O MUSEU DO ÍNDIO DO RIO DE JANEIRO E A EDUCAÇÃO INFANTIL: CONHECENDO “O OUTRO”

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Centro Universitário Barão de Mauá Walace Rodrigues

O MUSEU DO ÍNDIO DO RIO DE JANEIRO E A EDUCAÇÃO INFANTIL: CONHECENDO “O OUTRO”.

Niterói – RJ 2011

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Walace Rodrigues

O MUSEU DO ÍNDIO DO RIO DE JANEIRO E A EDUCAÇÃO INFANTIL: CONHECENDO “O OUTRO”.

Trabalho de conclusão de curso de pósgraduação lato sensu em Educação Infantil apresentado ao Centro Universitário Barão de Mauá. Orientador: Prof. Dr. Silvio Reinod Costa.

Niterói – RJ 2011

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Ficha catalogrรกfica

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Dedico este trabalho a meu companheiro Frans Harren, sempre a meu lado, mesmo estando longe.

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RESUMO

O presente trabalho de conclusão de curso tenta refletir sobre a importância da estética indígena dos artefatos expostos no Museu do Índio do Rio de Janeiro para a informação sobre as culturas indígenas nacionais e a valorização desses cidadãos brasileiros. O foco deste trabalho é a criança de educação infantil (idade de 3 anos até 5 anos e 11 meses). Analisa-se o museu sempre pensando em como as crianças da educação infantil podem se beneficiar das visitas para mudarem suas representações acerca do índio e da riqueza material e espiritual das culturas indígenas.

Palavras-chave: Arte indígena, educação infantil, museu, representação, etnografia.

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ABSTRACT

This monograph tries to ponder about the aesthetics importance of the indigenous artifacts exhibited in the Museu do Ă?ndio in Rio de Janeiro, and it tries to inform the reader about national indigenous cultures and about the ethnic values to these Brazilian citizens. The focus of this monograph is the child of infantile education (ages from 3 years up to 5 years and 11 months old). Here I analyze the museum thinking about how the children of infantile education can benefit from a visit to this museum in order to change their representations about the indigenous peoples and about the material and spiritual richness of the indigenous cultures.

Key-words: Indigenous art, infantile education, museum, representation, ethnography.

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LISTA DE FIGURAS*

Figura 1 – Fachada principal do Museu do Índio...............................................20 Figura 2 – Maleta de jogos fechada...................................................................29 Figura 3 – Maleta de jogos aberta.....................................................................30 Figura 4 - Exposição fotográfica Ijasó: Os Aruanãs..........................................32 Figura 5 – Vestimentas e adornos femininos do Ijadokomã..............................33 Figura 6 – Vestimenta e adornos masculinos para o Hetohokã.......................33 Figura 7 – Habitação indígena nos jardins do museu.......................................34 Figura 8 – Visão interna da habitação indígena nos jardins do museu............36 Figura 9 – O Lakuh...........................................................................................36 Figura 10 – Banco zoomorfo do pajé para o Turé no Lakuh e cestaria.............37 Figura 11 – Adorno de cabeça com uso de cascas de besouros......................37 Figura 12 – Chapéus usados durante o Turé....................................................38 Figura 13 - Pingentes ornamentais...................................................................38 Figura 14 – Guia Verônica, na sala de cerâmica, explicando sobre o vídeo.....38 Figura 15 – Objetos da casa do pajé usados para curas...................................39 Figura 16 – Objetos da casa do pajé: banco zoomorfo, cestarias e cuias.........40 Figura 17 – Mesas e bancos infantis no jardim do museu.................................41 Figura 18 – Degraus para o bebedouro.............................................................42 Figura 19 – Chocalhos usado no Turé...............................................................43 Figura 20 – Vasilha feita de cabaça e decorada com grafismos........................43 Figura 21 – Conjunto de vasilhas de cabaça decoradas com grafismos...........43 Figura 22 – Banco zoomorfo em forma de ave com pinturas............................44

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Figura 23 – Banco zoomorfo Kadaykahu em forma de jacaré com pinturas...........................................................................................................44 Figura 24 – Banco zoomorfo em forma de ave com pinturas.........................44 Figura 25 – Banco zoomorfo em forma de ave com pinturas.........................44 Figura 26 – Colar de miçangas multicolorido..................................................45 Figura 27 – Vaso de cerâmica decorado com grafismos................................45 Figura 28 – Indumentária de um jovem Karajá para a festa do Hetohokã......45

*Todas as fotos são de autoria de Walace Rodrigues.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço aos funcionários do Museu do Índio pela amabilidade em informar tão bem a todos os que lhes procuram, principalmente às funcionárias do Núcleo de Atendimento ao Público Escolar (NUAPE), do Serviço de Atividades Culturais do museu, e aos guias. Também, agradeço às professoras da Escola Municipal Barão Homem de Melo (Rio de Janeiro) que me deixaram acompanhar seu grupo de alunos.

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SUMÁRIO

1 – Introdução......................................................................................................11 2 – Desenvolvimento...........................................................................................12 2.1 - Necessidade e lugares da valorização cultural....................................12 2.2 - As representações dos nossos indígenas na história brasileira........15 2.3 - O Museu do Índio do Rio de Janeiro......................................................19 2.4 - Experiência estética e o Museu do Índio...............................................23 2.5 - A pesquisa no Museu do Índio e seus resultados analisados............27 3 - Considerações finais......................................................................................48 4 – Referências.....................................................................................................51 5 – Anexos............................................................................................................55 5.1 - Anexo I- Números consolidados de visitas escolares de 2010..........55 5.2 - Anexo II- Números de visitas escolares de 2011 até o mês de maio.56 5.3 - Anexo III- Folha sobre os Karajás distribuídas às crianças de educação infantil (frente e verso)..................................................................57

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1 - Introdução:

Este trabalho de fim de curso tenta mostrar a importância do Museu do Índio do Rio de Janeiro1 na formação de representações atuais e coerentes sobre os indígenas nacionais juntos às crianças da educação infantil pela via do conhecimento e do reconhecimento da importância dos objetos de arte indígena para a alfabetização estética e ética destas crianças. Também, acredita-se que através do reconhecimento da importância estética dos artefatos culturais indígenas, as crianças da educação infantil possam valorizar mais os povos indígenas brasileiros e reconhecê-los como cidadãos nacionais.

Acreditando que os objetos culturais produzidos pelos povos indígenas mostrados no museu podem ser transformadores de mentalidades e eliminador de estereótipos, principalmente pelas qualidades estéticas dos seus artefatos culturais, investiguei o Museu do Índio em seu contato com as crianças de uma escola pública urbana.

Busquei informação sobre a visita do público infantil junto aos funcionários do museu que estão diretamente ligados às visitas deste tipo de público e, através das respostas destes funcionários e do acompanhamento de um grupo de crianças de uma escola pública urbana do Rio de Janeiro.

Tentou-se uma possível compreensão da situação de exibição de objetos estéticos indígenas para crianças e uma análise qualitativa dos resultados das visitas infantis para a mudança de representações sobre os indígenas nacionais, já que acredito que as representações sobre os indígenas são socialmente construídas por significações dadas às crianças pelas instituições sociais (ex. Escolas, museus, etc.) com as quais estas crianças têm contato.

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O website do museu é http://www.museudoindio.org.br


2 - Desenvolvimento:

2.1 - Necessidade e lugares da valorização cultural:

A lei de diretrizes e base da educação brasileira (lei 9394/96) dá especial atenção aos conteúdos ensinados sobre os povos indígenas nacionais e a cultura afro-brasileira. Essa tentativa de aproximação dos estudantes com as culturas indígenas enriquece a visão dos alunos em relação aos outros povos formadores da sociedade nacional. O artigo da atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação (lei 9394/96) que especificamente direciona as escolas a ensinarem estes conteúdos é o artigo 26-A, que transcrevo abaixo como embasamento legal para a ação de valorização dos vários grupos formadores da sociedade brasileira: Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena. (Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008). § 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil. (Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008). § 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras. (Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008). (BRASIL, 1996).

