O Jovem Sherlock Holmes - A Nuvem da Morte

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CAPÍTULO UM – Você! Chegue aqui! O Sherlock Holmes voltou-se para ver quem era chamado e quem estava a chamar. Naquela manhã, havia centenas de alunos ao sol resplandecente, junto da Escola de Deepdene para rapazes, cada um deles vestido com uma farda escolar imaculada, e cada um deles com um baú de madeira com alças de couro ou com uma pilha de malas a abarrotar, à sua frente, como um cão leal. Qualquer um deles poderia ser o alvo. Os professores de Deepdene tinham por hábito nunca tratarem os alunos pelo nome; era sempre «Você!», ou «Rapaz!», ou «Criança!» Era algo que dificultava a vida e mantinha os rapazes na ordem, e deveria ser essa a razão por que o faziam. Ou isso ou há muito tempo que os professores tinham desistido de tentar recordar os nomes dos alunos; o Sherlock não sabia qual era a explicação mais provável. Talvez ambas. Nenhum dos outros alunos estava a prestar grande atenção. Ou estavam a conversar com os familiares que tinham vindo buscá-los ou olhavam ansiosamente para os portões da escola, à espera de verem a carruagem que iria levá-los para casa. Com relutância, o Sherlock voltou-se para ver se o dedo maligno do destino apontava para si. 10


Apontava. Neste caso, o dedo pertencia ao senhor Tulley, o professor de latim. Acabara de virar a esquina da escola, onde o Sherlock se destacava dos outros rapazes. O seu fato, que costumava estar coberto de pó de giz, tinha sido limpo especialmente para o final do período e as inevitáveis reuniões com os pais, que pagavam pela educação dos seus filhos; e tinha o capelo bem direito na cabeça, como se aí tivesse sido colado pelo diretor da escola. – Eu, professor? – Sim, senhor. Você! – exclamou o senhor Tulley. – Vá já ao gabinete do diretor, quam celerrime. Lembra-se o suficiente de latim para saber o que significa? – Quer dizer «o mais depressa possível», professor. – Então, mexa-se. O Sherlock olhou de soslaio para o portão da escola. – Mas, professor, estou à espera de que o meu pai me venha buscar. – Decerto que ele não partirá sem si, rapaz. O Sherlock fez uma última e ousada tentativa. – A minha bagagem… O senhor Tulley olhou com desprezo para o baú de madeira do Sherlock, já muito usado: uma herança das viagens militares do pai, com velhas manchas de terra e arranhões da passagem dos anos. – Não vejo quem possa querer roubá-la – disse. – Só se for pelo valor histórico. Vou pedir a um contínuo para o guardar. Agora, ponha-se a andar. 11


Com relutância, o Sherlock abandonou os seus pertences (as camisas extra e a roupa interior, os livros de poesia e os cadernos de apontamentos, onde se habituara a registar ideias, pensamentos, especulações e uma ou outra melodia que lhe viesse à mente) e dirigiu-se para o pórtico de colunas na frente do edifício da escola. Ao avançar através da multidão de alunos, pais e familiares, mantinha-se de olho na entrada, onde havia um amontoado de cavalos e carruagens que tentavam entrar e sair pelo estreito portão ao mesmo tempo. O átrio da entrada principal era forrado a painéis de carvalho e rodeado por bustos de mármore de anteriores diretores e patronos, cada um no seu pedestal. Os raios de sol que atravessavam o átrio na diagonal, desde as janelas altas até ao chão de mosaicos pretos e brancos, realçava as partículas de giz que havia no ar. Cheirava ao fénico que as criadas usavam para limpar os mosaicos todas as manhãs. A grande quantidade de pessoas no átrio tornava provável que pelo menos um dos bustos fosse derrubado em breve. Alguns deles já tinham grandes fendas no mármore puro, o que sugeria que, em cada período, pelo menos um deles ia parar ao chão e depois era reparado. Conseguiu, com dificuldade, ir penetrando através da multidão de pessoas, que o ignoravam, acabando por libertar-se dela e entrar num corredor que partia do átrio principal. O gabinete do diretor ficava a escassos metros. Parou à entrada, inspirou, sacudiu as lapelas e bateu à porta. 12


