Foto de capa: Adnan Abidi
A foto retrata um protesto que ocorreu em novembro de 2019 da Universidade Politécnica de Hong Kong. A manifestação daquele dia teve um fim violento: após bombas de gasolina atiradas pelos protestantes e gás lacrimogêneo utilizado pela política, mais de 600 pessoas presas por tumulto e protestos “anti-governo”. Sobre o episódio, Geng Shuang, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, comentou: “Ninguém deve subestimar a vontade da China de salvaguardar sua soberania e a estabilida de de Hong Kong”. (Reuters)
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Sumário World Review Debate Democratas vs. Republicanos É realmente a Democracia o melhor sistema político? A Fragilidade Democrática Ascensões Democráticas de Líderes Autoritários: um estudo histórico do avanço Nazista na Alemanha O Imperialismo Sutil que ainda Reina nos Museus dos “Ex” Impérios Analisando Governos Putin, um príncipe maquiavélico Formadores de opinião no século XXI: a influência dos artistas no cenário político O Roubo de Uma Estrela O Caso da Grande Estrela da África Bruxelas: a capital europeia que se modernizou sob a mutilação de congoleses. WR + DVM O papel do Nasserismo na Revolução Líbia WR WR WR WR WR WR WR WR WR WR WR WR WR WR 07 52 21 58 26 63 39 73 43 Foto: The New York Times
El Comercio 3
Foto:
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Direito à independência, busca pelo desenvolvimento, dever moral de propagar a liberdade. Seria esse ideal referente à Teoria Hegemônica Liberal contemporânea ou a base para as políticas imperialistas do século XIX?
A primeira opção tem se popularizado desde o fim da 2a Guerra Mundial, argumentando que é necessária uma potência capaz de levar a democracia e a liberdade por todo o mundo, enquanto a segunda alternativa é vista como uma política cruel e imperialista adotada num mundo onde o colonialismo reinava.
Em 1845, James O’Sullivan, um influente jornalista estadunidense, publicou a filosofia do Destino Manifesto - um termo usado pela primeira vez para uma ideia quase tão antiga quanto a roda. “Outras nações se comprometeram a se intrometer”, ele escrevera, “em um espírito de interferência hostil contra nós, com o objetivo declarado de frustrar nossa política e dificultar nosso poder, limitar nossa grandeza”. Além de defender o expansionismo, O’Sullivan ainda ressaltou a pobreza da América Espanhola e falta de perspectiva para o Canadá – acreditando que era apenas uma questão de tempo até que ambas as regiões fossem anexadas aos Estados Unidos.
Com as noções de soberania e autodeterminação dos povos de hoje, as crenças do jornalista podem parecer absurdas. Todavia, tanto o Destino Manifesto quanto o neoimperialismo de atual têm a mesma base de expansão da dominação em nome da liberdade. O que os tornaria tão diferentes? Apesar de gostarmos de pensar na sociedade atual como mais esclarecida, mais justa e menos bárbara que as anteriores, é uma linha tênue que diferencia as ideias por trás da expansão de impérios em cada época – propagando, em maior ou menor grau, a superioridade de um povo sobre outro.
Talvez a principal diferença seja que, diferente dos impérios do passado, as grandes potências de hoje não precisam necessariamente de expansão territorial, mas, apenas que suas ideias e sua influência atravessem fronteiras. O problema ocorre quando esses ideais apresentam uma ameaça para autoridade local, aí, sim, a situação pode ficar muito parecida com os conflitos que permearam os últimos capítulos da história da humanidade.
Nesta edição da World Review Magazine, buscamos compreender se a hierarquia entre as nações, hoje, se constrói como antes ou tenta trazer uma nova proposta, uma versão melhorada. Assim convidamos você, leitor, a considerar como o sistema internacional tem evoluído e ainda mantém tantos aspectos de tempos passados.
Editorial
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“Liberdade, igualdade, fraternidade ou morte, sendo esta última a mais fácil de se conceder, ó guilhotina!”
– Charles Dickens, Um conto de Duas Cidades
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Foto: Tyrone Siu, REUTERS
World Review Debate
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Democratas vs. Republicanos
INTRODUÇÃO
Quando as 13 colônias conseguiram sua independência do Reino Unido, em 1776, todos os líderes políticos pareciam concordar em qual seria a direção a seguir: uma república fe derativa constitucional, com a demo cracia como prioridade número um. A perspectiva de uma nação livre pa recia inspiradora e empolgante. Mas havia um cenário que eles temiam: a divisão da república em dois grandes partidos. Irônico, não?
Com medo de que o novo governo logo vinhesse a se assemelhar com o colonialismo anterior, George Washington, primeiro presidente americano, explicou: “a dominação alternada, de uma facção sobre outra, aguçada pelo espírito de vingança natural de uma dissensão partidária é em si um despotismo assustador” . Mas, apesar de todos os esforços, o governo da terra dos livres, lar dos valentes foi permeado pela bipolari dade desde seus primeiros passos.
Britânicos reconheceram formalmente a independência de suas antigas 13 colônias. Wikimedia Commons
Por: Ester Meireles e Thabata Castro
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Já em 1787, na Convenção Constitu cional, ao elaborar a carta magna do recém-formado país, os federalistas e os – literalmente – anti-federalistas já se opunham para decidir quem teria mais poder: a União ou os estados. Em 1800, os anti-federalistas assumi ram a forma do partido Democrata-Republicano com a vitória de Thomas Jefferson na presidência, tendo eleitores majoritariamente pertencentes à classe trabalhadora em oposição aos federalistas fundiários.
“
Vamos mostrar a esses federalistas o que eles estão enfrentando: os filhos da **** democratas-republicanos ”
Thomas Jefferson, James Madison e Aaron Burr representados em Ha milton: Um Musical Americano.
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O partido se dividiu, e em 1824, a parte Democrata ganhou mais destaque com a eleição de Andrew Jackson em 1829. A oposição veio na forma do partido Whig, extremamente crí tico ao Destino Manifesto e a Guerra México-Americana travada por Jack son. Outros partidos surgiram em se guida, mas nenhum com força rele vante. Entretanto, em 1854, 30 anos depois, combatendo a escravidão e batendo de frente com os democra tas, o Whigs evoluiu para o partido Republicano, levando Abraham Lin coln à vitória em 1860.
O antagonismo entre as partes era tanto que envolveu até a Guerra Civil americana. Talvez para a surpresa de muitos, os Republicanos (mais pre sentes nos estados do norte, apoian do a União) lutaram pelo fim da es cravidão, enquanto os democratas (mais presentes nos estados do sul, os confederados), lutaram contra, sendo mais conservadores e com um posicionamento mais latifundiário.
Sendo um sistema que existe a mais de 150 anos, muita coisa mudou. Apesar de que as pautas de hoje ain da envolvam tamanho do aparato Estatal e direitos das minorias, os dois partidos sofreram muitas mu danças. Hoje, é comum associar de mocratas e republicanos à esquerda e à direita, respectivamente. Mas o nome remete mais ao lugar que eles sentam no Congresso do que às medidas adotadas por eles de fato. A única certeza é de que o pesadelo de George Washington se tornou realidade, e a polarização do sistema bipartidário vem assombrando as elei ções americanas faz décadas.
George Washington Presidente dos Estados Unidos Retrato de Lansdowne, pngwings
Abraham Lincoln, fotografia por Alexander Gardner
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DEMOCRATAS:
Os Democratas começaram apoiando a supremacia branca e criando o Des tino Manifesto. No entanto, a partir do século XX, quando o país teve um boom de crescimento de grandes ne gócios, os donos de empresas se tor naram grandes influentes na política. A partir daí surge uma maior preo cupação com a economia e a ideia de que deveriam advogar por um Estado que cuidasse dos trabalhadores. Esse posicionamento foi selado em 1933 com o New Deal do então presidente democrata, Roosevelt.
Você não sabe? O mundo é construído com sangue! E genocídio e exploração! A rede global de capital funciona essencialmente Para separar o trabalhador dos meios de produção ”
“
Bo Burnhman cantando How The World Works
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Assim, o partido transiciona para o lado mais à esquerda do espectro político. E apesar da questão da se gregação racial ainda levantar dis cordâncias internas, foi em 1964 que o partido se posicionou mais a favor do que contra os direitos civis. dai adiante, os eleitores negros pas saram a votar mais nos democratas do que nos republicanos.
Enquanto os eleitores traziam pautas de igualdade e justiça para o partido Democrata, os antigos eleitores conservadores passaram para o lado republicano, agora defendendo ‘valores tradicionais’, predominantemente no sul do país. Assim, geograficamente a influência de cada partido começa a trocar de lado. Com essa mudança de
eleitores, os democratas se tornaram um partido com causas das minorias por liberdade, justiça e igualdade, através de intervenção Estatal para o alcance de direitos individuais. Assim, o partido que costumava apoiar a Ku Klux Khan elegeu o primeiro presidente negro do país em 2008.
gráfico voto da população negra | fonte: The Washington Post
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Por conta disso, as iniciativas demo cratas costumam ser classificadas como medidas de esquerda, com va lores liberais e progressivos com um governo regulador da economia. En tretanto, o posicionamento dos elei tores e de seus candidatos difere em vários níveis a cada pauta levantada. Mas é possível dizer que, no geral, as principais bandeiras levantadas pe los democratas são:
• Assistência médica financiada pelo governo;
• Serviço social acessível;
• Igualdade de Gênero;
• Legalização do aborto;
• Legislação mais rígida sobre o porte de armas;
• Liberdade religiosa;
• Separação entre o Estado e a religião;
• Financiamento reduzido para os mi litares;
• Alta tributação em altas rendas.
https://obamawhitehouse.archives.gov/
Obama march 50th year of
Selma
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medicare for all | Foto: Justin Sullivan]
Apesar do viés ‘esquerdista’, a pluralidade dos eleitores democratas, na prática, não permite que o partido se afas te muito do centro do espec tro político. “Em comparação com a Dinamarca, onde os im postos são geralmente altos, a política tributária democrata pode não parecer excessiva, mas em uma escala de tribu tação dos EUA, essas porcen tagens de impostos estão são extremas e pesadas” – diz o próprio site da embaixada dos EUA na Dinamarca.
aoc‘tributem os ricos
foto da
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Uma das figuras que ganham mais destaque no partido é Bernie San ders, que concorreu para ser o can didato à presidência em 2020 e é atualmente senador de Vermont. Por ser contra o neoliberalismo, Sanders é conhecido como extremista e já foi intitulado numa coluna do New York Times: “um socialista cujas ideias morreram em 1989” . Mas ao analisar as propostas de Bernie é possível no tar que ele se encaixa mais como so cial-democrata, com posicionamen tos semelhantes a de governos da Europa-Nórdica, por exemplo, o que
seria uma esquerda moderada. Iro nicamente, as propostas de Sanders não são muito diferentes das ideias por trás do New Deal , que consolida ram o posicionamento econômico do partido na década de 30.
Apesar de ter recebido uma porcen tagem considerável de votos nas pri márias em 2020, Sanders assim como outros nomes fora da curva, como Warren e Buttigieg, não tiveram mais apoio para assumir a candidatura do que o Biden que melhor se adaptava e englobava os interesses do partido em sua agenda. Sobre essa amplitu de de pautas, Michael Kazin — his toriador, professor da Universidade de Georgetown, e escritor do livro “O que foi preciso para vencer: uma história do Partido Democrata” — disse, em entrevista para a The New Yorker Magazine:
“À medida que o Partido se tornou mais diversificado racial e etnicamen te, acolhendo imi grantes, tornou-se mais difícil desco brir quem era ‘o povo’ e quais eram seus interesses”.
