Verborhagia #1

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Revista eletr么nica de Literatura

Verborhagia


Uma revista eletrônica dedicada à literatura independente. Verborhagia é ruptura, é fluxo de palavras, frases. Rhag é um afixo grego que tem sentido de saída, rompimento, efusão. A ideia é, portanto, libertar. Libertar os escritos das formas, textos das gavetas, a palavra do papel. Pois, no princípio, Verborhagia.

Ano 1, n. 1, julho de 2014 Lisiane Andriolli Danieli Marcelo Martins da Silva Participe: www.facebook.com/Verborhagia verborhagia@gmail.com


Aquarelando

Lisiane Andriolli Danieli não é escritora.

Investigações poéticas Marcelo Martins conheceu o mar quando criança e ficou apaixonado. Gosta de Clarice Lispector, Pixies e Clara Nunes.

Anatomia da lucidez André Luiz Costa escreve ficção desde 1991.

O afiador de facas Lígia Sávio leciona Português e suas Literaturas. Escreve contos e poemas e participou de algumas antologias independentes. Acredita que a Literatura preserva o que é humano e abre sempre novos caminhos no mapa de nossa sensibilidade e consciência.

Antes de partir revelarei o meu amor por ti na última frase Cristine Zancani tem vista para prosa, poesia e infinito.

Roda viva

Maurício Pacheco Amaro perambula pelo realismo mágico de Márquez, pelas tumbas de Poe, pela Hogwarts de Rowling e pela Terra-Média de Tolkien.

Despindo padrões

Bianca Siqueira é universitária brasiliense, aprendiz de escritora e poeta amadora. Feminista e politizada, um conjunto de clichês que desagrada, e pra completar, esquerdista declarada.

Um indiozin Felipe Gue Martini é pai gurizão, guerrilheiro das palavras. Henrique Cavinato Martini é filho nas horas vagas, nas cheias, filósofo.


AQUARELANDO Aquarelei teu olho azul para que tu me veja e seja quem tudo sabe e tudo vĂŞ da minha vida e de vocĂŞ.

eA n a i s Li

nd

eli i n a D riolli


A cidade também é feita de pegadas. Caminhando pela cidade, percebi, com certo alívio, que não somos este lugar que ocupamos, nem ele é o mesmo para aqueles que o compartilham conosco. Não somos, tampouco estamos juntos. Partilhamos o ínfimo dessa substância cujo nome convencionamos chamar realidade, talvez lhe caísse melhor concretude. Incapaz de compreender os outros, não compreendo a vida, pois um movimento implica no outro como se fossem caixas menores dentro de outras maiores, ou o cubo mágico e sua dinâmica integrada. Todavia, não sou pessimista, apenas desconfio que venho falhando por existir pouco. Igualmente não desejo ser leviano. Tomar café, ler livros e escrever frases não constituem em si prova de humanidade, ou prova de uma coisa qualquer, um sentido objetivo. A vida, às vezes, pode ser apenas um suspiro preguiçoso ou uma tarde de sono despreocupada. Não suporto deixar-me caído no sofá, de boca entreaberta, sentindo o vagar incipiente das horas. Porém, de modo arbitrário, o tempo me ultrapassa. O sol sucumbe à noite e o cosmos segue impenetrável no seu ritual da morte. Então dou a mim esta tarefa de permanecer de olhos abertos entre a descrença e a fé, gestando uma espécie de renascimento. Atento ao movimento sutil das palavras.


Atropelamento. Olhou para um dos lados antes de atravessar. Para um dos lados, não para os dois. Era distraída

Um uivo percorre as ruas do centro, Brutos e bailarinos asssomados na esquina, Todo pecado do concreto Nos olhos de uma estátua.

Chove. A grama jaz afogada, cachorros molhados e barcos de papel navegam em córregos infinitos. Arrasto a sola dos sapatos por entre inundações − ruas do passado. É dia. A cidade repousa no fundo abissal de um pesadelo. Enquanto isso, amontoados, esperamos.

Marcelo Martins

por vontade própria, nunca se dava por vencida.


