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3.4 – Cidadania para a mulher negra e a questão de gênero

É uma autoestima roubada por séculos: você é ruim, você é negra, você é suja, você é fedida [...]. Um dia uma pessoa me disse: os negros são mais fedidos (Maria do Carmo).

Os encontros com estas mulheres foram marcados por muita alegria e satisfação por alguém estar dando espaço para que elas pudessem falar sobre suas histórias de vida, suas trajetórias e suas superações. Momentos mágicos que nos fizeram refletir sobre como nós, como sociedade, tratamos as nossas mulheres e, especialmente, as mulheres negras.

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Em alguns momentos, percebemos a emoção de cada uma delas ao relatar as suas experiências e situações constrangedoras, e até mesmo humilhantes, que vivenciaram durante suas trajetórias. Situações em que, ao entrar em uma loja de materiais de construção, acompanhada de amigos brancos, em nenhum momento foi abordada pelas vendedoras, enquanto que os seus amigos, assim que entraram, foram recebidos prontamente, sendo que, quem estava ali para fazer compras era ela, e não eles. Este fato é relatado pela entrevistada Maria Antonieta:

Não é sem querer gente, não existe essa de “sem querer”. O tom com que se fala. Não fui atendida na loja, parecia invisível. Antes ficava constrangida. Quem falar que não sofre preconceito, eu vou tirar o chapéu.

O que nos chama mais a atenção é o modo como estas mulheres lidaram com todas estas adversidades e conseguiram transformar estas situações em histórias que, ao contá-las acabam achando engraçados. Embora termos percebido que, apesar dessa postura positiva diante destas situações, elas guardam lembranças, mágoas e, em alguns casos tristeza, ao relembrar e, consequentemente, reviver estas situações. Isso era percebido nos olhares, nos silêncios, nas pausas, na respiração, ou seja, refletidas na imagem que estávamos “dialogando”.

3.4 – Cidadania para a mulher negra e a questão de gênero

Quando perguntadas sobre o que contribui para que a mulher negra tenha maiores oportunidades de emprego, inserção social e direitos de cidadania, a maioria das mulheres respondeu que, em primeiro lugar está a educação, formal ou informal, a qualificação profissional, a consciência de sua condição social e os fatores que lhe colocam nesta condição, além da participação em movimentos sociais. De acordo com Maria de Fátima:

E acrescenta:

A gente faz isso se associando, buscando participar dos movimentos, das associações de negros, para conhecer, para se apropriar da sua própria história, para a gente não ter vergonha da sua própria história.

Quanto mais a gente se apropria disso, busca informação, ler, vai atrás, a gente conversa, isso ajuda bastante, você sente o valor que tem.

Estes depoimentos nos revelam a importância da compreensão do processo sócio histórico da origem, da valorização da cultura negra, da sua identidade. A partir daí,

consciente do seu papel na sociedade brasileira, a mulher negra pode se associar aos movimentos negros para ter seus direitos respeitados e seu acesso aos bens e serviços garantidos. Muitos dos direitos da comunidade negra, especificamente aqueles que atingem principalmente a mulher negra, foram colocados na pauta das discussões das políticas públicas do Brasil, graças a atuação dos movimentos sociais negros que se fizeram presentes nestas discussões, como relatado no depoimento da entrevistada Maria de Fátima:

Foi o movimento negro que trouxe muita discussão para dentro das políticas públicas que são voltadas para a questão racial [...]. A base de qualquer transformação está lá, na sociedade, na associação, nos movimentos sociais, nos movimentos organizados, nos conselhos, no controle social, nos conselhos de base inclusive.

Outro dado que chamou a atenção e levanta preocupações foi o de que todas as entrevistadas atribuíram uma grande importância ao fato de que a superação das adversidades e dos obstáculos para a ascensão social depende muito da própria mulher negra. Embora todas também admitirem a existência de diversas barreiras estruturais e sociais, que se colocam no seu cotidiano, interferindo, prejudicando e dificultando o seu desenvolvimento socioeconômico e político cultural. Um dos principais fatores, depois da discriminação de gênero e de raça é a questão da autoestima.

