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Monografia

MÁSCARAS SOBRE MÁSCARAS EM BUSCA DE UMA PERSPECTIVA: FOUCAULT (1960- 1975) Por: Daniel Diego A. da Silva de Souza

A

lguém aí gosta de café? Pois bem. Dizem que os melhores são aqueles feitos na chaleira lançada diretamente nas chamas para por fim serem coados. Inaceitáveis são os de cafeteiras! Geralmente aqueles que apreciam água cafeinada também gostam de faze-

la. Perdem-se no aroma final que atravessa a cozinha; passa pela sala e ocupa, em gesto convidativo, as casas vizinhas. Salve o café que desce por uma goela anônima qualquer! O fazer histórico assemelha- se muito com o fazer café. Mas como? Em si tal prática, de modo análogo, encobre dois modos de pensar a produção histórica que se mutilam reciprocamente. A mais antiga é a que é mais latente: assim como os conceitos estabelecidos por ela percebemos de imediato o coador, a chaleira e a chama como peças principais da trama. Na breve descrição feita – que seria basicamente a mesma de qualquer sujeito perquirido acerca do procedimento de conceber a bebida (levar a água a uma chaleira, por ao fogo e coar) desconsideram- se as forças que envolvem os materiais componentes do processo. A constituição da chaleira é ignorada; se de alumínio, cobre ou ferro, não importa. E ainda fatores externos não são levados em consideração tais quais: a pressão atmosférica que incide diretamente no tempo que a água entrará em ebulição. Paremos no tempo. A água é posta na chaleira a quantidade influirá no tempo do preparo do café e antes a própria quantidade de pessoas que se proporam a bebê-lo terá influído nesta. O corpo constitutivo da chaleira facilitará ou não a propagação do calor para a substância líquida que contem. A qualidade e a quantidade do pó de café terão consequências no sabor da bebida. Poderíamos apontar a questão de ser fogão à lenha ou industrial, mas deixemos de lado essas prerrogativas. Pretendemos fazer uma análise historiográfica e não nos tornarmos baristas. Em suma, as mais diversas correntes historiográficas simplesmente ignoram as práticas de produção e emergência dos conceitos, e também do saber, e as relações vetoriais que os concebem, como também as funções de objetivação nas quais está envolto o processo. São movidas ora disfarçadamente ora não por universalismos e a priori históricos infundados. Não dizemos que Marx (1818- 1883) não era marxista -- o que acaba por ser expressão corrente no meio acadêmico-- mas que o marxismo morreu com a publicação da Sagrada


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família, em 1845, ou ainda que nasceu com O capital, em 1873. Antes de tudo, entretanto, pontuamos que o apontamento às concepções de Marx é ilustrativo e pretende demonstrar a partir de obras limiares publicadas durante sua vida1 o que são as práticas simultâneas que possibilitam o devir e que ele existe nas suas mais diversas possibilidades. Agora sim. Lembremosnos do novo prólogo dado por Engels (1820- 1895) e Marx à segunda edição do Manifesto

comunista, em 1872, um ano após a insurgência comunal parisiense no qual fazem novas ponderações acerca da questão da autoridade; e também em Guerra civil na França, do mesmo ano, um pouco antes do novo prólogo, quando a questão da autoridade também fora “concebida com grande simpatia para com as teses da ‘abolição do Estado’, que nunca antes tinha cativado Marx” 2. Neste sentido perquiri Foucault: “(...) a tomada do aparelho de Estado (...) deve ser considerada como uma simples ocupação com modificações eventuais ou deve ser a ocasião de sua destruição?” 3. Na filosofia moderna e contemporânea como na produção historiográfica “a noção de

princípio tende a perder importância. Com efeito, inclui a noção de um ponto de partida privilegiado, não de modo relativo (em relação a certos objetivos), mas absoluto, em si”

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(Discutiremos esta noção mais a frente do trabalho). Voltemos ao café, por uma última vez. Por mais que não se perceba há conflitos diversos no momento já da água posta ao fogo: o conteúdo contra o continente; a temperatura da água contra a do alumínio quente e este contra o fogo. É aqui que chegamos à perspectiva mais tardia do processo histórico que pretende analisar as práticas formulantes dos sujeitos e dos objetos. Estaríamos sendo caridosos se denominássemos- na como escola. Ficaremos, então, com a sentença pensar diferente. A referida sentença é pré- nome de Michel Foucault (1926- 1984) em muito dos textos referidos a sua pessoa. Contudo, não entraremos agora na perspectiva tardia posto que por meio do arauto, autor de A arqueologia do saber (1969), tentaremos ao longo de nosso trabalho elucida-la. Contudo, como aperitivo, vejamos como Foucault percebe a emergência das ciências humanas e do homem como objeto:

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COSTA NETO, Pedro Leão da. Notas introdutórias sobre a publicação de Marx e Engels. Revista Crítica Marxista. n.30. abr. 2010 . p. 50. 2 GONZÁLEZ, Horácio. A Comuna de Paris: os assaltantes do céu. São Paulo: Brasiliense, 1999. p. 100. 3

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Disponível em: < http://www .nodo50.org/insurgentes/biblioteca/A_Microfísica_do_Poder_-_Michel_Foucault.pdf >. Acessado em 17 abr. 2014. p. 85. 4 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 792.


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O campo epistemológico que percorrem as ciências humanas não foi prescrito de antemão: nenhuma filosofia, nenhuma opção política ou moral, nenhuma ciência empírica, qualquer que fosse, nenhuma observação do corpo, nenhuma análise da sensação, da imaginação, ou das paixões, jamais encontrou, nos séculos XVII e XVIII, alguma coisa como o homem; pois o homem não existia (...); as ciências humanas não apareceram quando, sob o efeito de algum racionalismo premente, de algum problema cientifico nãoresolvido, de algum interesse prático, decidiu –se fazer passar o homem (...) para o campo dos objetos científicos (...); elas apareceram no dia em que o homem se constituiu na cultura ocidental (...)5.

Localizada no centro- oeste da França, a cidade de Poitiers é mais conhecida pela batalha sangrenta entre mouros e cristãos da qual foi cenário no período medieval, mais precisamente no século VIII. Uma importante batalha que impediu o avanço mouro sobre o mundo ocidental, quando Martel (688- 741), defendendo o projeto de civilização cristã impediu que os mouros, que já haviam se apossado das terras ibéricas, se instalassem de forma definitiva na Europa. Mas foi também berço de uns dos maiores pensadores do século XX: Paul- Michel Foucault. Nascido em 15 de outubro de 1926; morto devido a AIDS em 25 de junho de 19846. Antes de ser de Poitiers Foucault era da França; antes de ser francês era do mundo. Como bem atestam suas jornadas pelas mais diversas regiões do globo: de Uppsala, na Suécia, à Gávea, no Rio de Janeiro. O filho de Paul Foucault e Anna Malapert, enveredou- se pelos caminhos tortuosos da filosofia, história e psicologia. Leu atentamente autores como Freud (1856- 1939), Kant (1724- 1804) e Lacan (1901- 1981). Em 1949, Licencia- se, pela École Normale Superiéure, curso tradicional da elite intelectual francesa. Com uma tese sobre Hegel (1770- 1831) recebe diploma em Estudos Superiores de Filosofia. Talvez influenciado por Jean Hyppolite (1907- 1968) que além de lecionar para ele, no curso preparatório para o ingresso na instituição, meandros do

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FOUCAULT, Foucault. As palavras e as coisas. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p.476. SILVEIRA, Emerson José da. Circuitos criativos. Conhecimento prático: filosofia, São Paulo, n. 37, p. 34- 41, s. d. p. 34. 6


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pensamento de Hegel7, foi um dos principais tradutores do difícil filósofo alemão para o francês8. Na École Normale Superiéure concentra seus interesses em filosofia e psicologia assistindo a cursos de ilustres pensadores dentre os quais Merleau- Ponty (1908- 1961). Já em 1951 ministra aulas na insigne instituição tendo como alunos Jacques Derrida (1930- 2004) e Paul Veyne (1930). Em 1952 é diplomado em psicologia experimental pelo Instituto de

