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Coluna:

O CENTRO DE MEMÓRIA DE REALENGO E PADRE MIGUEL NO CONTEXTO DA CRISE DA MEMÓRIA SOCIAL. Por Jordany Mouzer de Souza

O

presente texto refere-se ao trabalho de busca por um princípio orientador da organização documental no Centro de Memória de Realengo e Padre Miguel (CMRP). Organização esta que vem se desenvolvendo graças ao trabalho dos professores Fernando Gralha e Marta Nogueira, que contam com a colaboração de equipe de graduandos das Faculdades Simonsen, cuja dedicação e eficiência são indiscutíveis. O trabalho empreendido vincula-se também ao Projeto de Iniciação Científica das Faculdades Integradas Simonsen, do qual faço parte, em parceria com o graduando bolsista Allan Oliveira e sob a orientação do prof.º Fernando Gralha.

conservar informações encerradas em si mesmas, mas sobretudo desempenha o papel de recuperá-las e reutilizá-las. Chegamos, assim, à necessidade de empreender uma breve consulta conceitual também da comunicação – o que faremos mais adiante –, já que as informações com as quais a memória trabalha estão em constante movimento.

Comecemos com a consideração de que o termo “centro de memória” pressupõe uma busca conceitual do fenômeno da memória social. Sumariamente, memória, lato sensu, caracteriza-se por arquivar e conservar informações, e pela qual “o homem pode atualizar impressões ou informações passadas”. A partir desta conceituação, compreendemos que ao lidar com a memória lidamos inevitavelmente com informações, mas não de modo estático, retidas no interior de um espaço arquivístico; a preservação da informação ocorre para garantir um outro estágio do processo: a atualização. Assim, não cabe à memória apenas

A arquivística, ou arquivologia, é o campo especializado do conhecimento que dispõe de “princípios e técnicas a serem observados na produção, organização, guarda, preservação e utilização dos arquivos”. Basicamente, o trabalho de gestão arquivística segue duas orientações distintas: o princípio de pertinência – princípio segundo o qual os documentos devem ser classificados com base em sua espécie, isto é, em seu “conjunto das características físicas de apresentação, das técnicas de registro e da estrutura da informação e conteúdo” –; e a organização com base no princípio de respeito aos

Outro aspecto a se considerar relaciona-se estritamente ao trato com o documento. Quando tratamos de organização de acervo documental entramos necessariamente no campo da arquivística, revestindo-se, pois, o referido trabalho num estudo interdisciplinar.


G N A R U S | 55 fundos, ou princípio de proveniência – princípio segundo o qual deve-se, na gestão documental, manter todos os documentos gerados por uma mesma pessoa, entidade, empresa etc. reunidos em um mesmo fundo ou arquivo, isto é, em um mesmo conjunto de documentos cuja origem remonta o mesmo contexto de relações sociais. A organização do acervo contido no CMRP deve privilegiar o método baseado na distribuição e classificação por espécie documental? Ou o princípio de respeito aos fundos deve orientar tal trabalho? O posicionamento perante essas duas orientações foi a problemática central ao redor da qual seguimos com o a pesquisa. A segunda opção se mostrou mais favorável ao desenvolvimento de nosso trabalho por motivos de princípios historiográficos, que não exporemos aqui devido ao pouco espaço, e pela configuração da realidade social em vigor, esta sim objeto de um breve comentário.

o grande volume de informações, sobretudo imagéticas simulam o real com formas hiper-reais”. Segundo Josep Fontana, “virar as costas para a história nesse momento é uma atitude suicida. Queiramos ou não, a história está presente em nosso contexto e é uma das fontes mais eficazes de convicção, formação de opinião em matérias relativas à sociedade”. Dentro do “paradigma emergente”, compreendemos que o termo “atitude suicida”, utilizado por Fontana, atitude à qual a indiferença em relação à história corresponderia, significa que o referente “momento” abriga um ambiente em que a opinião pública, ou melhor, a opinião do público a respeito das coisas públicas, encontra-se em desgaste, a ponto de correr “risco de morte”. Corroborando a ideia de Fontana, diz Eric J. Hobsbawm (2010):

