Revista Vivência Ocupacional - Volume 4

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vivência ocupacional informativo da ms antropo consultoria | ano 2 | nº 4 | março 2014

Liderança corporativa

O sinthoma de cada um

Márcio Serrano

Eduardo Ribas

Eliana Mendes

Os transtornos somatoformes no trabalho | p. 6

Entrevista Liderança corporativa | p. 15

O mal estar no trabalho | p. 11


"A educação é a arma mais poderosa que você pode usar para mudar o mundo." Nelson Mandela


editorial

O inconsciente e os gritos do corpo

M Márcio Serrano Editor

esmo sabendo que um dito sempre se organiza a partir de um impossível de dizer, é com satisfação que publicamos a quarta edição da revista Vivência Ocupacional para abordar, pelo viés da saúde e da segurança, os erros humanos e o que repetimos neles. Falhas da alma? Não. Falhas que implicam o corpo humano. Acertos do inconsciente! Estamos acostumados a ouvir sobre a alma humana na voz de Platão e Aristóteles. E não menos na voz de Santo Agostinho ou São Tomás de Aquino. Todavia, gostem ou não, a alma humana não é senão justamente o que vem dizendo os biólogos, os bioquímicos, os biofísicos e os fisiologistas. A alma humana é o próprio corpo. Alma como a soma de todas as funções, moléculas, energia e metabolismo. Por isso, quando o inconsciente fala e funciona, ele não toca a alma senão por meio do próprio corpo do sujeito que porta a voz da alteridade. É o corpo que o inconsciente atinge com o discurso que vem do outro. Somos o que repetimos ser entre acertos e erros no percurso de nossas vidas. E o que se repete nunca quer ser somente rememorado em nós. O que se repete é da ordem do trauma, da marca, da ferida. O que se repete quer reproduzir e molestar o nosso corpo. Quer atuação bruta. Ele cobra significação. Ai de nós se não fornecê-la... Por isso, tratamos, na quarta edição da Vivência Ocupacional, desses gritos do corpo, que põem os médicos em dificuldade, contrastando a pilha de exames normais. Estamos dizendo dos transtornos mentais que penalizam o corpo das pessoas. Nesta edição, publicamos também com muito orgulho a entrevista com o jovem e competente gestor de recursos humanos, Eduardo Ribas. Ele responde perguntas sobre a Liderança Corporativa. Desejamos uma boa leitura para todos!


sumário

vivência vivência ocupacional ocupacional 5 Notícias 6

Márcio Serrano Os transtornos somatoformes no trabalho

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Eliana Rodrigues Pereira Mendes O mal-estar no trabalho

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Aline Castro, Débora Ferreira, Karine Souza O Programa de Conservação Auditiva e sua relevância na gestão da saúde do trabalhador

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ENTREVISTA Dr. Eduardo Ribas Liderança Corporativa Uma chave para o sucesso da empresa

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Mariana Barros Níveis de atenção à saúde do trabalhador: uma importante ferramenta do planejamento da saúde ocupacional

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Teresa Genesini Forbes e as duas clínicas de Lacan – Uma breve apresentação

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Mauro Freire Odontologia ocupacional

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Fátima Serrano ELISABETH ROUDINESCO: psicanálise e neurociência

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ESTANTE

EXPEDIENTE Vivência Ocupacional é uma publicação da MS Antropo Consultoria. Distribuição gratuita. Circulação dirigida. Registro no Cartório Jero Oliva n. 1.175 Editor: Márcio Serrano Jornalista responsável: João Paulo Mello – JPMG 18.000 Colaboraram nesta edição: Aline Castro, Débora Ferreira, Eliana Rodrigues Pereira Mendes, Eduardo Ribas, Fátima Serrano, Karine Kellvia, Márcio Serrano, Mariana Barros, Mauro Freire, Teresa Genesi. Revisão: Cybele Maria de Souza Projeto gráfico e diagramação: Pomar de Ideias Fotografia: SXC, StockFoto Ilustração: Clayton Ângelo Impressão: FUMARC Tiragem: 2 mil exemplares Contatos: ms.antropo@gmail.com Vivência Ocupacional não se responsabiliza por conceitos emitidos em artigos assinados ou por qualquer conteúdo publicitário ou comercial, sendo esse último de inteira responsabilidade dos anunciantes. Você poderá obter, gratuitamente, um exemplar desta revista na Livraria Verso e Prosa - rua Bahia n. 1.148/603, Ed. Arcanjo Maleta, Belo Horizonte - MG. Disponível enquanto durarem os exemplares.

NOSSA CAPA

Esta edição da Vivência Ocupacional é dedicada aos bombeiros, profissionais das forças de segurança responsáveis pela prestação dos serviços de prevenção contra sinistro, proteção, socorro e salvamentos. Os bombeiros, que podem ser civis ou militares, atuam em ações integradas com os órgãos do Sistema de Defesa Social, e com a sociedade. Atendendo diversas demandas diariamente, de forma eficiente e ágil, primam pela melhoria da qualidade de vida e do exercício da cidadania. Foto cedida pela Assessoria de Comunicação do Corpo de Bombeiros Militar de Minas Gerais


notícias

01.

Dr. Márcio Serrano recebeu do Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais (CRM-MG) o certificado de reconhecimento pelos serviços prestados à Câmara Técnica de Medicina do Trabalho durante o período de 2008 a 2013. Ele prossegue exercendo a atividade.

02.

O Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG) comemora 50 anos de atividades. Em nome do fundador, Malomar Edelweiss, e da presidenta, Eliana Mendes, nossa homenagem à instituição e ao seu corpo de psicanalistas.

03.

Dra. Gina Barón acaba de ser eleita Presidenta do Comitê Permanente da Organização Ibero Americana de Seguridade Social (OISS) e tomou posse em 1º de fevereiro de 2014. Ela substitui o decano da OISS e ex-ministro da Previdência Social da Espanha, Dr. Adolfo Jimenez.

As cartas devem ser enviadas à redação pelo email: ms.antropo@gmail.com Por motivos de espaço ou clareza, as cartas poderão ser publicadas resumidamente. Não é assegurada a publicação de todas as correspondências recebidas.

Gina foi ministra do Trabalho da Colômbia e ficou conhecida por seus trabalhos técnicos e humanitários na Organização Internacional do Trabalho (OIT) e pela criação e aprovação da Nova Lei da Previdência Social de seu país. Numa visita realizada a Bogotá, a convite de Gina Barón, em 2005, o Dr. Márcio Serrano pôde conhecer reformas no Seguro Acidente de Trabalho implantadas pela então ministra.

Hoje, ela leciona a disciplina Proteção Social no Trabalho nos cursos de graduação, mestrado e doutorado nas principais Universidades da Colômbia e Espanha. Desejamos sucesso a ela nesta nova missão.

