos que ao longo da história brasileira sempre receberam políticas públicas de inferioridade.

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1SANTOS, Clarice Aparecida. A educação do campo e o fim das políticas públicas como as conhecemos: questões para reflexões de futuro. Revista de Políticas Públicas, São Luís, v.23, n.2, p.501-13. Disponível em: https://doi.org/10.18764/2178-2865.v23n2p501-513. Acesso em: 10/03/2022.

2MOREIRA, Anelize. Proposta de Bolsonaro para educação no campo está alinhada com o agronegócio. Brasil de Fato. 2019. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2019/03/28/proposta-de-educacao-no-campo-de-bolsonaro-esta-alinhada-com-o-agronegocio. Acesso: 20 jun. 2020.

3SILVA, Maria do Socorro Pereira da; RODRIGUES, Jusandra dos Santos; SILVA, Taynara Fernandes da. Marcos regulatórios da política de educação do campo: atualidade do Pronera e Procam po no governo Bolsonaro. Congresso Internacional e Congresso Nacional Movimentos Sociais & Educação, v.1, n.1, 2021. Disponível em: http://anais.uesb.br/index.php/cicnmse/article/viewFi le/10073/9879. Acesso em: 12/03/2022.

4OLIVEIRA, Karla Emanuele Rodrigues. O que significa o fim do Pronera para o povo. Brasil de Fato. 2020. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/02/27/o-que-significa-o-fim-do -pronera-para-o-povo. Acesso: 10 mar. 2022.

5CALDART, Roseli Salete. Função social das escolas do campo e desafios educacionais do nosso tempo. Aula Inaugural do curso de Licenciatura em Educação do Campo, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Campus Litoral, realizada em 9 de março 2020 (informação verbal).

6LAVAL, Christian. A escola não é uma empresa: o neoliberalismo em ataque ao ensino público. Londrina: Editora Planta, 2004.

7PRAZERES, Maria Sueli Corrêa dos; CARMO, Eraldo Souza do. Educação do campo e políticas públicas na Amazônia: desafios e possibilidades. 2011. Disponível em: https://www.anpae.org.br/ simposio2011/cdrom2011/PDFs/trabalhosCompletos/posters/0104.pdf. Acesso em: 22/03/2022.

(publicado originalmente no Brasil de Fato, em 12.11.2021)

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Uma Reportagem

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Exemplar

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Garimpo ilegal é praticado por parceiro do ex-presidente do ICMBio

opresidente da Confederação Nacional de Mineração (CNMI), o empresário Bruno Cezar Cecchini, foi indiciado ao lado de outras 14 pessoas físicas e jurí dicas pela Polícia Federal de Goiás por supostamente chefiar uma organização criminosa para exportar ouro ilegalmente do Brasil para a Europa. Cecchini, con forme revelado pela agência Pública, atua na CNMI junto ao ex-presidente do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), o coronel aposentado da Polícia Militar de São Paulo, Homero de Giorge Cerqueira, que se apresenta como diretor da entidade. A confederação foi registrada na Receita Federal neste ano e afirma atuar em defesa dos inte resses dos grupos garimpeiros para regularização do garimpo em áreas protegidas.

A partir de análise de imagens de satélite e con sulta a processos minerários da Agência Nacional de Mineração (ANM), a Pública também encontrou in dícios de atividades de garimpo em áreas requisitadas por Bruno Cecchini e uma cooperativa de garimpei ros ligada a ele, a Coopermix Gold (Cooperativa Mi neral da Bacia do Tapajós de Itaituba), dentro da Área de Proteção Ambiental (APA) do Tapajós, criada pelo Governo Federal em Itaituba, no sul do Pará.

Em março deste ano, Cecchini e o coronel Home ro participaram de uma audiência pública que discutiu propostas para a regularização da atividade garimpei ra no interior da APA do Tapajós. Ela é a Unidade de Conservação (UC) mais afetada por extração de ouro irregular no país, segundo estudo da Universida de Federal de Minas Gerais (UFMG). De acordo com o estudo, foram nove toneladas do minério extraído ilegalmente só entre 2019 e 2020.

Apesar de não constar no quadro societário da Coopermix Gold, há registros em vídeo nos quais Cecchini se apresenta como presidente da cooperati va. Além disso, a filha e a esposa do empresário estão entre os sócios formais da cooperativa, sediada em Itaituba.