– Entre! – gritou uma voz teatral e forte. O Sherlock rodou a maçaneta e abriu a porta, a tentar controlar o espasmo de nervosismo que atingiu o seu corpo como um raio. Só tinha estado duas vezes no gabinete do diretor, uma com o pai, quando chegou pela primeira vez a Deepdene, e outra ao fim de um ano, com um grupo de alunos, acusados de copiar num exame. Os três líderes do grupo foram vergastados e expulsos; os quatro ou cinco seguidores foram vergastados até as nádegas sangrarem e foram autorizados a ficar. O Sherlock, cujo trabalho tinha sido copiado, escapara a ser vergastado, ao alegar que nada sabia do assunto. Na verdade, ele soubera. Sempre fora uma espécie de marginal na escola, e, se deixar os outros alunos copiar o seu trabalho contribuisse para que fosse tolerado, se não aceite, ele não teria objeções éticas. Por outro lado, também não iria denunciar quem copiara. Isso ter-lhe-ia valido uma sova e, talvez, ter ficado pendurado diante de uma das lareiras acesas que dominavam os dormitórios, até que a sua pele começasse a empolar e as roupas a fumegar. A vida escolar era assim: um ato de equilíbrio contínuo entre os professores e os outros alunos. E ele odiava-a. O gabinete do diretor era exatamente como ele o recordava: amplo, sombrio e a cheirar a uma mistura de couro e tabaco de cachimbo. O senhor Tomblinson estava sentado atrás de uma secretária de tamanho suficiente para jogar bilhar. Era um homem imponente que vestia um fato que lhe ficava ligeiramente pequeno, 13


talvez escolhido para o ajudar a pensar que não era tão grande como obviamente era. – Ah, Holmes, não é? Entre, rapaz, entre. Feche a porta atrás de si. O Sherlock fez como lhe mandaram, mas, ao fechar a porta, apercebeu-se de outra figura na sala: um homem de pé diante da janela, com um copo de xerez na mão. Os raios de sol refratavam-se em fragmentos do arco-íris no vidro talhado do copo. – Mycroft? – supreendeu-se o Sherlock. O seu irmão mais velho virou-se para ele, e um sorriso passou pelo seu rosto, tão depressa que, se Sherlock tivesse pestanejado no momento errado, não o teria visto. – Sherlock. Estás mais crescido. – Tal como tu – disse o Sherlock. Na verdade, o irmão estava mais gordo. Estava quase tão rechonchudo como o diretor, mas o fato tinha um corte que o disfarçava, em vez de o acentuar. – Vieste na carruagem do pai. O Mycroft ergueu o sobrolho. – Como raios é que o deduziste, meu jovem? O Sherlock encolheu os ombros. – Reparei nos vincos paralelos nas tuas calças, onde o estofo as marcou, e recordo-me de que a carruagem do pai tem um rasgão no estofo que foi mal reparada, há alguns anos. As tuas calças têm a marca dessa reparação. – Fez uma pausa. – Mycroft, onde está o pai? O diretor aclarou a voz para voltar a chamar a atenção. 14


– O seu pai foi… – O pai não vem – interrompeu o Mycroft com delicadeza. – O seu regimento foi destacado para a Índia, para reforçar as forças militares lá existentes. Houve alguma agitação na região da fronteira. Sabes onde fica? – Sim. Estudámos a Índia nas aulas de geografia e de história. – Lindo menino. – Não sabia que os nativos estavam novamente a causar problemas – murmurou o diretor. – Não veio no The Times, de certeza. – Não são os indianos – disse o Mycroft. – Quando retomámos o país da Companhia das Índias Orientais, os militares voltaram a ficar sob o controlo do Exército. O novo regime pareceu-lhes muito mais… rígido… do que aquele a que estavam habituados. Tem havido um grande descontentamento, e o governo decidiu aumentar drasticamente a dimensão da força na Índia, para lhes dar um exemplo do que são soldados a sério. Já é suficientemente mau ter os indianos revoltosos; um motim dentro do Exército britânico é impensável. – E haverá um motim? – perguntou o Sherlock, sentindo o seu coração afundar-se como uma pedra atirada a um lago. – O pai estará a salvo? O Mycroft encolheu os ombros enormes. – Não sei – disse simplesmente. Era uma das coisas que o Sherlock respeitava no irmão. Dava sempre uma resposta direta a uma pergunta direta. Nada de dourar 15