Psychologie. Na primeira metade da década de 1970 torna-se catedrático no Collége de France. Dentre suas principais obras, deste período, cabe destacar: História da loucura (1961), O

nascimento da clínica (1963), As palavras e as coisas (1966) e Arqueologia do saber (1969). Nosso trabalho é antes uma reflexão sobre a prática histórica via um importante teórico da segunda metade do século XX do que uma apologia. É bem certo que algumas expressões mais parciais soarão (ou já soaram) de modo diverso. Não obstante, quais letras? Quais sílabas? Quais expressões impressas em virgens folhas não são já parciais? Ás vezes mascaradas com tapinhas no ouvido enrolados com algodão ou colírios para os olhos. Na primeira parte de nosso trabalho visamos empreender passo a passo a origem da pergunta que nosso texto tenta responder e também do método que ele usa para fazê-lo. O uso da primeira pessoa do plural é deliberado pretendendo trazer o leitor junto à busca e as complicações pressupostas dela. Gradualmente mesclam- se, como não poderia ser diferente, ambas as buscas. No capítulo intitulado A incitação: um prelúdio para a inquietude a partir da comparação de dois depoimentos de caráter diverso, entretanto com a mesma temática, procuramos mostrar o esqueleto estrutural de onde surgiu o objeto. O primeiro texto é de Alexandre Dumas (1802- 1870) intitulado Isabel da Baviera e o segundo é uma entrevista dada por Ankersmit (1945) a Revista Topoi. Em seguida faremos uma contextualização do mundo após a Segunda Guerra Mundial para depois nos lançarmos na descrição institucional das ciências humanas na França. Nos capítulos que se seguem os principais conceitos ligados à prática histórica foucaultiana serão delineados e descritos.

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CASTELO BRANCO, Guilherme. O mundo de Foucault. In: CASTELO BRANCO, Guilherme et. al. Mente, cérebro e filosofia v. 4: Foucault. 2. ed. São Paulo: Duetto Editorial, 2011. p. 6- 7. 8 VEYNE, Paul. Foucault: seu pensamento, sua pessoa . Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2011. p.104.


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A busca

Podemos perceber duas maneiras diversas acerca da relação manifesta entre história e poder: a mais “tradicional”, por assim dizer, vinculada a detectar e analisar a presença do poder ao longo do processo histórico. E a que lança um olhar introspectivo sobre a própria produção historiográfica, procurando detectar as artimanhas das incitações forçadas por forças vetorias que surgerem como pressupostos dados e verdadeiros9 os fatos e os conceitos históricos. Nossa pesquisa está vinculada diretamente as concepções do filósofo- historiador Foucault. Entretanto somente depois do levantamento dos dados – estes exclusivamente bibliográficos levemente temperados com material audiovisual – pudemos reparar algumas interferências oriundas da característica de nosso objeto. O autor de Vigiar e punir (1975) transborda em muito a área delimitada por suas titulações acadêmicas tendo importância suma nos mais diversos espaços do saber; tais quais: psicologia, filosofia política, história e alguns mais etc. Foucault é um sujeito no plural ficamos então com uma das suas diversas singularidades. Definamos, por hora, ele por ele mesmo: “eu não sei nada de mim eu não sei mesma a data de minha morte”.10 Pelo menos no que se refere a sua morte estamos à frente do autor. De resto... Como íamos divagando: somente depois do levantamento dos dados, dos ditos e também dos escritos. Depois de nos colocarmos à deriva em meio ao oceano das evidências – é bem certo, contudo, que umas mais evidentes do que as outras – pudemos começar a navegar por águas mais claras, não obstante turbulentas, para somente então formular a problemática na qual estará envolto todo nosso trabalho de término de curso. Posto que toda indagação envolve já uma intuição do indagando, para fazer uso das palavras de Heidegger. Quando vedamos toda nossa modesta canoa que estava por naufragar no Oceano Foucault nos alegramos. Entretanto algo faltava para encontrarmos terra firme. Mesmo que uma ilha: o método. 9

FALCON, Francisco. Histótia e poder. In.: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da história. 5. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 97. 10 FOUCAULT, Michel. Nietzsche, Freud, Marx. São Paulo: Princípio, 1997. p.10.


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Pusemos a prova o tema, a problemática e os dados. Do método indutivo ao estruturalista. Escolhemos o dialético. Contudo mesmo ele possuía diversas sub-modalidades metodológicas. Restringimos ainda mais.

Optamos pela “ação

recíproca”

na

qual os fenômenos se

relacionam11. Toda pesquisa incorre em uma incitação que amadurecida se avizinhará a inquietude. Mesmo quando do trabalho já pronto e esta mesma não seja percebida como tal. Tendo em vista isto faremos um capítulo à parte dedicado somente a ela. A princípio a menção a incitação parecerá desprovida de propósito, entretanto não o é. Tenhamos em vista que fora ela que fez surgir o objeto. O seu vislumbre acarretará uma maior compreensão dele.

A incitação: um prelúdio para a inquietude

Dois textos podem ser sublinhados como os pontos marcantes da incitação. O primeiro corresponde ao texto de Alexandre Dumas mais especificamente o prefácio do livro Isabel da

Baviera que é uma apologia ao ofício do historiador. E o segundo é a entrevista de Ankersmit a revista Topoi. Este é um historiador e filósofo holandês nascido em 1945; aquele, um famoso romancista francês do século XIX, autor do clássico universal Os três mosqueteiros (1844). O prefácio de Isabel da Baviera fora escrito na primeira metade do século XIX e a entrevista de F. R. Ankersmit fora concedida em 2001, ou seja, em princípios do século XXI. Quase duas centenas de anos separam os dois autores. Que incitação poderia advir da leitura de textos tão distantes um do outro? Não fosse o assunto comum poderia ser nenhuma. Um dos mais magníficos privilégios do historiador, esse rei do passado, é bastar- lhe quando percorre o seu império, tocar com a pena as ruínas e os cadáveres para reconstruir os palácios e ressuscitar os homens; à sua voz como a de Deus, as ossadas dispersas reúnem- se, as carnes vivas recobrem- nas, as vestimentas suntuosas revestem-nas (...) basta- lhe escolher os eleitos pelo seu capricho e invocá- los pelo nome para que no mesmo instante os chamados ergam com afronte as pedras das campas, afastem com a mão as pregas dos sudários e respondam como Lázaro a Cristo: 11

LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Fundamentos da metodologia científica . 7. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 65- 94.


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‘Aqui estou, Senhor; que me quereis?’ É, todavia necessário um passo firme para descer às profundezas da história uma voz imperiosa para interrogar os fantasmas, mas que não trema para escrever as palavras que eles ditam. Os mortos têm por vezes segredos terríveis que o coveiro selou com eles em seus túmulos12.

Em Dumas é evidente um otimismo em relação ao fazer histórico. O romancista se encontra consoante às expectativas que as ciências do século XIX pressupunham aos seus contemporâneos. O historiador seria o rei dos tempos pretéritos. O passado estaria tal qual Lázaro inerte esperando a pena para dizer o que fora. Em Ankersmit, entretanto o sentido muda: Lázaro já não mais fala é interpretado. O historiador tomando o Leviathan de Hobbes (1588- 1679) como seu arauto do passado coloca o debate histórico ao nível de discussões sobre interpretações de Lázaro. Este é soterrado novamente em meio às dezenas de textos ao seu respeito. Lázaro se perde em meios às palavras. Não tem mais autoridade alguma. “Porque” em um verdadeiro “alcoolismo intelectual (...) o livro ou artigo mais recente sobre o tema também pretender ser o mais novo drink intelectual”

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.

Para o filósofo- historiador holandês se antes o enunciado informativo era encoberto pelo que descrevia, relegado a pano de fundo ele se torna a realidade em si. O que importa não é o que aconteceu, mas o que foi dito do ocorrido. Em postura extremamente inversa, Ankersmit submete a verdade de Lázaro às interpretações dela. Chegando a se perguntar até mesmo o porquê da incitação do moribundo de Betânia. Tal postura reflete seu pessimismo, disfarçado pelo uso da terceira pessoa, para com o fazer científico: A ciência era o alfa e o ômega dos modernistas e dos estruturalistas; estes a viam não somente como o mais importante produto, mas concomitantemente como o máximo produto da modernidade. (...) Para os pós- modernistas, tanto a filosofia da ciência quanto a própria ciência formam o produto, o ponto de partida para suas reflexões14.

