JE 607 - JUN 11

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Em Tancos e em Agosto de 1961, sob um calor de rachar, com a carreira suspensa e deslocado do meu habitat natural, a prática destes inocentes jogos florais ajudava-me a sobreviver

Antigas instalações do BST, no Campo Grande.

“O Motor do Exército Português”, Eduardo Vilarinho

aceitava, mas porque é que tinha de ser a correr? Um telefonema para Lisboa, coisa demorada e difícil ao tempo, trouxe explicação, que afinal era simples. Estava, no momento, a residir em Lagos mas a minha morada oficial, para fins militares, continuava a ser em Lisboa, em casa dos Pais. Todavia, como eles, por sua vez, estavam de férias no Algarve, a chamada da mobilização não encontrara destinatário e, por fim, graças a uma convocatória reexpedida para o Algarve, a situação ficou regularizada, fora do prazo. Não vale a pena descrever o que foi esse dia. Fiquei, desde o primeiro momento, com a ideia bem nítida que, fosse qual fosse o meu destino, não voltaria a Lagos para desempenhar as mesmas funções e que a minha carreira, por aquele lado, estava definitivamente terminada, como de facto sucedeu. A alternativa que se punha era-me completamente desconhecida: para já, apresentar-me às 9 horas do dia seguinte e aguardar ordens. Parti à uma da manhã, no fiel Dauphine. A viagem, ao tempo, durava umas seis horas bem puxadas, mais o tempo da travessia do Tejo no ferryboat de Cacilhas, e quando me sentei ao volante percebi como estava cansado e como ia ser penosa a jornada. Foi neste preciso momento, quando estava a arrancar do Café Restauração com uma restrita mas pesarosa comitiva de despedida alongando-se pelo passeio, que o João Cutileiro, que montara atelier em Lagos e começava a dar os primeiros passos naquilo que viria a ser uma carreira assombrosa, me perguntou, com o seu inimitável toque semi-negligente: - Dás-me uma boleia até Lisboa? O João foi uma extraordinária companhia de viagem porque fomos conversando o tempo todo e uma ou duas vezes, quando o sono apertava, tirávamos uma soneca breve de 5 ou 10 minutos e voltávamos às curvas, mais retemperados. Pai Cutileiro e meu Pai tinham sido colegas de curso na

Escola Médica e amigos de tertúlia literária, e, por outro lado, os arquitectos, escultores e pintores da minha geração estavam, na altura, a descobrir o Algarve e os temas de conversa eram inúmeros e espontâneos. Foi uma sorte, pensei eu. Quando avancei direito ao Campo Grande, ao encontro do inestimável primeiro-sargento Galileu, sem parar para comer ou lavar a cara, por uma Lisboa deserta - pino de Agosto às 8 da manhã − perguntei ao João onde queria que o deixasse e só então percebi todo o alcance da manobra. - Deixa-me em casa, no fim daAvenida de Roma. Vou dar um beijo à Mãe Amália, ver como estão as coisas por aqui e volto para baixo no primeiro comboio disponível. Por muitos anos que viva, nunca esquecerei gesto tão extraordinário. Marchei para Tancos, onde a balbúrdia era assinalável. Na rotina imutável da unidade tinha caído um grupo ruidoso e animado de 30 alferes, requisitados às classes mais antigas e que já tinham cumprido o seu tempo normal de serviço militar, com vista a reforçar a operacionalidade da unidade fundamental da Engenharia. Se a memória não me falha, foram oito para o Batalhão de Engenharia 3, em Santa Margarida, oito ficaram no Batalhão de Transmissões 3, no Casal do Pote, junto ao quartel de Tancos, e os restantes 14 foram colocados na Escola Prática. As instalações não estavam preparadas para esta avalanche, a messe não tinha espaço para todos ao mesmo tempo e o clarim da caserna dizia, com malícia, que houvera engano nas contas. Aparentemente (essas minúcias não chegavam aos escalões mais baixos, claro) tinham superiormente pedido uma lista de faltas e alguém raciocinara com largueza

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