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Artigo

A HISTORIOGRAFIA E SUAS DESCONTINUIDADES: CRIANDO PONTES ENTRE PETER BURKE E MICHEL FOUCAULT Por Odenício Junior Marques de Melo

Introdução

ciência. Rüsen entende a Teoria da História como

A

“sendo aquela reflexão mediante à qual o

s reflexões em torno dos conceitos de História, Historiografia e Teoria da História são partes importantes na

construção de uma perspectiva sobre as maneiras de olhar para o passado. Pois o passado se constitui de um conjunto de fatos, todavia, a forma como o compreendemos mostra se produzimos História (em termos da ciência História) ou não. Jenkins diz que o conceito de História “constitui um dentre uma série de discursos a respeito do mundo.” (2007, p.23). Ao pensar no termo História, surgem inúmeras possibilidades semânticas. Óbvio, trata-se de um termo que carrega consigo a força de algo que faz parte da condição existencial do ser humano: o passado. É necessário arriscar uma delimitação sobre os conceitos de História, Historiografia e Teoria da História, e assim tentar estabelecer uma base metodológica sobre essa área do conhecimento. E, dessa forma, pensar no saber histórico como

pensamento

histórico

se

constitui

como

especialidade científica.” (2001, p. 26). Segundo Barros a Teoria da História é “o encontro entre historiografia e ciência.” (2001, p.85, v.1). Essa discussão é bem ampla, porque a reflexão sobre História é mais que um reconhecimento da mesma como uma ciência que estuda o passado. Há uma pergunta gritante de Marc Bloch, que ultrapassa a linha do tempo e continua a reverberar em nossos dias: “Como, sem uma decantação prévia, poderíamos fazer, de fenômenos que não tem outra característica comum a não ser não terem sido contemporâneos, matéria de um conhecimento racional?” (2001, p. 52). Com esse questionamento, Bloch

nos

mostra

um

personagem

muito

importante na construção do saber historiográfico, deixado de lado por outras correntes teóricas da história: o historiador, com seus questionamentos e intuições. Não é uma produção neutra, o


G N A R U S | 82 “a obtenção do conhecimento histórico empírico a partir das fontes, pela aplicação de métodos, orientase, por princípio a tornar-se historiografia. [...] Originada nas carências de orientação e enraizada em interesses cognitivos da vida prática, a ciência da História assume funções de orientação existencial.” (2001, p. 34).

historiador é protagonista na construção desse saber. A tentativa de se estabelecer uma compreensão sobre o que é História, Teoria da História e Historiografia em lugar de nos dar respostas fixas, nos impulsiona a horizontes mais amplos tão ricos

Nessa imensidão de possibilidades que a Teoria

de perspectivas, que somos levados a fazer novas

ou Teorias da História trazem, pode-se pensar com

perguntas. Burkhardt mostra uma espécie de

Heller que

assombro que é esse encontro com a História, “que

“Há diversos tipos de teorias: umas mais particulares e outras mais genéricas. Os historiadores podem fornecer uma teoria que diga respeito a determinado evento, a uma série de eventos, a um período, ao desenvolvimento de instituições segundo um entrecruzamento cultural e assim por diante.” (1993, p. 176).

desespero nos causa nosso primeiro contato com os estudos históricos!” (1962, p. 24). Ao lidar com essa área do saber o pesquisador se encontra diante de um campo extremamente vasto, marcado por algumas metodologias. Outrossim, a despeito de tal diversidade de conteúdos e abordagens, existem possibilidades de se

reconhecer

certos

caminhos

para

o

desenvolvimento de pesquisas nessa área. A Teoria da História e a Historiografia, então, podem auxiliar a lançar olhares específicos diante do todo que representa a História. Rüsen (2001) reconhece que os pontos de partida para a reflexão sobre os fatos da História ocorrem na dimensão dos interesses e aproximações que fazem parte da subjetividade do pesquisador. Esses interesses irão gerar os pontos norteadores para o direcionamento da pesquisa, na medida em que um assunto provoca outras descobertas e assim sucessivamente.