Dos dados não ficam certezas. Seria por deverás fácil se por em acordo com o mais recente renegando a discussão a aforismos tais quais: “era um homem de seu tempo” esse tal

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DUMAS, Alexandre. Isabel da Baviera. São Paulo: Otto Pierre, [s.d.]. p. 5- 6. ANKERSMIT, Frank R. Historiografia e pós- modernismo. In: Topoi, Revista de História do PPGHIS/ UFRJ. Rio de janeiro: 7 Letras, 2001. p. 114. 14 Idem. p.117- 118. 13


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Dumas. Mas estreito é o caminho da verdade. Ficamos com a segunda opção: O que aconteceu? Seria de grande pretensão; não dizemos nem responder, mas tão somente procurar responder a tal questão. Daqui chegamos a Foucault mais especificamente a seu período arqueológico embora nossa pesquisa não se limite a ele indo, porém, até a genealogia procurando rastros no pensamento foucaultiano de vestígios acerca do escrever história. Colocamos- nos a seguinte pergunta: qual era a perspectiva histórica de Michel Foucault? Tendo em vista que depois de mais algumas pesquisas percebemos uma regularidade do seu nome nos textos que pesquisávamos que aumentava cada vez que íamos- nos introduzindo na temática.

O contexto O mundo

As décadas seguintes ao pós Segunda Guerra Mundial são marcadas por profundas transformações na vida social, econômica e cultural do mundo ocidental. A descolonização de países do continente africano e asiático assim como a bipolaridade político- econômica protagonizada pela URSS e pelos Estados Unidos marcavam que a Europa efetivamente não era mais o centro majoritário do processo histórico. A sua ampulheta fora usurpada por forças do Oriente e do Ocidente. Aqueles que por muito permaneceram mudos repentinamente começam a juntar as sílabas da palavra liberdade. A mulher, parafraseando Beauvoir, torna- se cava vez mais mulher. O negro vai a Washington D. C. reclamar seus direitos civis. O Movimento Hippie questiona os valores impostos pela sociedade. Inversões morais, éticas e sexuais se sucedem simultânea e paralelamente umas às outra. Tempos de dubiedade e de novos atores. O período é marcado pela incerteza do amanhã. A sombra de bombas nucleares vela o sono da humanidade. A Guerra Fria, coberto quente para o medo acerca de um futuro incerto. “O quadro da destruição iminente, laboriosamente desenhado por escritores e jornalistas (...) penetrou no vocabulário do discurso cotidiano. Nunca a antiga previsão popular do fim do mundo pareceu tão apropriada” 15.

15

CARR, E. H. Que é História? 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. p. 9.


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Carr (1892- 1982), não obstante, se distância destes pressupostos pessimistas marcando o lugar da onde é incitado o discurso; o historiador inglês rastreia os rastros discursivos. Para ele “a diagnose de desesperança em relação ao futuro, embora pretenda estar baseada em fatos irrefutáveis é uma construção teórica abstrata”

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. As pessoas continuam

vivendo; vão ao cinema; fazem amor, ou sexo casual. Uns ouvem os Beatles outros os Stones. nvestem na poupança. Para o autor de Que é História? é principalmente da Europa Ocidental que surge a penumbra pessimista do discurso. Ela que outra fora dona de extensões imensuráveis vê- se agora limitada ao Mediterrâneo e as costas banhadas pelo Atlântico. O mundo é no mínimo três: o do bloco capitalista de um lado; o socialista de outro e, correndo por fora, as antigas colônias, agora em desenvolvimento. No que Carr aponta: Há cinco séculos estes países têm sido os incontestáveis senhores do mundo. Eles poderiam pretender, com alguma plausibilidade, representar a luz da civilização em meio a um mundo externo de bárbara escuridão. Uma época que crescentemente desafia e rejeita esta pretensão certamente deve construir a catástrofe. Também não é surpreendente que o epicentro da inquietação, a sede do pessimismo intelectual mais profundo, se encontre na Inglaterra, pois em nenhum outro lugar o contraste entre a glória do século XIX e a monotonia do século XX, entre a supremacia do século XIX e a inferioridade do século XX, é tão marcante e tão dolorosa. Esse estado de espírito se propagou pela Europa ocidental e - talvez em menor grau - América do Norte17.

As décadas que precedem a segunda metade do século XX correspondem a embates ideológicos marcados em última instância ao protagonizado entre os EUA e a URSS: de um lado a proposta capitalista de outro a socialista. Os anos sessenta presenciaram mudanças muito importantes no mundo. Foram anos em que as novas gerações, ao ver que não se cumpriram as esperanças suscitadas pela vitória sobre o fascismo na Segunda Guerra Mundial e as ilusões do desenvolvimento econômico, associadas às expectativas que a utilização da energia atômica criara – que não havia nem mais liberdade nem mais igualdade no mundo novo cuja defesa custara tantos milhões de mortos –, fizeram sentir suas vozes numa tentativa para mudar a sociedade que se estendeu da Califórnia até Praga18.

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CARR, E. H. Que é História? 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. p. 10. Idem. 18 FONTANA, Josep. A história dos homens. Bauru: EDUSC, 2004. p. 381. 17


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Além do Canal da Mancha

Atravessemos o Canal da Mancha! No âmbito acadêmico o país de Foucault apresenta diversas perspectivas conflitantes em uma verdadeira bacanal ideológico- metodológica em que os sufixos “ismo”, “ista” e “logia” são figuras sempre presentes. Havia até mesmo humanismo stalinista19. Entretanto, a áurea da incerteza, mesmo que simulada por discursos veementes, era a piscina na qual se afogavam todas as propostas emergentes. A barbárie desencadeada durante esse segundo conflito mundial ultrapassou tudo o que se poderia imaginar. Ao reunir no bulldozer os cadáveres deixados pela Alemanha nazista, descobre- se o horror de suas atrocidades, a grandeza dos crimes contra a humanidade e o extermínio de seis milhões de judeus. Esta barbárie perpetrada por uma sociedade tão avançada como a Alemanha abala as certezas sobre o sentido da história e sobre o avanço da humanidade em direção a um estado de civilização sempre em progresso. A capacidade duplicada, revelada pelos bombardeios de Hiroshima e de Nagasaki, reforça ainda mais a inquietude diante do futuro. (...) Tudo é incerto após esses desastres20.

O pós- guerra demanda uma reorientação discursiva. Um vácuo epistemológico está aberto nas entranhas academicistas da França21. Os Annales mudam o nome da revista que desde 1929 era Annales d’historie économique et sociale para Annales: économies- societés-

civilisations, em 194622. A mudança ocorre, de acordo com Dosse (1950), devido ao “anseio de avançar no projeto de reaproximação com as outras ciências sociais”

23

. Contudo não é o que

nos mostra, mais tarde, o embate metodológico entre Braudel (1902- 1985) e Levi- Strauss (1908- 2009) quando aquele submete (ou tenta) o método estruturalista à longa duração em O Mediterrâneo (1949)

24

. Este episódio desnuda antes a verdadeira face imperialista

da corrente historiográfica francesa, naquele período, mascarada pelo o enunciado da interdisciplinaridade. Mesmo no interior dos Annales são relegados ao

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VEYNE, Paul. Foucault: seu pensamento, sua pessoa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. p. 76. DOSSE, François. A história em migalhas: dos Annales à Nova História. Bauru: EDUSC, 2003. p. 150. 21 Idem. 22 TÉTART, Philippe. Pequena história dos historiadores. Bauru: EDUSC, 2000. p. 108. 23 DOSSE, Francois. Loc. cit. p. 151. 24 Idem. p. 160- 182. 20


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ostracismo autores como Philippe Ariès (1914- 1984) cuja obra não estava consoante aos aspectos econômicos em voga, contudo antes vinculada ao mental25. Entre a segunda metade da década de 1940 e fins da década de 1960 “a história é (...) mistura de demografia, de curvas econômicas e de análise das relações sociais” 26. O período é marcado também por uma verdadeira explosão institucional das ciências sociais. O INESS (Instituto Nacional de Estatística e Estudos Econômicos) é criado em 1946, como também o CES (Centro de Estudos Sociológicos) presidido por Georges Gurvitch (1894- 1965), e, um ano antes, o INED (Instituto Nacional de Estudos Demográficos). O CES surge devido a busca da sociologia em penetrar na universidade e livrar- se das amarras acadêmicas da filosofia, posto que aquela fosse uma mera especialização na grade curricular desta. Em 1947, a psicologia irrompe no espaço universitário francês. A UNESCO foi o órgão que impulsionou a efervescência das ciências sociais, tendo em vista que ao lançar pesquisas gerasse cada vez maior demanda de pesquisadores 27. Entre a segunda metade da década de 1960 e início do decênio de 70, a economia, a sociologia e a etnologia progrediam em todos os aspectos principalmente no que se refere a financiamento28. A UNESCO multiplica as publicações e as iniciativas. Ela funda, em 1949, as Associações Internacionais de Sociologia e de Direto Comparado, assim como a Associação Francesa de Ciência Política. Os responsáveis acentuam o atraso da França na área das ciências sociais. (...) Esse progresso das ciências sociais (...) continua e até se acelera nos anos 196029.