ISINDER Data analysis
BBC
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Michael Kazin, American Historical Association
Em 2020 vocês votaram para promover a mudança que queriam ver no mundo. Em 2022, vocês precisam exercer seu poder de votar novamente, no futuro de nossa nação e no futuro de sua geração ”
Em comparação aos republicanos, os democratas têm um problema maior com a diversidade interna de ideias, o que torna mais difícil gerar um sentimento de identificação com os eleitores. Também é importante ressaltar que há uma diferença en tre o que o partido se propõe a fazer e o que consegue fazer de fato, ao ter que competir com os republica nos na ala legislativa. Por isso surge uma preocupação sobre os resulta
dos da eleição para o Congresso do dia 8 de novembro, cujo controle está em jogo com 35 cadeiras livres.
Ao incentivar os eleitores, o presiden te Joe Biden declarou: “Em 2020 vocês votaram para promover a mudança que queriam ver no mundo. Em 2022, vocês precisam exercer seu poder de votar novamente, no futuro de nossa nação e no futuro de sua geração”
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Joe Biden pngwings
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REPUBLICANOS
O partido republicano e seu surgimento veio para conter a expansão da escravidão, que se alastrava nos territórios recém-independentes nor te-americanos. Também são conheci dos como “Grand Old Party”, ou GOP. Mas nem sempre foi asim, no início, eles abrangiam protestantes do norte, trabalhadores, profissionais, empre sários, fazendeiros prósperos e, após a Guerra Civil, ex-escravos negros. O partido tinha de pouco a nenhum suporte dos sulistas brancos, que na
época abertamente apoiavam as cau sas do partido democrata, entretanto, mesmo não tendo uma presença nos estados do sul, faziam um enorme su cesso ao norte do país.
O partido republicano possui um dos nomes mais famosos da história estadunidense, Abraham Lincoln que venceu as eleições em 1860, além de auxiliar o partido na vitória durante a Guerra Civil Americana, onde tiveram também um importante papel duran te na abolição da escravatura.
Após o fracasso, do então presidente Theodore Roosevelt na tentativa de concorrer às eleições presidenciais a partir de um terceiro partido, criado pelo próprio e chamado de ‘Partido Progressista’, diversos apoiadores do Roosevelt deixaram o Partido Repu blicano. Após tais eventos, o partido passou por uma radical mudança ide ológica, assumindo agora um alinha mento à direita.
As Causas da Grande Depressão / FDR Memorial Site/ Washington, D.C. por Tony Fischer
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A GOP perdeu grande parte no Con gresso durante o período da crise de 29, também conhecido como a Gran de Depressão (1929-1940). Após al guns eventos de grande valor, como a Lei dos Direitos Civis de 1964 e a Estratégia do Sul, a base central do par tido se transformou, com os estados do sul se tornando cada vez mais re publicanos e os do norte democratas. Após a década de 1960, os eleitores brancos se identificaram fortemen te com o Partido. Apesar das discor dâncias, as ideias centrais defendidas pelo Partido Republicano são:
• Impostos não devem ser aumentado ou diminuído para ninguém (favo recimento do “imposto fixo” que se ria mesmo imposto independente da renda);
• A favor da pena de morte;
• A favor da criminalização do aborto;
• Aumento de gastos militares;
• Oposição ao casamento homossexual;
• Ideal social com base nos direitos in dividuais e da justiça;
• Oposição a saúde financiada pelo go verno;
• Oposição a anistia no caso de imigran tes não documentados e a maior fisca lização nas fronteiras.
Embora, grande parte do partido republicano geralmente não chegue à completa unanimidade, muitas vezes eles se encontram em uma melhor situação conjuntural do que os de mocratas. Exemplificando, durante o debate democrático com Kamala Harris, na NBC New York – estação de televisão estadunidense – a ex-re presentante do Partido Democrata, Tulsi Gabbard, aponta as falhas do seu posterior partido, descrevendo a Hillary Clinton, ex-candidata ao car go da presidência americana, como a “personificação da podridão que vem envenenando o Partido Democráti co”. A mesma também segue, então, elaborando na sua fala:
Capitólio em Washington, sede do Poder Legislativo dos EUA, Foto: Divulgação
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O nosso Partido Democrata, infelizmente, não é mais o partido do povo, para o povo. É um partido que foi e que continua sendo influen ciado pelo establishment da política externa em Wa shington representado por Hillary Clinton, e outros do complexo industrial militar e interesses corporativos gananciosos ”
Tulsi diz que as ideias democratas se perdem de seu cunho originalmente social, que visava a o bem-estar do povo, para um partido essencialmen te lucrativo e ganancioso, ela também mais tarde, os descrevem como “eli tistas”. A ex-candidata deixou oficial mente o Partido em outubro de 2022, e uma semana após sua declaração de saída, a mesma foi avistada em uma campanha no Arizona, ao lado dos republicanos Kari Lake e Blake Masters. As falas da Sra. Gabbard re percutiu muito no cenário político doméstico do país e na imagem do Partido Democrata como um todo.
“
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Tulsi Gabbard deixa o Partido Democrata NBC NEWS
CONCLUSÃO:
O sistema de eleição dos EUA cria um am biente extremamente desvantajoso onde não existe “segundo lugar” em uma eleição, seguindo a política winner takes all (tudo-ou -nada). Muitas vezes, é necessário ocorrer uma junção de políticos com posicionamen tos distintos para apoiar uma terceira pessoa do mesmo partido, já que só assim, haveria uma chance real de vitória. Um exemplo disso seria a situação em que os democra tas que se apresentam a favor do Green New
Deal, precisam esquecer a proposta por um determinado período de tempo para apoiar outros democratas que possuem mais pre sença política, e não necessariamente essas pessoas também irão defender o favoreci mento das ideias abandonadas.
O comediante e músico Robert Pickering “Bo” Burnham, faz uma pequena canção sá tira e crítica do modelo eleitoral norte-ame ricano com seu sarcasmo e talento musical. O trecho se traduz como “Eles realmente vão me fazer votar no Joe Biden?”
O sistema recebe diversas críticas dos seus eleitores, caracterizando o modelo como in justo e ineficaz, já que obriga os candidatos a adotarem as medidas e posicionamentos mais rasos e amplos, na intenção de conquis tar o maior número de eleitores possível. Isso faz com que uma parte significativa da população não sinta uma certa identificação com o candidato, o que acaba se tornando
um grande fator na desmotivação do povo no momento das eleições. Durante as vota ções de 2020, os EUA tiveram sua maior par ticipação de votos do séc. XXI, onde segun do o censo estadunidense 66% dos eleitores elegíveis votaram. Para dar uma maior pers pectiva, se pode comparar essa porcentagem com os 78% do Brasil em 2018 (TSE) ou os 83% da França em 2007.
Bo Burnham cantando um trecho de uma música. Imagem: Netflix
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Eles realmente vão me fazer votar no Joe Biden?
É realmente a Democracia o melhor sistema político?
A democracia é tema recorrente nas discussões políticas internacionais, e em seu nome as grandes potências realizaram intervenções questionáveis em ou tros países, levando a conflitos internos que os civis, em sua grande maioria, saem perdendo. Porém, é de fato a democracia o melhor sistema político?
Por: Davi Almeida
No mundo ocidental a ideia de que a democracia é a melhor opção está bem consolidada, da mesma maneira que no século XVII era predominante a ideia de que o absolutismo monárquico era a melhor opção. Bodin e Bossuet defen deram o absolutismo com base no “direito divino dos reis”, assim, a diviniza ção da monarquia foi elemento chave para que os questionamentos ao siste ma fossem evitados. De maneira similar a democracia é “divinizada” na atualidade, seus pontos fortes são ressaltados enquanto os pontos negativos são ocultados pela pela pergunta: você prefere uma ditadura? Porém, este tipo de questionamento desviam a atenção popular das suas reais falhas e ocasiona, por manobra de massa, a própria democracia ser tratada como sistema político ideal , Diante disso, o economista de escola austríaca germano-americano Hans Hermann Hoppe alcunhou a democracia, em uma de suas literaturas, como “o deus que falhou”.
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Imagem: Pexels/Pixabay, editado
Perspectiva histórica
Apesar de ser comum relacionar democracia ao século XXI, a verdade é que ela existe desde a Grécia Antiga, porém, nunca gozou de muita popularidade entre os pensadores mais influentes. Platão é um dos primeiros críticos da de mocracia, para ele, o melhor seria ter um sistema político com os mais qualifi cados, para dar chance à existência de um governo com reis-filósofos.
Na idade média as críticas continuaram; Tomás de Aquino, influenciado pelos pensadores gregos, propôs um sistema político misto. Já na era moderna, Hobbes, Bodin e Bossuet defenderam o absolutismo, para Hobbes a democracia traria instabilidade, conflitos e disputas pelo poder. Sendo assim, é somente na era contemporânea que, após as revoluções burguesas, a demo cracia começa a substituir o absolutismo e se tornar o sistema político mais usado e mais prestigioso no Ocidente.
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Imagem: Estátua de Platão, Edgar Serrano, worldhistory
Críticas à democracia
Como idealizador dos reis-filósofos, Platão não via sentido no fato do voto de uma pessoa sem conhecimento ter o mesmo valor de uma pessoa com profun do conhecimento. Dessa forma, os governantes não necessitavam ser pessoas completamente preparadas para suas funções, pois o sistema se tornava di minuído a governantes que conseguem influenciar mais a massa social com pouco conhecimento.
Nesse sentido, Bastiat aponta que é uma contradição do Estado conferir o poder de definir o futuro do país a todas as pessoas, reconhecendo que elas têm capacidade de escolher os governantes, mas ao mesmo, esse mesmo Esta do entende que essas pessoas não podem fazer muitas coisas por si próprias e necessitam que o Estado tenha uma postura paternalista.
Porém, nem todas as críticas foram feitas por anti-democratas; John Stuart Mill era um grande opositor dos regimes autoritários, e por isso, sua crítica era de que se a democracia se corrompesse, passaria a ser uma ditadu ra da maioria. Para Mill, isso seria uma ameaça às liberdades individuais e ao pensamento diferente, essa repressão não necessariamente seria por meio da força, mas principalmente por meio da opinião pública.
Contudo, essa ditadura da maioria poderia escalar ao ponto de haver uma repressão sistematizada a minoria, isto é: se em um país existissem duas tribos, uma com 80% da população e a outra com 20%, a primeira teria pesso as suficientes para que pudessem frequentemente vencer as eleições e, como consequência, se manter no poder, governando apenas para os seus interes ses, o que ocasionaria em conflito.
Além disso, o processo democratico é muito criticado pela forma em que é realizado. Em busca de votos, os candidatos muitas vezes recorrem a tentati vas de manipular e alienar a população. Em vista disso, o poder que a opinião pública exerce é muito importante, se tornado alvo de manipulação e controle por parte dos políticos. Uma vez no poder, há uma tendência de políticas de curto prazo para conseguir uma reeleição; as políticas de longo prazo costu mam ser desfeitas quando a oposição tem a oportunidade, gerando uma insta bilidade.
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Vale tudo pela democracia?
Vale tudo pela democracia?
De um ponto de vista prático, todos os 20 países classificados pela The Eco nomist como democracias plenas possuem um IDH classificado como “muito alto”, em contrapartida, entre os 31 países com IDH considerado “baixo” ne nhum é tido como democracia plena e apenas Lesoto é classificado como de mocracia.
