REVISTA CULT Nº43 - GUIMARÃES ROSA

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Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros – USP

D o s s i ê C U L T

guimarães rosa


Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros – USP

Ana Paula Pacheco

história, psique e metalinguagem em

guimarães rosa M

ais de meio século após a publicação de Sagarana, quase meio século após a surpresa estonteante, negada, idolatrada, de Corpo de baile e Grande sertão: Veredas, a obra de Guimarães Rosa, a despeito da reiterada consagração por parte da crítica, ainda causa polêmica. O juízo negativo, mesmo que mais tímido, em conferências e muitas vezes não por escrito, vem de uma parcela nada desprezível da crítica brasileira. Dentre os que a consideram obra menor, estão não apenas os tolos, mas certa crítica arguta de esquerda, que cobra da obra de arte, no seu estatuto ficcional, uma maneira de pensar a realidade, devolvendo-nos suas contradições, equacionadas porém não resolvidas. Se a ficção de Guimarães Rosa, muitas vezes utópica, resolvesse com belas (e difíceis) palavras os problemas de nossa sociedade moderna jogando o leitor para um universo arcaico em que o sentido fosse imanente à trajetória de uma vida integrada na coletividade, e as contradições, portanto, fossem meros obstáculos para almas heróicas , não há dúvida de que estaríamos diante de um engodo metafísico, nada mais. Não só alguns dos gostos pessoais de Rosa como caudalosa bibliografia sobre sua obra dão margem a esse tipo de leitura; quem já torcia o nariz só poderia ter cada vez menos boa

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vontade. Mas é claro que tal crítica que considera o autor menor não é ingênua; entre outras questões do debate está envolvida a da identidade nacional: o perigo da regressão mítica de cunho conservador ronda a obra rosiana cada vez que nela a representação do atraso não parece a alguns viga de nossa modernização, e sim remanescente arcaico, mito nacionalista a frisar positivamente o que é defasagem. Ocorre que os estudos que mostram argumentos em contrário são recentes. Mesmo os que retomaram uma linha crítica que se esboçara há anos principalmente com Cavalcanti Proença, que propusera, de início, a analogia com Os sertões (Trilhas do Grande sertão, Ministério da Educação e Cultura/Serviço de documentação, s/d.) e Antonio Candido ( O sertão e o mundo , Diálogo n o 8, 1957; Jagunços mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa , Vários escritos, Duas Cidades, 1970) tiveram de esclarecer distorções de leitura que, nesse meio tempo, deixavam a História de lado. Na época daqueles ensaios, o interesse preponderante era ver a força simbólica e (em parte) inovadora da ficção rosiana, o que deu margem a tantas confusões (a começar pela fórmula de Antonio Candido, O sertão é o mundo ). Há então recentemente, sobressaindo dentre as várias correntes da fortuna

crítica que se formou durante anos sobre o autor (as que estudam as referências eruditas-filosóficas na obra, as que elegem a tradição popular, as que buscam convergências entre literatura e psicanálise, as que privilegiam o misticismo, dentre outras), a tentativa de ver o equilíbrio de tantas referências numa obra singular, que não se resume à somatória dessas, e de provar que, entranhada nos elementos que a compõem, está uma experiência histórica do país. Nesse esforço crítico, destacam-se os trabalhos de Davi Arrigucci Jr. e José Antônio Pasta Jr., respectivamente, O mundo misturado (Novos Estudos Cebrap n o 40, 1994) e O romance de Rosa Temas do Grande sertão e do Brasil (La ville Exaltation et distanciation, Cahier n o 4, Presses de la Sorbonne Nouvelle), divergentes nas interpretações, paralelos na preocupação de caracterizar a experiência histórica brasileira na obra de Guimarães Rosa. Como mostra o ensaio de Davi Arrigucci desde seu título, há em Grande sertão uma conjunção de elementos arcaicos misturados a outros, modernos, característicos do espaço urbano do trabalho e da vida burguesa, que também permeiam o sertão, parte que é do espaço históricosocial de nossa modernização periférica. Assim, nesse romance, diversos elemen-


Cerca de meio século após a publicação de Sagarana, Corpo de baile e Grande sertão: Veredas, a obra de Guimarães Rosa é uma das mais estudadas da literatura brasileira, reunindo uma fortuna crítica que depois de recepção inicial que se debatia entre o ataque ao conservadorismo social inoculado em seu mundo arcaizante e a valorização da força simbólico-metafísica de seu universo ficcional detecta a experiência histórica brasileira em sua obra e mergulha na superação formal da dicotomia entre regional e espiritual, nas convergências entre literatura e psicanálise e na construção rosiana de uma cosmogonia absoluta, como nos livros recém-publicados de Walnice Nogueira Galvão, Cleusa Rios Pinheiro Passos e João Adolfo Hansen tos da tradição oral (dos quais não está excluída toda gama de superstição, bem como a religiosidade sincrética mineira) conjugam-se a questões tipicamente modernas (veja-se a indagação constante de Riobaldo sobre o sentido de suas vivências). Retomando diversos fios da crítica anterior, partindo das misturas na ficção desse romance em vários níveis, Davi Arrigucci vê a trajetória de Riobaldo como a de um homem que refaz sua experiência, esclarecendo-se, à maneira das personagens do romance de formação (Bildungsroman). A mescla entre romance de formação e outras modalidades da narrativa, provindas da tradição oral, está em consonância com o processo histórico-social que rege a realidade também misturada do sertão mineiro , como diz o autor. Já José Antônio Pasta Jr. mostra, no discurso de Riobaldo, a não-superação de um mesmo dilema (o oposto do esclarecimento que Davi Arrigucci vê no livro), contradição de base que o constitui: como pode a consciência obedecer a regimes antagônicos de constituição do eu que lhe são imperativos, sendo indivíduo e homem de clã; livre e dependente; homem de lei e de mando, de contrato e de pacto; letrado e iletrado; arcaico e moderno?, como o mesmo pode ser outro? . Ao longo do ensaio, o crí-