ANATOMIA DA LUCIDEZ

fixei meus olhos em seus seios, seus enormes seios. Percebi que

Quando minha esposa disse

jamais os tocaria de novo, senti um

que estava grávida de outro

vazio

homem, o copo de chá gelado que

perfeita seria deformada pela

eu

das

gravidez. O filho de outro homem.

minhas mãos e se espatifou aos

Enquanto olhava para seus seios,

meus pés. O líquido amarelado,

que apareciam através da blusa

meio cor de urina, se espalhou

quase transparente do pijama,

pelo chão da cozinha, molhou

lembrei que eu abominava a ideia

meus sapatos, e ficou lá, entre os

de ser pai. Tive uma vontade

pedaços do copo. Achei que no

repentina

tom de voz dela existia alguma

mulher. Enfeitar o interior do

intenção oculta, algo talvez diverso

corpo

do que me disse, mas não sabia

Imaginei a cena. Ela, com a barriga

especificar o que era.

de grávida, empalada no quarto

segurava

escorregou

Incomodada

com

o

meu

silêncio, perguntou se eu não iria falar nada. Continuei olhando para

estranho.

de

dela

Sua

empalar com

um

barriga

aquela tronco.

em que dormíamos. Faria isso pelo simples prazer visual. Com

a

velocidade

do

o chão. Reparei na luz do dia,

desespero, ela caminhou na minha

cinza, em como ela entrava pela

direção, parou com seu rosto

janela e realçava o amarelo do

próximo ao meu e começou a

líquido, refletia nos cacos de vidro.

esfregar os pés nos cacos de vidro.

Ela disse mais alguma coisa que eu

Seu sangue se misturando ao

não ouvi, mas levantei a cabeça e

amarelo do chá. Disse que podia


ver o ódio que eu sentia, que, se

atitude, e ela, sabendo disso,

me agradasse, e valesse de alguma

pareceu desistir. Tão rápido que

coisa, enfiaria os pedaços de vidro

quase não vi, rasgou o pescoço de

nos próprios olhos. Achei estranha

um lado ao outro.

aquela manifestação e virei meu

Não sei dizer quanto tempo

rosto para o outro lado. Mas nada

fiquei observando aquele corpo

adiantaria, eu já sentia o fim.

que parecia feito de plástico.

Percebendo que sua exibição não

me

debilmente,

afetava,

ela

mancando,

Espantado com a velocidade de

correu

tudo, ainda tentava organizar a

até

sequência dos acontecimentos na

o

balcão da cozinha, e pegou a faca

minha

que usávamos para cortar carne.

determinado

Segurando com a mão direita,

consegui mais ficar ali sem reação.

posicionou

Peguei um casaco e saí de casa.

a

faca

no

lado

esquerdo do pescoço e esperou

cabeça.

sempre

Nenhuma.

tranquila.

olhando

as

em

momento

não

A rua onde eu morava, que

para ver qual seria a minha reação. Fiquei

Mas

foi

caótica,

estava

havia

sequer

Não

manchas de sangue em forma de

resquício de movimento. Caminhei

pés que marcavam o piso. Ela

tanto quanto pude, mas, quando

perguntou se eu não faria nada,

atravessava a terceira quadra, algo

realçou com todas as palavras que

me

havia transado com outro homem,

acontecido, que a cena anterior da

e que eu não era capaz nem de

minha esposa era uma ilusão.

sentir raiva. Nada do que fizesse

Tentei

me comoveria a ter alguma

dominar a vontade de voltar e

disse

que

ignorar

o

nada

tinha

pensamento,


conferir. Mas não conseguiria

nos joelhos, olhei para baixo e

avançar com aquela incerteza,

achei minhas pernas muito finas,

precisava retornar.

pareciam frágeis. Quando fui tocar

Fiquei

muito

surpreso

nelas, não reconheci minhas mãos.

quando, chegando à cozinha, vi

Estavam

apenas o copo quebrado e o chá

enrugadas. Senti meu próprio

espalhado no chão. Nem sinal do

rosto marcado por rugas. Aquele

corpo. Caminhei por toda a casa,

não era meu corpo. Há pouco

procurei em cada cômodo. Nada.

ainda estava jovem, com minha

Talvez ela tivesse ido até o

esposa. Mas será que aquilo tinha

mercado, fazia isso quase todas as

acontecido?

manhãs. Eu a encontraria lá,

lembrar se havia me casado algum

contaria sobre o que imaginei ter

dia. Queria conversar com alguém,

acontecido, e o dia voltaria a ser o

me certificar das coisas, mas

que era.

procurei ao redor e estava sozinho.

