Villa da Feira 26

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Egas Moniz insinuando o seu esforço de distanciamento em relação às polémicas que envolveram o ensino dos Jesuítas numa nebulosa suspeição completa a sua avaliação com este comentário: «Apraz-me deixar aqui exarado o meu depoimento imparcial»17. Educação: ideário congregacionista

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republicano

versus

ideal

A legislação contra a existência em Portugal das Ordens Religiosas, a Lei de separação do Estado das Igrejas e todas as medidas laicizadoras da sociedade transportavam em si, no quadro do ideário republicano, muito mais do que uma mera distinção funcional dos dois poderes ou da distinção da sociedade religiosa em relação à sociedade civil. Representava o início de todo um programa de afirmação do Estado e de uma nova cultura que deveria substituir-se progressivamente à influência da religião na sociedade, embora a sua execução estivesse longe de alcançar o êxito esperado: «Laicizar o conhecimento, a natureza, a sociedade e a vida, tornar a escola gratuita e laica, dessacralizar o padre, civilizar os ritos de passagem, constituíram, assim, momentos de um processo descristianizador totalizante, cujo ponto nodal irá centrar-se, porém, nas relações jurídico-políticas entre a Igreja e o Estado, isto é, na dimensão institucional do projecto laicizador»18. Embora se tivesse teorizado e tentado regulamentar a valorização da cultura patriótica, ou seja, todas as actividades, a produção artística e intelectual, toda a obra produzida pelos cidadãos tendo como referência a nação e o seu progresso, era o sentimento que deveria substituir e preencher o vazio do ‘primitivo’ sentimento religioso19. Para levar a efeito tal ideário tão radicalmente transformador implicaria, como de facto se projectou, a supressão de todas as instituições de ensino a cargo da Igreja, inclusive os seminários. Só assim a República poderia libertar a infância e a juventude da matriz obscurantista veiculada pela instrução.

Egas Moniz, op. cit. Nestas suas memórias, o Nobel português da Medicina, destacou particularmente um professor jesuíta que o marcou e que muito apreciou, precisamente o contraditor de Miguel Bombarda na polémica analisada em torno dos Jesuítas e a ciência: «Tive um notável professor de matemática, o Padre Fernandes Santana». E confessa mais à frente referindo-se à Companhia de Jesus e à possibilidade de ter alimentado uma vocação para ser jesuíta: «A atmosfera da Ordem não me desagradava». Ibidem, p. 256. 18 Fernando Catroga, “O laicismo e a questão religiosa em Portugal (18651991)”, in Análise Social, Vol. 100, 1988, pp. 211-273. 17

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O ideário republicano focava a educação como um campo de intervenção prioritário e acreditava que era pela aposta na formação do “homem novo” que poderia modificar a face do país. Nesta esteira, escreve António Nóvoa, destacando que a educação era para a República uma questão estrutural: «O interesse republicano pela coisa educativa não se funda numa preocupação essencialmente pedagógica, mas antes na convicção de que a ‘verdadeira’ República só seria possível através de uma outra educação, pois as instituições revolucionárias não podem constituir-se a partir de um sistema escolar do passado»20. O movimento republicano e a sua prática política é fundada numa verdadeira fé na educação. Esta verdadeira crença no poder da educação bebia do pensamento pedagógico republicano marcado profundamente pela “pedagogia positivista”. Como explica Maria Cândida Proênça, à luz do pensamento de Augusto Comte e da sua escola de pensamento positivista, muitos ideólogos republicanos quiseram aplicar à “educação a lei dos três estados – religioso, metafísico e positivo – e, neste sentido, consideravam fundamental que se extirpasse da educação tudo o que tinha a ver com as primeiras etapas. Daí a sua crítica cerrada à influência da religião católica na educação (…). Ora, para que a instrução pudesse contribuir para o desenvolvimento intelectual do educando, tornavase imperioso laicizá-la em todos os graus; caso contrário, Cumprindo um dos aspectos do ideário laicista que era a substituição de todos os elementos de natureza religiosa que estruturavam a vida do homem em sociedade, em especial a ritualização do tempo, o governo republicano tentou implementar a substituição do calendário religioso por um calendário laico que valorizasse a comemoração dos valores, dos acontecimentos e dos heróis do novo regime. Para esse fim, por exemplo, o dia 1 de Janeiro foi consagrado à Fraternidade Universal; o dia 21 de Janeiro aos mártires da República; o dia 5 de Outubro aos Percursores e Heróis da República; o dia 1 de Dezembro à autonomia da Pátria Portuguesa; 25 de Dezembro à Família... Sobre as estratégias de afirmação do nacionalismo e da cultura nacionalista ver Rui Ramos, A Segunda Fundação, op. cit., p. 353 e ss.; e Ernst Gellner, Culture, identity and politics, Cambridge, 1987. 20 António Nóvoa, História da Educação, Lisboa, 1994, p. 187. Mas rapidamente este ideário revolucionário republicano viu-se confrontado com na sua prática política com o desengano das realidades e com as conveniências e transigências que estas exigiam para salvaguardar minimamente a estabilidade nacional e a paz social. A breve trecho o governo concluiu que o país não tinha condições de dispensar totalmente as instituições religiosas sem excepção. E teve que limitar este projecto político de depuração católica. Desde logo, não arriscou aplicar a legislação anticongreganista nos territórios ultramarinos portugueses, da forma radical como tinha feito na metrópole, por considerar que isso colidiria com os interesses coloniais portugueses. Por isso, não mandou expulsar dos campos de missão portugueses os missionários nacionais e, mais do que isso, acabou por desenvolver uma política de feição regalista ao tentar nacionalizar o Padroado Português do Oriente. 19

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