A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato.

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A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato.

Tese apresentada por Walace Rodrigues (matrícula S0624209) à Faculdade de Humanidades da Universidade de Leiden como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre (MA Research) em Estudos Latino-Americanos e Ameríndios.

Orientadora: Professora Doutora Luz Rodríguez-Carranza.

Master de Investigação (Mphil/MA Research) em Estudos Latino-Americanos e Ameríndios. Universidade de Leiden. 2009 1


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Agradecimentos: Gostaria de agradecer a ajuda das seguintes pessoas sem as quais esta tese não seria elaborada: Ao meu companheiro Frans Harren pela paciência, amor e carinho, À professora Luz Rodríguez-Carranza pela orientação, Ao professor Ruud Ploegmakers pela co-orientação, À professora Vera Beatriz Cordeiro Siqueira pelas valiosas dicas, Ao professor e poeta Guilherme Zarvos pela grande companhia e incentivo poético, Ao professor Denilson Lopes pelo atento ouvir e explicar, À professora Maria Luisa Sabóia Saddi pelo interesse mostrado, A Marco Antônio Pinto de Sousa pela sempre amiga presença, À Associação Lygia Clark nas pessoas de Beth e Alessandra, Aos funcionários das seguintes bibliotecas: UFF, UERJ, Moreira Salles de Niterói, MNBARJ, MAM-RJ, Biblioteca Nacional e UFRJ (Urca).

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Motivos Eu canto porque o instante existe e a minha vida está completa. Não sou alegre nem sou triste : sou poeta. Irmão das coisas fugidias, Não sinto gozo nem tormento. Atravesso noites e dias no vento. Se desmorono ou se edifico, se permaneço ou me desfaço, – não sei, não sei. Não sei se fico ou passo. Sei que canto. E a canção é tudo. Tem sangue eterno e asa ritmada. E um dia sei que estarei mudo: – mais nada.

Poema de Cecília Meireles (1901-1964) em Melhores poemas. São Paulo: Global Editora, 1984.

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Índice: 1- Introdução........................................................................................................... 6 2- Materiais..............................................................................................................8 2.1 Materiais Filosóficos................................................................................... 8 2.1.1 Humanismo.........................................................................................8 2.1.2 Existencialismo (Sartriano).................................................................9 2.1.3 Fenomenologia de Merleau-Ponty....................................................13 2.2 Material Religioso......................................................................................16 2.2.1 Misticismo.........................................................................................16 2.3 Materiais Artísticos e Literários.................................................................21 2.3.1 Performance.......................................................................................21 2.3.2 Tropicalismo......................................................................................24 2.3.3 Poesia Marginal.................................................................................27 2.3.4 Vivência (e experiência vivida).........................................................28 2.4 Material Sócio-Político...............................................................................30 2.4.1 Ditadura Militar.................................................................................30 2.5 Material Metodológico...............................................................................31 2.5.1 Sinestesia...........................................................................................31 3- Hipótese.............................................................................................................33 4- Estado da Questão..............................................................................................35 5- Análise do livro Bagagem e alguns de seus poemas..........................................45 6- Análise das obras de Lygia Clark do final da década de 1960 e começo da década de 1970.....................................................................................68 7- Contatos entre Adélia Prado e Lygia Clark.......................................................83 8- Conclusão..........................................................................................................96 9- Bibliografia........................................................................................................98 10- Anexos...........................................................................................................103 10.1 A procura de poesia..............................................................................103 10.2 Vistas do feto no útero..........................................................................105 10.3 “hon-en-katedral” (“ela-a catedral”)....................................................106 10.4 Manifesto Antropofágico.....................................................................107

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1-Introdução: A vontade de fazer um estudo de duas artistas brasileiras, aparentemente tão distantes para algumas pessoas e de áreas, também aparentemente, distintas (literatura e história da arte), me veio através do desejo de analisar uma obra literária para a área de literatura do mestrado em Estudos Latino-Americanos. Eu queria integrar e expandir meus conhecimentos da área de história da arte (por onde venho caminhando por alguns anos) com o trabalho de um escritor(a) brasileiro(a). A minha descoberta de Adélia Prado e de sua poesia da vida diária me pareceu bastante interessante para desenvolver uma análise de sua obra. Suas poesias me tocaram de forma singular, sua sensibilidade tão brasileira e tão provincial mineira me atrairam de maneira ímpar. Assim, decidi-me por pesquisar a obra de Adélia, concentrando-me no seu primeiro livro Bagagem, que me pareceu o mais significativo dos que lí. No entanto, ainda me faltava algo nessa pesquisa, algo mais dentro do campo da arte visual. Como eu vinha fazendo trabalhos basicamente sobre artistas brasileiros das décadas de 1960 e 1970, principalmente sobre Hélio Oiticica, Cildo Meireles e Solange Escosteguy, decidi-me por buscar uma artista (uma mulher) para relacionar seus trabalhos à poesia de Adélia Prado. Minha busca me levou a Lygia Clark e suas obras vivenciais que valorizavam as pessoas e suas habilidades sensíveis. Minha sensibilidade me levou a pensar, em princípio, nas zonas “abstrata e concreta” da vida humana onde operaram as duas artistas: Clark no sentido de uma arte sem objeto e vivida pelo espectador, e Prado de uma obra de transcendência da vida cotidiana que se vive no interior brasileiro. Ambas ligadas a um humanismo1 transformador e pouco convencional que dá importância ao sensorial do mundo, às memórias e ao ato de viver cada momento com a maior intensidade possível, fazendo da vida um existir cheio de imagens memoráveis. Meu interesse passou, então, à busca de relações possíveis entre as obras dessas duas artistas tão brasileiras, mineiras, que foram, ambas, normalistas. Assim, passei a pensar como a obra de uma poderia acrescentar significado à obra da outra, sem fechar, de maneira alguma, a 1

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Falarei deste “Humanismo” na parte desta tese que chamei “Materiais”.


significação de seus trabalhos. E venho, através desta tese, buscar as ligações possíveis e mais interessantes tanto para área literária como para a da história da arte, ligações essas que me dêem um amplo leque de chaves interpretativas da obra das duas artistas e que, de alguma maneira, expandam o conhecimento sobre os jogos simbólicos e imagéticos no qual os trabalhos de ambas artistas se envolvem. Esta tese está estruturada da seguinte forma: Introdução, onde apresento os motivos que me levaram a esta tese; Materiais, onde coloco os marcos fundamentais para a compreensão da minha análise das obras de Adélia Prado e Lygia Clark; Estado da questão, onde coloco a visão da crítica sobre os trabalhos das duas artistas; Análise do livro Bagagem e alguns de seus poemas, onde analiso alguns poemas do livro e dou minha interpretação sobre eles; Análise das obras de Lygia Clark do final da década de 1960 e começo da década de 1970, onde busco trabalhar conceitualmente as proposições de Clark no período descrito; Contatos entre Adélia Prado e Lygia Clark, onde busco as áreas de fricção da produção de uma artista com a outra; Conclusão, onde termino a tese com minhas últimas observações; Bibliografia, onde coloquei os livros, capítulos, textos e artigos lidos; e Anexos, onde selecionei alguns itens que creio importantes para melhor esclarecimento desta tese.

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2-Materiais: Nesta parte da tese desejo mostrar os “materiais” que creio importantes para o entendimento das análises das poesias de Adélia Prado em seu livro Bagagem e das proposições de Lygia Clark. Vejo esses materiais como fundamentais, também, para a melhor compreensão dos contatos entre as duas artistas. Divido esta parte da tese em materiais filosóficos (humanismo, existencialismo Sartriano, e fenomenologia de Merleau-Ponty), religioso (misticismo no caso adeliniano), artísticos e literários (performance, tropicalismo, poesia marginal, e vivências), sócio-político (ditadura militar), e metodológico (sinestesia). 2.1 Materiais Filosóficos: 2.1.1 Humanismo: O humanismo a que se refere este tese tem seu caráter na revalorização da criatividade humana em detrimento de um racionalismo excessivo. Esse ponto é chave na “ruptura” entre os artistas brasileiros concretos e os neoconcretos, já que “o neoconcretismo fez um retorno ao humanismo ante o cientificismo concreto” (Brito, 1985: p.55), como diz Ronaldo Brito citando Frederico Morais. Esse humanismo de que falo aqui recoloca as questões antológicas no âmbito da criação artística. Brito continua dizendo que: “Enquanto a episteme concreta incluía o homem sobretudo como agente social e econômico, apesar da propalada autonomia da cultura, o neoconcretismo repunha a colocação do homem como ser no mundo e pretendia pensar a arte nesse contexto: tratava-se de pensá-lo enquanto totalidade” (Brito, 1985: p. 57-58).

É esse “renascimento” do homem enquanto totalidade que chamo aqui de humanismo neoconcreto. Os neoconcretos tinham o homem como tema central em suas pesquisas artísticas. Era através da integração do espectador no campo da arte que os artistas neoconcretos encontraram novas formas de ações de caráter estético-plástico. O Manifesto Neoconcreto, escrito por Ferreira Gullar nos mostra esta escolha pelo homem como totalidade:

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“O neoconcreto, nascido de uma necessidade de exprimir a complexa realidade do homem moderno dentro da linguagem estrutural da nova plástica, nega a validez das atitudes cientificistas e positivistas em arte e repôe o problema da expressão, incorporando as dimensões 'verbais' criadas pela arte não-figurativa construtiva. O racionalismo rouba `a arte toda a autonomia e substitui as qualidades intransferíveis da obra de arte por noções da objetividade científica: assim os conceitos da forma, espaço, tempo, estrutura – que na linguagem das artes estão ligados a uma significação existencial, emotiva e afetiva – são confundidos com a aplicação teórica que deles faz a ciência.” (Gullar IN Ades, 1997: p. 336).

Refiro-me aqui a um humanismo de cunho existencialista, onde “By 'humanism' we might mean a theory that takes man as an end and as the supreme value” (Sartre, 1947/2007: p.51) e Sartre ainda nos diz claramente o que é esse humanismo: “...is basically this: man is always outside of himself, and it is in projecting and losing himself beyond himself that man is realized; and, on the other hand, it is pursuing transcendent goals that he is able to exist. Since man is this transcendence, and grasps objects only in relation to such transcendence, he is himself the core and focus of this transcendence. The only universe that exists is the human one – the universe of human subjectivity. This link between transcendence and constitutive of man (not in the sense that God is transcendent, but in the sense that man passes beyond himself) and subjectivity ( in the sense that man is not an island unto himself but always present in a human universe) is what we call 'existentialist humanism', This is humanism because we remind man that there is no legislator other than himself and that he must, in his abandoned state, make his own choices, and also because we show that it is not by turning inward, but by constantly seeking a goal outside of himself in the form of liberation, or of some special achievement, that man realizes himself as truly human.” (Sartre, 1947/2007: p. 52-53).1

E com esta passagem tão completa termino a definição de humanismo que desejava deixar aqui. É esse humanismo onde o homem toma as rédeas de sua vida e define o que deve fazer, como deve agir, sempre tendo em mente que não está sozinho no mundo e que suas ações e responsabilidades têm caráter “comunitário” (idem, p. 24). 2.1.2 Existencialismo (Sartriano): O existencialismo é uma corrente filosófica surgida na Europa e que teve seu ápice na época do pós-segunda guerra mundial. Nos desencantamentos deste período se notam alguns dos mais importantes temas para o existencialismo, como explica Simon Blackburn em seu 1

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Desejo informar que os livros lidos para este tese foram em língua portuguesa, espanhola e inglesa. Por meu conhecimento da língua francesa não ser bom o bastante para ler e compreender perfeitamente os conceitos expressos, optei por usar as traduções em inglês, já que as traduções ao português não são de fácil acesso nas bibliotecas dos Países Baixos.


Dictionary of Philosophy: “A loose title for various philosophies that emphasize certain common themes: the individual, the experience, the experience of choice, and the absence of rational understanding of the universe with consequent dread or sense of absurdity in human life.” (Blackburn, 2006: p.125).

O tom do existencialismo foi dado quando os homens buscavam dentro de si mesmos as explicações para a segunda guerra mundial e toda a miséria humana causada por esta guerra. O existencialismo acompanha o momento emocional do pós-guerra, explorando a liberdade de escolha dos homens e focando numa ontologia construtiva e mais solidária. Os primeiros conceitos usados no existencialismo do século XX foram buscados na filosofia de Kierkegaard (1813-55), um filósofo e teólogo dinamarquês que enfatizou a primazia da vontade e da liberdade de escolha humanas não cerceadas por razão ou causa. Para esta tese, no entanto, nos interessa o existencialismo ateu de Jean Paul-Sartre (1905-80) por ser um dos filósofos que mais claramente definiu as questões dos estudos existencialistas. A corrente não-atéia do existencialismo de linha cristã teve sua força nas obras dos filósofos Karl Jaspers e Gabriel Marcel. Na conferência L'existentialisme est un humanisme dada em 29 de Outubro de 1945, depois transformada em livro, Sartre define claramente as bases de sua teoria existencialista. Ele diz que “existência precede essência” (2007: p. 20), onde “... every truth and every action imply an environment and a human subjectivity” (idem, p. 18), mostrando que o homem existe através de sua liberdade de escolhas e experiências na vida real. O homem pode e deve decidir sobre sua própria vida, mas não deve esquecer que suas ações podem ter efeito na vida de outros. Se o homem é sempre livre para decidir, o homem é liberdade. E se o homem tem toda esta liberdade, ele pode encontrar-se num estado de angústia de escolhas. Já que, para Sartre, Deus não existe e cada homem é responsável por seus atos, essa angústia, esse desânimo e esse desespero estão ligados às várias possibilidades de ação que podem ser tomadas dentro dos limites de nossa avaliação e vontade. É através da ação que o homem mostra o que vale. Porém, à cada ação corresponde sua 10


responsabilidade. A liberdade, então, para Sartre é a fundação de todos os valores. A liberdade de agir é o que move o homem no mundo. Sua existência não tem significado a priori, mas deve ser vivida, e toda vida humana tem seu lado subjetivo: “...subjective1 because they are experienced and are meaningless if man does not experience them – that is to say, if man does not freely determine himself and his existence in relation to them. And, as diverse as man's projects may be, at least none of them seem wholly foreign to me since each presents itself as an attempt to surpass such limitations, to postpone, deny, or to come to terms with them. Consequently, every project, however individual, has a universal value.” (Sartre, 1947/2007: p.42).

Ou seja, a condição em que uma pessoa nasce não define sua essência, e, ainda, os homens de culturas diferentes são capazes de reconhecer um projeto em sua humanidade, daí o valor universal de cada projeto individual. Este aspecto da teoria de Sartre nos faz reconhecer no outro aquilo que somos e buscamos, numa solidariedade que nos une a todos. Sartre confirma isto quando diz: “In this sense, we can claim that human universality exists, but it is not a given; it is in perpetual construction. In choosing myself, I construct universality; I construct it by understanding every other man's project, regardless of an era in which he lives. This absolute freedom of choice does not alter the relativity of each era. The fundamental aim of existentialism is to reveal the link between the absolute character of the free commitment, by which every man realizes himself in realizing a type of humanity – a commitment that is always understandable, by anyone in any era – and the relativity of the cultural ensemble that may result from such a choice.” (idem, p. 43).

Devo repetir aqui, para a melhor compreensão do tema, a frase fundamental da passagem acima: “The fundamental aim of existentialism is to reveal the link between the absolute character of the free commitment”. Ou seja, o existencialismo mostra-nos claramente que o que escolhemos é importante, mas o poder escolher consciente e livremente ainda é mais importante. Numa época de guerras e desgraças, quando nasce o Existencialismo, Sartre implicita que essas desavenças são causadas pela própria liberdade de escolha, que somos livres para escolher e devemos nos responsabilizar por nossas escolhas. Essas escolhas têm um carater mais que pessoal, elas influenciam, de certo modo, todo o grupo. Ou seja, é a força da ação, do fazer decidido, que tem valor maior. Assim, o homem é definido pelas suas ações, pelos seus projetos. A covardia de um homem se nota pelo não-atuar, pelo deixar pra trás um projeto, pelo abandono da ação. Sartre define 1

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Sartre se refere aqui às condições subjetivas da vida humana, por exemplo: nascer senhor ou escravo.


este homem: “...man is nothing but a series of enterprises1, and that he is the sum, organization, and aggregate of the relations that constitute such enterprises” (idem, p. 38).

E esse homem que age e se descobre em suas ações e projetos depende do outro para reconhecer-se, esse homem se “contrói” no mundo: “Man makes himself; he does not come into the world fully made, he makes himself by choosing his own morality, and his circumstances are such that he has no option other than to choose a morality2.”(idem, p. 46).

E ainda: “The other is essential to my existence, as well as to the knowledge I have of myself. Under these conditions, my intimate discovery of myself is at the same time a revelation of the other as a freedom that confronts my own and that cannot think or will without doing so for or against me. We are thus immediately thrust into a world that we may call 'intersubjectivity'. It is in this world that man decides what he is and what others are.” (idem, p. 42).

É o homem quem decide quem ele é, quem o outro é e o que representam-se mutuamente. E é decidindo o que fazer que o homem compromete-se com toda a humanidade, pois suas escolhas e ações irão interferir nas vidas dos outros: “...the man finds himself in a complex social situation in which he himself is committed, and by his choices commits all mankind, and he can not avoid choosing. He will choose to abstain from sex, or marry without having children, or marry and have children. Whatever he does, he cannot avoid bearing full responsibility for his situation.” (idem, p. 45).

Essa relação que mantemos com os outros e com toda a humanidade, através da minhas próprias escolhas, deve sempre almejar a liberdade, a minha liberdade e a liberdade do outro. E é exatamente essa busca pela liberdade de agir de cada um que nos faz existir, segundo Sartre: “I cannot set my own freedom as a goal without also setting the freedom of others as a goal. Consequently, when, operating on the level of complete authenticity, I have acknowledged that existence precedes essence, and that man is a free being who, under any circumstances, can only ever will his freedom, I have at the same time 1 2

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“Enterprises” vistos aquí como uma série de ações. Moralidade esta que, como arte, é criada e inventada.


acknowledged that I must will the freedom of others.” (idem, p. 49).

Já que nossa liberdade, segundo o existencialismo, é fundante para nossas escolhas, nossa vida se baseia em escolher e formar-nos como pessoas. Sartre nos informa que: “...life has no meaning a priori. Life itself is nothing until it is lived, it is we who give it meaning, and value is nothing more than the meaning we five to it.” (idem, p. 51).

E como somos homens que estamos sempre nos construindo enquanto pessoas, descobrindo novas coisas e praticando nossa liberdade, nossa vida será marcada por nossas ações e escolhas no mundo. Então: “...existentialism will never consider man as an end, because man is constantly in the making. And we have no right to believe that humanity is something we could worship, in the manner of Auguste Comte.” (idem, p. 52).

2.1.3 Fenomenologia de Merleau-Ponty: Merleau-Ponty (1908-1961) é uma das figuras que mais influenciaram os artistas neoconcretos brasileiros. Tanto que, Ferreira Gullar, ao escrever o Manifesto Neoconcreto, em 1959, cita-o como um dos intelectuais que “denunciam preconceitos” (IN Ades, 1997: p. 336) do racionalismo. Uso uma passagem onde Gullar cita claramente os pensamentos de Merleau-Ponty: “Acreditamos que a obra de arte supera o mecanismo material sobre o qual repousa, não por alguma virtude extraterrena: supera-o por transcender essas relações mecânicas (que a Gestalt objetiva) e por criar para si uma significação tácita (M. Ponty) que emerge nela pela primeira vez.” (Gullar, IN Ades, 1997: p. 336).

A área de estudo que fez conhecido Merleau-Ponty é a fenomenologia da percepção, sendo este o título de sua obra mais conhecida: La Phénoménologie de la Perception, de 1945. A fenomenologia tem como objeto de estudo o fenômeno, buscando a interpretação do mundo através da consciência do sujeito formulada com base em suas experiências. Blackburn, em seu Dictionary of Philosophy, define da seguinte maneira o trabalho de Merleau-Ponty e o livro citado:

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“Merleau-Ponty's work draws upon empirical psychology as well as the tradition of Husserl1 to explore the experiential relationship that we have with the world. His book2 is particularly notable for its extended and illuminating description of our relationship with our own bodies in perception and action.” (Blackburn, 2006: p.231).

Colocando o corpo de quem percebe e age no centro do debate, Merleau-Ponty consegue passar dos limites da Gestalt3 e da compreensão positivista (empírica e intelectualista) para introduzir o corpo humano, com todas suas variantes, no processo de percepção. Nosso corpo passa a ser, então, concebido como campo criador de sentidos em nossa existência no mundo, como um conjunto de sentidos e significados que se relacionam com o mundo. Merleau-Ponty nos fala da importância da necessidade da percepção de nós mesmos no ato de perceber: “I could not possibly apprehend anything as existing unless I first of all experienced myself as existing in the act of apprehending it. They4 presented consciousness, the absolute certainty of my existence for myself, as the condition of there being anything at all; and the act of relating as the basis of relatedness.” (Merleau-Ponty, 1945/2008, preface: p. x).

Para a fenomenologia um objeto é como o sujeito o percebe, e tudo tem que ser estudado tal como é para o sujeito e sem interferência de qualquer regra de observação, pois o objeto de estudo é o fenômeno em si. Assim, um objeto, o outro ser humano, uma sensação, uma recordação, enfim, tudo tem que ser estudado tal como é para o espectador (um ser capaz de sentir-experimentar), levando em conta a liberdade de análise, as impressões de cada um e todos os fatores que possam interferir no ato de perceber. Uso uma passagem de MerleauPonty onde ele fala exatamente sobre o mundo estudado pela fenomenologia: “The phenomenological world is not pure being, but the sense which is revealed where the paths of my various experiences intersect, and also where my own and other people's intersect and engage each other like gears. It is thus, inseparable from subjectivity and intersubjectivity, which find their unity when I either take up my past experiences in those of the present, or other people's in my own.” (idem, p. xxii).

Assim, a análise atenta de tudo e de todos que nos cercam é o primeiro passo para a 1

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Edmund Gustav Albert Husserl (1859-1938) foi um filósofo e matemático alemão; é considerado o pai de fenomenologia. De seu professor Brentano “...he inherited the view that the central problem in understanding thought is that of explaining the ways in which an intentional direction, or content, can belong to the mental phenomenon that exhibits it.” (Blackburn, 2006: p. 173). Livro La Phénoménologie de la Perception, de 1945. Teoria conhecida pelos seus clássicos exemplos de figura versus fundo, onde “...a percepção é compreendida através da noção de campo, não existindo as sensações elementares, nem objetos isolados. Desta forma, a percepção não é o conhecimento exaustivo e total do objeto, mas uma interpretação sempre provisória e incompleta.” (Nóbrega, 2008). “Eles” são Descartes e Kant.


percepção. Nossos sentidos nos introduzem a experiências as mais variadas, e esse processo do “ver algo” até “o perceber algo” é o que, exatamente, interessa a Merleau-Ponty. Sua introdução das variantes internas e externas relacionadas ao corpo de quem percebe se torna o grande avanço de sua teoria. A introspecção de cada pessoa trabalha de maneira diferente, e os objetos que são o foco da percepção não podem ter valores fixos, como nas teorias anteriores. A importância da análise pessoal é fundamental para Merleau-Ponty. As experiências pessoais e as variantes emocionais, temporais e locais (naturais ou não) podem sempre modificar a maneira como percebemos: “There is nothing in the appearance of a landscape, an object or a body whereby it is predestinated to look 'gay' or 'sad', 'lively' or 'dreary', 'elegant' or 'coarse'.” (idem, p.27).

É através, então, de nosso corpo que percebemos, e tudo em nosso corpo pode alterar a maneira como percebemos algo. Terezinha Petrucia da Nóbrega, uma estudiosa de MerleauPonty, aponta a importância de nosso corpo para o processo de percepção: “...é preciso enfatizar a experiência do corpo como campo criador de sentidos, isto porque a percepção não é uma representação mentalista, mas um acontecimento da corporeidade e, como tal, da existência.” (Nóbrega, 2008).

Essa fundamentalidade do corpo e seus sentidos (não como receptores passivos) reforça a teoria de que os seres humanos percebemos através de nossa experiências no mundo via nosso “corpo fenomenal”. Nosso corpo já não é mais percebido em sua dicotomia corpo versus mente, mas em sua inteireza. E este corpo que nos faz perceber, com todas as variantes possíveis (internas e externas a ele), é o mesmo corpo que nutre o perceber estético. Nóbrega nos fala sobre isso: “A sensibilidade estética é um desdobramento da análise perceptiva de MerleauPonty, considerando os aspectos do corpo, do movimento e do sensível como configuração da corporeidade e da percepção como criação e expressão da linguagem; considerando as referências feitas pelo filósofo1 às artes, especialmente à pintura, como possibilidade de se ampliar a linguagem, de aproximá-la da vida do homem e de seu corpo. A obra de arte está colocada no campo de possibilidades para a existência do sensível, não como pensamento de ver ou de sentir, mas como reflexão corporal.” (idem, 2008).

E ainda: 1

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O filósofo aquí é Merleau-Ponty.


“...a experiência da obra de arte em geral produz significações mais amplas que a definem como um poema, um romance ou uma pintura. A obra de arte também se constitui como um suplemento de sentido, formulando a partir da experiência vivida, e é essa modulação existencial que torna a narrativa ou o quadro significativo para nós.” (idem, 2008).

Hoje sabemos que a teoria da percepção de Merleau-Ponty encontra-se ultrapassada no seu caráter científico, porém ainda é de extrema importância para o estudo das teorias relacionadas à aprendizagem, psicologia, artes, biociências, ciências cognitivas e inteligência artificial, entre outras. Ao relacionar a experiência vivida com a cognição, Merleau-Ponty dá um salto em direção à validação da subjetividade individual no campo da fenomenologia da percepção, e em nosso caso, no campo de estudo da experiência artística. Deixo aqui um “conselho” do próprio Merleau-Ponty: “We must discover de origin of the object at the very centre of our experience; we must describe emergence of being and we must understand how, paradoxically, there is for us an in-itself. In order not to prejudice the issue1, we shall take objective thought on its own terms and not ask it any questions which it does not ask itself.” (Merleau-Ponty, 1945/2008: p. 83).

