Verborhagia #5

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Revista eletr么nica de Literatura


Pela quinta e última vez este ano, declaramos: literatura é vida! Verborhagia surgiu como expositor. Nosso e de vocês. Esperamos que tenham gostado. 2015 tem mais! Entrem, venham, gostem. Mais uma capa linda feita por Susi Dohrn.

Ano 1, n. 5, novembro/dezembro de 2014 Lisiane Andriolli Danieli Marcelo Martins da Silva E: obrigada, André Luiz Costa. Participe: www.facebook.com/Verborhagia verborhagia@gmail.com


São Francisco de Paula Lisiane Andriolli Danieli escreve diferente enquanto ama, e gosta disso. Poemas Marcelo Martins é sagitariano. Isso explica tudo. Pemas Marcela Busetti gosta de escrever o que sente. Aprendeu isso na adolescência, quando leu A hora da estrela e chorou sem entender muito bem o que acontecia. Orgulho Gabriel Eduardo é um jornalista que escolheu a ficção. Alados Ana Dundes vem assumindo seu lado Don’ana. Na adolescência fugiu da roça, com medo de virar árvore. Mas hoje, a cada chuva, seus pés se enraízam e as unhas florescem. Gosta de café forte e de olhar caramujos farejando manhãs. Poema Karen Campos é uma buscadora. Poema Gabriel Sanna, vulgo Gabraz, nasceu no Rio de Janeiro e aos 5 anos mudou-se para Belo Horizonte, onde estudou Filosofia, Literatura e Cinema. Tem mais de 20 filmes, entre curtas e longas, nos mais diversos formatos, exibidos em mostras e festivais mundo afora.


São Francisco de Paula I O verde que se estende até onde os olhos já não alcançam fica perene na mente desenfreada II pássaro canta no ouvido exaurido na cama desfeita no sol posto do mundo já findo III folhas janelas roupas infla a blusa bagunça o cabelo leva o corpo para outro lugar distante de onde se está

Lisiane Andriolli Danieli

todo vento que balança


O poeta está nu parado em frente a estante de livros sentindo a solidez da vigília procurando um título com olhos estrábicos esperando ser fecundado pela poesia pelos versos que saltam das páginas rasgadas aspirando a poeira dos mortos. Musa da meia-noite flutua insone sob o teto dos amantes leva recados em cápsulas de analgésicos promove orgias celeradas na sala de jantar dorme no mastro negro dos marujos e com tua seiva escreve poemas no chão. Marcelo Martins


Libertei a sombrinha vermelha na chuva, de felicidade ela voou por entre os apartamentos financiados de dois dormitórios. A preocupação de ser feliz descansa no conforto de ser pequeno. Quando molhei os pés já não chovia mais. A sombrinha viveu pensando ser pássaro. Eu nada disse. Às vezes ela retorna para visitar-me, se estende majestosa no ar, diz não temer o trovão. Digo que ainda não sou feliz. Ela responde um canto de sábia e pinta no céu um sorriso de asas.

Marcelo Martins


O outro lado E quando está tudo caótico faço morada na solidão me aconchego em Dorian Gray, Macabea, Anne, e tantos outros. Quando o vazio toma conta uma coisa grita bem aqui dentro e faz eco e chora, lá dentro. E o colo, o conforto o abraço. Fica lá do outro lado, de não sei onde.

Marcela Busetti


Convite Se você for perfeito, por favor, não fale comigo! Se você estiver sempre de bem, nem chegue perto. Se o seu deus for melhor que o meu, nem me apresente. Se você sempre se achar bonito, me dê seu espelho. Se você acredita em pecados, fique na igreja. Se você é super-homem, ligue pra Hollywood. Se você for humano, assim como eu vem cá comigo!

Marcela Busetti


ORGULHO Me criei no sul, em meio à pampa ondulada. Sou filho e neto de peões de estância, dos antigos, forjados a adaga. Não conheci meu avô, morreu pouco antes de eu nascer. Meu pai contava que não existiu homem mais corajoso. Nunca levou desaforo para casa ou deixou serviço mal feito, nem mesmo quando precisou se matar. Na época, eu não entendia por que, entre as histórias de valentia sobre meu avô, o fato de ele ter se matado era o que mais orgulhava meu pai. Na parede de madeira do casebre de chão batido, deixava à mostra como um troféu a corda que tinha servido de forca. Seguiu ele como exemplo de tal maneira que eu jamais consegui ouvir suas histórias sem imaginar os dois sendo a mesma pessoa. Talvez por isso, não me surpreendeu encontrá-lo, anos mais tarde, pendurado na figueira ao pé da coxilha. Recolhi o corpo e guardei a corda. Eu já tinha dezoito anos e só então entendi: sem as guerras dos outros tempos, aquela era a única forma digna de se morrer em campo aberto. Se cair em batalha é um ato de coragem, o suicídio não é menos. A lida na campanha já não valia a pena. Juntei trouxas e trocados e vim para a cidade. Meu filho nasceu um ano depois. Não viveu o campo, mesmo assim, o criei da melhor forma possível. Levava na escola, no futebol. De vez em quando, eu improvisava uma goleira no quintal de casa: de um lado, um chinelo; do outro, o tronco de uma figueira; o travessão era um ga


