A morte e a sociedade nas danças macabras medievais

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A morte e a sociedade nas danças macabras medievais Death and society in medieval macabre dances Juliana Schmitt* *Doutora em Literatura pela Universidade de São Paulo (USP), São Paulo (SP), historiadora com especialização em História da Arte pela Universidade Estadual de Londrina, Paraná (PR), e mestre em Moda, Cultura e Arte pelo Centro Universitário Senac, São Paulo (SP). Docente na Faculdade Paulista de Artes e no Centro Universitário Belas Artes de São Paulo, São Paulo (SP). Pesquisa temas relacionados à História da Morte. É autora de Mortes Vitorianas: corpos, luto e vestuário (Editorial Alameda, 2010).

Resumo Gênero literário e iconográfico surgido na Baixa Idade Média, a dança macabra destaca o caráter infalível e universal da morte. O artigo analisa elementos importantes dessas obras, como a representação dos diferentes tipos humanos da sociedade medieval, a exposição do cadáver, a personificação do evento da morte como um defunto e o anonimato da autoria dessas imagens e versos. Os afrescos de Saints-Innocents, em Paris, e de La Chaise-Dieu, as gravuras publicadas por Guyot Marchand e o poema castelhano La Danza General de La Muerte serão os exemplares utilizados como apoio à essa investigação.

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eados do século XV: no interior da França, na pequena cidade de La Chaise-Dieu, dentro da Igreja abacial de Saint-Robert, um artista anônimo inicia uma grande obra, um afresco monumental, que ocuparia uma parede de mais de 20 metros de extensão. Uma dança macabra. A data precisa do começo dos trabalhos ou o tempo que levou para concluí-la, são incógnitas. Suas referências e suas motivações são também desconhecidas, assim como sua identidade, sua ocupação, sua posição na ordem – se é que tinha alguma. Os temas macabros estavam em plena expansão pela Europa naqueles anos. Sabe-se que o fim da Idade Média, em especial a partir da Peste Negra, assistiu ao surgimento de novas considerações a respeito da morte. Uma curiosidade quase obsessiva pelo cadáver invade o imaginário medieval, resultando na produção de imagens e textos que devassam o corpo, insistindo em seu aspecto de deterioração – por vezes dando especial ênfase à podridão e à repugnância desse processo. É desse contexto que, acredita-se, surgem as danças macabras. Elas seriam obras textuais e/ou iconográficas, em diversos suportes, que apresentam um desfile de personagens mortos e vivos. Esses últimos representam a sociedade, em suas mais diversas figuras hierárquicas, em seus diferentes ofícios e estados. Os mortos – mostrados como cadáveres em decomposição – conduzem a fila, cuja direção é o óbito. O objetivo do tema é afirmar o caráter inexorável e universal da morte e a importância de se estar sempre preparado para sua imprevisível chegada. Enquanto documento histórico, tem valor inestimável ao retratar a sociedade medieval, fornecendo detalhes sobre seus membros. No tocante à história das mentalidades, contam sobre a maneira como o medievo encarava a vida – e o seu fim.

Palavras-chave: Imaginário Macabro; Cadáver na Arte; Danças Macabras; História da Morte; Idade Média.

Origens do macabro Abstract Artistic gender born in the late Middle Ages, the Dance of Death highlights the infallibility and the universality of death. This article analyzes these pieces’s important elements, such as the representation of different human types from the medieval society, the exposure of the rotten corpse, the personified Death and the lack of authorship in these works. The frescoes of Saints-Innocents and La Chaise-Dieu, the engravings published by Guyot Marchand and the spanish poem La Danza General de La Muerte will be used as examples for this investigation. Keywords: Macabre Imaginary; The corpse in the art; Dance of Death; History of Death; Middle Ages.

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Poéticas Visuais, Bauru, v. 7, n. 1 , p. 14-28, 2016.

O imaginário macabro nasce e se desenvolve no contexto medieval, mais especificamente, em seus momentos finais, na chamada Baixa Idade Média. Ele representa uma certa concepção da existência humana, e se manifesta, via de regra, na iconografia e na literatura do período. Se até o século XIV, aproximadamente, predominava na cristandade a noção que contrapunha alma e corpo, sendo a morte uma libertação da alma (imaterial e imortal) de seu invólucro terrestre – e, portanto, passagem para uma outra existência, mais importante e plena, -, os séculos seguintes testemunharam uma mudança de fundo na maneira em que o medievo percebia o óbito. Como se houvesse uma maior valorização do “aqui e agora”, a morte passava a ser vista, também e cada vez mais, como um fim. Não que deixasse de ser uma travessia; a fé na continuidade da alma permanecia. Mas perdia espaço para uma maior crença na vida material. A existência tornava-se, assim, menos “transcedental” e crescia, nos homens, a percepção de si enquanto indivíduos atuantes em uma realidade empírica. A vida deixava, gradualmente, de ser, apenas, preparação para o grande trespasse. Tanto valor quanto o “além”, passava a ter também o que se era, o que se tinha, o que se fazia e o que se deixava no mundo. A noção de identidade pessoal progredia na medida em que práticas relativas à privacidade, como a confissão, o diário e a escritura de cartas pessoais, entre outras, emergiam. A arte dedicava-se cada vez mais ao retrato, a Igreja incentivava a confissão - a narrativa dos próprios pecados. Os cuidados com o corpo aumentam1, uma vez que se reconhece, nele, o vínculo com essa existência terrena valorizada. Se o corpo material era tão importante quanto a alma que ele continha, naturalmente ele Poéticas Visuais, Bauru, v 7, n. 1 , p. 14-28, 2016.

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