a pílula. – Infelizmente, não sei tudo. Pelo menos, por enquanto. – Mas trabalhas para o governo – insistiu o Sherlock. – Deves ter uma ideia do que poderá acontecer. Não podes enviar outro regimento? Manter o pai aqui, em Inglaterra? – Estou no Ministério dos Negócios Estrangeiros há poucos meses – respondeu o Mycroft. – Apesar de me sentir lisonjeado por achares que tenho poder para alterar coisas tão importantes, receio que não. Sou um conselheiro. Na verdade, apenas um funcionário administrativo. – Quanto tempo o pai estará ausente? – perguntou o Sherlock, recordando o homem grande, com um casaco de sarja escarlate com correias brancas a cruzarem no peito vestido, que ria com facilidade e raramente se zangava. Sentia um aperto no peito, mas conteve-se. Se havia alguma coisa que ele tinha aprendido na Escola de Deepdene, era que nunca deveria demonstrar qualquer emoção. Se o fizesse, isso seria utilizado contra si. – Seis semanas para o navio chegar ao porto, seis meses no país, penso, e outras seis semanas para regressar. Nove meses ao todo. – Quase um ano. – O Sherlock baixou a cabeça por instantes, para se recompor, e depois assentiu. – Já podemos ir para casa? – Tu não vais para casa – disse o Mycroft. O Sherlock ficou parado, a absorver aquelas palavras do irmão, sem dizer nada. 16


– Ele não pode ficar cá – murmurou o diretor. – Isto vai fechar para limpeza. O Mycroft desviou o seu olhar calmo do Sherlock para o diretor. – A nossa mãe… Ela não está bem – disse. – Tem uma constituição delicada, nos melhores momentos, e esta questão com o nosso pai causou-lhe grande perturbação. Precisa de paz e sossego, e o Sherlock precisa de alguém mais velho que tome conta dele. – Mas tenho-te a ti! – protestou o Sherlock. O Mycroft abanou a sua grande cabeça, com tristeza. – Agora vivo em Londres, e a minha profissão exige que trabalhe muitas horas por dia. Receio que não seria um bom guardião para um jovem, sobretudo um tão curioso como tu. – Voltou-se para o diretor, quase como se fosse mais fácil dar-lhe a ele a informação seguinte do que ao Sherlock. – Apesar de a casa de família ser em Horsham, temos familiares em Farnham, não muito longe daqui. Um tio e uma tia. O Sherlock ficará com eles durante as férias escolares. – Não! – explodiu o Sherlock. – Sim – disse o Mycroft com calma. – Está tudo tratado. O tio Sher­rinford e a tia Anna aceitaram acolher-te durante o verão. – Mas eu nem os conheço! – Mas são da família. O Mycroft despediu-se do diretor, enquanto o Sherlock continuou ali, impávido, a tentar assimilar a enormidade 17