Portanto, para além das razões morais (legais) de valorização das culturas dos afro-brasileiros e indígenas no contexto escolar, há uma necessidade ética em combater qualquer tipo de discriminação, tendo a escola papel fundamental nesta função, principalmente durante a formação infantil, quando as crianças começam a conhecerem-se enquanto indivíduos. As diferenças devem ser valorizadas na escola como temas que enriquecem os conteúdos e que respeitam as várias visões de mundo existentes em uma sociedade. Uso aqui uma passagem da professora Vera Neusa Lopes (2005) que fala exatamente sobre esse ponto:

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A educação escolar deve ajudar professor e alunos a compreenderem que a diferença entre pessoas, povos e nações é saudável e enriquecedora; que é preciso valorizá-la para garantir a democracia que, entre outros, significa respeito pelas pessoas e nações tais como são, com suas características próprias e individualizadoras; que buscar soluções e fazê-las vigorar é uma questão de direitos humanos e cidadania. Aprendendo a se ver, a ver o seu entorno (família, amigos, comunidade imediata) de modo objetivo e crítico, a comparar todos elementos com os de outros tempos e lugares, a criança desenvolve comportamentos adequados para viver numa sociedade democrática. (LOPES, 2005, p.189).

Para que possamos construir uma nação livre, solidária e igualitária, onde ser cidadão não se constitua em um privilégios de poucos, devemos buscar informar sobre todos os povos que compõem a sociedade nacional (asiáticos, brancos, negros, indígenas, entre outros) e tentar valorizar as culturas e feitos destes outros povos, principalmente, mas não exclusivamente, dentro da escola e durante a educação infantil.

A pesquisadora indiana Gayatri Spivak, muito conhecida por seus estudos nas áreas de feminismo e pós-colonialismo, nos informa que racismo 1 é aprendido, portanto, pode, também, ser desaprendido na tentativa de mostrar possibilidades mais críticas e criativas. E que melhor idade para desaprender que entre 3 e 5 anos e 11 meses, durante o período da educação infantil? Coloco aqui uma passagem de Spivak sobre este processo de desaprendizado: Se nós aprendemos racismo, nós podemos desaprendê-lo, e desaprendê-lo precisamente porque nossas ideias sobre raça representam um fechamento de possibilidade criativa, a perda da opção do outro, outro conhecimento. (SPIVAK apud LANDRY e MACLEAN, 1996, p.4). “Tradução livre”.

O ato de informar as crianças sobre os vários povos formadores da sociedade nacional se mostra mais que necessário, não somente por seu aporte legal, como designado na LDB, mas por uma revisão ética e histórica de valorização devida a alguns povos desprezados na sociedade nacional, como no caso dos afrobrasileiros e dos indígenas. Assim, a escola deve incentivar as crianças a pensarem criticamente um Brasil mais múltiplo e heterogêneo em sua formação cultural. 1

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Aqui tomamos “racismo” como uma discriminação por motivos raciais, desprezando alguma(s) “raça”(s) e valorizando outra(s). Essa discriminação também afeta todas as contribuições culturais, sociais e históricas dos “desprezados”.


É papel da escola ajudar as crianças a terem representações simbólicas corretas sobre a sociedade em que vivem e sobre as várias vertentes étnicas encontradas nesta sociedade. Em um país tão mesclado etnicamente como o nosso, o entendimento de cada grupo social e seu papel na sociedade nacional se torna essencial. Uso aqui uma passagem dos educadores Ercília Maria de Paula e Fernando Wolff Mendonça (2009) sobre a construção de conteúdos sociais simbólicos e o papel da escola: A escola é criação social e representa um espaço em que as apropriações comuns de uma sociedade podem ser ordenadas e classificadas de acordo com a utilidade e a significação dos conceitos sociais, desde que essas apropriações tenham relevância para o desenvolvimento da criança, sendo utilizadas como ferramenta de interação da criança com o grupo social. (PAULA; MENDONÇA, 2009, p.51).

Esse conhecimento que a escola deve compartilhar com seus estudantes também tem uma vertente ética em relação às representações dos grupos formadores da sociedade nacional. Essa atualidade sobre a discussão de valores éticos pode ser vista na seguinte passagem de Edilson Santana (2007): No mundo contemporâneo, tudo se converte em ameaça e exige uma construção ética inédita, que tem como centro as tecnologias biológicas e a energia nuclear, para as quais os regramentos da tradição acham-se inoperantes. Neste contexto, torna-se inevitável o questionamento das éticas aplicadas, tais como a bioética. Tudo reclama um ethos mundial, uma ética universal, capaz de corrigir a rota que vem levando à grave crise da injustiça social. (SANTANA, 2007, p. 94).

Assim sendo, seguindo os ensinamentos de Paulo Freire (1997, p. 46), sobre a importância da “outredade” do “não-eu” para assumir a radicalidade do meu “eu”, podemos verificar que o reconhecimento da importância social e cultural dos indígenas nacionais se mostra na necessidade de valorização das contribuições destes grupos sociais, não somente em um sentido ético, mas, também, em um sentido de auto-entendimento cultural e artístico desses grupos. Também é interessante notar que o nosso “outro”, o indígena, não é um habitante de outro país, mas o autóctone da nação brasileira.

E qual a melhor maneira de começar a conhecer o “outro” senão pela sua arte e cultura? E qual o melhor lugar para compreender a cultura do “outro”, em nosso caso a cultura indígena, senão no próprio museu do “outro”, o Museu do 14


Índio? Ai onde as sociedades indígenas são representadas com todos seus atributos culturais, sociais e criações artísticas, tornando fácil a percepção e a descoberta de suas riquezas.

Assim, pela importância do processo de socialização na faixa etária que abrange a educação infantil é que as crianças devem ser instigadas a se aproximarem de culturas diferentes. Uso aqui uma passagem da Revista Crescer para exemplificar a importância da educação infantil e dos primeiros contatos e encontros desta fase educacional da pessoa humana:

Educação infantil pode ser mais importante do que o curso superior? Sim. É quando a criança experimenta o prazer pelo aprender e começa a gostar dele (ou não). A escola aguça a curiosidade da criança e diz a ela “olha que interessante é a vida!”. (REVISTA CRESCER).

2.2 - As representações dos nossos indígenas na história brasileira:

O indígena brasileiro já teve várias representações sociais durante toda a história brasileira. Primeiramente foi considerado pelos europeus que aqui aportaram como “gentio”, “bárbaro”, “raça atrasada”, “bugre” e “selvagem”, somente para citar alguns termos muito usados no período colonial. Utilizo uma passagem de Gilberto Freyre (2006), de seu clássico livro Casa-Grande & Senzala, para exemplificar o sentido pejorativo da definição de “bugre” e de “gentio”: A denominação de bugres dada pelos portugueses aos indígenas do Brasil em geral e a uma tribo de São Paulo em particular talvez exprimisse o horror teológico de cristãos mal saídos da Idade Média ao pecado nefando, por eles associado sempre ao grande, ao máximo da incredulidade ou heresia. Já para os hebreus o termo gentio implicava idéia de sodomita; para o cristão medieval foi o termo bugre que ficou impregnado da mesma idéia pejorativa de pecado imundo. (FREYRE, 2006, p.189).

Pelo fato de os indígenas não serem cristãos, como vimos na passagem de Gilberto Freyre, a primeira providência dos jesuítas que aqui chegaram, fervorosos com ideias ainda medievais sobre o que era ser cristão e com

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a função de fazer crescer o número de fiéis nas terras recém descobertas, foi tentar convertê-los ao cristianismo, ou seja, “humanizá-los”1. Uma passagem de Marília Amaral (2008) nos dá a dimensão desta “humanização” desejada pelos jesuítas e colonizadores recém chegados ao Brasil: O não reconhecimento da humanidade do “outro” foi condição sine qua non para o desenvolvimento da ideia de humanizar estes semi-homens, perdidos em um mundo de sobras e pecados. (AMARAL, 2008, p.2).

Esta concepção de tornar o indígena “melhor”, mais “humano” através da fé católica, na potencialidade de tornar-se cristão, faziam com que os portugueses menosprezassem as crenças e costumes dos indígenas nacionais, os verdadeiros autóctones brasileiros, demonstrando que os europeus desprezavam as culturas dos que aqui habitavam por acharem as culturas e formas religiosas europeias superiores e mais corretas.