Com as estatísticas a favor da democracia, algumas potências justificam na luta pela democracia e pela liberdade questionáveis intervenções políticas e/ ou militares, com traços imperialistas, em outros países, mas então, essa justificativa é aceitável? Do ponto de vista jurídico a resposta é não.
Cada país tem sua própria história e contexto particular, por isso a au todeterminação dos povos é um dos princípios basilares do direito internacio nal, dessa forma, é concedido aos povos o direito de escolher o sistema políti co de seu país pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos.
Em um exemplo prático, o regime de Nayib Bukele em El Salvador, ape sar de muito criticado internacionalmente e conter traços de autoritarismo, não deveria sofrer interferências, visto que Bukele conta com uma taxa de aprovação de 87%, o que o torna o líder mais popular da América Latina; uma tentativa de derrubada de Bukele seria ignorar completamente a vontade do povo de El Salvador de escolher como prefere ser governado.
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Imagem: Salvador Melendez, picturealliance
Conclusão
Durante a história a democracia sempre foi criticada, e mesmo na atualidade ela não é unanim idade, embora possa-se concluir que seja o “menos pior” sis tema político, o certo é ela possui inúmeros problemas. Assim, naturalmente, há quem prefira não adotar a democracia, de forma que não deve ser imposta à força à povos que entendam que outro sistema é melhor para o seu contex to.
Entretanto, enquanto a democracia não for desmistificada e continuar a ser vista como um sistema “divinizado”, como a única forma possível de atin gir prosperidade e que a sua existência e aplicação deveriam ser universais, as grandes potências poderão esconder o seu imperialismo em uma retórica de levar a liberdade a países onde a democracia plena não foi estabelecida.
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Imagem: Pexels, Pixabay
A Fragilidade Democrática
Ademocracia, enquanto ideal reconhecido universalmente, ao menos em grande parte dos Estados do mundo, visa, dentre outros fins, fomentar a proteção e realização efetiva dos direitos humanos, superar as desigualdades sociais e realizar a justiça social.
Surge como uma alternativa na conciliação das diferenças e consideração com todas as ideias sociais, res peitando os pensamentos múltiplos e levando a cabo a ideia do seu nome Grego:demokratia, formada do radi cal δῆμος (demo “povo”), e de κράτος (kratia “poder”, “forma de governo”) ou seja, um “governo do povo”.
Mas a história também mostra que ainda que em sistemas democráticos, os princípios autoritários e totalitá rios perambulam na sociedade com facilidade. Isto é, indivíduos com essas ideias não se sentem constrangidos em expô-las, abrigados sobre o princípio da liberdade, que é um dos grandes pilares da democracia, vão ganhando espaços no meio urbano, isso por si só não traz riscos sociais, o problema começa quando esses indivíduos vão ganhando voz representativas e con sequentemente poder político.
A democracia por si só não dá conta de barrar essas ideias, e os rigores solucionista, culpabilista e reformista, en contram terra fértil em sociedades que estão passando por crises graves, como foi o caso de Hitler na Alemanha, que devastada pela derrota na primeira guerra e se vendo oprimida pelo tra tado de Versalhes, decidiu embarcar num discurso que supostamente re solveria seus problemas.
Ascensões Democráticas de Líderes Autoritários: um estudo histórico do avanço Nazista na Alemanha Por: Diego da Silva Santos
https://commons.wikimedia.org/
Adolf Hitler foto por Heinrich Hoffmann (1885–1957)
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Fica então a dúvida: o que fazer quando esse poder do povo clama por uma solução antidemocrática, autoritária e de extinção das diferenças? Qual o limite de tolerância com ideais intole ráveis? Ambas as questões formam a
por catorze longos anos estes partidos violaram a liberdade dos alemães, bateram nos homens [alemães] com porretes. Se vocês votarem nos candidatos do Nacional Socialismo, acabaremos com este terror após dois a três meses de governo
(HITLER,1932)
Adolf Hitler (1889 – 1945), vestido com traje militar e fazendo a saudação nazista, início do século XX. pngwing
residual pergunta: Qual é a função da democracia para evitar que correntes subterrâneas totalitárias floresçam em uma república democrática e se cristalizam no totalitarismo? 27
Ascensão do Partido
O que chama atenção na Alemanha de 1920 e 1930, é a ascensão do partido nazista sobretudo pela sua consolida ção meteórica. O partido fundado em 1919 em Munique tem uma história que se confunde e fundiu com a do seu maior propagandista e orador, Adolf Hitler. Entretanto, até 1923 ain da eram vistos como um partido sem muito destaque dentro do espectro po lítico ultranacionalista que ocupava. A reorganização em torno da figura do Hitler, pós 1925, traz um novo ca ráter ao partido: a construção de gru pos capilares para a disseminação da ideologia e a criação de uma estrutu ra de propaganda eficiente, resultam no crescimento e fortalecimento desse partido. Analisando os números, é possível perceber o resultado dessas medidas: entre 1925 e 1928, o partido possuía cerca de 70 mil membros; já em 1930, mais de um milhão de pessoas estavam associadas ou fa ziam partes de grupos vinculados ao Partido Nacional-Socialista. É óbvio que não pode-se dissociar isso da situação grave que a Alemanha es tava passando, com o pós guerra, e as medidas impostas por terem perdi do a então primeira guerra mundial. A insatisfação popular abre espaço para soluções imediatistas. Como é o caso nos discursos do pró prio Hitler, como exemplo se tem a obra “Mein Kampf”, livro autoral do ditador, escrito na prisão e publicado em 1926, é nesse discurso que ele ela
bora as narrativas que viriam funda mentar as ações promovidas pelo par tido e justificar as decisões dos seus aliados, acreditando ser uma reação à suposta decadência moral e destruição iniciada com a derrota da Alemanha na guerra de 1914 e prolongada pela República de Weimar. Na cidade Waldenburg, em campanha eleitoral Hitler chega dizer o seguinte: por catorze longos anos estes par tidos violaram a liberdade dos alemães, bateram nos homens [alemães] com porretes. Se vocês votarem nos candidatos do Nacio nal Socialismo, acabaremos com este terror após dois a três meses de governo. (HITLER, 1932)
O rigor imediatista dessas soluções ganha muita confiança das massas, e para isso Hitler tinha outro plano, não era apenas necessário o surgi mento de um partido idealizado por ele, mas era também preciso que os outros partidos deixassem de exis tir, na sua visão de mundo, a plura lidade não tinha espaço, e essa visão completamente antidemocrática, em nenhum momento encontrou barreiras nas instituições e estruturas democráticas, ele afirma no livro dele: “Via-Se dotados de uma missão. Clamavam não só pela criação de um novo partido, mas que, este novo par tido, expressasse uma nova concepção de mundo que exigia que todas as ou tras concepções fossem eliminadas”.
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discurso da sacada da Prefeitura de Viena. ADOLF HITLER 1938 akg-images / TT News Agency / SVT
Carácter de massas
Para ele era essencial que essa visão de mundo fosse aceita pelas massas, caso contrário seria inútil; mas chegar nesse contingente, subverter a democracia exigiria o convencimento de muitas pessoas no cenário.
Hannah Arendt, nascida na Alema nha, foi uma filósofa e teórica polí tica de origem judaica, foi também uma grande pensadora do século XX. Buscava a compreensão da origem do nazismo, a partir das inquietações sobre os regimes totalitários. Suas principais obras foram: “Eichamnn em Jerusalém”; “As Origens do Totalitarismo” ; “A Condição Humana” e “Entre o Passado e o Futuro”.
Arendt dizia que o sucesso dos movimentos totalitários também se deve às massas. Ela os define como “pessoas que, simplesmente pelo seu núme ro, ou pela sua indiferença, ou uma combinação de ambos, não podem se integrar a uma organização baseada em um interesse comum”. Como disse uma vez Hannah Arendt: “Um lastro gigantesco de pessoas que se dizem politicamente neutras são aquelas capazes de construir uma maioria em um país com um governo democrático”.
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Hitler caminha/ akg-image
Ao contrário de manter aqueles acos tumados ao establishment - aqui cabe explicar o que viria a ser esse tal establishment: entende-se que é a elite social, econômica e política de uma país e grupo de indivíduos com poder e influência em determinada organização ou campo de atividade -, recrutar pessoas que não se identificam cla ramente ou aderem a qualquer visão política tradicional é trazer algo novo para o campo político alemão, e a pro paganda é central para essa "conquis ta da alma". É a ideia de política tanto quanto de crença - como fé política ou religião, como o próprio Hitler cita em “Minha Luta” - que mobiliza afetos e questionamentos que os membros tra dicionais da época não mobilizavam.
Para então alcançar esse contingen te, era necessário unir a todos em um só objeto, tocar nos afetos dos cidadãos, isso é fundamental para analisar o avanço nazista na jovem democracia alemã. Arendt afirma que surgiu na sociedade um ressentimento egocêntrico que permitiu que a frustração individual se tornasse um fenômeno de massa.
O ressentimento pelas perdas da Primeira Guerra Mundial está conti do em uma narrativa que identifica os judeus como a personificação de todo o mal e infortúnio que assolou não apenas a Alemanha, mas toda a Europa nos últimos séculos. O judeu encarna todos os males: a república fracassada, o marxismo enganoso, as perdas da Primeira Guerra Mundial e os fracassos econômicos, sociais e políticos da Alemanha.
Hannah Arendt (Wikimedia)
“Um lastro gigantesco de pessoas que se dizem politicamente neutras são aquelas capazes de construir uma maioria em um país com um governo democrático”
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Reunião do partido nazista 32
É como se o judeu, entendido como antítese do alemão, a existência mais perversa, invertesse a lógica da própria natureza, ocupando espaços onde o alemão deveria estar.
Para os nazistas, antes de construir algo - uma figura, um partido, uma nova Alemanha - era preciso voltar atrás. Nas palavras de Hitler, o terror só pode ser derrotado com outro. Um dos terrores que os nacional-socialis tas prometem acabar com menos de três meses de governo é a democracia e a república na Alemanha. E as instituições democráticas parecem não ligar para essas ameaças e desvios, o demagogo segue com seus discursos destrutivos e ganhando cada vez mais espaço social, influenciando cada vez mais cidadãos aos atos de rompimento, antidemocrático.
nazista NSDAP
Nuremberg 1935-09 Hitler SA desfile de marcha saudação Mercedes bandeira de sangue etc Narodowe Archiwum Cyfrowe/ commons.wikimedia
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A Conquista do Controle do País
Uma obra que visa entender como as democracias terminam, mar cou o século XXI. Em “Como as Democracias Morrem” de Ste ven Levitsky e Daniel Ziblatt, a questão central do traba lho é refletir sobre como por meio de eleições, utilizando as instituições democráticas, é possível promover o fim da de mocracia em um Estado.
Os autores da obra afirmam que em momentos de instabilidade, cidadãos se mostram “mais propensos a tolerar –e mesmo a apoiar –medidas autori tárias”. E isso foi muito bem usado ao longo de toda corrida eleitoral de 1930 e 1932, os membros do partido nazista cercaram a Alemanha discursando so bre como a crise econômica era grave, e de que os países se via desolado sem um projeto de segurança nacional - me dida imposta pelo tratado de Versalhes -, e propunham uma solução clara e simples, expurgo dos adversários.