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Os transtornos somatoformes no trabalho O que falta para compreender a patologia que mais desafia os profissionais da medicina no dia a dia

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s médicos das empresas têm muita dificuldade diante da abordagem de um trabalhador apresentando transtornos somatoformes. Eles são um grupo comum de transtornos mentais para os quais não se pode encontrar uma explicação médica adequada. No entanto, as queixas somáticas apresentadas são suficientes para causar o sofrimento mental e interferir na capacidade do empregado em desempenhar seus papéis ocupacionais. O diagnóstico do transtorno somatoforme mostra que os fatores psíquicos são importantes na origem, manutenção e severidade dos mesmos. Eles não são resultados nem de simulações conscientes nem de produções com interesses secundários. Têm origem no modo de funcionamento do inconsciente humano. Como costumam ser confundidos com os transtornos factícios, simulações ou outras elaborações conscientes, eles devem ser conduzidos e tratados por profissionais especializados na clínica da psiquiatria, já que são objeto dela. A psiquiatria reconhece cinco tipos específicos de transtornos somatofor-

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mes: a somatização, a conversão, a hipocondria, o dismórfico e o doloroso. A somatização é um distúrbio inconsciente que implica o corpo e que, por isso, não pode ser adequadamente explicado com base nos exames médicos tradicionais, incluindo os complementares que, no caso, são quase sempre normais. Ela caracteriza-se pela multiplicidade de queixas e o envolvimento de muitos sistemas orgânicos. Corresponde à apresentação contemporânea da antiga histeria, incidindo em mulheres e homens. A prevalência na população é de um caso para cada cem pessoas. Costuma ser confundida com as doenças de origem física e a depressão. Os pacientes desse transtorno se apresentam com uma ficha médica extensa e exames complementares normais. Os médicos ficam frustrados por não encontrarem uma explicação científica plausível para o sofrimento dos que padecem desse transtorno. Não raro, são medicados para a depressão secundária com algum êxito e muita remissão. O outro tipo de transtorno somatoforme, a conversão, é um distúrbio inconsciente muito comum, que geral-


mente implica uma condição neurológica (dormência, fraqueza, paralisia, disfasia, cegueira) sem possuir, no entanto, qualquer explicação médica adequada. Os sintomas conversivos, quando passageiros, podem acometer até 25% da população geral, em algum momento de sua vida. Cerca de 10% das consultas psiquiátricas de um serviço médico geral são motivadas pela conversão. Segundo a teoria analítica, a conversão seria o efeito da pulsão que incide diretamente no próprio corpo, em lugar de ensejar uma representação mental. O transtorno poderia funcionar como um meio substituto de expressão capaz de assegurar a satisfação pulsional de que a vida depende. O doente sofre e se satisfaz ao mesmo tempo em que se encontra. Na patologia, temos o Real impondo-se ao Simbólico. O corpo ocupando o lugar próprio da linguagem. A hipocondria é um distúrbio mental inconsciente que implica desconfortos do tipo gastrointestinal que levam os pacientes a imaginar que possuem alguma doença grave ainda não detectada pela medicina. Como não se encontra uma explicação médica plausível nem uma solução de fato eficaz, eles vão de médico em médico, demandando mudanças da abordagem e da medicação. Aqui, temos o Imaginário recobrindo o furo do Real, em face da ausência de uma solução Simbólica. O sofrimento em decorrência da hipocondria afeta o desempenho ocupacional e social das pessoas. O transtorno dismórfico caracteriza-se com uma preocupação inconsciente exacerbada de uma pessoa em torno de um defeito corporal, sendo este da ordem do Imaginário ou amplificado por ele. O transtorno dismórfico também causa muito sofrimento e prejuízo na vida social e ocupacional das pessoas afetadas. A explicação racional não consegue convencer o doente de que o seu corpo é normal, pois ele não o imagina assim. Os cabelos, o nariz, a pele e os olhos são as partes do corpo onde os portadores do transtorno dismórfico encontram mais

defeitos em si mesmos. Eles costumam se esconder, acreditando possuir uma aparência horrível aos olhos dos outros. Mais uma vez temos aqui o Imaginário contornando o Real diante da falta de uma solução Simbólica. Os doentes costumam buscar ajuda na clínica plástica, que recusa tratá-los cirurgicamente, pois compreende que o problema não está no corpo. De fato, eles necessitam dos “bisturis” da clínica psiquiátrica. O transtorno doloroso é um distúrbio inconsciente que implica a queixa de uma dor crônica intensa intratável, não explicada pela clínica médica, nem demonstrada por meio de exames complementares. O sofrimento mental das pessoas costuma ser desproporcional aos supostos achados ou explicações para a dor. Pelo fato de a dor não seguir nenhum padrão médico anatômico, ela tem sido menos valorizada, utilizando-se para ela até o termo “psicogênica”, que, na prática, nada ajuda no diagnóstico e no tratamento. Muito menos ajuda os sujeitos com a dor persistente. Não tem sido incomum depararmo-nos com trabalhadores que exigem cirurgias para extirpar a queixa dolorosa. Quando realizadas, os resultados desses procedimentos cirúrgicos não são aqueles esperados com as melhores das intenções. E o pior: o imbróglio sintomático acaba revertendo-se em desfavor judicial do médico e da empresa (em se tratando de trabalhador) em forma de ação por lesão corporal culposa. O melhor que a clínica do trabalho pode fazer, ao suspeitar de um caso de transtorno mental somatoforme, é encaminhá-lo para o tratamento psiquiátrico especializado, pois a patologia tem a ver é com o modo de funcionamento do inconsciente humano e, como tal, requer a conduta de um profissional experiente. Os médicos peritos têm tido muito trabalho com os transtornos somatoformes. Em geral, se bem conduzidos, é possível chegar a uma resolução favorável dos casos.

