Verborhagia #6

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Revista eletr么nica de Literatura

Verborhagia


Vingamos.

Bela capa de Marina Lulli

Ano 2, n. 6, março de 2015 Lisiane Andriolli Danieli Marcelo Martins AndrÊ Luiz Costa Participe: www.facebook.com/Verborhagia verborhagia@gmail.com


Os inocentes Marcela Dantés escreve desde que se entende por gente. (O que aconteceu na terceira série, quando começou a fazer as redações das primas mais velhas). Cílio Paulo Rodrigo Ohar, é de Porto Alegre e já teve vários poemas publicados por aí, além de um livro publicado em 2013 juntamente com os colegas do Bando Hoburaco, chamado HOBURACO. João Maria Elizabeth Knopf é Oficial de Justiça, leitora voraz, um pouco viciada em escrever. Aprendendo com o poeta Diego Petrarca. Autoparto Sócrates Magno Torres é educador social e militante dos direitos humanos. Poeta nas horas ocupadas. Gosta de escrever crônicas, artigos, roteiros, peças e contos. Gosta mais do que sabe de cada coisa. Aprende com as coisas simples, com a despretensiosidade. Não tem medo de desafios...


Poemas Fabíola Weykamp é poeta, faz telepatia com cães (Otto confirma o fato) e é devota de Leminski. Em sonho, seus poemas são cantados pela Gal Costa. Uma fábula sobre sentidos André Lima é professor de Português e Literaturas, podcaster e contista até quando está fazendo as outras atividades. Poemas Marcelo Martins vive em Albatroz no último andar do Hotel Oásis. Às vezes cavalo-marinho, às vezes mãe d’água. Poemas Lisiane Andriolli Danieli às vezes pensa que é poeta só porque anda na rua, olha para o céu e tem ideias para versos.


OS INOCENTES No meio da noite, naquelas horas em que nada deveria acontecer, aconteceu. Um pequeno estrondo, enorme para as dimensões daquele quarto e para o silêncio daquela vida. A estante vermelha na parede, oposta a uma janela escondida na delicadeza da cortina de linho, despencou. Demorou até que ela entendesse. No escuro, o despertar forçado num de repente faz tudo parecer o fim do mundo. Com o coração acelerado, os olhos reaprendiam a dar forma ao breu. Sentou-se na cama e precisou de tempo para se lembrar do peixe. Ivan, um beta quase preto, chegara num dia qualquer – não fazia frio, nem muito calor. Não chovia, nem era feriado. Ele disse que era um presente, ela enxergou um pequeno (muito pequeno) vertebrado indefeso. Gostava de ficar observando o movimento das suas nadadeiras, era como se o peixe usasse uma fantasia de tule para dançar por aí, meio bruxo, meio bailarino. Ali, sentada num banquinho de plástico, as horas passavam e os olhos não deixavam Ivan. Perdia tempo, mas ganhava a confiança do peixe, que parecia gostar do seu olhar – a dança era mais bonita quando ela estava por perto. Não precisou acender a luz para saber que o aquário estava em pedaços. O maior deles ao lado da cama, no lugar exato de o pé pisar para sair. E doeu. Enquanto se equilibrava até o interruptor, um traço bem fino de sangue marcava o caminho, um fio de Ariadne meio improvável, que talvez a levasse de volta à estabilidade de uma cama quente. Um lembrete inevitável da nossa