do que acabara de acontecer. Não iria para casa. Não iria ver o pai e a mãe. Não iria explorar os campos e bosques em volta da casa senhorial que fora o seu lar durante catorze anos. Não iria dormir na sua velha cama, no quarto sob os beirais da casa, onde guardava todos os seus livros. Não iria espreitar a cozinha, onde a cozinheira lhe dava uma fatia de pão e compota se ele lhe sorrisse. Em vez disso, passaria semanas na companhia de pessoas que não conhecia, a comportar-se o melhor que podia, numa cidade, numa região sobre a qual não sabia nada. Sozinho, até regressar à escola. Como iria aguentar? O Sherlock seguiu o Mycroft para fora do gabinete do diretor e ao longo do corredor, até ao átrio. No exterior, havia uma carruagem fechada, com rodas lamacentas e poeirentas da viagem que o Mycroft tinha feito até à escola. O brasão da família Holmes fora pintado na porta. O baú do Sherlock já estava arrumado na parte de trás. Um condutor magro, que o Sherlock não reconheceu, estava sentado no assento do cocheiro, na parte da frente; as rédeas que o ligavam aos dois cavalos repousavam frouxamente nas suas mãos. – Como é que ele sabia que aquele era o meu baú? O Mycroft fez um gesto com a mão que indicava que não era nada de especial. – Pude ver pela janela do gabinete do diretor. O baú era o único que estava abandonado. Além disso, era o que o pai costumava usar. O diretor teve a amabilidade de 18


enviar um rapaz cá fora, para lhe dizer que pusesse o baú na carruagem. – Abriu a porta da carruagem e indicou ao Sherlock que entrasse. Em vez disso, o Sherlock olhou em volta, para a sua escola e para os seus colegas. – Comportas-te como se nunca mais voltasses a vê-los – disse o Mycroft. – Não é isso – respondeu o Sherlock. – É que pensava que ia sair daqui para algo melhor. Agora sei que vou partir daqui para algo pior. Por muito mau que isto seja, pelo menos já sei o que me espera. – Não será assim. O tio Sherrinford e a tia Anna são boas pessoas. O tio Sherrinford é irmão do pai. – Então porque nunca ouvi falar neles? – perguntou o Sherlock. – Porque é que o pai nunca mencionou que tinha um irmão? O Mycroft encolheu-se quase impercetivelmente. – Receio que tenha havido uma desavença na família. As relações estiveram tensas durante algum tempo. A mãe retomou o contacto por carta há uns meses. Não estou certo de que o pai saiba. – E é para esse local que me estás a mandar? O Mycroft deu uma pancadinha no ombro do Sherlock. – Se houvesse alternativa, escolhê-la-ia, acredita. Precisas de te despedir de alguns amigos? O Sherlock olhou em volta. Havia rapazes que conhecia, mas será que algum era seu amigo de verdade? – Não – disse. – Vamos embora. 19


A viagem até Farnham demorou algumas horas. Depois de passarem pela vila de Dorking, que era o casario mais próximo da escola, a carruagem percorreu as estradas rurais, sob árvores frondosas, passando ocasionalmente por uma cabana com telhado de colmo ou por uma casa maior, ao longo de campos de cevada madura. O sol brilhava num céu límpido, transformando a carruagem num forno, apesar da brisa que soprava do exterior. Os insetos zumbiam vagarosamente nas janelas. O Sherlock observou o mundo a passar durante algum tempo. Pararam para almoçar numa estalagem, onde o Mycroft comprou presunto, queijo e meio pão. A dada altura, o Sherlock adormeceu. Quando acordou, minutos ou horas depois, a carruagem percorria ainda a mesma paisagem. Conversou com o Mycroft durante alguns momentos sobre o que se passava em casa, sobre a irmã e a saúde frágil da mãe. O Mycroft perguntou pelos estudos do Sherlock e este falou-lhe das várias disciplinas que tivera e sobre os seus professores. Imitou as vozes e os maneirismos deles, e o Mycroft não conseguiu deixar de se rir com a crueldade e o humor das suas imitações. Ao fim de algum tempo, viam-se mais casas à beira da estrada, e pouco depois estavam a atravessar uma grande vila, com os cascos dos cavalos a ecoarem na calçada. Ao inclinar-se para fora da janela da carruagem, o Sherlock viu o que parecia ser uma sede administrativa: um edifício de três andares, todo em estuque branco e traves 20