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Todavia, o que de fato se encontra na base da fisiopatologia e da psicopatologia dos transtornos somatoformes? O que se encontra na raiz do problema é o inconsciente humano e o seu modo de funcionamento. O inconsciente humano, posto que somente o ser humano tenha inconsciente, é estruturado como uma linguagem que fala e funciona como se pretendesse atravessar a razão, controle ou intenção. Por isso, que, ao se utilizar o raciocínio semiótico tradicional, não se encontra no caso dos transtornos somatoformes uma explicação “científica” plausível. Em consequência, os doentes acabam ficando resistentes, indignados, impacientes, repetitivos e irritados com todos que cuidam deles. A saída é uma só: ou se muda a patologia ou se muda o modelo de abordagem da mesma. Em seu modo de funcionamento, o inconsciente humano pode se manifestar em forma de pulsos que se irrompem na aparência de um deslize, para revelar algo que sem saber o sujeito sabe. É nes-

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se “deslize” que, de fato, encontramos a chance de avaliar e encaminhar a atualização do conteúdo do inconsciente do sujeito transtornado pela doença. A este ato de revelação espontânea denominamos “ato falho”, que, ao contrário do nome, trata-se de um “ato certeiro”. Um verdadeiro tiro na mosca. Aquilo que de fato o trabalhador tem a nos dizer. Nenhum sujeito diz qualquer verdade no pleno vazio de um lenga-lenga ou de um bla-blá-blá em uma entrevista médica. Ao contrário, é o modo do “sem querer querendo” do inconsciente que expõe as verdades dos sujeitos. E isso nos causa certa surpresa: por que falamos aquilo? Por que estamos agindo assim? Entretanto, o inconsciente não se manifesta somente nestes breves momentos de luz como se pretendesse nos comunicar as verdades em conta-gotas. Ao contrário, e é justamente isso que quero enfatizar neste artigo, o inconsciente manifesta-se o tempo todo, constituindo mesmo o nosso modo de


ser e de se apresentar aos olhos dos outros. Ele é responsável por essa forma de apresentação significante de cada sujeito: o seu sinthoma. Cada sujeito tem o seu próprio sinthoma (com th), seu núcleo duro, sua marca registrada, sua identidade. Uma pessoa que se apresenta ao médico com uma queixa somatoforme está buscando, inconscientemente, nos dizer, já que conscientemente ele não o faria, que ele está de fato sofrendo de um imbróglio que lhe fez chegar ao ponto que chegou, ou seja, ao seu sinthoma. Só que o sujeito não sabe que sabe disso. Ele não consegue expressar pela via racional o que está sentindo e por que está sofrendo tanto, da mesma forma que, pela via lógico racional, o médico também pode não estar compreendendo o enigmático de seu paciente. E por não poder compreender por esta via, o médico se exaspera, e solicita exames, na expectativa de que as máquinas da saúde possam revelar algo mais que não lhe foi possível captar. A par disso, a causa real é de fato incompreensível pela razão. Ela escapa sempre à inteligibilidade humana. Isso é conhecido desde Aristóteles, em “A Teoria das Quatro Causas”, quando ele descreve as causas acidentais: Autômaton (repetição inconsciente) e Tiquê (repetição real). Enquanto isso, o inconsciente segue regendo todas as nossas escolhas e nos impele a realizá-las ao seu modo. E como as escolhas humanas são mesmo deliberadas inconscientemente pelo seu modo de funcionamento, isso nos leva

a questionar o quão verdadeiro é o tão propalado “livre arbítrio” das pessoas. Contudo, como o inconsciente está presente em todas as decisões humanas, finalizamos sendo os efeitos dele. De fato, cada sujeito é o efeito da função de seu inconsciente. Cada um de nós vive e revive o curso da estrutura e função de sua linguagem inconsciente que não é, diga-se de passagem, nenhum blá-blá-blá... O conteúdo da escrita do inconsciente nunca pode ser apagado, a menos que ocorra um traumatismo cranioencefálico (TCE) e destrua a massa encefálica. Entretanto, o conteúdo do inconsciente pode ser analiticamente retificado ao ponto de mudar o padrão daquilo que se repete automaticamente, ou seja, o sinthoma. Este é a mais pura e silenciosa verdade do que somos e representamos ser: a nossa essência última. A cadeia de repetição, isto é, a incidência e a reincidência de todos os eventos bons e ruins de nossas vidas, ao contrário da instantaneidade típica dos atos falhos, vêm demonstrar o quanto o inconsciente é presente em nós. É por isso que temos procurado dizer aos colegas médicos que estamos de pleno acordo sobre a teoria do funcionamento neuronal com receptores, moduladores, suas redes etc., ou seja, a teoria do funcionamento mental. No entanto, não podemos acreditar que o caso do transtorno somatoforme seja o mesmo do transtorno factício! Isso não! São entidades clínicas diferentes. Devem ser objeto de abordagens diferentes. O inusitado é que esta “discussão” não é nova. Ela vem sendo feita há mais de cento e cinquenta anos. As paralíticas de Salpetrieri, se pudessem dizer, engrossariam o nosso coro. Contudo, o exemplo de seus corpos gritantes ficaram e contribuíram para que os transtornos somatoMárcio Serrano formes pudessem vir Médico do Trabalho ANAMT/AMB. a ser elucidados.

Psiquiatra ABP/AMB

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O mal-estar no trabalho “Vivemos numa sociedade de risco, com possibilidade de adoecimento e acidente pessoais”.

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reud afirmou o que se pode esperar de uma análise concluída: uma certa vitória contra o impedimento ao amor e ao trabalho. Ele afirma que “depois que o homem primevo descobriu que estava literalmente em suas mãos melhorar a sua sorte na Terra, através do trabalho, não lhe pode ter sido indiferente que outro homem trabalhasse com ele ou contra ele. Esse outro homem adquiriu o valor de um companheiro de trabalho, com quem era útil conviver”. A vida em comum tem um duplo fundamento: o poder do amor e a compulsão para o trabalho, criada pela necessidade de domar a natureza. Na civilização ocidental cristã, o trabalho, desde as suas origens, foi visto como um castigo, mal necessário, fardo imposto pelos infortúnios contingenciais, ocupação à margem da verdadeira vida, exigência a ser tolerada para sobreviver. Resíduos deste ponto de vista continuam manifestando sua potência como retorno do recalcado na constituição de nossas instituições, pensamentos e subjetividades. Isso se deve à crença da igreja romana de que o mundo, como criação divina, é perfeito e, portanto, o homem devia se de-

dicar à contemplação, deixando o fardo do trabalho para os que não conseguissem fazê-lo, por um motivo ou por outro. Já para o judaísmo, a divindade criou o mundo, mas o deixou inacabado. A humanidade, então, é convocada à tarefa de aperfeiçoá-lo, por sua conta e risco, por meio da história, pelo estudo e pelas obras. A frase de Isaías “as espadas se converterão em arados” metaforiza a paz, fazendo uso do instrumento não contra outras nações, mas a favor do trabalho. Freud, como judeu, embora não religioso, usa o termo trabalho em sua obra, tanto em atividades realizadas pelo homem, quanto em outras realizadas no homem. Sua noção de trabalho vem sempre acompanhada de uma certa alegria na vitória sobre os impedimentos. Nós, psicanalistas, temos de estar atentos ao que se passa na cultura, pois as mudanças no mundo do trabalho estão incidindo diretamente em nossa práxis. Em vez de penetrar nos pontos críticos da articulação do sujeito com o discurso social, para desmontar as armadilhas tecidas pelo confronto imaginário entre o coletivo e o individual, o analista tende a se refugiar “no individual da clínica psicanalítica”, ou seja, a psicanálise em sua forma mais ortodoxa. No entanto, esse desafio se volta sobre