Os jesuítas, em seus esforços para “protegerem” os indígenas com o intuito de torná-los cristãos, criaram um discurso sobre a necessidade de tutela do indígena por parte do Estado, como se os índios fossem animais domésticos que deveriam ser cuidados. Também, importava aos portugueses distinguir entre negros e indígenas. Uso uma passagem de Sérgio Buarque de Holanda (2007) sobre este ponto: O recurso da liberdade civil dos índios – mesmo quando se tratasse simplesmente de uma liberdade “tutelada” ou “protegida”, segundo a sutil discriminação dos juristas – tendia a distanciá-los do estigma social ligado à escravidão. (HOLLANDA, 2007, p. 56).

Após esse longo e marcado período tutelar jesuítico sobre o indígena (essa visão ainda persiste até hoje, porém com outros objetivos), os escritores e poetas românticos brasileiros viram no indígena nacional qualidades equivalentes às do cavaleiro medieval europeu. Este discurso romântico baseado no uso da figura do “bom selvagem” serviu à uma necessidade de busca de um herói tipicamente 1

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Na concepção jesuítica do século XVI, fazer com que os indígenas acreditassem no Cristo e nos seus ensinamentos do cristianismo faria deles “humanos”, ou seja, atribuir-lhes-ia “alma”. Pensando desta maneira, podemos notar que os jesuítas viam os indígenas “ateus na fé cristã” como semi-humanos.


nacional, honrado e bravo. Romances como O Guarani, Ubirajara e Iracema de José de Alencar e A Moreninha de Joaquim Manuel de Macedo são nítidos exemplos desta romantização da figura do indígena nacional. Uso aqui uma outra passagem de Sérgio Buarque de Holanda (2007) sobre este ponto: ...escritores do século passado [XIX], como Gonçalves Dias e [José de] Alencar, iriam reservar ao índio virtudes convencionais de antigos fidalgos e cavaleiros, ao passo que o negro devia contentar-se, no melhor dos casos, com a posição de vítima submissa ou rebelde. (ibidem, p.56).

No século XIX, as várias expedições etnológicas que adentraram o Brasil representaram o indígena como uma figura não apenas desumanizada, mas também, “impuros”, “incivis”, “degenerados”, “selvagens”, entre outros adjetivos ainda mais depreciativos que os dos primeiros colonizadores, talvez, também, porque os indígenas relutaram em trabalhar nas plantações dos colonizadores. Uso aqui um texto de Marília Amaral (2008) para exemplificar estes discursos: No século XIX, a essência do índio não é concebida como pura. As teorias raciais que se formavam desde final do século XVIII impregnavam os cientistas e racionalistas. Os indígenas, os negros, os mestiços..., todos eram raças degeneradas, selvagens, que precisavam ser civilizadas. A cor, a fibra do cabelo, as medições dos narizes, a angulação dos olhos, estas características assinalavam as diferenças raciais. As teorias eugênicas estavam calcadas na ideia de raça pura, branca e, portanto, civilizada. Os discursos ocidentais acerca dos índios sofreram diversas modificações entre os séculos XVI e XIX. As visões quinhentistas possuíam um caráter mais ameno no que se refere à percepção dos ameríndios. Havia uma aceitação, como já foi explicitado anteriormente, da essência humana e pura do índio, caso ele adentrasse no mundo cristão. Esta percepção é modificada de forma contundente no século XIX. O sentimento de superioridade extrapola os limites da razão. Os cientistas e teóricos invadem as florestas e aldeias, estereotipando os povos não europeus, ou não arianos, taxando-os de impuros e incivis. (AMARAL, 2008, p. 9).

Depois da criação do Museu do Índio do Rio de Janeiro (1953), uma pesquisa de opinião pública foi realizada para saber como os visitantes representavam o indígena nacional. Mario Chagas (2007) descreve o resultado desta pesquisa em seu artigo Museu do Índio: uma instituição singular e um problema universal: O resultado dessa pesquisa, que procurou ouvir, sobretudo, “crianças, jovens estudantes e populares”, sublinhou a existência de representações mentais que construíam narrativas que descreviam os povos indígenas como “seres congenitamente inferiores”, “como povos embrutecidos” e “preguiçosos”, sem “qualquer qualidade humana”, sem “refinamento estético” e outras imagens

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depreciativas. Paralelamente a essas representações, apareciam também aquelas que descreviam esses mesmos povos como habitantes de um mundo idílico, repleto de aventuras e como seres portadores das mais “excelsas qualidades de nobreza, altruísmo, sobriedade e outras”. Essas duas modalidades de representação, segundo o pai fundador do Museu, estavam ancoradas em preconceitos que assumiam a “aparência de verdade inconteste” (CHAGAS, 2007, p. 184).

Gostaria de acreditar que este tipo de representação mental sobre os indígenas nacionais tenha desaparecido, porém, ainda é evidente um certo receio em relação ao autóctone causado pela falta de informação clara e precisa sobre as sociedades indígenas atuais. A instauração do Dia do Índio (dia 19 de abril) trouxe para dentro das escolas uma figura pouco lembrada da sociedade nacional, estereotipada como preguiçosa e dependente do governo ou como o romantizado selvagem amante e respeitador da natureza.

Em um recente artigo de Eunícia Fernandes (2009), intitulado Presos ao passado, esta professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro nos mostra que as representações imagéticas dos indígenas brasileiros nos livros didáticos estão longe de mostrarem a realidade desses grupos e a verdadeira maneira de como vivem os vários e distintos povos indígenas nacionais. Além disso, a falta de imagens que retratam os indígenas como sujeitos ativos na sociedade nacional de ontem e de hoje somente ajuda a que se cometam mais falhas historiográficas e educacionais sobre as formas de representação destes grupos. A pesquisadora nos diz: Os enganos são muitos, mas algumas obras atuais procuram romper com os estereótipos, mostrando os índios como sujeitos ativos na História do Brasil. No entanto, essa postura não corresponde à totalidade das produções editoriais. Além disso, se esta preocupação é cada vez mais comum em textos, não se pode dizer o mesmo quanto às ilustrações: há uma menor elaboração sobre elas. (FERNANDES, 2009, p. 79-80).

Seria interessante, ainda, utilizar mais uma passagem da professora para deixar clara a importância do papel dos educadores e da escola na correta representação dos indígenas nacionais em uma sociedade atual tão participante de uma cultura predominantemente visual:

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Resumidamente, são raros os historiadores que têm habilidade para tratar de documentos iconográficos e da intensa exposição de imagens da sociedade atual. Este é apenas um breve panorama da ponta do iceberg que contribui para que grande parte dos brasileiros desconheça a história dos indígenas e os reduzam a estereótipos. Professores e historiadores têm o papel de refletir e abrir espaço para a crítica sobre a maneira como os índios são retratados. (ibidem, p. 81).

Portanto, podemos notar que, mesmo hoje, as representações dos indígenas nacionais deixam muito a desejar, principalmente no ambiente escolar, daí a necessidade de fazer com que os alunos, a partir da educação infantil, comecem a ter uma visão correta e de valorização dos povos indígenas e de suas culturas, que também são partilhadas por nós em alguns aspectos.

2.3 - O Museu do Índio do Rio de Janeiro:

Como já foi dito, esta monografia tenta mostrar a importância do Museu do Índio do Rio de Janeiro na formação de representações corretas sobre os indígenas nacionais juntos às crianças da educação infantil pela via do conhecimento e reconhecimento da importância dos objetos de arte indígenas na alfabetização estética destas crianças.

Para esclarecer o papel a importância dos museus em “contar” histórias através de representações, utilizo aqui uma passagem de Donald Preziosi (2003), onde ele coloca o próprio museu como um artefato representacional em si mesmo: Museus são comumente construídos como repertórios ou “coleções” de objetos que, arranjados no espaço institucional, frequentemente simulam a relação geográfica, situação cronológica ou desenvolvimento evolucionário de uma forma, tema, ou técnica, ou de uma pessoa ou pessoas. Desta maneira, eles são entendidos como sendo artefatos representacionais por direito, retratando “história” ou passado pelos objetos e imagens encenados como relíquias do passado. (PREZIOSI, 2003, p. 408) “Tradução livre”.