Procurada pela Pública, a defesa do empresário Bruno Cecchini e de seus familiares afirmou que: “as matérias veiculadas tratam apenas de elementos de informação, que não passaram pelo filtro do Ministé rio Público Federal (MPF) e muito menos da Justiça Federal, pois não existe sequer denúncia oferecida”. O empresário e seus familiares também disseram à reportagem que “negam veementemente a prática de qualquer ilícito e em caso de eventual existência de ação penal rebaterão a tempo e modo todas as acusa ções.” A defesa do empresário não quis dar entrevista

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Jornalistas da Pública, a primeira agência de jornalismo investigativo sem fins lucrativos do Brasil
UMA REPORTAGEM EXEMPLAR

pelo fato da investigação da Polícia Federal correr em sigilo. Cecchini também não se manifestou sobre os indícios de garimpo no interior da APA do Tapajós apurados pela reportagem.

Garimpo ocorre há anos na APA do Tapajós

O garimpo que Cecchini e a CNMI buscam lega lizar na APA do Tapajós já aconteceria há anos den tro da área de proteção. A Pública analisou imagens de satélite e encontrou registros que indicam ativida de garimpeira em áreas que foram requisitadas por Cecchini e pela Coopermix. Há imagens, até mesmo de 2014, que sugerem que o garimpo já acontece na região há bastante tempo, antes mesmo dos pedidos serem protocolados na ANM.

Um exemplo é uma grande área no limite leste da APA, em direção à fronteira de Itaituba com o muni cípio vizinho de Novo Progresso. Lá, há uma mancha requisitada pela Coopermix para lavra de ouro, cas siterita, columbita e tantalita em 2020 e que avança em trechos da unidade de conservação. A autorização para garimpo da ANM saiu apenas em outubro de 2020, porém, a Pública encontrou imagens que indi cam garimpo no local desde 2014.

De acordo com dados públicos consultados pela reportagem, a autorização da Coopermix, válida até 2025, já trouxe lucros. Mais de 312 quilos de minério de ouro foram extraídos da área correspondente ao tí tulo só no ano de 2021. O metal foi vendido somente a duas empresas: a F’D Gold e a Carol DTVM. Am bas respondem a ações civis públicas do MPF no Pará por exploração ilegal de ouro. Aos questionamentos da Pública, o representante da Carol DTVM respon deu que não tem “conhecimento desse fato” e que vai “verificar para acionar nossa área competente”. Já a F’D Gold não deu retorno.

O garimpo não é necessariamente proibido em APAs: atividades econômicas são permitidas e devem seguir as diretrizes e regras estabelecidas pelo plano de manejo, caso exista – o da APA do Tapajós ainda não foi concluído. Além disso, para funcionar legal mente, o garimpo precisa da Permissão de Lavra Ga rimpeira (PLG) concedida pela ANM, que, por sua vez, depende de uma Licença de Operação (LO). De forma geral, segundo a Lei Complementar 140/2011, a LO deve ser emitida pelo estado, que pode delegar a tarefa ao município no qual o empreendimento se localiza, conforme ocorre em Itaituba.

Como a APA do Tapajós é de domínio federal, a Secretaria Municipal de Itaituba deve receber o aval do ICMBio antes de conferir as licenças, o que, se gundo apuração da Pública, não aconteceu no caso da PLG em nome da Coopermix. A assessoria de imprensa do ICMBio confirmou que nunca emitiu nenhuma ALA – Autorização para o Licenciamento Ambiental – “para atividades de PLG dentro da APA do Tapajós”, o que indica que a LO e posterior per missão da Coopermix foram conferidas sem a anuên cia do órgão ambiental federal. Questionada, a ANM admitiu que, em processos desse tipo, não cobra a autorização do ICMBio antes de outorgar as PLGs “por entender que tal atribuição compete ao órgão ambiental licenciador”.

Diversos pedidos de mineração de Cecchini pas sam por alguma área da APA do Tapajós – todos eles protocolados num período de menos de dois anos. Em abril de 2020, em um intervalo de dez dias, o em presário protocolou 11 pedidos de lavra garimpeira que incidiram em trechos da APA. Em maio de 2021, foram cinco pedidos de pesquisa de ouro. Já a Coo permix Gold protocolou dez pedidos de lavra garim peira na região em março do ano passado, e uma em novembro do mesmo ano.

A esposa de Bruno, Claudia Rosa Cecchini, por sua vez, também cadastrou pedidos de mineração na ANM que passam por algum trecho da APA do Tapa jós. Foram cinco requerimentos de lavra nos dias 9 e 10 de março de 2021 – pouco antes dos requerimen tos da Coopermix, que aconteceram no dia 11.