Paulatinamente a sociologia e a psicologia foram institucionalizadas. No final do decênio de 1950 são eleitos, para a Sorbonne, professores das duas referidas áreas, como também de psicologia social. Em 1958, as faculdades de letras são integradas às ciências humanas. O curso de direito é integrado às ciências econômicas, em 195930. François Dosse pontua que a pressão que as ciências emergentes exerceram sobre a história mais acentuadamente sobre os próprios annales irá influir nos discursos da corrente historiográfica. Isto fica latente quando, no final da década de 1960, Braudel fora posto à 25

DOSSE, François. A história em migalhas: dos Annales à Nova História. Bauru: EDUSC, 2003 . p. 152. Idem. p. 153. 27 Idem. p. 154- 155. 28 LE GOFF, Jacques. Foucault e a “nova história”. Plural: sociologia. USP. São Paulo. n.10. jul/dez. 2003. p. 26

199. 29 DOSSE, François. Op. cit. p. 155- 156. 30 Idem. p. 156- 157. .


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margem da revista pelos novos atores da nova geração dos annales sendo limitado a reuniões eruditas sem expoência para o grande público; e aqueles, liderados por Emmanuel Le RoyLadurie (1929), Jacques Le Goff (1954- 2014) e François Furet (1927- 1997), acabam por propor outras concepções metodológicas nas quais a história econômica e social acabaram por cair no ostracismo31. “Em seus excessos, a escola nova não vale muito mais do que o positivismo”32 de Ranke (1790- 1880), Seignobos (1854- 1942) ou Langlois (1914- 1977). A pressão transborda os muros da academia. “(...) as ciências sociais abarcam as grandes tiragens e monopolizam os grandes eventos intelectuais”

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. Os exemplares do Curso de

linguística (1928) de Saussure (1857- 1913) que não haviam ultrapassado, em trinta anos, 15.000 chegam a 10.000 anuais, na década de 1960. Introdução à psicanálise de Freud quando em três decênios de anos atingira o limite de 30.000 exemplares entre 1962 e 1967, ou seja, em cinco anos, ultrapassa 165.000. O antropólogo Claude Levi- Strauss é outro que toma o proscênio com sua obra Tristes trópicos (1955) e a proposta estruturalista importada da linguística34. Outro polo impulsionador das ciências sociais se encontra além do Atlântico. Os Estados Unidos brilham na Europa com todos os fogos da modernidade. Nessa Europa do pós- guerra, não são somente os dólares do Plano Marshall que afluem, mas os métodos e técnicas de investigação das ciências sociais americanas35.

Também em quadro proposto por Roger Chartier (1945) que analisa a taxa de crescimento de docentes das áreas diversas apontadas fica evidente a pressão exercida simultaneamente entre elas. A taxa de crescimento dos professores de Letras, por exemplo, aumenta 200% e de Psicologia 325%, entre 1963 e 196736. Essas ciências (...) em expansão suportam cada vez menos a dominação das disciplinas legítimas; a sociologia espera libera- se da tutela filosófica; a história vê- se de novo contestada como ciência maior do social (...). Assistimos ao nascimento de uma escola que se tornará dominante nas ciências humanas, incluindo as letras: o estruturalismo37.

31

FONTANA, Josep. A história dos homens. Bauru: EDUSC, 2004. p. 384- 385. TÉTART, Philippe. Pequena história dos historiadores. Bauru:EDUSC, 2000. p.113. 33 DOSSE, François. A história em migalhas: dos Annales à Nova História. Bauru: EDUSC, 2003 . p. 157. 32

34 35 36 37

Idem. Idem. CHARTIER Apud DOSSE. Op. cit. p. 158- 159. Idem. . p.159.


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A prática

O pensamento de Michel Foucault irrompe nesta áurea de conflitos “quando uma nova geração decide não continuar aceitando o modernismo triunfante que, depois de ter atuado como vanguarda e provocação, foi incorporado pelo sistema e se converteu, por isso mesmo acadêmico”

38

. Os dados academicistas, assim bem como os históricos, irão repercutir de

modo profundo em sua proposta a partir da teorização das ciências humanas e mais precisamente da história39. Seu modo de pensar surge consoante às prerrogativas da análise do discurso francesa que emerge na década de 1960 tendo como principal expoente Michel Pêcheux (19381983). Segundo Dominique Maingueneau (1950), a especificidade da escola francesa de análise discursiva dar- se devido ela voltar sua análise, como Foucault o fez, justamente para o campo institucional em busca de explicações e construções objetivas fazendo uso da linguística e da história, diversamente, da escola anglo- saxã vinculada a conversações cotidianas baseada na descrição e na imanência do objeto 40. Embora o filósofo- historiador pontue que fora o riso proposto pelo consagrado ensaísta argentino Jorge Luis Borges (1899- 1986) que o houvera incitado. Riso, zombaria que se tornaria estranhamento (no sentido filosófico do termo). Oriunda aquela como este da definição apontada pelo portenho Borges de animal, encontrada em uma enciclopédia chinesa. Por isto Foucault assim- nos fala em suas primeiras letras no livro

As palavras e as coisas (1966): Este livro nasceu de um texto de Borges. Do riso que, com sua leitura, perturba todas as familiaridades do pensamento-- do nosso: daquele que tem nossa identidade e nossa geografia--, abalando todas as superfícies ordenadas e todos os planos que tornam sensata para nós a profusão dos seres, fazendo vacilar e inquietando, por muito tempo, nossa prática milenar do Mesmo e do Outro. Esse texto cita ‘uma certa enciclopédia chinesa’ onde será escrito que ‘os animais se dividem em a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pelo de camelo, l) et cetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas’. No deslumbramento dessa taxonomia, o que de súbito atingimos,

38

FONTANA, Josep. A história dos homens. Bauru: EDUSC, 2004. p. 381. Idem. p. 386. 40 MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. 3. ed. Campinas: UNICAMP, 1997. p. 1516. 39


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o que, graças ao apólogo, nos é indicado como o encanto exótico de um outro pensamento, é o limite do nosso: a impossibilidade patente de pensar isso 41.

O riso pode expressar alegria, gozação, chacota... Mas também angústia, inquietude que de tão profundas não encontram outra forma de tradução se não a expressão dos músculos faciais que a priori atesta felicidade. Talvez por medo de apontamentos que demonstram galhofa não ocorra o choro. A perplexidade é filha órfã nos tempos pós- modernos.

A arqueologia

A proposta de Foucault, expressa em seus livros da década de 1960, é definida como

arqueológica. A palavra vista (ou lida) de forma menos atenta e apressada conotará inércia e distanciamento temporal: estudos dos vestígios imóveis das práticas de sociedade milenares tais quais os etruscos (1.200- 700 a. C) de Toscana, na península itálica, ou os hititas (2.000 a. C.) da antiga Anatólia (atual Turquia). Botas, poeira e escavações formaram a tertúlia. A ociosidade, a inércia, e o grau antiquado (ou se preferirem obsoleto) desta perspectiva ociosa que poderíamos batizar, grosso modo, de “estudo do antigo” não entram em acordo com a proposta do filósofo francês. Abbaganano em seu Dicionário de filosofia, ao definir arché --que é prefixo grego que apenso ao sufixo logos formará a palavra arqueologia-- remete-a ao verbete princípio. Este conceito fora introduzido na filosofia pelo pré- socrático Anaximandro (610- 547 a. C.) -- sendo também moeda corrente na obra de Platão (428- 347 a. C.)-- com a denotação de ponto de partida, fundamento. Aristóteles (384- 322 a. C.) enumera em seis seus possíveis modos de denotação: caminho de um movimento; o que propicia melhor compreensão acerca de algo; alicerce de alguma produção; causa externa de um movimento; o que determina por meio de decisão mudança e ainda de onde parte determinado processo. Percebemos, por tanto, o conceito como ponto de partida de um processo de formação de um ser, de um conhecer e do próprio devir42. Em Considerações inatuais (1873) mais precisamente na segunda delas intitulada

Sobre a utilidade e o inconveniente dos estudos históricos para a vida: 41 42

FOUCAULT, Foucault. As palavras e as coisas. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 9. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 792.