A habilidade dos museus em mostrar ao mundo representações simbólicas demonstra o poder que estas instituições têm para a cultura de uma 19


sociedade. Os primeiros museus etnológicos e antropológicos, ditos de “história natural”, foram usados para tentar reforçar a dita “superioridade” do homem branco em relação aos povos dominados, como nos relata Pauline de Souza (2006): Muitas instituições do século dezenove, de universidades a museus de história natural, desenvolveram programas, métodos, e estruturas arquiteturais concretas para assistir no projeto de colecionar, organizar e mostrar os artefatos culturais de países invadidos pelo Ocidente. O objetivo destas instituições era quantificar e, então, controlar as pessoas que eles governavam com sistemáticas e infavoráveis comparações entre as culturas e maneiras de viver desses povos e os avanços culturais do Ocidente. Sob o argumento de aumentar o conhecimento, culturas fora das tradições européias foram classificadas como primitivas, degeneradas, e estagnadas, reforçando, então, a fantasiosa superioridade da cultura européia. (SOUZA, 2006, p.358) “Tradução livre”.

Portanto, para começarmos a entender um pouco sobre os campos de construção de representações acerca dos indígenas e como o Museu do Índio trabalha a mudança de visão dos espectadores pela via estética, é necessário conhecermos um pouco sobre o dito museu para compreender mais claramente sua importância na formação de saberes simbólicos sobre os indígenas nacionais.

O Museu do Índio do Rio de Janeiro foi criado em 19 de abril de 1953, no dia em que se celebra o Dia do Índio, por iniciativa do antropólogo Darcy Ribeiro. Primeiramente localizado em um belo prédio na rua Mata Machado, no bairro Maracanã, o museu foi transferido na década de 1970, devido às obras do Metrô, 20


para um sobrado do século XIX na rua das Palmeiras, número 55, no bairro de Botafogo, onde existe até hoje.

O museu passou na década de 1970 por esta traumática transferência de sede; na década de 1980 tentou incorporar os novos discursos das minorias e buscou servir mais à pesquisa e ao público; na década de 1990 teve sua sede reformada e viu na década de 2000 o número de visitantes crescer e as exposições terem a participação dos próprios indígenas e de profissionais de várias áreas do saber.

Alguns dos objetivos do museu, quando iniciado, era “...combater preconceitos ou estereótipos contra o índio” (DUARTE NUNES apud CHAGAS, 2007, p. 179). Porém, da mesma forma em que os alunos do ensino infantil vão ao museu para conhecer o outro, espera-se uma valorização da cultura indígena e a construção da tolerância para com todos os grupos formadores da sociedade nacional.

O público do Museu do Índio, em 2003, era basicamente de crianças: 60% na faixa dos 3 aos 6 anos de idade, ou seja, na faixa de idade da educação infantil; e 91% se tomarmos a faixa etária de 3 a 10 anos de idade (ALMEIDA apud CHAGAS, 2007, p. 189). Esses números são explicados pelo grande interesse dos grupos escolares nas exposições do museu. Também, essas cifras confirmam a importância do Museu do Índio na formação de representações mais condizentes com os reais e atuais grupos indígenas nacionais, e não com aqueles indígenas desnudos representados em livros de história.

Em minha visita ao museu obtive os números consolidados de visitas escolares de 2010 e os números para 2011 até o mês de maio (ver Anexo I e II). E os números de 2010 mostram uma visitação maior nos meses de intensa atividade escolar (principalmente nos meses de abril, maio, setembro, outubro e novembro), 21


com um total de 560 visitas escolares (189 de escolas públicas e 371 de escolas particulares) e um público escolar de visitas ao museu de 22.123, havendo ainda um público do 17.288 crianças que usufruíram das coleções de empréstimo externos em 2010.

Para 2011 os número até maio mostram um público escolar de 15.149 (sendo 6.841 crianças de escolas públicas e 8.308 de escolas particulares). Os números de escolas que visitaram o museu foram de 126 escolas públicas e 155 escolas particulares, totalizando 281 visitas até maio de 2011. Esses números são extremamente expressivos para as análises deste trabalho, já que confirmam os números de crianças que visitaram o museu em 2003, mostram a importância do público infantil escolar urbano para o museu e a grande responsabilidade do museu em ser realista nas representações dadas aos povos indígenas atuais.

O estudioso Mário Chagas (2007) nos resume a situação passada e atual do Museu do Índio do Rio de Janeiro: O Museu do Índio está em movimento. Criado para combater preconceitos, como uma espécie de filho temporão do movimento modernista brasileiro, ele se desenvolveu com bases num discurso museal que combinou romantismo e projeto civilizador. Ao longo do tempo, passou por diversas crises, foi bem quisto e foi preterido, foi valorizado e foi estigmatizado, foi feito, desfeito e refeito; e, como aconteceu com algumas populações indígenas, depois de quase extinto voltou a crescer e a reafirmar a sua identidade museal – uma identidade que também não está dada, mas que, ao contrário, se faz e se refaz permanentemente, ainda que se mantenha, de algum modo, vinculada à chamada “causa indígena”, já agora reconfigurada. Nesse jogo de mudanças e de permanências, ele é e não é mais o que era antes. Com a renovação de suas práticas de mediação e de seus procedimentos museológicos e museográficos, o Museu alinha-se com as instituições que se movimentam na arena híbrida, resultante do cruzamento da museologia clássica com as novas posturas museológicas. Sem abandonar o seu papel político, ele se reafirma como instituição de memória social que trabalha com a diversidade cultural contemporânea. (CHAGAS, 2007, p.194).

Assim, a visita de crianças da pré-escola ao Museu do Índio se justifica no momento em que valoriza a cultura do “outro”, também formador da sociedade nacional e tão desprezado no que diz respeito às pesquisas no ambiente escolar, que ainda, de alguma forma, valorizam a cultura europeia e branca em detrimento das afro-brasileiras e indígenas. 22


2.4 - Experiência estética e o Museu do Índio:

Os caminhos de aproximação entre a cultura dos alunos urbanos de educação pré-escolar e as culturas indígenas nacionais atuais podem ser trilhados pela via do ensino das linguagens artísticas das peças produzidas pelas culturas indígenas expostas no museu1. Uso aqui uma passagem de Alcídio M. de Souza (1970) que mostra a grande importância pedagógica da arte e seu poder de transformação do pensamento: Quanto mais examinamos o lugar que a Arte ocupa e sempre ocupou nas atividades humanas, mais nos convencemos de sua importância. Não será ela, por acaso, o mais considerável dos nossos meios de investigação e de comunicação? (SOUZA, 1970, p. 62).

Assim como Platão, Comênico, Lascaris, o movimento Escolinhas de Arte, Paulo Freire, Ana Mae Barbosa, entre outros, acredito nas vantagens pedagógicas da atividade artística criadora e expressiva para a formação não somente de um vocabulário estético, que auxiliaria à uma alfabetização artística, mas também como contribuição ética e humanizadora para os educandos.

As obras de arte parecem ser objetos especialmente facilitadores da ação pedagógica, pois mostram que as peças artísticas criadas por um povo nos dão os caminhos para nos aproximarmos e conhecermos, mais claramente, seus fazeres, suas maneiras de pensar e viver. A educadora Anamelia Bueno Buoro (1998) nos dá uma passagem que pode esclarecer este ponto: ...uma obra de arte não é apenas um objeto de apreciação estética; é fruto de uma experiência de vida desvelada pelo processo de criação do artista e pelo sistema de signo da obra. Partilhamos da sua criação quando no momento da leitura somos interpretantes, criando signos-pensamentos, habitando a obra, recriando-a. (BUORO, 1998, p. 31).

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Sei que as representações dadas pelo museu não são totalmente “neutras” em suas significações, porém, na medida em que os próprios grupos representados ajudam no planejamento e na construção das exibições, acredito que essas significações estejam mais próximas da realidade do grupo representado.


Também, uso aqui uma passagem de Ana Mae Barbosa (1989), em seu texto Arte-Educação no Brasil: Realidade hoje e expectativas futuras, sobre a importância das peças de arte para a compreensão da forma de viver de uma sociedade. Esta passagem condiz perfeitamente com as intenções deste trabalho: Nossa concepção de historia da arte não é linear mas pretende contextualizar a obra de arte no tempo e explorar suas circunstancias. Em lugar de estar preocupado em mostrar a então chamada evolução das formas artísticas através dos tempos, pretendemos mostrar que a arte não está isolada de nosso cotidiano, de nossa história pessoal. Apesar de ser um produto da fantasia e da imaginação, a arte não está separada da economia, política e dos padrões sociais que operam na sociedade. Idéias, emoções, linguagens diferem de tempos em tempos e de lugar para lugar e não existe visão desinfluenciada e isolada. Construímos a História a partir de cada obra de arte examinada pelas crianças, estabelecendo conexões e relações entre outras obras de arte e outras manifestações culturais. (BARBOSA, 1989, p. 178).