Saí de casa, mas, agora, não reconheci mais a minha rua. Parecia que eu estava em outro lugar. Logo em frente havia um

No

manchadas,

Não

momento

precisamos

em

das

murchas,

conseguia

que

pessoas,

mais elas

desaparecem. Sentei em um dos bancos do

parque, com bancos espalhados e

parque

e

olhei

para

cima.

poucas árvores. Pensei que não

Pequenos pontos brancos caíam

faria mal atravessar a rua e sentar

do céu. Estava nevando. Meu

em um daqueles bancos por

sonho de infância era ver a neve.

alguns minutos. Dei o primeiro

Não consegui parar de sorrir

passo, mas senti uma dor estranha

quando os flocos começaram a se


acumular em meus ombros. Senti

me

saudade de mim mesmo, um novo

momento. Nem a memória, que

tipo de nostalgia. Pensei muito

falhava como máquina sem óleo,

sobre aquele sentimento, sobre o

poderia

que significava estar ali, sozinho.

trechos de frases estranhas, vozes

Nada muda o que já aconteceu.

que me soavam familiares, mas

Mesmo que eu não lembrasse,

que eu não conseguia identificar.

tinha alguma certeza de que

Perdi a noção do tempo e já não

aquele momento era o resultado

sabia a hora, o dia ou o ano em

de escolhas precipitadas, e tudo o

que estava. Havia envelhecido de

que eu queria era voltar no tempo

um instante para o outro, como se

e

que

minha vida toda tivesse passado

tomar

em um segundo que eu não vi

atitudes diferentes, modificar o

acontecer. E, enquanto tentava

rumo. Mas é fácil querer mudar as

recuperar

coisas quando nós sabemos que o

remontar os fragmentos soltos, o

fim que encontramos não nos

que ressoava o tempo todo era

agrada, difícil mesmo é perceber

que, de qualquer forma, aquilo

isso no momento em que o

não importava.

evitar

pudesse

passado

qualquer ter

coisa

evitado,

acontece.

Tive

a

ajudar

me

a

atravessar

apoiar.

qualquer

o

Escutava

lembrança,

Fechei os olhos por um

impressão de que tudo acabaria

momento

ali, naquele parque, como uma

tocando meu ombro. Foi um toque

metáfora criada pela vida para me

carinhoso, leve, que, ao mesmo

mostrar minha própria solidão.

tempo,

Não existia nada que pudesse

e

me

senti

uma

pareceu

mão

familiar.

Quando abri os olhos, já não vi


mais a rua onde eu morava. Agora,

Ela me ajudou a sentar em uma

na

um

poltrona e disse que já voltava. Os

diversas

seus grandes seios, seu rosto, a

janelas voltadas para o parque.

postura, eram iguais aos da mãe.

Também não estava mais nevando.

Então, afinal, o que aconteceu

Vi que a mão em meu ombro era

antes era verdade. Eu casei com

da minha filha, mas eu não

aquela mulher e nós tivemos uma

lembrava que tinha uma filha. Ela

filha.

minha

casarão

frente,

antigo,

estava

com

parou na minha frente e me

No quarto ao lado, ouvi

convidou, sorrindo, para entrar na

barulho de coisa caindo. Alguém

casa. Perguntei se ela morava ali,

gritou e começou a praguejar, a

mas não me respondeu. Olhei ao

voz era de ressentimento. Outra

redor e notei que havia muitos

voz, mais calma, tentava controlar

idosos

Alguns

a situação. Uma terceira voz, em

grupos,

algum outro lugar, chamava o

outros, sentados sozinhos como

nome de um homem, parecia estar

eu, murmuravam para as árvores.

entoando um mantra antigo. Logo

Levantei com dificuldade e

identifiquei outras várias vozes,

caminhamos até o casarão. Minha

barulhos diversos. A casa estava

filha me conduziu para um quarto

cheia.

estavam

pelo

parque.

reunidos

em

que ficava no primeiro andar.

Quando minha filha voltou,

Perguntou se eu não queria outro

notei que o seu rosto havia

copo de chá gelado, já que havia

mudado, já não era mais a mesma

deixado cair o que tinha nas mãos.

pessoa. Quem era aquela mulher?

Balancei a cabeça dizendo que sim.

Entregou o copo para mim e


sorriu. Perguntou como eu estava me sentindo, disse que as outras enfermeiras estavam preocupadas comigo. Percebi então que lugar era aquele. Em um segundo que não consegui dizer nada, comecei a chorar. Ela abraçou minha cabeça contra o seu peito e aquilo me tranquilizou. Assim ficamos por muito

tempo.