2.2 Material Religioso: 2.2.1 Misticismo: Meu entendimento sobre misticismo para esta tese se dá via uma mescla de erotismo e santidade. Esta mesma concepção de místico com relação ao sagrado e ao erótico pode ser vista no período da arte barroca. Exemplo claro disto é obra de estatuária barroca de Bernini chamada Êxtase de Santa Teresa (1645-52), localizada na igreja de Santa Maria della Vittoria em Roma. “A santa, arrebatada de amor divino, junta-se a seu esposo místico. A materialização desse ato espiritual tem uma explicação formal, em que estão presentes aspectos puramente carnais e eróticos.” (Triadó, 1991: p.40).

E é esta dualidade entre o humano (erotismo, pecado) e o divino (santidade, perdão) que se pode notar claramente nas obras barrocas. Também, no campo da poesia barroca brasileira, 1

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O “issue” aquí é o entendimento dos processos da percepção.


vemos nos poemas de Gregório de Matos essa mesma dualidade. Como descreve José Maria de Souza Dantas, analisando o poema Buscando a Cristo de Gregório de Matos: “O contexto do século XVII e parte do século XVIII, na literatura brasileira, mostra esse caráter religioso, conforme já assinalamos. Todo um contexto sócio-cultural e religioso permite uma poesia desse teor, em que o poeta reflete a tentativa de encontro do homem com Deus, dentro de sua concepção de pecado, que busca perdão, de acordo com um momento de crise, que busca harmonia na sabedoria divina, em sua compreensão, conforme assim entendia o homem barroco. De fato, após a busca, toda a ânsia de encontro com Deus, para obter a salvação, o poeta declara, conscientemente, essa necessidade de ascensão, de conhecimento de Deus. O seu objetivo é a união total, o conhecimento integral, a vontade urgente de encontrar Deus.” (Dantas, 1984: p.23).

A utilização da mística barroca em arte pode ser vista ainda hoje. E é usando esta força anacrônica de conceitos artísticos que produções atuais ainda podem ser definidas como “barrocas”. Mieke Bal, em um artigo intitulado Ecstatic Aesthetics: Metaphoring Bernini, reconhece no trabalho de estatuária entitulado Femme Maison (de 1983) de Louise Bourgeois aspectos do barroco que “resistem tradução” quando comparados ao Êxtase de Santa Teresa de Bernini. Louise Bourgeois se utiliza muito da ambigüidade entre o erótico feminino e a fé barroca. Mieke Bal nos diz: “Louise Bourgeois, in addition to calling herself a baroque artist, created a sculpture titled Baroque (1970), as well as one called Homage to Bernini (1967) .” (Bal, 2003: p.5).

E ainda, “Bourgeois's metaphorizes baroque sculpture, in particular Bernini's Teresa, through two elements that characterize both works. The first is the integration of interior and exterior of the represented body. The second is the integration of interior [fire] and exterior [flames] of the space where the viewer stands in relation to the body.” (idem, p.13).

Mieke Bal defende em seu artigo a visão, remetendo a Walter Benjamim, de que a história, inclusive a história da arte, não pode ser uma reconstrução do passado, e nem mesmo uma identificação com o passado, mas uma forma de tradução deste (idem, p.6). Ela defende a 17


idéia da utilização de valores de outros tempos, em sua visão anacrônica, como uma forma de tradução do passado para o presente, como transformação e renovação. Assim, a utilização de “valores barrocos” na obra de Louise Bourgeois pode ser vista como uma reinterpretação desses valores do passado para os dias atuais. E é pela mesma via mística, e anacrônica, de utilizar a força expressiva da santidade e do erotismo barroco que trabalham Bourgeois e Adélia Prado. Então, como não pretendo desenvolver este tema do misticismo extensivamente no corpo desta tese, gostaria de explicar aqui um pouco mais sobre a maneira mística de Adélia Prado, pois essa explanação, neste momento, tem o intuito de ajudar o melhor entendimento da obra de Adélia no decorrer desta tese. Para isso utilizo três passagens da entrevista de Adélia concedida a Mariza Ferreira Bahia: “O caminho da poesia... ele se encontra com o caminho da mística. Porque a poesia exatamente, ela é uma revelação do ser, não é? Você toca na unidade cada vez que você tem um poema direito, um poema verdadeiro, na sua frente. A experiência mística é a mesma coisa. Então, na sua origem e na sua substância última, no seu substrato último, toda a obra é religiosa...toda obra é religiosa...porque ela visa, ela visa a unidade. Você pega um quadro, a forma, você já está lidando com a unidade. E a unidade para o místico é Deus. Você pode dar o nome que quiser...mas...Fundamento do ser. Fundamento do ser.” (Bahia, 1994: p.141).

E ainda em outra passagem: “Eu não associei não 1. Eles são coisas da mesma fonte. A coisa mais erótica que tem é o religioso, a celebração de Eros, da vida. Você vê que o Cristianismo oferece pra gente um ban-que-te onde você come o seu Deus, né?... Então essas coisas são fontes comuns. É místico, é religião, é poesia... a fonte é uma só. Se você ler os textos dos místicos, os textos religiosos... Se você ler São João da Cruz ou Santa Teresa de Ávila – ontem foi o dia dela – são dois dos maiores místicos da cristandade, são poemas de amor, altamente erotizados, dirigidos a divindades. Então não é que eu associei, não. Essa coisa já está junta.” (idem, p. 143).

E finalmente: “Você quer comer o seu Deus. Você quer ser possuída pelo seu Deus e vice-versa. Então isso aí é da experiência mais profunda que tem. É experiência amorosa. É a experiência do Eros. Então poesia, erotismo, mística, é tudo fruta de um balaio só... uma árvore só.” (idem, p. 145). 1

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Adélia se refere à associação de erotismo com religião.


Destas passagens podemos verificar que a relação entre o que é místico, erótico e religioso se dá de maneira igualitária na concepção de Adélia Prado, onde o místico é indivisível do religioso e do erótico. É pelo amor ao seu Deus que Adélia se torna mística, já que esta união de amor emana da relação com seu Deus. Esta busca de união com Deus também vimos na análise de Dantas sobre o poema de Gregório de Matos. Estas concepções de que o bem (ex: poesia, amor) emana de Deus e que se deve buscar uma união mística com Deus aproxima Adélia Prado da filosofia do neoplatonista Plotino (205270BC), um filósofo antigo muito utilizado pelos filósofos medievais que definiram as bases da doutrina católica (ex: S. Agostinho e S. Tomás de Aquino). Plotino verifica que o reino das coisas inteligíveis se dividem em três: O Uno, o absolutamente transcendental; a inteligência, que é o mundo das idéias e conceitos; e a alma, incorpórea, substancial, imortal e capaz de transmigrar. As almas são puxadas para o mundo dos corpos terrestres. O Uno (Deus) emana ou transborda, como os raios do sol, para criar os reinos da inteligência que, por sua vez, emana ao mundo das almas. Para clarificar meu ponto, incluo uma passagem do Dictionary of Philosophy de Blackburn para melhor unir os pensamentos de Plotino e Adélia: “In any event, it is in contemplation of the higher1, creative principle that the lower receives its form or impress. But it is also as reflections of the one cosmic Soul that individual souls exist, and their aim must be to direct their contemplation back up the hierarchy, eventually to obtain light and vitality by contemplative absorption in the One.” (Blackburn, 2006: p.281).

Podemos compreender, então, que a contemplação do sagrado, tanto para Plotino quanto para Adélia, e mesmo para Gregório de Matos, deve levar a uma união com o Deus criador. E que o misticismo é esse caminho de contemplação que tem como objetivo esta união com Deus, essa absorção em Deus. Como tudo emana de Deus, o erotismo, a mística, a poesia, tudo deve voltar a Deus. Neste mesmo sentido a compreensão do místico em Adélia Prado é muito próxima da de Plotino.

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O “mais alto” aqui é o Uno, Deus.


O misticismo em Adélia Prado se nota desta mesma maneira ambígua barroca: carnal e erótico, porém religioso. Talvez essa mística “barroca” de Adélia tenha sido influenciada pela catolicidade tradicional do interior mineiro, de onde ela vem e onde a cultura barroca obteve extrema importância. A poesia de Adélia não é uma poesia barroca, mas sim, religiosa, porém mantem algum cunho barroco enquanto tenta unir a religiosidade católica com a existência humana no mundo. Ela trabalha com os conceitos barrocos de maneira anacrônica, buscando colocá-los, traduzi-los ao dia de hoje, em sua obra. Em uma outra passagem de José Maria de Souza Dantas, falando sobre a poesia do mesmo poeta barroco Gregório de Matos, ele define resumida e claramente as intenções barrocas: “...o barroco procurou contemporizar a religiosidade medieval e o humanismo renascentista.” (Dantas, 1984: p. 22).

Portanto, podemos verificar que o misticismo de que se utiliza Adélia Prado é, provavelmente, algo que tem a ver com várias influências: religiosidade católica, valorização da vida humana e sua existência no mundo, uma questão artística e, talvez, até estilística da relação do humano e do sagrado. Porém, esta utilização anacrônica de valores marcadamente barrocos não fazem da poesia de Adélia uma poesia barroca, mas uma poesia religiosa que se reutiliza de valores barrocos em sua composição.

Êxtase de Santa Teresa de Bernini.

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2.3 Materiais Artísticos e Literários: 2.3.1 Performance: Para começar a definir o termo “performance”1 é necessário assinalar a múltipla aplicação deste termo, sua ambigüidade de significados e sua pluralidade de interpretações. Por ser uma modalidade artística multidiciplinária, mesclando teatro, dança, vídeo, música, poesia, e outras formas de fazer artístico, sua aplicação é ampla e bastante variada. O termo “performance” pode ser aplicado, nesta tese, às proposições de Lygia Clark, não somente pela participação ativa do espectador na obra, mas também por sua tentativa de introdução de uma arte-terapia fundada no uso de objetos sensoriais. Porém, a participação do artista e/ou dos espectadores nas obras-proposições é um ponto que une todos as possibilidades do conceito “performance”. Utilizo aqui uma passagem de Regina Melim sobre o fundamento da participação na performance e sobre o espaço da performação (onde a performance acha seu lugar como potência de ação): “Outra questão a ser abordada parte da idéia de participação e compartilhamento, conduzindo-nos a outros procedimentos igualmente performátivos. Para tanto, será lançada a noção de espaço da performação, traduzido como aquele que insere o espectador na obra-proposição, possibilitando a criação de uma estrutura relacional ou comunicacional. Ou seja, o espaço da ação do espectador ampliando a noção de performance como um procedimento que se prolonga também no participador.” (Melim, 2008: p.9).

Uma importante pesquisadora na área da performance artística é Roselee Goldberg, que trabalha com a noção de que performance tem seu começo com os Futuristas (já em 1910, nos eventos no Teatro Rosetti em Trieste), os Contrutivistas, os Dadaístas e os Surrealistas (Goldberg, 1984: p.24). A performance artística se firmou como arte anti-comercial, experimental, livre de parâmetros predeterminados e sempre com a participação do artista e/ou espectador(es). O termo pode ser empregado também como uma classificação geral para happening, body art, poesia de ação, 1

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Segundo Regina Melim, o termo performance “foi cunhado como categoria no início dos anos 1970” (2008: p.8).


noise music e fluxus, entre outras definições. É importante lembrar que performance incorpora novas formas artísticas em sua realização, por exemplo, desde a década de 1980 se nota a utilização de vídeos em performances. Sobre essa multiplicidade de recursos e sobre a atualidade das performances, utilizo duas passagens de Roselee Goldberg de seu artigo Performance: A Hidden History: “Art historians have no ready category in which to place performance, and with good reason. For performance has always developed along the edges of disciplines such as literature, poetry, film, theatre, music, architecture, or painting. It has involved video, dance, slides, and narrative and has been performed by single individuals or by groups, in streets, bars, theatres, galleries, or museums. As a permissive open-minded medium, with endless variables, it has always been attractive to artists impatient with the limitations of more established art forms.” (Goldberg, 1984: p. 24-25).

Também: “...the open charter of performance – anything can happen, any number of materials can be used, and any length of time can be appropriated for the work – has resulted in an extraordinary diverse spectrum of productions.” (idem, p. 34).

Figuras também importantes para a arte da performance foram Yves Klein, Allan Kaprow, Joseph Beuys, John Cage, Maciunas, George Brecht, Dick Higgins, Nam June Paik, Yoko Ono e o grupo japonês Gutai (fundado por Shimamoto e Yoshihara), entre outros. No Brasil, Flávio de Carvalho, Lygia Clark e Hélio Oiticica levaram a performance a um nível de reconhecimento artístico merecido. Esses artistas fizeram arte via seus happenings, acontecimentos artísticos memoráveis e irrepetíveis em sua exata especificidade. Utilizo aqui uma passagem do Dicionário do Conhecimento Estético de Assis Brasil que define happening como uma forma artística irrepetível e que depende da categoria “tempo”: “É a forma mais radical de experiência estética, culminando com a destruição de permanência e imortalidade da arte de todos os tempos. O artista ou vários artistas, ao executarem um happening, fazem uma demonstração do que seja o ato de criar... O importante para eles é o momento da criação, que não pode se repetir igual. É uma espécie de show irrepetível.” (Brasil, 1984: p.104).

Para esta tese podemos caracterizar as proposições de Lygia Clark nas décadas de 1960, 1970 e mesmo as de 1980 como verdadeiros happenings, irrepetíveis da mesma maneira e sempre 22


como ações executadas pelo(s) participante(s) da obra-proposição. Esses happenings, ou performances, demonstraram o que era o ato de criar, desestabilizando os conceitos de permanência, imortalidade da obra de arte e do papel do artista na sociedade (tirando o artista do pedestal da genialidade). Como as performances têm em sua natureza serem livres de convenções e de número de participantes, elas ajudam a terminar com a idéia de arte como criação de um objeto físico produzido por um artista. A criação de performances impõe uma relação tempo versus lugar que não pode ser repetida. Também, é a ação se faz arte na performance. A performance é livre de convenções e pode utilizar várias formas de meios artísticas para expressar-se. Uso aqui mais uma passagem de Goldberg para confirmar o que estou dizendo: “Performance artists have acted against the overriding belief that art is limited to the production of art objects, insisting instead that art is primarily a matter of ideas and actions. Each performance calls on the audience to experience the making of an artwork rather than contemplating static objects within an exhibition framework.” (Goldberg, 1984: p. 36).

Para além da flexibilidade do conceito de performance, dos materiais empregados, de seu número de participantes e de seu caráter irrepetível (devido às categorias tempo e lugar), a performance se firmou, dentro do campo da arte, como uma nova forma de fazer, ou melhor, de agir artisticamente. A performance deixa clara a criatividade latente do espectador, dandolhe espaço de participação e de expressão. Essa liberdade de ação se dá em vários lugares, mesmo nos espaços públicos, o que, também, ajuda a reativá-los enquanto lugar de ação criativa. Utilizo uma passagem de Regina Melim onde ela fala sobre a obra Divisor de Lygia Pape, e que acredito ser importante para a continuação do pensamento sobre performance: “...o objeto apresenta-se inconcluso, como uma potencialidade aguardando o gesto participativo que o atualizaria. O objeto tornava-se assim um sinalizador, uma area play, a exemplo da 'maquete sem escala' de Hélio Oiticica, última obra, pensada e ativada em fevereiro de 1980 em seu segundo Acontecimento Poético Urbano.” (Melim, 2008: p.27).

Essa “potencialidade aguardando o gesto participativo” é exatamente a característica mais 23


marcante da arte participativa brasileira de Clark, Oiticica e Pape. Essa potencialidade destrói a neutralidade do espectador no momento em que instiga à ação e acaba com a passividade dos espectadores que “contemplavam o quadro na parede”. Para terminar, gostaria de deixar uma anotação pessoal sobre a performance: a performance é o segundo readymade. Se Duchamp desestabilizou todas as categorias de arte com a seus readymades em um determinado momento da história da arte, a performance o faz, com a mesma intensidade, mas em outro momento histórico. Por ser uma forma de arte tão elástica e flexível, ela evita categorizações fixas, fazendo com que se pense arte de uma maneira mais aberta e fora das convenções sociais, artísticas e culturais. O mesmo se passou com os readymades de Duchamp, eles foram como um “choque” que acordou as pessoas envolvidas em pensar sobre o campo da arte. A performance termina com a passividade contemplativa do espectador e se mostra inesperada e inclassificável dentro da rigidez das categorias artísticas vigentes, tendo a mesma função que o readymade teve, de choque para despertar as pessoas. Aqui utilizo uma passagem de Ligia Canongia que ajuda a compreender o mecanismo de desarticulação colocado pelo readymade de Duchamp: “O readymade era talvez o grito agonizante contra os sistemas racionalistas, que já haviam sido alvo tanto das críticas surrealistas e dadaístas, como das deformações do Expressionismo alemão. Com o readymade dava-se o derradeiro golpe contra os modelos convencionais modernos. De certas forma, ele é a própria agonia da idéia de modernidade, pois desmantela os princípios e técnicas que regularam os programas modernos e nega o sistema de valores que edificou a própria noção de objeto artístico. O readymade impõe-se como uma arte de subversão, que se rebela contra o formalismo e as convenções burguesas, que Duchamp acreditava ainda vigorarem nos movimentos da modernidade.” (Canongia, 2005: p.16).

2.3.2 Tropicalismo: O Tropicalismo (ou Tropicália, ou Movimento Tropicalista) aconteceu no Brasil, no final da década de 1960 e começo da de 1970. O movimento Tropicalista teve suas maneiras de articular o “nacional”, utilizando as mais diferentes referências ao que poderia ser considerado “brasileiro”. O grupo tropicalista tinha como seus maiores representantes no campo da música, onde ficou mais vastamente conhecido, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Torquato Neto, os Mutantes e Gal Costa.

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O movimento tropicalista se dá durante a ditadura militar. A ditadura militar foi instaurada no Brasil em 1964 e oficialmente terminada em 1985, sendo que o período mais autoritário aconteceu depois da criação do Ato Institucional número 5 (AI-5), de 13 de dezembro de 1968, que suspendia todos os direitos civis dos cidadãos. Da instalação Tropicália de Oiticica vem o nome do movimento musical. Tal instalação faz referência a vários aspectos da cultura brasileira, porém colocados em um sistema de caos de significação, utilizando-se de vários estereótipos1 sobre a cultura brasileira. Os elementos dessa “desordem” devem ser rearranjados pelo próprio espectador com suas próprias referências. Os tropicalistas trabalharam em suas obras os dilemas brasileiros da época. Como qualquer movimento de vanguarda, este baseou-se em várias referências nacionais e internacionais de sua época. Em meio à “confusão” política e social brasileira, o Tropicalismo se desenvolve como movimento. As suas várias referências dão o toque interrogativo do movimento: somos isso, ou aquilo, ou tudo isso, ou nada disso? Nessa busca artística os tropicalistas focam-se na ambigüidade de significados e na pluralidade de interpretações, buscando criar uma idéia de desordem criadora, regeneradora. Essa abertura a todas as possibilidades de fazer arte pode ser lida em uma passagem de Tandt e Young sobre a Tropicália: “...the Tropicália movement of the late 1960s, Gilberto Gil and Caetano Veloso, who argued that Brazilian popular music needed to be open to all influences, both traditional and pop, including rock music and various forms of electronic instrumentation” (Tandt e Young, 2004: p. 253).

Não podemos esquecer da situação política internacional que, de alguma maneira, influencia todo o mundo ocidental. A guerra do Vietnã e os protestos contra esta guerra, os movimentos de liberação feminina na década de 1960, o movimento homossexual e o movimento negro, todos oriundos dos Estados Unidos, foram pontos importantes para que o Ocidente repensasse o “caos” pelo qual passava. A intima ligação entre a criação artística e a política no mundo ocidental era algo marcante do final da década de 1960 e começos da década de 1970: “...the radical questioning of the art work´s status in the 1960s artistic practices was 1

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Imagem criada para generalizar, limitando o que se estereotipa de acordo com algumas características fechadas. O estereótipo pode ser usado de maneira positiva ou negativa, bem ou mal humorada ou preconceituosa. Assim, por exempo, a imagem de “Carmem Miranda” pode ser considerada um estereótipo de mulher brasileira. O perigo do estereótipo é que ele trabalha com características generalizantes e que podem não ser verdadeiras. (Definição minha).


indissociable from the social and the political concern of the time” (Dezeuze , 2006: p.38).

O tropicalismo foi marcadamente um movimento de questionamentos, que acontece durante a ditadura militar e que sofre as diretas influências do AI-5. O movimento inova pelas roupas, cabelos, músicas, influências, instrumentos musicais utilizados e pelas várias referências culturais, sociais e políticas de que se utilizava para criar arte e contestação. José Miguel Wisnik, estudioso da música brasileira nos diz que: “...o tropicalismo capta a vertiginosa espiral descendente do impasse institucional que levaria ao AI-5.” (Wisnik, 1979-80: p.16).

Ao mesmo tempo em que a censura vigora no país, a criação artística se mostra profundamente rica. O período entre 1965 e 1968 ficou conhecido como a Era dos Festivais, onde jovens compositores e cantores disputavam nos chamados Festivais da Canção. Esses festivais entraram pelos anos 70. Vários músicos, ainda hoje importantes, participaram destes festivais, tais como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Nara Leão, Elis Regina, entre outros. Esses festivais também davam conta de criticar o governo militar com músicas de protesto, algumas vezes bastante diretas contra os militares e outras vezes bastante sutis. Os festivais da canção não serviram somente para trazer as músicas de protesto ao grande público, mas passaram a ter um lugar de destaque na mídia brasileira. A seguinte passagem mostra a importância dos festivais para a divulgação de novos artistas e o crescimento da indústria de produção, divulgação e consumo musical: “...os festivais, que haviam surgido predominantemente como reveladores das canções de protesto, viram-se subtraídos, do ponto de vista do encontro, e se transformaram em vitrines para novas contratações da indústria fonográfica” (Pelegrini e Oliveira, 2003: p. 286).

No âmbito da literatura, o tropicalismo é uma grande fonte de inspiração para autores e obras que surgirão. Utilizo uma passagem de José Maria de Souza Dantas que retrata claramente o que foi o tropicalismo no campo literário: “Na literatura brasileira, o tropicalismo tem papel de relevo. Faz parte da modernidade que procura questionar o seu tempo, a sociedade, os costumes e as tradições. Também encontrou no cafonismo e no consumo fontes para a sua produção

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poética. Nesse sentido, veio de encontro ao contexto Sócio-Cultural e literário, exatamente porque se vale de elementos [estereótipos] que acionam este contexto. Através do grotesco, da zombaria, do humor, o tropicalismo tem uma ação desmistificadora. Propondo temas do consumo, ironiza esse consumo; apontando para o arcaico, zomba dos arcaísmos, no afã de desmistificar esses valores. Da mesma forma, por intermédio de suas construções parodísticas, questiona a cultura, rompendo com o passado e, assim, desenvolve-se no processo de crítica que a literatura moderna apresenta.” (Dantas, 1984: p. 47).

A passagem de Dantas é bastante completa em sua forma resumida de definir o movimento tropicalista. O que os tropicalistas queriam era realmente cruzar referências, estereótipos, de maneira jocosa para desarticular as ideologias conservadoras, justapondo dados culturais nacionais e internacionais os mais variados na busca de uma “geléia geral” da cultura. Utilizando o jogo das várias referências onde o ouvinte, ou leitor, ou espectador, tem que “se referenciar” de alguma maneira em meio a tantos estereótipos, o mecanismo da antropofagia, de devorar todos os valores culturais e dar-lhes novo sentido, se mostra bastante eficaz como método cultural re-organizador para o Tropicalismo.

2.3.3 Poesia Marginal: A Poesia Marginal foi um movimento literário ocorrido durante as décadas de 1970 e 1980 nas grandes capitais brasileiras, onde poetas faziam seus próprio livros em mimeógrafos e os vendiam nas portas de bares, cinemas, teatros, restaurantes, e em vários outros lugares públicos. Esses poetas tentavam não compactuar com o mercado editorial e se rebelavam contra o sistema oficial de criação de cultura. Esta geração de poetas ficou conhecida como a “geração mimeógrafo”. Bastante influenciados pela cultura da “geléia geral” criada pelo movimento tropicalista, esses poetas marginais ao sistema se fizeram ver e reconhecer. Alguns nomes desta desta geração que ficaram conhecidos são: Ulisses Tavares, Chacal, Ana Cristina César, e Nicolas Behr, entre outros. Esses poetas produziam à margem do sistema editorial, tentando burlar a censura (que estava em seu auge de cortes) com seu sistema de produção “caseiro” e suas vendas diretas aos leitores. É no ambiente da contracultura e de forte influência tropicalista que esse autores trabalham e encontram seus espaços de criação. Por estarem à margem do sistema editorial 27


oficial, esses poetas ficaram conhecidos como os “poetas marginais”, criando uma poesia, também, “marginal”. Essa poesia marginal busca a contestação pelo “desbunde”, pelo palavrão, pela apologia do lado sórdido da vida. Daí ser chamada também de “lixeratura”1, a literatura do lixo, da sujeira. No entanto, haviam grupos organizados que tentavam publicar, via mimeógrafos, os trabalhos de seus componentes, autores ou poetas. Um desses grupos era o Nuvem Cigana, criado em 1972 por Ronaldo Bastos e amigos, entre eles Chacal. Uso aqui uma passagem da dissertação de doutorado de Fernanda Teixeira de Medeiros, da UFF, sobre o grupo “Nuvem Cigana para mostrar como funcionava tudo: “Fazer àquela altura era potencialmente problemático, 'Barreiras institucionais fortes', como referiu-se Messeder Pereira ao quadro do início dos anos 70, é um termo eufemístico para descrever 'barra pesada', 'sufoco', 'anos de chumbo', censura. Fazer sem dinheiro – como se dizia, 'a Nuvem era Cigana e Sem Grana' – era tomar para si uma atribuição de cidadania que só começou a ser posta em prática à vera aproximadamente duas décadas depois. Fazer sem dinheiro a várias mãos era colocar o ato criador em evidência, que nunca podia deixar de ser crítico, devido ao próprio ambiente político em que se vivia.” (Medeiros, 2002: p.191).

