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3.2. O papel social e a legitimação da prática do grafite
O crescimento do grafite tem gerado diversos posicionamentos em relação à autorização da prática, e a forma em que a sociedade e as entidades governamentais lidam com essas questões. Enquanto o grafite se propõe como uma forma de linguagem, uma forma de expressão e de opinião livre e autónoma, o governo tenta definir as regras para seu uso, para a defesa e o cuidado da propriedade privada e do patrimônio público. Encontrar a maneira de determinar os limites para exercer a prática é um dos desafios mais difíceis, que divide a opinião da sociedade, até hoje.
3.2. O papel social e a legitimação da prática do grafite
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Os objetos carregam uma linguagem material que interpretamos em grande parte influenciados pela cultura à qual pertencemos. Do mesmo jeito, o significado, que nos transmitem as coisas materiais e as imagens, depende em grande parte da maneira em que a comunidade ou grupo do qual fazemos parte, percebe, sente e pensa a respeito.
A forma em que as diversas práticas do grafite são positivas ou negativas para um lugar, depende especialmente de quem faz essa leitura. Quem, então, é a pessoa que tem o poder de definir se uma intervenção urbana como o grafite é boaou ruim? Lyotard fala sobre o problema da legitimação, trazendo em consideração a necessidade de determinar quem é o indivíduo que tem o poder de decidir, o chamado legislador:
A questão da legitimação encontra-se, desde Platão, indissoluvelmente associada à da legitimação do legislador. Nesta perspectiva, o direito de decidir sobre o que é verdadeiro não é independente do direito de decidir sobre o que é justo, mesmo se os enunciados submetidos respectivamente a esta e àquela autoridade forem de natureza diferente. (LYOTARD, p.13).
“Duas fases de uma mesma questão: quem decide o que é saber, e quem sabe o que convém decidir?” (LYOTARD, p.14). No caso do grafite, a decisão parece uma faca de dois gumes. O grafite surgiu como uma forma de expressão subversiva, rebelde, cuja finalidade é fazer presença no espaço urbano. O mais relevante é ver a forma como grafiteiros e pichadores têm se apropriado da paisagem urbana, tela perfeita para ganhar a atenção de transeuntes e atingir o maior número de espectadores. Um caminho curto e sem burocracia, para comunicar uma mensagem da forma mais eficiente possível.
No Brasil, como já descrevemos, o grafite tem seu início mais ou menos pelo mesmo período, em São Paulo. O artista Alex Vallauri (Asmara, Etiópia, 1949 –São Paulo, Brasil, 1987)18 chegou ao Brasil, em 1965, iniciando-se na xilogravura e ganhando alguns reconhecimentos importantes, como o prêmio do Salão de Arte Jovem, em 1968. Na década de 1970, elabora xilogravuras de grandes dimensões como Boca com Alfinete (1973), uma referência à repressão da liberdade de expressão por parte da ditadura militar (Figura 14). O grafite era considerado crime pela legislação brasileira. "A própria ocupação da rua já era vista como um ato político", diz o sociólogo e curador de arte urbana Sérgio Miguel Franco.19
Figura 14 - Alex Vallauri, Boca com Alfinete, xilogravura em grande formato, São Paulo, 1973. Fonte: https://entretenimento.uol.com.br/album/vallauri_album.htm
No Rio de Janeiro, pela mesma época, a rua também serviu de cenário para expressar a repressão sentida por parte da ditadura militar. No ato conhecido como a Passeata dos Cem Mil, estudantes, artistas, religiosos e intelectuais se concentraram nas ruas do centro da cidade. Às 14h, iniciaram a passeata ocupando toda a avenida Rio Branco. O ato foi a maior manifestação de protesto desde o golpe de 1964 20 .
18 http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa9831/alex-vallauri 19 https://www.bbc.com/portuguese/internacional-38766202 enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa9831/alex-vallauri 20 http://memorialdademocracia.com.br/card/passeata-dos-cem-mil-afronta-a-ditadura
Um grafite realizado na fachada do Teatro Municipal na Praça Floriano foi feito como forma de protesto, com a frase “Abaixo a ditadura – Fora ditadura” (Figura 15). Durante a marcha, o grupo pediu a libertação de estudantes presos, mais verbas para as universidades e mais vagas, o fim da censura e a reabertura do restaurante Calabouço.21 O registro da imagem do jovem grafitando representou não só um momento icônico da luta para o fim da ditadura, mas também a ação do grafite como ferramenta de expressão popular, para ganhar a visibilidade de que precisava. A frase é lembrada pelas gerações que viveram na época da ditadura; uma representação desse momento histórico em que o povo demonstrou seu desejo de acabar com a repressão que atingia o estado.

Figura 15 - Jovem escreve na fachada do Teatro Municipal do Rio durante a passeata de 26 de junho de 1968. Fonte: https://grafitearte.wordpress.com/historia-do-grafite/
Outras frases e ações de intervenção nos muros da capital carioca destacamse por ter ganho um espaço dentro da memória social-coletiva, além de sobressaírem pela diversidade de enquadramentos propostos pela questão da pesquisa. Os casos apontados aqui servem de exemplo de como são diversas as opiniões e julgamentos sobre o grafite e as intervenções dos espaços urbanos e como elas não são estanques – tanto que muitos dos grafiteiros e artistas de rua que, hoje em dia, são reconhecidos, começaram fazendo seus trabalhos de forma livre e não autorizada, pelos muros do espaço público.
21 memorialdademocracia.com.br/card/passeata-dos-cem-mil-afronta-a-ditadura