galho que se estendia como um braço aberto. Eu ficava lá embaixo, esperando o guri chutar a bolinha de borracha. Não foi uma criança que me causou problemas ou que me desrespeitou, pelo contrário. É claro que fez besteiras, e então é preciso ser pai. Certa vez, uns colegas o ameaçaram; correu chorando até encontrar uma professora que teve que trazer ele para casa. A mulher chegou elogiando o comportamento do guri. – A gente sabe – ela disse – que isso vem de família. Um pai pode estar sempre perto do filho, mas, uma hora ou outra, ele vai aprender coisas que não deve, às vezes na própria escola. Ele tinha uns sete ou oito anos naquela época. A professora se despediu, entrou no carro e foi embora. Eu fechei a porta de casa, olhei bem pra cara dele, tirei a cinta e disse: – De mim tu não foge, piá de merda. Meu pai dizia que tem que corrigir os filhos desde cedo. Deu resultado. Não ouvi mais nada sobre o ocorrido na escola. Vez ou outra, eu notava umas marcas de briga, olho roxo, mão esfolada, mas nenhuma reclamação, nada. Nunca mais voltou acompanhado. Ensinei os valores e princípios que aprendi com o meu pai, mas nunca contei como ele e meu avô morreram. Não por horror da história, mas por não me sentir digno dela. Queria ser um exemplo, como meu avô foi ao meu pai e como meu pai foi a mim. A verdade é que, até então, eu nunca tinha pensado em me matar.


Conforme foi crescendo, comecei a notar algumas semelhanças com meu pai. Virou um rapaz quieto. Se tivesse brigado na rua, não abria a boca, idêntico ao avô quando chegava de algum reboliço. Mas ficou cada vez mais comum ele voltar machucado. Nós dois mal conversávamos e parecia que quanto pior era o resultado daquelas brigas, mais ele se afastava de mim. Ele tinha dezoito anos e naquele dia não voltou para casa. Só fiquei sabendo na madrugada: ele e outro rapaz tinham ido parar no hospital. Quando vi, não acreditei como podia ter provocado aquilo. Tinha o rosto tão esfolado que quase não reconheci. No caminho de casa, não trocou palavra comigo – e nem nunca mais. É duro para um pai admitir seu erro, que tenha faltado o exemplo. Talvez eu nunca devesse ter largado o campo. O fato é que só fui conhecer o meu próprio filho três dias depois. Acordei cedo e estranhei o mate já cevado sobre a mesa. Mais estranha ainda era a folha de caderno dobrada ao meio embaixo da cuia. Enquanto lia, a água quente borbulhava no meu peito. Um pai nunca espera que isso aconteça na sua casa, que um filho o desonre desse jeito. Tremia tanto que borrei a carta com erva. Quis matar o desgraçado. E o teria feito três dias antes, se fosse eu que tivesse encontrado os dois, naquelas maneiras, pela rua. Não o procurei. Me lembrei dos causos de bravura que meu pai contava: dizia que homem de verdade não deve ter medo da morte. Revirei a casa atrás da corda que o enforcou. Não achei. note


Mas às vezes o destino é velhaco. Passei a mão pela cintura e notei o couro gasto que há tanto tinha açoitado a covardia do guri; a mesma cinta seria, agora, meu cadafalso. A arranquei de um só golpe. Parei diante da porta dos fundos. Há momentos em que um homem precisa decidir entre o orgulho e o temor. Sentia o couro me retalhar a mão a cada latejada de sangue. Fechei os olhos e dei um largo suspiro. Voltei a afivelar a cinta. Ao abrir a porta, vi seu corpo ainda ferido suspenso na figueira.

Gabriel Eduardo


ALADOS Na noite morna Os pés caminhavam paralelos Sobre a calçada íngreme Subiam os degraus [deformados pelo tempo apressado de tantos outros pés] Calçados e calados Carregavam os corpos ofegantes As línguas falantes O ar entrava o riso saia Inspiravam um perfume doce Expiravam ternas lembranças Mas era nas mãos [que apertavam as alças das bolsas penduradas] Que o desejo palpitava

As mãos desencontradas Pendentes dos braços [de abraços ausentes] Frias e suadas Balançavam No lado alado da rua No caminho de volta As mãos, tão dadas ao afago Seguiram apartadas [amantes caladas] Mas plenas Por só desejarem O amor ao lado

Ana Dundes


passo a tarde com Sofia, encantamentos de menina sem o dente da frente que arrancamos juntas há três semanas carrega uma bolsa e um ursinho cor de rosa de uma pelúcia antiga perdida entre torradas, batata frita e suco de laranja e questionamentos e rebeldia (aquela dos seis anos de idade) conta que viu um beijo entre a mãe e o namorado e sentiu nojo pergunto por que fala que não sabe (me encara como se eu devesse acreditar) na pelúcia antiga que resistirá ao tempo mesmo que seja apenas um pouco mais

Karen Campos


tenho trauma do otorrinolaringologista desde pequeno quando encontrei o Rogério Flausino na fila de espera e não era efeito do descongestionante, perguntei se era segredo pra cantar fanho e fomos expulsos da clínica. quinze anos depois volta e meia eu marco uma consulta roto-rooter mas sempre anoto o endereço errado e fico perdido num edificio gigante procurando a sala, e toda vez parece o mesmo prédio mas nunca é o certo, acho que cada vez ta num lugar diferente da cidade. cheguei entrar no consultório e relatar minha história com detalhe até os anos de abuso de cocaína e tal mas quando me liguei a bicha era escultora de nariz, tava escrito na plaqueta, eu já nem sabia ler saí correndo tentando disfarçar minha plasticofobia e minha cara de erosão. a anne achava que era loucura mas um dia fomos juntos e ficamos os dois perdidos também, terrivel, agora não sei mais onde limpo todo esse catarro

Gabriel Sanna


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