O movimento da poesia marginal também se identifica com as criações de Lygia Clark e Hélio Oiticica não somente em relação às suas referências culturais mas, também, pela tentativa de trabalhar com materiais mais precários e de pouco valor comercial, tentando fugir, de alguma maneira, da comercialização da arte. Neste período dá-se grande atenção à literatura feminista, com sua linguagem mundana sobre o amor, o sexo e as relações da mulher com o mundo. 2.3.4 Vivência (e experiência vivida): A maneira como se utiliza a palavra “vivência” nesta tese se refere à maneira utilizada por Hélio Oiticica, maneira esta que influencia Lygia Clark de forma fundamental em suas proposições. Oiticica estava preocupado com as experiências dadas pelas cores aos espectadores-manipuladores-participantes de suas obras. Seus trabalhos e suas pesquisas se fundamentaram na maneira de apreciação e entronização sensorial das cores pelos 1

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Termo criado por Affonso Romano de Sant'Anna.


participantes. Aqui utilizo uma passagem de Mari Carmen Ramírez de seu ensaio Hélio's double-edged challenge sobre a relação cor versus tempo e sua vivência: “...the temporal dimension of the Spatial Reliefs1 – summarized by the artist as colortime – emerges from the viewer's intense recollection of the 'vivência', here meaning a lived experience of color, generated by the persuasive availability of the work itself. According to Hélio, as opposed to mere static contemplation, this type of experience gives birth to a certain time that is 'even closer to the pure vitality to which Mondrian2 aspired.” (Ramírez, 2007: p.50).

Não podemos esquecer que essas “vivências” são as experiências sensíveis e marcantes que nos fazem refletir sobre as obras. Elas podem acontecer, por exemplo, no momento em que experienciamos os Relevos Espaciais. Essas “vivências” se tornam, de alguma maneira, marcantes para o participante da obra. Em Lygia Clark a palavra “vivência” também se relaciona com um aspecto sensorial marcante, o ato da experiência singular marcante quando, por exemplo, cheiramos, ou escutamos, ou falamos. Essas vivências são construtivas dos participantes através de suas experiências sensoriais memoráveis. O ato de participar das proposições de Lygia criam vivências, experiências, através da ação ativa e completa do participante. “O espaço vivencial é o espaço real penetrado pelo corpo” (Fabbrini, 1994: p.102), sendo as vivências os acontecimentos da relação sensorial do corpo do participante com outras pessoas ou coisas enquanto participante das proposições. Na área sensorial das artes visuais ou na área literária podemos dizer que as experiências vividas, ou vivências, tem papel importante em como realizamos ações, como interpretamos o mundo que nos cerca e como nos relacionamos com os outros sujeitos que vivem conosco. Neste sentido, Simon Blackburn, falando da separação mundo versus mente em relação `a experiência, nos dá uma passagem que eu gostaria de registrar aqui para esclarecer que a vivência depende da experiência, pois as vivências somente acontecem através da experimentação no mundo em que vivemos: 1

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“Relevos Espaciais” foram uma série de obras de Oiticica, onde a cor se mostrava no espaço. Estes trabalhos seriam, como eu os defino, “formações arquitetônicas de cor no espaço”. Piet Mondrian (1872-1944), pintor holandês neoplasticista (o movimento neoplasticista também foi chamado de De Stijl) de grande influência para os movimentos concreto e neoconcreto brasileiros, principalmente para Hélio Oiticica. Os quadros pintados por Mondrian, com suas linhas horizontais e verticais em preto ou branco e o uso de cores primárias, influenciaram as pesquisas sobre cor de Oiticica. A autora escreve o nome “Mondrian” com somente 1 letra “a”, como se usa de forma corrente na língua inglesa. Notei que há uma diferença entre a forma Holandesa de escrever este nome (Mondriaan) e a forma da língua inglesa (Mondrian).


“The aim of much recent philosophy, therefore, is to articulate a less problematic conception of experience, making it objectively accessible, so that the facts about how a subject experiences the world are in principle as knowable as the facts about how the same subject digests food. A beginning on this task may be made by observing that experiences have contents: its is the world itself that they represent to us as being one way or another, and how we take the world to be is publicly manifested by our words and behaviour1. My own relationship with my experience itself involves memory, recognition, and description, all of which arise from skills that are equally exercised in interpersonal transactions.” (Blackburn, 2006: p.125).

Da passagem acima podemos verificar que a experiência tem um conteúdo que nos marca e que se manifesta em nossas ações, dando-se o processo de relacionamento do sujeito com suas experiências via a memória, o reconhecimento e a descrição. E os que essas experiências deixaram em nós de mais marcantes são nossas vivências. É no espaço real do mundo em que vivemos, através dos nossos corpos enquanto objetos de conhecimento e reconhecimento sensorial, que se dá o espaço vivencial.

2.4 Material Sócio-Político: 2.4.1 Ditadura militar: Na América Latina, durante as décadas de 1960, 1970 e 1980, vários países passaram por regimes governamentais chamados “ditaduras militares”, onde os militares controlavam completamente a máquina do Estado tentando eliminar “influências negativas ao regime militar” que pudessem exercer algum tipo de poder sobre a sociedade. No Brasil, a ditadura militar foi instaurada em 1964 e oficialmente terminada em 1985; sendo que o período mais autoritário aconteceu depois da criação do Ato Institucional número 5 (AI-5), de 13 de dezembro de 1968, que suspendia todos os direitos civis dos cidadãos. A partir deste ato a vida cultural brasileira mudaria de rumo com a forte influência da censura pública sobre todos os campos culturais. Randal Johnson clarifica este ponto dando especial atenção à literatura: “The military coup d'état of 1964 that initiated twenty-one years of dictatorial rule obviously had a major impact on Brazilian literature and culture. Numerous works of fiction have explored the impact and ramifications of authoritarianism as well as the resistance movement that rose up against it” (Johnson, 2004: p.131).

A ditadura militar no Brasil ocorre num período confuso dentro da história política brasileira. 1

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“Behaviour” aquí entendido, também, como ações.


O presidente Jânio Quadros renuncia em 1961, deixando o cargo ao seu vice-presidente João Goulart, que tinha novas idéias de reforma sociais e econômicas. De acordo com Da Costa e Sergl: “...o governo de Goulart é marcado pelo agravamento da crise econômica e pela intensa vida política, bem como pelos conflitos sociais e políticos no país. Diante disso, alegando combater a subversão e assegurar a ordem democrática, os militares tomam o poder na noite de 1 de abril de 1964.” (Da Costa e Sergl, 2007: p. 35-36)

Os efeitos do golpe militar na vida dos cidadãos não se fazem sentir bruscamente com a entrada dos militares no poder em 1964. Somente com a instauração do Ato Institucional número 5 (AI-5) de 13 de dezembro de 1968 é que um órgão de censura foi criado dentro do governo, os direitos civis dos cidadãos foram suspensos e plenos poderes foram concedidos ao presidente militar (tais como: de fechar o Legislativo por tempo ilimitado, cassar mandatos, suspender direitos políticos, suspender a garantia do habeas corpos e efetuar prisões sem mandado judicial). A partir deste momento, os militares mostram seu lado mais autoritário. Durante este período tudo é proibido e os jovens estudantes politizados começam a mostrar a grande insatisfação com o regime militar. A partir do AI-5 a classe artística começa intensificar os “ataques” contra a ditadura. As obras de teatro, cinema, musica, artes plásticas, entre outras, eram divididas entre as que protestavam contra o regime e as que apóiavam ao regime. 2.5 Material Metodológico: 2.5.1 Sinestesia: A sinestesia (sin=simultâneo + estesia=percepção) é uma figura de linguagem ou semântica que tem como objetivo relacionar planos sensoriais diferentes. Como o próprio nome já diz, ela se caracteriza pela percepção simultânea de sentidos diferentes. Assim como a metáfora ou a comparação por similitude, são relacionadas categorias de ramos sensoriais distintos. Ela aproxima sensações de diferentes órgãos dos sentidos, relacionando esses elementos. Esse mecanismo utilizado pela sinestesia de união e relação de sentidos cria imagens poéticas de grande valor. Utilizo aqui uma passagem do livro Iniciación a los Estudios Literarios, de Duque e Cuesta,

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que mostra bem claramente como as imagens por sinestesia são formadas: “Se elabora la imagen a base de relaciones o de vivencias psíquicas asociadas de alguna manera en la mente del poeta. Las imágenes son el recurso más rico que tiene el poeta para el embellecimiento de la creación poética. Al mismo tiempo el poeta puede hacer revivir y provocar diversas sensaciones en la mente del lector. Hay imágenes que provocan sensaciones de colores, olfativas, gustativas, ópticas, táctiles y sinestésicas. Las sinestésicas consisten en atribuir cualidades a cosas que no las tienen, pero con las cuales poseen cierta relación: Trino amarillo; se oye la luz.” (Duque e Cuesta, 1982: p.24).

Através da sinestesia compreendemos o mundo. É “olhando com as mãos” que compramos algo, é “cheirando com o olhar” que miramos uma foto de uma rosa, é “comendo com os olhos” que vemos uma imagem de um delicioso prato em uma revista. Assim, a percepção sinestésica é uma regra para nosso entendimento do real que nos cerca. Não temos como viver sem ela, e ela nos informa sobre nossa existência nesse mundo sempre sensorial. Nunca paramos de sentir com os cinco sentidos, estamos sempre percebendo o mundo que nos rodea e experienciando coisas novas com mais de um sentido. A sinestesia, enquanto ferramenta de análise, nos ajudará a compreender as relações de contato entre a obra de Clark e de Prado, por ser um meio de descoberta e interrogação do campo sensório e existencial. É a sinestesia que faz com que percebamos o mundo real em que vivemos. É através dos cinco sentidos, nosso modo de entrar em contato com o mundo que nos cerca, que pode-se produzir arte. É a percepção sinestésica que faz com que sejamos capazes de apreciar o mundo em que vivemos e reinvertá-lo através da arte. E Adélia utilizase bastante, assim como Lygia, da sinestesia para compor suas obras; o que se verá mais adiante nesta tese.

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3- Hipótese:

Depois de definir os termos mais importantes para esta tese, devo mostrar minha hipótese: minha hipótese para esta tese é que os trabalhos das duas artistas estão baseados em um humanismo de cunho existencialista. É importante mencionar que o existencialismo teve um renascimento na década de 1970, época em que produziam ativamente Adélia Prado e Lygia Clark. Como a produção de ambas as artistas identifica-se tão completamente com as vivências e experiências do homem no mundo, suas inquietações, suas angústias, suas incertezas, suas dores de existir, e seus segredos do espírito, de maneira bastante questionadora, acredito que estes fatores às aproximam da corrente filosófica que aflorou na Europa no período entre-guerras e que teve forte impacto no período pós-segunda guerra mundial. Não podemos esquecer que vários fatores, entre eles a crise do petróleo da década de 1970, o fracasso norte-americano na guerra do Vietnã, a expansão militar norte-americana ao Camboja e as limitações às liberdades individuais implementadas pelas ditaduras militares na América Latina, especialmente em nosso caso, no Brasil, foram acontecimentos históricos da década de 1970 que, entre outros, trouxeram consigo uma carga de insatisfação e de reflexão sobre o existir num mundo tão caótico, e que, de certa forma, retomavam as angústias do póssegunda guerra mundial. A “solução” encontrada pelos artistas da época foi utilizar-se do existencialismo como suporte filosófico1 para seus trabalhos, principalmente na área da performance art, como Gorsen nos informa: “...towards de end of the 1970s, there seems to be nothing left of that hope. This can be seen in the broken, agnostic expression of today's living art, which has been robbed of its political basis, and therefore in many ways looks like a new edition of the existentialist and existentially philosophical reduction to experience of oneself, of a way of thought going back to the 1930s.” (Gorsen, 1984: p. 136).

Outro autor que analisa a década de 1970 sob o mesmo ângulo angustiado é Sam Gathercole. Utilizo uma passagem deste autor, proveniente do artigo “I'm sort of sliding around in places...ummm...”: Art in the 1970s: 1

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Teoria defendida por Peter Gorsen no artigo The Return of Existencialism in Performance Art. Ver bibliografia.


“The 1970s lack the clear identity that decades on either side of it are thought to posses. The radical, progressive 1960s and the reactionary backlash of the 1980s frame a decade of disappearance, disintegration, and fragmentation.” (Gathercole, 2006: p. 60).

Na década de 1970 Adélia vive sua vida de interior mineiro e retrata os pequenos atos de sua fé, de suas relações sociais e familiares, e de seus usos e costumes através de sua poesia singular que exalta cada pequeno acontecimento da vida cotidiana ao nível do místico, vendo a vida como mistério insolúvel dentro do binômio erotismo-religiosidade. Não podemos esquecer que Adélia Prado fez o curso de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Divinópolis, o que provavelmente a colocou em contato com a teoria existencialista. Enquanto Adélia produz na província, Lygia, na cidade grande, vive uma vida artística direcionada à humanização da arte (influenciada pela fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty e pelas conversas e cartas com outros artistas, principalmente Hélio Oiticica), pela quebra das correntes do comercialismo dos objetos artísticos, tentando repensar a importância e o papel do artista na sociedade e buscando no espectador-participante a chave para uma arte sem objeto, uma arte pensada como filosofia de vida, uma arte sempre em potência de acontecer. Lygia Clark, com sua arte sem objeto, aproxima-se do espectador de maneira singular, e Adélia Prado, com uma obra de transcendência da vida cotidiana do interior brasileiro, se vêem, ambas, ligadas a um humanismo transformador e pouco convencional que dá importância ao sensorial do mundo, às memórias do passado e ao ato de viver cada momento com a maior intensidade possível, fazendo da vida um caminhar quase místico, na esperança de um existir cheio de imagens memoráveis. Por isso, pela via do existencialismo como chave interpretativa da obra de Lygia e Adélia, creio haver ligações possíveis e bastante interessantes para analisar e unir os trabalhos dessas duas artistas.

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4- Estado da Questão: Para dar uma visão clara do que Adélia Prado e Lygia Clark representam na área cultural, literária e artística brasileiras, devo mostrar como a crítica se refere às duas artistas e aos seus trabalhos. Aqui pretendo mostrar os pontos de vistas dos críticos que são de maior interesse para a análise das obras de Adélia Prado e Lygia Clark. Vou começar pela obra de Adélia Prado. Ela, nascida em Divinópolis, MG, em 1935, foi professora por 24 anos e formou-se em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Divinópolis. Adélia própria, em uma entrevista à Mariza Ferreira Bahia, de 16.10.1992, diz que a primeira teórica a analisar sua poesia foi a professora Margarida Salomão, da UFJF-MG (Universidade Federal de Juiz de Fora): “A primeira apreciação crítica do texto que eu tive foi da Margarida Salomão e nessa crítica, que faz parte até de Bagagem, ela fala que é moderna1, e dá as razões, mas eu, sinceramente, não poderia discutir isso” (Bahia, 1994: p. 125).

Salomão escreve o prefácio de Bagagem, publicado em 1976, dizendo que “...a poesia brutal, maravilhosa e surpreendente de Adélia Prado” (Prado, 1976: p. 8) havia nascido seguindo a tradição literária dos grandes mestres brasileiros, como Drummond e Cabral, e que continuava essa tradição sem desvirtuar do “bom caminho poético”2. Salomão vê na poesia de Adélia a mulher como este ser desdobrável, reconhece seu diálogo direto com Drummond e Guimarães Rosa, e define sua poesia como religiosa: “...estamos diante de uma poesia religiosa, talvez a mais autêntica em língua portuguesa. Não se trata de imposição de um modelo institucional externo (a fé católica) sobre a feitura do texto: trata-se de uma magnífica tessitura recíproca da poesia e da religião. O divórcio com as poéticas contemporâneas é evidente: ao invés de carpir sobre a falta de solução, ou mesmo ao invés de propor alguma solução, tudo o que temos é dissolução mística” (Prado, 1976: p. 11).

Adélia não somente vem caminhando pelo mesmo caminho dos mestres-poetas brasileiros 1 2

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“é moderna” significa aqui que é poesia moderna. O “bom caminho poético” é o de seguir os mestres sem copiá-los, mas de maneira original e autêntica. E isso faz Adélia, segue os passos de seus mestres, porém compondo seus poemas de uma maneira singular, única.


como, também, continua seguindo os passos desses mestres como poderemos ver em suas várias referências a esses autores em seus poemas. Adélia, em vários de seus poemas, nos mostra que foi influenciada por vários autores. Como em parte do poema A INVENÇÃO DE UM MODO1, onde ela descreve a influência da Bíblia e do livro de João Guimarães Rosa chamado Grande Sertão: Veredas: Porque tudo que invento já foi dito nos dois livros que eu li: as escrituras de Deus, as escrituras de João. Tudo é Bíblias. Tudo é Grande Sertão

Outro interessante analista da obra de Adélia Prado é Vilson de Oliveira, da UNISA-SP, que escreveu um artigo intitulado Ecos na poesia de Adélia Prado2, onde analisa o seu diálogo com o discurso bíblico e com a obra de Drummond. Ele cita a passagem onde Drummond comenta a obra de Adélia: “Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo: esta é a lei, não dos homens, mas de Deus. Adélia é fogo, fogo de Deus em Divinópolis”.

E este sentido existencial da poesia de Adélia pode ser claramente visto em sua produção. Sentido este, reconhecido por Carlos Drummond e que desejo buscar tanto nas poesias de Bagagem como nas performances de Lygia Clark, como já informei na hipótese. Vilson comenta, também, sobre os autores que influenciam Adélia, o que antes chamei de autores da “tradição literária” brasileira: “O texto poético, mais do que o discurso ordinário, se faz atravessado por outros: é múltiplo, multifacetário, heterogêneo. Nele, diversos dizeres se cruzam, entrelaçam-se, mesclam-se. Os de Adélia Prado não são diferentes, nele várias referências literárias são facilmente perceptíveis – Drummond, João Cabral de Melo Neto, Nélida Piñon, Casimiro de Abreu, Jorge de Lima, Manuel Bandeira, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, San Juan de la Cruz, Santa Teresa D'Ávila”. 1

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Todos os nomes dos poemas de Adélia Prado estão colocados nesta tese em letra maiúscula seguindo os títulos dos poemas na edição de Bagagem pesquisada, onde todos os títulos de poemas estão em letra maiúscula. Palestra no IX Congresso Nacional de Lingüística e Filologia. Texto publicado nos Cadernos do CNLF, Volume IX, no11. Ver bibliografia.


Esse diálogo estreito que mantêm Adélia com a obra de vários autores é um dos pontos da poesia adeliana que retomarei quando faça a análise detalhada de alguns dos poemas de Bagagem. O colunista do Jornal do Brasil, Felipe Fortuna, falando sobre o fingimento da crise do poema, cita a obra de Adélia como “...confessional, catártica, concentrada nas 'pequenas coisas da vida” (JB, 05/12/2008), mostrando o valor da poesia adeliana em relação aos falsos defensores da crise do poema e diferenciando a obra de Adélia da obra de outros poetas contemporâneos, como, no exemplo dado pelo colunista, do poeta Marcos Siscar, que abusa do recurso do corte na composição de seus poemas, deixando o leitor em estado de estranhamento. Creio interessante notar que as análises sobre a obra de Adélia sempre se voltam ao cotidiano, ao papel da mulher na sociedade e à religiosidade, deixando de lado fatores muito interessantes de serem analisados, tal como os valores estéticos das artes plásticas inseridos em seus poemas, como, por exemplo, cores. Adélia se utiliza de muita matéria do campo das artes visuais para compor seus poemas, algo que veremos, detalhadamente, mais tarde, durante a análise de seus poemas. Um outro ponto da obra de Adélia é o psicológico. Uma das pessoas que se interessaram pelo valor psicanalítico da obra adeliana foi Cristiana Facchinetti, doutora em teoria psicanalítica da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), que em seu artigo A poesia de Adélia Prado e a Psicanálise: a encarnação do real escreve: “A poesia de Adélia Prado está justamente compreendida naquilo que aponta para o impossível: o real. Tal modo associa-se ao corpo erógeno, à carnalidade do desejo, que se apresenta como uma obra onde o campo da afetação e o da intensidade pulsional comparecem com sua força, onde pode irromper o novo em sua brutalidade carnal e surpreendente.” (Facchinetti, 2001).

Talvez a pesquisadora que mais cobriu os aspectos da poesia de Adélia Prado em suas pesquisa tenha sido Vera Queiroz, que escreveu um livro intitulado O vazio e o pleno. A poesia de Adélia Prado, publicado pela editora da UFG (Universidade Federal de Goiás). 37


Neste livro Vera Queiroz analisa vários aspectos da poesia adeliana, entre eles, o uso das frases-clichês proferidas por pessoas do âmbito familiar de Adélia e colocadas de forma única dentro dos poemas; o olhar desde a província; a tradição e a diferenciação da tradição mineira1 em sua escrita e em sua vida; a questão da fala reportada; suas influências literárias; e seus diálogos com outros escritores, entre outros importantes aspectos da poesia adeliana. Queiroz vê na tagarelice das conversas das mulheres da província um dos aspectos relevantes na transposição de elementos da língua falada para o campo do poético: “A linguagem coloquial é um dos traços determinantes na constituição do lirismo adeliano, não apenas como tema, mas também como um dos fatores que o organizam internamente” (Queiroz, 1994: p. 53).

A fala proferida por seus pais se torna poesia adeliana, frases memorizadas que se entregam a seus poemas e que neles acham seu lugar material. Como, por exemplo, em parte do poema FIGURATIVA: A mãe falou pra mim: “Vai na sua avó buscar polvilho, vou fritar é uns biscoitos pra nós.” A voz dela era sem acidez. “Arreda, arreda,” o pai falava com amor

Este aspecto da fala familiar inserida no poema é outro ponto que exemplificarei mais detalhadamente durante a análise dos poemas de Adélia Prado. O crítico Ivan Junqueira vê na poesia de Adélia as várias possibilidades de análises que esta poeta nos dá: “Haveria muitíssimo ainda que dizer da poesia de Adélia Prado, de sua maestria em inserir textos do mais banal prosaísmo dentro dos contextos poemáticos, do talento com que manipula a autora o estilete do susto e do abrupto, da sublime ironia com que expõe a vida ao ridículo ou da pertinência agílima com que se vale dos esquemas rímicos...” (IN Prado, 1986)2

A singularidade da obra poética de Adélia e a natureza existencial do ser humano em seus 1

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Minas Gerais é um estado conhecido no Brasil pelos seus valores sociais tradicionais ligados à família e à religião católica, um estado onde a Arte Barroca aflorou, apartir do século XVII, como forma artística por exelência. A força das histórias orais passadas de pai(mãe) para filho(a) são muito conhecidas em Minas Gerais. Há uma forte tradição oral que ainda persiste nas áreas provinciais de Minas Gerias. Contracapa do livro Terra de Santa Cruz, de Adélia Prado, de 1986. Ver bibliografia.


poemas abrem o caminho de ligação para falar da obra de outra grande humanista, Lygia Clark. Lygia Clark (Belo Horizonte 1920 – Rio de Janeiro 1988), era mineira, assim como Adélia Prado. Viveu em Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Paris. Começou a ter projeção dentro do movimento concreto brasileiro na década de 1950, seguindo, com outros artistas de sua geração, tais como Hélio Oiticica, Ferreira Gullar, Franz Weissmann e Amilcar de Castro, as trilhas de experimentação do neoconcretismo carioca.

Suas obras buscavam a ação do

espectador-participante, começando por seus trabalhos intitulados Bichos. Foi professora na Sorbonne entre 1970 e 1975, onde desenvolveu vários exercícios de sensibilização artística. Foi uma mestra por excelência, levando seus alunos a participarem ativamente de suas experiências artísticas. O crítico de arte Guy Brett, um admirador e pesquisador da artes latino-americanas nos informa, analisando a arte de Clark que ela e os neoconcretos “...deixaram de enfatizar o sentido visual para pôr em jogo o conjunto dos sentidos, mais precisamente o corpo inteiro, concebido em termos de 'plenitude” (IN Ades, 1997: p. 264). Os objetos produzidos pelos neoconcretos lembravam organismos naturais e exploravam as ações e reações sensoriais do espectador, transformando o corpo do espectador-participante em um campo de experimentação dos sentidos. Lygia começa seus trabalhos na pintura, fazendo com que essas pinturas buscassem o espaço e saíssem da moldura; a partir daí cria os Casulos (esculturas com um espaço interior que ainda busca certa organicidade). Em 1960 cria a famosa série chamada Bichos, onde o espectador tem que participar movimentando o objeto para que este aconteça. Depois dos Bichos vêm as Obras Moles e os Trepantes, objetos de borracha que lembravam formas orgânicas. Guy Brett nos informa, ainda, sobre a última fase da carreira de Lygia: “A partir do extraordinário rumo tomado pela obra de Lygia Clark e de suas experiências corporais que culminam com os trabalhos intitulados Terapia, cujas implicações vão aos poucos tornando-se conhecidas e entendidas (e que não podem ser vivenciadas em uma sala convencional de exposição), ficamos sabendo que a coisa importante é o diálogo, o objeto como 'relacional'. A geometria inicial

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– como as sacolas de ar, as tiras elásticas, as pedras – é apenas um veículo por meio do qual os 'espectadores' podem fazer desabrochar sua própria poética” (Brett, IN Ades, 1997: p. 264).

De acordo com Anna Dezeuze, uma importante pesquisadora das obras de Clark e Oiticica, os trabalhos de Lygia Clark nas décadas de 1960 e 1970 se voltam completamente para o espectador-participante. Dezeuze diz: “...Clark's quest to create forms of dialogue between the spectator, and between two or more spectators.”(Dezeuze, IN Jones ed., 2006: p.50).

E ainda: “...Clark's 1966 Sensory Objects all consisted in everyday objects such as stones, shells, and plastic bags filled with air or water, which solicited the touch of the viewer.” (idem, p.50).