Além disso, há a questão dos estereótipos, que deixam muitas marcas e traumas na comunidade negra. Há relatos de vítimas de piadas racistas associando o negro ao macaco, ao vagabundo, à faxineira, de que não podem comprar um carro novo e moderno, não tem capacidade de passar em concurso, de usar peruca, de que é mais fedido, e o que é pior, atribuir ao próprio negro a culpa pela sua condição, por ser o primeiro preconceituoso, de ter mania de perseguição, entre tantas outras situações às quais as mulheres negras são submetidas no seu dia a dia.

Há que se pensar em todos os processos de trabalho, na educação, na saúde, na assistência social, como enfrentar essa questão, ou seja, o humano em sua subjetividade e singularidade. É impossível desconsiderar, ou minimizar frente ao exposto neste trabalho, as marcas, os vincos deixados na mulher negra. Esse cuidado humano de fortalecê-las, pressupõem cuidar de sua dignidade, da valorização do seu ser, do seu papel, de sua feminilidade, de sua beleza, de suas diferenças, é romper com estigmas cristalizados no coração.

A gente sente que tem esse preconceito todo. (Maria José).

[...] porque o outro quer é que você seja o diferente, e o diferente para o outro é que você é inferiorizado. (Maria de Lourdes).

Deixa marcas indeléveis, da pessoa achar que não tem valor, que não vai conseguir, e aí aquilo vai trazendo, psiquicamente, uma reação que a pessoa se fecha e a possibilidade de tentar superar aquilo é mais difícil […] (Maria de Fátima).

Enfrentar essas trajetórias que representam uma realidade social brasileira que precisa ser rompida nos impõe a pensarmos nos sujeitos envolvidos nesse processo e na concretização de Políticas Públicas que caminhem para a garantia da efetivação de direitos humanos e sociais da mulher negra.

Um fato muito curioso e preocupante apontado por uma das entrevistadas é a questão do assédio moral e assédio sexual contra as mulheres negras. Maria de Fátima nos revela que:

A mulher negra sofre muito mais assédio moral e assédio sexual do que a mulher branca. A mulher negra, como toda mulher que é objeto, ela também é, acrescido ao fato da cor da pele dela.

Este dado nos revela a sociedade machista e autoritária em que vivemos, onde é preciso usar das relações de poder, do autoritarismo e da opressão para submeter as pessoas a determinados comportamentos e situações constrangedoras. Esta informação pode ser confirmada pelo estudo da professora Benilda Regina Paiva de Brito, publicado em 05 maio de 2006 que afirma:

A violência doméstica (cometida em casa pelo pai, filho, e principalmente pelo marido ou companheiro) é uma dura realidade no caso das mulheres negras. Dados preliminares do Benvinda – Centro de Apoio à Mulher da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, demonstram que, naquele município, 62% das mulheres que denunciam situação de violência são negras (BRITO, 2006).

A entrevistada Maria de Fátima ainda complementa:

Tudo isso traz problemas enormes e consequências danosas, até a questão psíquica desta mulher, que está querendo ascender socialmente, chegar a algum lugar, investir na carreira, fica comprometida.

Nesse contexto de violação de direitos há de se fazer a seguinte consideração: A instrução, a aquisição de conhecimentos, se coloca como uma das estratégias utilizadas por estas mulheres que, cada vez mais, tem ocupado mais espaços na sociedade através da sua competência e de suas capacidades que estão lhe abrindo portas para os mais diversos postos de trabalho. Isso as torna mais independentes social e economicamente, proporcionando-lhes mais autonomia para enfrentar as dificuldades impostas no seu cotidiano.

A eleição deste ano de 2010, que elegeu a primeira mulher presidente do Brasil, é uma demonstração de que alguns valores estão sendo revistos na sociedade brasileira. A presidenta eleita, no seu primeiro pronunciamento após a confirmação dos resultados, enalteceu a trabalho das mulheres e se comprometeu a trabalhar em prol das questões que afetam as mulheres brasileiras.

Aliás, as três últimas eleições para presidentes mostraram que a população brasileira, ou pelo menos a maioria, quer transformar o quadro que tem se repetido ao longo de décadas. Tem quebrado alguns paradigmas ao eleger em 2002 e 2006 um nordestino, operário, sem o ensino superior e agora mais recentemente, em 2010, uma mulher.