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a psicanálise, pois os efeitos psicopatológicos provocados pelos rompimentos nos sistemas de representação subjetiva, quando não constituem causa de sofrimento psíquico, retornam como acidentes e outras formas de atuações. O apego excessivo apenas à modalidade da clínica individual traz, para nós, três tipos de risco: o analista pode tornar-se surdo a um lado fundamental da transferência da qual é objeto; o analista pode estar renunciando a oferecer uma escuta e a interpretação psicanalítica à posição do sujeito histórico, ali mesmo onde a psicanálise pode contribuir, contra qualquer obscurantismo, lembrando que o processo analítico é sempre um processo de desalienação; o analista pode não confrontar a consistência da ferramenta analítica perante as áreas em que sua práxis tropeça, tornando inviável a construção de um trabalho interdisciplinar. Vivemos numa sociedade de risco, com possibilidade de adoecimento e acidente de trabalho. O assédio moral aparece cada vez mais implicado no ocupacional. O risco psicossocial, também chamado de o sexto risco ocupacional, pode ser invisível, mas seus efeitos são devastadores. Na Ibero América ele já é oficialmente considerado pelos governos. O perfil da condição do trabalhador na sociedade contemporânea depende de onde os quadros de trabalho sejam mais consistentes. Quando essa consistência não é possível, os trabalhadores ficam sujeitos a uma falta de projeto, sem plano de futuro definido. Ficam à deriva das flutuações do mercado de trabalho. As categorias organizadoras da subjetividade começam a ser corroídas e o sujeito se acha subvertido no processo. O trabalhador fica refém do nomadismo, sem coordenadas espaciais ou temporais. O mal-estar no trabalho incide em três categorias básicas: perturbações no corpo, perturbações na ação e perturbações nos afetos.

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O corpo, na contemporaneidade, diante de todas as rupturas de valor que são vivenciadas, tornou-se o bem supremo dos sujeitos. Ele é o que nos resta. Por isso, as patologias atuais, tais como as psicossomáticas demonstram a precariedade do processo de simbolização, o que acaba por explodir no corpo. Na ação, vemos a agressividade, a violência e o acidentes de trabalho. Para se livrar das pulsões, e não ter que se destruir narcisicamente, o sujeito responde com a neurose de pânico, a fadiga crônica e as compulsões (droga, comida, consumo). As compulsões são, na verdade, formas fracassadas de ação. No que se refere aos afetos, o sujeito não tem mais o controle de si próprio, em relação às dificuldades que encontra. Sendo assim, experimenta a depressão como um vazio, havendo na verdade, um esvaziamento do campo do pensamento, acompanhado de pobreza de linguagem. Essa pobreza aparece não só por causa do predomínio das imagens, fenômeno específico do nosso tempo, mas também por causa das próprias transformações internas. O sujeito contemporâneo é cada vez mais marcado pela dor experimentada no corpo, pois, o sofrimento, sendo a subjetivação da dor, está sendo mais difícil de ser vivido em nossos dias. Os psicanalistas têm de repensar suas categorias de escuta, alargar seus domínios de trabalho. A psicanálise precisa “se desapegar da ortodoxia”, reconhecer outros espaços além dos consultórios e abrir-se à palavra, ao discurso da ética do sujeito, principalmente junto às organizações de trabalho. Nota: A autora adaptou o seu trabalho original ao formato e espaço desta publicação, contudo, ela o disponibiliza ao leitor interessado, por meio do e-mail desta revista, informado na pág. 5 desta edição.

Eliana Rodrigues Pereira Mendes

Psicanalista Presidente do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG)


O Programa de Conservação Auditiva e sua relevância na gestão da saúde do trabalhador

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ruído sempre esteve presente em nossa sociedade e tem crescido em níveis alarmantes não apenas no ambiente ocupacional. O silêncio urbano pode ser comparado a um oásis. A Organização Mundial de Saúde (OMS) aponta o ruído como a terceira maior causa de poluição ambiental. A perda auditiva, causada pelo ruído ou por agentes químicos, já é a doença do trabalho mais prevalente no mundo. É possível garantir a saúde integral do trabalhador sem ações efetivas para a redução do ruído? De que forma os programas de prevenção podem contribuir para mudar esta realidade? Ações de controle do ruído ambiental são relatadas desde o ano 600 a.C., mas seu impacto na saúde do trabalhador passa a ganhar destaque após a Revolução Industrial, sendo o advento tecnológico e o aumento da exposição

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ao ruído elevado associados a diversos prejuízos à saúde dos operários. Com a pressão no mercado, surge um paradigma: “A redução do ruído só é possível com mudanças na produção, e isso pode diminuir o lucro da empresa. Então, prefiro manter o trabalhador no ruído, continuar lucrando e pagar uma indenização no futuro. Prefiro pagar para ver”. O Programa de Conservação Auditiva (PCA) surge com o intuito de quebrar esse e outros paradigmas. A legislação brasileira é bem específica quanto à normatização de processos voltados para o controle do ruído e a prevenção de seus efeitos biológicos, sociais e previdenciários. Nos anos 90, do século passado, foram regulamentados os principais balizadores da saúde auditiva ocupacional no Brasil: as Normas Regulamentadoras NR-7 e NR-9, do Ministério do Trabalho, e a Ordem de Serviço OS-608 do INSS. A legislação supracitada apresenta as diretrizes para implementação do programa e torna obrigatória a instituição do PCA em empresas com nível de ruído acima de 80 decibéis. A prática integrada e integral do PCA tem sua essência na antecipação de riscos e na identificação precoce da doença ocupacional por meio de um conjunto de ações de vigilância epidemiológica e sanitária planejadas e coordenadas com o intuito de prevenir e/ ou estabilizar a Perda Auditiva Induzida pelo Ruído (PAIR). Com a legislação a favor e o roteiro de implementação em mãos, basta colocar o PCA em prática, certo? Não! O PCA é muito mais abrangente. Surge aqui o segundo paradigma: “Muitos empresários, e até mesmo médicos, engenheiros e fonoaudiólogos que atuam na área ocupacional, desconhecem a legislação que ampara o PCA. Alguns a conhecem, mas realizam apenas parte do que é recomendado por falta de recursos ou por negligência. Poucos a utilizam em sua íntegra, deixando de desenvolver um trabalho de excelência voltado

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à prevenção”. Da prática incompleta ou imperfeita do PCA, surgiram outros nós que vêm resumindo o programa à identificação de problemas ou à apresentação de relatórios com muita teoria e poucas evidências de sua prática.