O corpo do espectador é o lugar de experimentação sensorial por excelência e de onde toda energia transformadora e participativa provirá. Ela criará as obras Máscaras Sensoriais de 1966 a 1968, objetos para serem vestidos pelos participantes no intuito de viverem suas próprias interioridades. Edward J. Sullivan fala um pouco sobre estes objetos de vestir: “...she created articles of clothing that could be worn and used to temporarily alter the personality of the wearer. In participatory works such as these, Clark reached far beyond conventional definitions of art” (Sullivan, 2002: p. 452).

Sullivan acredita, ainda, que o treinamento no ateliê de Burle Marx tenha influenciado Clark de maneira bastante forte para trabalhar com formas orgânicas, conforme ele mesmo comenta: “Clark's early training took place in Rio de Janeiro with the noted landscape architect and painter Roberto Burle Marx, whose intense involvement with natural forms undoubtedly inspired her. She constantly struggled to integrate the energy of life forces in her art, and a tension between rigid abstraction and organic growth is evident in her work” (Sullivan, 2002: p. 452).

Apesar da natureza orgânica de algumas das primeiras criações neoconcretas de Lygia, como Bichos, Obras Moles ou Trepantes, Lygia começa a incluir, na época, como Oiticica e Pape, um certo humanismo em sua arte. Sua arte é feita pela participação do espectador, já não sendo somente sua arte, mas a arte dos que a vivenciam. Ligia Canongia, escritora do livro O legado dos anos 60 e 70, nos mostra como os neoconcretos, e principalmente Clark, 40


humanizaram, dramatizaram e reverteram a arte à posição de uma geometria sensível: “Ao recuperar a idéia de arte como algo que se dá na experiência, incluindo as noções de tempo, processo e diálogo entre sujeito e objeto; ao resgatar as intenções expressivas no seio mesmo da criação, o artista neoconcreto recoloca no objeto um dado essencial: o imponderável. Para ele, somente a expressão do sujeito, no ato vivido daquela experiência, podia tornar esse objeto um fato poético” (Canongia, 2005: p. 39).

Nesse sentido, a arte e a vida passam a trilhar o mesmo caminho, num eixo de união que confundirá as categorias artísticas com a vida do participante. Essa função de artista como propositor1 foi, segundo Maria Alice Milliet (1994: p. 94), uma função que Lygia Clark executou ativamente, levando os participantes de suas performances a um envolvimento total com seus corpos e mentes. Sua arte se volta, sem restrições, para o participante, reavaliando o papel do objeto de arte na sociedade de consumo, e o papel do artista e suas funções na sociedade. Milliet nos informa: “A partir de 1964, o envolvimento ativo do público torna-se para Lygia Clark o cerne de suas preocupações. Abandonando a construção de objetos torna-se improdutiva, no sentido material da produção e como conseqüências ausente do mercado. Contestando a racionalidade econômica, nega o valor positivo que os concretos emprestam à sociedade tecnológica. A ação individual ou conjunta, no parque, na rua ou na escola, proposta a partir da manipulação de objetos em si sem importância é denominada por Pedrosa2 'exercício experimental da liberdade'.” (Milliet, 1992: p. 94).

O artista passa a ser o instigador dos atos do espectador-participante, já não mais o gênio criador da obra para ser contemplada. Regina Melim, em seu livro Performance nas artes visuais nos dá a visão da arte brasileira da época: “...nos anos 1960 e 1970, quando a participação do espectador diante da reavaliação do objeto era imprescindível, estabelecendo ao artista a condição de um propositor de ações, que seriam levadas a termo pelo espectador-participador. Obras como as de Hélio Oiticica ou Lygia Clark, diante das quais o espectador era sempre solicitado a usá-las ou manipulá-las, pois a mera contemplação não bastava para revelar o sentido” (Melim, 2008: p. 57).

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Propositor das performances, não sendo o artista o performer, mas o público. O artista se torna o propositor da “atividade artística”. Dando importância à idéia da criação da proposição e à ação do público-participante. Mário Pedrosa.


E ainda, na visão de Maria Alice Milliet: “A negação da obra e da autoria, a substituição do artista pelo 'propositor' e autodenominar-se 'não-artista' dão a medida da clara determinação com que Lygia vive o processo de desestruturação da tradição artística e o investimento em outras áreas” (Milliet, 1994: p. 28)

As obras de Lygia Clark, como os Bichos, funcionavam como organismos vivos pedindo para serem manipulados e tinham em sí uma potência transformadora. Esse “corpo-a-corpo” entre a obra e o espectador tendia a humanizar a arte e a trazê-la para o mundo real, para o mundo das pessoas, não se encorporando à estaticidade contemplativa dos museus e galerias de arte. Ariel Jimenez, curador da exposição Paralelos, arte brasileira da segunda metade do século XX em contexto (Coleccion Cisneros) falando das obras de Clark dentro da coleção Cisneros, nos diz que: “Lygia Clark definiu o tipo de relação que estabelecia todo aquele que se deparasse com seus bichos como uma vital inter-relação entre a obra e o espectador. O gesto primeiro que modifica a obra, modificava ao mesmo tempo – pela resposta orgânica dos bichos – a conduta do espectador” (Jimenez, 2008: p.50).

Assim, não só o espectador manipula a obra, mas esta reage com uma resposta inesperada. Há um sentido de ação e reação, de diálogo direto entre manipulador e objeto manipulado. Outro autor a escrever sobre a obra de Lygia Clark foi Ricardo Nascimento Fabbrini que, em seu livro O espaço de Lygia Clark nos dá uma visão sobre os vários aspectos da obra da artista mineira. Fabbrini comenta sobre os textos escritos por Clark: “A série teórica, marcadamente francesa, que atravessou sua trajetória alinha entre a fenomenologia e o pós-estruturalismo, o existencialismo1, a antropologia estrutural e a revisão freudiana. São apreciações sempre parciais, movidas muitas vezes pela vertigem da analogia, com suas correspondências inesperadas, que também alcançaram a antipsiquiatria anglo-americana de R. D. Laing e D. G. Cooper, a psicanálise de Melaine Klein e a psicologia de D. W. Winnicott. Um olhar semiótico que interligou a estética, a ética e o conhecimento em sua revisão da percepção corporal, da relação entre sujeito e objeto” (Fabbrini, 1994: p. 1617).

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Itálico meu.


Além disto, Lygia Clark foi bastante influenciada pela correspondência que manteve com Hélio Oiticica, Mário Pedrosa, Mário Schemberg e Ferreira Gullar, entre outros, deixando-se “emprenhar pelos ouvidos”, como ela mesma dizia. As experiências sensoriais propostas por Lygia, durante os anos em que está em Paris, se tornam cada vez mais grupais. Esse “corpo-coletivo” em expressão mostrava que a liberdade ou repressão do indivíduo passava pelo social. Em seu livro Lygia Clark: Obra-Trajeto, Maria Alice Milliet acredita que Lygia Clark tenha atingido um “singular estado da arte sem arte”, onde o artístico independe de um objeto para ser admirado, ou seja, uma arte sem objeto: “Clark age nos confins da arte quando aborda as estruturas espaço-temporais da obra1 e posteriormente quando adere à antiarte recusando a obra acabada e sujeita à contemplação e propondo o corpo-expressão” (Milliet, 1992: p. 154).

A partir da obra Caminhando, Lygia Clark reinforça, segundo Ricardo Nascimento Fabbrini, reinforça sua trajetória em direção à desmaterialização da obra de arte, em busca da “...ação que nunca se perfaz, sempre provisória e efêmera” (1994: p. 92). A própria artista nos diz: “Caminhando é o nome que dei à minha última preposição. Daqui em diante atribuo uma 'importância absoluta' ao 'ato imanente realizado pelo participante'” (Clark, IN Fabbrini,1994: p. 92).

Lygia Clark, em sua trajetória artística, vista por Milliet e Fabbrini, após os experimentos sensoriais individuais e de grupos, volta ao Brasil e começa a aperfeiçoar seu método terapêutico, utilizando objetos relacionais em pessoas interessadas. Milliet nos informa que: “A técnica terapêutica desenvolvida por Lygia Clark consiste, em síntese, em fazer viver, num contexto regressivo, o que ficou registrado na 'memória do corpo'2. Para isso, usa estímulos sensoriais, alheia à verbalização associada à psicanálise. Trabalha vivências arcaicas gravadas em nível sensorial nas primeiras etapas da vida , fase primitiva, anterior à aquisição da linguagem. Registros biológicos de um tempo sem história porque precede à capacidade da mente de tomar conhecimento. Material bruto que ressurge na fantasia inconsciente e na 1

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Como no caso de Caminhando. Caminhando é uma proposição composta de uma fita de Moebius de papel e uma tesoura. O ato consiste em cortá-la longitudinalmente percorrendo toda a extensão, até o esgotamento das possíveis trajetórias” (Fabbrini, 1994: p.93). Itálico meu para demostrar a importância que esta “memória do corpo” terá na análise da obra de Lygia Clark.


atuação fantasmática, a ser nomeado, metabolizado e finalmente integrado à estrutura psíquica do indivíduo” (Milliet, 1992: p.165).

Outro teórico a analisar a obra dos artistas neoconcretos foi Ronaldo Brito. Em seu livro Neoconcretismo, vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro ele faz uma análise dos fatores que levaram os neoconcretos cariocas a se desvencilharem da idéias dos concretos paulistas. Ele analisa a obra de Lygia Clark no âmbito da vanguarda dos rompimentos com as categorias artísticas vigentes: “No âmbito da escultura, por exemplo. As preocupações de Clark com a supressão da base – suporte que isola a peça do espaço circundante, privilegiando-a e assim 'platonizando' suas relações com o espectador – são provas de uma atenção crítica às formas vigentes” (Brito, 1985: p. 89).

E segundo Fabbrini, a experiência corporal única, intraduzível e irresgatável é outro ponto de inovação explorado por Lygia Clark: “A artista foi substituída pela propositora (“não-artista”), a obra cedeu ao dispositivo sensório, o colecionador viu-se furtado de seu objeto-fetiche costumeiro, os marchands, previdentes empreendedores, não encontraram nas proposições a segurança garantida pela imutabilidade da arte. E mais: as proposições não ficaram limitadas ao circuito de galerias e museus: também foram vividas na sala de aula, no atelier, na rua e no consultório; de algumas restam documentos (a fotografia e o filme) que apenas registram a vivência construtiva do participante – simples materiais informativos e indicativos ou meros vestígios visuais de uma experiência irresgatável (Fabbrini, 1994: p. 103104).

Estas passagens mostram a preocupação de Lygia com o anti-convencional em arte, com uma arte sem objeto de arte para consumo e com a criação de poéticas artísticas dependentes do espectador-participante. Assim, após ter dado uma visão das várias vertentes de análise que os críticos observam sobre as obras de Adélia Prado e Lygia Clark, pretendo explorar as obras de cada uma separadamente para, depois, analisá-las em suas relações e diálogos.

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5- Análise do livro Bagagem e alguns de seus poemas:

O livro Bagagem foi o primeiro livro escrito por Adélia Prado. Publicado em 1976, o livro teve o apoio intelectual de vários escritores, entre eles Antonio Houaiss, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Affonso Romano de Sant'Anna, Nélida Piñon e Alphonsus de Guimaraens Filho, como relata Vilson de Oliveira da UNISA-SP, em seu artigo Ecos na poesia de Adélia Prado, para o CIFEFIL (Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Lingüísticos)1. A cena poética brasileira na década de 1970 era caracterizada pelo que se denominou “poesia marginal”, poetas ligados à contra-cultura que produziam livrinhos artesanais que eram vendidos por eles nas portas de cinemas, de teatros, de bares, de boites, em praças, e em vários outros lugares. Utilizo uma passagem de Célia Pedrosa que mostra as vertentes nesse dado momento na literatura brasileira: “...no momento em que esse panorama parece dominado, de um lado, pela dicção vanguardista concreta em que se aliam a morte do verso e a do lirismo, pela entronização de um João Cabral tornado símbolo exclusivo de rigor intelectualista e metalingüistico; de outro, pela retomada simplificadora da dicção modernista coloquializante, proposta por poetas em cuja concepção de marginalidade o apego à vida exigia o desapego à biblioteca, o interesse pelo afetivo-existencial parecia condicionado pela afirmação alegremente ligada ao ego.” (Pedrosa, 2002: p. 94).

Do outro lado da vertente marginal aparece Adélia Prado com seu livro Bagagem. Adélia enviou alguns poemas a Affonso Romano de Sant'Anna, e este os enviou a Drummond. Ambos ficaram sinceramente convencidos do valor poético singular da produção de Prado, o que facilitou a publicação de Bagagem. Os elogios vieram antes da fama de poeta, como nos diz Vera Queiroz: “Antes mesmo de ter seu primeiro livro publicado, o próprio Drummond já lhe fizera uma crônica elogiosa2 e Affonso Romano de Sant'Anna afirma, no prefácio a O coração disparado, seu entusiasmo pelos inéditos de Adélia, que lera por volta de 1972.” (Queiroz, 1994: p.11).

O livro Bagagem foi divido em 5 partes pela poeta: Prefácio, escrito por Margarida Salomão; 1 2

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Ver bibliografia. Em 9 de outubro de 1975.


O MODO POÉTICO, composta de 67 poemas; UM JEITO E AMOR, composta de 19 poemas; A SARÇA ARDENTE – I; composta de 14 poemas; A SARÇA ARDENTE – II, composta de 13 poemas; e ALFÂNDEGA, composta de 1 poema. Os nomes destas partes são bastante sugestivos, assim como o nome do livro: Bagagem, aquilo que levamos conosco em nossas viagens. Para um campo vivencial, a palavra “bagagem” poderia ser traduzida como a carga, o fardo, as memórias, as marcas, as cicatrizes, que trazemos em nós mesmos, e que levamos conosco por toda a vida. A meu ver, a parte chamada O MODO POÉTICO, a parte com o maior número de poemas, define o modo de Adélia Prado pensar e fazer poesia, suas influências e suas motivações. Esta parte traz poemas dedicados a Fernando Pessoa, Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade; a parte chamada UM JEITO E AMOR traz poemas de aspecto romântico e ligados à situações da vida das mulheres em geral, onde se encontra um poema dedicado a seu marido (PARA O ZÉ); a parte intitulada A SARÇA ARDENTE – I e II são de caráter mais delicado no que se refere às sensibilidades das mulheres, também de caráter mais religioso e com mais relação às memórias da poeta; e a última parte, ALFÂNDEGA traz somente um poema, que vejo como a passagem definitiva do mundo dos não-poetas para o mundo dos poetas, é onde “mostra suas credenciais”, onde viaja para ver o Rio de Janeiro e passa a ser poeta. A melhor maneira de conhecer a obra de Adélia Prado é analisar alguns de seus poemas no livro Bagagem. Pretendo utilizar o método usado por Antonio Candido em seu livro Na Sala de Aula, Caderno de análise literária, onde Candido diz: “...as maneiras possíveis de trabalhar o texto, partindo da noção de que cada um 1 requer tratamento adequado à sua natureza, embora com base em pressupostos teóricos comuns. Um desses pressupostos é que os significados são complexos e oscilantes. Outro, que o texto é uma espécie de fórmula, onde o autor combina consciente e inconscientemente elementos de vário tipo.” (Candido, 2008: p. 5)

E ainda: “A multiplicação de leituras suscita intuições, que são o combustível neste ofício” ...sendo que “...cada abordagem de um texto poético pode alterar a maneira de entendê-lo” (idem, p.6). 1

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“cada um” por ser entendido como “cada poema”.


Assim, pretendo analisar os poemas utilizando-me dos parâmetros tradicionais (análise da linguagem, das formas, da rima, da métrica e da versificação), de que também se utiliza Antonio Candido em seu livro, mas tendo sempre em mente os pressupostos de que “os significados são oscilantes” e de que “o texto é uma espécie de fórmula” a ser desvendada e enriquecida com várias interpretações. O primeiro poema a analisar é também o primeiro poema do livro Bagagem. Numero os versos para facilitar a análise dos poemas. Este poema chama-se: COM LICENÇA POÉTICA 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18

Quando nasci um anjo esbelto, desses que tocam trombeta, anunciou: vai carregar bandeira. Cargo muito pesado para mulher, esta espécie ainda envergonhada. Aceito os subterfúgios que me cabem, sem precisar mentir. Não sou tão feia que não possa casar, acho o Rio de Janeiro uma beleza e ora sim, ora não, creio em parto sem dor. Mas, o que sinto escrevo. Cumpro a sina. Inauguro linhagens, fundo reinos (dor não é amargura). Minha tristeza não tem pedrigree, já a minha vontade de alegria, sua raiz vai ao meu mil avô. Vai ser coxo na vida, é maldição pra homem. Mulher é desdobrável. Eu sou.

Este primeiro poema, como o próprio nome já menciona, é um pedido de licença para começar a ser poeta, para começar seu primeiro livro. Aí, a poeta conta sua própria história enquanto pessoa, poeta e mulher. Os versos 1 e 2 anunciam seu nascimento por um anjo1, como no nascimento de Jesus, de alguém especial, uma imagem extremamente católica; o carregar bandeira do verso 3 pode estar ligado às pessoas das procissões religiosas que levam 1

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O Dictionary of Symbols de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (1969, edição de 1996) diz sobre os anjos: “Akkadian, Ugaritic, Biblical and other texts mention under different guises who act as intermediaries between God and the world. They are either purely spiritual beings, or spirits endowed with ethereal or airy bodies. However, they can only assume a human appearance. They act as God's ministers, his messengers, guardians, steering the course of the stars, giving effect to his laws, protecting his elect and so on, and are ranked in hierarchies of seven orders, nine choirs or three triads.” (1996: p.22). Ver bibliografia.


as bandeiras dos santos das irmandades católicas, e como as bandeiras são pesadas, geralmente são levadas por homens; ou pode estar ligado ao árduo labor de ser poeta e carregar a carga de (Manuel) Bandeira. Os versos 4 e 5 introduzem o ser mulher no mundo da poesia, a mulher é frágil (não tem força para carregar bandeira) e envergonhada (volta à Eva e à criação do mundo narrada na Bíblia). Nos versos 6 e 7 a poeta aceita sua posição no mundo sem mentir; e nos versos 8, 9 e 10 coloca pensamentos que poderiam ser classificados como “estereótipos femininos da província”, onde o adjetivos feia e o substantivo beleza nos demonstram a preocupação com o estético. No verso 10 se nota, pela primeira vez, a palavra dor, que aparecerá várias vezes no livro. Aqui a dor aparece enquanto possibilidade (ora sim, ora não). O parto é o que caracteriza o ser feminino, a possibilidade do dar-à-luz uma criança, de colocar outro ser humano no mundo, de diferenciar-se do ser masculino. “Parto sem dor” também pode ser visto como uma “creença”, um estereótipo interiorano. Nos versos 11 e 12 a poeta reconhece que ser poeta é sua verdadeira sina, e o faz com todo seu sentimento e honestidade. E ser um poeta do sexo feminino é ser de uma linhagem especial, capaz de fundar reinos de imagens distintas das dos masculinos. A palavra dor aqui, se separa de amargura e se coloca no ramo da tristeza, da melancolia, da saudade. A frase “dor não é amargura” colocada entre parênteses, está como que destacada dentro do poema, como uma observação, já que sua dor não se tornou amargura, mas é uma dor transformadora, criadora, produtiva. Toda essa tristeza, no verso 14, remonta à “saudade” sem um antepassado importante, sem pedigree. Enquanto a alegria do verso 15 remonta ao seu mil avô, esta se reconhece em família, em linhagem, em hereditariedade. Nos versos 17 e 18 ela diferencia o ser homem-poeta e o ser mulher-poeta. O homem-poeta aqui é Carlos Drummond de Andrade, o ser coxo, o ser gauche1, enquanto a mulher-poeta é a própria Adélia, desdobrável, capaz de fazer várias coisas ao mesmo tempo. Esse diálogo direto com Drummond se verá muito no livro Bagagem, é como se Drummond fosse a referência primeira de Adélia na área

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Affonso Romano de Sant'Anna em entrevista informa sobre o ser gauche drummondiano: “A partir dos estudos que fiz sobre sua obra, percebi que a chave mestra para entender suas poesias estava na primeira estrofe do primeiro poema de seu primeiro livro, que diz resumidamente: "Quando eu nasci um anjo torto, daqueles que vivem meio à sombra, me disse: vai Carlos, vai ser gauche na vida". Nesta estrofe, podemos resumir de certa forma toda a obra do poeta, que descreve ao longo de sua trajetória, a maneira como o indivíduo gauche (à margem, errado, à esquerda) se posiciona diante do mundo. E como se não bastasse ele se considerar 'gauche', Drummond ainda diz que foi um anjo torto que o concebeu, ou seja, o avesso do anjo iluminado.” Passagem retirada da entrevista à Fernanda Nidecker ao Jornal do Brasil, em Maio de 2001, entitulada Affonso Romano Sant’Anna "desparafusa" Drummond. Itálico meu.


da poesia. Drummond é conhecido nas letras brasileiras como sendo “o Poeta”1, portanto, neste poema, Adélia não somente pede licença ao POETA para começar sua vida na poesia, mas dialoga com ele enquanto ser feminino no mundo. Em seu poema COM LICENÇA POÉTICA, como informa Vera Queiroz (1994: p.28-29), Adélia dialoga com Drummond. Ela parodia o “Poema das sete faces” drummondiano do livro De Alguma Poesia (de 1930): Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida. As casas espiam os homens que correm atrás de mulheres. A tarde talvez fosse azul, não houvesse tantos desejos. O bonde passa cheio de pernas: pernas brancas pretas amarelas. Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração. Porém meus olhos não perguntam nada. O homem atrás do bigode é sério, simples e forte. Quase não conversa. Tem poucos, raros amigos o homem atrás dos óculos e do bigode, Meu Deus, por que me abandonaste se sabias que eu não era Deus se sabias que eu era fraco. Mundo mundo vasto mundo, se eu me chamasse Raimundo seria uma rima, não seria uma solução. Mundo mundo vasto mundo, 1

Darly Nicolanna Scornaienchi, no livro Projeto Euro-Brasileiro (ver bibliografia), quando se refere a Carlos Drummond de Andrade, o faz com letra “P” maiúscula: “o Poeta”. Este é o único poeta a ter este tratamento em seu livro. “Carlos Drummond de Andrade, mineiro, de Itabira, estreou nas letras com o livro Alguma Poesia, em 1930. Há neste livro, bem como no Brejo das Almas, de 1934, um tom jocoso, um sorriso quase imperceptível do Poeta ao observar a fragilidade dos bens materiais, da vida. Em Sentimento do Mundo, José e A Rosa do Povo, fala com frequencia do aniquilamento do Homem pelo medo, pela solidão, pelo tempo, pela impossibilidade de lutar, de readir.”(pag. 242-3). Ainda: “Além das obras citadas, o Poeta compôs Poesia até agora, Novos Poemas, Viola de Bolso, Lição de Coisas, Boitempo.” (p.242-243). Também Vera Queiroz menciona que Carlos D. de Andrade é conhecido como “O POETA” (1994: p.28), em letras maiúsculas.

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mais vasto é meu coração. Eu não devia te dizer mas essa lua mas esse conhaque botam a gente comovido como o diabo.

É interessante notar que essa imagem do anjo que anuncia um nascimento é uma imagem muito utilizada pelos pintores góticos e do renascimento. Acredito que essa imagem passou a ser usada com mais força na poesia brasileira depois que foi utilizada por Drummond e ficou popularizada em seu “Poema das sete faces”. Isto podemos observar em um poema de Torquato Neto (musicado por Jards Macalé) “Let´s play that”, que começa assim: Quando eu nasci um anjo louco muito louco veio ler a minha mão não era um anjo barroco era um anjo muito louco, torto com asas de avião

Ou no início do poema de Chico Buarque de Hollanda intitulado “Até o fim”: Quando nasci veio um anjo safado O chato dum querubim E decretou que eu tava predestinado A ser errado assim Já de saída a minha estrada entortou Mas vou até o fim

Para além da imagem do anjo anunciador, a forte oposição entre ser homem e ser mulher domina o poema. A poeta se coloca no mundo, se apresenta, pede licença como um ser do sexo feminino informando seu espaço nas letras brasileiras e no mundo em que vive. Este poema é uma ode ao ser mulher e ser capaz de fazer tudo que os homens fazem, porém de maneira diversa. A figura do gauche de Drummond se relaciona à mulher desdobrável (mãe, esposa, professora, poeta) de Adélia. Adélia como que explica a diferença entre o ser feminino e masculino, explicitando estas diferenças. Essa relação entre o feminino e o masculino está bastante clara em uma passagem de Vera Queiroz:

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“Ao mundo masculino do gauche, conotado semanticamente em negatividade ('anjo torto'; 'vivem nas sombras'), opor-se-á um mundo feminino marcado por imagens de positividade: o anjo que anuncia seu nascimento é 'esbelto' e 'toca trombeta'. Se carregar bandeira é cargo pesado para mulher, ser coxo é igualmente pesado e por isso recusado como maldição tipicamente masculina” (Queiroz, 1994: p. 29).

Acredito que a linguagem de Adélia é de plurissignificância, como podemos ver na utilização da palavra bandeira no verso 3: pode relacionar-se a Manuel Bandeira ou a carregar a bandeira da procissão da irmandade. Seu diálogo com Drummond é claro e direto, ela parodia o “Poema das sete faces” para pedir sua licença e mostrar suas credenciais para tornar-se poeta. Sua linguagem é simples, natural, e a rima é inexistente. Sua métrica é livre e baseada na musicalidade de suas paradas dadas pelas vírgulas e pontos. Não há pontos de exclamação, interrogação ou reticências no poema, dando uma sensação de certeza e convicção sobre o que diz. O poema, em minha análise, se divide em três partes: do verso 1 ao 5, o anúncio do nascimento de alguém especial, uma mulher especial; do verso 6 ao 16, demonstra a condição do ser feminino; e do verso 17 ao verso 18 a diferenciação entre o ser mulher-poeta e o ser homem-poeta. Essa divisão se pode ver em termos de tempos verbais: nos versos 1 e 2 os verbos estão no passado, somente o anúncio do anjo remete ao futuro, e a condição de ser mulher e ter que carregar bandeira dos versos 3 ao 5 confirmam o nascimento da menina, esta espécie ainda envergonhada; do verso 4 ao 16 os verbos estão no presente, demonstrando com firmeza o que as pessoas na província pensam sobre as mulheres, e com que força os estereótipos sobre as mulheres se fazem, ainda hoje, presentes no interior brasileiro; e os versos 17 e 18 fecham o poema marcando a diferenciação no presente, apesar da frase Vai ser coxo na vida remeter a um futuro como coxo ou à fala de alguém (ex: Esse menino vai ser coxo na vida!). A contradição entre o homem e mulher dentro do poema tem um caráter jocoso, de uma ironia amigável, porém muito informativa. A lógica do poema é a anunciação do nascimento de uma poeta, reconhecimento do pesado fardo que terá que carregar a menina-poeta, a poeta enquanto mulher, e a relação do poeta-homem (Drummond) versus a poeta-mulher (Adélia).

