17 de Abril de 2009 | Sexta-feira | a
cabra | 21
17 1969 ABRIL
ENTREVISTA MANUELA CRUZEIRO • INVESTIGADORA DO CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO 25 DE ABRIL
“Coimbra deu um enorme passo para a emancipação da mulher” Manuela Cruzeiro é um dos rostos conhecidos da crise académica. 40 anos depois, fala do “papel decisivo” da mulher no maior movimento de estudantes vivido em Portugal. Por Cláudia Teixeira CLÁUDIA TEIXEIRA
odeada de livros, cartazes antigos, recortes de jornais, apontamentos e fotos de família, Manuela Cruzeiro retoma à crise de 69. Recorda o movimento como algo que lhe pertence. A ela e a muitos que por lá passaram.
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O movimento estudantil de 69 juntou centenas de estudantes. Como foi possível esta mobilização? Penso que o principal motivo terá sido a estratégia da lista vencedora para a direcção da Associação Académica de Coimbra (AAC) que fez com que a luta passasse da associação para a universidade. Foi um movimento conduzido de uma forma inteligente, de uma forma gradual, ou seja, os objectivos não eram imediatamente radicais. Não se pedia uma coisa como ‘Abaixo o Governo! Abaixo a ditadura!’. Isso estava implicado numa mudança da universidade que, entendida em todas as suas consequências, conduziria a isso. Que papel tiveram as mulheres na crise académica? Foi um papel decisivo. As mulheres vieram para a rua em plano de igualdade com os homens. Coisa que nunca tinha acontecido. Há um elemento que me parece importante, que é o facto de não sermos dadas como muito perigosas. A atenção das autoridades ia para os rapazes e nós conseguíamos coisas furando pelos espaços, com uma naturalidade e uma espontaneidade que desarmava um pouco as autoridades. Coimbra deu, em 69, um enorme passo para a emancipação da mulher. Mas não foi isso que perspectivámos. A condição feminina não se colocou a não ser numa ou outra intervenção que não foi, de todo, a intervenção do comum das mulheres. Nem pensar nisso. Até que ponto as mulheres estavam integradas nos grupos contestatários, como o IBM, os Contestas e o CONGE? Participavam. O CONGE, por exemplo, teve mulheres. Foi uma estrutura de decisão. Foram líderes incontestáveis? Talvez não. Integram, participam, mas nunca chegam ao topo. A crise académica é um momento histórico datado à esquerda e da qual não se conhece o envolvimento de mulheres ligadas à direita. Qual foi o papel delas?
A INVESTIGADORA no Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra
Foi um papel muito reduzido. Até porque a crise foi avassaladoramente de esquerda. Houve professores que ficaram na história por se terem aliado à luta dos estudantes. Também houve professoras a assumir a causa?
A MULHER NÃO OCUPA AINDA O LUGAR PARA O QUAL ABRIMOS CAMINHO Houve uma, que eu me lembre. Era a Maria dos Anjos, assistente de Ciências. Só me lembro dessa. Como funcionava o Conselho Feminino da AAC? Era marcadamente feminino no sentido mais tradicional do termo, ou seja, algo que preparava as mulheres para as tarefas tradicionalmente femininas. Era reaccionário, na nossa perspectiva. O que lá se ensinava era
puericultura, bordado, gestão doméstica. Foi sempre visto pela esquerda como uma coisa muito anacrónica. Uma mulher de esquerda não ia para o Conselho Feminino. A mulher de esquerda ria-se daquele conselho, era uma coisa ridícula. Na sua opinião, que papel desempenham hoje as mulheres na vida associativa? A mulher não ocupa ainda o lugar para o qual abrimos caminho em 69. Parece-me que há retrocessos e mais me preocupa porque acho que é com o consentimento e com o apoio dado pela própria mulher. A mulher não se sente afectada com isso, pelo contrário, sente-se muito bem com este papel. Parece-me que a mulher é muito subserviente e muito passiva, aceitando e participando até nas praxes, às vezes em situações confrangedoras. Este é um período de revivalismo acrítico, de reposição de velhas tradições que, actualmente, não fazem sentido. E já em 69 não faziam e por isso acabámos com a praxe. A Fernanda Bernarda (ele-
mento da Direcção-Geral da AAC em 1969) é um ícone, tanto para as mulheres como para quem participou na crise académica. Para as mulheres é. Sem dúvida. O papel dela foi muito preponderante. Num mundo masculino uma mulher tem algumas vantagens e a Fernanda usou-as bem. Era uma pessoa calma, serena, ponderada. Não era exaltada nem arrebatada, e isso era uma maisvalia naquele conjunto. Acha que o movimento dos estudantes na crise académica foi um passo importante para a Revolução de Abril em 1974? Foi um passo muito importante. Não quer dizer que se tenha ganho tudo. Mas todas as revoluções têm momentos assim, é um balão que enche e acaba por esvaziar. Ficámos para toda a vida implicados naquele compromisso e há um mal-estar daqueles que não aderiram. Anos depois ainda definíamos determinado elemento que não tinha feito greve aos exames. ‘Aquele foi traidor em 69’ e isso era um selo com o qual marcávamos a pessoa.
Acha que é possível, nos dias de hoje, um movimento como em 1969? Claro que não. A começar pelos objectivos de luta que não são os mesmos. Embora eu ache que as reivindicações da altura não estão alcançadas. Vocês recuaram, agora muito recentemente. As escolhas ideológicas feitas durante os anos do activismo estudantil influenciaram o seu percurso profissional? Completamente. Ser protagonista destes acontecimentos traz-me um enorme orgulho e também uma enorme responsabilidade. Escrever “Os Anos Inquietos”, com Rui Bebiano, foi uma forma de reviver a Crise Académica? Foi tentar pôr ao serviço do trabalho que faço actualmente um capital pessoal que poderia trazer uma maisvalia a esse trabalho. Foi também uma homenagem a alguns rostos pouco conhecidos da crise de 69. Porque a crise foi um colectivo de rostos imenso.