Portanto, há uma pluralidade de perspectivas quando se trata de História, Historiografia e Teoria da História. Um dos motivos que fazem da História uma ciência tão fascinante é essa relação dialógica entre múltiplos métodos, e a possibilidade de abertura a outros olhares. De acordo com cada tempo, a Historiografia faz movimentos de desconstrução de alguns métodos e experimenta renovadas percepções. Há uma proximidade com o que o ser humano se torna em cada tempo, as mentalidades direcionam as formas de produzir o saber histórico. Fazer História nesse sentido é a capacidade de dar significados, criar rumos. Muito mais que repetir ou descrever, em nosso tempo tem mais

O olhar historiográfico sempre parte de algum

importância

hermenêuticos,

ou

utilizar seja,

a

instrumentais capacidade

de

local, orientado por uma série de pressupostos e

interpretar e relacionar fenômenos e fatos

inquietações, que carecem de linguagens que

históricos,

fundamentem sua busca. Surge daí a necessidade

Historiografia é uma produção cultural que produz

de uma Teoria da História, ou Teorias da História,

relações de sentido, está para além de uma ciência

que serão esse conjunto de referenciais que

descritiva. E isso não invalida seu caráter científico,

nortearão

agir

pois existem fronteiras nas ciências em níveis de

historiograficamente, é atribuir significados aos

possibilidades de interpretação de fatos, não

fatos, como nos relata Rüsen

explicações partindo dos fatos em si.

a

pesquisa.

Pensar

e

produzindo

assim,

sentido.

A


G N A R U S | 83 No desenvolvimento do pensar a História e a Historiografia surgiram ao longo do século XIX duas formas de se pensar a cientificidade da História, que são: o Historicismo e o Positivismo. “A oposição fundamental entre Positivismo e Historicismo dá-se em torno de três aspectos fundamentais: a dicotomia Objetividade/Subjetividade no que se refere à possibilidade ou não de a História chegar a Leis Gerais válidas para todas as sociedades humanas; o padrão metodológico mais adequado à História; e a posição do historiador face ao conhecimento que produz.” (BARROS: 2014, p. 65).

Ao tentar esboçar então, uma tentativa de mapeamento das Teorias da História e da Historiografia chega-se a conclusão de que se está diante de um campo muito vasto e abrangente, com inúmeras possibilidades de abordagens. O objetivo do presente texto é abrir então, um diálogo entre dois importantes autores que deram uma enorme contribuição para a Historiografia Contemporânea, e que com suas obras ajudaram a redimensionar o

O Positivismo pode ser brevemente caracterizado como um método que tenta pensar a História a

olhar para a História: Peter Burke e Michel

Foucault.

partir dos pressupostos teóricos científicos naturais, e em sua perspectiva antropológica o ser humano tem uma dimensão de imutabilidade, que pode ser descrito a partir de um padrão, tal qual as ciências naturais o faziam nesse tempo. A História era extensão de certa forma, dos métodos descritivos naturalistas. Há um distanciamento entre o historiador e o objeto de pesquisa. Já o Historicismo não se propõe a estabelecer leis

Peter Burke e a história da cultura Peter Burke nascido em 1937, na cidade de Stanmore, Inglaterra. É um dos mais influentes historiadores em ação. Autor de uma vasta obra, começa sua carreira acadêmica na Universidade de Sussex. Essa Universidade na década de 1960 era um lugar marcado por um forte desejo de renovação,

era

um

ambiente

de

muitas

de caráter geral para definir o ser humano, já se

inquietações intelectuais, sem medo de questionar

percebe a instabilidade do ser. O fato histórico não

os parâmetros estabelecidos (BARROS in MORATA

como algo a seguir leis invariáveis, como nas

2014, p. 225).

ciências naturais. E não se nega a proximidade entre o historiador e o objeto de pesquisa Uma clássica frase proferida aproximadamente em 1830 expressa o que representa a Historiografia daquele período: “a tarefa do historiador era apenas mostrar como realmente se passou.” (RANK

apud CARR: 1996, p. 44). Ainda seguindo o que mostra Carr ao apontar as características percebese que “os fatos estão disponíveis para os historiadores nos documentos, nas inscrições, e assim por diante, como os peixes nas tabus do peixeiro. O historiador deve reuni-los, depois leva-los para casa, cozinha-los, e então servi-los da maneira que o atrair mais.” (1996, p. 44).