Em 1933, Hitler chega ao poder, e daí em diante a situação ganharia um novo agravante. Em menos de 6 meses de governo medidas como: de cretos de emergência que limitariam liberdades civis e a Lei de Concessão de Plenos Poderes destruiu toda a oposição na Alemanha.
O que fica claro aqui é que o discurso fascista do Hitler não pegou a classe política de surpresa, os ensaios sobre o que ele faria no poder já estavam na Alemanha desde 1925, e só vinha crescendo a cada ano; nove anos depois ele che ga à um grau de relevância política onde nenhuma ação foi feita para barrar essas ideias, e muito menos as ações: já no governo, ele estaria completamente imparável.
Ao longo do século XX, é possível ob servar a insurgência de discursos fascis tas e ditatoriais na Europa, na América
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Set v e n L e v i t s k y f ot o porStephanieMitchell
Latina, na África e nos Estados Unidos. A democracia é cotidianamente testada com esse tipo de discurso, a diferença mora no fato de se establishment será capaz de trabalhar impedindo o acú mulo de poder por parte dessas personalidades. Ou se até mesmo se elas ganharem cargos de poder, se as instituições se manterão firmes no seu dever democrático ou se cederão as tendências fas cistas dos seus governantes. Na Alemanha nazista ambas falharam: A elite polí tica alemã não deu a im portância necessária que o partido nazista merecia, e a eles foi dado o poder. Nas eleições de 1930 e 1932, o par tido já havia ganho mais poder do que nunca e a partir de então, co meçavam fortes pressões em Von Hindenburg para a nomeação de Hitler como o chanceler alemão. Após nomear três chanceleres entre 1930 e 1933 as forças políticas decidiram “entregar condescendentemente as chaves do poder a um autocrata em construção” (LEVITSKY, ZIBLATT, 2018, p. 294) e o resultado não foi outro, em menos de seis meses toda a oposição política e a estrutura vigente em Wei mar já havia sido colocada abaixo.
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Weimar, foto Wilhelm Walther/ Jochen Walther
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DanielZiblattfotoporStep
ie M i t c h e l l
As Instituições de Mãos Atadas
Quando a dita elite política, fica de mão atadas, vendo o crescimento so cial de ideologias autoritárias, a de mocracia se vê ameaçada, os autores Levisky e Ziblatt, argumentam que para que demagogos não ascendam e consolidem seu poder é necessário, que os partidos exerçam o papel de guardiões da democracia.
Em primeira instância, é preciso iden tificar o caráter desses discursos, como já dito antes, as tendências fascistas de Hitler, do seu Partido e da sua Ide ologia não era surpresa pra ninguém: toda essa elite legitimou os discursos de um indivíduo antidemocrático, Hitler constantemente atacava a pluralidade, o parlamentarismo e a própria democracia alemã, e tudo isso passou sem qualquer ação com o objetivo de minar tais ideias, muito pelo contrário, vendo a sua força de mobilizar massas, os partidos mais próximos o apoiaram quando lhe era conveniente.
Em segunda instância, deveriam resistir à tentação de nomear extremistas, evitar qualquer aliança com partidos ou candidatos antidemocráticos e iso lar extremistas ao invés de legitimá
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-los o que não aconteceu naquele con texto. E o fim foi trágico e lamentável. A conclusão deste artigo não pode ser de que a ascenção do nazismo era ine vitável e de que eventualmente ia dar neste fim, mas não, o nazismo foi escolhido, permitido e legitimado não só pela sociedade, mas pela classe políti ca, sem anacronismos aqui, mas não parece aceitável, em nenhum cenário, um ator que advogue contra o sistema, ganhar espaço e relevância dentro desse tal sistema. A democracia é a única forma de governo que permite isso, que permite que um ator, proponha o fim dela, e ganhe poder social.
O autoritarismo era visto como uma alternativa para o establishment polí tico e a sociedade. A ascensão nazis ta nas eleições atesta o desespero de uma população em crise e a falta de uma cultura democrática e republicana. As elites políticas se fundiram em um “pacto com o diabo” para conseguir domar um demagogo, acredi tavam que Hitler estava exatamente onde queria estar, mas essa pequena expectativa era difícil. Hitler rapida mente promulgou o que antes era apenas um discurso.
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News Agency / SVT
ADOLF HITLER anuncia oficialmente a anexação da república austríaca. HELDENPLATZ, VIENA 1938. akg-images
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Saber que o extremo foi possível a partir de uma república demo crática é perceber que isso pode se repetir hoje. Olhando para a ascensão dos discursos fascistas e em vez de figuras de extrema-direita nas sociedades democráticas, como é o caso da Itália que ainda neste ano está elegendo a Giorgia Meloni como primeira ministra do país, neta de Mussolini, ela se torna a vereadora mais votada de Roma;
ou em outros lugares, como o caso na Bolívia, nos Estados Unidos, na Hungria; é perceber que está sendo possível saber o que foi e o que não foi possível e onde as instituições e organizações políticas falharam, tendenciosas ou não, pode ser um mote para a ação de resistência de hoje. Nem nas distopias nem na histó ria o totalitarismo apareceu da noite para o dia. E em nenhuma situação foi inevitável.
... Data: 22 de outubro de 2022 Origem https://www.quirinale.it/elementi/72620
Descrição Giorgia Meloni, a nova premiê italiana, no Palácio do Quirinal depois de ser anunciada pelo presidente Sergio Mattarella
Autor:Presidenza della Repubblica
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Vladimir Vladimirovitch Putin é uma figura política central no cenário internacional do século XXI, atraindo atenção após declarar guerra contra a Ucrânia e, supostamente, ter fraudado as eleições americanas a favor do ex-presidente Donald Trump. Mas quem é Putin? Um nome muito falado nos noticiários mas que poucos de fato buscam entender sua persona emblemática e sua história complexa. Neste artigo explicarei o básico sobre esse indivíduo que moldou a Rússia e marcou, e ainda marca, a história do mundo.
Foto: mei@75
Rússia, uma democracia.
Antes de começar a falar sobre Pu tin em si, é importante destacar que, de acordo com o primeiro inciso do artigo um da constituição russa:
“A Rússia é um estado federativo de mocrático com uma forma de governo republicana.”
Primeiramente destaca-se o fato de que a Rússia é uma democracia in direta, no caso da Rússia o período de cada mandato originalmente era de quatro anos. No entanto, no mandato do ex-presidente Dimitri Medvedev, o parlamento russo aprovou duas mudanças na constituição, a primeira previa que este tempo seria
aumentado para seis anos, a segun da constava que um presidente pode ria ser eleito novamente mesmo após dois mandatos consecutivos, contan to que haja pelo menos um manda to que interrompa essa sequência.
Desta forma, a permanência de Putin no poder não vai contra a constituição russa. É claro que houve manipulação para que tal feito fosse possível, essa mudança foi realizada através de votação no parlamento russo (re presentante do legislativo), com mais de 80% dos votos a favor da mudan ça, os únicos deputados que votaram contra eram representantes do parti do comunista. Esse processo, por mais que suspeito, está sim dentro da lega lidade da lei russa, onde, de acordo com o décimo artigo da constituição:
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“O poder do Estado na Federação Russa é exercido com base na divisão em legislativo, executivo e judicial. As autoridades legislativas, executivas e judiciárias são independentes”
Agora que há maior compreensão, tanto da lei russa, quanto da sua for ma de governo, creio que há arcabou ço suficiente para entrarmos de cabe ça na ascensão ao poder de Vladimir.
Chegada ao poder
A primeira vez que Vladimir Putin sentou na cadeira presidencial foi após a renúncia do ex-presidente Boris Yelt sin. Como primeiro-ministro, Putin ocupou o cargo de presidente no ano 2000 com o intuito de aguardar até as eleições que aconteceriam em 2004. E aqui é importante ressaltar o contexto no qual Boris Yeltsin entregou a Rús sia para Putin, a economia russa, que já não estava saudável devido a queda da união soviética, caiu ainda mais de vido ao processo de privatização, que para os críticos de Boris foi “a preço de banana”; além disso, Boris também perdeu uma guerra contra a Chechê nia, um estado russo que após ter hu milhado o exército de Moscou estava basicamente independente; Boris tam bém quebrou a constituição quando bombardeou o parlamento russo com a justificativa de que tinha o apoio do povo para tal. Todas essas ações, somadas à fome e à extrema pobreza, fizeram a popularidade do ex-presidente cair drasticamente, culminando em sua renúncia no ano de 1999, as sim entregando a cadeira presidencial para Vladimir Putin no ano de 2000.
No mesmo mês em que assumiu a presidência, Putin reiniciou a guerra contra a Chechênia, mas dessa vez conquistando uma vitória avassaladora, sobre isso, vale ressal tar uma fala de Putin desta época:
“Eu considero unificar o povo russo como meu dever sagrado, unir os cida dãos por objetivos e tarefas claras, e relembrá-los a cada dia e a cada minu to de que nós temos uma pátria mãe, um povo e um futuro” - Vladimir Putin
Vladmir Putin discursa em evento oficial do Dia da Polícia.
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Imagem: en.putin.kremilin
A Chechênia, região que fora inicial mente anexada pelo império russo no século XIX e brigou pela emancipa ção desde então, conseguiu este feito pela primeira vez no governo de Boris Yeltsin, sendo brutalmente reprimida por Putin logo em seguida. Como forma de justificar a guerra, Putin usou de sua campanha anti terrorista que ele propaga até hoje. Na época, um grupo terrorista wahhabista (uma vertente extremista do islamismo) se utilizava da região do Cáucaso como esconderijo, este grupo, liderado por um extremis ta religioso chamado Amir Ibn Khat tab e patrocinado pela Al Qaeda, foi responsável por diversos ataques ter roristas, principalmente em Moscou.
Vale salientar que nem Aslan Maskha dov (presidente da Chechênia na épo ca), nem a maioria da população che chena apoiavam ou seguiam a ordem wahhabista, independente disso, Putin bombardeou toda a região, anexando -a e alterando a liderança local para o atual governador Akhmad Kadyrov. Mesmo que o caso da Chechênia tenha sido particularmente brutal, a vitória na guerra aumentou a popularidade de Putin, isso junto ao fato de ter: diminuído impostos, aumentado salários de trabalhadores públicos, investido na educação e aumentado drasticamente o PIB russo (de 259 bilhões em 2000 para 592 bilhões em 2004), lhe garantiu uma vitória confortável nas eleições de 2004 com cerca de 54,4% dos votos.
E assim Putin se encontrava em uma situação extremamente cômoda, mes mo que seu governo estivesse rechea do de críticas ocidentais, sendo diver sas vezes comparado a ditadores, sua popularidade apenas crescia entre os russos e seu país estava em ascensão econômica e política no cenário inter nacional. Mas óbvio que sua carreira política não parou por aí, muitos anos ainda estavam por vir, e seu poder apenas aumentaria.
Um Czar na democracia.
Indubitavelmente, Putin é o homem mais poderoso de toda Rússia na atu alidade, e nenhum líder consegue, conseguiu ou conseguirá tanto poder se baseando puramente em ideais de mocráticos republicanos em suas for mas mais puras. O que quero dizer com isso é que Putin muitas vezes se utiliza de princípios maquiavélicos em suas ações, e aqui não coloco “maquiavélico” como sinônimo de “maligno” ou “cruel”, mas sim “pragmático”.