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Há palavras dentro do poema que parecem “opôr-se”, como por exemplo: tristeza versus alegria, não tem pedigree versus ao meu mil avô, mulher feia versus a beleza do Rio de Janeiro. A meu ver, esse sentido de oposição de algumas palavras somente reforça as relações do masculino e feminino e as imagens dentro do poema. Como nos versos abaixo onde a alegria é tão profunda (como uma raiz de uma árvore antiga) e tão envelhecida de sabedoria como o seu mil avô: “Minha tristeza não tem pedrigree, / já a minha vontade de alegria, / sua raiz vai ao meu mil avô.” Assim, o assunto deste poema é não somente sua introdução ao mundo poético e aos poetas da tradição literária brasileira, mas, também, uma afirmação de que mulher pode ser poeta e fazer várias outras coisas. Aqui Adélia deixa claro que, mesmo compartindo da tradição poética nacional e reconhecendo seu valor, ela chegou para marcar seu lugar de poeta-mulher nas letras nacionais. Seu diálogo com a tradição não se resume ao fazer referências, mas ao expandir este diálogo e mostrar-se nele de uma maneira muito singular, muito própria. No livro Bagagem não é somente o poema COM LICENÇA POÉTICA que dialoga com e recebe influências de Drummond, há também o poema TODOS FAZEM UM POEMA A CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE; para Fernando Pessoa, o poema REZA PARA AS QUATRO ALMAS DE FERNANDO PESSOA; para Guimarães Rosa, o poema POEMA COM OBSERVÂNCIA NO TOTALMENTE PERPLEXAS DE GUIMARÃES ROSA; e para Castro Alves o poema BILHETE EM PAPEL ROSA. Esses são poemas com referências já nos títulos, mas muito se encontra sobre esses autores e outros (como Manuel Bandeira ou João Cabral de Melo Neto) no corpo dos poemas. O próximo poema que desejo analisar é o poema intitulado ROXO, tentando complementar a análise de Vera Queiroz sobre o uso das cores na poesia de Adélia Prado. A utilização das cores das maneiras mais variadas nos poemas de Adélia foi descrito por Vera Queiroz como que criando imagens que dão a sensação da utilização de vários sentidos ao mesmo tempo “...a cor e os sons se misturam na tentativa de criar uma imagem por similitude com o movimento” (1994: p. 72) - quando da análise do poema ANÍMICO.

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Aqui, tento complementar a análise das cores utilizando o poema com o título ROXO: 1 Roxo aperta. 2 Roxo é travoso e estreito. 3 Roxo é a cordis, vexatório, 4 uma doidura pra amanhecer. 5 A paixão de Jesus é roxa e branca, 6 pertinho da alegria. 7 Roxo travoso, vai madurecer. 8 Roxo é bonito e eu gosto. 9 Gosta dele o amarelo. 10 O céu roxeia de manhã e de tarde, 11 uma rosa vermelha envelhecendo. 12 Cavalgo caçando o roxo, 13 lembrança triste, bonina. 14 Campeio amor pra roxeamar paixonada, 15 o roxo por gosto e sina.

O roxo, ou a cor violeta, é o tema desse poema. A utilização de cores pode ser vista em vários poemas de Adélia Prado. As cores são categorias basicamente usadas no campo das artes visuais, porém Adélia as emprega como adjetivos, substantivos, verbos, e para compor novas palavras como podemos ver na análise do poema ROXO. O roxo a que se refere Adélia no poema se aplica a várias formas e pode ser interpretado de várias maneiras, sendo a mais nítida no poema, a cor de luto na religião católica. O verso 1 diz claramente que o Roxo aperta, aperta o peito de dor. O verso 2 mostra a qualidade de fechar, travar, estreitar. No verso 3 o roxo é a cordis, o próprio coração, e é vexatório, que nos causa vergonha. No verso 4 parece definir que roxo é a cor do amanhecer e como uma cor que nos deixa loucos. No verso 5, A paixão de Jesus é roxa e branca, a cor roxa se une à branca para referir-se ao tempo litúrgico da morte de Jesus, ou à paixão por Jesus. E essa morte de Jesus é o mais sublime da vida católica, a alegria eterna de morrer por seu irmão, no verso 6. No verso 7 o roxo é visto como trava, tranca, difícil, e que vai amadurecer, vai melhorar (talvez com o tempo). No verso 8 a poeta deixa claro seu gosto pela cor: Roxo é bonito e eu gosto. No verso 9 ela relaciona o roxo com o amarelo, personificando as cores como se fossem amigos. No verso 10 a poeta volta a dar a imagem do começo e do fim do dia em relação à cor roxa, tornando a cor um verbo, e compara, no verso 11, esse “roxear” a uma rosa vermelha morrendo. No verso 12, Cavalgo caçando o roxo, a imagem do cavalgar e caçar, uma imagem rural, pastoril, na busca da cor. De acordo com Antonio 53


Candido, “...o cavalo é o símbolo de força viril na literatura popular e erudita” (2008: p. 51). O verso 13, lembrança triste, bonina, se liga ao verso 12 pela memória triste, branca, pois bonina pode significar uma espécie de planta também conhecida por margarida. O verso 14, Campeio amor pra roxeamar paixonada, é uma composição complicada do verbo campear, que têm vários significados dependendo da região do Brasil, porém, o mais apropriado neste verso seria o de reproduzir, proliferar, espalhar-se pelos cantos; o verbo roxeamar é a conjunção de roxo e amar. Transcrevendo este verso poderemos ter: Espalho amor para roxeamar apaixonada, num sentido de que a poeta distribui amor e ama de uma forma apaixonada, roxa. Desejando assim o amor e amando roxamente, ela quer o roxo por gosto e sina. Pode-se notar, analisando a maneira como a poeta utiliza o adjetivo “roxo”, o processo de substantivação dos adjetivos. Por exemplo: Roxo aperta. / Roxo é travoso e estreito. / Roxo é a cordis, vexatório. Aqui a palavra “roxo” toma lugar de substantivo abstrato, o que se pode notar claramente se substituímos a palavra “roxo” por “amor”. Sintaticamente, a palavra “roxo” toma o lugar de sujeito da oração. Creio que este poema trata da relação do roxo enquanto cor com suas variantes conceituais de amor místico a Jesus e da alegria da morte e ressurreição deste. Relembro aqui, mais uma vez, a estátua de Bernini, Êxtase de Santa Teresa, que se vê arrebatada de amor pelo seu Deus, um arrebatamento de gozo místico. Também posso ver nesse poema, o uso de um linguajar imitativo dos habitantes pouco escolarizados da província, com a utilização da palavra doidura, e da forma das palavras sem a letra “a” inicial, como madurecer ou paixonada mostrando uma certa proximidade com as pessoas pouco escolarizadas do interior e com a religiosidade simples dessas pessoas. A poeta se utiliza de uma “simplicidade ao escrever” artificialmente construída para o bem da composição do poema. Essa simplicidade é um procedimento estilístico. Ela o utiliza tentando buscar o que há de especial no prosaico, no dia-a-dia, nas atividades diária de cada pessoa, no cotidiano de cada um, mesmo dos mais simples habilitantes da província.

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Detalhe de Santa Teresa de Bernini.

Vejo neste poema uma relação de amor com Jesus e para com a paixão de Jesus. O roxo lembra o amor e a vergonha da “virgem moça” de amanhecer ao lado do esposo amado, que recebe sua rosa vermelha a cada manhã e tarde. O cavalgar atrás de seu amado para encontrálo e morrer de amores por ele é sua sina e seu gozo. Este poema de Adélia está muito próximo dos escritos de Santa Teresa de Ávila, como podemos ler em Castelo Interior (ou Moradas) as instruções da santa às suas irmãs: “É coisa muito engraçada que ainda estejamos com mil embaraços e imperfeições e as virtudes que ainda não sabem andar, pois só há pouco começaram a nascer, e mesmo praza a Deus que estejam começadas; e não temos vergonha de querer gostos na oração e de nos queixarmos de aridez? Nunca isto vos aconteça, irmãs; abraçai-vos com a cruz que vosso Esposo tomou sobre Si e entendei que esta deve ser a vossa empresa. A que mais puder padecer, que padeça mais por Ele e será a que melhor se liberta. O resto, como coisa acessória, se vo-lo der o Senhor, dai-Lhe muitas graças.” (De Ávila, “Segundas Moradas”, versículo 7)1

Uma análise mais detalhada dos significados das cores mencionadas no poema talvez traga mais clareza para esta interpretação. Estão presentes no poema 4 cores: roxo, branco, amarelo e vermelho. A palavra “roxo” está mencionada 7 vezes dentro do poema de forma masculina e 1 vez de forma feminina. O verbos “roxear” e “roxeamar” têm estreita relação com a cor roxa. O dicionário de símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant define essas cores da seguinte maneira:

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Itálico meu.


Roxo: “Composed of equal proportions of RED and BLUE, violet is the colour of temperance, clarity of mind, deliberate action, of balance between Heaven and Earth, senses and spirit, passion and reason, love and wisdom.” e “...violet is the colour of secrecy since the invisible mystery of reincarnation [de Jesus Cristo] or at least of transformation takes place. This is why in medieval symbolic art Christ is depicted in a violet robe during his Passion.” (Chevalier e Gheerbrant, 1996: p. 1068-1069) Branco: Like its opposite colour, BLACK, white can stand at either end of the spectrum. Absolute in itself, with only the variations of mattness or gloss, it can signify either the absence of colour or the sum of all colours. Thus it is set sometimes at the start and sometimes at the finish of daily round and of the manifested world, which endows it with ideal and asymptotic properties. However, the finish of life – the instant of death – is also the moment in which we cross the bridge between the visible and the invisible and is therefore another starting-point.” (idem, p. 1105)

Amarelo: “Yellow is the hottest, the most expansive and the most burning of all colours in its intensity, violence and almost strident shrillness; or else it is a broad and as dazzling as a flow of molten metal, being hard to put out and always overflowing the limits which one tries to confine it” e “Since gold yellow is part of the divine essence, on Earth it became the attribute of the power of princes, kings and emperors and proclaimed the divine source of that power.” (idem, p.1137)

Vermelho: “Red, the colour of FIRE and of BLOOD and regarded universally as the basic symbol of the life-principle, with its dazzling strength and power, nevertheless possesses their same symbolic ambivalence; speaking visually, this doubtless depends upon whether the red is bright or dark. Bright, dazzling, centrifugal red is diurnal, male, tonic, stimulating activity and, like the Sun, casting its glow upon all things, with vast and irresistible strength. Dark red is its complete opposite. It is nocturnal, female, secret, and, ultimately, centripetal and stands, not for manifestation, but for the mystery of life.” (idem, p. 792)

O simbolismo das cores nos leva a confirmar a conclusão de que o poema ROXO é um poema de amor místico a Jesus Cristo; sendo o roxo a cor da reencarnação de Cristo, no poema aparece claramente no verso 5: A paixão de Jesus é roxa e branca. O branco representa o fim da vida e o começo de outra fase, também ligado à reencarnação de Jesus. O vermelho pode ser visto no verso 11 ligado a uma rosa que chega à noite de seus tempos: uma rosa vermelha envelhecendo. A rosa representando o cálice da vida, a alma, o coração, o amor, ou as chagas de Cristo (idem, p. 813). Podemos classificar este poema de Adélia Prado como sendo um Madrigal (poema breve do tipo amoroso) a seu amado Jesus Cristo, onde a cor roxa é o símbolo de seu amor, Jesus crucificado, uma cor de grande valor místico. O ritmo do poema é dado pela anáfora, a repetição da palavra “roxo” no começo dos versos, terminando com a declaração de amor ao

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seu amado. A anáfora acontece nos versos 1, 2, 3, 7, 8 e 15 com o artigo “o”. Também há outros poemas de Adélia no livro Bagagem que utilizam cores nas mais diversas maneiras. Contei, pelo menos, 14 poemas onde cor é um elemento importante na composição do poema. Aqui dou algumas passagens desses poemas: UM SONHO - “O meu cabelo limpo refletia vermelhos, / o meu vestido era num tom azul, cheio de panos, lindo, / o meu corpo era jovem, as minhas pernas gostavam / do contato da seda.” Ou: AMOR FEINHO - “Planta beijo de três cores ao redor da casa / e saudade roxa e branca, / da comum e da dobrada.” Ou ainda: LOUVAÇÃO PARA UMA COR - “O amarelo faz decorrer de si os mamões e sua polpa, / o amarelo furável. /... / O amarelo engendra.” Trabalhando ainda no campo da sensorialidade nos poemas de Adélia, desejo analisar o poema de nome muito sugestivo: SENSORIAL 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12

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Obturação, é da amarela que eu ponho. Pimenta e cravo, mastigo à boca nua e me regalo. Amor, tem que falar meu bem, me dar caixa de música de presente, conhecer vários tons pra uma palavra só. Espírito, se for de Deus, eu adoro, se for de homem, eu testo com meus seis instrumentos. Fico gostando ou perdôo. Procuro sol, porque sou bicho de corpo. Sombra terei depois, a mais fria.


O primeiro verso começa já na boca, onde temos o paladar. O amarelo se ajusta ao sentido da visão. O verso 2 mostra condimentos que não somente ativam o paladar, mas também o olfato. O verso 3 complementa o verso 2 dando relevância à expressão à boca nua, que aguça a sensação do paladar. Os versos 4, 5 e 6 se referem à audição e ao que a poeta gostaria de ouvir de seu amado. Os versos 7 e 8 se referem ao espiritual (o que não se pode sentir com os cinco sentidos) e ao humano (sensível ao corpo humano). O verso 9 mostra que a poeta utiliza os cinco sentidos (audição, paladar, tato, olfato e visão) mais um sentido que eu chamaria de “espiritual”; com estes “seis instrumentos” ela testa o que é humano. No verso 10 ela aprova ou desaprova o que sentiu. Os versos 11 e 12 dão a visão da corporeidade do eu lírico, com o sol que aquece o corpo, ou o Espírito Santo que aquece a alma, e a sombra fria da morte da lápide que a cobrirá mais tarde, no fim da vida. Porém, enquanto está viva, a poeta sente com seus “seis sentidos”. Vejo que nesse poema não há nenhuma rima. Também, analisando os poemas do livro Bagagem, pode-se notar que não encontramos o uso de rimas nos poemas adelianos. A rima não é uma das ferramentas de que se utiliza Adélia para compor seus poemas. Este é um bom poema para ser recitado, pois é expressivo, simples no seu linguajar e de muita naturalidade expressiva. A intenção do poema, a meu ver, é deixar claro o valor dos 6 sentidos de que dispõe a poeta, um valor para além do sensorial, um valor criativo que se inspira no uso dos sentidos e que vai além deles. O poema, a meu ver, se divide em: Versos 1 ao 3 se referem ao paladar e olfato; os versos 4 ao 6 se referem à audição; os versos 7 ao 10 mostram a referência do espiritual versus o humano, sendo o espiritual um outro “sentido”; os versos 11 e 12 se referem ao tato, de sentir o sol e a sombra na pele, da vida (sol, luz) e da morte (sombra, fria), e de certo modo ao espiritual, à passagem da vida ao abandono no Espírito Santo. Uma figura de linguagem que se nota muito comumente nas poesias de Adélia Prado é a sinestesia. A poeta relaciona planos sensoriais diferentes para formar suas imagens. Um exemplo disto seria: Obturação, é da amarela que eu ponho. / Pimenta e cravo, / mastigo à

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boca nua e me regalo. Todos sabemos que esses condimentos não são usados somente por seus sabores, mas principalmente pelos seus efeitos aromáticos, assim a poeta mescla paladar e olfato. Utilizo aqui uma passagem de Vera Queiroz sobre o poema LOUVAÇÃO À UMA COR, onde a autora demonstra a utilização da sinestesia por Adélia: “O processo sinestésico concentra as sensações do tato ('amacia', 'furável'), da visão ('luminoso', 'pura luz') e auditivas ('flauta encantada', 'oboé').” (Queiroz, 1994: p.73)

Essa utilização dos 5 sentidos nos poemas é uma constante na obra de Adélia e se pode verificar em outros poemas de Bagagem, tais como nas partes de poemas abaixo: GRANDE DESEJO – “Quando dói, grito ai, / quando é bom, fico bruta, / as sensibilidades sem governo. /Mas tenho meus prantos, / claridades atrás do meu estômago humilde / e fortíssima voz para cantos de festa.”

Ainda em:

A FLOR DO CAMPO – “Mais que a amargosa pétala mastigada, / seu aspro odor e seiva azeda, / a lembrança atingida das camadas do sono:”

E em:

MODINHA – “A alma dele zoando de tão grave, tocável / como o ar de sua garganta vibrando. / No juízo final, se Deus permitisse, / eu acordava um morto com este canto, / mais que o anjo com sua trombeta.”

O próximo poema a analisar é ANTES DO NOME, onde a poeta fala de seu modo de fazer 59


poesia: ANTES DO NOME 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12

Não me importa a palavra, esta corriqueira. Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe, os sítios escuros onde nasce o “de”, o “alias”, o “o”, o “porém” e o “que”, esta incompreensível muleta que me apóia. Quem entender a linguagem entende Deus cujo Filho é Verbo. Morre quem entender. A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda, foi inventada para ser calada. Em momentos de graça, infrequëntíssimos, se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão. Puro susto e terror.

No verso 1 pode-se notar a preferência pela palavra não-corriqueira, a palavra não usada no seu sentido “normal”, mas transformada, esvaziada de sentido e depois cheia com um sentido novo. No verso 2 a poeta diz que a sintaxe emerge de um caos esplêndido, tendo a sintaxe a função de especificar a estrutura interna e o funcionamento das palavras e frases. O caos aqui parece dar a idéia de desordem, de instabilidade, de multiplicidade desorientada de palavras. No verso 3 vemos que as palavras nascem, segundo a poeta, em sítio escuros, incertos, instáveis. A preposição “de”, que tem a função de ligar duas palavras. O advérbio “alias” de origem latina, que dá uma imagem de adição. No verso 4 a letra “o” se mostra em suas múltiplas funções, que pode ser de artigo definido masculino singular (localizador, demarcador), ou substantivo (caso do tipo sangüíneo), pronome pessoal ou pronome demonstrativo; e o “porém”, que pode ser conjunção ou substantivo; e o “que”, que pode ter função de substantivo, adjetivo, pronome, conjunção ou advérbio. Nos versos 4 e 5 a poeta fala que essas palavras são as muletas que a apóiam, ou seja, essa multiplicidade de usos (talvez daí a idéia de caos) lhe dão ferramentas bastantes (sintaxe) para seu trabalho de compor poemas. Os versos 6 e 7 comparam a função católica do Verbo, Jesus Cristo, ao mecanismo de funcionamento da linguagem, esse mecanismo instável e incerto. Ou seja, quem entender completamente este mecanismo, poderá entender o Verbo, e este morrerá, conforme o final do verso 7. No verso 8, onde a poeta diz que A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda, se refere aos significados que as palavras podem ter e às suas várias utilidades. O silêncio da palavra surda-muda pode ser lido como o silêncio antes da Criação do mundo (Chevalier e Gheerbrant: 1996, p. 882), metaforicamente antes da criação 60


do poema. O verso 9 completa o 8: foi inventada para ser calada. Assim as palavras em “estado de dicionário” não representam nenhum “perigo”, mas quando utilizadas, podem tornar-se “fatais”, por isso devem ser caladas1. Nos versos 10 e 11 vejo uma ligação mística católica do “estado de graça”2 e o uso preciso das palavras: Em momentos de graça, infrequëntíssimos, / se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão. Esses momentos de graça são momentos quando se pode compor poemas utilizando-se as palavras de maneira singularíssima e adequadamente. Aqui a metáfora do peixe vivo na mão mostra a força da infreqüência deste estado de graça para compor poemas. Podemos notar a forma mística da utilização da palavra “graça”. Na oração, a palavra de origem latina aparece: Ave Maria, gratia plena. A meu ver, este tipo de graça (gratia) a que se refere Adélia, um quase-milagre momentâneo, medido com o lapso de tempo da palavra “infreqüentíssimo”, superlativo de infreqüente, comparada a um peixe vivo que quer escapar da mão, escorregadio, movimentando-se sem parar. O verso 12 fecha o poema: Puro susto e terror. Susto por não saber como reagir e terror pelo medo de matar o peixe, ou pelo “temor a Deus”. Este poema de Adélia dialoga, a meu ver, com o poema de Drummond chamado “A procura da poesia”3. Aqui trascrevo parte dos poemas: Penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam ser escritos. Estão paralisados, mas não há desespero há calma e frescura na superfície intata Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário. Convive com teus poemas, antes de escrevê-los. Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam. Espera que cada um se realize e consuma com seu poder de palavra e seu poder de silêncio

Onde Adélia responde: 1

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Sartre cita Heidegger dizendo que “...silence, in the words of Heidegger, is the authentic mode of speech. Only he who can talk keeps silence.” (2007: p.87). "Estado de graça" - É a condição do fiel após a confissão sacramental e sua aversão ao pecado.”Ou seja, um estado de sem-pecado. Definição dada no website http://www.carmelosantateresa.com/links/indulgencias.htm das Irmãs Carmelitas Descalças. Transcrevo todo o poema de Drummond como Anexo 1 no final desta tese.


Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe, os sítios escuros onde nasce o “de”, o “alias”, o “o”, o “porém” e o “que”, esta incompreensível muleta que me apóia.

Vejo que, se lemos os dois poemas comparativamente, a atitude de Adélia se nota mais corajosa e mais desbravadora de limites das palavras. O poema de Adélia, como o de Drummond são, em realidade, metapoemas, pois refletem abertamente sobre o fazer poético e se debruçam sobre este fazer como tema para estes poemas. Utilizo uma passagem de Vera Queiroz sobre este poema de Adélia para melhor clarificar os significados dos últimos versos do poema: “Construído na quase literalidade comum aos metapoemas, há nele um verso, porém, que atualiza formalmente o que o sujeito anuncia como desejo maior: a sintaxe. No penúltimo verso ('se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão'), a inversão abrupta do sintagma 'com a mão' reproduz o instante mesmo em que a iluminação poética se dá: a frase desliza e quebra-se para a inserção do sintagma 'peixe vivo' (metáfora de poesia), que surge na cadeia sintagmática como instantaneidade, visto que a frase se completa sintaticamente com o que lhe segue. O verso ratifica a idéia de fulguração, como é compreendida a poesia.” (Queiroz, 1994: p.45).

Noto que o simbolismo do peixe vivo como metáfora para poesia pode ser lido em relação ao elemento onde os peixes vivem, a água; elemento este sempre móvel, mesmo quando parece que está parado, pode relacionar-se com os múltiplos usos das palavras e suas instabilidades de significados. Como sabemos que Adélia Prado utiliza os símbolos cristãos em sua poesia, fui buscar no dicionário de símbolos de Chevalier e Gheerbrant a significação do peixe para a religião católica: “The fish has provided Christian artists with a wealth of iconography. Carrying a ship upon its back, it symbolizes Christ and his Church; lying upon a plate with a basket of bread upon it, it stands for the Eucharist; while in the Catacombs it is Christ himself.” (Chevalier e Gheerbrant, 1996: p. 384).

Assim, podemos ver que o uso do peixe não é gratuito. Adélia mede as palavras que utiliza para buscar imagens e sentidos singulares. A referência ao “Verbo”, à “graça” e ao “peixe” somente nos remetem ao campo da doutrina católica, que ela vai ligar ao mecanismo do fazer poético. Quem descobre como funciona este mecanismo, descobre a Deus, e morre como conseqüência de tamanho “abuso”. Aqui vemos como as palavras somente não bastam para dar o sentido ao poema. Elas não conseguem traduzir tudo o que se sente e se deseja transmitir. É desse caos de palavras embaralhadas e fora do lugar que o poeta deve buscá-las e 62


colocá-las em ordem (ou até evitá-las), dando-lhes vida na composição do poema. Também, noto que enquanto Drummond mostra uma atitude mais calma em relação ao fazer poético, Adélia tem uma atitude mais ativa, tentando segurar o peixe (a poesia) com a mão, tentando ter controle sobre a feitura de seus poemas enquanto a poesia “insiste feito água no fundo da mina, levantando morrinho de areia” (trecho do poema TABARÉu), viva como um peixe. A poesia de Adélia é como um ser pulsante, vivente, incontrolável. O poema se estrutura, na minha visão, da seguinte maneira: dos versos 1 ao 5 a poeta diz o que deseja: a sintaxe; e dos versos 6 ao 12 ela demonstra o que sabe sobre o mecanismo de funcionamento da sintaxe, comparando-a com o reino divino. Assim, o poema, que vejo dividido em duas partes, metaforiza a maneira de usar as palavras para compor um poema com a maneira de funcionamento do reino dos céus. Como o nome do poema já diz, ANTES DO NOME há que saber como fazê-lo, ou seja, antes de dar o nome há que buscar o mecanismo de feitura do poema. Em outros poemas do livro Bagagem Adélia se refere ao ato de escrever e fazer poesia. Alguns trechos destes poemas destaco embaixo: O QUE A MUSA ETERNA CANTA - “...letras eu quero é pra pedir emprego, / agradecer favores, / escrever meu nome completo. / O mais são as mal-traçadas linhas.” Ainda: EXPLICAÇÃO DE POESIA SEM NINGUÉM PEDIR – “Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica, / mas atravessa a noite, a madrugada, o dia, / atravessou minha vida, / virou só sentimento.” E o seguinte: TABARÉU – “Porque, mercê de Deus, o poder que eu tenho / é de fazer poesia, quando ela insiste feito / água no fundo da mina, levantando morrinho de areia.” E por último: 63


O MODO POÉTICO – “Muito maior que a morte é a vida. / Um poeta sem orgulho é um homem de dores, / muito mais é de alegrias.” O metapoema, de caráter mais analítico sobre a própria maneira que o poeta tem de conceber seus poemas, é sempre uma reflexão sobre o fazer poético. Outras formas de reflexão com características mais pessoais, ou seja, poemas que falam sobre a própria vida da poeta e suas criações imagéticas sobre sua vida, podem ser encontrados, também, na obra de Adélia Prado. Continuando a analisar os poemas de Prado, passamos, agora, à analise de um poema de caráter mais pessoal, a próxima análise busca as influências das memórias da poeta e das falas inseridas em sua poesia. O aspecto da utilização da memória como fonte para seus poemas me servirá, mais adiante, quando das relações à obra de Lygia Clark. Para isso quero analisar o poema embaixo: ENSINAMENTO 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Minha mãe achava estudo a coisa mais fina do mundo. Não é. A coisa mais fina do mundo é o sentimento. Aquele dia de noite, o pai fazendo serão, ela falou comigo: “Coitado, até essa hora no serviço pesado.” Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente. Não me falou de amor. Essa palavra de luxo.