Peter Burke


G N A R U S | 84 Desde 1979, Burke é professor na Universidade

Em primeiro lugar, a História Cultural não é uma

de Cambridge, onde tem atuado em pesquisas na

perspectiva isolada no todo da Historiografia e

área de História da Cultura e desenvolve estudos

Teoria da História.

sobre Historiografia. Entre os anos de 1994-1995

acredito – que a História Cultural seja a melhor

trabalhou como professor visitante na Universidade

forma de História. É simplesmente uma parte

de São Paulo.

necessária do empreendimento histórico coletivo.”

A obra de Peter Burke se direciona por inúmeras temáticas, no entanto, ele gosta de se identificar

“Não defendi aqui – não

(BURKE, 2005, p. 163). Esse diálogo cria pontes para novos olhares, o acaba enriquecendo o fazer

como historiador da cultura. Um artigo da History

História. Em outras Historiografias deixa-se de lado

Today aponta para algumas características de Peter

questões populares, que eram fatos, com toda uma

Burke em sua obra como historiador, "seu infatigável deleite em procurar ligações. Sua paixão é construir pontes - entre línguas, culturas,

estrutura de significados, inclusive para a compreensão de acontecimentos maiores, havia então, essa deficiência.

períodos, lugares, metodologias, disciplinas - e

Outro aspecto importante é a possibilidade de

então atravessá-las, com vistas largas, para ver o

levar em consideração os símbolos e as construções

que existe do outro lado". (PALLARES-BURKE, 2000,

humanas, diante dos fatos analisados. A História

p. 109).

ultrapassa a simples reconstrução do passado de

A partir da análise de algumas obras de Peter Burke vamos tentar esboçar um breve mapa conceitual sobre a História Cultural. A forma como Burke entende a função dos historiadores é um indício do que pode ser encontrado em suas obras, “[...] existem para interpretar o passado para o presente. São um tipo de intérpretes, de tradutores, de tradutores culturais.” (PALLARES BURKE, 2000, p. 118). Segundo Burke “não há concordância sobre o que constitui História Cultural.” (BURKE, 2000, p. 13). Na construção do termo, existe uma confluência de duas áreas extremamente amplas. Já falamos acima sobre os conceitos de História, Historiografia e Teoria da História, e percebemos que essas conceituações são bem complexas; e ao conectar História a Cultura faz com que os horizontes entrem em estágio de plena expansão. Alguns aspectos precisam ser levados em consideração na construção de uma breve compreensão sobre a História Cultural.

maneira descritiva. O conceito de representação é central na História da Cultura. Ele permite o pesquisador ter a percepção de que alguns textos e/ou imagens, estão como possíveis reflexos ou imitação da realidade social. (BURKE, 2005, p. 99). Os símbolos, seus significados e utilizações são importantes na construção dessa História. Os avanços a partir desse conceito geraram significativas transformações na forma de fazer História. Ao pesquisar relatos de locais diferentes, como por exemplo, refletir sobre a História a partir da classe operária no livro de Thompson, por exemplo, as historiografias de gênero feministas, entre outros. Assim com a História Cultural e a questão das representações e símbolos “os historiadores

tornaram-se

cada

vez

mais

conscientes de que pessoas diferentes podem ver o ‘mesmo’ evento ou estrutura a partir de perspectivas muito diversas.” (BURKE, 2005, p. 101).


G N A R U S | 85 O conceito de hibridismo aparece nas obras de Burke,

como

fazendo

nova

seriam as grandes narrativas que teriam condições

configuração da História. Que é uma espécie de

de responder por algo tão complexo e vasto como

conexão

“Os

o passado, pelo fato de serem visões marcadas por

historiadores também, inclusive eu mesmo, estão

uma história oficial que desconsiderava outros

dedicando cada vez mais atenção aos processos de

deslocamentos de visão sobre os acontecimentos.

encontro, contato, interação troca e hibridização

“O que era considerado imutável é agora encerrado

cultural.” (BURKE, 2003, p. 16). É imprescindível

como uma ‘construção cultural, sujeita a variações,

aprofundar e ampliar a compreensão sobre o

tanto no tempo como no espaço.” (Burke, 1992).

entre

parte

identidades

dessa

e/ou culturalmente constituída.” E também, não

culturais.

conceito de cultura. Ao citar Michael Kamenn, Peter Burke, a partir de uma linguagem da antropologia, o conceito de cultura possibilitaria a ‘reintegração’ de diferentes abordagens à História. (1992, p.37).