Ainda, o museu aparece como um dos lugares mais recomendados para esta aproximação cultural, por ser lugar “neutro” para ambas as partes, pois não é na casa (lugar da família) do aluno e nem na aldeia do indígena (casa do índio) onde o contato se dá, mas em um espaço de exposições que facilita e direciona representações sobre os objetos e as culturas vistas e experienciadas.

A importância de mostrar os artefatos estéticos exibidos no museu como artefatos culturais está na centralidade atual dada aos aspectos culturais como formadores de identidade. E neste período da vida, de 3 a 5 anos e 11 meses, que as crianças estão notadamente formando e sedimentando os princípios de suas identidades é que essa experiência de entendimento e contato com culturas “diferentes” podem ser bastante proveitosos. Uso aqui uma passagem da pesquisadora em Educação Karyne Dias Coutinho (2007) sobre este ponto dentro das teorias do intelectual inglês Stuart Hall: Neste ponto, é importante referir os estudos de Stuart Hall, que se refere à centralidade da cultura em tempos de pós-modernidade. Ainda que este autor não trabalhe diretamente com as culturas infantis, suas importantes contribuições teóricas nos ajudam a melhor entender que as identidades, inclusive as infantis, nascem de trocas entre, por um lado, os conceitos que são representados para nós, pelos discursos de uma cultura e, por outro lado, nossos desejos de assumirmos as posições de sujeito construídas para nós por estes discursos. (COUTINHO, 2007, p.43).

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Portanto, o museu pode ser um importante lugar onde a Arte encontra a criança, onde a criança possa, criticamente, ver os objetos estéticos de outras culturas como containers de informações sobre os vários grupos nativos brasileiros. Uso aqui uma passagem de Elisabeth Seraphim Prosser (2009) sobre esse uso da Arte como meio de informação: ...a Arte aparece também como mediadora do conhecimento, pois ao observar o seu mundo e ao reelaborá-lo por meio de sua própria criatividade e imaginação a criança aprende a compreendê-lo e a relacionar-se com ele. (PROSSER, 2009, p.13).

O museu se mostra, assim, com todo seu potencial educador e aproximador de culturas, um verdadeiro laboratório de experiências e vivências. O museu etnológico, neste caso o Museu do Índio do Rio de Janeiro, deixa de ser somente um lugar com o fim de instruir o visitante e passa a ser um lugar de encontro, diálogo e aconchego entre culturas distintas, principalmente as esteticamente ricas culturas dos povos brasileiros.

A pesquisadora das culturas dos índios nacionais Berta Ribeiro (1991) nos informa sobre a riqueza estética das produções dos indígenas brasileiros. E é através desta riqueza estética que se espera sensibilizar as crianças da educação infantil: Nos campos das expressões gráficas e plásticas, a criatividade estética do índio brasileiro se estende, além do corpo, à ornamentação da vivenda e dos objetos. Trata-se de uma reiteração de motivos e significados semânticos aplicados ao embelezamento da casa, da cerâmica, à estrutura dos tecidos e trançados, à pirogravura da superfície das cuias, à pintura dos utensílios de madeira e dos implementos de trabalho. Essa iconografia confere homogeneidade visual ao universo tribal que milita em favor da singularização étnica. (RIBEIRO,1991, p. 155).

Os povos indígenas brasileiros demonstram uma preocupação “estética”1 para além do seu valor de uso dos objetos produzidos por eles. Esses objetos, também, identificam o artesão que os produziu e a sociedade da qual eles 1

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A palavra “estética”, apesar de ser um termo de criação e uso Ocidental, aqui é usada como qualidade de beleza de um objeto, beleza esta que se “confunde” com “inteireza” nas culturas indígenas. Por faltar termos precisos na literatura especializada que trata de qualificar as criações artísticas indígenas, optei pelo termo “estética”. Assim, “estética” não deve ser considerada aqui somente como um ramo da filosofia ocidental que trata dos assuntos de beleza em Arte, mas como uma qualidade de beleza.


são cultura material. Utilizo aqui uma passagem de Berta Ribeiro que mostra esse “cuidado” indígena na produção de sua cultura material. Produção material essa que ela não se acanha em chamar de “arte”: A arte impregna todas as esferas da vida do indígena brasileiro. A casa, a disposição espacial da aldeia, os utensílios de provimento da subsistência, os meios de transporte, os objetos de uso cotidiano e, principalmente, os de cunho ritual estão embebidos de uma vontade de beleza e de expressão simbólica. Estas características transparecem quando se observa que o índio emprega mais esforço e mais tempo na produção de seus artefatos que o necessário aos fins utilitários a que se destinam; e quando passa horas a fio ocupado na ornamentação e simbolização do próprio corpo. Neste sentido, a arte indígena reflete um desejo de fruição estética e de comunicação de uma linguagem visual. (RIBEIRO: 1989, p.13).

No entanto, para poder compreender as criações estéticas e culturais dos indígenas nacionais é necessário que deixemos de lado nossas concepções e estereótipos sobre os índios para podermos “entrar em suas culturas” e tentar compreender toda sua riqueza. Utilizo novamente uma passagem de Prosser (2009) para definir esta abertura ao conhecimento em relação ao “diferente”, que deve ser compartilhada com as crianças: ...para podermos compreender as manifestações culturais e artísticas de outros grupos, mesmo as do nosso próprio país, precisamos nos despojar dos nossos modelos e da pequenez do nosso mundo particular. Precisamos nos abrir para observar e, especialmente, para compreender as razões que levam tal comunidade a dançar e a cantar assim, ou de outra maneira. Necessitamos de humildade para não afirmarmos que somos mais adiantados tecnologicamente e que, portanto, não temos nada a aprender com os outros. Devemos tentar entender, descobrir as minúcias, experimentar as emoções e as visões de mundo daqueles que não conhecemos. (PROSSER, 2009, p. 65).

Assim, o conhecimento do “outro” depende, primeiro, de nossa abertura ao conhecimento novo, e, segundo, de nossa humildade em verificar que cada grupo social faz as coisas de sua maneira, sem existir certo ou errado, entendendo que a análise destes grupos depende de parâmetros culturais diferentes dos nossos. Entretanto, os belíssimos objetos indígenas nas exposições do museu fazem com que o trabalho de conhecimento e valorização das culturas indígenas se torne um aprender com prazer para as crianças e não uma obrigação conteudista.

Portanto, compreender que os conceitos da Arte ocidental não podem fazer completo sentido dentro de um contexto indígena já é um grande passo para 26


nossa análise, pois nos faz livres de barreiras previamente impostas para a compreensão estética de qualquer belo objeto produzido por culturas fora da tradição ocidental. Assim, livres de imposições estéticas as crianças podem conhecer o “outro” pela via do “belo” produzido pelos indígenas nacionais, um “belo” próprio e único em sua beleza e características sócio-culturais.

2.5 - A pesquisa no Museu do Índio e seus resultados analisados:

A partir de uma visita de pesquisa prepara especialmente para este trabalho, busquei conseguir informações dos funcionários do referido museu sobre as crianças em idade de educação infantil que visitam o Museu do Índio. Mantive contato com o Núcleo de Atendimento ao Público Escolar (NUAPE) , do Serviço de Atividades Culturais do museu, nas pessoas de Denise e Natália. Denise é responsável por agendar as visitas dos grupos ao museu e de recebê-los, sendo ela o primeiro contato da instituição com o público interessado na visita. Natália organiza o blog1 de visitas ao museu com os feedbacks dos visitantes e lida com os empréstimos de materiais etnográficos para as escolas. As escolas são pedidas a informarem a maneira como utilizaram os objetos de empréstimo. O museu recebe um grande número de grupos escolares de educação infantil e do ensino fundamental.

Denise e Natália me informam que as crianças de educação infantil e do ensino fundamental se interessam muito pelos relatos mitológicos das exposições, pela contação de histórias (na verdade são histórias indígenas) que acontece aos domingos, pelo contato com os indígenas que trabalham no museu, entre outras coisas. Natália me mostra o material que pode ser emprestado às escolas: publicações acerca das várias etnias indígenas, malas com jogos pensados para as crianças e baseados nas culturas indígenas e caixas de plástico branco com artefatos etnográficos. As figuras 2 e 3 mostram uma mala de jogos.