Os versos 1 e 2 se completam para dar idéia à toda a oração. Esses versos mostram que a mãe de Adélia valorizava muito a instrução escolar. O verso 3 é a resposta direta da poeta aos versos 1 e 2, e mostra o seu “descontentamento” em relação às idéias da mãe. O verso 4 diz claramente o que é a coisa mais fina do mundo para a poeta: sentimento. Os versos 5 ao 8 mostram as atividades diárias da mãe e a piedade da mãe em relação às horas prolongadas de trabalho do pai. No verso 7 a inclusão da fala materna como matéria poética: Coitado, até essa hora no serviço pesado. Os versos 9 e 10 mostram a resposta mental de Adélia, sua reflexão sobre o fato familiar, sua “surpresa” com a mãe por não falar em sentimentos, mas somente nas atividades práticas da vida. A poeta vê “amor” como uma palavra de luxo, pronunciada poucas vezes por sua mãe, pouco usada na fala materna. As tensões “estudo

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versus sentimento” e “amor versus praticidade” marcam o poema e deixaram marcas na memória da poeta. Porém, a praticidade da mãe pode ser vista como um ato de amor. A mãe não fala de amor, porém faz amor. A mãe cumpre suas atividades diárias com o amor que não sabe dizer. Analisando o poema vejo que se trava um diálogo entre a memória da poeta em relação à sua mãe, como se fosse a própria mãe, e suas próprias respostas e pensamentos. Divido o poema como um diálogo: versos 1 e 2, a mãe “fala” via a memória de Adélia; versos 3 e 4, Adélia responde em pensamento; versos 5 ao 8, Adélia relembra as atividades da mãe e transcreve sua fala diretamente; e nos versos 9 e 10, Adélia responde em pensamento: Não me falou de amor. / Essa palavra de luxo. Todo o poema funciona como um diálogo da memória da poeta, diálogo de profunda intensidade, emotividade e subjetividade. O fato de transcrever diretamente a fala da mãe no verso 7 nos leva ao que falamos sobre a tagarelice mencionada por Vera Queiroz. No entanto, eu acredito que, não somente a tagarelice das mulheres está incluída nos poemas de Adélia, mas também as frases proferidas pelos pais como ensinamentos de vida, as próprias “falas da poeta” enquanto transcrições da memória, e a fala dos conhecidos fazem parte deste repertório de falas reportadas nos poemas. Exemplos disto são vistos em outros poemas, como, por exemplo, em AS MORTES SUCESSIVAS: “Deixa, tá bom assim” (a fala paterna), ou em TODOS FAZEM UM POEMA A CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE: “Por que não nasci eu um simples vaga-lume?” (a própria escrita de seu antigo caderno de versos), e em VIGÍLIA: “...as bodas de prata / do homem que fala sempre: “Qual é meu erro que / a minha vontade é estar morto?”. Acredito que as falas transcritas nos poemas de Adélia não são somente as falas da tagarelice das mulheres interioranas (como afirma Vera Queiroz), mas que vários outros tipos de falas, as falas que marcaram suas memórias mais íntimas, seus sentimentos para com os seus pais e conhecidos e as falas dos momentos importantes de sua vida, se deixam ler nos poemas adelianos. Parece-me que a memória de Adélia se dá pela fala, pela oralidade que se coloca no poema. Suas frases repetidas não são somente versos para compor o poema, mas trazem em sí

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algo “intraduzível” a nível de sentimentos que remetem à memória oral da poeta. Utilizo uma passagem de Margarida Salomão que ajudará a compreender este ponto: “Em Adélia Prado, a fala não é reportada: comparece concreta/faz parte da vida. O mundo, que a linguagem evoca, não é refletido: existe como própria linguagem.” (Salomão, IN Prado, 1976/1979: p.13).

Há uma demonstração de “um certo descontentamento” em relação à frieza da mãe em relação a falar sobre sentimentos. Essa certa tristeza, ou descontentamento, se vê nos poemas de Adélia como essa dor que não é amargura. Em vários poemas as palavras “dor”, “choro” e o verbo “chorar” aparecem. Isto se pode ver em poemas como: ATÁVICA: “Mas eu vim pra cidade fazer versos tão tristes / que dão gosto, meu Jesus misericórdia. / Por prazer da tristeza eu vivo alegre”; ou em TARJA: “É necrofilia não, é simpatia, dor / que aos domingos me adula, açula um galo, / o gosto da melancolia”; e como último exemplo, em TOADA: “Cantiga triste, pode com ela / é quem não perdeu a alegria”. Esta luta entre alegria e tristeza se nota claramente nos poemas de Adélia Prado. Os dois últimos versos do poema são muito interessantes para esta análise, pois mostram a correlação feita pela poeta entre palavra e sentimento. Os versos Não me falou de amor. / Essa palavra de luxo mostram uma inversão. Os versos poderiam ter sido escritos assim: Não me falou a palavra amor, esse sentimento de luxo. A meu ver, podemos verificar nesses últimos versos do poema que sentimento e palavra andam juntos, compartilham do mesmo reino explorado por Adélia, posso, ainda, dizer que são iguais em seu nível de pensamento. Ela deixa claro que é com palavras que os sentimentos se exprimem e, ainda mais, que não há sentimento sem palavras, sendo as palavras o meio privilegiado de exprimir sentimentos. Talvez por isso Adélia utilize tanto as falas dos seres mais amados em seus poemas, pois é reportando suas falas que ela demonstra que os ama, utilizando suas próprias palavras. As rimas neste poema são inexistentes, a métrica é livre e o poema se utiliza de um imaginário bastante ligado à vida provincial, como se pode ler no verso: Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente. 66


Vemos que tudo na poesia de Adélia Prado nos remete ao reino da memória, das sensações mais puras do convívio familiar do interior brasileiro, da aparente existência das frases faladas por seus entes-passados, da vida interiorana e de sua específica mística (mescla de erotismo e religiosidade) que a aproximaria da de Santa Teresa de Ávila, e do existir no mundo com suas dores, choros, melancolias, tristezas e alegrias. Sua utilização de palavras se demonstra ao nível do pavor (como pegar um peixe com a mão), do místico (do roxo que demonstra a paixão de seu Cristo amado), da tradição (em seu diálogo com outros poetas), da singularidade de sua obra em relação à esta tradição, da metalinguagem, da memória e do memorável em sua vida (representado pelas falas de outras pessoas). Analisar a obra de Adélia, é analisar uma obra de grande teor dramático e sinestésico, onde, na vida cotidiana, as alegrias e tristezas se misturam, mostrando os dilemas de cada dia, procurando buscar os atos, as facetas das coisas e dos sentimentos, as mesclas dos sentidos e todos os aspectos do mundo material (existencial) e espiritual (místico).

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6- Análise das obras de Lygia Clark do final da década de 1960 e começo da década de 1970: Gostaria de começar este análise das obras de Lygia Clark utilizando uma passagem de Edward J. Sullivan que sumariza alguns momentos importantes da obra da artista: “After creating a series of hard-edge abstract paintings, such as Egg (1959), Clark moved on to produce three-dimensional metallic sculptures. In her Trepantes of the 1960s, she combined metal and wood, setting up a series of correlations between the two surfaces and textures. Also from the 1960s, Bichos – free-form objects that may be installed anywhere and in any configuration chosen by the viewer/participant – combine hints of living, breathing beings with the coolness of metal. Clark's later work reflects her practice as a psychotherapist. For example, she created articles of clothing that could be worn and used to temporarily alter the personality of the wearer. In participatory works such as these, Clark reached far beyond conventional definitions of art.” (Sullivan, 2002: p. 452)

A passagem anterior mostra várias fases da carreira de Lygia, sendo que a fase que mais nos interessa para este trabalho é a do período de finais dos anos 60 de começos dos anos 70, período em que exerce suas atividades na Sorbonne como “propositora”1 de sensibilizações dos participantes de seus projetos artísticos. Vale mostrar aqui, para a melhor compreensão do leitor, o background da artista e as fases de seu trabalho, antes de começar a analisar algumas obras.

Ovo, 1959. Tinta industrial sobre madeira, dimensão diagonal 33 cm. Col. Adolpho Leirner.

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Lygia Clark não se definia como artista, mas como propositora.


Clark, formada dentro da tradição do movimento concreto brasileiro dos anos 1950s, se distancia dos concretistas paulistas para juntar-se ao grupo carioca que se chamou de Neoconcretos. Este novo movimento era formado principalmente pelos seguintes artistas: Lygia Clark, Hélio Oiticica, Lygia Pape, Franz Weissmann, Amilcar de Castro, Ferreira Gullar e Mário Pedrosa. Clark como todos os artistas que assinaram o Manifesto Neoconcreto, estava insatisfeita com o racionalismo geométrico dos artistas concretos paulistas e decidiu concentrar suas pesquisas na direção de uma arte mais humana e menos convencional em relação ao mercado da arte. Utilizo aqui parte do Manifesto Neoconcreto (1959), escrito pelo poeta Ferreira Gullar, onde ele mostra esta insatisfação dos artistas cariocas com os procedimentos racionalistas concretos: “O racionalismo rouba à arte toda a autonomia e substitui as qualidades intransferíveis da obra de arte por noções da objetividade científica: assim os conceitos da forma, espaço, tempo, estrutura – que na linguagem das artes estão ligados a uma significação existencial, emotiva e afetiva – são confundidos com com a aplicação teórica que deles faz a ciência.” (Gullar, IN Ades, 2002: p. 336)

Essa não-adesão dos neoconcretos cariocas aos padrões formais precisos e mecânicos dos concretos paulistas foi o ponto de partida para a organicidade das obras de Lygia Clark e a participação ativa do espectador, agora transformado em participante da obra. Essa ruptura entre o concretismo e o neoconcretismo teve seu fundo intelectual baseado no humanismo das novas teorias da percepção e em uma ontologia que distanciava o homem do cientificismo concreto. Aqui uso uma passagem de Ronaldo Brito que mostra essa separação intelectual: “Foi sem dúvida em torno da linguagem (visual e literária) que se estabeleceram os pontos centrais da polêmica concretismo-neoconcretismo. De certo modo, o último deslocou o eixo das preocupações concretistas neste sentido. Passou-se da semiótica saxônica (Peirce1) e da teoria da informação (Norbert Wiener 2) para a filosofia mais 1

Charles Sanders Peirce (1839-1914). Filósofo da ciência e da língua Norte-Americano. Pierce foi uma das figuras fundadoras do Pragmatismo. Ele é conhecido pelos seus trabalhos no campo da semiótica, onde aplica a relação entre Signo, Objeto e Interprete. “...he has permanent importance as the founding figure of American pragmatism, perhaps best expressed in his essay 'How to Make our Ideas Clear” (1878)” (Blackburn, 2006: p. 271). 2

Norbert Wiener (1894-1964). Fundador da Cibernética e propositor do slogan “A organização é a mensagem”. “Na metáfora à qual dedico este capítulo, o organismo é visto como uma mensagem. O organismo se opõe ao caos, à desintegração, à morte, como a mensagem ao ruído. Para descrever um organismo, não tentamos especificar cada uma de suas moléculas, catalogando-as uma a uma, mas antes responder a certas questões sobre a aestrutura, o seu padrão (pattern): um padrão que é mais significante e menos provável à medida que o

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especulativa (Merleau-Ponty e Suzanne Langer1); passou-se do âmbito da rigorosa manipulação dos elementos discretos para uma área que, sem renegar de todo esses postulados, recolocava questões ontológicas no centro das teorizações sobre a linguagem.” (Brito, 1985: p.55).

Não podemos negar que a obra de Lygia Clark se voltou para os aspectos mais ontológicos do fazer artístico. A inserção essencial do participante, em oposição à contemplação do espectador, foi fato singular em sua obra. Outro importante ponto a mencionar é que Lygia Clark firma o Manifesto Neoconcreto escrito por Ferreira Gullar e efetivamente utiliza as bases ideológicas deste manifesto em sua arte. Também, Ferreira Gullar, neste manifesto, se desvincula da poesia concreta e busca novas bases para o campo literário neoconcreto. Agora, detendo-nos mais precisamente sobre a obra de Lygia Clark, podemos analisar algumas de seus projetos do final da década de 1960 e da primeira metade da década de 1970. Para melhor compreender esta fase da carreira de Clark utilizo uma passagem de Maria Alice Milliet que traduz as questões básicas exploradas por Clark nos principios dos anos 70: “A dialética básica de Clark é a tensão entre o dentro e o fora, o eu e o outro, o intelecto e o sensório, o prazer e a realidade. À arte como consolo, como refúgio, como prazer sublimado, contrapõe a criação como liberdade do reprimido, como corpo ressurrecto em agenciamento coletivo” (Milliet, 1992: p. 109).

Esta passagem mostra a importância das relações entre as proposições de Clark e os participantes, numa liberdade total para o autoconhecimento e adequação a si mesmo. Não se reprimem os atos, mas, em contrapartida, estimula-se a vivência sensorial dos participantes. Esta fase de instrução sensorial na Sorbonne, onde os experimentos artísticos se ligam a um grupo de pessoas ou “corpo coletivo”, é a continuação da fase que se chamou “nostalgia do corpo”, onde objetos manufaturados eram transformados e usados para exercícios de sensibilização. Esses objetos eram os mais simples possíveis (ex: luvas, óculos, cintos, sacos organismo se torna, por assim dizer, mais organismo.(Aqui poderíamos ainda inserir uma aproximação justificada com a psicologia da gestalt.)” (IN Pignatari, 1997: p.13). Ver Bibliografia. 1

Susanne K. Langer (1895-1985). Filósofa da arte que atribui valor símbólico às emoções humanas no campo da arte. “...a pensadora norte-americana acha que o homem usa os símbolos para organizar e obter seus conhecimentos do mundo e ao mesmo tempo criar uma sensação de segurança com estes conhecimentos. Por outro lado, a atividade simbólica do homem pode fornecer dados importantes para o seu próprio comportamento mental, implícito a interpretação da criação arística [como é o caso da música para Langer], pois a arte foi a primeira manifestação humana tida como simbólica.” (Brasil, 1984: p. 203).

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plásticos, entre outros) e não eram considerados como obras de arte, mas eram voltados à percepção sensorial do(s) participante(s). Um desses objetos, da série “roupa-corpo-roupa”, de 1967 é O Eu e o Tu. Essa vestimenta, projetada para um homem e uma mulher, é composta por dois macacões de material plástico ligados entre sí, com zíperes e com máscaras onde não há viseiras. Os participantes devem, através do toque mútuo, do olfato e da audição explorarem os “corpos” um do outro. A desorientação espacial provocada pela vestimenta faz com que os participantes descubram uma nova posição no mundo, além de necessitarem-se mutuamente, pois estão ligados. Os participantes “...sentem-se a si mesmos como carência do outro; e para superarem esta expiação, movidos pela fome da comunhão, atiram-se ao mundo externo procurando no encontro o esquecimento da solidão” (Fabbrini, 1994: p.119). No momento inicial do contato, os participantes, através do tato, encontram o corpo do parceiro(a). A partir daí começam as descobertas mais íntimas através da abertura dos zíperes e do contato com o corpo do outro. Esse contato direto com a corporeidade do outro, matéria que se diferencia da minha, volta-se para o indivíduo como consciência de seu corpo que se relaciona com outro corpo. O corpo é receptáculo e doador do toque, mostrando não somente a exterioridade do outro mas também a minha em relação ao outro. Nesta proposição de Lygia há uma busca de relacionamento e correspondência com o corpo do outro, há a descoberta da realidade pungente da própria vida através do contato com o corpo do outro. Esta proposição trata de reforçar a própria conscientização enquanto pessoa humana, fazendonos refletir sobre nós mesmos, sobre o outro, sobre nossa realidade existencial, sobre a realidade do outro e sobre o meu comprometimento em relação ao outro no mundo. Há aqui uma “dor” da procura e da busca do outro, e uma “alegria” de encontro ou reencontro com o outro. Há, também, a realidade da relação entre o feminino e o masculino, e as carícias com seus aspectos sentimentais e de abertura emocional para com o outro. As máscaras, que não permitem a visão, fazem com que a interiorizarão das sensações percebidas através desta proposição sejam mais fortes. O não-ver faz com que dependamos

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mais dos outros sentidos, que valorizemos mais as outras formas de experimentar os outros e nós mesmos, e que confiemos mais nos outros sentidos (que não sejam a visão) como formas de conhecimento do mundo exterior. Assim como a proposição O Eu e o Tu, as preposições Cesariana (1967) e A Casa é o Corpo: Labirinto (1968) lidam com a noção do próprio corpo como objeto sensorial e como depositório de memórias e experiências.

O Eu e o Tu, 1967.

A proposição A Casa é o Corpo: Labirinto (1968) é uma instalação-labirinto onde o participante volta ao útero da mãe, mas desta vez de maneira consciente e reflexiva. Esta instalação foi montada no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro em 1968 e na Bienal de Veneza, também em 1968. A utilização destas instalações que criavam ambientes era muito usual para os artistas conceituais da época. Desta mesma época é também a famosa instalação de Hélio Oiticica chamada Tropicália. Uso, aqui, uma passagem de Milliet onde ela descreve a instalação de Clark: “Em 1968, é criada uma ambiciosa instalação chamada A Casa é o Corpo para ser penetrada pelo visitante como 'abrigo poético'. Passando por compartimentos [que somavam em total 8 metros de comprimento] chamados 'penetração', 'ovulação', 'germinação' e 'expulsão', o indivíduo é levado a experimentar sensações táteis, de perda de equilíbrio, de deformação, resgatando a vivência intra-uterina..” (Milliet, 1992: p.111)

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Reparo que a criação desta instalação marca um momento importante na carreira de Lygia Clark: a busca das sensações regressivas. Ela cria a instalação A Casa é o Corpo: Labirinto visando resgatar as sensações do processo de formação sensorial dentro da barriga de nossas mães. É na busca de um processo regressivo de vivências passadas que Lygia Clark instala suas pretensões. Se começamos nossa caminhada de seres humanos experimentando sensações dentro do corpo de nossas mães, por que não revivenciar (reviver, relembrar) estas sensações? Os vários objetos utilizados por Clark nesta instalação (como as mucosidades, as protuberâncias e a amorfia dos materiais) tendem à simulação do processo reprodutivo humano e às nossas vivências durante este processo.

A Casa é o Corpo: Labirinto. De 1968.

Transcrevo aqui a explicação que Lygia Clark dá sobre a preposição A Casa é o Corpo: Labirinto. Vejo esta explicação como essencial para compreender as intenções da artista, a maneira como foi concebida a obra e as implicações sensoriais da obra para o participante: “É uma estrutura de oito metros de comprimento, com dois compartimentos laterais. O centro dessa estrutura constitui-se de um grande balão de plástico. As extremidades são fechadas com elásticos e as pessoas ao se encostarem neles, provocam as mais variadas formas. Ao penetrar no labirinto, o visitante afasta os elásticos da entrada, sentindo um rompimento semelhante ao de um hímen complacente e tendo acesso assim ao primeiro compartimento, chamado 'penetração'. Nesta cabine a pessoa pisa numa lona estendida pouco acima do chão e perde o equilíbrio: no escuro ela apalpa as paredes, que cedem, da mesma forma que o chão. Prosseguindo o caminho através do tato, encontrará uma passagem semelhante à da entrada, e a pessoa chega na 'ovulação', espaço igual ao anterior, cheio de balões. Ao prosseguir, o visitante alcança o amplo espaço central, onde é possível ver e ser visto do exterior. Neste local há uma imensa boca, através da qual a pessoa entra na 'germinação', ali tomando as posições que lhe convier. De volta ao túnel, continuando o passeio, penetra no compartimento da 'expulsão', que além de bolinhas macias de vinil espalhadas pelo

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chão, possui uma floresta de pêlos pendentes do teto. Esses pêlos começam muito finos e se tornam gradativamente bastante grossos, e o visitante vai abrindo caminho no escuro em meio a essa massa peluda, de contexturas diferentes. Após uma curva a pessoa encontra um cilindro giratório. Através da manipulação o cilindro gira e ela se vê diante de um espelho deformante todo iluminado. É o fim do labirinto.” (Lygia Clark, IN Fabbrini, 1994: p.145-146).

Essa instalação de Clark, em termos da história da arte, remonta aos estudos de Leonardo da Vinci sobre o feto no útero da mãe (anexo 2), de cerca de 1510, e à contemporâneos artistas como a francesa Niki de Saint-Phalle em sua escultura-instalação-arquitetura para o Museu de Arte Moderna de Estocolmo chamada "hon-en katedral" ("ela-a catedral")1, uma imensa Nana, produzida em 1966 (anexo 3) juntamente com os artistas Jean Tinguely e Per Olof Ultvedt. Claramente vemos que a intenção de cada artista era diferente. Leonardo da Vinci tinha uma intenção científica em seus desenhos, uma intenção de entendimento biológico do mundo. Niki de Saint-Phalle fazia que os visitantes entrassem pela “vagina” da esculturainstalação, onde, dentro desta, encontrariam vários compartimentos (um bar, um tobogã e um pequeno cinema). A escultura-instalação de Saint-Phalle não compartilha do grau de sensibilização da instalação de Lygia Clark. A imensa escultura de Niki tinha a intenção de deixar o visitante em choque com a monumentalidade da Nana, demonstrando que a mulher é de verdade uma catedral, uma casa, um abrigo acolhedor, com a possibilidade de gerar e guardar por nove meses uma nova vida. A instalação de Clark faz com que o “visitante” percorra os lugares onde sua vida começou, “recriando” o corpo da mãe. No primeiro compartimento da instalação, com suas superfícies úmidas e maleáveis como os músculos da vagina, o visitante, no escuro, caminha sobre o chão de lona. No compartimento seguinte, “ovulação”, o participante se vê cercado de balões, representando os óvulos já penetrados pelos espermatozóides. O compartimento da “germinação” é o compartimento do aconchego, de tomar a posição que se quiser, de formar o corpo num lugar confortável. A parte da “expulsão”, com as bolinhas no chão e os pêlos de vários tamanhos e texturas, representa o colo do útero e o ato do nascimento, da efetiva saída 1

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Fabbrini nos fala sobre esta obra: “...uma mulher de 25 metros de comprimento e 9 metros de altura (“Nana”), deitada de costas, tem sua vagina atravessada pelos visitantes que, em seu interior, em meio a efeitos visuais e sonoros, encontram um bar, um tobogã e um pequeño cinema. Apesar dos pontos de contato – a curiosidade que impele à ação, a participação, a dessacralização da obra, etc – há traços distintivos que a separa da Casa é o Corpo: as formas d'Ela são anedóticas e caricatas, a artificialidade de seu interior transforma o estranhamento inicial em indiferenca, etc.” (1994: p.150).


do corpo da mãe. Quando o visitante sai do túnel, encontra-se, então, em frente a um espelho deformante iluminado, como que vendo a luz do dia e a sua própria luz, verificando sua própria existência no mundo. Esse é o momento da volta, do regresso ao que somos, onde tomamos consciência de nossa existência real e, então, analisamos as experiências do “regressar ao útero da mãe”. Todo esse processo do regressar às entranhas da própria mãe é extremamente simbólico e sensorial, objetivando vivênciar e, também, “des-vivênciar” situações que nos marcaram. As sensações provocadas pelos vários materiais produzem experiências únicas, vivências singulares de retorno ao que fomos um dia. Essa segurança que nos deu o útero1 é reexperimentada pelo visitante, uma segurança, agora, regeneradora do encontro consigo mesmo. Acredito que a dominância do gestual, do sensorial, sobre o verbal dá a liberdade necessária ao visitante de experimentar, sem barreiras, pois o gesto é insubmisso à qualquer regra préestabelecida dentro da proposição. Há uma certa “precariedade” dos materiais utilizados, já que são objetos que podem ser encontrados em qualquer parte. Não são materiais ricos, caros, ou mesmo super-elaborados, mas há algo mesmo de uma “improvisação organizada” na instalação A Casa é o Corpo: Labirinto. Esta “improvisação organizada” das proposições de Clark remete à multitude de significados2 do movimento Tropicalista (movimento marcadamente brasileiro dos finais da década de 1960 e princípios da de 1970), que nunca fechava significações, que deixava o resultado final da significação aberto ao espectador, utilizando um processo de incitação à múltiplas referências. Ainda sobre a mesma instalação, gostaria de usar uma passagem de Ricardo Nascimento Fabbrini que nos dá a relação da instalação com o seu nome: “À medida que se aprofunda no labirinto ele vive 'o choque do resgate do passado'; 1

2

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O dicionário de símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant nos dá a seguinte definição do útero: “Womb symbolism is universally connected with manifestation, natural fertility and even with spiritual generation. From Europe to China alchemists quite explicitly envision the return to the womb as a prelude to regeneration and imortality. Residing in the womb is a timeless central state in which, Hindu writings insist, 'one has knowledge of all births'.” (1996: p.1122). Trabalhando sempre com estereótipos da cultura brasileira e seus múltiplos significados.


como um refúgio para o náufrago, este regresso à concha vazia reaviva-lhe ternas recordações da infância:' - Vá para o Ocidente ou para o Oriente, mas é em casa onde você melhor se sente'. Destacando as camadas do hábito reencontra seu lugar natural no aconchego de uma Casa que irradia vestígios íntimos: um espaço onde se reconhece em cada fibra de sua arquitetura..” (Fabbrini, 1994: p. 149)

A próxima obra de Lygia Clark que gostaria de analisar é a proposição de nome Baba Antropofágica, de 1973. Este trabalho foi criado no período em que Clark trabalhou como professora na Sorbonne, entre 1970 e 1976. Nesse período Lygia começa a fazer proposições para serem experimentadas por um número considerável de pessoas, em oposição à proposições pensadas para um ou dois participantes. Este período das proposições de participação coletiva foi chamado de Espaço do Corpo (ou Corpo Coletivo). Primeiramente, gostaria de utilizar a descrição da criação da proposição que dá a própria Lygia Clark para depois analisá-la: “Tudo começou a partir de um sonho que passou a me perseguir o tempo inteiro. Eu sonhava que abria a boca e tirava sem cessar de dentro dela uma substância, e na medida em que isso ia acontecendo eu sentia que ia perdendo a minha própria substância interna e isso me angustiava muito, principalmente porque não parava de perdê-la. Um dia, depois de ter feito as máscaras sensoriais, me lembrei de construir uma máscara que possuísse uma carretilha que fizesse a baba ser engolida. Foi realizada em seguida o que se chamou Baba Antropofágica, onde as pessoas passavam a ter carretéis dentro da boca para expulsar e introjetar a baba..” (Lygia Clark, IN Milliet, 1992: p.139)

Essa proposição foi vivenciada pelos alunos da Sorbonne. O claro vínculo com a teoria antropofágica criada por Oswald de Andrade1 durante os primeiros anos do Modernismo brasileiro é contundente. O Manifesto Antropofágico (anexo 4) vai buscar o ato da antropofagia2 (um canibalismo ritual) nas tradições de algumas tribos brasileiras e resgata a 1

Escritor, ensaísta e dramaturgo, nascido em São Paulo em 1890. Foi um dos expoentes mais importantes do Modernismo brasileiro, tendo sido um dos colaboradores da Semana de Arte Moderna de 1922 no Teatro Municipal de São Paulo, evento que marca simbolicamente o início do movimento modernista no Brasil. Faleceu em 1954.