os

complexidades. Não é feito de forma direta. Febvre (1989),

um

paradigmas

da

Historiografia,

sobretudo do século XIX, enquadravam o construção do saber histórico a partir de uma perspectiva tradicionalista, agora, a partir da percepção que se (re)significa e (re)orienta os caminhos da Historiografia, a Nova História se desestrutura as metanarrativas. Essa Nova História, “é um universo que se expande e se fragmenta.” (BURKE, 1992, p. 9). Anteriormente os cânones históricos versavam, sobretudo, sobre política e economia. O modelo historicista (análise de documentos ‘oficiais’ sem ouvir outras versões

dos

precursores

dessa

Nova

Historiografia acreditava que uma das maiores contribuições

Fazer História Cultural é transpor fronteiras. Enquanto

O acesso ao passado é envolto de inúmeras

que

os

Annales

deram

ao

pensamento historiográfico, era “a crítica dos fatos enquanto realidades substanciais.” A História Cultural reconhece que não é possível delegar a História o reconstruir o passado tal como acontecera, com precisão e exatidão venais através de uma descrição documental vista de cima. O que os críticos da nova escola começaram a denominar a Historicismo Historizante. (BARROS, 2012, v.5, p. 77 s. s.). O historiador deveria pensar em seu objeto de pesquisa, a partir de perguntas, referenciais teóricos a partir do presente. Ele está inserido dentro de um contexto, e o problema que o impulsiona a pesquisa está conectado à essa

sobre o mesmo fato; ou seja, imparcialidade

situação,existe um termo alemão que elucida: Sitiz

ilusória). Essa perspectiva tinha como referencial

im Leben1.

Leopold Von Rank, que no século XIX levantava discussões políticas; narrativas de acontecimentos; a visão ‘de cima’; suas fontes eram documentais; os questionamentos padronizados e eram estudos supostamente objetivos. Em contrapartida, a História Nova tinha como base filosófica “a ideia de que a realidade é social

1

Tradução: contexto vivencial.

Há uma espécie de revolução epistemológica ocorrendo no mundo da Historiografia nos inícios do século XX, onde o historiador iria conduzir a produção de conhecimentos históricos, e não simplesmente fazer relatórios descritivos a partir de algumas fontes documentais.


G N A R U S | 86 A História Cultural tão evidente na obra de Peter

serviram um pouco para Foucault ultrapassar as

Burke traz um caráter de interdisciplinaridade em

fronteiras entre o real e a loucura. Existem alguns

suas argumentações, que talvez seja a palavra que

relatos desse tempo na (ENS) onde ele sumia por

sintetize toda essa movimentação teórica, e porque

alguns dias, para locais nada convencionais e

não dizer existencial. Sua obra está em constantes

aparecia depois com olheiras e marcas de quem

diálogos com outras áreas: ciências sociais,

havia consumido bastante bebidas e alucinógenos.

antropologia, ciência política, geografia, artes,

A intensidade de Foucault com a vida logo faria

arqueologia, tecnologias, entre outras. O trabalho

com que ele se destacasse pela construção de

do historiador nessa ótica é enriquecido a partir

brilhantes ideias expostas em aulas e na convivência

desse fluxo de saberes.

acadêmica, o que fazia com renomados professores

A seguir surge falaremos sobre outro autor que traz significativas contribuições para a História e suas rupturas e descontinuidades: Michel Foucault.

o admirassem. (STRATHERN, 2003). Infelizmente no dia 25 de junho de 1984 Foucault vem a óbito, deixando uma ampla obra que ainda atraem a atenção de pesquisadores em todas as áreas das ciências humanas por suas dimensões profundas e

Michel Foucault e as descontinuidades da história

abrangentes.

Michel Foucault nasceu no dia 15 de outubro de

O foco do presente texto é pensar nas possíveis

1926, na cidade de Poitier na França. Seu pai era

relações entre as contribuições de Michel Foucault,

médico, e sempre viveu em boas condições de vida.

e

Inicia sua trajetória acadêmica na École Normale

Contemporânea, área, aliás que Foucault traz

Supérieure (ENS). Esse tempo de estudos em Paris

questionamentos, que até hoje ressoam gerando

Michel Foucault

as

perspectivas

da

Historiografia


G N A R U S | 87 inquietações nos amantes e profissionais da área.

maneira incipiente, uma ligação de influências e

Todavia, antes de expor algumas das contribuições

aproximações.

de Foucault. É de imprescindível mencionar alguns pensadores que de certa forma causam algum impacto nas discussões das ciências humanas, sobretudo na virada do século XIX para o XX, tem de forte efervescência cultural.