Todas essas definições já eram vistas em seu primeiro mandato, quando expliquei sobre a primeira eleição de Putin, destaquei os fatores pelos quais sua popularidade aumentou, um dos principais foi a guerra da Chechênia. E o destaque que faço aqui é sobre a agressividade da invasão, não apenas física, mas também psicológica. Após o controle da Chechênia ter sido en tregue de Putin para Kadyrov, o novo governador foi acusado de diversos crimes contra os direitos humanos, todos os acusados terminaram por serem esquecidos ou simplesmen te desapareceram. Sobre o governo de Kadyrov, uma gerente de logísti ca da capital da Chechênia afirma:
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“contanto que não haja guerra, tudo isso pode acontecer” - referenciando os crimes do governador.
Assim, através da repressão psicoló gica e física, Putin resolveu o seu pe queno problema com os chechenos e os terroristas da região do Cáucaso, garantindo a soberania russa. Mas para se manter no poder é necessário muito mais do que apenas garantir o controle de uma pequena região, você precisa manter o controle da lei, neste caso a constituição, que impediu Putin de se reeleger para um terceiro man dato. Em seu lugar entra Dmitri Med vedev, presidente da Rússia eleito em 2008 com uma esmagadora vitória de mais de 70% dos votos, Dmitri era primeiro ministro de Putin e foi em seu mandato que o parlamento aprovou a mudança na constituição no que referenciava o tempo que o presiden te poderia ficar no cargo, agora era 6 anos, e ele poderia se eleger nova mente caso houvesse um mandato que interrompesse a sequência, no caso o mandato em questão era o do próprio Medvedev. Vale ressaltar a fala de Pu tin sobre o mandato de Medvedev: “Conheço as opiniões sobre este perí odo em nosso país e no exterior. Devo dizer que o presidente Medvedev exe cutou suas funções de forma indepen dente. Somente uma pessoa pode ser presidente do país. Aquele que é eleito pelo povo.”
Aqui entra um ponto chave na história do presidente: a manipulação do par lamento. Com a chegada de Putin ao poder, as principais figuras políticas foram alteradas para ex-membros da KGB, assim como o próprio Putin, além disso havia o medo desde o antigo ata que ao parlamento por Boris Yeltsin. E a relação entre Putin e Yeltsin era muito clara, fora primeiro ministro do ex-presidente e ajudou membros da família Yeltsin a se livrarem do procurador geral Yury Skuratov, que acusava os Yeltsin de vários escândalos de corrupção. Com essa relação próxima ao anti go ataque ao parlamento e ainda com aliados dentro dele, alterar a lei ao seu bel prazer não foi difícil, em 2020 a lei foi alterada novamente, desta vez não havendo necessidade de um governo que interrompa a sequência de ree leições do presidente. Em suma, Putin chegou à presidência em 2000, se ree legendo em 2004 e em 2008 passando o bastão para Dmitri Medvedev, tor nando-se seu primeiro ministro. Com a alteração da constituição, Putin foi eleito novamente em 2012. Em 2018 foi reeleito e seu mandato acabará em 2024, mas com a lei aprovada em 2020, poderá permanecer no poder até 2036, mais dois mandatos de 6 anos, e teria incríveis 36 anos no poder, sendo mais tempo do que o último czar russo, Nicolau II, que ficou no poder por 23 anos. Mas, apesar de tudo isso, Putin ainda segue os princípios democráti cos básicos, isto é, o povo efetivamen te votou em Putin, por mais que haja acusações de manipulação das urnas e ameaças a trabalhadores públicos, não houve prova concreta de nenhuma das acusações.
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Putin e o Ocidente
Falei muito sobre a história de Putin e sua relação com a Rússia e os russos, mas não há como falar sobre Putin sem descrever sua relação com o exterior, mais especificamente a rela ção de Putin com um país específico que moldou completamente sua pos tura política, os Estados Unidos. Não é novidade para ninguém que desde o fim da segunda guerra mundial, Rússia e Estados Unidos não trocam olhares amigáveis, essa relação hos til se estendeu até os dias atuais. Mas, no caso do governo Putin, começou com o presidente George W. Bush, com um início até mesmo amigável. Putin afirma que esta va completamente aberto para as relações com o exterior, inclusive liberando todas as informações so bre o armamento nuclear russo, de acordo com o próprio Putin: “Não tínhamos segredos”.
E, nas palavras do presidente Bush:
“Olhei-o nos olhos e vi que é muito franco e digno de confiança. Tivemos um ótimo diálogo. Fui capaz de com preender a sua alma.” - George W. Bush, em entrevista após se reunir com Putin
A Rússia também deu total suporte ao presidente americano após o atentado do 11 de setembro, inclusive, Putin foi um dos primeiros líderes mundiais a ligar para Bush e prestar condolências, também cedeu a região do Cáucaso e uma divisão russa situada no Tajiquistão para que as forças armadas americanas pudessem abastecer seus veículos e munições para a “Guerra ao Ter ror”, que acontecia a alguns quilô metros de distância, no Afeganistão.
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Putin e Medvedev. Foto: sabado.pt
É válido lembrar que é ingênuo ima ginar que este apoio de Putin estava apenas vinculado a tentar “uma boa vizinhança” com os Estados Unidos, considerando que, como já expliquei neste artigo, a Rússia teve problemas sérios com grupos terroristas islâmi cos em seu território, mais especifica mente com a Al Qaeda, grupo este que estava sendo perseguido e, devo lembrá-los, patrocinou o movimento wahhabista na Chechênia e Daguestão.
As relações começaram a se atritar quando, de acordo com Putin, os Es tados Unidos teriam apoiado os mo vimentos terroristas na Rússia, aju dando-os com suprimentos, dinheiro e transporte; o presidente afirma ter cartas de dirigentes da CIA que comprovariam suas acusações, no entanto, nenhuma das cartas foi di vulgada e, nas palavras de Putin:
“Mas quanto à informação e ao apoio público, era evidente para todos, não eram necessárias provas.”
O segundo atrito de Putin, e dessa vez não apenas com os Estados Unidos, mas com todo o mundo ocidental, foi a expansão da OTAN. Não é novo para ninguém que essa é a justificativa dada pelo presidente para a invasão na Ucrânia, seu principal argumento foi o acordo feito por Gorbatchov, quando Rússia ainda era União Soviética, de que a OTAN não se expandiria após a anexação da Alemanha oriental. Após este acordo a Hungria, Polônia, República Tcheca, Bulgá ria, Estônia, Letônia, Lituânia, Romê nia, Eslováquia, Eslovênia, Albânia e Croácia se uniram a Organização do Tratado do Atlântico Norte,
não é preciso dizer que essa quebra no acordo não deixou Putin feliz.
“A OTAN se estabeleceu quando houve um confronto entre os dois blocos, o oriental e o ocidental. Entre os chamados campos. Agora que o tratado de Varsóvia acabou, já não há um bloqueio oriental nem a União Soviética. Entretanto, por que a OTAN ainda existe?”
Portanto, de acordo com Putin, para que a OTAN exista é necessário um inimigo, e este inimigo, na visão do presidente, ainda é a Rússia. Com am bos os lados armados e com armas apontadas um para o outro, não de morou para que o nome “Putin” não saísse da boca dos candidatos à presi dência americanos, muitos deles com propostas agressivas com relação ao presidente, inclusive, o atual presi dente americano, Joe Biden, acusou a Rússia de ter adulterado o resul tado das eleições americanas passa das, vale ressaltar que não há provas concretas contra a Rússia neste caso.
Mas o fato é que as acusações não me lhoraram a relação entre os países, que ficou apenas mais tensa com a anexação russa da Crimeia, antiga região ucraniana, através do voto da população, onde os Estados Unidos afirmam o adultério dos votos, novamente não há provas concretas sobre a acusação.
Um nome que também não pode ser deixado de lado é Alexei Naval ny, a maior ameaça da monopoliza ção dos votos russos que Putin pos sui desde o início dos anos 2000.
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Alexei acusou não apenas Putin, mas diversas figuras importantes do seu governo, de serem parte de um gran de esquema de corrupção, para Ale xei, Putin teria criado grande parte dos oligarcas russos, entre eles estão os nomes: Matthias Warning, Alek sej Miller, Gennady Timchenko, Pyotr Kolbin e Yuri Kovalchuk; todos estes são multimilionários e possuem papel fundamental na economia russa, por exemplo, Matthias Warning, ex membro da Stasi, é diretor-gerente da Nord Stream, gasoduto que liga a Rús sia à Alemanha e é uma das bases de pressão contra a Alemanha para que não apoiem a Ucrânia na atual guerra.
Após as críticas ao governo de Putin, Navalny sofreu diversas tentativas de assassinato, mas a mais efetiva foi através de um veneno colocado em sua cueca, a origem do veneno é des conhecida, mas devido a sua comple xidade química supõem-se que tenha sido criado em um laboratório extre mamente avançado, similar aos do governo. Após ser tratado na Alemanha e voltar para a Rússia, Navalny foi imediatamente preso e multado, como já tinha sido várias vezes. Atualmente foi condenado a mais nove anos de prisão por crime de terrorismo e des vio de dinheiro. A situação de Naval ny é um argumento frequentemente utilizado, tanto pelo ocidente quanto pelos críticos a Putin, como forma de comprovar a tirania do presidente.
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Alexei Navalny: Foto: BBC NEWS
Considerações finais
O título deste artigo é “Putin, um príncipe maquiavélico” e devo a explicação do porquê escolhi este nome. Quando vi pela primeira vez a figura do Putin e suas ações, imediatamente me veio à mente o autor clássico sobre as relações de poder: Maquiavel. Em sua obra mais famosa, “O Príncipe”, ele cita algumas das atitudes que seriam essenciais para um monarca se manter no poder, mesmo falando baseado em um sistema já considerado antiquado, o príncipe se mantém extre mamente atual em suas colocações e Putin com certeza é uma prova viva disso. Por exemplo, Maquiavel diz que para se manter o controle firme de uma cida de capturada é necessário destruí-la, ainda por cima se a dita cidade tiver ideais diferentes dos seus, destrua-a e a reconstrua em sua imagem. Fazendo o paralelo com Putin temos Grozny, capital da Chechênia, seu povo foi abalado psicologica mente e fisicamente o suficiente para que não haja mais risco à vontade de lutar. Mas não foi apenas com questões de dominação que Putin aprendeu com Maquiavel, este último diz também que para se evitar rebeliões, é necessá rio deixar os homens felizes, mas não se pode dar muito aos homens, ape nas não lhes tire as mulheres, a comida e a moradia que eles estarão ao seu lado. Putin diminuiu a fome, aumentou o PIB junto com os salários e melhorou drasticamente o padrão de vida do russo como um todo, com um povo feliz, você não tem com o que se preocupar nos dias das eleições. Eu poderia continuar a lista de semelhanças, mas acredito que a esta altura a mensagem já foi passada. Quero deixar bem claro que não considero Putin um homem bom ou mesmo mal por natureza, até porque estes termos seriam planificar a complexidade do tema, mas vejo em Putin o âmago do que é “fa zer política”. E espero que este artigo tenha lhe ajudado a compreender um pouco mais sobre um dos líderes mundiais mais importantes do século XXI, pois acredito que entender os atores do sistema internacional com profun didade é entender o mundo, e entender o mundo é essencial para mudá-lo.
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Formadores de opinião no século XXI: a influência dos artistas no cenário
Diante de uma sociedade cada vez mais conectada e informatizada, até que ponto os novos formadores de opinião demonstram exercer influência em um cenário delicado como uma disputa presidencial?