2

Numa descrição de Padre José de Anchieta, o ritual ocorria da seguinte forma: “Em morrendo este preso, lêse em Frei Salvador, logo as velhas o despedaçam e lhe tiram as tripas e fressura, que mal lavadas cozem para comer, e reparte-se a carne por todas as casas e pelos hóspedes que vieram a esta matança, e dela comem logo assada e cozida, e guardam alguma, muito assada e mirrada, a quem chamam moquém, metida em novelos de fios de algodão e posta em caniços ao fumo, para depois renovarem o seu ódio e fazerem outras festas, e do caldo fazem grandes alguidares de migas e papas de farinha de carimã, para suprir na falta de carne, e poder chegar a todos", comentou Joaquim Thomaz em seu livro Anchieta. São Paulo: Bibliex, 1981.

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antropofagia como um mecanismo cultural para dar solução ao problema de identidade brasileiro e mesmo como “antídoto” contra o imperialismo Europeu da época. O ato de comer o outro, fazer com que o outro faça parte de sí mesmo e colocar para fora o “sujeito” já digerido é uma estatística cultural que ainda hoje é válida para o Brasil, já que o anti-imperialismo cultural tem fortes seguidores nos países ditos de “terceiro mundo”1. Devorar para digerir, re-significar, e usar o que nos interessa pode servir para nosso próprio bem. Utilizo aqui uma passagem de Maria Alice Milliet que me parece elucidativa para compreender a estratégia antropofágica: “...a antropofagia é o constante exercício da possibilidade. É o que o brasileiro popularmente chama de 'dar um jeito', 'se virar'. O caráter antropofágico da artista está na desorganização e na barbarização de uma civilização – 'que estamos comendo' – numa destrutividade saudável do componente aurático da arte e do artista. O corpo dessublimado e liberto do princípio de desempenho, em sua potencialidade espaçotemporal, é o lugar irredutível dessa aventura. E nisso se aproxima da 'antropofagia carnal' que, segundo Oswald, 'traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identificados por Freud, males catequistas'.” (Milliet, 1992: p. 147).

A proposição de Lygia Clark trabalha com o lado mais ritualístico da antropofagia. Sua proposição é baseada na canibalização rital do que nos é imposto socialmente, economicamente e culturalmente. Somente o dar ao outro não interessa. Temos que aprender a dar e a receber, ou melhor, a buscar, mesmo “pela força” aquilo que nos é devido e nos foi negado. O participante deve perceber o mundo em que vive como um lugar de entrega e retribuição, de participação total. Essa participação entre os alunos de Lygia era algo tão marcante que eles modificavam suas atitudes sociais perante os outros. Uso uma passagem de Clark sobre os resultados positivos com essas proposições: “O que mais me gratifica é saber, por exemplo, que os alunos que freqüentam o meu curso continuam a se comunicar quando se encontram na rua. Pois, como é sabido, os alunos que freqüentam a Sorbonne quando entram ali se cumprimentam mas depois, lá fora, se desconhecem. A França é isso. Mas no meu caso a comunicação é tão intensa e tão próxima que o relacionamento continua além das paredes da classe, na 1

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Essa visão de descentralização cultural atual se nota claramente nas teorias pós-colonialistas (ex. Spivak e Babba), onde a criação de cultura se desvincula da Europa e EUA e se abre às outras partes do mundo. Neste sentido, a antropofagia é ainda um mecanismo de “digestão” de formas culturais dominantes vindas do estrangeiro e que não representam a cultura do país onde tenta implantar-se. Para além de um mecanismo de reformulação cultural, a antropofagia é um mecanismo de rebelião contra os dominadores, que foram, historica e inicialmente, os conquistadores do Novo Mundo.


vida. Então eu digo: o que proponho a eles, no fundo, é o exercício experimental da liberdade na vida1. O que pretendo é que amem melhor, façam amor melhor, comam melhor, sintam melhor o próprio corpo.” (Lygia Clark, IN Fabbrini, 1994: p. 162).

E é exatamente este exercício experimental da liberdade que Lygia Clark oferece a seus alunos: intensificação do contato com o corpo do outro, a sensibilização do próprio corpo e do corpo coletivo do grupo. Há uma noção de unidade que funciona dentro das proposições como Baba Antropofágica. Há uma liberalização dos movimentos e dos sentidos que desinibe os participantes, os aparta de seus medos de rejeição e os fazem comunicar. Há uma poética do corpo de que se utiliza a propositora para que os participantes desfrutem o máximo da experiência de estar ali e de ser parte integrante de um todo, mas mantendo sua própria liberdade de expressão.

Baba Antropofágica, 1973.

A “baba”, a gosma salivar, que se mistura ao sair e é colocada na boca novamente é compartilhada por todos. Essa baba é a substância interna de cada sujeito que baba, se misturando com as outras babas, transformando-se em uma mescla de todos. A antropofagia é, no campo da antropologia, um processo ritual para reforçar os laços culturais e sociais dentro de um grupo. Uso aqui uma passagem de Boris Wiseman e Judy Groves do livro LéviStrauss and Structural Anthropology para clarificar a importância do rito nesta proposição: “Rituals are the opposite of games. Games – an activity characteristic of 'hot' societies 1

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Itálico meu.


– use structures (the rules of the game) to produce events (victories or defeats). They are fundamentally disjunctive1, as their aim is to separate the winner from the loser. Rituals are conjunctive – their aim is to bring together.”(Wiseman e Groves, 1997: p.94).

Da passagem acima podemos ver que os rituais existem para fortalecer e unir o grupo (são conjuntivos, criam um conjunto), enquanto os jogos existem para separar o ganhador do perdedor (são disjuntivos). Por isso vemos o caráter ritualístico da proposição de Lygia Clark ser de fundamental importância para sua inteira compreensão. Não é por nada que Oswald de Andrade se pergunta: “Tupi, or not tupi that is the question.”, sendo tupi2 um tronco lingüístico indígena que dominava no Brasil até o século XVIII. Não se trata de voltar a ser índio, mas de utilizar estruturas culturais que têm a ver conosco e com nossa tradição. Em outra proposição, também de 1973, com o nome de Canibalismo, o mecanismo ritual do canibalismo também é utilizado. Milliet descreve a obra da seguinte maneira: “O banquete canibal se dá metaforicamente na proposição Canibalismo (1973): uma pessoa deitada é cercada por outras de olhos vendados que devoram as frutas que lhe cobrem o corpo.” E em Canibalismo e Baba Antropofágica “...existe apropriação e perda: quem come subtrai ao outro, quem baba perde substância que o outro agrega. Entretanto, o comer pode ser indigesto e a baba sufocante, verso e reverso de uma situação. Lygia esteve consciente desses movimentos físico-psíquicos e suas implicações no nível do indivíduo e do social.” (Milliet, 1992: p. 146)

Em realidade, a proposição se dá através da utilização de um macacão especial, uma vestimenta projetada para esta proposição, onde, em um compartimento com um zíper à altura da cintura, se encontram frutas que serão comidas pelos outros participantes. Todos os participantes têm os olhos cobertos, também o que está deitado(a) no chão vestindo o macacão. Canibalismo é uma proposição do âmbito do sensível e, também, do social e do psicológico. Essa antropofagia construtiva de Lygia Clark se transporta da conjuntura intelectual de Oswald de Andrade para a realidade simbólica de devorar o que está dentro do outro, o que faz parte do outro. Utilizo aqui uma passagem do antropólogo belga Arnold Van Gennep sobre a importância do ato tribal de comer e beber juntos: 1 2

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Negrito do autor. Também conhecido como Tupinambá, Tupi Antigo, Língua Brasílica, e Abañeenga do Norte.


“The rite of eating and drinking together, which will be frequently mentioned in this book, is clearly a rite of incorporation, of physical union, and has been called a sacrament of communion. A union by this means may be permanent, but more often it lasts only during the period of digestion.” (Van Gennep, 1984: p. 29).

Podemos notar que esta união, fortificada pelo ato de comer juntos, deveria conectar os participantes das preposições de Lygia Clark. Sua intenção de união e de ação era fundamental para a proposição, também, as frutas servidas neste banquete canibal eram frutas tropicais, geralmente desconhecidas dos participantes ou pouco consumidas na França na década de 1970. Era um banquete também para o paladar. Esse devorar coletivo unia os alunos, ajudando-os no âmbito da comunicação social e sensorial.

Imagem do banquete canibal descrito por Hans Staden em seu livro Viagem ao Brasil, de 1557.

Outro ponto a destacar sobre esta preposição é a desorientação causada pelos tapa-olhos. Uma desorientação visual, decretando o fim da primazia do visual em detrimento dos outros sentidos menos utilizados ao explorar as obras de arte. A última proposição que pretendo analisar é a proposição chamada Rede de Elásticos, de 80


1974. Aqui uso a definição desta preposição dada por Fabbrini: “Os componentes do grupo fiam em conjunto o trançado de uma rede de arrasto que acaba por envolvê-los ao ponto de limitar seus movimentos.” (Fabbrini, 1994: p. 176).

Um dos participantes, ou mais, se coloca(m) no centro, onde a rede é “lançada” sobre ele/a(s). O ato de manufaturar a rede, de tecê-la com suas próprias mãos e de usá-la de maneira singular enriquece muito o trabalho. A própria Lygia fala disto: “O tecer a rede, ou seja, o exercício da criatividade é tão importante quanto vivenciar o trabalho depois de pronto.” (Lygia Clark, IN Fabbrini, 1994: p.176).

O ato de confeccionar a rede, a utilização da rede para integrar o grupo na mesma trama de relações, os eventuais toques corporais, todas as ações conjuntas tentam unificar o grupo. O contato corporal pode ter conotação lúdica, erótica, sensual ou de amizade. Nesta proposição todos estão fisicamente ligados e interligados, não podendo agir sem que suas ações interfiram no movimento do grupo. Essa rede de relações criada pelos participantes define um único corpo em movimento.

Rede de Elásticos, 1974.

Nesta parte de fechamento deste capítulo da tese, gostaria de falar um pouco sobre o período 81


final dos trabalhos de Lygia: Depois de dar aulas na Sorbonne, Lygia volta ao Brasil em 1976, onde se dedica à sensibilização individual utilizando objetos relacionais em direto contato corporal com os pacientes (entre 1977 e 1985). Esses objetos eram dos mais variados, de sacos plásticos com ar à almofadas com areia, bolinhas de ping-pong colocadas em meias femininas, algodão, pedras, e vários outros objetos. Lygia queria alcançar um processo “artístico-terapêutico” que prescindisse da linguagem verbal e que se baseasse nos outros sentidos (adição, tato, olfato e paladar). Ela explica este seu processo experimental: “Há dois anos (desde 1977) venho fazendo experiências de utilização dos objetos relacionais para fins terapêuticos. No início utilizava-os aplicando o método de Sapir1 pelo qual passara em Paris: relaxação baseada em indução verbal; uma sessão por semana. Pouco a pouco abandonei a indução passando a utilizar unicamente meus materiais, aumentando o número de sessões para três por semana com duração de uma hora. O processo se torna terapêutico pela regularidade das sessões, que possibilita a elaboração progressiva da fantasmática provocada pelas potencialidades dos 'objetos relacionais'.” (Lygia Clark, IN Fabbrini, 1994: p. 215)

A busca de uma terapia independente das possibilidades verbais e de uma desabituação de todo o corpo sensório levou Lygia Clark a experimentar em seus pacientes uma sensibilização mais pessoal e voltada para os problemas psicológicos singulares de cada um. Lygia, um pouco antes à época de sua morte em 1988, ainda atendia seus “pacientes” em seu apartamento de Copacabana, em sessões de completo silêncio, já que a fala era interdita em suas sessões.

1

Edward Sapir (1884-1939), juntamente com Benjamin Lee Whorf (1897-1941), seu aluno, criaram a hipótese conhecida como Sapir-Whorf hipótese, onde “...the language people speak determines the way they perceive the world” e “Categories that may be very different include those of time, causation, and the self. It should be noted that some superficial examples of diversity that are frequently cited are in fact spurious. It is not true, for example, that Indo-Aleut languages have a vast number of words for different varieties of snow.” (Blackburn, 2006: p. 326-327) Aqui o método de Sapir se refere a um método através da “palavra” como parte de um “sistema simbólico primário” do grupo, produto de um hábito social. “Enquanto que para Lygia, a memória do corpo é anterior à aquisição da palavra: a análise regressiva 'mostra que o ponto de partida de elaboração das estruturas' perceptivas elementares não é a linguagem verbal. A 'memória corporal' reúne as 'incrições primitivas' de um 'corpo libidinal', 'sem imágens', que não podem ser traduzidas em estruturas verbais.” (IN Fabbrini, 1994: p.215)

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7- Contatos entre Adélia Prado e Lygia Clark: Neste momento da tese tentarei buscar os contatos entre as duas artistas, os pontos que as iluminam quando são relacionadas. Parto da minha hipótese de que há um retorno do existencialismo na década de 1970, o que se pode notar nas obras de Adélia Prado e Lygia Clark executadas durante a mesma década.

Objetos Relacionais, 1977-1985.

Não podemos esquecer o momento sócio-cultural e político, brasileiro e no mundo, no final da década de 1960 e começo da de 1970: a ditadura militar e sua forte censura sobre as atividades culturais e os desaparecimentos de produtores de cultura e opositores ao regime, a emergência do Tropicalismo como movimento contestador da identidade brasileira, e a emergência da poesia marginal como forma de contestação das políticas culturais e do seu protesto conta os modelos institucionalizados das editoras, são os fatores que, a meu ver, marcaram a produção cultural da década de 1970 no Brasil. A nível mundial, os fracassos dos movimentos de protestos da década de 1960 (Gorsen, 1984: p. 137) deixaram a dor do “nãoconseguir” viva, os regimes autoritários na América Latina, Asia, África e Europa ainda persistiam, a crise do petróleo que levou os Estados Unidos à recessão, as guerras de independências na África (ex: Angola, Moçambique, Guiné Bissau), a humilhação norte-

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americana por perder a guerra do Vietnã, a volta a formas de espiritualidade oriental (ex: hinduísmo e budismo), e a guerra fria, entre outros pontos, foram acontecimentos marcantes dos anos 70. Esses e outros aspectos contribuiam para um certo “descontentamento” do homem da década de 1970 e a um retorno ao existencialismo, onde o próprio homem se contestava sobre como usou sua liberdade de escolha e o que saiu errado nesse processo. Esses aspectos no campo da arte, principalmente das artes plásticas, levaram a uma produção artística quase sempre individual. Talvez pelo malogro dos movimentos coletivos da década de 1960, as pessoas ligadas à cultura começaram a produzir de maneira mais isolada e individual. Uso aqui uma passagem de Sam Gathercole que revela esse sentimento de individualismo da década de 1970: “...the 1970s can be seen as being characterized by this shift from the 1960s notion of coordinated and organized collective groups, trusting ideologies and agitating for social change, to the subsequent decade's stress on localized points of protest, and the power of individual act.” (Gathercole, 2006: p. 61).

Essa individualização da produção artística pode ser vista nas várias formas de performance que tomam força na década de 1970. Também a desintegração dos grupos hippies norteamericanos nesta mesma década prova esta desintegração do coletivo e um retorno à individualização. Como os protestos dos grupos não levaram a nada factualmente forte na década de 1960, a forma de protesto da década de 1970 se tornou mais individual. Artistas internacionais que se tornaram famosos por seus trabalhos, tais como Robert Smithson e Christo (artistas de land art, uma forma de arte que não pode ser apresentada em uma galeria ou museu), Gordon Matta-Clark (artista que interferia em edifícios fazendo furos e ligando o exterior ao interior), Richard Serra (escultor de folhas de ferro gigantes), Chris Burden (performer), entre vários outros, mostram a preferência pela criação individual. O mesmo acontece em outros países. No Brasil, a produção artística também é individual1 (ex: Clark e Oiticica), porém destinada a uma ordem mais participativa em relação ao público. Essas arte individual da década de 1970, principalmente do ponto de vista da performance, já 1

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A idéia que dá origem à criação da obra de Clark, Oiticica e Pape era um processo de pensar individual. As proposições eram concebidas somente como idéias a serem concretizadas. A ação dos participantes dava vida às idéias (proposições). As proposições em ação demonstravam, então, a força potencial das idéias individuais desses artistas.


reconhecida como forma artística à esta altura, se coloca dentro do ponto de vista das coisas do dia-a-dia. A importância do cotidiano, do individual e da vida humana de cada artista toma forma em várias performances. Neste sentido, “a vida de todo dia” se liga à arte. Peter Gorsen nos mostra este ponto: “The basic idea of overstepping the mark is relating of art to the cohesion of life, to the preexistence of art in empirical everyday terms, whose historical figure at any given time has produced totally opposite interpretations on the meaning and aim of this relating.” (Gorsen, 1984: p. 136)

E ainda, numa passagem que se mostra bastante significativa para a arte da performance: “There is something striking about the unsymbolic reflection on one's own corporeality and its nonverbal language, on the aesthetics of an unseeingly unconditional 'naked existence' (Sartre), which shows similarities with the modern 'I am in my body' tautology, and, in connection with this, the determined stand against declarations that crop up to assert the claims of the scientific approach, of finality, and of exclusiveness.” (idem, p. 136-137)

Esta individualização e o pensamento em torno às ações do cotidiano e essa importância do corpo (aqui com forte influência de Merleau-Ponty1) para a arte da performance podem ser claramente vistos nas proposições de Lygia Clark. Porém, acredito que várias formas de arte tenham incorporado essa visão vanguardista (de avant garde) em relação ao mundo. Assim sendo, pode-se notar na poesia de Adélia Prado a predileção pelo cotidiano e suas memórias relacionadas à ele. Essa predileção pelo cotidiano se opõe aos movimentos de grupo, ou seja, o artista produz solitariamente e tem as pequenas coisas da vida como matéria de trabalho individual, singular e pessoal. A visão existencialista se nota, assim, na vida de cada um, no acontecimento do dia-a-dia, na tristeza, na angústia, na “dor” (para usar uma palavra muito utilizada por Adélia Prado), no “choro” (também outra palavra muito usada por Adélia em Bagagem) e nas pequenas alegrias de estar no mundo. Sam Gathercole nos fala sobre essa arte baseada na experiência pessoal que toma significância coletiva: “With the project of totalizing shown thus to be ultimately impossible, the artist-asindividual became an active purveyor of personal experience transformed into 1

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As teorias da percepção de Merleau-Ponty abriram caminho para a exploração do corpo como objeto sensorial. Isto se nota nas obras de arte participativa dos neoconcretos cariocas (ver Gullar, Manifesto Neoconcreto). As proposições de Clark, que chamo aquí de performances coincidem na utilização do corpo como um dos pontos fundamentais para tal forma de arte (Goldberg, 1984: p.24).


collective significance, and the artist's corollary, the viewer/interpreter, was shown to be an active participant in an art work (image, object, performance, text, film, etc.) understood to be open and contingent, rather than constitutive.” (Gathercole, 2006: p.77)

É também na década de 1970 que a arte produzida por mulheres começa a ter mais projeção, dando conta das visões femininas do mundo. Na poesia marginal, dentro do contexto brasileiro, por exemplo, surgem mulheres escritoras de valor, como Ana Cristina César. É nesta mesma década de 1970 que Adélia Prado lança seu primeiro livro (Bagagem) e Lygia Clark ensina em Paris. Não nos esqueçamos aqui dessa mulher de Adélia, um “ser desdobrável”, cheio de possibilidades. E continuando sobre a produção das mulheres, Gathercole notou que as artes, vistas como campo de saber geralmente masculino, foram criticadas pelas feministas na década de 1970, principalmente nos Estados Unidos. Artistas que se posicionaram contra a exclusão das mulheres no sistema mundial das artes foram: Linda Nochlin (historiadora da arte), Lucy Lippard (escritora e curadora), Miriam Shapiro (pioneira da feminist art), Georgia O'Keeffe (artista plástica), Ana Mendieta (performer), Carolee Schneemann (artista plastica), Martha Rosler (performer), entre outras (Gathercole, 2006: p. 70-75). Neste sentido, minha escolha de trabalhar com mulheres-artistas (Lygia Clark e Adélia Prado) que fazem arte com o seu dia-a-dia, transformando as ações diárias em algo simbólico e quase ritualístico, me leva a verificar “o existir no mundo” como matéria de criação artística. Essa arte baseada em uma “certa desilusão” da década de 1970 (que acredito seja característica do Zeitgeist1 da década citada), também vista na arte de performance, transformou o artista em “contador das histórias de sua própria existência” como uma “amostra de vida” para outros seres humanos. Uso duas passagens de Peter Gorsen que falam exatamente sobre isso: “The living of life made stageable through performances is certainly not a naturalistic repetition of everyday events but their symbolic interpretation.” (Gorsen, 1984: p. 140).

E ainda: 1

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É um termo em alemão, criado pelos escritores românticos da Alemanha, que define o espírito socio-políticocultural de uma determinada época (Definição minha).


“The existentially experienced moment, and with it an 'emotional motif stemming from one's own biography', which one 'would not like to allow to be engulfed', is decisive.” (idem, p. 140)

Essa nova “estética da existência” (new aesthetics of existence), como chama Peter Gorsen a produção dos anos 1970 voltada para a própria existência como material de produção artístico, é a característica mais marcante do retorno do existencialismo nas artes da década de 1970. E essa “estética da existência” pode ser vista tanto na produção de Adélia Prado como na produção de Lygia Clark. Porém, para verificar essa visão, trabalharei com a sinestesia como formula cabal de existir no mundo, já que a experiência do existir se baseia primariamente nos sentidos. E é esta “estética da existência” que os artistas da década de 1970 utilizaram bastante bem como mecanismo, trabalhando com um retorno ao corpo e aos sentidos. O resgate do saber enquanto gerado através do corpo e “a percepção, compreendida como acontecimento da existência” (Nóbrega, 2008) fazem da sinestesia uma modalidade de análise privilegiada para esta tese e confirmam uma realidade vivida através dos sentidos, da corporeidade. Podemos notar a sinestesia nos seguintes versos de Adélia Prado do poema SENSORIAL: 1 2 3 4 5 6

Obturação, é da amarela que eu ponho. Pimenta e cravo, mastigo à boca nua e me regalo. Amor, tem que falar meu bem, me dar caixa de música de presente, conhecer vários tons pra uma palavra só.

A obturação (na boca, paladar) é amarela (visão). Pimenta e cravo são postas na comida pelo aroma (olfato) e são mastigados (paladar). Amor, sentimento mais íntimo, tem que falar meu bem, dar caixa de música e conhecer vários tons para uma palavra só (todas as imagens ligadas à audição). Essa mescla de sentidos, sua linguagem corriqueira e de atos da vida real, provam a existência da própria poeta como pessoa que sente e que se auto-referência. Aqui não notamos as dores e angústias existencialistas, mas a cabal verdade do existir no mundo. Outro exemplo de sinestesia na obra de Adélia Prado pode ser visto no poema BUCÓLICA 87


NOSTÁLGICA: 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Ao entardecer no mato, a casa entre bananeiras, pés de manjericão e cravo-santo, aparece dourada. Dentro dela, agachados, na porta da rua, sentados no fogão, ou aí mesmo, rápidos como se fossem ao Êxodo, comem feijão com arroz, taioba, ora-pro-nobis, muitas vezes abóbora. Depois, café na canequinha e pito. O que um homem precisa pra falar, entre enxada e sono: Louvado seja Deus”

Esse poema mostra, também, as imagens que se referem aos vários sentidos, porém, descreve uma cena exterior à poeta, vivida por outro, mostrando a existência camponesa do outro. Os versos 1 ao 3 mostram imagens relacionadas à visão (entardecer, dourada) e olfato (manjericão, cravo-santo) mescladas. Os versos 3 ao 5 mostram a maneira como estão posicionados e o lugar onde estão. Os versos 5 ao 8 mostram a relação às comidas (paladar e olfato). Os versos 9 e 10 estão mais ligados à religiosidade, ao ora et labora da mística monástica e ao agradecimento a Deus. Como podemos notar, a sinestesia é fator importante na composição dos poemas adelianos, não somente nos poemas mais pessoais, mas, também, nos poemas onde outros seres humanos são retratados. A sinestesia confirma aqui a adesão ao mundo da corporeidade, dos sentidos, e da vivência diária das pessoas, de suas existências provincianas. A poeta percebe o mundo que a cerca como uma experiência corporal, onde todos os sentidos funcionam juntos, mostrando que a percepção sinestésica é uma regra do estar no mundo e de vivenciá-lo de maneira completa. Margarida Salomão, no prefácio de Bagagem, fala desta “sina” de estar no mundo dentro da obra de Adélia: “...sina essencialmente corpórea, carnal: estar no mundo não implica recusá-lo – na melhor hipótese, esquivar-se dele; antes implica uma comunhão sensorial com as coisas, aquela proporcionada pelas 'sensibilidades sem governo'.” (Salomão, IN Prado, 1976/1979: p.9).