Há também uma forte influência de Heidegger nas abordagens feitas por Foucault. O próprio pensador francês diz: “todo meu desenvolvimento filosófico foi determinado por minhas leituras de Heidegger.” Heidegger pensava que o estar no

Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900), com

mundo do ser humano (dasein ou ser-aí) era algo

sua intensidade filosófica, chega a níveis de

que transcendia os limites da própria lógica e razão.

reflexão que geram significativo desconforto nos

(STRATHERN, 2003, p. 15). Hannah Arend tem uma

chamados paradigmas historiográficos da época,

passagem que refletia esse abalo existencial que

chamados de Historicismo e Positivismo.

ocorria ao ter contatos mais profundos com a obra

Suas principais críticas se direcionavam pode ser

de Heidegger “O pensar tornou a vida; os tesouros do passado, que se acreditavam mortos, estão sendo colocados para falar. Nesse percurso, propõe coisas inteiramente diferentes das velhas trivialidades familiares que se presumia que se fossem dizer.” (ARENDT apud STRATHERN, 2003, p. 15).

chamado como “os excessos de história.” Em síntese, pode-se perceber que os historiadores do século XIX, pensavam em suas produções como alternativas de reconstrução de qualquer recorte do passado em sua íntegra dimensão. Eles percebiam

relações

de

continuidade

entre

acontecimentos e fatos históricos, e acreditavam na

Com efeito, com seus intensos questionamentos,

função da História como a de compor esses gaps e

Foucault desconstrói as estruturas epistemológicas

tentar construir um passado estruturado a partir das

que pareciam ser tão seguras, por conta do rigor

fontes de dos documentos.

científico, e que denuncia serem formas de

“Nietzsche propõe uma historiografia que rompa com a falsa continuidade histórica produzida pela tradicional noção de um tempo linear e contínuo impulsionado pelo progresso, e através do qual as épocas históricas se encadeiam umas as outras por meio dos grandes acontecimentos perseguidos pelos positivistas e historicistas tradicionais. Ao contrário Nietzsche propõe ignorar essa falsa continuidade histórica e fazer uma ligação entre aquilo que importa nos vários momentos do passado e no presente.” (BARROS, 2011, v. 3, p. 166,167).

narrativas e discursos, expressões de relações de poder, domínio e padrões de normatividade. Foucault é um dos responsáveis pela reorientação da epistemologia no tempo denominado pósestruturalismo. A

palavra

desconstrução mostra possíveis

caminhos para as abordagens pós-estruturalistas. “Em Foucault perde o sentido habitual a noção de verdade.” (BARROS, 2011, v. 3, p. 273). Em sua obra

Essa postura de Nietzsche é como uma explosão

Microfísica do Poder, Foucault expressa que os

dos dogmas historiográficos, e introduz uma nova

universos científicos, apesar de seu inegável rigor,

percepção do fazer e refletir sobre a História e suas

fazem parte de uma realidade maior que o que

teorias. É óbvio que não se pode justificar as formas

representam em si mesmos

de pensar e pesquisar de Foucault a partir do filósofo alemão. Pode-se fazer, ainda que de

[...] não se trata de saber qual é o poder que age do exterior sobre a ciência, mas que efeitos de


G N A R U S | 88 poder circulam entre os enunciados científicos; qual é seu regime interior de poder; como e por que em certos momentos ele se modifica de forma global. (FOUCAULT, 1979, p. 5).

deslocamentos antes inimagináveis, e essas novas percepções – que ainda hoje – estão se construindo e se (re)inventando trazem para a humanidade novas formas de fazer História. Onde se estudam

A questão da linguagem assume uma importância

por exemplo, o jogo de poder a partir da construção

visceral nas obras de Foucault. No pensamento pós-

dos códigos legislativos; tenta se perceber o que se

estruturalista a linguagem expressa nas fontes não

estava em jogo em certas guerras, e se denuncia a

se

que

fronteira frágil das instituições; o domínio exercido

reconstroem um tempo passado. Mas há uma

sobre o corpo, seja no trabalho, na educação, nos

possibilidade de análise do discurso, ou dos

domínios de gênero. Pensa-se dessa forma a partir

discursos que tentam visualizar, por exemplo, os

do abjeto, da margem. Os documentos nesse

lugares de onde esses discursos estão sendo

contexto não são analisados por um viés dito oficial,

proferidos. Essa linguagem é a responsável pela

mas nas possibilidades históricas que não tem voz.