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Nietzsche distingue três espécies de história: ‘A história pertence a quem vive segundo três relações: Pertence- lhe porque ele é ativo e porque aspira; porque conserva e venera; porque tem necessidade de libertação. A essa trindade de relações correspondentes em três espécies de história, sendo possível distinguir o estudo da história do ponto de vista monumental, do ponto de vista arqueológico e do ponto de vista crítico’. A história monumental é a que considera os grandes eventos e as grandes manifestações do passado e os projeta como possibilidades para o futuro. A história arqueológica considera, ao contrário, o que no passado foi a vida de cada dia e nela enraíza a mediocridade do presente. A história crítica serve, porém, para romper com o passado e para renovar- se43.

A proposta arqueológica de Michel Foucault nada tem a ver com a inércia de materiais dragados pelo solo. O conceito no autor de História da sexualidade (1976) se aproxima das percepções de Aristóteles do conceito de principio e das de Nietzsche (1844- 1900) acerca da

história arqueológica. A história como prática e relações cotidianas do saber. O que se tenta revelar, na história arqueológica, são as práticas discursivas na medida em que dão lugar a um saber, e em que esse saber assume o status e o papel de ciência. Empreender nesse nível uma história das ciências não é descrever formações discursivas sem considerar estruturas epistemológicas; é mostrar como a instauração de uma ciência, e eventualmente sua passagem à formalização, pode ter encontrado sua possibilidade e sua incidência em uma formação discursiva e nas modificações de sua positividade. Trata- se, pois, para tal análise, de traçar o perfil da história das ciências a partir de uma descrição das práticas discursivas; de definir como, segundo que regularidade e graças a que modificações ela pôde dar lugar aos processos de epistemologização, atingir as normas da cientificidade e, talvez, chegar ao limiar da formalização 44.

A perspectiva arqueológica em obras como As palavras e as coisas é voltada para as ciências humanas e sua emergência assim bem como do próprio homem como objeto. Nesta obra Foucault desenvolve a noção de episteme que, grosso modo, podemos vincular a busca pela verdade científica e suas práticas em determinado período45. Aprofundemos-nos, entretanto, mais na noção: (...) algo como uma visão do mundo, uma fatia de história comum a todos os conhecimentos e que imporia a cada um as mesmas normas e os mesmos postulados, um estágio geral da razão, uma certa estrutura de pensamento a que não saberiam 43

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 80. FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. p. 213. 45 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

44


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escapar os homens de uma época (...). Por episteme entende- se, na verdade, o conjunto das relações que podem unir, em uma dada época, as práticas discursivas que dão lugar a figuras epistemológicas, a ciências, eventualmente a sistemas formalizados; o modo segundo o qual, em cada uma dessas formações discursivas, se situam e se realizam as passagens à epistemologização, à cientificidade, à formalização46.

O autor leva às últimas estâncias a concepção formulada pelo filósofo, anterior a Sócrates, Heráclito (535- 475 a. C.) alcunhada devir herdada por ele via Nietzsche, Heidegger (18891976) e Hegel47 se a única certeza, parafraseando o pensador pré- socrático, que podemos ter é na mudança então por que crer em uma verdade absoluta e atemporal constituindo- se paulatinamente como queriam os pensadores do século XIX e toda a filosofia metafísica? A postura historiográfica assumida por Michel Foucault na década de 1960 pretende desconstruir o real enquanto prática e discurso e as objetivações oriundas delas como também as subjetivações que elas propõem. A partir da perspectiva arqueológica o autor francês pretende apreender o enunciado que é “uma função que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que faz com que apareçam, com conteúdos concretos, no tempo e no espaço”

48

. Com isso a prática

arqueológica, tendo em vista que ela não estabelece hierarquia de valor, e não faz, por tanto, uma diferenciação radical, procura estabelecer a regularidade que os enunciados encobrem49. Isto fica claro em As palavras e as coisas quando o autor a partir da análise das formações enunciativas, na Europa dos séculos XVI- XVII, da gramática geral, da história natural e da economia clássica percebe nos diversos ethos a regularidade da unidade mínima interpretativa da semelhança50. Naquela época, a teoria do símbolo e das técnicas de interpretação, repousavam pois numa definição perfeitamente clara de todos os tipos possíveis de semelhança e fundamentavam dois tipos de conhecimento perfeitamente distintos: a cognitio, que era o passo, num certo sentido lateral, de uma semelhança a outra; e o divinatio que constituía o conhecimento em profundidade, que ia de uma semelhança superficial a outra mais profunda. Todas estas semelhanças manifestavam consensus do mundo 46

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. p. 214. VEYNE, Paul. Foucault: seu pensamento sua pessoa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. 48 FOUCAULT, Michel. Op. cit. p. 98. 49 Idem. p. 87- 99. 50 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 47


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que as fundamentava; opunha- se ao simulacrum, à falsa semelhança, que se baseava na dimensão de Deus e do Diabo51.

Desde História da loucura o arquivista como é chamado por Deleuze52 vem fazendo uso da prática arqueológica ajustando- a aqui ou ali. E acaba sendo normal a inquietude que as obras do autor propõem até o lançamento de A Arqueologia do saber. “Pois o arquivista, de propósito, não dá exemplos. Considera que já os deu em grande número há tempos (...)” 53. É apenas no final do decênio de 1960 depois das críticas feitas ao livro As palavras e as

coisas que como já dito lança o olhar arqueológico sobre as ciências humanas, não obstante o livro tenha sido um sucesso de vendas54, é que o arqueólogo do saber desenvolve uma obra voltada para a descrição esmiuçada da prática arqueológica. Nestes termos, o pensamento histórico- filosófico de Foucault é uma crítica bastante contundente a filosofia metafísica escondida nos processos de escrita da história. De um lado a perspectiva arqueológica busca desvendar as formações do saberes e mais precisamente as suas respectivas objetivações; de outro a genealogia (já falaremos disto) que pretende apreender a subjetivação dos sujeitos por meio do dizível e do visível de determinada ruptura histórica. A primeira marcada pela episteme e a segunda pela emergência e a proveniência.

51

FOUCAULT, Michel. Nietzsche, Freud, Marx. São Paulo: Princípio, 1997. p. 16. DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2005. p.13- 33. 53 Idem. p.14. 54 FONTANA, Josep. A história dos homens. Bauru: EDUSC, 2004. p. 386- 397. 52


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A genealogia

A passagem do método arqueológico para o genealógico fora antes uma necessidade criada pelas circunstâncias empíricas do que uma ruptura paradigmática. A abordagem filosófica de Foucault é viva e inacabada55. O primeiro tenta evidenciar as disparidades temporais da

episteme enquanto que o segundo pretende explicar como isso ocorre. Não é, portanto uma mudança de conteúdo (refutação de erros antigos, nascimento de novas verdades), nem tampouco uma alteração da forma teórica (renovação do paradigma, modificação dos conjuntos sistemáticos). O que está em questão é o que rege os enunciados e a forma como estes se regem entre si para constituir um conjunto de proposições aceitáveis cientificamente e, consequentemente, susceptíveis de serem verificadas ou infirmadas por procedimentos científicos. Em suma, problema de regime, de política do enunciado científico. Neste nível não se trata de saber qual é o poder que age do exterior sobre a ciência, mas que efeitos de poder circulam entre os enunciados científicos; qual é seu regime interior de poder; como e por que em certos momentos ele se modifica de forma global56.