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O website é: mindioescola.blogspot.com


Nas caixas de plástico (kits) com materiais etnográficos de empréstimo estão: cestos coloridos guaranis, estojo de palha Wajãpi, tipóia em fios de algodão Suruí, abano colorido Guarani, cesto vazado Xingú, chapéu em palha Apurinã, cesto bolsiforme Krahô, cestinho bolsiforme Karajá, pente Karajá, cuia Wajãpi, cestos em palha Suruí, cigarro em palha Wajãpi, vassoura Apurinã, colar de cabaça Parkatejê, tiara emplumada Wajãpi, coifa emplumada Karajá, machadinha Guarani, anzol Wajãpi, mini-borduna Krahô, cintos em fios de algodão Xingú, além de flechas, tipitis, entre outros objetos.

As duas funcionárias me informaram que o museu tem, durante os dias de semana, em média, oito grupos de crianças por dia. Cada grupo pode ter entre 10 a 50 crianças, em média. Entretanto, para a visitação, cada guia com o auxílio de um professor ou acompanhante, orienta no máximo 25 crianças por vez.

Fui convidado a acompanhar a visitação de um grupo de crianças entre 6 e 8 anos da Escola Municipal (do Rio de Janeiro) Barão Homem de Melo 1 para ter uma melhor visão de como funcionam as visitas de crianças ao museu. Apesar de não ser uma turma de educação infantil, a qual este trabalho se refere, aceitei o convite para verificar as técnicas utilizadas para a explicação dos objetos expostos, já que as visitas seguem o mesmo padrão de roteiro, como me foi explicado pelas guias.

As crianças, antes de terem acesso às exibições, tem uma explicação de um indígena (no dia 21 de junho de 2011 o indígena responsável por esta primeira explicação foi Xumayá, da etnia Fulni-ô, nascido em uma aldeia do município de Águas Belas - PE) sobre o que é ser índio hoje em dia. Neste primeiro contato com um indígena, vestindo o uniforme do museu e alguns adereços 1

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A Escola Municipal Barão Homem de Melo é uma escola da rede pública de ensino do município do Rio de Janeiro, localizada na Zona Norte da cidade, no bairro de Vila Isabel, uma área de classe média com várias favelas, e muito conhecida por sua tradição musical. Vila Isabel é o berço do compositor Noel Rosa e abriga a escola de samba Unidos de Vila Isabel, referências importantes na vida cultural do bairro.


corporais específicos de sua etnia, as crianças já ficam surpresas em perceber que os índios já não andam somente pelados ou pintados e que falam português. Xumayá me informou que as crianças chegam ao museu com uma representação dos indígenas como pessoas que andam nus nas florestas, como nas ilustrações dos livros didáticos.

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Essa explicação de um índio, “urbano” como eles, já destrói a visão equivocada do indígena dada pelos livros didáticos, como mostrado no artigo de Eunícia Fernandes (2009), e que povoa o imaginário escolar. Xumayá lhes explica que há vários grupos indígenas brasileiros (etnias), cada um com seus traços culturais bem marcados e distintos; diz que o que está nos livros didáticos não corresponde à realidade indígena atual; informa que os índios podem falar por eles mesmos, ou seja, sem interlocutores; que a diversidade linguística indígena é muito grande e que palavras como “oca” e tupã” não existem em várias línguas indígenas. Noto que as crianças ficaram muito atentas às explicações de Xumayá. Creio que começa ai a desconstrução das representações errôneas sobre os grupos originários brasileiros.

Ele continua falando de como os indígenas educam as crianças nas aldeias, mostrando uma lógica indígena própria de educar as crianças e diferente da conhecida pelas crianças das cidades; que os mais velhos são os mais respeitados dentro das aldeias porque levam consigo a sabedoria cultural de cada grupo, que deve ser passada de geração a geração; e que os pais não batem nas crianças, porém as ensinam de uma forma particular.

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Como exemplo de educação indígena, Xumayá conta que um menino gostava de quebrar as panelas de cerâmica produzidas pela mãe. A mãe lhe disse que isto era errado e que iria falar com o pai do menino sobre isso. O pai reuniu toda a família e mandou que todos fizessem panelas de cerâmica para que o menino as quebrasse. O menino quebrou tantas panelas que ficou cansado e sem mais vontade de quebrar panelas. Ou seja, o aprendizado de que quebrar panelas é errado foi passado, porém pela via da própria experiência cansativa de quebrar panelas. Essa história já demonstra a diferença de mentalidade em relação à educação das crianças indígenas e das crianças urbanas. Portanto, há uma lógica indígena diferente da nossa em relação às formas de aprender e passar conteúdos.

Uso aqui uma passagem da pesquisadora da Universidade do Estado do Mato Grosso (UNEMAT) e indígena Francisca Navantino Paresi (2011) sobre o método de ensino-aprendizagem indígena para exemplificar o que disse Xumayá: ...os sistemas educativos indígenas são processos tradicionais de transmissão e aprendizagem de conhecimentos nos quais os mestres são a família e o contexto sociocultural da comunidade. (PARESI, 2011, p.53).

Xumayá repete que os índios dão muito carinho aos idosos, pois eles são os pilares da cultura indígena e fala de sua etnia Fulni-ô, informando que é uma das maiores do Brasil, com uns 6.000 indígenas.

As crianças, depois das explicações de Xumayá, procedem à visita das exposições. O grupo de alunos da escola Barão Homem de Melo tinha 49 crianças e foi dividido em dois: um com 24 e outro com 25 alunos. Juntei-me ao grupo com 25 crianças acompanhadas pela guia Verônica.

É importante ressaltar aqui que o museu trabalha mudando suas exposições, sem um acervo constante de objetos, o que aumenta o interesse dos visitantes e a possibilidade de mostrar culturas de etnias diferentes. O grupo visitou 2 exposições: uma exposição etnográfica sobre os Karajás chamada Hetohokã: O

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Ritual da Casa Grande; e a exposição A Presença do Invisível: Vida Cotidiana e Ritual entre os Povos Indígenas do Oiapoque, referente aos grupos indígenas do norte do Estado do Amapá. Também foi possível ter contato com a exposição fotográfica Ijasó: Os Aruanãs, exposta nos muros externos do museu. Esta última exposição se coloca como um cartão de visitas e um convite a visitarem o museu, para além de ser uma exposição de fotografias de grande qualidade cultural e estética sobre os Karajás.

Começamos a visita pela exposição dos Karajás (povo Iny Mahãdu), onde as crianças puderam ter contato com o rito de passagem da vida adolescente para a vida adulta dos meninos (Hetohokã) e com as vestimentas femininas das meninas-moças (Ijadokomã) que tem como objetivo agradar esteticamente os Aruanãs (espíritos) durante a cerimônia. Aqui já notamos a importância da beleza dos artefatos culturais para a vida ritual dos grupos indígenas, como podemos verificar nas figuras abaixo.

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As crianças têm a explicação de que o Hetohokã é a festa dos meninos, a partir da qual os meninos aprendem tudo que os homens adultos fazem, como pescar, caçar, etc, enfim, todos os “segredos” dos homens adultos. A guia chama bastante atenção para os adereços corporais dos Karajás e fala sobre as diferenças entre a maneira de vestir feminina e a masculina. As crianças se interessam em saber qual é a idade dos meninos no rito de passagem, e a guia responde como sendo 12 anos, mais ou menos.

As crianças também ficam curiosas com o “grandes chapéus de penas” (figuras 6 e 28) masculinos e são informadas que esses chapéus têm um significado simbólico para agradar aos espíritos e que servem, também, como “enfeites” (de caráter estético).

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A guia deixa claro que os índios mostrados no filme de apresentação da cerimônia do Hetohokã também trabalham, estudam e se vestem como nós, assim como Xumayá, que eles conheceram. Essa explicação vem bem a calhar para desmistificar a imagem do índio como ser “selvagem”, “sem roupa” e que não trabalha e não vive “como nós”.

Saindo da exposição Karajá, as crianças visitam a casa indígena feita nos jardins do museu (figuras 7 e 8) e se interessam pelos materiais de construção das casas. São informadas que as casas são construídas exclusivamente com materiais naturais dos quais dispõem os índios e que esses materiais e métodos de construção fazem parte de suas culturas.