tico vê na contradição da personagem, em última instância, a do país. Um como outro se formam suprimindo-se, isto é, a mutação contínua é um movimento baldado, em que o outro repete o mesmo, o que, no caso do país, tem a ver com a formação da sociedade, a um só tempo capitalista e escravocrata. Pasta chega a tomar a frase de Rosa, que, por hiperbólica, é reveladora de uma vontade de síntese do país: Grande sertão é apenas o Brasil . Anos depois daqueles ensaios iniciais, passou, portanto, a ser fundamental ressaltar o outro lado, um pouco apagado pela preocupação com o simbólico, embora Antonio Candido advertisse que, finalmente, aquele recolocava o leitor na realidade local de que parte a invenção. Sem esquecer, nesse ínterim, importantes estudos atentos ao aspecto documental, sociológico ou antropológico dessa ficção (exemplo é a tese de doutorado de Walnice Nogueira Galvão, As formas do falso, Perspectiva, 1972, nas trilhas do que sugeriram inicialmente Antonio Candido e Cavalcanti Proença), que se atinham menos, salvo engano, à redução estrutural dos aspectos externos, viu-se a necessidade de analisar no texto rosiano a experiência histórica. Além de que, a avalanche de estudos que estreitavam a ficção de Rosa num simbólico em que

tantas vezes só cabiam o esotérico, o iniciático, o misterioso e por aí infinitamente, só fazia lembrar a necessidade de se responder pela qualidade da obra. A discussão, certamente, não pára por aqui. Afora os que diminuem ou valorizam essa ficção por crerem haver ou não nela uma experiência literariamente conformada da História, há também o coro dos que a exaltam acreditando nela nada haver que se prenda ao histórico. * Enquanto a divergência com relação aos juízos persiste, Guimarães Rosa continua sendo assunto para muitas e muitas páginas. Da fortuna crítica recente, destacam-se os livros de Walnice Nogueira Galvão, Cleusa Rios P. Passos e João Adolfo Hansen, publicados no ano passado, seja pela qualidade seja pelas questões polêmicas que levantam (sobretudo com relação à acirrada discussão pincelada acima), além de um estudo de Osvando J. de Morais sobre o roteiro de Grande sertão: Veredas feito para a televisão, que lê a tradução intersemiótica do texto original para o roteiro e posteriormente para as imagens móveis televisivas (Grande sertão: Veredas O romance transformado, Edusp/Fapesp, 2000). Walnice Nogueira Galvão, conhecida por outros livros sobre o autor como o já citado As formas do falso, sua tese de fevereiro/2001 - C u l t 43


Fotos Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros – USP

c ronologia 1908 João Guimarães Rosa nasce em Cordisburgo, MG, em 27 de junho, filho de Florduardo Pinto Rosa e Francisca Guimarães Rosa. 1918 Muda-se com a família para Belo Horizonte. 1929 Publica, na revista O Cruzeiro, o conto O mistério de Highmore Hall , O escritor com os pais, que não faz parte de nenhum de seus Francisca e Florduardo livros. 1930 Forma-se pela Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais.

doutoramento, e Mitológica rosiana (Ática, 1978), que traz o admirável Matraga: sua marca e também O impossível retorno , sobre Meu tio, o Iauaretê , ensaios eruditos e de profundidade analítico-interpretativa , lançou no ano passado um pequeno livro informativo e não pouco útil a quem inicia um estudo mais detido sobre a obra de Guimarães Rosa, Folha explica Guimarães Rosa (Publifolha, 2000). Logo de início, a crítica situa Rosa no panorama da ficção brasileira: entre regionalismo e reação espiritualista, sua obra sintetizaria as duas vertentes no que traz de documental e de simbólicometafísico, ultrapassando ambas as classificações pelo apuro formal. O primeiro capítulo revê a trajetória dos vários regionalismos, chegando-se ao regionalismo nordestino de 30, engajado e próximo ao documental, influenciado pelo romance social norte-americano de entre-guerras; de outro lado, a corrente de escritores interessados nos meandros da subjetividade, cuja influência maior era o romance francês católico também de entre-guerras, universalizante e cindido entre o apelo místico e o aprisionamento nas vilezas da carne . A conjunção particular das influências, Walnice chama de um regionalismo com introspecção ou, com menos felicidade, espiritualismo em roupagens sertanejas . No segundo capítulo, a crítica se detém sobre Grande sertão: Veredas, reto44 C u l t - fevereiro/2001

1934 Ingressa na carreira diplomática. 1936 O livro de poemas Magma recebe o Prêmio Academia Brasileira de Letras. 1938 Exerce as funções de cônsul em Hamburgo, Alemanha. 1942 Torna-se secretário de embaixada em Bogotá. 1946 Chefia o gabinete do ministro João Com a primeira mulher, Neves da Fontoura. Publica o livro de Lígia Cabral Pena contos Sagarana. 1948 É primeiro-secretário e conselheiro de embaixada em Paris.

mando sobretudo o viés de sua tese: parte da configuração físico-social do sertão mineiro para contextualizar a ficção rosiana, frisando em seguida, de passagem, o significado também simbólico e mítico que esse sertão ali tem espaço de percalços existenciais em que o homem se vê entre Deus e o Diabo voltando à estória em movimento parafrástico. Vale notar que o capítulo ainda destaca o grande achado narrativo de Rosa, presente de maneira mais tímida em Valdomiro Silveira e J. Simões Lopes Neto: a fala em primeira pessoa sem o contraste preconceituoso de uma linguagem correta que tornasse aquela exótica, no entanto com a complexidade inerente a um disurso oral... escrito. Se não há aprofundamento da análise, há tempo entretanto para deixar clara a opção crítica sobre o livro e a respectiva visão que se tem da literatura: Na pertinência de suas análises, o romance expõe aos olhos do leitor, como a literatura sempre fez, a concretude dos fenômenos históricos, encarnados em personagens (p. 32). Nesse capítulo, infelizmente, nota-se a falta de generosidade da autora com relação às indicações bibliográficas no corpo do texto, principalmente considerando-se que se trata de um livro informativo, que indica supostamente caminhos ao leitor interessado em Rosa (a título de exemplo, Walnice contextualiza o exercício privado da violência sem