Por Vitória Lopes
Oséculo XXI, com sua evolução ace lerada dos diversos meios de comu nicação e tecnologia, trouxe para a humanidade cenários vistos anteriormen te, mas não com a potência e velocidade dos dias atuais, como a intensa influência dos artistas e figuras midiáticas na opi nião pública, embora esse contexto venha de uma série de acontecimentos impor tantes das décadas antecedentes.
Em meados do século XX, após a Se gunda Guerra Mundial, por exemplo, o uso de diversas tecnologias avançadas, com intuito de contribuir para as for ças armadas durante o conflito, dá iní cio ao período chamado de Revolução Técnico-Científica-Informacional, também conhecido como Terceira Revolução Industrial, no qual as diversas áreas como ciência e indústria passam a se desenvolver aceleradamente – o que se intensifica durante a Guerra Fria, com a
corrida armamentista entre União Sovi ética e Estados Unidos – idealizando, entre os diversos progressos da época, elementos da robótica e comunicação, surgindo, assim, nos anos 60, a internet.
Por conseguinte, a população, até então majoritariamente influenciada pela forte manipulação das massas, passa a ter acesso gradual à informação, mudando sua perspectiva e dando liberdade para a formulação de pensamentos críticos. Anos depois, já na sociedade contem porânea, com o avanço da imersão tec nológica após a Revolução Tecnocientí fica, a difusão da informação em tempo veloz vem ganhando cada vez mais es paço no cotidiano, principalmente atra vés das redes sociais. Dessa forma, as grandes figuras midiáticas deixam de influenciar apenas o habitual e passam a exercer voz como formadores de opi nião em novas esferas da sociedade.
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XXI: cenário político
FORMADORES DE OPINIÃO NO SÉCULO XXI
A partir da segunda década do século XXI, com o reforço do Instagram, Twitter e Youtube, pessoas e conteúdos passa ram a atingir um alcance significativo em um curto período, chegando a viralização e gerando o fenômeno dos influencers –que, por sua vez, cresce constantemente com a chegada do TikTok.
À vista disso, artistas e pessoas co muns ganham as mesmas chances de expressar suas opiniões e até mesmo influenciar terceiros com elas, como é o exemplo da cantora Taylor Swift nas eleições de meio de mandato dos Esta dos Unidos em 2018 – nessas, são es colhidos os membros do Senado Ame ricano, da Câmara dos Representantes, Governadores de Estado etc.
Diante do cenário político que começa va a se desenhar no período, Taylor ex pôs suas convicções pela primeira vez na mídia, chegando a influenciar o cená rio das eleições, visto que, após seu pro nunciamento, o site vote.org marcou um aumento de mais de 50.000 registros de voto – principalmente do público jovem. Tal feito foi nomeado pelo jornal britânico The Guardian de “ The Taylor Swift Effect”. Isto posto, vê-se um fenômeno ocor rendo na internet, levando às dúvidas sobre como artistas e influenciadores digitais demonstram possuir tamanha influência na formação de opinião do seu público. Primeiro, é preciso resgatar a Revolução Tecnocientífica menciona da anteriormente, visto que, anos após a
Taylor SwiftPhotograph: Stewart Cook/Rex/Shutterstock
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Em épocas de crise econômica glo bal, o marketing 3.0 adquire rele vância ainda maior para a vida dos consumidores na medida em que eles são afetados por rápidas mudanças e turbulências nas esferas social, econômica e ambiental.
sua introdução, os movimentos do mer cado evoluíram gradativamente para um momento significativo na sociedade que conhecemos hoje: o Marketing 3.0 – conceito elaborado pelo professor e economista americano Philip Kotler em seu livro lançado no ano de 2010. A par tir dos anos 90, com o mundo globali zado e informativo, os indivíduos passa ram a se tornar cada vez mais exigentes em sua forma de consumo, estreitando o relacionamento conforme os valores das marcas coincidissem com os seus. Assim, preocupação ambiental e social tomaram forma nos critérios dos consumidores, o que passa a ser refletido além do âmbito comercial. “Em épocas de crise econômica global, o marketing 3.0 adquire relevância ainda maior para a vida dos consumidores na medida em que eles são afetados por rápidas mudanças e turbulências nas esferas social, econômica e ambiental.” Philip Kotler
Com a chegada da internet, uma nova geração começa a surgir, tão imersa no mundo digital que passam a ser chama dos de “nativos digitais” e “Geração Z”. No contexto deles, os relacionamentos ocorrem principalmente nas redes so ciais e, já imersos no Marketing 3.0, essa geração progride no processo de auto posicionamento frente às questões socioambientais, passando a acompanhar, nessa mesma medida, indivíduos que compartilham dos seus aspectos culturais, valores e crenças. Assim, o fenômeno dos artistas e influencers ganha cada vez mais força entre esse público, tornan do-se os novos formadores de opinião.
“
”
Philip Kotler exame.com
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BRASIL E O IMPACTO DA INTERNET NAS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS DE 2022
Nesse sentido, saindo do aspecto global e segmentando para o público brasileiro, é importante entender em que cenário o país se encontra. Segundo estudos divulgados pelo Jornal Contábil em 2021, o Brasil posi ciona-se na terceira colocação do ranking mundial de países que mais utilizam as re des sociais, chegando à média de 3 horas e 42 minutos por dia. Assim, embora as mídias tradicionais como o rádio e a televi são ainda sejam os principais veículos de comunicação do país, entende-se que para um posicionamento ser reverberado diante da população, as redes sociais passam a assumir um papel relevante no contexto.
Um ano após a divulgação da pesquisa, já em 2022, é perceptível a pertinência das plataformas sociais e da voz dos novos formadores de opinião quando entramos no âmbito do cenário político. Haja vista as eleições presidenciais, conforme os meses foram passando, diversos artistas nacionais – e até internacionais – passaram a manifestar suas preferências políticas, sendo apoiados por seguidores que compartilham das mesmas ideias e, ao mesmo tempo, perdendo aqueles que são contrá rios, frisando ainda mais a polarização pre sente no contexto nacional atual.
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Fonte: Hootsuite, WeAreSocial
– CupomValido.com.br
No entanto, ainda nesse sentido, é im portante levantar o questionamento a respeito desses mesmos formadores de opinião: será que suas falas e posiciona mentos são realmente decisivos em um momento tão importante como as elei ções presidenciais? Segundo uma ma téria recente da Folha de São Paulo, en tende-se que não é presumível que tais artistas incitem uma virada de chave nos resultados, mas é inegável a sua influên cia frente ao público que os acompanha. “Fátima Bernardes, que os seguidores não sabiam em quem vota, agora sabem. Não significa que todos eles
vão seguir a opinião dela, mas eles são muito influenciados [...] A Fátima é vista como uma pessoa que pesqui sa, pondera, e que não tem polêmicas. Então, ela dizer que vai votar no Lula é claro que influencia pessoas que es tão indecisas.”
Fátima Pissara (CEO da Mynd) via Fo lha de São Paulo.
"Fátima Bernardes, que os seguidores não sabiam em quem vota, agora sabem. Não significa que todos eles vão seguir a opinião dela, mas eles são muito influenciados [...] A Fátima é vista como uma pessoa que pesquisa, pondera, e que não tem polêmicas. Então, ela dizer que vai votar no Lula é claro que influencia pessoas que estão indecisas."
Ao averiguar o exemplo da Fátima Ber nardes mencionado acima, observa-se que, embora a exposição de suas ideias políticas tenha causado impacto no pú blico que a segue ou credibiliza a sua opinião frente a um cenário polarizado e incerto, ao menos no que tange ao âmbito popular de sondar as considerações dos internautas, e levando em considera ção que a quantidade de votos brancos e nulos foi a menor desde 1994 – quando
Fernando Henrique Cardoso foi candida to e, posteriormente, eleito à presidência – é importante considerar que o público alcançado por ela ou outros artistas não foi o suficiente para garantir uma vitória de primeiro turno. Assim, nota-se que di versas variáveis influenciam na efetivação da mensagem passada para a real decisão do eleitor, já que os próprios votos inválidos, por exemplo, chegaram juntos a cerca de 5,4 milhões, segundo o Supremo Tribunal Eleitoral.
Fátima Pissara (CEO da Mynd) via Folha de São Paulo.
foto retirada do site mynd8.com.br
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O CENÁRIO POLÍTICO PODE SER INFLUENCIADO?
Após analisar todo o cenário e contexto histórico que levam aos acontecimentos atuais, percebe-se que, em 2018, Taylor Swift provocou um fenômeno impressionante nas eleições de meio de mandato, embora a contagem de votos não tenha atingido a parcela para que seus candida tos fossem eleitos. Quatro anos depois, em 2022, vemos um cenário parecido se desenhando nas eleições presidenciais brasileiras, visto que o posicionamento dos artistas influenciou a escolha dos eleitores dos principais candidatos, mes mo que não tenha sido possível definir uma vitória ainda no primeiro turno.
Dessa forma, observa-se que as grandes figuras midiáticas ganham cada vez mais relevância e deixam de influenciar apenas o habitual, passando a exercer voz como formadores de opinião em novas esferas da sociedade, tal qual a política, ainda que seus respectivos posiciona mentos não tenham sido definitivos em um cenário delicado que envolve milhões de eleitores em sua liberdade democráti ca como uma disputa presidencial.
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O ROUBO DE UMA ESTRELA
O Caso da Grande Estrela da África
O imperialismo trata-se de uma prática ou defesa do Estado de estender seu poder, domínio e território, muitas vezes também é motivado pelo controle político e/ ou econômico de outras regiões, essa espécie de dominação comumente ocorre por meio coercitivo, através do poder bélico ou econômico (hard power) como também pode aconte cer mediante a influência diplomá tica ou cultural (soft power). A colo nização parte do mesmo ponto de entendimento que o imperialismo, contudo, possui um conceito mais específico que pode ser adotado a outras formas de governo e expansão. Apesar disso, ambos conceitos possuem uma característica marcante em comum, isto é, seu aspecto hegemônico, que significa de forma simplificada, o domínio de uma entidade sobre outras.
Os nove recortes do diamante Cullinan, Cima: Cullinans II, I, and III. Baixo: Cullinans VIII, VI, IV, V, VII e IX. Foto: Diamond Boutique
No dia 26 de janeiro de 1905, foi en contrado na África do Sul, nas mi nas Premier No. 2, em Cullinan, o maior diamante bruto já descoberto na história do mundo, pesando pou co mais de 3.100 quilates. Segundo a Only Natural Diamonds – site popu lar dedicado exclusivamente à pe dras preciosas e seus valores histó ricos, envolvimento no mundo pop e como são utilizadas no dia a dia –a joia foi apresentada para o rei do Reino Unido, Edward VII, e refinada por Joseph Asscher & co, que dividiu a pedra em mais nove diferentes ta manhos. As gemas nunca foram, de fato, retornadas ao seu lugar de ori gem, tendo em mente que as mesmas foram retiradas de sua região pá tria em um contexto em que a Áfri ca do Sul era colônia do Reino Unido.
Por: Thabata Freitas Castro.
As minas Premier, ou Premier Mines, foi fundada em 1902 e ganhou seu des taque com a descoberta do Diamante Cullinan em 1905. Trata-se também de uma das únicas fontes significati vas de diamantes azuis no mundo, e chegou a produzir mais de 750 pedras com mais de 100 quilates. A mina foi renomeada para Cullinan Mine em meados de 2003 com intuito de celebrar o seu aniversário de 100 anos.