A

enfermeira

abraçada em mim, achando que me consolava, e eu, que já não lembrava o motivo de estar sendo consolado, sentindo aqueles lindos seios que tocavam o meu corpo.

André Luiz Costa


O AFIADOR DE FACAS Um solzinho assim de outono, meio mágico, quando eu descia a lomba para ir ao colégio. Vontade de matar aula, de ficar naquele sol. Dei meia-volta, quase no portão da escola. É, não podia deixar esta tarde dourada escapar das minhas mãos, assim na maior. Entrei na rua dos plátanos, rua úmida e cheia de sombras no verão, agora coberta de folhas. Parei no alto do barranco que dava para a pracinha, olhando distraidamente uns guris que batiam bola. E então ouvi o apito do afiador de facas. Coisa linda! Desde pequenininho este apito me fascina. E agora ele enchia os ares, invadindo a tarde. Fui em direção a ele. O afiador era um velhinho de chapéu desabado, um talo de grama atrás da orelha, os olhinhos faiscantes. Olhos de oriental, assim meio puxados. Sentei ao seu lado, num banco da praça, observando enquanto ele trabalhava. Senti que estava louco para puxar conversa. Por fim perguntou: – Que horas são? – Uma e meia, respondi olhando meu digital. Ele deu um riso. – Antes se usava isto aqui. E tirou do bolso uma ampulheta com areia bem dourada. Ou relógios de sol, falou outra vez.


Fiquei quieto. Não sei como, mas achei natural ter ali diante de mim um chinês ou japonês que afiava facas e tirava ampulhetas do bolso, numa tarde de quarta-feira, na praça do colégio... Ele me olhou meio de lado e falou: – Veja só essa faca. Observe as inscrições no cabo. Sabe o que significam? Olhei. Um monte de desenhos, mas tão pequeninhos que não dava para distinguir nada. – São hieróglifos. Um afiador de facas falando em hieróglifos? Estava se vendo que era alguém especial. E seriam mesmo? Ele riu da minha cara de incredulidade. – São hieróglifos egípcios, sim. Esta faca ganhei quando percorri aquelas terras. – O senhor esteve por lá? – Por muitos lugares... Olhei-o de novo e observei bem os olhos amendoados, a pele curtida de muito sol. E o sotaque. Não dava para precisar a nacionalidade dele.


– Quer dizer que o senhor viajou muito? – É... Conheço uma boa parte do mundo. Mas ainda não achei o que procuro. Estas últimas palavras ele disse num tom mais baixo. – E o que procura? – Procuro uma faca. Uma certa faca. Está difícil de achar. Ela pode estar em qualquer lugar do mundo. – Mas então é impossível de achar! O senhor não tem nenhuma pista? Que faca é esta? Por que precisa achar? As perguntas foram saindo sem que eu pudesse me controlar. – Tive em minhas mãos milhares de facas, de todos os tipos. Se aqui sou afiador, em outros lugares, já fui vendedor de facas, atirador de facas em circo, já abati animais. Já lidei com facas de todas as maneiras que eu pude, esperando encontrá-la. Só não matei pessoas... Suspirei de alívio. Eu tinha chegado a pensar nisso... E ele continuou: – Pois é... Nunca me chegou às mãos a que eu precisava. Só quando consegui-la é que vou poder me ver livre delas. Me ver livre de tudo. Ela tem uma inscrição, um desenho que é a explicação de tudo.


– Mas tudo o quê? – Ah, não dá pra explicar. Tive que rir. Como uma cantilena, ele continuou a falar, mas para si mesmo: – Estive na Pérsia, Sumatra, Ilhas Gregas, Ilhas dos Mares do Sul, Mongólia, na terra dos Vikings, nas regiões geladas do Norte da Rússia... – E veio parar aqui... – Estou há alguns anos aqui. Fiquei sabendo de qualquer coisa a respeito do paralelo 30, sul... Vi a tal faca em sonhos ou já a tive um dia, nem lembro mais... Mas quando a enxergar, sei que vou reconhecê-la. – Por causa do desenho? – É... – Bem, espero que encontre o que procura. – Também espero! Preciso! ... Levantou-se do banco. – Vou andando que a peregrinação não terminou ainda. Não sei quando vai terminar.