remeter ao nada dispensável O mandonismo local na vida política brasileira, de Maria Isaura Pereira de Queiroz, ainda que o incorpore, por assim dizer, automaticamente; o mesmo se pode dizer quando fala da destinação dos homens livres como exército privado dos proprietários, origem da figura do jagunço, sem nota para Homens livres na ordem escravocrata, de Maria Sylvia de Carvalho Franco, livros bastante úteis para o estudioso de Guimarães Rosa). O fato também será perceptível na bibliografia final sobre o autor, que, pretendendo dar mostra das várias linhas de pesquisa, deixa de lado ensaios hoje fundamentais como os aqui já citados de Davi Arrigucci Jr. e José Antônio Pasta Jr., os preciosos Nenhures e Nenhures 2: Lá, nas campinas , de Leyla Perrone-Moisés, de vertente psicanalítica (respectivamente em Flores da escrivaninha, Companhia das Letras, 1990, e Inútil poesia, Companhia das Letras, 2000), o de Leonardo Arroyo, A cultura popular em Grande sertão: Veredas (INL, 1984), o de Sandra Vasconcelos (Puras misturas, HUCITEC, 1997), o de Alfredo Bosi sobre Primeiras estórias ( Céu, Inferno , em livro homônimo da Ática, 1988), entre tantos outros remeto o leitor interessado na bibliografia sobre o autor aos CD-ROMs disponíveis no SAU da Faculdade de Letras da USP. Enfim, o terceiro capítulo, menos informativo do que os outros, passa rapidamente pelo restante da obra de Guimarães


Evelson de Freitas/Folha Imagem

Monica Zarattini/Folha Imagem

Davi Arrigucci Jr. e Walnice Nogueira Galvão

Rosa, apontando destaques aqui e ali; o quarto traz informações biográficas e o último lista, muito de passagem, alguns frutos dessa ficção na produção nacional (músicas, filmes, série de TV) e, na ficção portuguesa de outros continentes, a influência nos escritores africanos Luandino Vieira e Mia Couto. * O livro de Cleusa Rios Pinheiro Passos, Guimarães Rosa Do feminino e suas estórias (Fapesp/Hucitec, 2000) é condensação de sua tese de livre-docência defendida pelo Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP. A autora, que já estuda Guimarães Rosa há alguns anos e publicou no livro anterior, Confluências Crítica literária e psicanálise (Edusp/Nova Alexandria, 1995), bela análise de O palhaço da boca verde , revém agora num estudo de fôlego. Diferenciando-se da crítica de gênero por vezes panfletária, em voga nos Estados Unidos, o feminino para Cleusa Rios é sobretudo um recorte para análise de personagens e estórias de Guimarães Rosa. Daí a preocupação com a verdade particular de cada personagem em contexto, considerando-se, como ressaltou Freud, a variabilidade da correspondência entre masculino-ativo e feminino-passivo em sociedades diferentes, conforme o papel de cada um. Numa obra em que a temática masculina avulta em guerras, condução de gado, nomadismo,

assuntos de vingança e honra, a presença do feminino é mais discreta, muitas vezes restrita ao amor e à família, porém fundamental tanto na organização socioeconômica do sertão como na ficção de Rosa. Para estudá-la, o instrumento teórico privilegiado pela autora é a psicanálise, idealmente procurada como postura crítica que revele e aprofunde traços literários; as leituras embasam-se muitas vezes em Freud, Lacan (sobretudo neste, como se vê no corpo do texto) e também em autores que incorporam apenas parte da teoria psicanalítica, como Jean-Pierre Richard, Starobinski, Derrida, Barthes, Ricoeur, entre outros. O uso que se faz da psicanálise, como já se pode notar, vem conjugado à preocupação não só com a tradição literária, como com a realidade que mimetiza. O grande tema do feminino, de definição lábil, é visto no livro em quatro capítulos que lidam sobretudo com suas ambigüidades. Como método, escolhemse narrativas que mostrem de maneira central os eixos temáticos tratados em cada parte. No primeiro, a autora enfoca a questão amorosa, dividindo-a em duas grandes partes: donzelas e fadas, personagens mais velhas que movem o destino daquelas mesmo sem o saber (caso de Substância ), renovando por vezes a vida de todo o lugar ( Arroio-dasAntas ); e prostitutas, mulheres que sabem de suas paixões e decidem em boa parte seu destino, fazendo do lugar social,

comumente visto como o da exclusão, lugar de vivência dos próprios desejos ou da possibilidade de desatar os nós que, noutra parte, lhes reservou o destino ( Dão-Dalalão , O palhaço da boca verde ). No segundo capítulo, a crítica se detém na questão da maternidade, com os matizes de tragicidade, doação e perda que envolve em Rosa, e ainda de submissão à lei paterna (os doloridos A benfazeja , Sinhá secada , com parêntese para Soroco, sua mãe, sua filha ), passando, numa segunda parte, a narrativas em que as mães são ora vistas como santas (da perspectiva de Manuelzão, em Uma estória de amor ), ora como mulheres que desafiam normas em nome do prazer e do desejo (caso da sábia D. Lina, d A estória de Lélio e Lina , que, apesar do filho, da ordem masculina a ditar condutas e das próprias limitações que a idade impõe, voa de tardinha , indo morar com o seu mocinho Lino, convolados pelo encanto e poder de evocação das palavras que os unem). O terceiro capítulo, denominado Os maus segredos , vê vínculos entre amores e ódios resguardados: na terrível historieta de Maria Mutema, que mata o marido derramando-lhe chumbo quente no ouvido, e o padre, com palavras, em confissões copiosas; em Diadorim, sob a ótica conturbada de Riobaldo; e na mulher do Hermógenes, que traz, na secura do olhar que intimida, a condenfevereiro/2001 - C u l t 45