Para o autor de história da sexualidade a genealogia é um método que pretende dá

“(...) conta da constituição dos saberes, dos discursos, dos domínios de objeto, etc., sem ter que se referir a um sujeito, seja ele transcendente com relação ao campo de acontecimentos, seja perseguindo sua identidade vazia ao longo da história” 57. Marx, Nietzsche e Freud, para o agora genealogista, revolucionaram, na virada do século XIX para o XX, a concepção hermenêutica outrora baseada na semelhança. É bem certo, pontua Foucault, que já as críticas de Francis Bacon (1561- 1626) como as de Rene Descartes (15961650) haviam abalado a hermenêutica da semelhança do período clássico. Entretanto as perspectivas dos três autores-- primeiramente citados-- laçaram a última pá de terra do sepulcro. “Interrogo- me se não se poderia afirmar que” eles “ao envolverem- nos numa interpretação que se vira sempre para si própria, não tenham constituído para nós e para os que nos rodeiam, espelhos que nos reflitam imagens cujas feridas inextinguíveis formam o

55

VEIGA-NETO, Alfredo. Teoria e método em Michel Foucault (im) possibilidades. Cadernos de educação. Pelotas, V. 34, p. 83- 94, set./ dez. 2009. 56 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Disponível em: < http://www .nodo50.org/insurgentes/biblioteca/A_Microfísica_do_Poder_-_Michel_Foucault.pdf >. Acessado em 17 abr. 2014. p.7. 57 Idem. p. 8.


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nosso narcisismo de hoje”

58

. Marx, Nietzsche e Freud revolveram a forma anteriormente

usada de compreender, de interpretar o símbolo. No século XVI as categorias simbólicas estavam envoltas em espaços homogêneos que refletiam uns aos outros. “Os símbolos da terra refletiam o céu”

59

. Com eles, entretanto, estes ganharam exterioridade. Os três pensadores propõem

desvendar as supostas interioridades por meio das rugas e contrações da superfície: Nietzsche com o voo da águia de seu Zaratustra e a ascensão da montanha deste ermitão; Marx com a banalização dos estudos ditos profundos que se faz acerca da burguesia, por parte da economia clássica voltados para a moeda, para a troca...; e Freud com a descoberta do enfermo, por meio do diálogo, ante olhar— ou antes, a audição— do psicanalista. A profundidade hermenêutica proposta pelos autores refuta a concepção metafísica de interioridade; antes voltam o olhar (Freud os ouvidos) para a profundidade do nível da exterioridade

60

. “O conteúdo não se confunde mais com um significado, nem a expressão,

com um significante” 61. (...) quanto mais se avança na interpretação, quanto mais há uma aproximação de uma região perigosa em absoluto, onde não só a interpretação vai encontrar o início do seu retrocesso, mas que vai ainda desaparecer como interpretação e pode chegar a significar inclusive a desaparição do próprio intérprete. A existência sempre aproximada do ponto absoluto

de

interpretação significa ao mesmo tempo a existência de um ponto de ruptura62.

É a partir da proposta de Nietzsche, desenvolvida em obras como A genealogia da moral (1887) e Humano, demasiadamente humano (1878), que Michel Foucault desenvolve a perspectiva genealógica. Esta visa a partir das constituições do campo visível-dizível, do saber-

poder, esquadrinhar as práticas de formação do saber e do sujeito, do si. Posto que “assim como o direito penal enquanto forma de expressão define um campo de dizibilidade (os enunciados de delinquência), a prisão como forma do conteúdo define um local de visibilidade” 63. Isto ocorre também no nível da loucura onde “(...) na idade clássica, o asilo surgia como um lugar de” sua “visibilidade (...) ao mesmo tempo que a medicina formulava enunciados fundamentais sobre a ‘desrazão’” 58

64

. Com a genealogia o arquivista pretende

FOUCAULT, Michel. Nietzsche, Freud, Marx. São Paulo: Princípio, 1997. p. 17. Idem. p. 18. 60 Idem. p. 18- 20. 61 DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2005. p. 57. 62 FOUCAULT, Michel. Op. cit. p. 21. 63 DELEUZE, Gilles. Op. cit. p. 57. 64 Idem. 59


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desvendar as práticas de subjetivação por meio do vislumbre institucional do ver e do dizer, além de questionar o pressuposto de origem. Nestes termos às compreensões interpretativas de Marx, Nietzsche e Freud foram sumárias para a elaboração da prática teórica de Foucault. Se interpretar era colocar lentamente em foco uma significação oculta na origem, apenas a metafísica poderia interpretar o devir da humanidade. Mas se interpretar é se apoderar por violência ou sub−repção, de um sistema de regras que não tem em si significação essencial, e lhe impor uma direção, dobrá−lo a uma nova vontade, fazê−lo entrar em um outro jogo e submetê−lo a novas regras, então o devir da humanidade é uma série de interpretações65.

A genealogia proposta por Foucault via Nietzsche não é uma busca linear e ordenada. Na é a busca pela democracia na ágora ateniense. Da igualdade entre os homens nos aforismos da Revolução Francesa ou ainda no iluminismo europeu. Paul Rée se engana, como os ingleses, ao descrever gêneses lineares, ao ordenar, por exemplo, toda a história da moral através da preocupação com o útil: como se as palavras tivessem guardado seu sentido, os desejos sua direção, as ideias sua lógica; como se esse mundo de coisas ditas e queridas não tivesse conhecido invasões, lutas, rapinas, disfarces, astúcias66.

Como na arqueologia o arquivista, na prática genealógica, faz uso do método indutivo para, por meio “de pergaminhos riscados”... “reescritos”, por em evidência as contradições dialéticas. A genealogia se opõe, portanto a noção de origem 67; posto que tudo sendo prática, a única certeza que se pode ter é na mudança68. O geneaologista, segundo Foucault, não deve crer na metafísica, porém antes escutar a história. O único segredo, ou enigma, tal qual a esfinge de Édipo, ou antes, a esfinge sem segredo de Oscar Wilde (1854- 1900), é que “as coisas não tem essência” e o que se encontra no “começo histórico das coisas não é a identidade ainda preservada da origem − é a discórdia entre as coisas, é o disparate” 69. Nos textos de Nietzsche, no original em alemão, segundo Foucault, encontramos três palavras que, de modo diverso, se remetem a noção de origem e são mesmo vulgarizadas a

65

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Disponível em: < http://www .nodo50.org/insurgentes/biblioteca/A_Microfísica_do_Poder_-_Michel_Foucault.pdf >. Acessado em 17 abr. 2014. p. 17. 66 Idem.p. 12. 67 68 69

Idem. KONDER, Leandro. O que é dialética. 17. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 7- 10. FOUCAULT, Michel. Op. cit. p. 13.


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este termo nas traduções dos textos do filósofo alemão70 para línguas de origem latina ocorrendo o fenômeno lost in translation, posto que o sentido da palavra perde- se na tradução. Isto é extremamente grave para a compreensão de um dado conceito, já nos alertava Schopenhauer (1788- 1860) 71, “pois as expressões características, marcantes e significativas de uma língua não podem ser transpostas para outra” 72 de modo pleno; para Foucault, as palavras oriundas do alemão na obra de Nietzsche que acabaram por ser traduzidas vulgarmente, nas línguas

latinas

como

origem,

foram

três

majoritariamente:

Ursprung, Herkunft e

Entestehung. A Ursprung fora usada de modo depreciativo pelo filósofo alemão para caracterizar os fundamentos da busca originária metafísica pautada na essência pura e primeira das coisas. O mal estaria em essência em Lúcifer? Ou ainda, seria preciso atribuir a Deus sua origem?73 A

Herkunft é usada, em obras como Humano, demasiadamente humano para buscar a origem da moralidade, do castigo e da justiça em uma perspectiva de dissociação dos conceitos, consistindo, portanto na petição inicial do processo de divórcios entre os termos posto em matrimônio pelo lost in translation. A Entestehung, não obstante, é vinculada a lei e o principio singular de um aparecimento74. Michel Foucault vai traduzir Herkunft e Entestehung respectivamente como proveniência e emergência. A Herkunft – agora proveniência– estaria ligada ao pertencimento consanguíneo, a raça. Contudo não trataria- se de encontrar um individuo enquanto ente puro como, por exemplo, na busca hitleriana pela raça ariana no povo alemã ou de Enéias de Tróia por Virgilio que pretendia fazer dele o fundador de Roma; “de dizer: isto é grego ou isto é inglês; mas de descobrir todas as marcas sutis, singulares, subindividuais que podem se entrecruzar nele e formar uma rede difícil de desembaraçar”

75

. Onde a alma pretende se unificar a

perspectiva genealogista busca o começo em uma verdadeira dissociação do eu. Nestes termos sua tarefa não seria marcar o passado que estaria ali; impresso na pele, na consciência, ou no corpo, dos respectivos sujeitos. “A pesquisa da proveniência não funda, muito pelo contrário: ela agita o que se percebia imóvel (...); ela mostra a heterogeneidade do

70 71

Idem. p. 12- 13.

SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de escrever. Porto Alegre: L&PM, 2011. p. 145- 168. SÜSSEKIND, Pedro. Sobre a literatura em seus vários aspectos In. : SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de escrever. Porto Alegre: L&PM, 2011. p.7. 73 NIETZSCHE, Friedrich. A genealogia da moral. 3. ed. São Paulo: Escala, 2009. p. 17. 74 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Disponível em: < http://www .nodo50.org/insurgentes/biblioteca/A_Microfísica_do_Poder_-_Michel_Foucault.pdf >. Acessado em 17 abr. 2014. p. 12- 16. 75 Idem. p. 14. 72


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que se imaginava em conformidade consigo mesmo” 76. A única chaga que o corpo teria seria a chaga da ruína que a história — e, em última instância, o tempo— proporia. A emergência (Entestehung) seria o ponto de surgimento, de um aparecimento. O termo final pronto e acabado teria pouca coisa ou nada a dizer para ela. Esses fins, aparentemente últimos, não são nada mais do que o atual episódio de uma série de submissões: o olho foi primeiramente submetido à caça e à guerra; o castigo foi alternadamente submetido à necessidade de se vingar, de excluir o agressor, de se libertar da vítima, de aterrorizar os outros. Colocando o presente na origem, a metafísica leva a acreditar no trabalho obscuro de uma destinação que procuraria vir à luz desde o primeiro momento. A genealogia restabelece os diversos sistemas de submissão: não a potência antecipadora de um sentido, mas o jogo casual das dominações77.

A emergência produzir-se-ia nos jogos das relações e dos estados das forças quando elas lançam- se no proscênio do anfiteatro. “Enquanto que a proveniência designa a qualidade de um instinto, seu grau ou seu desfalecimento, e a marca que ele deixa em um corpo a emergência designa um lugar de afrontamento” 78. Em suma a genealogia seria a história e historização dos conceitos e estes seriam o verdadeiro acontecimento a ser apreendido. Entre o castigo exemplar, espetáculo em praças públicas, e a vigilância das sociedades disciplinares por meio, não só, mas também, dos aparelhos carcerários modernos assim como entre os prazeres greco- romanos-- ou a carne do medievo-- e a sexualidade dos séculos XIX e XX, na haveria correspondência progressista conceitual. A vigilância prisional não seria oriunda de nenhum humanismo que viria se estabelecendo desde a Revolução Francesa. Trataria- se antes de uma ruptura epistêmica. “Foucault parece virar a teoria da modernização do avesso, escrevendo sobre a ascensão da disciplina em vez da ascensão da liberdade”

79

.

Para ele, portanto, os historiadores “elaboravam um discurso falso”, “inventavam evolução e continuidade sobre a base das descontinuidades da realidade (...) como se fosse um relato verdadeiro do que aconteceu no passado uma narrativa construída de acordo com seu contexto

76

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Disponível em: < http://www .nodo50.org/insurgentes/biblioteca/A_Microfísica_do_Poder_-_Michel_Foucault.pdf >. Acessado em 17 abr. 2014 p. 15. 77 Idem. p. 16. 78 Idem. 79 BURKE, Peter. História e teoria social. São Paulo: UNESP, 2002. p. 209.


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cultural e com seus interesses”

80

. Neste sentido, parafraseando Benedetto Croce (1866-

1952), toda história seria uma história contemporânea.

O poder

Pelo modo vulgar como é utilizado, o termo poder parecer de fácil denotação, entretanto é extremamente problemático, mas ainda assim algumas nuanças comuns podem se percebidas nas suas diversas definições. “Em Java, por exemplo, (...) o poder é considerado uma forma de energia criativa que os adversários podem tirar um dos outros”

81

. Mesmo nessa nova

contextualização dos confins do Oceano Indico podemos perceber a noção de pertencimento – o poder como coisa que se tem– que ela pressupõe tal qual a compreensão vulgar do termo na parte ocidental do globo. É fácil pressupor que uma pessoa, grupo ou instituição em determinada sociedade tenha esse poder – o governante, por exemplo, a ‘classe dominante’ ou a ‘elite’ política–, enquanto todos os outros não o detenham. (...) ‘ Aqueles que conseguem o máximo são elite; o restante é massa’. Os historiadores frequentemente partem dessa premissa82.

O poder seria como uma propriedade que se pode ter. Estaria concentrado na maior instituição política das sociedades ocidentais: o Estado. Seria, ainda, uma essência que qualificaria os que o possuíssem e os que não o possuíssem, respectivamente, de dominantes e dominados. “Agiria por violência ou por ideologia, ora reprimindo, ora enganando ou iludindo; ora como polícia, ora como propaganda”

83

. Por meio da lei o Estado exprimiria seu poder. Este encarnado

naquele estaria subordinado a um modo de produção. Peter Burke (1937), em sua História e teoria social, que é um texto que discorre de maneira extremamente didática acerca dos diversos métodos e conceitos trabalhados simultaneamente pelas ciências sociais e a história, dedica no verbete poder algo mais de seis linhas para às concepções de Foucault. O historiador nada diz sobre o conceito no autor de

80

FONTANA, Josep. A história dos homens. Bauru: EDUSC, 2004. p. 386. BURKE, Peter. História e teoria social. São Paulo: UNESP, 2002. p.109. 82 Idem. 83 DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2005. p. 38. 81


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Vigiar e punir limitando- se a pontuar que as concepções, sobre o termo, do filósofohistoriador estavam em vias de se torna ortodoxa84. De acordo com Gilles Deleuze (1925- 1995) o arquivista em sua obra acerca do nascimento da prisão, Vigiar e punir, abre um grande diálogo em torno do conceito de poder. Um novo questionamento emerge da escuridão do cárcere. Contra tanto das concepções burguesas quanto das marxistas. “Em termos de prática, um certo tipo de lutas locais (...) cujas relações e necessária unidade não poderiam mais vir de um processo de totalização e de centralização (...)” 85. Para Foucault, não se possui o poder ele apenas seria exercido. “(...) Não é o privilégio adquirido ou conservado da classe dominante, mas o efeito de conjunto de suas posições estratégicas” 86. Acerca do postulado da localização, no qual o poder concentrar-se-ia no Estado, o pensador responde que já o Estado surge como resultante de engrenagens múltiplas “num nível bem diferente e que constituem por sua conta uma ‘microfísica do poder’ 87. “(...) O poder é local porque nunca é global, mas ele não é local nem localizável porque é difuso” 88: ‘Se a polícia como instituição foi realmente organizada sob a forma de um aparelho de Estado, e se foi mesmo diretamente ligada ao centro da soberania política, o tipo de poder que exerce, os mecanismos que põe em funcionamento e os elementos aos quais ela os aplica são específicos’, encarregando- se de fazer penetrar a disciplina no detalhe efêmero de um campo social, demonstrando assim ampla independência em relação ao aparelho judiciário e mesmo político 89.

Até Michel Foucault o poder era algo que localizado institucionalizado. A historiografia ia (ou, ainda vai) consoante a estas prerrogativas remetendo-se ao político como equivalente de poder90. À teoria da subordinação na qual está envolto a noção de poder Foucault responde que não há “economia” de exterioridade no poder antes são “focos de poder” e de “técnicas disciplinares” que “formam um número equivalente de segmentos que se articulam uns sobre

84

BURKE, Peter. História e teoria social. São Paulo: UNESP, 2002. p.113. DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2005. p. 34. 86 FOUCAULT Apud DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2005. p. 34- 35. 87 DELEUZE, Gilles. Op. cit. p. 35. 88 Idem. p. 36. 89 Idem. 90 FALCON, Francisco. Histótia e poder. In.: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da história. 5. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1997.. p. 98. 85


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os outros e através dos quais os indivíduos de uma massa passam ou permanecem (...)” 91. Verdade é poder diria Foucault92. A escola é a única verdade educacional institucional que temos; a fábrica o principal meio de produção industrial; a prisão nosso majoritário instrumento de reabilitação social. Os únicos meios de nos fazermos, os meios “legítimos” de formação do sujeito. Nosso abecedário da subjetivação. (...) em cada momento da história a dominação se fixa em um ritual; ela impõe obrigações e direitos; ela constitui cuidadosos procedimentos. Ela estabelece marcas, grava lembranças nas coisas e até nos corpos; ela se torna responsável pelas dívidas. Universo de regras que não é destinado a adoçar, mas ao contrário a satisfazer a violência. Seria um erro acreditar, segundo o esquema tradicional, que a guerra geral, se esgotando em suas próprias contradições, acaba por renunciar à violência e aceita sua própria supressão nas leis da paz civil. A regra é o prazer calculado da obstinação, é o sangue prometido. Ela permite reativar sem cessar o jogo da dominação; ela põe em cena uma violência meticulosamente repetida. O desejo da paz, a doçura do compromisso, a aceitação tácita da lei, longe de serem a grande conversão moral, ou o útil calculado que deram nascimento à regra, são apenas seu resultado e propriamente falando sua perversão: ‘Falta, consciência, dever têm sua emergência no direito de obrigação; e em seus começos, como tudo o que é grande sobre a terra, foi banhado de sangue’. A humanidade não progride lentamente, de combate em combate, até uma reciprocidade universal, em que as regras substituiriam para sempre a guerra; ela instala cada uma de suas violências em um sistema de regras, e prossegue assim de dominação em dominação 93.