Barras de ouro apreendidas em aeroporto levaram polícia a Cecchini

A investigação que terminou com o indiciamen to de Bruno Cecchini começou após uma apreensão realizada em junho de 2019 no Aeroporto Santa Ge noveva, em Goiânia. Na ocasião, 111 kg de ouro em barras foram apreendidos em malotes escondidos no banco de uma aeronave monomotor. A partir de in dícios colhidos naquele dia, a PF começou a voltar os olhos para o empresário Bruno Cecchini.

No dia da apreensão, a PF prendeu os dois ocu pantes da aeronave: o piloto Danilo Jorge Fulanetti (posteriormente liberado) e o único passageiro da quele voo, José Celso Rodrigues Silva. José é ligado a Bruno Cecchini em outras empresas, inclusive na própria Coopermix, da qual é diretor e parte do qua dro societário. O registro das marcas da aeronave (PT-RIX) apontou que ela pertencia à empresa RJR

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Minas Export Eireli, uma extratora e negociante de produtos minerais. À época, a RJR tinha em seu qua dro societário Julia Leão Cecchini, uma das filhas de Bruno, e o próprio José Celso Rodrigues Silva, o pas sageiro preso em flagrante.

Quando foram ouvidos, Julia e José Celso fornece ram à PF elementos que teriam formado a convicção dos policiais de que era Bruno o operador, de fato, da RJR. Alguns elementos da investigação, que corre em sigilo, tornaram-se públicos a partir de manifestações do MPF e da PF que apareceram em decisões da Jus tiça Federal.

Segundo o inquérito da PF, Julia Leão Cecchini, quando foi ouvida, embora constasse no quadro so cietário da RJR, afirmou que “nada sabe sobre a em presa e o transporte do ouro apreendido, nem tam pouco conhece José Celso Rodrigues, apesar de ele também figurar no contrato social como sócio, asse verando, ao final, entretanto, que seu pai administrava a empresa mencionada [a RJR]”.

José Celso, por sua vez, “esclareceu que foi o pai de Julia, Bruno, quem lhe ofereceu para abrir uma empresa de venda de ouro em nome do declarante e de sua filha, auferindo 0,5% do lucro obtido, não sabendo onde o ouro era adquirido, mas tinha co nhecimento que era destinado à cidade de São Paulo para o refino e, em seguida, remetido para a Europa”.

José Celso também complementou em seu relato à PF “que, em 2017, Bruno disse que passaria a empresa para o nome de Julia, tendo em vista a maioridade alcançada.”

Para a PF, “tanto Julia, como José Celso, apenas emprestaram seus nomes para constar no contrato social da empresa, ocultando o real proprietário que é Bruno Cezar Cecchini, o qual admitiu efetivamente administrar a empresa, constituída em 2017.”

O próximo passo da PF foi buscar a origem do ouro apreendido em Goiânia. A fonte declarada seria uma lavra em Colniza (MT), pertencente à RJR, no entanto, visitas dos policiais e imagens de satélite in dicaram que não havia sinais de mineração no local. Para a polícia, as diligências levaram à conclusão de que as notas apreendidas eram falsas.

Ligações de Cecchini com financiadores do garimpo ilegal no MT

Dois dias após a apreensão no aeroporto, a PF alega ter recebido uma denúncia anônima dizendo que o ouro apreendido vinha do município de Alta Floresta (MT) e que teria sido vendido pela empresa Texas Gold, do empresário Willian Ribeiro. Segundo a PF, “Willian possui outras cinco ou seis lojas Texas

Gold nos arredores da referida cidade, que funcionam como pontos de compra de ouro de garimpeiros clan destinos.” A denúncia afirmava que Bruno Cecchini era o comprador do ouro e que o fazia por meio de empresas das quais seria “proprietário oculto”, como a RJR e a BJR, sediadas em Goiânia e registradas no nome de suas filhas. Ainda de acordo com a PF, Bru no teria ligações com pessoas que exportariam o ouro ilegal para a Itália.

Em documentação apreendida pela PF, constava a informação de que, de fato, o ouro vinha da Texas Gold. Esta empresa mantinha, segundo a PF, um es critório em um imóvel pertencente à empresa ligada a Bruno Cecchini, a RJR. A PF afirma que, tanto o pro prietário da Texas Gold, Willian Ribeiro (conhecido como “Cowboy”), como seu irmão, Wilson Ribeiro Filho, atuam na compra de ouro ilegal, notadamente no município de Aripuanã (MT), alçado anos atrás a polo do garimpo no país, e então chamado por gru pos de garimpeiros de “Nova Serra Pelada”.