1951 Volta ao Brasil, sendo nomeado novamente chefe de gabinete do ministro João Neves da Fontoura. 1952 Faz uma longa excursão a Mato Grosso e escreve o conto Com o vaqueiro Mariano , que integra o livro póstumo Estas estórias (1969), sob Com a segunda o título Entremeio: Com o vaqueiro Mariano . mulher, Aracy Moebius 1956 Publica o ciclo novelesco Corpo de baile e o romance Grande sertão: Veredas, pelo qual recebe o Prêmio sação da resposta do feminino a regras tirânicas. No quarto capítulo, vêem-se as mulheres como sóis de engano , que escapam pela dissimulação mais uma vez à pressão patriarcal. No primeiro conto analisado, Os chapéus transeuntes , a resistência à exclusão se pauta pela ironia utilizada por uma senhora pertencente a uma família aristocrática decadente. A questão da exclusão se estende então à análise em nível social diferente. Para a autora, a transgressão da personagem feminina se inicia desde Sagarana, sendo linha de força das mais freqüentes na obra rosiana. Nesse primeiro livro, a figura ausente e central de Sarapalha , Luísa, é exemplo em que a subversão de regras casada, ela foge com um boiadeiro de fora adentra os elementos da narrativa: Luísa parte deixando um bilhete seco em que se despede e revela o amor pelo outro; à voz da mullher, que segue seu desejo, segue-se o silêncio dos primos com relação a ela, os que falam (de outras coisas) passam a ocupar lugar lateral, enquanto a ausente, (outrora) sem voz, torna-se protagonista, confundindo-se com a doença. Outro sol de engano será Elpídia, de Estoriinha , seguida de Dlena (de A vela ao diabo ) e Flausina (de Esses Lopes ), que, aprendendo letras para conhecer a força afirmativa e dissimuladora do código, manipula os maldosos irmãos Lopes e faz-se narradora da própria vida e finalmente dona do próprio corpo, tentando reaver o passado e aceitar a perda da própria inocência e integridade. O recorte temático, como se pode visualizar aqui brevemente, implica o exa46 C u l t - fevereiro/2001

Machado de Assis, do Instituto Nacional do Livro, o Prêmio Carmen Dolores Barbosa e o Prêmio Paula Brito. 1962 Assume a chefia do Serviço de Demarcação de Fronteiras. Mário Palmério, José Olympio e Guimarães Rosa 1963 É eleito para a Academia Brasileira de Letras (ABL). 1967 Morre no Rio de Janeiro em 19 de novembro, três dias depois de tomar posse na ABL.

me minucioso de narrativas de livros diversos do autor, inclusos os póstumos, dando uma noção do conjunto da obra raras vezes encontrada em estudo competente. Algumas vezes, no entanto, a análise de temas do feminino leva a crítica a enfatizar personagens bastante laterais, exagerando aparentemente seu papel; por exemplo, no caso do exame das personagens que atuariam como fadas madrinhas na leitura da autora (1o capítulo), Nhatiaga, de Substância , é vista como mediadora das transformações ao longo do conto e ganha uma relevância que não parece ter na economia dessa estória. No centro da tese de Cleusa Rios está a idéia de desenredo, suscitada pelo conto de mesmo nome, que faz parte do livro Tutaméia. Segundo a autora, a questão do feminino em Guimarães Rosa se ancora numa elaboração artística que desenreda temas, tradições, formas, para reconstruir contares e destinos ficcionais. Procuram-se flagrar os momentos em que a mulher tenta constituir-se sujeito de seu desejo e história, num dado contexto, graças à criação ficcional. A categoria rende leituras instigantes sobretudo quando a tônica é o desenredo do entrecho (quase sempre mesclado ao da linguagem, que escorrega em cadeias significantes reveladoras), verdadeiro achado diante da variedade das estórias estudadas. Tal visada é mais tangencial no livro quando desenredo significa apenas o desfazimento do lugar-comum ou o tratamento diferenciado de um tema tradicional (por exemplo, n A benfazeja , em que a voz narrativa que quer desfazer os lugares-comuns e preconceituosos da população local torna-se voz

de desenredo, ou quando, em DãoLalalão , o anticlímax final quando Soropita desiste de matar o negro Iládio levado por alucinações do ciúme ou mesmo a posse orgulhosa que a exprostituta tem de seu passado tornam-se sinônimos de desenredo). Não se faria justiça ao livro, no entanto, se não se excetuasse ao menos um caso em que o desenredo entendido como tratamento diferenciado de um tema da tradição dá bons frutos para a análise: trata-se do estudo d A estória de Lélio e Lina , em que o topos do carpe diem recebe tratamento diferente, quando, pela linguagem, revertem-se os desencantos da desflor velhinha/mocinha, Lina. A idéia do desenredo parece devedora do que Alfredo Bosi, em Céu, inferno , designou por evento , com a vantagem, para o recorte da autora, de remeter à ilusão ficcional, o que, em sentido freudiano, coincide com o desejo. O outro lado da moeda, momentos em que o desenredo se faz avesso, além do princípio do prazer, está também presente ( Fita verde no cabelo , Retábulo de São Nunca ); mas, em regra, mesmo que a insubordinação à ordem masculina e a vivência do desejo durem pouco, ficam, semeados no tempo, resquícios de inconformidade. * Diferentemente do que se viu até agora, o livro de João Adolfo Hansen o O A ficção da literatura em Grande sertão: Veredas coloca-se contra as interpretações do romance de Guimarães Rosa. Fugindo ao círculo hermenêutico, estreitado no entendimento do autor como

Fonte: Academia Brasileira de Letras

Fotos Arquivo do IEB – USP

c ronologia


Guimarães Rosa – Do feminino e suas estórias Cleusa Rios Pinheiro Passos Fapesp/Hucitec tel. 11/240-9318 248 págs. – R$ 29,00

Grande sertão: Veredas – O romance transformado Osvando J. de Morais Edusp/Fapesp tel. 11/3818-4149 280 págs. – R$ 27,00

aquele em que o intérprete supõe e descobre um sentido preexistente no texto ou preexistente nele, intérprete, Hansen quer ver a fala de Riobaldo como cosmogonia absoluta, que gira em falso para chegar ao nada, isto é, ao Nada. De fato, a tese central do livro é a de que as imagens criadas pelo protagonista não compõem uma narrativa mimética, sendo antes potência da designação sem referência prefixada (Riobaldo é, aliás, para Hansen, um boca de papel , figura de discurso sem correspondente possível no real, daí, por exemplo, poder misturar em sua fala intemporal o popular e o erudito). A imagem seria correlação sistêmica , sem designação , efetuando simulacros de idéia , avançando como movimento de pedaços ou termos da narrativa: Diabo estando em tudo, designando tudo, significando tudo, é sempre nada (...) imagem da coisa (p. 187). Então, o estranho título revela sua razão de ser: tendo-se por pressuposto e ponto de chegada que o texto de Rosa encena o Nada, e lembrando que, segundo Riobaldo, o Diabo é o que não precisa haver para existir, o O, um dos nomes que a personagem dá ao Demo, refere-se à criação de uma língua que, por procedimentos alegorizantes retóricos, atribuídos a Rosa pelo crítico, se enche de significações para, por contínuo deslocamento, esvaziá-las (levando consigo inclusive a simulada representação realística). A metalinguagem ad infinitum, sobre uma linguagem sem referente, surge como redemunho e traga tudo. A fala, mesmo quando simuladamente mimética , desfigura, para o crí-