nossa fragilidade. Uma dor que tem alguma coisa de boa. Não tinha tempo para isso, porque não tinha mais tempo. Condenou o hábito de adiar a solução para as pequenas questões do dia a dia. Tivesse trocado a lâmpada do abajur e ninguém se cortaria. Nem ela. Encontrou o interruptor esperando encontrar Ivan. Mas só tinha água, vidro e sangue. Pensou na ironia da vida: deixaria o peixe morrer no mesmo dia em que pediu que ele fosse embora. A vingança perfeita de um despedaçado. Fazia sentido, mas peixes não desaparecem. Ainda que morto, ele tinha que estar em algum lugar. Na fração de segundos em que aceitava a culpa por aquela morte prematura, correu os olhos pelo chão do quarto. Nenhum peixe, ninguém dançando numa fantasia de tule. Ninguém com dificuldade de respirar, exceto ela. Não a asma de criança, mas talvez uma pista da síndrome de pânico de outros tempos. Pensou nas ironias da vida: o ar não chegava aos seus pulmões, mas ela ainda tinha dois. Ivan, sem nenhum, devia estar morrendo onde seus olhos não alcançavam. Castigo elegante do semideus que ela abandonara? Perfeito. Ivan chegara de bicicleta, ela detestava esse hábito. Não que não se preocupasse com o meio ambiente, as árvores, os pássaros. Mas a bicicleta era meio velha e ele um tanto desatento. Ela se preocupava com ele, era só isso. Mas naquela tarde insossa, sorriu ao avistar da janela uma cena hilária e solene, que se aproximava do portão. Ele pedalando, com um aquário


aquário redondo numa das mãos, ao mesmo tempo em que segurava o guidom com a outra e gritava “ei, linda, tenho uma coisa pra você”. Pensou que qualquer coisa que fosse, deveria estar morta com aquele balanço apressado e sem jeito. Dizem que são frágeis esses animaizinhos. Mas Ivan estava vivo. Ali, no pé da cama, encostado na madeira, quase preto como havia sido todos os dias, o peixe tinha os olhos abertos e esperava. Com dificuldade, mas era diferente para alguém? Estranhou a sua pequenez. Soberano no aquário, ele diminuía diante dos seus olhos. Murchava. As nadadeiras, finos pedaços de papel prestes a se desfazer. Ele acabava. Tem vezes em que a cabeça vai rápido, quase sempre quando a gente precisa. Herdara uma moringa da avó, mas nunca acordava para beber água (ela não acordava pra nada). A moringa virou vaso de flor, lírios naquela semana. Amarelos, no chão. Frágeis, ela com o peixe na mão. Levou um tempo. Pouco. Ele dançou de novo, bailarino de si mesmo. Ninguém a acusaria de nada. Talvez, de ter amado demais.

Marcela Dantés


CÍLIOS

luz cega olho em pane cílio cai nos domínios da pupila olho desesperado lágrima desce inunda cílio olho cerra escuro

paulo r.


JOÃO João por batismo por teima por reina joão que é sem braço e que sai de fininho joão carpinteiro João que só é sortudo quando pega no bicho joão cachaceiro que bebe no bico que dorme no chão joão sem dinheiro João que é traveco e que vira Maria que dança que chora que canta que às vezes desanda e se chama de joão trançudo. João que é de ouro de barro João de deus que é sem deus que não é José não é pai de jesus não é pedra não funda igrejas nem pedro ele é joão que é joão e joão tão somente joão que é demente joão que é semente que é homem e só.

Maria Elizabeth Knopf


AUTOPARTO Escrevo a partir da minha ânsia. Da ressonância autofágica e exorcista. Da tentativa inútil de reter uma alma que se esvai. Do peso revelador dos meus próprios ossos. De dentro da jaula tácita das minhas convicções. Do assalto recebido por uma alma inquieta. Do objeto não revelado e onipresente. Desde a desconstrução espiritual. Diante da transmutação nada voluntária. Sentado ao lado da bacia que contém as minhas vísceras. Da erupção catártica. Da cura amarga da chaga invisível. Da força que jorra por poros e boca. Da tensão do arco da promessa a ser cumprida. Do poder que me acomete sem vazão. Da temporalidade que não eterniza. Do soco no estômago do faminto de afetos. Da vontade de experimentar-se. Do clarão assustador na noite infinita. Do olhar desassombrado da entidade presente. Da compreensão do gemido da cigarra. Da noite alta que tardará a ceder. Da palavra não dita, do gesto contrafeito. Da letargia da matéria exausta e humana. Da sublimação do éter e do carbono. Do niilismo ritualizado. Molhado no líquido amniótico de meu autoparto. Da metamorfose em um átimo. Do inexorável novo ser que brota. De volta ao barro que espera um novo sopro...