pretas, com um grande relógio suspenso numa armação no exterior das portas duplas. – Farnham? – tentou adivinhar. – Guildford – respondeu o Mycroft. – Farnham já não fica longe. A estrada que saía de Guildford percorria um cume, cujo terreno descia de ambos os lados, com campos e bosques dispersos como brinquedos, com manchas de flores amarelas. – Este cume chama-se Hog’s Back – informou o Mycroft. – Há uma estação de semáforos por aqui, em Pewley Hill. Faz parte de uma cadeia que vai desde o Edifício do Almirantado, em Londres, até ao Porto de Portsmouth. Ensinaram-te sobre os semáforos na escola? O Sherlock abanou negativamente a cabeça. – Típico – murmurou o Mycroft. – Quanto mais latim um rapaz conseguir enfiar no miolo, melhor, mas nada que possa ter utilidade prática – suspirou profundamente. – Um semáforo é um método de transmissão de mensagens rápido e de longa distância, que demoraria dias a cavalo. As estações de semáforos têm placas nos telhados que se veem à distância; estas placas têm seis grandes orifícios, que podem ser abertos ou fechados por portadas. Consoante os orifícios que estão abertos ou fechados, a placa representa várias letras. Em cada estação de semáforos, há um homem que vigia a anterior e a seguinte, com um telescópio. Se perceber que há uma mensagem a ser soletrada, regista-a por escrito e 21


depois repete-a através da sua própria placa de semáforos, e é assim que a mensagem é transmitida. Esta cadeia em particular começa no Almirantado, depois passa por Chelsea e Kingston, ao longo do Tamisa, até aqui, depois até ao porto de Portsmouth. Há outra cadeia que vai até ao porto de Chatham e outras que vão até Deal, Sheerness, Great Yarmouth e Plymouth. Foram construídas para que o Almirantado pudesse enviar mensagens à Marinha, de maneira rápida, no caso de o país ser invadido pela França. Agora, diz-me, se há seis orifícios e cada um deles pode estar aberto ou fechado, quantas combinações existem, que possam significar letras, números ou outros símbolos? Contrariando a vontade de dizer ao irmão que a escola tinha acabado, o Sherlock fechou os olhos por uns instantes e fez o cálculo. Um orifício podia ter dois estados: aberto ou fechado. Dois orifícios podiam ter quatro estados: aberto-aberto; aberto-fechado; fechado-aberto; fechado-fechado. Três orifícios… Depressa fez o cálculo na sua cabeça e viu um padrão a surgir. – Sessenta e quatro – acabou por responder. – Muito bem – confirmou o Mycroft. – Folgo em saber que pelo menos a tua matemática está em forma. – Olhou pela janela, para a sua direita. – Ah, Aldershot. É um lugar interessante. Há catorze anos, a rainha Vitória designou-o como sede do Exército britânico. Antes disso, era um lugarejo com uma população de menos de mil habitantes. Agora tem dezasseis mil e continua a crescer. 22


O Sherlock esticou o pescoço para ver o que havia no exterior da janela do irmão, mas, de onde estava, via apenas casas dispersas e o que poderia ser uma linha férrea, paralela à estrada, no fundo do declive. Voltou a instalar-se no seu lugar e fechou os olhos, tentando não pensar no que o esperava. Ao fim de algum tempo, sentiu que a carruagem descia uma ladeira. Pouco depois, fizeram uma série de curvas, e o som do bater dos cascos dos cavalos no solo mudou de pedras para terra batida. Fechou os olhos com mais força, tentando adiar o momento em que teria de aceitar o que estava a acontecer. A carruagem parou em cima de gravilha. O som do chilrear de aves e do vento a soprar através das árvores encheu a carruagem. O Sherlock podia ouvir passos na sua direção. – Sherlock – disse o Mycroft com delicadeza –, é hora de enfrentar a realidade. Abriu os olhos. A carruagem estava parada junto à entrada de uma grande casa. Feita de tijolos vermelhos, erguia-se acima deles: três andares, mais o que parecia ser uma série de quartos no sótão, a avaliar pelas pequenas janelas nas telhas cinzentas. Um criado estava prestes a abrir a porta do Mycroft. O Sherlock deslizou pelo banco e saiu, logo depois do irmão. Havia uma mulher nas sombras escuras, no cimo de três largos degraus de pedra que levavam ao pórtico da 23