E foi embora, empurrando devagar sua bicicleta. Tipo curioso o velho. Teria inventado tudo aquilo? Não sei, talvez fosse um desses loucos mansos que andam soltos por aí. Me encostei numa árvore de tronco convidativo. Tão liso que deu vontade de entalhar qualquer coisa nele. Peguei meu velho canivete e comecei a gravar minhas iniciais na árvore e mais uma vez olhei aquele desenho no cabo (parece um escaravelho) e que eu nunca entendi por que está ali.

Lígia Sávio


ANTES DE PARTIR REVELAREI MEU AMOR POR TI NA ÚLTIMA FRASE Meu oxigênio depositado na tua boca. Troca química de vida, onde levas minha juventude e fortificas teu nome de guerra. Entender-te consiste em adormecer com o silêncio e compactuar com o imediato. Provar pelo tato. (Pausa) Perdi a coragem A última frase foi jogada em silêncio dentro da bagagem. Porque uma vez quebrei seus óculos acho que o deixei cego. Porque uma vez ele fez com que eu tivesse vontade de enxergar acho que sou dele. Porque uma vez apertei as pernas com força, ele me pôs à prova. Desde então venho amadurecendo, esperando dele o que não compreendo.


DEZ ele me matou durante minutos partiu depois de dez dias voltou indeciso me cobrou atitudes cuspiu no meu prato arrancou minhas veias quebrou minhas vértebras usou meu corpo fugiu às dez horas sentiu-se culpado voltou receoso me cobrou todo amor juntou minhas vértebras lavou o meu prato devolveu minhas veias beijou o meu corpo jurou não partir mais dez minutos depois foi minha vez de fugir

PRETENCIOSAMENTE FALANDO Tens algo de vento que passa lento pelos meus cabelos. Tens os sonhos todos, Eu não ouso tê-los. A vida passa pela tua porta. Minha vontade agora É suplicar tua presença. Tens em teu olhar a paixão intensa. E me tens sempre. Sempre que quiseres. (Pena que não sabes

Cristine Zancani

que sempre me queres)


RODA VIVA O grupo chegou fazendo bagunça.

Os demais apenas sorriram e

Era plena luz do dia. Inadmissível

aumentaram

para um bairro tão boa gente

bagunça. Iniciaram uma cantoria.

como aquele. Mas eles não se

Três senhoras de sessenta anos e

importaram. Quem disse que os

alguns cabelos brancos que faziam

quatro se importaram?! Foram

sua caminhada matinal pararam

logo depositando os sacos pretos

para observar a cena. Uma delas,

que

escandalizada, ameaçou chamar a

carregavam

no

gramado

o

volume

da

sedoso, puro e verde do Parcão.

polícia.

Um grupinho de garotas que curtia

concordaram, fazendo coro. E eles

uma balada indie do Reino Unido

ligaram? Havia por que ligarem

lançou olhares de reprovação a

para tamanha mesquinharia?! O

eles; uma delas cuspiu para o lado,

segundo do grupo abriu seu saco e

como se fosse vomitar. Todas

revelou-lhes uma caixa semiaberta

riram. Eles, os quatro, nenhum

de morangos. Dois ou três estavam

deles se importou. Por que se

podres, contudo para quem já

importariam?! O mais velho abriu

havia comido churrasco de gato

seu saco e tirou um pacote quase

aquilo era luxo. E para beber,

vazio de bolacha recheada, junto

trouxe uma garrafa fechada de

com uma garrafa de água mineral

suco de laranja natural. Um litro e

com gás pela metade. O gás,

meio,

infelizmente, já havia se ido, foi o

aplaudido!

que disse aos outros.

As

dava

outras

para

dividir.

duas

Foi


A cantoria aumentou e um deles

raspadas, as peles brancas como a

ensaiou uns passinhos de dança,

mais branca nuvem, os olhos

mesmo

estando

Os

brilhando escuridão. Nenhum dos

quatro

gargalharam

mal

quatro pareceu dar atenção. E

perceberam um casal com seu

deveriam? Deveriam. No entanto,

filho lhe observando da pracinha.

o quarto homem precisava ainda

No meio da algazarra discerniram

mostrar o que trouxera. Revelou o

pouca coisa, talvez algo como

conteúdo de seu saco, arrancando

“pretos imundos”, “mendigos do

suspiros de surpresa de seus

caralho”

ofensinha

companheiros. Queijos, presuntos,

qualquer. A alegria deles não foi

mortadelas e outros recheios para

afetada. E deveria ter sido?! Se

os pães. De fato, seu saco era o

não deveria, não foi, e o terceiro

mais pesado. E ainda havia um

homem abriu seu saco, tirando de

radinho de pilha, que começou a

dentro dele uma sacola cheia de

tocar um melodioso samba. A festa

cacetinhos quentes e suculentos.