Sócrates Magno Torres


a infertilidade do verso vazio (para isolda campos) eu fadada à escuridão repouso a mão sobre o ventre murcho há na madrugada a morte anunciada do poema faminto a lágrima caligráfica de uma vida infecunda e o amor demorado ocupam esse imenso e atordoado espaço-vazio eu penumbra e sombra um vestígio de verso suponho a morte à chama derradeira da palavrangústia vertigem que sangra sobre o poema nulo: sou o corpo devorante dessa existência que se ausenta úmida e só

Fabíola Weykamp


etecetera além (para leminski) como não rimar peixe com borboleta e entender que a vida é uma festa que passa ligeira? ... queima a mufa inventa a rima que te convém a palavra é tua mas é o poema que me detém ... que se lasquem métrica compasso e braço consanguíneo dou nome de norte ao marimbondo lambo o dedo indicador e a saída vira entrada ... tem beco sem saída como na arte da vida nasce a morte todo dia ... todo dia me enxugo e rio da sorte abro o mapa e sou a própria liberdade ... língua boca e sardas canto sem ritmo o amor me arrepia até o umbigo a partir do volume "la vie en close", de Leminski. Fabíola Weykamp


UMA FÁBULA SOBRE SENTIDOS

O homem tinha tantas, tantas e tantas coisas a dizer. Falava, falava e falava. Só falava. E falava mais se dessem alguma brecha maior. Nunca se dava ao trabalho de ouvir ninguém. Para quê? Ele pensava que havia crescido ao ponto de tocar o céu quando lhe aprouvesse. O que alguém ainda podia acrescentar ao seu gigantismo? Sempre tinha a desculpa de que era mouco para justificar a ausência de reciprocidade nos contatos, mas era capaz de demonstrar que captava os ruídos imperceptíveis. No início, as pessoas paravam o que estivessem fazendo e ouviam sua fala integral. Algum tempo depois, seus interlocutores pareciam ouvir muito menos do que a metade do que ele expelia. Essa plateia rareou para uns dez por cento do montante antigo entre uma respirada e outra para tomar fôlego. Até que por fim, por mais que se esforçasse, ele não conseguia mais emitir som algum. Os parcos ouvintes só o viam mover a boca, sem ter a mínima noção do conteúdo de seu discurso. Ele se desesperava, tentava se expressar por meio de escrita, sugeria leituras labiais e lançava mão até de mímicas. Nesse ponto, ele esbarrava em um outro problema: o povo não tinha conhecimento de leitura, improviso e interpretação. Com o silêncio forçado que lhe fora imposto, ele notou que sofrera uma estranha mudança no corpo. Uma espécie de raiz tinha se formado no seu umbigo. Logo uma haste apareceu na região e nasceu dela uma orelha perfeita. Por conseguinte, o aparecimento do pavilhão auricular trouxe-lhe o retorno de sua voz e o surgimento de uma ouvinte perfeita para a continuidade infinita de sua oratória.

André Lima


A chuva fala línguas ancestrais que inundarão as peças da casa. Viver no teto é opção. E nem precisaremos vender o endereço. Contas e ameaças de morte continuarão chegando pelo correio. O resto sobreviverá nas malas desfeitas (Discos Cupins Facas) confundindo dor e esperança.

Marcelo Martins


outro O encontro dessa vez despedida (a porta bateu três vezes) caos do frágil alumínio cada batida, sombra do que fomos espírito carne inválidos Os tristes estão repletos de olhos e o destino se apresenta de mãos fechadas

Marcelo Martins


No carro Enquanto os carros param na chuva passam as bicicletas molhadas barbas vĂŁo mais rĂĄpidas que meus 20 km/h

Lisiane Andriolli Danieli


Tempo O ônibus atrasa Ou adiantei a saída Atrasei o certo Adiantei o errado Todos correm Pra algum ou alguém Coletivo passa Solidão passa em carro Carro é o tempo E corre Sempre atrasado para algum momento.

Lisiane Andriolli Danieli


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