De acordo com o blog dedicado a joias Brilliance, Louis e Joseph Ass cher, dois dos 15 sobreviventes da fa mília, decidiram reconstruir o nome da empresa. Em 1980, a Rainha Ju liana da Holanda deu a Asscher Diamond Company um título real. A empresa atualmente mantém o nome “Royal Asscher Diamond Company’’ e carrega consigo um legado de 158 anos no artesanato de diamantes.
A companhia que transformou a la pidação de diamantes em um verda deiro ramo artístico e que ficou res ponsável pela Estrela da África, é a Joseph Asscher & co. Antes da fama proporcionada pelo diamante Culli nan, Joseph já possuía uma repu tação renomada com o seu famoso projeto “Asscher Cut”, que se refere a um tipo de refinamento do diaman te tão único e extraordinário, que rapidamente ganhou fama interna cional e se transformou em um dos recortes mais cobiçados do mundo. Entretanto, em 1945 com a chegada da 2ª Guerra Mundial, a família Asscher teve suas gemas apreendidas, além de também, serem deportados da Holanda para os campos de concentração. Um ano depois, 15 dos polidores sobreviventes voltaram a Amsterdã, onde descobriram que o mercado de diamantes do país ha via sido completamente aniquilado.
do “ Asscher Cut” [Imagem:DO AMORE]
Projeto
Por que a África do Sul? Um crime internacional
Agora, é preciso entender os fatores que levaram o Reino Unido – que será o caso em análise utilizado para esse artigo – a colonizar a África do Sul. Conforme a Internet Public Library (IPL) três foram os principais, o pri meiro sendo o espaço, que havia mais do que o suficiente para que a coroa britânica alastrasse sua economia e expandisse seu império. O segundo fator trata-se do domínio colonial, que também foi conhecido como um tipo de “corrida imperialista”, que trata va-se de uma competição pelo poder na África do Sul. O terceiro e último fator foi a criação de rotas comerciais para a Índia, onde o local se tornaria uma parada para que aqueles que vinham da Europa e da Índia pudessem parar nos novos portos do terri tório e re-abastecer de mantimentos.
A “corrida imperialista” citada no parágrafo anterior trata-se do movi mento imperialista que eclodiu no séc. XIX, onde as potências mundiais da época, como Alemanha, Inglater ra, Rússia, França e Itália, buscavam expandir a sua influência política e seu poder econômico, principalmen te no continente africano e asiático. Foi durante esse período que surgiu a expressão Partilha da África, no qual houveram reivindicações terri toriais por parte desses países sob o continente. Na realidade, o caso da Disputa pela África foi um dos fatores principais do que mais tarde desen cadearia a Primeira Guerra Mundial.
Com o fim do séc. XX, e a chegada próxima do séc. XXI, houve um gran de marco para a história do sistema internacional, algo que teoricamen te, ajudaria na caminhada do mundo para uma possível paz cosmopolita. O parágrafo se refere ao Estatuto de Roma, um tratado que estabeleceu o Tribunal Penal Internacional (TPI) que define o colonialismo como um crime internacional contra a huma nidade, especialmente quando envol ve a transferência de recursos de um território explorado para a nação ex ploradora. Ou seja, no contexto moderno as ações de cunho hegemônico, enraizadas mediante ao imperialismo, teriam perdido a sua legitimidade e caindo na invalidez, em outras palavras, a aquisição do diamante Cullinan pelo Reino Unido se torna ria – legalmente falando – ilegítimo.
Quando a África do Sul oficialmente declarou sua independência, hou ve uma tentativa de recuperação de todos os seus pertences, metais pre ciosos e afins. Entretanto, o Reino Unido segue recusando-se a atender suas solicitações, causando assim com que a coroa britânica seja vista a mal olhos por muitos internautas. Com a morte da rainha Elizabeth II, ocorre uma oscilação da estabilida de monárquica britânica, já que a rainha representava um grande símbolo da coroa, em função disso, a demanda pelo retorno dos mais diversos tipos de diamantes – incluindo o diamante Cullinan – ao seu país de origem. Atualmente o maior recorte da gema se encontra no cajado real.
Teoricamente, o período colonial sul -africano teve o seu fim em 1910, com a fundação da União África do Sul. Entretanto, a região permaneceu sob domínio britânico até 1931, quando a União, oficialmente, se tornou in dependente da metrópole através do Estatuto de Westminster, que garan tia o status de igualitário entre os di ferentes Domínios do Império Britâ nico. Em 1961, ocorre a proclamação da república e a retirada sul-africana da Commonwealth – uma organização intergovernamental composta por 56 países, em que todas, com a exceção de algumas, faziam parte do Império Britânico – decisão essa que foi tomada através de uma votação em que apenas as pessoas brancas votaram, devido ao apartheid que vigorava no país durante a época.
Cajado real, onde se encontra o maior recorte do diamante Cullinan, Foto: POÉSIE
Como fica o desfecho?
De acordo com o veículo de notícias, News time express, houve uma petição sul-africana para o retorno imediato da ‘Grande Estrela da África’, que contou com mais de 6.000 assinaturas, na petição também era exigido que a joia fosse mantida em exibição no Museu da África do Sul. Tendo em mente os dados expostos, fica claro a necessidade de uma compensação não só para a África do Sul, mas também a todos os países – com destaque a nações do continen te africano e asiático – que foram vítimas da colonização e hegemonia britânica.
Embora os fatos estejam expostos, ainda não decorreu nenhuma conclusão ou desfecho para esses países, o que faz surgir algumas dúvidas, até quan do esses estados que possuem tamanha relevância e influência no sistema internacional podem escapar das consequências de suas próprias ações? Até quando aqueles que foram alvos durante a corrida imperialista se rão silenciados e deixados de lado? Até quando será feita esta ‘vista grossa’?
Imagem da estátua do Rei Leopoldo, em 4 de junho de 2020 — Foto: Jonas Roosens
Belga
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Bruxelas: a capital europeia que se modernizou sob a mutilação de congoleses.
Até que ponto um Rei pode ir para o crescimento de sua capital? As cicatrizes carregadas pela República Democrática do Congo contam essa história.
Por: Cecília Cruz
A construção:
Para a grande maioria belga, Le opoldo II é conhecido como “o Rei Construtor”, visto que seu sonho era transformar Bruxelas na vitrine da Bélgica e equiparar a cidade com Paris e Londres, as maiores capitais da época. Assim, Leopoldo possui essa fama porque, em seu reinado - na época de seus empreendimen tos - ocorreu o maior momento de ascensão urbana sofrido por Bru xelas. Avenidas, cobertura de esgo tos a céu aberto, parques públicos, áreas verdes, calçadões e principal mente muitas estátuas de si mesmo são algumas de suas obras.
fotografia da capital Bruxelas ,petar-starčević/PEXELS
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Região da Capital de Bruxelas na Bélgica, wikimedia commons
Ele assumiu o trono belga em 17 de dezembro de 1865, e reinou até 1909, quando veio a falecer. Vale ressaltar que, durante os seus anos de domínio, o cenário europeu no século XIX era da ascensão da revolução industrial e do imperialismo, que sustentava a revolução fornecendo matéria prima a partir de mão de obra barata (ou escrava). O Rei sempre foi ambicioso e, à vista disso, gastou a maior parte de seus ganhos com a colônia congolesa na modernização da capital belga. Leopoldo recebeu, nos anos de domí nio sob o Congo, aproximadamente 1 bilhão de dólares.
Assim, Bruxelas - que foi escolhida como atual capital da União Europeia, casa das principais instituições UE e sede da OTAN por ser um país “neutro” historicamente, já que se manteve imparcial em alguns conflitos europeus, como na guerra Franco-Prussiana em que, apesar de estar entre os dois territórios, permaneceu isenta no conflito - prosperou, embora esconda um passado imperialista de tormento para com o povo congolês. Seria mesmo um país tão neutro assim?
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Sede da união europeia em bruxelas pexels-guillaume-meurice
O início: Pouco se é falado sobre o “Império Bel ga”. Isso se dá pois o passado imperia lista foi apagado e só em 1990 passou a ser comentado por historiadores. No entanto, não é segredo que territórios africanos sempre estiveram sob os olhares de desejo de países imperialis tas e com o Congo não foi diferente. A história diz que, inicialmente, o país era reconhecido como território de Portugal, e foi explorado principalmente pela grande quantidade de ouro, cobalto, cobre, diamante e columbita tantalita presentes em seu solo. Por saber do seu potencial como fornecedor dessas riquezas, o Rei belga Leopoldo II, criou, então, a “Conferência Internacional de Geografia” em 1878, afirmando que o intuito seria discutir a criação de uma associação para melhoria da vida dos africanos. Na realidade, o Rei planejava obter poder sobre o território.
A Conferência de Berlim é, então, realizada - 15 de novembro de 1884 a 26 de fevereiro de 1885 - sendo idealizada por Otto Von Bismark, um dos principais estadistas europeus do século XIX, a fim de evitar um conflito entre Portugal e a Bélgica. Assim, nessa conferência, o território congolês foi anexado às propriedades belgas.
Isto posto, vale ressaltar que o parlamento belga não concordava com os planos de colonização de Leopoldo e, por isso, foi resolvido que o território de mais de 2 milhões de km² se tornaria propriedade privada do Rei. Leopoldo, então, cria em sua nova propriedade um dos governos mais tiranos e sanguinários do século XIX.
Conferência de Berlim, Wikimedia
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A mutilação:
Para conseguir a extração das ma térias primas que lhe interessavam - sendo as matérias primas mais ex traídas na região o marfim e látex - o Rei precisava de mão de obra. A solução foi, então, usar do trabalho forçado de congoleses.
Os agentes que cuidavam da extração e dos escravos congoleses criaram um método de contenção do povo para aumentar a produtividade e causar medo na população, evitan do, assim, revoltas contra os agentes belgas. É nesse momento que o terror se instala no território.
A “Force Publique” - milícia da Bélgi ca que cuidava desses assuntos - pas sa então a decepar mãos, braços, pernas entre outros membros do corpo de congoleses caso não cumprissem uma meta diária de extração, tendo em vista que tudo isso ocorria com o aval de Leopoldo II. Dessa forma, não apenas a mutilação era permitida, como também o estupro e sequestro de familiares desses escravos. Assim, eles conseguiam que os mais “rebel des” fizessem o trabalho, por medo do que poderia acontecer com aque les com quem se importavam.
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Ivory trade, East Africa, 1880s/1890s wikimedia Commons
retrata Leopoldo II como uma serpente de borracha enredando um seringueiro congolês /E. Linley Sambourne;
A crueldade se tornou cada dia mais avassaladora, visto que tornou-se uma forma usada pelos agentes para demonstrar ao Rei a sua eficácia e produtividade. Mesmo aqueles que obedeciam aos agentes, eram muti lados para que seus membros fossem demonstrados aos oficiais que fiscali zavam as extrações.
A violência era tamanha que outras nações como Grã-Bretanha e os Es tados Unidos passaram a criticar os métodos de Leopoldo II a partir de uma denúncia feita pelo cônsul e ativista dos direitos humanos na época, Roger Casement, que, de iní cio, trabalhava para um agente de Leopoldo II, Henry Morton, no desbravamento do território congolês. Roger percebeu as verdadeiras in tenções do rei e, através de inúmeras denúncias feitas para o Ministério das Relações Exteriores da Grã-Bretanha, conseguiu aval para enviar um relatório sobre os abusos do rei belga - o “Relatório Casement”.