dos quatro estava feita. Dançaram,

Ah, oito! Dois para cada um! Os

abraçados,

dois

oportunidade

ou

sentado.

outra

primeiros

e

homens

se

agradecendo de

poderem

pela se

começaram

alimentar tão bem depois de tanto

realmente a dançar. Ele apenas

tempo. Contudo eles estavam

lamentou não ter nada para beber.

cegos. A alegria não lhes permitiu

Sem problemas, havia suco para

enxergar o casal e o filho se

todos eles. Assim como havia

afastarem, as garotas indie rock

outro grupo atravessando a praça

correrem para longe e os demais

em sua direção, as cabeças

passantes pararem para observar

levantaram

e


de longe o grupo de jovens armados com pedaços de pau, facas e punhos que se aproximava. Os quatro nem viram de onde veio o primeiro golpe, assim como não sentiram o gosto dos morangos, o azedo do suco de laranja ou a crocância gostosa dos cacetinhos recém-tirados do forno. Eles não viram

mais

nada,

tampouco

ouviram o grito das três velhinhas que voltavam com um guarda municipal. Escandalizadas, viraram as costas e desapareceram para não constatarem a dura realidade da vida. Os skinheads já estavam longe

quando

o

guarda

se

aproximou e pegou do chão o radinho

de

pilha.

Ele

ainda

sambava. Sozinho. Os últimos versos de “Deixa a vida me levar, vida leva eu...”. Levou, pensou o guarda, ao desligar o aparelho e ligar para a polícia.

Maurício Pacheco Amaro


A gente, por toda a vida, se amarra, se prende, se tranca e se esconde, faz de um tudo pra passar despercebida pelos montes, foge do natural e de nossas fontes. Desde menina te estabelecem regras e padrões, dizem que menina só é bonita se for que nem aquelas dos telões, nos fazem gastar horas buscando beleza em salões. Pois venho te desconstruir, venho dizer que nada disso é para mim, ou para ti, aqui a beleza nada tem a ver com o que te impõem por aí. A beleza tá na leveza da liberdade, no sorrir sem vaidade, num rosto que não se esconde por detrás da desigualdade. A diferença sempre existiu, padrões, no entanto, foi o homem quem construiu, e não nasci pra ser manequim da revista de abril. Por anos me deixei levar pela pressão social, pela estereótipo da mulher ideal, pela beleza que te mostram no jornal. A gente acaba se rendendo a torturas psicológicas, se submete a tomar um monte de drogas, se perde em ideias tortas, tudo para agradar uma sociedade feia e hipócrita. Acabamos com o nosso amor próprio, acabamos com o nosso corpo, acabamos com nós mesmas por um todo. Criamos rivalidade com nossas irmãs de identidade, aprendemos a odiar quem deveríamos defender do resto da sociedade, abrimos mão da felicidade, e tudo pra se encaixar melhor em padrões sem finalidade. Eu abri meu coração, e me desapeguei dos julgamentos da população, eu escolhi a minha felicidade, que vale mais que a de um milhão. Não me importo com que ditam em TVs e revistas, porque sou dona da minha vida, e não vou seguir a maioria. Vou contra a corrente do padrão de beleza, e não pense que isso é motivo pra tristeza, porque meu corpo não é produto da Veja.

Bianca Siqueira


UM INDIOZIN Dia desses no mato encontrei um indiozin, enquanto eu brincava de caçar raposas ele sorria e me perseguia com jeito de bichinho. Eu me esgueirava pelo mato, ele não tinha nem pelo nem tato, passava ileso por tudo. Habilidade danada, agilidade de gato. Subi em árvore, nadei em rio, joguei bola, rolei na lama, ele todo ali, firme no passinho. Não tentei dizer nada, contar lá de casa, apenas fazia aqueles gritos de briga, de faca, barulho de fusca ou bicho do mato. Pois quando olho pro lado ele respondendo pra mim, fazendo bip bip bip, se revelando um robozin.

Texto de Felipe Gue Martini, livremente inspirado em ilustração e conto de Henrique Cavinato Martini



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