Amplitude do PCA

Por pressões internas ou externas, por desinformação ou por comodismo, o PCA ainda é confundido como uma parte do Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional (PCMSO) ou uma parte do Programa de Prevenção de Riscos Ambientais (PPRA), quando na verdade é um programa independente, que resulta da congruência desses dois. O PCA não é uma sigla. Muito menos se resume à realização periódica de audiometrias. Apesar de considerarmos que uma série audiométrica criteriosa seja a base sólida e o norteador do PCA, ações de controle individual e coletivo do ruído, compreensão do processo industrial como ferramenta de mudança, treinamento, motivação e uso eficaz de proteção auditiva, são etapas que agregam valor ao programa e à identidade de responsabilidade social da empresa. Bem mais que um documento entregue no final do ano, o PCA é o processo ativo, sistemático e contínuo que culmina na criação de um relatório que apresenta a realidade da empresa, prevê ações e planeja metas de qualidade quanto ao Aline Castro risco ruído e à saúde Especialista em Audiologia auditiva no âmbito ocupacional. É preciso vencer paradigDébora mas e efetivamente Ferreira colocar em prática Especialista em Audiologia o PCA, afirmando o papel do programa em agregar qualidade e gerar resultados e Karine Souza benefícios reais para Especialista em Fonoaudiologia empresas e pessoas.


entrevista

Liderança Corporativa Uma chave para o sucesso da empresa

Eduardo Ribas

Superintendente de Recursos Humanos, Meio Ambiente e Comunicação da VSB

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Vivência Ocupacional: A democracia atrapalha ou ajuda nas relações corporativas? Eduardo Ribas: Entendo como essencial ouvir as ideias, as sugestões e discuti-las em benefício do binômio trabalhador-empregador. A prática de ouvir os colaboradores sempre ajuda muito em todos os níveis da organização. Ações e metas definidas em conjunto, com a participação dos trabalhadores, geralmente são acompanhadas de um alto nível de comprometimento de todos os envolvidos para a sua realização. Agora, diferentemente da esfera pública, onde todos pagam a conta pelos resultados, no setor privado, os resultados só podem ser inteiramente assumidos pelos sócios do negócio. Assim, é compreensível que as definições quanto ao que será encaminhado, discutido com os colaboradores, devem ser uma atribuição dos diretores e gestores do negócio, de acordo com as estratégias e necessidades da empresa em cada momento. VO: O que é melhor: buscar líderes no mercado ou desenvolvê-los internamente? ER: Uma solução não exclui a outra, contudo, sou favorável à orientação de desenvolver as lideranças internamente, sempre que as apostas nas pessoas se apresentem como viáveis. Uma boa estratégia é se utilizar dos líderes mais bem-sucedidos e experientes na orientação e na qualificação dos colaboradores mais novos. É evidente que todo esse trabalho, em médio e longo prazos, deve ser conduzido dentro de um planejamento adequado. Não raramente, nas organizações, nos deparamos com jovens muito qualificados, detentores de currículos inve-

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jáveis, com perfil para a liderança, mas, sem a maturidade necessária para tanto. E, esta maturidade não se adquire facilmente, não se trata de um “produto de prateleira” que pode ser comprado a qualquer momento. Entendo que é necessário um caminho a ser percorrido pelo próprio candidato à posição de líder. A necessidade desse percurso é pessoal e indelegável. Ele pode ser até abreviado mediante um bom planejamento (plano de desenvolvimento), mas, nunca desconsiderado, suprimido. VO: As empresas estão repetindo ou inovando padrões? ER: A inovação é sempre bem-vinda, sobretudo, quando ela se mostra capaz de gerar melhores resultados, melhorar o clima organizacional e atender às normas éticas e técnicas da empresa, sobretudo, aquelas relacionadas à produção, saúde e segurança das pessoas. Para isso, entretanto, é imprescindível que exista um ambiente favorável à criação e à inovação e que estimule e reconheça os avanços das pessoas da empresa neste campo. VO: Por que muitos colaboradores não fazem o que deles se espera? ER: Em alguns casos porque a expectativa do empregador está além da possibilidade do colaborador naquele momento. Creio que não basta empregar uma pessoa e esperar que ela atenda a todas as suas expectativas, sem antes ter assegurado as condições de que ela necessita para atendê-las. As pessoas necessitam saber com clareza o que vão fazer e por que devem fazer no trabalho. Necessitam de qualificação e treinamento adequado. Elas devem saber como a tarefa prescrita pelo gestor deve ser feita. Um plano de trabalho. Esta questão


implica facilidades ou dificuldades pessoais e guarda relação com o trabalho seguro e saudável. Em alguns casos, as pessoas acreditam que o modo de fazer prescrito para elas não é o melhor, nem o mais seguro ou saudável. É necessário ouvi-las, pois, às vezes, elas podem estar com a razão. Elas também necessitam ser acompanhadas e orientadas e receber da empresa o retorno sistemático de como estão indo no trabalho. Sentirem-se motivadas. Esse retorno é muito importante e gratificante para as pessoas. O alto e o baixo desempenhos devem ser tratados pela empresa com justiça. Estes são apenas alguns entre os muitos cuidados que temos que observar enquanto gestores, para que os colaboradores façam o que deles se espera em termos de resultados qualitativos e quantitativos. VO: Como se explica o sucesso de algumas empresas a exemplo da que você responde por ela? ER: O bom desempenho de qualquer empresa se deve a um conjunto de ações desenvolvido por um time de pessoas nas mais diferentes áreas da mesma. No que concerne à área de recursos humanos, é essencial dispor de um bom planejamento estratégico, construído junto com a própria equipe interdisciplinar da empresa. A nossa empresa investe muito no trabalho em equipe e no trabalho interdisciplinar. Contamos com administrador, psicólogo, higienista, médico, ergonomista, enfermeiro, engenheiro de segurança, controler, especialista em comunicação, assistente social, terapeuta, profissional de TI, advogado, relações públicas, consultores e assessores especializados e os técnicos destas áreas. Seguimos uma política de gestão da qualidade bastante clara e objetiva, trabalhamos com metas, resultados, indi-

cadores e realizamos reuniões periódicas de acompanhamento e avaliação. O mais importante é que de fato a equipe constitua um time de trabalho, ou seja, que o trabalho seja realizado em rede e que as decisões sejam tomadas de forma participativa. Nesse campo, o instrumento da comunicação interna é fundamental. Somos uma empresa jovem, em formação, ainda com muito a ser feito. Todavia, considero que estamos no caminho certo. Os indicadores mostram isso. VO: Você acredita que o grande desafio da liderança corporativa é o saber lidar com o sinthoma de cada um dos colaboradores? ER: Sem dúvida. E não é por acaso que temos especialistas neste campo do conhecimento humano trabalhando em nosso time de RH. O sinthoma é o modo de ser de cada pessoa que, com técnica e prática apropriadas, pode ser desenvolvido ao ponto de a pessoa se reconhecer nele e saber de suas potencialidades e limitações. Isso na empresa é essencial porque tem a ver com a saúde, a segurança e o os resultados do próprio trabalho. A liderança tem que estar qualificada e sensível ao modo de ser de cada colaborador e contar com os seus potenciais e suas limitações, tanto em termos físicos quanto psíquicos, montando as equipes de trabalho dentro de padrões de saúde e segurança para que se possa alcançar produtividade com qualidade de vida. Qualificar a liderança nos aspectos não apenas técnicos, mas, também no modo de funcionamento dos seres humanos é o caminho indicado para se montar os times de trabalho, reduzir os incidentes e se estabelecer de forma competitiva no mercado industrial.