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Depois de visitar a habitação indígena, a guia nos leva à exposição dos índios do Oiapoque1, habitantes da área norte do Estado do Amapá, sendo eles os Galibi do Oiapoque, os Karipuna, os Palikur e os Gailibi-Marworno. A guia pede para que as crianças se sentem nos bancos indígenas em formato de cobra no Lakuh (ver figura 9; espaço sagrado para a realização do Turé2) reproduzido na exposição e lhes explica o mito de caráter cosmológico de Kayeb, um ser sobrenatural (uma cobra bicéfala) que se transforma em constelação. As crianças parecem encantadas com o mito Palikur e um menino pergunta: “Como a cobra se mudou para o céu?”. A resposta da guia é: “Por mágica!”. Essa resposta instigou o imaginário fantástico das crianças sobre os mitos indígenas.

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Segundo a pesquisadora Lux Vidal os indígenas do Oiapoque são grupos com identidades culturais distintas: “Os povos indígenas do Oiapoque são o resultado de várias migrações e fusões, umas antigas e outras mais recentes, de grupos portadores de tradições culturais heterogêneas, histórias de contato e trajetórias diferenciadas, línguas e religiões também diversas. Acrescenta-se algo mais complicado, todavia fundamental: a avaliação que cada um dos grupos faz de si mesmo e dos outros no processo de construção e reprodução das identidades específicas e coletivas.” (VIDAL, 2009, p. 57).

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O Turé é uma celebração onde o pajé, sentado em seu banco em forma de ave e tocando maracás, chama os espíritos encantados a descer no Lakuh. Os papagaios, as garças e os pombos (warami) ajudam a chamar as pessoas para o Turé quando tudo está pronto para a festa: a sala, os bancos, o mastro e as pinturas.

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Depois da visita ao Lakuh, a guia os leva a uma pequena sala com água corrente e um teto cheio de estrelas artificiais onde ela melhor explica o mito cosmológico de Kayeb1. Neste ponto, noto que as crianças estão absortas no relato mágico da cosmologia Palikur.

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O mito cosmológico Palikur de Kayeb se refere a uma cobra bicéfala que foi abitar no céu como duas estrelas e que, na época das chuvas, essas estrelas podem ser vistas. Essas duas estrelas fazem parte das sete estrelas da constelação Laposiniê, parte das sete estrelas da cobra de sete cabeças da qual Kayeb faz parte.


O grupo segue, então, para a sala dos chapéus. Na sala, com uma luz fraca e “misteriosa”, o relato da guia faz com que as crianças fiquem interessadas, curiosas e caladas para melhor escutar o que é dito. Os chapéus são usados no Turé e servem como guardas espirituais. Na sala estão expostos outros ornamentos plumários, como pingentes e coroas radiais (ver figuras 11, 12 e 13). As crianças ficam impressionadas com os materiais empregados para a confecção dos chapéus, entre estes materiais estão cascas de besouros, que fazem um barulho peculiar quando se chocam umas com as outras.

Figura 11 – Adorno de cabeça com uso de cascas de besouros.

É importante para este trabalho mostrar que estas peças de chapelaria e ornamentação plumária, para além de seu colorido e do variado e inusitado uso de materiais em sua composição, demonstram o verdadeiro sentido indígena de “beleza”. São peças esteticamente bem estruturadas e trabalhadas, e vão além de seu uso cerimonial de unir o visível e sensível ao invisível e sobrenatural.

Da salas de chapéus partimos para a sala de cerâmica, onde um vídeo mostra desde a coleta da argila no fundo do rio até a queima da peça seca (ver figura 14). As crianças parecem muito interessadas pelas informações fornecidas pelo vídeo e pela explicação da guia. Um aluno dá a sugestão às professoras de trabalharem com argila e produzirem objetos de cerâmica na escola. 37


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Figura 15 – Objetos da casa do pajé usados para curas.

Passamos rapidamente pelas salas de escultura, pintura corporal, bancos e cestarias e fomos para a “casa do pajé”. A “casa do pajé” era uma representação da casa de um pajé, com os objetos necessários aos diagnósticos e curas dos enfermos, além de ser um lugar ritualístico onde o pajé atende os enfermos e pessoas com problemas. Foi interessante notar que, para além dos objetos indígenas havia imagens de santos e do divino, mostrando já influências das religiões cristãs. Também, estavam ai os troféus que os índios haviam conquistado em competições de futebol contra outros indígenas. As crianças notaram que na casa do pajé não havia sofá, mas um banco em forma de jacaré (ver figura 16).

A guia pediu para que as crianças, de uma posição específica na sala, gritassem “Aparece pajé!” enquanto uma imagem de sombra de um índio fumando

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um cachimbo se deixava ver em uma tela de pano. A visita terminou nesse ponto, com as crianças agradecendo à guia e indo lanchar no jardim.

Figura 16 – Objetos da casa do pajé: banco zoomorfo, cestarias e cuias.

Assim, foi interessante ver como se processou a visita guiada das crianças. Apesar de não ter sido uma visita com crianças de educação infantil, o modelo de visita segue os mesmo parâmetros e os guias com quem falei me informaram que não se notam diferenças marcantes de comportamento ou comentários entre crianças dos últimos anos de educação infantil e as dos dois primeiros anos de ensino fundamental.

Obtive, também, informações referentes à penumbra de alguns ambientes, algo que dá à exibição um certo aspecto de “magia” e “mistério”. Os guias me informaram que algumas crianças já choraram por causa desta penumbra, pois estavam com medo de entrar em um ambiente tão fechado e escuro.

As professoras me informaram que, após a visita ao museu, elas fariam as seguintes atividades com as crianças: desenhos livres, pinturas, cerâmica, ditados de palavras relacionadas à visita e exercícios de expressão oral acerca da visita.

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Constatei que estas visitas das crianças mudam suas maneiras de pensar sobre quem é o índio e como vivem hoje. Para além da mudança de representação acerca do indígena nacional, as crianças se encantam com o aspecto mágico dos mitos (exemplo disto foi visto com o mito cosmológico de Kayeb). No entanto, acredito que esta penumbra das instalações e o foco no aspecto mágico dos ambientes distanciam as crianças das verdadeiras representações indígenas como pessoas que vivem, trabalham e estudam, como nós.

O aspecto estético dos artefatos e da influência desses aspectos junto às crianças pode ser visto, por exemplo, na explicação sobre os chapéus. Por si só, as cores das plumagens, os tamanhos dos artefatos e os materiais inusitados causaram surpresa às crianças. Ficaram quietas para admirar a beleza desses objetos e para ouvir as explicações da guia sobre eles. Tenho que dizer que poucos foram os momentos de absoluto silêncio por parte das crianças.

Apesar do museu estar razoavelmente preparado fisicamente para receber as crianças (exemplos disto são as cadeiras e mesas infantis e degraus largos para o bebedouro, ver figuras 17 e 18), as exposições parecem não serem pensadas para as crianças, o que não me parece lógico, já que o grande público do museu é basicamente de crianças. A penumbra deveria ser retirada dos ambientes de exposição, por exemplo, buscando-se uma iluminação mais natural.

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Também, o exterior do Museu do Índio é um lugar agradável, com uma certa atmosfera bucólica, pelo bem cuidado casarão antigo que abriga as exposições e pelos belos jardins laterais. A casa de palha e a contação de histórias indígenas aos domingos são mais dois atrativos interessantes para as crianças.

A pergunta aqui a ser respondida é: “O museu muda as visões das crianças sobre os índios pela via estética?”. Pelo que vi e analisei, a resposta seria: “Sim”. O museu parece ser bem sucedido em mudar as representações das crianças acerca dos indígenas nacionais. E isto acontece com elementos simples: o contato com um indígena real, com roupas ocidentais e falando Português, o que faz com que as crianças se desliguem da visão errônea dos índios dos livros de história; e os belos objetos exibidos no museu, que fazem com que as crianças realmente se interessem pelas cores, formas, linhas, texturas, materiais e outros aspectos estéticos das criações indígenas. Para exemplificar esta riqueza estética dos artefatos, coloco aqui algumas figuras de trabalhos expostos no museu que confirmam este meu entendimento:

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As belas peças indígenas mostradas anteriormente afirmam a grandeza artística dos indígenas brasileiros, grandeza esta que mescla valores estéticos com vida cotidiana, com cosmologia, com uma rica mitologia, com costumes diversos, com línguas variadas, entre outros aspectos culturais, e que reforçam a certeza de que os indígenas brasileiros são mais que homens e mulheres selvagens, nus e de corpos pintados que aparecem nas imagens dos livros escolares. A exposição mostra que os indígenas de hoje são cidadãos conscientes do valor de suas culturas e suas tradições, visão esta que as crianças aprenderam no museu e devem reforçar na escola.