Wilson chegou a ser preso pela Polícia Militar do Mato Grosso no aeroporto de Aripuanã transportan do 6,5 kg de ouro ilegal também em junho de 2019. Na ocasião, o ouro apreendido trazia as mesmas mar cas do apreendido em Goiânia. Em outubro, Wilson foi preso novamente ao lado do irmão, Willian Ribei ro, na operação “Trype 2”, da PF, sob a acusação de financiar o garimpo ilegal no norte do Mato Grosso. Os irmãos tiveram seus respectivos pedidos de prisão preventiva revogados em janeiro de 2021.

Outro ponto em que as diligências da PF conver gem com a denúncia anônima é em relação à expor tação do ouro para a Itália. De acordo com a inves tigação, de fato, o ouro apreendido no aeroporto de Goiânia tinha como destino o país europeu. A carga já estava vendida para uma empresa goiana, com filiais em São Paulo, e de sócios italianos: a C.H.M do Brasil Metais. A carga apreendida no aeroporto de Goiânia tinha como destino São Paulo, onde seria entregue à C.H.M, para depois ser enviada à Itália, conforme de clarações da própria C.H.M prestadas à Justiça.

A C.H.M. foi, posteriormente, investigada pela Polícia Federal em outro inquérito, que apontou que a empresa comprou ouro extraído ilegalmente da Terra Indígena (TI) Kayapó, no Pará, conforme noticiado pela ONG Repórter Brasil. De acordo com dados ob tidos pela PF, o ouro comprado na TI também tinha como destino final a Itália, mais precisamente a gi gante italiana Chimet SPA Recuperadora e Beneficia dora de Metais, a 44ª empresa em faturamento daque le país. A C.H.M tem como sócios os italianos Mauro Dogi e seu filho, Giacomo. Mauro trabalhou como

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operário na Chimet entre os anos de 1990 e 1995, antes de mudar-se para o Brasil. O relatório da “Ope ração Terra Desolata”, que apontou a participação da C.H.M na compra de ouro ilegal oriundo da TI no Pará, aponta que a empresa fez transações financeiras que ultrapassam os R$ 880 milhões com a RJR Minas Export, ligada a Bruno Cecchini. O mesmo relatório aponta que a RJR fez transações no valor de R$ 100 milhões com grupos de garimpeiros ilegais do sul do Pará.

A C.H.M do Brasil Metais afirmou que “jamais adquiriu ouro extraído ilegalmente”, que “ao efetivar cada transação de compra, a C.H.M sempre solicitou das empresas vendedoras toda a documentação exi gida por lei, que demonstrava a licitude do produto comercializado” e que as exportações de ouro foram autorizadas pelos órgãos competentes. A empresa afirmou que cumpre todas as determinações legais impostas a ela e que realiza processos de verificação documental para prevenir-se quanto a compra de ouro ilegal.

As decisões da Justiça Federal consultadas pela Pública mostram que a PF ampliou as investigações sobre as atividades da RJR e apura a legalidade da comercialização de mais de uma tonelada de ouro da empresa. “Segundo informou a autoridade policial, as provas, até então reunidas no inquérito policial, demonstram que não apenas o ouro apreendido foi usurpado da União pelos investigados, mas, também,

outros mil e quatrocentos quilos de ouro, quantida de esta constante de notas fiscais emitidas pela RJR Minas Export Ltda, no período de 04/08/2019 a 22/08/2019, e transportada por meio de documen tação ‘legal’ falsa”, segundo decisão proferida no Tri bunal Regional Federal da 1ª Região. Outras empresas ligadas a Bruno Cecchini também estão sendo inves tigadas. Ao todo, ao menos dez empresas estariam en volvidas no esquema de envio ilegal de ouro à Europa segundo o MPF informou à Pública.

No dia 25 de março, a PF comunicou o indicia mento de 15 pessoas físicas e jurídicas pelos crimes de organização criminosa, usurpação de bem da União, extração de ouro sem autorização legal, receptação qualificada, falsidade ideológica e lavagem de dinhei ro, na investigação iniciada em junho de 2019. De acordo com o comunicado, “além da carga apreendi da, foi identificado pela Polícia Federal que o grupo criminoso investigado extraiu, explorou, transportou e comercializou mais de 1,5 tonelada de ouro ilegal extraída de garimpos ilegais do Mato Grosso, o que equivale atualmente a mais de R$ 457 milhões”.

Conforme revelado pelo portal Folhamax, de Mato Grosso, entre os indiciados estão Bruno Cec chini e duas de suas filhas; José Celso Rodrigues Silva; os italianos Mauro e Giacomo Dogi, sócios da C.H.M do Brasil Metais; e os irmãos e empresários mato -grossenses Willian e Wilson Ribeiro. (publicada originalmente pela agência Pública em 11.04.2022)

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