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Níveis de atenção à saúde do trabalhador: uma importante ferramenta do planejamento da saúde ocupacional

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a ordem de nobreza da clínica ocupacional, temos uma escada com seis degraus de relevância, efetividade e retorno dos investimentos em saúde. No primeiro e mais nobre de todos os níveis de atenção à saúde, em geral, e do trabalhador, em particular, temos a Promoção da Saúde. Promover a saúde é retirar o trabalhador de um determinado patamar de saúde conhecido e elevá-lo a outro mais alto, mais saudável, com maior qualidade de vida. Isso só se faz com educação em saúde. No segundo, e também nobre dos níveis de atenção à saúde, em geral, e do trabalhador, em particular, temos a Prevenção de Doenças e Acidentes. Prevenir doenças e acidentes significa adotar medidas que protejam a saúde do trabalhador evitando que seu estado de saúde atual se deteriore. Isso se faz com proteção individual e coletiva contra os riscos ocupacionais, vacinação, segurança alimentar, vigilância em saúde individual e coletiva. No terceiro dos níveis de atenção à saúde, em geral, e do trabalhador, em particular, temos o Diagnóstico Precoce, ou seja, a detecção dos primeiros sinais e sintomas de um possível adoecimento em curso que precisa ser detido em sua raiz. Isso se faz com monitoramento médico periódico da saúde física e mental do trabalhador. É o patamar da Medicina do Trabalho das empresas, em sua grande maioria. Já no quarto dos níveis de atenção à saúde, em geral, e do trabalhador, em particular, temos o Tratamento Médico, qual seja, a medicina corre-

tiva. Aqui o foco é o tratamento clínico ou cirúrgico dos casos de adoecimento já detectados, a exemplo de uma hipertensão, de uma diabetes, de uma doença pulmonar, de uma depressão mental ou de uma cárie dentária. Isso se faz por meio dos serviços médicos que as empresas colocam à disposição dos seus trabalhadores em forma de saúde suplementar. No quinto dos níveis de atenção à saúde, em geral, e do trabalhador, em particular, temos a Reabilitação Médica e Psicossocial. Aqui cuidamos das consequências temporárias ou definitivas produzidas pelas doenças tratadas no nível anterior. Os exemplos mais comuns das ações desse nível são as fisioterapias, a reabilitação de funções reduzidas e a readaptação a novos cargos ou funções. Por fim, o sexto nível é o do que temos pouco a exaltar, pois aqui estamos dizendo da invalidez e da aposentadoria por invalidez, ou seja, a proteção social pela perda permanente, total ou parcial, da capacidade para o trabalho e da qualidade de vida. Enquanto no quinto nível temos um retorno de 4 para 1 do investimento aplicado, no primeiro nível temos a relação de 40 para 1 do investimento aplicado. Os números falam por si só da importância de cada um dos níveis de atenção à saúde para a qualidade de vida das pessoas. O trabalho de atenção à saúde do trabalhador exige uma gestão técnica experiente. Este não se trata de um campo indicado para ensaios ou testes, mas, sim, de uma ferramenta integrada ao planejamento da saúde ocupacional. Mariana Barros Médica do Trabalho

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Uma breve apresentação

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m decorrência das mudanças do século XXI, as pessoas se perguntam se a Psicanálise já não deve ser diferente da Psicanálise do século passado. Como a Psicanálise poderia se posicionar perante os problemas e as crises do mundo pós-moderno? Recentemente, o psiquiatra Jorge Forbes apresentou, no Instituto da Psicanálise Lacaniana (IPLA), em SP, um trabalho inédito sobre o ensino de Jacques Lacan relativo a esta questão, conceituando as duas fases da clínica deste genial psiquiatra francês. Irei resumir o que ele apresentou com a aprovação do Forbes. A primeira clínica - marca o momento da entrada de Lacan na Psicanálise - vai de 1953 a 1970. Uma clínica

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pertinente ao século XX, que consagrou Lacan como aquele que trouxe a linguística para a Psicanálise. Até então, o analista pós-freudiano preenchia o silêncio do analisando ou devolvia a ele o que havia dito, de uma forma mais palatável. Para Forbes, o analista fazia uma certa maternagem em relação aos seus pacientes. Lacan se vale da obra de Ferdinand de Saussure para fazer o mundo perceber a instância do significante no inconsciente. Os analistas deviam repetir de certa forma aquilo que Anna o havia descoberto - que o saber não estava nem com o médico analista, nem com o paciente, mas na associação livre, numa instância que se dá nesse encontro. A partir daí, a questão de

Foto: Rodrigo Cancela

Forbes e as duas clínicas de Lacan


colocar alguém em análise é a de possibilitar a saída da cena imediata - ego a ego (eu e você) - para outra cena, um outro lugar, onde aquilo que é dito ganha um sentido novo que ultrapassa aqueles dois que estão conversando. E porque se tenta ultrapassar o eu e o você é que se convida uma pessoa a deitar-se no divã - um instrumento técnico facilitador, não obrigatório - e iniciar a análise. Na primeira clínica não é o analista, nem é o analisando, mas sim o como lidar com a castração é que vai dar sentido ao mundo. Neuroses, psicoses e perversões são formas de a pessoa criar uma ligação com aquilo que estamos para todo e sempre desligados, o mundo. Entre este eu e o mundo existe sempre uma discordância, que não se resolve mesmo que eu modifique meu mundo. Já dizia o poeta: “Mundo, vasto mundo, se eu me chamasse Raimundo, seria uma rima, não uma solução” (Carlos Drummond de Andrade). Esse modo de operar, criado por Freud, foi possível porque a sociedade era vertical. Funcionou como uma vacina; pegou bem. Hoje, a sociedade não é mais assim e, por conseguinte, o Complexo de Édipo não é mais eficaz como antes. A segunda clínica de Lacan - menos conhecida e menos difundida - vai de 1970 a 1981. Um Lacan com 70 anos de idade, apressado, pois sabia que não iria ter tempo para rever todo o seu ensino, deixa-nos essa segunda clínica incompleta como o plano arquitetônico da catedral de Gaudi, para que seus discípulos continuassem a desenvolvê-la. No Brasil, o psicanalista Jorge Forbes tem-se dedicado ao projeto de Lacan por entender que essa segunda clínica é a que responde ao homem de hoje. E nós o acompanhamos. A partir de 1970, há uma mudança na Psicanálise - saímos do Freud que explica e passamos para o Freud que implica.