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Casement Report, wikimedia
As denúncias de Roger impactaram diretamente na criação de uma Co missão de Inquérito - uma forma que o poder legislativo tem de investigar, fiscalizar ou apurar um fato. Os paí ses participantes abrangeram as 14 potências signatárias da Conferência de Berlim. Um dos aspectos princi pais da comissão foi divulgar para a imprensa internacional as imagens do povo mutilado, transformando o Congo de Leopoldo no império mais criticado do fim do século XIX ao início do século XX. Com a pressão internacional, o Rei foi forçado a entregar o território à Bélgica. Assim, o que até então era “Es tado Livre do Congo” se torna “Congo Belga” em 15 de novembro de 1908. O país só ficaria livre da colonização e exploração em 1960, quando conquista sua independência. Leopoldo II morreu em 17 de dezembro de 1909 e nunca foi responsabili zado por seus atos. Aproximadamen te 10 milhões de congoleses morreram durante seus anos de domínio.
Seringueiras na floresta (Lusambo). Colheita de látex. 1901-1906 Wikipedia Commons
“Homens congoleses segurando as mãos cortadas-”Wikimedia Commons.
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A atualidade:
Atualmente, as estátuas de Leopoldo II são vandalizadas por aqueles que conhecem a história de sua ascensão. Foi em um desses escândalos de vandalismo que o irmão do atual Rei belga, Prince Laurent, fez uma declaração onde afirmou: “Ele nunca foi ao Congo pessoalmente. Então não vejo como ele poderia ter machucados as pessoas lá”. A declaração causou revolta em mui tos congoleses e a situação foi ape nas “resolvida” após o atual Rei ter enviado ao Presidente congolês um pedido de desculpas pelas atrocidades cometidas durante os anos de dominação.
Ele nunca foi ao Congo pessoalmente.
Então não vejo como ele poderia ter machucados as pessoas lá ”
Prince Laurent /agriflanders/flickr “
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A carta foi enviada em 2020, 60 anos após a conquista da independência. Antes disso a Bélgica não havia admitido publicamente o ocorrido durante os 23 anos do “Estado Livre do Congo”. Será que um pedido de desculpas (feito sob pressão popular) é capaz de resolver o problema? As consequências do imperialismo racista dizem o contrário, já que, em contrapartida, a atual situação da República Democrática do Congo é de muita violência e conflitos no próprio país. Após a independência, não durou um ano até que o Primeiro Ministro congo lês, Patrice Lumumba sofresse um golpe e fosse assassinado.
O decorrer da história é uma repetição de abusos de poder e corrupção pelo novo líder Joseph Mobotu, um ex-oficial da Force Publique, que ficou no poder por mais de 30 anos. O país passou por guerras civis e hoje atingiu um nível de violência exorbitante com eventuais conflitos internos, sendo mais de 918.000 refugiados da RDC em outros países da África, de acordo com a ACNUR. A ONU categoriza o país em nível três de emergência - o maior da escala - e necessita urgentemente de assis tência para mudança.
Imagem da estátua do Rei Leopoldo, em 4 de junho de 2020 — Foto: Jonas Roosens / Belga
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C O L U N A
Dando a Volta ao Mundo
O Dando a Volta ao Mundo (DVM) é um projeto de extensão parceiro do Núcleo de Práticas em Economia e Relações Internacionais (NERI) da UNIFACS. O projeto tem foco no estudo das diversas nações espalhadas pelo globo e no conhecimento de novas perspectivas sobre a disposição geopolítica do mundo, tudo a partir de pesquisas, debates e interações com pessoas de diferentes nacionalidades.
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O papel do Nasserismo na Revolução Líbia
Após a Segunda Guerra Mundial, os países Aliados passaram a tutelar a Líbia, antes colonizada pelos italianos, a fim de explorar o país em prol dos seus interesses. Os Estados Unidos (EUA), a França, a Grã-Bretanha e a Rússia ne gociaram uma provisão de apoios fi nanceiros e entrada de investimentos, além de manter instalações no territó rio líbio com a intenção de assegurar o controle da região. No entanto, mesmo sob influência de potências, em 29 de dezembro de 1951, a independência da Líbia foi proclamada. O país se tornou uma monarquia federativa formada por três províncias autônomas (Cirenaica, Tripolitânia e Fezzan), sendo liderado pelo autoproclamado rei Emir da Ci renaica Muhammad Idris Io al-Sanusi. Idris era considerado a única opção viável para a consolidação de um país unificado, já que a Líbia possuía uma identidade dividida entre três regiões com características muito distintas culturalmente.
Durante o primeiro período do rei nado de Muhammad Idris, a Líbia se caracterizou como um país dividido, com parlamentos distintos em cada re gião, e que se identificava apenas atra vés dos laços islâmicos. Somado à isso, uma forte onda árabe-nacionalista se formou, e esta considerava que o go verno de Idris favorecia a manutenção da influência externa, principalmente
Por: Maria Júlia Oliveira Ribeiro da Cruz
dos EUA e da Grã-Bretanha, mesmo após a independência. Após a descoberta das reservas de petróleo na na década de 1960, a Líbia concedeu a extração dos hidrocarbonetos à diversos países Ocidentais, o que levou à unificação do país, já que se tornou necessária uma maior inte gração econômica no território para garantir um melhor gerenciamento do dinheiro procedente da exploração do petróleo. No entanto, essa mesma déca da foi marcada por uma onda naciona lista árabe inspirada pelo líder egípcio Gamal Abdel Nasser, que foi acolhida por grande parte da população da Lí bia. Com isso, a insatisfação popular em relação ao governo de Idris só au mentou, causando abalos estruturais na monarquia líbia.
O rei Muhammad Idris al-Sanusi, primeiro governante da Líbia independente, prepara-se para discursar durante as comemorações da emancipação política do país, ocorrida em 1951
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A Ideologia Nasserista
O nasserismo, ideologia chave para a revolução Líbia no final da década de 1960, foi proliferado a partir de Gamal Abdel Nasser, militar e presidente do Egito de 1954 até 1970. A ideologia de Nasser foi fortemente baseada no con ceito de nacionalismo popular, que possuía três elementos cruciais e com grande necessidade de apelo à população: o não-alinhamento (em relação à Guerra Fria; Terceiro Mundista), o nacionalismo árabe (no sentido de unidade) e o socialismo árabe. Abdel Nasser foi o único líder capaz de aplicar com a maior eficiência possível a noção de nacionalismo popular, tornando-se o líder do mundo árabe. pós participar da Guerra Árabe-Is raelense (1948), Nasser afirmou que aquele conflito era uma cópia do que se passava internamente no Egito, fa zendo uma analogia ao imperialismo, ao governo da época e à população na cionalista egípcia. Foi a partir do con fronto em 1948 que o presidente egíp cio viu a oportunidade de promover uma organização contra o imperialis mo que cercava o Egito, e adotou a uni da de árabe como seu ideal.
“Depois do cerco e dos combates, ao regressar à pátria, via claramente que toda a zona árabe constituía, na ver dade, uma só unidade e que não deví amos mantê-la separada e dividida em diversas seções. A evolução dos aconte cimentos reforçou a minha convicção de que o Cairo, Amã, Beirute e Damas co constituíam uma só zona, que sofreu os mesmos acontecimentos, e que tem o mesmo obstáculo a transpor: o impePor conseguinte, ao tornar-se presi dente do Egito em 1954, Nasser tentou unir o maior número de países árabes possíveis contra as influências impe rialistas, apoiando-se na identidade árabe, no islamismo e na liberdade como pautas principais. Somado a isso, o líder egípcio conseguiu propagar a ideia de “não-alinhamento” durante a Guerra Fria, que significava que os países poderiam assumir a posição de neutralidade em relação ao capitalis mo estadunidense e ao socialismo so viético, além de negociarem entre si, com o objetivo de superar qualquer influência imperialista no mundo árabe. Outro ponto importante em relação à ideologia nasserista era o socialismo árabe, que, diferentemente do que se pensa, não era o mesmo que o socia lismo pregado pela União Soviética (URSS). No pensamento do governo egípcio não havia sentido em uma luta entre as classes sociais, pois a opres são interna que foi imposta pelo impe rialismo já estava sendo desintegrada desde a década de 1950, com isso se fez necessário a ideia da união de toda a nação e do mundo árabe para continu ar o embate contra o inimigo externo. O socialismo árabe, propagado pelo Egito, enunciava que o país não se tor naria uma sociedade sem classes, mas uma sociedade em que nenhuma clas-
Abdel Nasser, o homem de sorrido único e caricato / Crédito: Wikimedia Commons
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se poderia dominar a outra.
A importância do Nasserismo para
a Líbia
Foi a partir do nacionalismo popular empregado por Nasser com excelência no Egito, que, após a propagação da onda nacionalista árabe pela Líbia, um grupo opositor à monarquia ajudou Muammar Qaddafi a tomar o poder e instaurar uma República Socialista Árabe, em setembro de 1969, baseada no nacionalismo e no pan-arabismo pregados pelo movimento nasserista. Durante o primeiro período do seu governo, Qaddafi aplicou sua Terceira Teoria Universal, uma espécie de via alternativa islâmica contra o capita lismo ocidental e o socialismo sovié tico. Além disso, ele pregou o Estado das Massas, que era um sistema no qual combinava o socialismo, o islã e a igualdade, tanto política quanto eco nômica, a fim de refutar as democra cias ocidentais e o socialismo soviéti co, e que foi fortemente inspirado no socialismo árabe de Nasser. Ademais, Qaddafi adotou uma série de medidas anti-imperialistas e muito semelhantes às medidas que foram to madas no Egito. Ele apreendeu mais de metade do ca pital dos bancos estrangeiros que operavam no país e nacionalizou as redes de distribuição de petróleo. Inúmeros são os benefícios encontrados após a Revolução de Qaddafi na Líbia, entre eles podemos citar:
- Habitação subsidiada de excelente qualidade para o povo líbio; - Educação e cuidados de saúde;
- Um alto padrão de vida de seus cida dãos, comparável inclusive com a de muitos países europeus do Mediterrâ neo;
- Maior índice de desenvolvimento hu mano do continente africano, e o 55º do mundo;
- A taxa de alfabetização foi dos 20% aos quase 90% até os anos 80; - Salário mínimo duplicado;
- Inúmeros projetos industriais e agrí colas foram implantados;
- Distribuição de títulos de propriedade da terra;
- Nacionalização de bancos e de empresas ligadas ao petróleo, além da elevação dos preços do mesmo. Tendo em vista os benefícios da influ ência anti-imperialista e pan-arábica de Nasser, mesmo após a morte do líder egípcio em 1970, Qaddafi bus cou criar uma nação árabe unificada, que representaria o reconhecimento da identidade árabe e da ameaça que a interferência das grandes potências representava para os objetivos de de senvolvimento do continente, além de inspirar os países a se desprende rem da interferência das grandes po tências e a fugirem do conflito bipolar da Guerra Fria, defendendo o não-ali nhamento propagado pelo movimento nasserista. Portanto, após a morte de Gamal Abdel Nasser, para Qaddafi es tava óbvio que ele seria o próximo a continuar a luta árabe contra o imperialismo e a favor do desenvolvimento do continente de forma unitária.
Muammar al-Gaddafi
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Foto: Getty Images
A World Review Magazine é uma iniciativa universitária que tem como objetivo criar e promover conteúdos de análise de geopolítica internacional contemporânea, unindo o que é visto em sala de aula com o que acontece no mundo. A WR se configura como um projeto de extensão da Universidade Salvador (UNIFACS), sob o Núcleo de Práticas em Economia e Relações Internacionais (NERI).
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