“A destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas – é um A atual conjuntura dos fenômenos mais apresenta características característicos e lúgubres às quais não devemos do final do século XX [e deixar de estar atentos e início do século XXI]. que se refere a Quase todos os jovens de problemas enfrentados hoje crescem numa entre passado e presente, espécie de presente isto é, entre o homem contínuo, sem qualquer contemporâneo e o relação orgânica com o tempo que o precedera. passado público da época Esse momento, ao qual em que vivem. Por isso os Ana Lúcia Aranha chama historiadores, cujo ofício é de “paradigma lembrar o que outros emergente”, esquecem, tornam-se mais importantes que nunca compreende, entre outros elementos, a “explosão no fim do segundo milênio [e início do terceiro]. Por demográfica e a crescente urbanização”, bem como um esse mesmo motivo, porém, eles têm de ser mais culto à tecnologia e a comunicação eletrônica que simples cronistas, decorrente, o que Anúncio no Jornal "A Voz de Realengo" (Acervo do CMRP) memorialistas e desembocou na atual compiladores.” cultura da informação. Em seu aspecto negativo, essa cultura poderia, segundo a autora, “homogeneizar e descaracterizar culturas tradicionais, bem como alienar e massificar, quando predomina o consumo passivo da informação sem crítica”, gerando uma “espetacularização” da vida social, “na medida em que

Em conformidade com essas ideias, Pierre Nora afirma que a memória social encontra-se em estado de exiguidade, traduzido na ruptura com o passado. Daí a identificação da sociedade, para com os “lugares de


G N A R U S | 56 memória”, que têm o potencial de exercer sobre os indivíduos uma sensação de continuidade em relação ao passado. A exiguidade referida, por sua vez, seria resultado do “fenômeno bem conhecido da mundialização, da democratização, da massificação, da mediatização”. Os lugares de memória seriam “restos” do passado, e portanto vestígios, “pistas” desse passado. Seriam o que sobreviveu e se pereniza de uma outra época para o presente, presente este que carece desses “lugares” porque não mais dispõem da memória “natural” – digamos – do homem (manifestada, por exemplo, em cantigas, poesias, orações etc.), ou porque a mesma não suporta mais o volume de informações que a sociedade contemporânea produz. Os lugares de memória, vestígios do passado, revertem a lembrança do passado em história, por fazer o papel mediador entre o presente e tal passado, tornando este inteligível para aquele. Conforme já se expôs, a definição do conceito de memória concebe o entendimento de uma dinâmica de informações, o que caracteriza um processo comunicacional. Ao pensarmos a comunicação, devemos concebê-la como fenômeno necessário à interação social. Segundo Dante D. Bessa, “para que a comunicação seja possível é preciso produzir, codificar, transmitir mensagens que possam circular entre as pessoas, para que sejam interpretadas, se tornem comuns e possam ser trocadas e compartilhadas, criticadas e questionadas”. A comunicação se faz, segundo Bessa, através de um canal mediador e pressupõe a garantia de acesso informacional. Em 18 de novembro de 2011, foi sancionada a lei 12.527, que assegura o “direito fundamental ao acesso à informação”. No entanto, o fato de que seja assegurado tal direito e que de certa forma haja uma disponibilidade de suportes informacionais não denota necessariamente que se têm apropriado das informações deles decorrentes e as tenham convertido em conhecimento significativo e útil para a sociedade em questão. Milton Santos, por exemplo, chamou atenção para o fato de haver uma concentração e recepção setorizada de informações, havendo um “favoritismo” de certos receptores em relação a outros. Promover a acessibilidade é operar para a facilitação do acesso à informação contida na documentação arquivística. Facilitação defendida pela própria Associação dos Arquivistas Brasileiros, nos seus “Princípios Éticos do Arquivista”: o profissional

arquivístico “tem o dever de facilitar o acesso aos arquivos ao maior número possível de usuários, atendendo a todos com imparcialidade”. Tais considerações se situam no contexto das reivindicações em direção à democratização da informação, contexto no qual tal democratização tem o papel de propiciar condições para que os indivíduos, na recepção informacional, convertam tais informações em conhecimento que lhes seja beneficente. Nesse sentido, as instituições sociais sob a competência das quais se coloca o trabalho de promover práticas comunicacionais, “que (…) sejam cada vez mais justas democráticas e acessíveis”, são as unidades de informação. Segundo Costa,