Milton Michida/Agência Estado

o O – A ficção da literatura em Grande sertão: Veredas João Adolfo Hansen Editora Hedra tel. 11/3097-8304 192 págs. – R$ 17,00

Adriana Zebrauskas/Folha Imagem

Folha explica Guimarães Rosa Walnice Nogueira Galvão Publifolha tel. 11/3351-6346, 0800140090 94 págs. – R$ 9,90

Cleusa Rios Pinheiro Passos e João Adolfo Hansen

tico, a forma mimética, por não imitar o real (como se viu, não haveria situação contextual a que a linguagem remete). Aqui valeria observar que também o conceito de mimese, seguindo certa corrente da crítica, é diminuído de sua significação original, a que lhe dera Aristóteles no século IV a.C., de imitação e representação, para ser entendido apenas como imitação que não prescinde de uma ilusão referencial. Assim pensado, o realismo de Rosa faz água e o que sobra é o Sertão (a maiúscula é sua), que, para o crítico, inclui o sertão histórico apenas para degluti-lo em discurso paródico de alternância narrativa que dissolve o modelo causal-linear de romance , segundo ele, evitando a mimese realista como se sua colocação desprezasse os inúmeros romances realistas do século XX que fogem ao modelo causal-linear justamente para dar representabilidade a um mundo em tudo distante da transparência do sentido, a que a subversão de categorias prefixadas de linguagem, enredo etc. dá forma. Para Hansen, no entanto, o que há nesse romance não é mimese, e sim ficção da ficção , encenando o inexpresso do sentido . Em torno da mesma idéia axial, os capítulos dividem-se em: Uma fala sobre falas , que faz a crítica a outras leituras sobre Rosa; A fala agônica , que diz do nada da fala heteróclita de Riobaldo, em que discursos estranhos convergem; As falas na fala , que mostra efeitos de metafísica no texto rosiano, pelo procedimento fulcral do paradoxo e do sentido que é nonsense; As falas da fala , que aponta procedimentos alegorizantes

que inflam a língua de significações para esvaziá-la no nada, e, finalmente, As falas do mito/os mitos da fala , em que se lê o mito não como conteúdo, mas como sintaxe da fala de Riobaldo. Os vários imaginários sobre o Brasil que o livro conteria são vistos como discursos tagarelas que se entredevoram . Mesmo o sertão histórico, que o crítico admite presente, seria mais um elemento tragado pelo Sertão-linguagem. Publicação de uma tese de mestrado defendida em 1983 (primeira versão escrita em 1978), o O faz pensar nas posições, afinadas com certa moda formalista em voga nos anos 70, que o autor reitera mais de vinte anos depois (ainda que faça, no capítulo I, a crítica às leituras formalistas sobre Rosa, sobretudo por partirem da idéia de uma língua-padrão, da qual, salvo engano, ele também parte, resolvendo a questão com aspas em padrão). O livro de Hansen, que se furta à tarefa hermenêutica, mas para, finalmente, interpretar Grande sertão como fala deglutidora que, revolucionária, chega ao Nada (Nada infinito: o O, que, um pouco estrábico, formaria ∞), nos traz uma voz que compreende a literatura como fenômeno à parte. Desligada do mundo, ancorada em tópicos da cultura (também vista como fenômeno acima da História), a literatura parece entendida como universo de eleitos, para eleitos. A linguagem de Hansen, sob constante risco da tautologia, também nos fala disso. Ana Paula Pacheco doutoranda do departamento de teoria literária da USP, onde desenvolve pesquisa sobre Primeiras estórias

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Maria Cristina Elias

Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros – USP

os não-lugares Revista Scripta n. 3 Editora PUC Minas Centro de Estudos Lusoafro-brasileiros (CESPUC) e Programa de pósgraduação em Letras da PUC Minas 272 págs. – R$ 25,00 encomendas pelo tel. 31/3274-7900

A

gente tem de escrever para setecentos anos. Para o Juízo Final. Essa frase, escrita por João Guimarães Rosa em carta de 9 de fevereiro de 1965 ao tradutor de sua obra para o alemão, Curt Meyer-Clason, talvez esclareça o porquê de brotarem, por entre as rachaduras que adornam a linguagem criada em seus romances e contos, elementos transcendentais. Por meio da construção de suas narrativas sobre essas transcendentais, Rosa alcançou a perenidade das coisas do espírito , dando a seus escritos uma tônica universal. De acordo com o próprio escritor (também em correspondência com seu tradutor para o alemão): A língua para mim é instrumento: fino, hábil, agudo, abarcável, penetrável, sempre perfectível etc. Mas sempre a serviço do homem e de Deus, da Transcendência. Esse aspecto universal da obra do escritor está presente em praticamente 48 C u l t - fevereiro/2001

de rosa

todos as reflexões apresentadas no I Seminário Internacional Guimarães Rosa, em Belo Horizonte, em agosto de 1998 (ano em que o escritor completaria 90 anos). Na ocasião, foram ministradas várias palestras sobre a herança literária de Rosa, publicadas posteriormente na revista Scripta n. 3, do Centro de Estudos Luso-afro-brasileiros da PUC de Minas Gerais (CESPUC) e do Programa de pós-graduação em Letras da Universidade. O volume, composto por 28 ensaios (além da apresentação da diretora do CESPUC, Lélia Parreira Duarte, e de depoimentos do bibliófilo José Mindlin e do escritor moçambicano Mia Couto), traz análises da obra rosiana por Benedito Nunes (Universidade Federal do Paraná), Francis Utéza (Universidade PaulValéry, Montpellier), Curt MeyerClason (acima referido), Fábio Lucas (crítico e ex-presidente da União Brasileira de Escritores), Adélia Bezerra de Menezes, Cleusa Rios Pinheiro Passos, Leyla Perrone-Moisés, Willi Bolle, Elza Miné, E.M. de Melo e Castro (todos da Universidade de São Paulo), entre outros. Benedito Nunes, no texto O mito em Grande sertão: Veredas , reflete sobre o estilo narrativo mítico, ou seja aquele que começa na poesia para acabar no mito , definido por Hermann Broch