Uso aqui duas passagens do índio Anápauáka Muniz, da etnia Tupinambá, da aldeia Água Vermelha na Terra Indígena Caramuru Catarina Paraguaçu (BA), retiradas do artigo de Christiane Pires (2011) intitulado Bits e maracás: a apropriação das novas tecnologias pelos indígenas:

Aos que pensam que nós deixamos nossas raízes por usarmos roupas, celulares, internet e tantas outras coisas só tenho uma coisa a dizer: sejam bem-vindos à realidade! Nós aprendemos a usar as ferramentas de vocês, mas nunca perdemos a nossa essência. (ANÁPAUÁKA apud PIRES, 2011, p.10).

E a outra passagem: Estamos na era digital, na era do Facebook, do Twitter. Podemos gerar nosso conteúdo com elas, e com isso será mais fácil para vocês, “brancos”, entenderem a cultura indígena como algo já presente no cotidiano social de vocês. Esse distanciamento da sociedade em relação ao índio começa a diminuir. A visão romântica e mística do índio dá lugar à visão do índio contemporâneo, que pode sim interagir com o mundo do “branco”, sem deixar suas origens de lado. (idem, p. 13).

Essas colocações de Anápauáka Muniz vão de encontro ao que um museu dedicado ao indígena deve buscar: o fim do romanticismo e da magia em relação à tudo que é indígena (daí o fim da penumbra nas exibições, que dá uma atmosfera de mistério e distanciamento em relação aos objetos indígenas); uma compreensão da contemporaneidade dos vários grupos indígenas (eles estão ai hoje, fazem parte de nossa sociedade nacional e utilizam novas tecnológicas); um 46


entendimento de que os indígenas podem, eles mesmos, contar suas próprias histórias, pensamentos e fazeres; a importância do trabalho e respeito intercultural; e que o Museu do Índio ser um lugar de afirmação étnica dos mais diversos grupos indígenas brasileiros.

Uma questão interessante a ressaltar é que tanto o indígena que tem o primeiro contato com as crianças, quanto as guias, se utilizam, primordialmente, da linguagem falada para explicar os aspectos visuais e auditivos das exposições. O visual é de extrema importância nesta visita, principalmente porque se deseja ressaltar um caráter estético que seja educativo. Contudo, o uso da linguagem é fundamental nas explicações das guias e para a compreensão das crianças. Uso aqui uma passagem de Fernando Wolff Mendonça (2009) sobre a importância da linguagem para que as crianças criem representações das culturas indígenas corretas e coerentes: Percebemos então que a linguagem, enquanto instrumento de transmissão da cultura e dos saberes elaborados, transforma-se em instrumento de criação de um mundo de representação construído nas interações que a criança fará com sua [ou outra] realidade cultural. (MENDONÇA, 2009, p. 19).

Outro ponto interessante a mencionar seria a vasta utilização de recursos audiovisuais de que o museu abre mão para informar seus visitantes. Para as crianças este recurso é enriquecedor, pois a imagem aliada aos sons das canções indígenas, em um ambiente que conectam as crianças à “morada” dos índios e às músicas cantadas em línguas originais, oferece uma atmosfera mais próxima possível à cultura indígena ancestral, sem romantizar o tema. Pude observar este aspecto durante a visita à sala de cerâmicas, onde as crianças se interessaram vivamente pelo vídeo mostrado (ver figura 14) e onde a exposição de objetos era mais objetiva e direta, sem muitos artifícios museológicos de cenografia.

A análise de visitas infantis ao museu parece ser sempre positiva porque resulta de uma participação na poética do mundo indígena, que mescla os aspectos sobrenatural (não na penumbra!), utilitário e estético dos objetos. O que 47


mais encanta a uma criança em vista a um museu do que, por exemplo, um banco zoomorfo tão colorido como o da figura 23? Notei que elas paravam mais longamente em frente aos objetos mais coloridos e com representações de animais, o que somente confirma o interesse das crianças pelos objetos esteticamente mais bem trabalhados e instigadores da imaginação infantil, incentivando, assim, uma alfabetização visual pela experiência do ver e pelo treino do analisar.

Portanto, um museu, enquanto instituição cultural e criadora de representações, deve ficar atenta a todos os aspectos museológicos usados para “contar” uma história, e, devo reafirmar, o Museu do Índio do Rio de Janeiro conta bem as histórias sobre os indígenas nacionais, porém deve ficar ainda mais atento às penumbras “misteriosas” que, de certa forma, distanciam os visitantes, e preparar as exposições pensando primeiramente no público infantil. O Museu do Índio pode ter orgulho de conseguir atrair um público tão observador e especial como o público infantil!

3 - Considerações finais:

O Museu do Índio do Rio de Janeiro nos mostra que o “nós” e o “outro” participamos

da

mesma

sociedade

brasileira,

apesar

de

traços

culturais

aparentemente distintos, e que partilhamos de “...um mesmo lugar de pertencimento em relação à denominada 'natureza humana'” (CHAGAS, 2007, p. 185).

Assim, as crianças da educação infantil podem fazer do museu uma referência imagética de conteúdos indígenas enriquecedores e que as ajudarão a respeitarem a diversidade cultural existente em nosso país. Portanto, o respeito pela cultura dos “grupos diferentes” que compõem o Brasil deve ser exercitado, evitandose estereótipos, preconceitos e desinformação.

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É papel da escola incentivar nas crianças a curiosidade e a reflexão sobre a importância dos povos indígenas como formadores e agentes da sociedade nacional, aprendendo a valorizar as culturas materiais destes povos como sendo também “nossa”, pois fazem parte deste “grande pote” cultural onde todos os grupos étnicos estão misturados e que chamamos de “Brasil”.

Nessa ordem de ideias, uso aqui uma bonita passagem de um texto de Maria José Lopes da Silva (2005) mostrando o importante valor da escola em relação à informação que esta deve prestar a seus alunos, informação com cunho crítico, ético e de valorização do diferente: É lutando pela legitimação dos valores culturais do povo, que a escola poderá perceber toda a riqueza e complexa simbologia que o aluno traz. Sistematizar toda a essência estética da nossa cultura é fugir das armadilhas ideológicas do preconceito e do recalcamento. (SILVA, 2005, p. 133).

Portanto, conhecer o “outro” através do “belo” (das peças de beleza estética) produzido por este outro somente reforça o lado positivo de valorização da cultura do “diferente”, que em nosso caso é o indígena nacional. Esse conhecimento faz com que questionemos as representações dadas aos indígenas pela mídia e que valorizemos sua imensurável contribuição à nação brasileira, nação de todos nós.

A presença do indígena, do negro, do branco e do mestiço no Brasil, os principais grupos formadores e articuladores da cultura nacional, impõem à escola (e a todas as instituições formadoras de cultura, assim como o museu) uma autoanalise sobre ser um espaço genuíno de valorização dos diferentes grupos culturais representados em nossa sociedade.

Portanto, no caso da educação infantil, a escola e o museu devem trabalhar juntos para acabar com os preconceitos e valorizar a diversidade cultural e étnica do Brasil. E o trabalho feito pelo Museu do Índio de desconstrução de representações equivocadas acerca dos índios somente vem a reafirmar a

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necessidade de construção de maneiras mais realistas de pensar as culturas indígenas, algo que a escola deve sempre buscar.

Uma escola que compreende os diferentes aspectos sociais em que estão envoltos seus alunos e a diversidade de grupos culturais que a integram se torna uma escola mais aberta a todos, mais aconchegante, e será sempre mais produtiva enquanto respeitar a diversidade sócio-cultural de cada um de seus integrantes.

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5 - Anexos: 5.1 - Anexo I- NĂşmeros consolidados de visitas escolares de 2010:

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5.2 - Anexo II- Números de visitas escolares de 2011 até o mês de maio:

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5.3 - Anexo III- Folha sobre os Karajás distribuídas às crianças de educação infantil (frente e verso):

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