trata

simplesmente

representação

de

daquele

evidências

mundo,

são

as

Em uma tentativa de resumir o conceito de

possibilidades da linguagem, todavia, de quem

arqueologia, no livro Arqueologia do Saber,

interpreta aquele material que farão a tentativa de

Foucault enumera algumas características de sua

comunicação ou não com o passado. É preciso levar

proposta

em consideração de forma muito séria: a

subjetividade. Duas

possibilidades

conhecimento

de

na

produção

histórico, aparecem

de

em dois

conceitos que Foucault desenvolve, mas que tem suas origens em Nietzsche: Arqueologia e

Genealogia. Em suas reflexões pode ser percebida uma profunda ligação entre todas as áreas e suas possibilidades históricas. Em todas as dimensões humanas estão conectadas por um devir histórico. Por exemplo, qualquer desenvolvimento dos conhecimentos psiquiátricos, os padrões do que se considera e como se trata com a loucura; as múltiplas

formas

de

sexualidade

e

suas

modificações ao longo do tempo e suas diferenças culturais a partir da geografia; as várias expressões religiosas e suas confluências e divergências. A partir das buscas em sua Arqueologia e

“A arqueologia busca definir não os pensamentos, as representações, as imagens, os temas, as obsessões que se ocultam ou se manifestam nos discursos, mas os próprios discursos, enquanto práticas que obedecem a regras; a arqueologia não procura encontrar a transição contínua e insensível que liga, em declive suave, os discursos ao que os precede, envolve ou segue. Não espreita o momento em que, a partir do que ainda não eram, tornaram-se o que são; nem tampouco o momento em que, desfazendo a solidez de sua figura, vão perder, pouco a pouco, sua identidade. O problema dela é, pelo contrário, definir os discursos em sua especificidade; mostrar em que sentido o jogo das regras que utilizam é irredutível a qualquer outro; segui-los ao longo de suas arestas exteriores para melhor salientá-los; a arqueologia não é ordenada pela figura soberana da obra, ela define tipos e regras de práticas discursivas que atravessam obras individuais, às vezes as comandam inteiramente e as dominam sem que nada lhes escape; e, finalmente, a arqueologia não procura reconstituir o que pôde ser pensado, desejado, visado, experimentado, almejado pelos homens no próprio instante em que proferiam o discurso, antes, ela é descrição sistemática de um discurso-objeto.” (FOUCAULT, 2008, p. 157-158).

Genealogia não existem agora, grandes pesquisas historiográficas com temas específicos, existem

A forma de percepção sobre a história sofre uma

variados deslocamentos de análises a partir de

série de significativas transformações após essas


G N A R U S | 89 colocações de Foucault. Se pensa agora, a partir

história assim como a vida é um campo de

instabilidade de um saber que se pretende

instabilidades e incertezas.

totalmente objetivo. Há uma polissemia nas construções dos discursos sobre o saber histórico, com essa proposta há uma tentativa de se fragmentar os padrões discursivos que contam uma história verdadeira, não existe mais uma história, uma origem. Existem possibilidades de história e o caos. A grandeza e o assombro expressos na dimensão do pretérito fazem com que o ser humano perceba sua dimensão de finitude, e não tente dar uma resposta definitiva no sentido de reconstruir positivamente sua história, sua origem. Por seu turno, o conceito de genealogia tem um significado de caráter mais prático, embora guarde algumas semelhanças com o anterior. Enquanto a arqueologia versa sobre as análises dos discursos e

A obra de Foucault não tem nenhum limite específico, não é possível enquadra-lo dentro de qualquer temática específica, é possível, assim como na obra de Peter Burke, perceber o quanto há um caráter de interdisciplinaridade. Onde várias áreas do saber se encontram, com suas especificidades, mas que, dialogam e criam pontes na construção de um conhecimento mais complexo, que é o reflexo do ser humano contemporâneo. É a era das tecnologias, das mídias e redes sociais, várias maneiras de se guardar os arquivos e as memórias, não há espaço para isolar as áreas, o que seria um retrocesso, o movimento é estabelecer

relações

profícuas,

ambientes

marcados por conexões e proximidades.