como estilo de velhice e presente em Grande sertão: Veredas, então classificado como um romance mitomórfico. Segundo Benedito Nunes, nessa obra, o sertão indefinível e ilimitado, sempre imagem e quase conceito de máxima extensão, que tudo abrange e que está em toda parte e em lugar nenhum , constitui o mito de origem ou a origem do mito da narrativa. O autor ressalta que em Grande sertão todos os elementos citados do chão ou da terra consistem em signos, cujo significado ultrapassa sua materialidade, ou seja, que estão fora de si . Dessa forma, o mundo natural somente se manifestaria a posteriori, já mitificado . Nesse ponto, Benedito Nunes faz uma aproximação da narrativa de Rosa à descrição da coisa como tal feita pelo filósofo Martin Heidegger nos seus ensaios tardios. Propondo uma visão mitomórfica do mundo, Heidegger entende que seus componentes reúnem quatro parcelas céu e terra, mortais e imortais , que evoluem de e para uma unidade primeira , derivada da palavra poética . Com a prevalência da palavra poética , a presença de uma dessas quatro parcelas (das Viertel) exige a das demais, dando ao mundo a qualidade de habitável residência humana e reforçando a consciência de nossa comum finitude . Benedito Nunes conclui, portanto, que a


Edição especial da revista Scripta, da PUC de Minas Gerais, reúne ensaios de estudiosos brasileiros e estrangeiros da obra do escritor mineiro

À esquerda, cena do sertão pertencente ao acervo pessoal de Guimarães Rosa

capacidade da obra de Rosa de abrir o longe no perto e o distante no próximo deriva justamente do arrebatamento do mito pela força da palavra poética. O lugar nenhum em que estaria localizado o sertão mitificado, apontado por Benedito Nunes, foi também eixo em torno do qual Leyla Perrone-Moisés construiu sua análise psicanalítica do conto Lá, nas campinas de Tutaméia, intitulada Nenhures 2: Lá nas campinas . Nesse ensaio, publicado tanto na revista Scripta n. 3 como no livro Inútil poesia (recém-lançado pela Companhia das Letras), esse não-lugar tão presente nos escritos de Rosa, como, por exemplo, no conto A menina de lá e no romance Grande sertão: Veredas aparece intrinsecamente ligado às saudades, mas não às saudades de idéia cujo termo correlato seria a lembrança, mas às saudades do coração de que deriva o verbo recordar: Recordar é muito diferente de lembrar. O que se recorda é o domínio dos afetos, é menos uma coisa, pessoa ou lugar, do que um tom, uma qualidade, um estado de ser. A lembrança pode ser nítida, a recordação será sempre fluida, imprecisa. Com as lembranças, sabemos lidar conscientemente; com as recordações, lidamos como pode o coração, e muitas vezes ele não pode , escreve Leyla. Porém, o ato de recordar, embora nos aprisione num retiro melancólico habi-

tado pela angústia de um desejo sem objeto definido, de acordo com a autora, é um meio para experimentar o inconsciente. Esse nenhures ou seja, esse nenhum lugar , que no plano inconsciente, pela teoria lacaniana, pode ser tomado como todo lugar seria o próprio locus do inconsciente, de onde emanam as pulsões, as lembranças obsessivas e as determinantes de atos e sentimentos vindouros. Ao tratar de Drijimiro a protagonista de Lá, nas campinas , Leyla Perrone-Moisés afirma que as saudades que assombram a personagem consistem num afeto sem suporte, ligado não a uma pessoa, mas a um lugar apenas entrevisto e desabitado : lá, nas campinas. Tomando esse gancho dos lugares ou não-lugares de Guimarães Rosa, cabe citar a apresentação de Willi Bolle, O sertão como forma de pensamento , que fecha o volume comemorativo dos noventa anos de nascimento de Rosa. Nesse ensaio, que aborda a formação da paisagem em Grande sertão: Veredas, Bolle traça um quadro comparativo entre a geografia real e a geografia inventada , para alcançar uma concepção de sertão como um pensamento que se forma mais forte do que o poder do lugar . Nessa análise, é colocado em prática um método definido por Walter Benjamim como o ato de dissolver a mitologia no espaço da

seminário guimarães rosa Motivada pelo sucesso do I Seminário Internacional Guimarães Rosa, a PUC de Minas Gerais promoverá, de 27 a 31 de agosto de 2001, em Belo Horizonte, o II Seminário Internacional Guimarães Rosa. Seguindo os moldes do anterior, em que foram organizadas conferências, mesasredondas, minicursos, debates interativos e sessões de comunicações, esse seminário, cujo tema será Sertão, rotas e roteiros , propõe a discussão da obra de Guimarães Rosa a partir de diversas perspectivas: filosófica, psicanalítica, metalingüística, histórica, geográfica e sociológica. Informações sobre inscrições, taxas e cursos podem ser encontradas no site www.guimarãesrosa.pucminas.br/seminario, pelo e-mail cespuc@pucminas.br ou pelo telefone 31/3319-4368 (das 14 às 18 horas).

história . Ou seja, esclarecendo a mitologização da Terra em Guimarães Rosa por meio de uma hermenêutica comparativa e histórica , chega-se a uma definição dúplice do sertão, que comportaria uma imagem arcaica e uma imagem dialética ou histórica. Assim, as camadas míticas e mitologizantes do texto (imagem arcaica) guardariam um conteúdo histórico e político (imagem histórica), a ser revelado por um olhar analítico de volta do objeto analisado nesse caso, o sertão , que seria também um medium dissolvente de outros discursos. Tratando dos mais diversos e complexos temas presentes em Guimarães Rosa como a metalinguagem, a tradução, o mito, as saudades, a função materna, a língua, a geografia, as imagens femininas, a alegria , as travessias do sujeito , a edificação humana a partir dos seres incompletos e as projeções nas literaturas de língua portuguesa , a revista Scripta n. 3 traça um perfil crítico da obra do escritor, cujas interpretações são múltiplas e infinitas, dado o próprio caráter de suas narrativas, que terminam em aberto, como aliás notou o escritor Mia Couto em seu depoimento: João Guimarães Rosa foi, para mim, um contador que não fechou a história e que nos deixou, pelo menos em mim, essa incurável doença de sonhar . fevereiro/2001 - C u l t 49


remembranças FotosJoãoCorreiaFilho

João Correia Filho

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a viagem que Guimarães Rosa fez pelo sertão mineiro, em maio de 1952, ficaram algumas lembranças na memória dos oito vaqueiros que acompanharam o escritor, dos quais apenas dois ainda estão vivos. Com a morte de Manuelzão, em 1997, acreditava-se que o legado da viagem havia se perdido por completo. Engano. A CULT viajou até a cidade de Três Marias, a 230 quilômetros de Belo Horizonte, e obteve o depoimento de João Henrique Ribeiro, o seu Zito, vaqueiro que acompanhou o escritor em sua viagem por mais de 40 léguas sertão adentro. Pesquisando os arquivos de Rosa, surpreendentemente, o que se descobre é que Zito foi a grande fonte do escritor, sendo citado em suas anotações como o mais esperto dos vaqueiros que conheceu durante a viagem. Guia e cozinheiro da tropa, Zito ia à frente e era quem conversava com o escritor durante