“São consideradas unidades de informação, portanto, organizações ou setores que têm por objetivo atender às necessidades de utilização, geração e transferência de informação de determinada área, oferecendo informações que possam agregar valor às atividades desenvolvidas no contexto em que se inserem. A principal finalidade de uma unidade informacional é articular a relação entre as diversas fontes de informação e as pessoas, considerando seus perfis e necessidades sob a influência de certos ambientes.” Assim, as unidades de informação desempenhariam um trabalho de asseguramento da comunicação, esta compreendida conforme a definição de Bessa. Seria o canal mediador a que nos referimos, articulando a relação entre o emissor e o receptor da mensagem. Por sua vez, um “centro de memória”, como instituição responsável por atualizar o passado, isto é, por intermediar a relação entre a informação referente ao passado e o receptor de tais informações situado no presente, comunga dos elementos característicos do processo comunicacional e portanto das unidades de informação. Centro de memória é lugar de memória e unidade de informação, e cumpre o papel de democratizador da mesma, promovendo a sua dinamização. Portanto, o “paradigma emergente”, que tem como um de seus aspectos mais marcantes, e de maior interesse de intervenção para o estudo em questão, a “destruição do passado”, promovida pelos elementos já citados que constituem esse paradigma, necessita de uma postura ativa e significativa dos historiadores e demais profissionais do conhecimento, postura essa


G N A R U S | 57 que se traduza numa prática mediadora entre tal conhecimento (no caso específico em questão, a memória da comunidade dos bairros de Padre Miguel e Realengo) e a sociedade, beneficiária desse conhecimento. O CMRP é, e não deve deixar de ser, um agente mediador da relação entre sujeito – o pesquisador que se utilizará da documentação deste centro de memória – e objeto – a documentação e, portanto, a informação histórica contida no mesmo espaço de memória. Isto significa que o trabalho de gestão arquivística em um centro de memória deve seguir em direção à facilitação do acesso ao seu conteúdo informacional e não simplesmente à guarda e preservação de “objetos antigos”. Facilitação viabilizada por uma vigorosa interferência, da parte dos intelectuais envolvidos, no processo de reconstrução do passado ao qual a

informação arquivística se remete e não por meio de uma postura passiva, de uma falsa e ingênua ideia de não interferência. Pois o “documento/monumento”, como objeto a ser decodificado, só fornece informações à medida em que é estabelecido um diálogo entre o mesmo e o seu sujeito. E se é traçado como objetivo a “formação de opinião”, conforme defendera Fontana, objetivo situado na direção oposta de homogeneizar, alienar e massificar, compreende-se que a repulsão entre opinião e passividade desemboca inevitavelmente na necessidade de interferência. Jordany Mouzer de Souza: É graduado em História pelas Faculdades Integradas Simonsen. Pesquisador do Centro de Memória de Realengo e Padre Miguel e Bolsista do Programa de Iniciação Científica das Faculdades Integradas Simonsen.

Para saber mais:: BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Arquivística - objeto, princípios e rumos. São Paulo: Associação dos Arquivistas de São Paulo, 2002. DUCHEIN, Michel. O Respeito aos Fundos em Arquivística: princípios teóricos e problemas práticos. Arquivo & Administração. Rio de Janeiro, abr. 1982. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Edições Vértice, 1990. MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. A crise da memória, história e documento: reflexões para um tempo de transformações. In: SILVA, Zélia Lopes da (org.). Arquivos, patrimônio e memória: trajetórias e perspectivas. São Paulo: Editora da UNESP: FAPESP, 1999.

Original da peça "As Levianas" de Affonso Schimidt, 1924. (Acervo do CMRP)


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