suas relações de complexidade, na genealogia há uma tentativa de “alcançar com seu poder de afirmação, e eu entendo por isso não um poder que se oporia ao poder de negar, mas o de constituir domínios de objetos, a propósito dos quais poderemos afirmar ou negar as proposições verdadeiras ou falsas. Chamemos de positividades estes domínios de objetos, e digamos, para brincar uma segunda vez com as palavras que se o estilo crítico é aquele que da desenvoltura estudiosa, o humor genealógico será o de um positivismo feliz.” (FOUCAULT apud in DREYFUS, RABINOW, 1995, p. 117).

Considerações finais e possíveis aberturas O cruzamento entre esses dois autores, um marcado pela escola inglesa com todo seu rigor e erudição, outro da escola francesa, livre perspicaz contestadora.

Ambos

contribuições

para

trazem o

olhar

significativas da

História,

Historiografia e Teoria da História, suas percepções ampliam os horizontes de percepção sobre o ser humano e sua dimensão de historicidade. Esse olhar

A genealogia busca então olhar as formas como a

para o passado inevitavelmente está ligado à

linguagem, e suas origens, todavia não no sentido

condição presente, e assim como o tempo tem sua

de querer descobrir as raízes da nossa identidade,

movimentação dinâmica em si mesmo, o ser

mas para dissipa-las. A genealogia busca, portanto,

humano inserido dentro deste tempo, tem formas

desvelar as máscaras de qualquer historiografia que

diferentes de olhar para o mesmo.

busca formatar origens comuns a partir de suas descobertas, o que ela faz na verdade é denunciar as descontinuidades e o caos que advém da grandeza da História. Em síntese, o caos do passado é tão forte quanto o caos do presente e do futuro, a

No encontro entre Burke e Foucault, pode-se colocar o ser humano como sujeito na produção historiográfica, leva-se em consideração que as ciências humanas são constituídas por sujeitos. Claro que sem perder o rigor, e a tentativa se buscar


G N A R U S | 90 precisão na pesquisa. Esse pode ser considerado um avanço presente no trabalho dos dois autores. Outra questão relevante nesse diálogo, é a questão do deslocamento das temáticas nas pesquisas. Ambos os autores contribuem na desconstrução de temas considerados “clássicos”, e nessas perspectivas passam a existir outros campos, outras temáticas em dimensões mais micro, nem por isso menos importantes. Ao concluir o presente trabalho, gostaria de citar um texto de Fernando Pessoa, sob o heterônimo de Bernardo Soares, que, com a sensibilidade poética e os deslocamentos de seus vários “Eu”, resume esse contato com as noções, percepções e as possíveis relações ser humano-tempo/tempo-ser humano. Viajei. Julgo inútil explicar-vos que não levei nem meses, nem dias, nem outra quantidade qualquer de qualquer medida de tempo a viajar. Viajei no tempo, é certo, mas não do lado de cá do tempo, onde o contamos por horas, dias e meses; foi do outro lado do tempo que eu viajei, onde o tempo se não conta por medida. Decorre, mas sem que seja possível medi-lo. É como que mais rápido que o tempo que vemos viver-nos. Perguntais-me, a vós, decerto, que sentido têm estas frases; nunca erreis assim. Despedi-vos do erro infantil de perguntar o sentido às coisas e às palavras. Nada tem um sentido.2 Odenicio Junior Marques de Melo é aluno do Programa em Educação Arte e História da Cultura (EAHC) da Universidade Presbiteriana Mackenzie – SP. e-mail: odeniciojunior@hotmail.com

Referências bibliográficas BARROS, J. d’A. Teoria da História: princípios e conceitos fundamentais. v.I, Ed. Vozes, 2011. -----------------------------------. Teoria da História: os paradigmas revolucionários. V. III, Ed. Vozes, 2011. -----------------------------------. Teoria da História: a Escola dos Analles e a Nova História. v. V, Ed. Vozes 2011.

2

PESSOA, Fernando. Edição de Teresa Rita Lopes – (Livro(s) do Desassossego) Editora Global (Brasil), 2015, 480 p.

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