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quase todo o tempo, dedicando boa parte de suas horas às indagações e dúvidas de Rosa. Todas as noites, encerrado o trabalho dos vaqueiros, Zito sentava-se à beira da fogueira e escrevia versos que narravam o que havia acontecido durante o decorrer do dia. Esses versos foram registrados nas cadernetas de viagem de Guimarães Rosa, que se encontram atualmente arquivadas no IEB (Instituto de Estudos Brasileiros da USP), em São Paulo. Aos 74 anos, morando numa casa muito simples no interior de Minas Gerais, Zito guarda com orgulho os jornais da época, os quais trazem sua foto ainda jovem ao lado do escritor. Com memória e inteligência assustadoras, seu Zito conta alguns trechos da viagem que marcou a obra do escritor e que está repleta de muitas outras histórias.

cult O sr. se lembra do dia em que o Rosa chegou para a viagem?

zito Lembro, foi em 16 de maio de 1952. Foi aquela grande confusão. Foi muita gente ver. O povo achava que o Rosa era Cristo. Ele chegou lá uma tarde e no dia seguinte o padre chegou também. A fazenda era do primo dele, o Francisco Moreira. Eu saí da Sirga (fazenda localizada no município de Três Marias), fui em Araçaí e busquei a besta que ele tá montado na foto que saiu no jornal, que chamava Balalaica. O arreio também foi eu que busquei. Eu trouxe umas vinte rês, uma novilha e essa besta. O Rosa veio num jipe de lá de Araçaí. Ele veio pra Belo Horizonte, pra Sete Lagoas, lá pegaram esse jipe e ele veio mais um compadre de Chico Moreira. Ele chegou três dias antes de sair a boiada pra conhecer um pouco mais. Lá na Sirga mesmo, tinha um lugar em que a água ia batendo no barranco, tem até hoje esse lugar, só que fizeram uma ponte. E lá tinha um sabiá cantando e o Rosa ficou encantado. Que qué isso São Pedro? Cadê a chuva? Que que há São Pedro? (imita o passarinho cantando). O sabiá


de seu zito

O fotógrafo João Correia Filho que já percorreu o itinerário feito pela personagem Riobaldo, trazendo registros fotográficos publicados na CULT 33 entrevistou o vaqueiro Zito, guia e cozinheiro da tropa que acompanhou Guimarães Rosa na travessia do sertão

tava pedindo chuva, ele falava direitinho. Sabiá é aquele marronzinho. O Rosa ficou entusiasmado com aquilo. Aí nós seguimos e encontramos com uma dona, ela era muito bonitinha, era uma comadre minha, tava mais nova, vestindo uma sainha muito curtinha. E Rosa ficou olhando pro lado dela e eu falei: Rosa isso não é da sua conta não. (risos) Aí ele brincou, deu risada, e tudo. Tinha umas cachacinhas, mas ele não tomou não, ele não gostava. Eu tomei. Aí subimos e fomos pra casa, passando por uma capelinha. Tinha um horror de gente já arrumando ela, que ia ter que levantar o mastro da festa. cult Então houve uma festa antes da saída da boiada? zito Teve sim uma festa, no outro dia. À tardinha nós fomos embora. Saímos e fomos nos gerais. É lá que falam que teve uma garrafa com biscoito. Não teve garrafa com biscoito nenhum, eu que estava com ele. Quando foi no outro dia, o padre chegou e teve a missa e ele foi à missa. Eu fiquei ocupado com a festa e

não lembro com quem que ele saiu depois. Quando foi no dia seguinte, teve a festa, ele dançou e gostou. Ele fazia tudo quanto há, fazia direitinho. Tinha de tudo, nós dançamos, o Rosa dançou, tinha comida, o padre era muito bom, teve missa, levantou o mastro, era procissão. Nessa época aí era um festão, era só isso que tinha. cult E havia sempre essa festa? zito Essa festa começou logo que a mãe do Manuelzão morreu. Fazia todo ano, naquela casa que tinha uma cagaiteira (árvore típica do cerrado). Primeiro era só a missa. Lá onde o Manuelzão construiu a capelinha, onde tá enterrada a mãe e a primeira esposa dele. Lá tem um cruzeirão grande, fui eu que mandei fazer, com um compadre meu, o Chico Barbosa. O Rosa gostava muito dele também, que ele tocava rabeca. Tudo isso era uma coisa que ninguém pensava. Passou muito tempo sem ninguém mexer nessas histórias. Sempre lembro de muita coisa, mas às vezes esqueço de tudo. E aí quando foi no outro dia, terminou tudo.