A Psicanálise que não dá uma visão de mundo, mas que põe em questão todas as visões de mundo. Ela diz de outro tipo de felicidade, uma felicidade que a pessoa não pode explicar que não é uma verdade comprovada, mas é uma verdade mentirosa. A felicidade do acaso, não a felicidade por merecimento. Lacan fala de outra clínica do sujeito do inconsciente, que não passa pela palavra. A Psicanálise, clínica da palavra, passa a tratar de algo que passa fora da palavra. Não tem mais aquela coisa da pessoa ficar se perguntando o que há por trás do que ela está dizendo, mas sim, saber que não há nada além daquilo, não há nada mais que ela possa nomear, ela pode até inventar. No final da análise, na segunda clínica de Lacan, há o que chamamos de desabonamento do inconsciente - não há mais essa descarga de irresponsabilidade. A pessoa se dá conta de algo duro - é um sinthoma, mas não o sintoma inicial, que a pessoa trouxe para a análise, esse sinthoma decifrável - mas um sintoma indecifrável, que não será mais transformado: a pessoa descobre que ela é o seu sinthoma. É a última formulação de Lacan sobre o que é o final de análise - é a pessoa se dando conta de sua existência como um sinthoma não decifrável. Como lidar com isso? Inventando algo. Responsabilizando-se por essa invenção e fazendo-a passar no mundo. É um duplo movimento necessário à análise: invenção e responsabilidade. É na segunda clínica de Lacan que encontramos respostas para os laços sociais tocados pelo real. Agradecemos ao Dr. Jorge Forbes a permissão dada à colega Teresa Genesini para a publicação do resumo de sua apresentação no IPLA.

Teresa Genesini Psicanalista – Instituto da Psicanálise Lacaniana (IPLA) SP

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Odontologia ocupacional

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rogramas de gestão de saúde são comuns. Tanto internamente como por meio de planos de saúde, grandes empresas já mapeiam os riscos à saúde de seus funcionários, visando criar hábitos saudáveis por meio de ações de prevenção e de qualidade de

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vida (incluindo promoção de atividade física, informações sobre como deixar de fumar, escolha de alimentos saudáveis etc). Contudo, até recentemente não era consenso nas empresas que esses programas se estendessem à saúde bucal. Por motivos até mesmo históricos: o modelo


hegemônico de prática odontológica no país era centrado na população escolar, gestantes e bebês, privilegiando a atenção individual e curativa. À população adulta era oferecida, assistência reparadora de urgência, como restaurações, extrações, tratamento de canal etc. O atual perfil da odontologia se aproxima mais do modelo de prevenção, preocupando-se não só com a preservação dos dentes, mas com a qualidade de vida da população, incluindo-se aí os trabalhadores. Nessa concepção mais moderna, o objetivo é provocar uma mudança de atitude do paciente em relação aos hábitos, voltada para a saúde. Como informa o Manual de Procedimentos para os Serviços de Saúde do Ministério da Saúde, males dentários são causa importante do absenteísmo e podem estar associados ao comprometimento de órgãos vizinhos da boca, como ossos e seios da face, à função mastigatória, além de serem foco de contaminação do organismo. Prevenir o seu aparecimento pode evitar desconforto físico, emocional, prejuízos à saúde em geral, e a diminuição da produtividade e atenção dos empregados dentro de suas funções. “Problemas odontológicos podem prejudicar as atividades de uma empresa de várias maneiras”, lembra Fernando Garcia Pedrosa, superintendente da OdontoPrev. “Os trabalhadores que sentem dor ou desconforto podem, em consequência, dormir mal, se sentir estressados, ter restrições alimentares, desordens psicológicas e mau relacionamento com as pessoas, devido à diminuição da autoestima.” Ele conta que, tendo essa concepção mais moderna em vista, a OdontoPrev criou um programa digital exclusivo de gestão odontológica, que possibilita o mapeamento da saúde bucal dos trabalhadores de seus clientes, inicialmente por meio de questionário online de avaliação de problemas relacionados à boca. Os questionários abordam temas como cárie, hábitos de higiene, doença periodontal, risco de câncer bucal e dores.

A proposta da empresa de planos odontológicos é levantar os riscos específicos e problemas mais comuns entre os funcionários e familiares e, a partir daí, desenvolver um programa de prevenção com palestras presenciais, cartazes, cartilhas, orientações online via e-mail (personalizado ou por meio de dicas gerais) ou orientações gerais via site. O primeiro objetivo é diminuir a incidência de doenças bucais, por meio de orientação sobre os hábitos alimentares, de higiene e fatores de transmissão. Além disso, estimular as consultas preventivas com o intuito de reduzir a incidência de doenças bucais, como cárie, gengivite e periodontite. E ensinar técnicas de escovação mais eficientes que podem ser transmitidas inclusive para as crianças. Sem contar que uma boca saudável e um sorriso bonito valem pontos para a autoestima e a confiança dos atendidos. Todavia, o programa da OdontoPrev vai mais além de garantir a saúde e a estética dos dentes. Ele também ajuda a evitar danos e doenças em outras partes do corpo, lembrando que uma saúde bucal deficiente pode ser a origem de agravos como doenças cardiovasculares e respiratórias, diabetes, parto prematuro, problemas digestivos etc. Além disso, contribui para o diagnóstico precoce e a prevenção do câncer bucal, por meio de orientações para a realização de autoexame e identificação dos sinais indicativos de perda da normalidade do tecido bucal. Uma orientação eficiente também amplia o conhecimento sobre traumatismos bucais e acidentes de trabalho e suas primeiras providências. “A longo prazo, os efeitos de programas desse tipo podem ser sentidos na melhoria da saúde não só individual como coletiva”, afirma Pedrosa. “Além de impulsionar toda uma área de política de promoção da saúde voltada para a qualidade de vida dos trabalhadores.”