entrada principal. Estava toda vestida de preto. O rosto dela era magro e macilento, os lábios contraídos e os olhos estreitos, como se, naquela manhã, alguém tivesse substituído a sua chávena de chá por vinagre. – Bem-vindos a Holmes Manor – disse, numa voz seca e fina. – Sou a senhora Eglantine, a governanta. – Olhou para o Mycroft. – O senhor Holmes irá recebê-lo na biblioteca, quando estiver pronto. – O seu olhar deslizou para o Sherlock. – E o criado irá transferir a sua… bagagem… para o seu quarto, menino Holmes. O chá da tarde será servido às três horas. Faça o obséquio de ficar no seu quarto até lá. – Não ficarei para o chá – disse o Mycroft suavemente. – Lamento muito, mas tenho de regressar a Londres. – Virou-se para o Sherlock, e olhou-o com uma expressão que era em parte de compaixão, em parte de amor fraternal e em parte um aviso. – Fica bem – disse. – Voltarei para te levar de volta à escola, no final das férias, e virei visitar-te entretanto, se puder. Porta-te bem e aproveita a oportunidade para explorares a zona. Creio que o tio Sherrinford tem uma biblioteca excecional. Pergunta-lhe se podes beneficiar da sabedoria acumulada que contém. Deixarei o meu contacto com a senhora Eglantine. Se precisares de mim, envia-me um telegrama ou escreve-me uma carta. – Inclinou-se e pousou uma mão reconfortante no ombro do Sherlock. – São boas pessoas – disse, num tom suficientemente baixo para que a senhora Eglantine não o ouvisse. – Mas, como todos na 24


família Holmes, têm as suas excentricidades. Tem cuidado e vê se não os incomodas. Escreve-me quando tiveres um momento. E lembra-te: isto não é para o resto da tua vida. São apenas uns meses. Sê corajoso. – E apertou o ombro do Sherlock. O Sherlock sentiu uma onda de raiva e frustração a subir-lhe pela garganta e engoliu-a. Não queria que o Mycroft o visse reagir, nem queria que a sua temporada em Holmes Manor começasse mal. O que quer que fizesse nos minutos seguintes marcaria o tom do resto da sua estada. Estendeu a mão. O Mycroft retirou a mão do ombro do Sherlock e apertou-lha, sorrindo calorosamente. – Adeus – disse o Sherlock no tom mais neutro que conseguiu. – Manda saudades à mãe e à Charlotte. E, se tiveres notícias do pai, avisa. O Mycroft voltou-se e começou a subir as escadas até à entrada. A senhora Eglantine olhou o Sherlock por instantes, inexpressivamente. Depois virou-se e acompanhou o Mycroft até à casa. Ao olhar para trás, o Sherlock viu o criado com dificuldade em levantar o baú sobre o ombros. Quando o conseguiu, cambaleou escadas acima e passou pelo Sherlock, que o seguiu, desconsolado. O vestíbulo tinha mosaicos pretos e brancos, paredes em mogno, uma escadaria com ornamentos em mármore, que descia dos pisos superiores, como uma queda de água congelada, e vários quadros de cenas religiosas, paisagens 25


e animais. Nesse momento, o Mycroft cruzava uma porta à esquerda da escadaria, que dava para uma sala que, pelo que o Sherlock conseguiu ver, estava coberta de livros encadernados em pele verde. Um homem idoso e magro, com um fato preto antiquado, levantava-se de uma cadeira forrada em pele de um tom que condizia perfeitamente com a cor dos livros por trás dela. O seu rosto pálido e barbudo tinha rugas, e o seu couro cabeludo tinha manchas da idade. A porta fechou-se atrás deles, enquanto apertavam as mãos. O criado atravessou os mosaicos até ao fundo das escadas, com o baú do Sherlock equilibrado no ombro. O Sherlock seguiu-o. A senhora Eglantine estava ao fundo das escadas, à porta da biblioteca. Olhava por cima da cabeça do Sherlock, na direção da porta. – Criança, lembre-se de que não é bem-vinda aqui – sibilou quando ele passou.

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