O poder em Foucault seria uma relação entre forças não tendo forma e sempre estando no plural se relacionando não com corpos, mas sim com outras forças que seriam seu único objeto. Não existiria, portanto, o sujeito da força. A validação ou/e “aceitação” de uma episteme como também a da emergência e da

proveniência é marcada pelos jogos de poder que a partir dos mais diversos ethos (neste caso principalmente o institucional) vão se autolegitimando.

A loucura não seria tão perigosa

quanto à denominação doença mental fundamentada por um grande aparato discursivo clínico além da própria autoridade de saber que o jaleco branco propõe. Não bastaria somente apontar os lugares, mas também a “voz” que emite e transmite o discurso. A ponderação do “orador”, sua suposta fala franca e verdadeira e sua aparência agradável o autorizam enquanto 91

DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2005. p.37. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Disponível em: < http://www .nodo50.org/insurgentes/biblioteca/A_Microfísica_do_Poder_-_Michel_Foucault.pdf >. Acessado em 17 abr. 2014 p. 11. 93 Idem. p. 17. 92


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detentor de poder- saber. “A eficácia (...) se origina no fato de que eles atravessam, carregam o conjunto da enunciação sem jamais explicitarem sua função”

94

. O mesmo ocorre nos ritos

academicistas. As autorizações discursivas deliberadas por meio dos títulos e do tom de voz confiante acompanhado – é claro– de garrafas e mais garrafas de água mineral; como também nas apresentações extraordinárias tais quais na semana acadêmica e apresentações de término de curso na qual os formandos são avaliados pelo seu poder de se autoautorizar por meio de sua vestimenta, de sua fala que espera- se clara e serena e, não só, mas também por meio dos autores já autorizados de sua referência bibliográfica. Os jogos de referências teóricas ao longo do trabalho escrito nada mais são do que um jogo de autorização. As bolsas de mérito, pautadas no rendimento dos respectivos discente, dão- lhe status de saber e de poder o autorizam a falar e também a ser ouvido. Pobre Zaratustra de Nietzsche na qual as palavras de seus lábios não convinham aos ouvidos alheios95. É, também, nestes termos que pensa Foucault o poder.

94 95

MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. 3. ed. Campinas: UNICAMP, 1997. p. 45. NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. 2. ed. São Paulo: Escala, s.d. p. 23.


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Considerações finais

Ao longo de nossas pesquisas e conseguintes leituras. Leituras estas não somente de textos impressos, mas de materiais audiovisuais que acabaram não cabendo no corpo do trabalho, e também, de nossos pensamentos avulsos e desordenados. Precisamos, como o serralheiro, cortar e linchar a madeira. Conter as águas de um oceano em continente, hereticamente, como Deus ao fazer as bordas de areia. Ordenar e classificar os livros da biblioteca tal qualo bibliotecário. Fizemos cortes; impomos violentamente como o romancista ou o diretor de cinema uma áurea. Deliberadamente nossas letras deram alma e mais corpo a conflitos: Ankersmit e Dumas; mudos e falantes; EUA e URSS; Annales e ciências sociais e métodos que vinham estabelecendo- se; Foucault “contra” a história, em última instância contra a milenar filosofia metafísica e o “positivismo dos conceitos” posto em evidência pelos diversos discursos institucionais. Tal qual a água que ferve para o preparo do café nosso texto borbulhou. Não citamos, posto que não houvesse tempo para a leitura, autores como Roberto Machado e Didier Eribon. O primeiro, um dos principais estudiosos e tradutores de Foucault do Brasil, e o segundo o seu principal biógrafo – é dele textos como Michel Foucault (1991) e

Foucault e seus contemporâneos (1994). Esperamos que a ínfima referência a um artigo de Guilherme Castelo Branco compense a falta de Machado. Assim bem como as não tão ínfimas menções a Gilles Deleuze e Paul Veyne e suas respectivas “biografias teóricas” compensem a ausência de Eribon. É bem certo, contudo, que mesmo com Veyne estejamos em falta haja vista que suprimimos seu importante texto, escrito em 1978, Foucault revoluciona a história contido em Como se escreve

a história. Os historiadores profissionais-- e mesmos os apenas licenciados-- devem ler mais Foucault, mesmo embora suas propostas metodológicas sejam difíceis de por em prática e seus textos sejam por deverás abstratos. Não limitando- se a estudar os novos lugares que foram propostos pelo filósofo- historiador. Lugares estes caracterizados pela marginalidade social como os presídios e os manicômios. O ostracismo ateniense pode muito bem, embora Foucault possa discordar, ser refletido nestas práticas de alienação social e do próprio sujeito. A prática histórica de Michel Foucault não é fundada em camadas densas de acontecimentos envoltos em uma lógica conceitual pautada no a priori metafísico. As


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palavras não se remeteriam propriamente as coisas. Sua busca não seria a dos começos mudos e sim dos gritos que buscam prevalência. Nada é acumulo em Foucault. O castigo... a sexualidade seriam conceitos em sacos furados. Ele busca as diversas epistemes, as diversas racionalidades. Não supostos refinamentos. Antes outra coisa. As hipotéticas redes de influência ou de tradição não lhe seriam pertinentes, mas sim as compatibilidades axiomáticas. Dentro de sua prática os termos limite, ruptura, corte, transformação serão moedas correntes. O sujeito não seria mais atemporal, anônimo e impessoal posto que mesmo no que se referiria a seus desejos algo pensaria nele e por ele— o inconsciente que seja!--, mesmo as propostas mais longínquas de Marx ou Nietzsche já propunham isto. O primeiro com a luta de classe e as relações de produção e o segundo por meio do desmembramento genealógico da salvaguarda do conceito de moral tanto por parte da camada aristocrática de uma sociedade quanto da clerical. O sujeito seria histórico e não se pertenceria nem a si próprio, mas às teias invisíveis de

poder- saber que o atravessariam como ele a elas. Tudo lhe escaparia e lhe seria inerente. Os conceitos como os próprios sujeitos devieram e continuariam a fazê- lo. Tudo é e não. A escrita da história em Foucault não seria a busca da visão de mundo de um determinado período proposto pelos annales, dos tipos ideais de Max Weber (1864- 1920) ou dos espíritos das épocas de Hegel. O arquivista põe, antes, em xeque as totalizações perquirindo- se acerca das questões do ser desmembradas em consciência, origem e sujeito. O historiador, em Foucault, deveria ser aquele que desvenda os jogos, as regras e perversões destes, demarcando as emergências. A procura não de uma moral ou de ideal singulares, mas plurais. O homem não teria uma verdade e/ ou alma eternas. Os absolutos da história seriam tomados de assalto tal qual a Bastilha na Revolução Francesa. A história, como pensada pela filosofia da história, não seria o norte de nós mesmos. Antes a própria vida pautada na luta do dia-a-dia. Para usar de forma parafraseada um dos depoimentos de Foucault: É na vida cotidiana martelada pelos mais diversos interesses discursivos. Pelos mais ecléticos campos de dizibilidade e de vizibilidade que a verdade dos homens se faz. A vida não é feita nas matrizes retangulares das folhas de papel; no não lugar das folhas em branco impressas por manchas negras, mas nos lugares concretos: prostíbulos, tribunais, cárceres... universidades, asilos e etc...


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