Buscando a sinestesia na obra de Lygia Clark, podemos achá-la na proposição O Eu e o Tu. O toque cego dos participantes; as máscaras que não permitem a visão fazendo com que os participantes “vejam pelo toque”, se busquem sem olhar; os tubos que os ligam

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simbolicamente de ar e de sentimentos; os zíperes que se abrem para a descoberta do tato, todos esses aspectos têm profundo caráter sinestésico. Não se utiliza somente um sentido nessa descoberta do outro, mas quase todos (a parte do da visão) ao mesmo tempo. Outro exemplo de sinestesia na obra de Lygia Clark que pode ser analisado é a instalação A Casa é o Corpo: Labirinto, onde Clark tenta “refazer” o ambiente de sensações do processo de penetração, ovulação, germinação e expulsão de uma nova vida humana. A experiência de todo esse processo depende, basicamente, dos cinco sentidos. Na descrição já dada sobre a instalação, a artista usa termos como “pisa” (tato), “no escuro” (visão, ou ausência de visão), “apalpa” e “tato”, “ver e ser visto” (visão), “bolinhas macias de vinil” (tato), “floresta de pêlos” (tato), “massa peluda, de contextura diferentes” (tato), e “espelho” (visão). Essa mescla de objetos sensoriais que privilegiam o tato, fazem da proposição um labirinto sensorial, sinestésico e do corpo em movimento. A obra se coloca no plano das possibilidades de experiências do sensível. Utilizo aqui uma passagem de Terezinha Petrucia da Nóbrega falando da análise que faz Merleau-Ponty sobre a obra de Cezanne e que pode se encaixar no contexto da instalação de Lygia Clark: “...a experiência da obra de arte em geral produz significações mais amplas que a definem como um poema, um romance ou uma pintura. A obra de arte também se constitui como um suplemento de sentido, formulado a partir da experiência vivida, e é essa modulação existencial que torna a narrativa ou quadro significativo para nós.” (Nóbrega, 2008).

Esta mesma proposição de Clark tenta trabalhar de maneira regressiva, buscando reconhecer sensações pelas quais passamos no processo de vir a este mundo. Essa comunicação entre os sentidos faz com que a obra crie significações importantes para os participantes. Uma dessas significações é a busca das memórias para relacioná-las com o presente. E isto é exatamente o que a instalação A Casa é o Corpo: Labirinto se predispõe a fazer: dar-nos material de nossa memória do passado para trabalhar com o presente, com o material experiencial vivido durante a participação, que é um material de conhecimento a partir do corporal. Este conhecimento vivido pelo próprio corpo se torna conhecimento pessoal, de auto referência, que ajuda o indivíduo a localizar-se no mundo, a o ajuda a pensar sobre sua própria existência. Utilizando Sartre, podemos concordar que:

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“...life has no meaning a priori. Life itself is nothing until it is lived, it is we who give it meaning, and value if nothing more than the meaning that we give it.” (Sartre, 1947/2007: p. 51)

E dar meaning é significar as experiências vividas. E é exatamente neste sentido que as duas artistas trabalham, dando significação aos atos vividos, à cada utilização dos sentidos. E continuando no mesmo caminho de descobertas sensoriais, podemos ver que a proposição Baba Antropofágica de Lygia Clark, também trabalha no sentido de dar significação, ou melhor de “re-significar” as experiências vividas. E é na memória, nosso “arquivo” de experiências vividas, que vamos buscar os materiais para serem reorganizados. Em Baba Antropofágica a intenção é reestruturar, reorganizar e reinventar partindo do material existencial pessoal dado por nossa memória. É no comer (paladar) simbólicamente o outro e devolvê-lo ao mundo como “produto mesclado-a-mim” que a proposição acha seu lugar como experiência válida. O ritual imemorável da antropofagia nos remete às nossas próprias memórias. Coisas que experienciamos no passado e que voltamos a experienciar, o que nos ajuda em nosso próprio auto-reconhecimento enquanto pessoa no mundo de nossa subjetividade. Já que “...man is nothing other than what he makes of himself” (Sartre, 1947/2007: p. 22), e suas experiências guardadas na memória são parte constitutiva dele. Gostaria de utilizar aqui uma passagem de Terezinha Petrucia da Nóbrega sobre a autoreferencialidade, o reconhecer-se a sí mesmo através de suas experiências, de suas memórias: “A auto-referencialidade favorece a autonomia do sistema vivo, pois rompe com o determinismo do meio ambiente, gerando outro tipo de relação: uma relação recursiva que garante a dinâmica das interações entre o todo e as partes, gerando autonomia”.(Nóbrega, 2008).

E é nessa mesma linha de auto-reconhecimento e nesse “controle” sobre nossas próprias decisões que podemos ler na poesia de Adélia Prado as frases pronunciadas por suas pessoas mais amadas e por pessoas que a marcaram, escolha da poeta de utilizar suas memórias como matéria poética. Essas frases constituem a memória da poeta, um traço marcado em sua personalidade, uma parte fundamental de quem ela é enquanto pessoa no mundo. É a fala um

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dia proferida e relembrada, parte fundamental de sua poesia, que lemos em seus poemas. Um exemplo disto pode ser visto nos poema METAMORFOSE: 1 2

“Foi assim que meu pai me disse uma vez: você anda feito cavalo velho, procurando grota.”

3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16

As cigarras atrelavam as patas nos troncos e zuniam com decisão os seus chiados. As árvores cantavam no quintal, refolhadas de novíssimo verde. Arregacei as narinas e fui pastar com minha cabeça minúscula. O que mais quente e amarelo pode ser, era o sol, um dia de pura luz. Mugi entre as vacas, antidiluviana, sei de moitas, água que achei e bebi. Na volta sacudi pescoço e rabo. Só dois sinais restaram: Um modo guloso de cheirar os verdes; um modo de pisar, só casco e pedras.

Neste poema, o auto-reconhecimento e o auto-conhecimento se dão a começar pela memória da fala do ente amado nos versos 1 e 2. O poema se desenvolve a partir de um dado da memória da poeta. Os versos 3 ao 10 descrevem a natureza e seus aspectos sensoriais de visão, olfato, paladar, tato, audição e visão. Nos versos 11 ao 14 ela se compara a um cavalo velho, como que concordando com o pai e se auto-reconhecendo em alguns aspectos. Os versos 14 ao 16 remetem à memória e ao que ela é hoje. Ou seja, o poema é construído a partir da memória da fala do pai em sentido jocoso. A poeta se autoreconhece em alguns aspectos, como no modo guloso de cheirar os verdes (notemos a forte imagem sinestésica de paladar, olfato e visão) e no modo de pisar (tato). É através da memória, através da fala dos entes queridos e das pessoas marcantes em sua vida, que Adélia se coloca no mundo, se autoreferenciando, mostrando sua maneira individual de existir. Analisando as obras das duas artistas dentro de alguns aspectos mais existencialistas sartrianos, podemos notar uma certa “angústia”1 pelo estar no mundo. Utilizo passagens de Sartre onde ele explica essa forma de angústia e outros aspectos da teoria existencialista para começar a análise mais dentro deste campo:

1

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A agústia foi, também, um dos conceitos fundamentais da filosofia de Heidegger (1889-1976).


“Existentialists like to say that man is in anguish. This is what they mean: a man who commits himself, and who realizes that he is not only the individual that he chooses to be, but also a legislator choosing at the same time what humanity as a whole should be, cannot help but be aware of his own full and profound responsability. True, many people do not appear especially anguished, but we maintain that they are merely hiding their anguish or trying not to face it.” (Sartre, 1947/2007: p. 27)

E ainda: “...man is therefore without any support or help, condemned at all times to invent man1.” (idem, p. 29)

E sobre o “abandono”, “desespero” e ação existencialistas, Sartre nos diz: “This is what 'abandonment' implies: it is we, ourselves, who decide who we are to be. Such abandonment entails anguish. As for 'dispair', it has a very simple meaning. It means that we must limit ourselves to reckoning only those things that depend on our will, or on the set of probabilities that enable action 2. Whenever we desire something, there are always elements of probability.” (idem, p. 34)

Ainda: “I operate within a realm of possibilities. But we credit such possibilities only to the strict extend that our action encompasses them. From the moment that the possibilities I am considering cease to be rigorously engaged by my action, I must no longer take interest in them...” (idem, p. 35)

Assim, a memória adeliana, usada diretamente em sua poesia, faz parte desta “angústia” existencialista, uma angústia do existir no mundo e responsabilizar-se por seus atos. A angústia relacionada à memória, transformada em tristeza de que tudo é transitório, de tudo que passa, fato verídico do existir em relação ao tempo, é, no final, matéria que se transforma em poesia adeliana. Essa memória triste adeliana, recontada na poesia, recolocada na vida através das palavras, vive dentro do poema. Isso pode ser visto no poema ATÁVICA: 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 1 2

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Minha mãe me dava o peito e eu escutava, o ouvido colado à fonte dos seus suspiros: “Ó meu Deus, meu Jesus, misericórdia.” Comia leite e culpa de estar alegre quando fico. Se ficasse na roça ia ser carpideira, puxadeira de terço, cantadeira, o que na vida é beleza sem esfuziamentos, as tristezas maravilhosas. Mas eu vim pra cidade fazer versos tão tristes que dão gosto, meu Jesus misericórdia. Por prazer da tristeza eu vivo alegre.

Já que o homem é liberdade. Não há nada mais clarkiano que suas proposições, que são concebidas exatamente como um “set of probabilities that enable action”.


Podemos nitidamente verificar a ação da memória triste na poesia de Adélia. Os versos 1 ao 4 remetem ao tempo em que era amamentada por sua mãe e recebia dela o leite e as culpas; os versos 5 ao 7 demonstram a escolha por vocações tristes, que lidam com a angústia, as ofícios tristes da vida do interior; os versos 8 ao 10 falam de sua vocação de ser poeta, de uma tristeza alegre e de uma alegria triste. Ou seja, tristeza e alegria andam juntas, vivem juntas. Nesse poema há uma angústia do existir no mundo (versos 5 ao 10), uma angústia em escolher entre ser carpideira ou poeta, e uma apreciação pelas “tristezas maravilhosas” como material de trabalho poético. Adélia mostra, também, que os vários estereótipos sobre a mulher participam do mesmo mecanismo tropicalista da antropofagia. Ela potencializa a antropofágica no momento em que joga com os estereótipos acerca da mulher interiorana, como o faz no poema COM LICENÇA POÉTICA: “Não sou tão feia que não possa casar, / acho o Rio de Janeiro uma beleza e / ora sim, ora não, creio em parto sem dor”. Ou seja, os estereótipos nestes versos são: “mulher feia não casa” e que “parto não dói”. Já na obra de Clark vimos que a antropofagia é usada como mecanismo de conhecimento do outro, de devorar para conhecer, para “ser-parte-de”, onde os participantes devoram as frutas que estão dentro da roupa da pessoa (da vítima) que está deitada. Não podemos nos esquecer de Lygia Clark e suas proposições, onde os espectadores livremente participavam, como em suas “aulas” na Sorbonne, e praticavam o próprio “exercício experimental da liberdade na vida”. Nessas proposições os alunos-participantes eram convidados a juntar-se em um grupo, onde todos participavam de uma “poética existencial”, reconhecendo seus sentidos e seus corpos e experimentando sensações e memórias as mais variadas. São nas proposições de Lygia, tais como A Casa é o Corpo: Labirinto, que o próprio ato (neste caso o ato da criação da vida humana) passa a ser analisado, buscando experiências arcaicas que deixaram marcas no corpo do participante. As proposições de Clark deste período passam a oferecer “condições para revivências psicossensoriais” (Milliet, 1992: p. 114), tratando de buscar nas memórias sensoriais do corpo o objeto de sua análise. Há, também, nessa poética do corpo clarkiana uma certa tristeza alegre ou alegria triste, há algo de intraduzível na busca pela auto-referência que reinforça a

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existência dos participantes. A ação na obra de Lygia Clark é a ação vivenciada, o ato está em experimentar, em viver de novo, em re-viver as sensações passadas dentro desta “nostalgia do corpo” e, daí, passar a uma análise mais consciente de todas essas memórias “marcadas” no corpo. O participante deve agir, pois sem a ação do participante as proposições se tornam idéias vazias e sem sentido de ser. É no espaço da liberdade que o participante trabalha experimentando, em suas próprias escolhas ao participar, em deixar-se tocar pelo outro, em tocar o outro, enfim, em escolher conscientemente o que deseja. Neste sentido, as proposições de Lygia são proposições existencialistas, onde a liberdade de escolha implica na angústia de possibilidades que se abrem aos participantes de suas proposições. Tomam parte das proposições os que querem participar. A obra de arte consiste, então, no ato de fazer a obra, de participar ativamente e com toda a liberdade de ação e de escolhas. Uma proposição que pode demonstrar bem essa livre escolha de participação e essa angústia de escolher vista pelos existencialistas é a proposição Túnel, de 1973. Nesse trabalho realizado na Sorbonne, Lygia cria um túnel de tecido onde os participantes podem passar. Lygia descreve a proposição desta forma: “Este trabalho consiste em um túnel de pano de 50 metros de extensão. Entrando pelo túnel, as pessoas muitas vezes se sentem sufocadas. Então eu abro frestas no pano...as pessoas 'nascem' através desses buracos.” (Lygia Clark, IN Milliet, 1992: p.140).

Podemos notar que o participante, escolhendo entrar neste túnel (que pode ser comparado à nossa vida), algumas vezes se angustia e se sufoca. É neste momento em que Lygia “liberta” o participante de seus medos e o deixa ver “o lado de fora” do túnel (que pode ser a vida e angústias das outras pessoas que “sofrem” como o participante), acalmando, assim, o participante, fazendo-o “nascer” para novas experiências. As preposições de Lygia são sempre baseadas na vida, na existência do homem no mundo, nos medos, angústias e desesperos do estar vivo e na ação transformadora, livre e que liberta. Neste sentido, as preposições de Lygia Clark são extremamente existencialistas. Outra proposição que deveríamos analisar pelo seu caráter coletivo é a proposição Rede de 94


Elásticos, de 1974, onde os participantes tecem uma rede de elástico e a utilizam como um “abrigo poético” de encontro. A rede, depois de tecida, é utilizada pelos participante que se colocam, alguns deles, debaixo dela, enquanto outros a manipulam. Nada mais coletivo que esta preposição. Aqui o contato corporal e a responsabilidade das ações do indivíduo em relação ao outro é bastante visível. Os participantes tecem, juntos, a rede; outros a manipulam, enquanto uns outros se colocam sob ela. A liberdade de movimentos corporais e de escolhas dentro desta proposição se opõem a qualquer tipo de repressão sensorial, provando que é no ato de existir e experimentar consciente e livremente que a vida humana se baseia. Podemos notar que é através da sinestesia que as duas artistas trabalham a questão da corporeidade das sensações, do real, da vida enquanto existência vivida através do corpo, e o corpo como objeto receptor de sensações e emoções. As duas trabalham vastamente o uso dos sentidos, Adélia em suas poesias e Lygia em suas proposições, e, sendo os sentidos nosso primeiro canal de contato com o mundo em que vivemos, é através deles que percebemos na obra das duas artistas a força do real. Também, as obras das duas se tocam nos vários pontos existencialistas descritos. A noção da liberdade de escolhas que angustiava o homem da década de 1970 se nota nas proposições de Lygia Clark e nos poemas de Adélia Prado. Há uma tristeza no ar, uma busca pela felicidade perdida, uma busca que começa pelo real, pelo estar no mundo, pelo sensorial (com o uso da sinestisia), pela existência de cada e todo homem. Há um certo descontentamento existencial que pode ser notado na obra das duas artistas, que, ao meu ver, buscam soluções para o existir no mundo. Adélia através de sua poesia cotidiana, de sua alegria triste ou tristeza alegre, e dos detalhes do dia-a-dia que nos passam desapercebidos. Adélia mostra que cada pequeno detalhe faz parte de nossa existência. Lygia através de suas proposições que incorporam a liberdade de ação, a busca por uma pessoa existindo de uma maneira mais consciente de suas “marcas corporais”, de seus medos e suas ações no coletivo. Lygia mostra que a liberdade de ação é o princípio fundante de estar no mundo.

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8- Conclusão: Termino esta tese com um poema de Adélia chamado MOMENTO, onde o corpo é valorizado enquanto objeto de expressividade e a onde ela nos convida a “ser”, a existir no mundo com todas nossas potencialidades: Enquanto eu fiquei alegre, permaneceram um bule com um descascado no bico, uma garrafa de pimenta pelo meio, um latido e um céu limpíssimo com recém-feitas estrelas. Resistiram nos seus lugares, em seus ofícios, constituindo o mundo pra mim, anteparo para o que foi um acontecimento: súbito é bom ter um corpo pra rir e sacudir a cabeça. A vida é mais tempo alegre do que triste. Melhor é ser.

Notamos que as duas artistas “compactuaram” com o retorno do existencialismo nas produções da década de 1970, com as mesmas buscas do humanismo existencialista, ensinando que é através da nossa própria existência que podemos significar algo, que podemos tentar mudar a nós mesmos através de nossas próprias ações. E nossa existência começa por nossa percepção do mundo, ou seja, através de nossos sentidos. As proposições de Clark, que podem ser vistas como experiências radicais criadas para expandir a noção do objeto de arte para a “potencialidade da ação” e acabar com a passividade do espectador, acabam por inserir a vida do espectador-participante na obra, sua existência enquanto ser humano no mundo. Também, é a completa liberdade de ação dos participantes das proposições de Clark, a importância do agir, o uso da vontade de escolha e a relevância da vida do participante na proposição que caracterizam as obras de Lygia como existencialistas. As poesias de Bagagem, por sua vez, mostram o tom existencialista no simples ato de estar no mundo e vivenciá-lo nos menores detalhes. Cada detalhe tomando relevância de grande ato. E é no ato, na ação, no agir, que o existencialismo tem sua base. O agir consciente como fundante do ser humano, já que é o próprio homem quem define sua essência através de sua existência. O homem que, com liberdade age, já que “freedom [is] the foundation of all 96


values” (Sartre, 1947/2007: p.48), define-se em sua existência. E é o que faz Adélia quando escreve, define sua existência nas mínimas coisas da vida. Ela agrega um valor existencial aos objetos e momentos mais ínfimos. A riqueza da obra dessas duas artistas, que produziram num mesmo período histórico, se mostra forte no caráter vivencial, das experiências no mundo. Tudo é sensação a ser “provada”, enfim, vivida. Nada deve escapar aos detalhes da percepção atenta. Mesmo a “ironia” que faz pensar de Adélia e a maneira “lúdica” de fazer arte de Lygia se mostram produtivas nas obras destas artistas. Nada passa despercebido do olhar atento das duas. As pequenas coisas e sensações da vida se notam por toda parte. Como nota Adélia: “um bule com um descascado no bico, / uma garrafa de pimenta pelo meio, / um latido e um céu limpíssimo / com recém-feitas estrelas”. Os materiais poéticos de Adélia e Lygia são, então, suas (e nossas) próprias vidas, seus detalhes, gestos e memórias, materiais pessoais e cotidianos do existir no mundo.

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10- Anexos:

10.1 Anexo 1: A procura da poesia Carlos Drummond de Andrade Não faças versos sobre acontecimentos. Não há criação nem morte perante a poesia. Diante dela, a vida é um sol estático, não aquece nem ilumina. As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam. Não faças poesia com o corpo, esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica. Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escuro são indiferentes. Não me reveles teus sentimentos, que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem. O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia. Não cantes tua cidade, deixa-a em paz. O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas. Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma. O canto não é a natureza nem os homens em sociedade. Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam. A poesia (não tires poesia das coisas) elide sujeito e objeto. Não dramatizes, não invoques, não indagues. Não percas tempo em mentir. Não te aborreças. Teu iate de marfim, teu sapato de diamante, vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável. Não recomponhas tua sepultada e merencória infância. Não osciles entre o espelho e a 103


memória em dissipação. Que se dissipou, não era poesia. Que se partiu, cristal não era. Penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam ser escritos. Estão paralisados, mas não há desespero, há calma e frescura na superfície intata. Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário. Convive com teus poemas, antes de escrevê-los. Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam. Espera que cada um se realize e consume com seu poder de palavra e seu poder de silêncio. Não forces o poema a desprender-se do limbo. Não colhas no chão o poema que se perdeu. Não adules o poema. Aceita-o como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada no espaço. Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrível que lhe deres: Trouxeste a chave? Repara: ermas de melodia e conceito elas se refugiaram na noite, as palavras. Ainda úmidas e impregnadas de sono, rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

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10.2 Anexo 2:

Vistas do feto no Ăştero, Leonardo da Vinci, cerca de 1510.

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10.3 Anexo 3:

"hon-en katedral" ("ela-a catedral"), Niki de Saint-Phalle, 1966.

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10.4 Anexo 4: Manifesto Antropofágico. Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz. Tupi, or not tupi that is the question. Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos. Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago. Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos postos em drama. Freud acabou com o enigma mulher e com outros sustos da psicologia impressa. O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido. O cinema americano informará. Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos touristes. No país da cobra grande. Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil. Uma consciência participante, uma rítmica religiosa. Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida. E a mentalidade pré-lógica para o Sr. Lévy-Bruhl estudar. Queremos a Revolução Caraiba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem n6s a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem. A idade de ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls. Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Ori Villegaignon print terre. Montaig-ne. O homem natural. Rousseau. Da Revolução Francesa ao Romantismo, à Revolução Bolchevista, à Revolução Surrealista e ao bárbaro tecnizado de Keyserling. Caminhamos.. Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará. Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós. Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissão. O rei-analfabeto dissera-lhe : ponha isso no papel mas sem muita lábia. Fez-se o empréstimo. Gravou-se o açúcar brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia. O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo. O antropomorfismo. Necessidade da vacina antropofágica. Para o equilíbrio contra as religiões de meridiano. E as inquisições exteriores.

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Só podemos atender ao mundo orecular. Tínhamos a justiça codificação da vingança. A ciência codificação da Magia. Antropofagia. A transformação permanente do Tabu em totem. Contra o mundo reversível e as idéias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico. O indivíduo vitima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. Das injustiças românticas. E o esquecimento das conquistas interiores. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. O instinto Caraíba. Morte e vida das hipóteses. Da equação eu parte do Cosmos ao axioma Cosmos parte do eu. Subsistência. Conhecimento. Antropofagia. Contra as elites vegetais. Em comunicação com o solo. Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses. Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro. Catiti Catiti Imara Notiá Notiá Imara Ipeju A magia e a vida. Tínhamos a relação e a distribuição dos bens físicos, dos bens morais, dos bens dignários. E sabíamos transpor o mistério e a morte com o auxílio de algumas formas gramaticais. Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Mathias. Comi-o. Só não há determinismo onde há mistério. Mas que temos nós com isso? Contra as histórias do homem que começam no Cabo Finisterra. O mundo não datado. Não rubricado. Sem Napoleão. Sem César. A fixação do progresso por meio de catálogos e aparelhos de televisão. Só a maquinaria. E os transfusores de sangue. Contra as sublimações antagônicas. Trazidas nas caravelas. Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um antropófago, o Visconde de Cairu: – É mentira muitas vezes repetida. Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jabuti. Se Deus é a consciênda do Universo Incriado, Guaraci é a mãe dos viventes. Jaci é a mãe dos vegetais. Não tivemos especulação. Mas tínhamos adivinhação. Tínhamos Política que é a ciência da distribuição. E um sistema social-planetário. As migrações. A fuga dos estados tediosos. Contra as escleroses urbanas. Contra os Conservatórios e o tédio especulativo.

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De William James e Voronoff. A transfiguração do Tabu em totem. Antropofagia. O pater famílias e a criação da Moral da Cegonha: Ignorância real das coisas+ fala de imaginação + sentimento de autoridade ante a prole curiosa. É preciso partir de um profundo ateísmo para se chegar à idéia de Deus. Mas a caraíba não precisava. Porque tinha Guaraci. O objetivo criado reage com os Anjos da Queda. Depois Moisés divaga. Que temos nós com isso? Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade. Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz. A alegria é a prova dos nove. No matriarcado de Pindorama. Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada. Somos concretistas. As idéias tomam conta, reagem, queimam gente nas praças públicas. Suprimarnos as idéias e as outras paralisias. Pelos roteiros. Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos e nas estrelas. Contra Goethe, a mãe dos Gracos, e a Corte de D. João VI. A alegria é a prova dos nove. A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura – ilustrada pela contradição permanente do homem e o seu Tabu. O amor cotidiano e o modusvivendi capitalista. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade. Porém, só as puras elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identificados por Freud, males catequistas. O que se dá não é uma sublimação do instinto sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico. De carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o amor. Especulativo, a ciência. Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo – a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos. Contra Anchieta cantando as onze mil virgens do céu, na terra de Iracema, – o patriarca João Ramalho fundador de São Paulo. A nossa independência ainda não foi proclamada. Frase típica de D. João VI: – Meu filho, põe essa coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça! Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar o espírito bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da Fonte. Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama. OSWALD DE ANDRADE. Em Piratininga Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha." (Revista de Antropofagia, Ano 1, No. 1, maio de 1928.)

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