Mauro Freire

Enfermeiro do Trabalho

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ELISABETH ROUDINESCO: psicanálise e neurociência

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Por que é tão difícil pensar de forma integrada e deste pensamento se beneficiar?

neurociência não propõe adentrar o campo da concepção filosófica do ser humano. Na condição de uma ciência ocupada com as doenças neurológicas e cerebrais, com os marcadores neurológicos e as neuroimagens ela propõe contribuir com conhecimentos essencialmente técnicos. Ela não propõe em si gerar qualquer concepção filosófica do homem. Entre os neurocientistas podem existir pessoas materialistas, humanistas, religiosos, porém ela própria não desenvolve nenhuma concepção particular do homem como ocorre com as ciências em geral.

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As neurociências se encontram em franca expansão, o que é ótimo. O que temos a criticar é que a neurociência tem apresentado uma ideia muito reducionista sobre o ser humano. Para ela o ser humano é reduzível à soma dos seus neurônios, ou ao seu funcionamento cerebral. A neurociência goza de prestígio porque tem apresentado progressos, resultados. Graças aos conhecimentos gerados por ela muitas doenças neurológicas e cerebrais puderam ser diagnosticadas e tratadas com êxito. Quanto a isto não temos nenhum reparo a fazer. O que criticamos é que tais progressos não podem ser usados para justificar um modelo muito reduzido para a questão do humano, pois isto é outra coisa. Existe, por exemplo, um grupo grande de distúrbios mentais que não consegue nem ser diagnosticado nem ser tratado de forma eficaz pelas neurociências.


Isto demonstra que a questão humana é muito mais que a simples soma dos neurônios que uma pessoa tem. A condição humana do ser falante transcende em muito o plano da pura biologia. A neurociência não pode ser apresentada como a ciência do homem, no sentido de o que dá conta do humano, porque não é assim. Isto tem sido utilizado como uma bandeira para a captação de recursos financeiros para o desenvolvimento de suas pesquisas que quase sempre culminam com o fornecimento de novos produtos farmacêuticos, métodos de diagnósticos e equipamentos hospitalares. Em outras palavras, seus resultados costumam ser tangíveis. Assim, a opinião pública é levada a concluir que os seus produtos são essenciais para a vida e a morte. Isto, contudo, não deveria ser utilizado para negligenciar os recursos para as ciências humanas como a antropologia, a sociologia, psicanálise, etc, que procuram trazer mais qualidade para a questão do humano na sociedade. Como vivemos num mundo dominado pela ciência e pelo imediatismo, percebemos que existe, e com razão, um pouco de exagero na apreciação do valor das neurociências. Este desequilíbrio pode levar à falsa impressão de que como as ciências humanas não geram produtos tangíveis, elas não servem para nada, porque não é assim. A sociedade não conseguiria progredir nem viver com qualidade sem as contribuições inequívocas das ciências humanas. Sabemos da história que quando se valoriza em excesso a ideologia da ciência em detrimento às ciências sociais, as pessoas se voltam para as seitas religiosas e o fanatismo. Quando se abandona o campo das ciências humanas que não segue a lógica das ciências exatas, instala-se na sociedade uma racionalidade excessiva que produz consequências nefastas à paz social e ao desenvolvimento sustentável.

Quando se abandona a questão do humano as pessoas se refugiam nas crenças, seitas, ilusões, medicinas paralelas, etc. Este tem sido pela avaliação da história o preço a ser pago pela ideologia cientificista em excesso. Isto não é bom, pois o ser humano para se realizar socialmente necessita conviver com a experiência e os resultados tanto das ciências exatas quanto das ciências humanas. Infelizmente, nos dias atuais, o campo da racionalidade humana, que não é estritamente científico, foi abandonado com as consequências que conhecemos bem: violência, desrespeito, drogas, fanatismo, corrupção, descumprimento dos contratos sociais. Esta tem sido a pena advinda da ideologia cientificista excessiva da contemporaneidade. Quanto ao psiquismo e tudo o mais que não trata da materialidade do cérebro, são fenômenos que não conseguem ser explicados pelas ciências exatas, que não podem ser vistos pelos sistemas das neurociências. Não podemos ver pela neurociência a capacidade criativa do homem, interpretar analiticamente o comportamento psíquico do homem ou compreender o modo de funcionamento do seu inconsciente. Nada disso compete à neurociência, mas, sim, às ciências interpretativas. Em suma, o que queremos dizer é que o cérebro e as doenças neurológicas são uma coisa e o psiquismo humano é outra coisa diferente. O sistema de proposição de verdades da neurociência somente é aplicável nos campos cerebral e neurológico, fora destes campos, ou seja, no campo do psiquismo humano estas “verdades neurocientíficas” não constituem sequer sombras de verdade. E vice-versa. É o que nos ensina o teorema da incompletude do matemático Kurt Godel. A entrevista da historiadora ELISABETH ROUDINESCO foi resumida pela psicóloga organizacional, Fátima Serrano.

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estante

livros O FIO DAS MISSANGAS Autor: Mia Couto Editora: Companhia das Letras 147 páginas O autor moçambicano, ganhador do Prêmio Camões de 2013, brinda o leitor com pequenos contos cuidadosamente montados como um colar precioso. O fio que perpassa as narrativas conduz o leitor pelas sutilezas do universo feminino e reúne experiências humanas que poderiam parecer desconexas. A missanga do colar é vista por todos, porém, ninguém dá conta é do fio que, em colar vistoso, vai articulando as mesmas.

POR QUE REPETIMOS OS MESMOS ERROS? Autor: Juan-D Nasio Editora: ZAHAR 128 páginas O psicanalista argentino radicado em Paris, Juan-D Nasio, autor de várias dezenas de livros de psicanálise, mostra nesta publicação por que o inconsciente humano impele as pessoas a repetir compulsivamente as mesmas coisas, tanto as atitudes de sucesso quanto aquelas que nos conduzem ao fracasso. Por que agimos contra nós mesmos? É esta pergunta que o livro pretende responder para você.

filmes Amantes passageiros Direção: Pedro Almodóvar Espanha/2013 A bordo de um avião, um grupo de passageiros vai conhecer o pânico quando se apercebe que uma falha técnica ameaça pôr em risco as suas vidas. Assim, tendo que viver uma situação limite, passageiros e tripulantes se ligam uns aos outros de uma maneira inusitada e decidem abrir o jogo sobre os seus segredos mais íntimos. Afinal, conseguiremos compreender o inconsciente dos amantes passageiros?

Hysteria Direção: Tanya Wexler Reino Unido, França, Alemanha/2012 O jovem Dr. Mortimer se emprega como assistente do Dr. Dalrymble, um dos médicos pioneiros no tratamento da histeria feminina e que se prepara para a aposentadoria. Aos poucos o jovem médico começa, de fato, a compreender o que se esconde por trás da causa da mulher impedida de expressar os seus desejos no esplendor de uma sociedade vitoriana. A relação do que se passou com a contemporaneidade seria mera coincidência dos descaminhos do desejo humano? Ou a repetição do modo de funcionamento do inconsciente?

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