Foi no dia 19 que nós saímos pra viagem. Eu juntei o gado e fui apartar. Tem um lugar na história que fala: na apartação do gado tinha um velho Santana . Ele tomou um coice, tinha um boi muito bravo, ele chegou o ferrão no boi e o boi deu um coice e ele caiu. Aí eu falei: traz um pouco de vinagre com rapadura . Isso tá escrito no jornal e nos cadernos do Rosa. Ele tomou o chá e melhorou. Não tinha remédio, era tudo inventado aqui. Papaconha, cidreira... esses eram os remédios. Até hoje a gente toma, contra gripe. Tudo é por Deus, não por homem, eu, você, a moça não. É por Deus. Deus é que criou isso tudo. Aqui tem um outro remédio chamado tiú. Só acha ele na sexta-feira da Paixão. Você pode andar o campo inteiro e você não acha não. Na sexta-feira ele amanhece todo cheio de folha. É uma batatinha assim ó. É um ótimo remédio pra gripe, pra dor por dentro. É o remédio que a gente tinha pra curar. Você arranca ele e faz um chá. Aqui não tem não, é só na Sirga que tem, nas veredas, e só lá que eu conheço. fevereiro/2001 - C u l t 51


CADERNOS DE JOÃO HENRIQUE RIBEIRO, SEU ZITO. SIRGA, 19. 05. 1952

descrição dos vaqueiros dos jerais Vo contar um cazo os senhores presta a tensão de uma saída da boiada da casa do Manuelzão

também vinha o Zito por ser bom cavaleiro amontado no canário porque era o cosinheiro

o Zito bateu berrante que a terra estremeceu O Bindóia canto um verso Que o povo entristeceu

No dia 19 de maio foi um grande confosão da saída dos vaqueiros da fazenda do sertão

terão muitos retratos de muitas oposição parece que estão satisfeito com os vaqueiros do sertão

sairão 17 companheiro so evia um revolve do caminho voltou 8 e agora segue Novembro

Sebastião saiu na frente com muita alegrea a madrinha e carceiro era ele quen trazeia

adeus dotor João Rosa o senhor vai me desculpar voce segue a tua viagem e nós vamo voltar

no dia 19 saimo do sertão o Zito no consolo Joaquim no lampião

tenho a leberdade com manoelzão muito mais com tua esposa o Tião no moreno o Bindóia na mariposa

Dr João Rosa foi embora Despedio do cosinheiro Nos voltamo pra Sirga Ele foi para o Rio de Janeiro

quando o doutor chegou na fazenda todo mundo dize ele não aguenta na fazenda moraes ganhou vidro de pimenta

cult Quais eram as fazendas e como foi a passagem por elas? zito Na saída da boiada tinham dezessete vaqueiros, porque a boiada sai brava, correndo, é pra evitar uma ribada. Quando chegou perto de uma ponte, lá em cima, saindo da Sirga, voltaram oito e seguimos em nove. Saiu da Sirga mesmo. Lá era a casa do Manuelzão. Ele era funcionário do Chico Moreira. Nós que construímos tudo aquilo. De lá fomos pra Tolda, uma fazenda bonita, onde passa um riachinho dentro da cozinha. Na Tolda dormimos na casa de uma senhora chamada Iara Tancredo. Tem a casa até hoje, e onde era o quarto hoje é uma sala. Depois da Tolda, indo pra Andrequicé, tinha uma vereda. Aí o Rosa viu uns passarinhos e de brincadeira pediu pra eu dar um tiro de revólver. Isso tem no livro Tutaméia. Lá em Andrequicé, na casa de Pedro Mendes, ele dançou de novo. Era uma casa de assoalho velho, uma casa velha, um curral bonito e tinha uma vitrolinha de corda. O Rosa gostou muito. Depois fomos pro Catatau e eu pedi pra arrumar uma cama pra ele, e ele dormiu melhor. Era colchão de palha, tudo feito na roça, no chão. Saímos do Catatau e 52 C u l t - fevereiro/2001

fomos pro Riacho das vacas. Também ia dando cama. Depois do Catatau nós fomos no Meleiro. Lá o velho falou: Cê vai jantar comigo . Tinha frango, nós comemos arroz, feijão, carne. Não tinha mais nada. Ah, tinha também um angu de muitos dias, descascava e comia aquilo. Mas o Rosa não quis comer não. Se eu comer angu que mosquito passeou, barata... , ele disse. Ele até inventava muita coisa. Aí fomos pro Barreiro do Mato. Lá o Rosa dormiu dentro de uma forma de rapadura. Depois passamos na fazenda do Juvenal, na Fazenda Ventania, Riacho da Areia, que era de um paulista. O Rosa jantou bem. Lá tem até hoje o prato em que o Rosa comeu. Você pede pra Dona Antonieta, mulher do Juvenal, e ela tem o prato, o garfo, a colher, tem a cama, tudo guardado. E o Rosa ficou satisfeito demais. Comeu, comeu. Juvenal tinha um filho chamado Geraldo, que mora em Mascarenhas (pequeno distrito da região de Curvelo), tava doente, de cama mesmo. E aí o Rosa falou: Deixa eu ver ele ; e falou: Ele tá com febre, ele tá com sarampo. Você pega umas folhas de laranja e faz um chá. . O Rosa olhou no bolso da camisa, tinha um Melhoral e

deu pra ele. Tomou, em dois dias cortou a febre e o rapaz amanheceu bom. O sarampo saiu. Chá de folha de laranjeira. Isso tudo tá escrito. Aí quando saiu no outro dia eu fui na frente da fazenda de um outro primo dele, o doutor José Saturnino, já chegando em Cordisburgo (cidade natal do escritor). Quando você passa a igrejinha do Rosário você vira à esquerda, antes da entrada que vai pra Gruta do Maquiné. Cheguei na fazenda, chamei, saiu a dona lá. Eu falei: Tô aqui pra arrumar a pousada, que o Rosa vem aí. Ah! Mas eu não quero, não estamos interessados, estamos com muito boi , a dona falou. Era mentira. Eles tinham medo de afetosa . E olha só: dali ele podia ter ido pra casa do avô dele, ali pertinho, mas não quis. Tomava um banho, tudo direitinho... dormia. Mas ele não quis fazer isso não, foi embora, acompanhou a gente todo dia. Aí eu fui na frente outra vez. Cheguei numa fazenda e pedi um frango. Frango não tem, eu tenho só uma galinha velha , disse a dona. A dona pegou pra limpar, arrumou tudo, pois pra cozinhar, sentamos pra comer, mas tava muito duro. O Rosa tomou só o caldo. Dormimos,


Acima, seu Zito servindo café ao grupo que acompanhou Guimarães Rosa na travessia do sertão de Minas Gerais e o escritor montando uma mula, em imagens de Eugênio Silva, fotógrafo de O Cruzeiro que seguiu, com o jornalista Álvares Dias, a comitiva que inspirou Grande sertão: Veredas

saímos no outro dia e chegamos num lugar que chama Toca do Urubu; tem uma pedreira de muitos metros de altura, e lá mora urubu direto. Chegando nesse lugar, encontramos com o pessoal do Cruzeiro (Álvares Dias e Eugênio Silva repórter e fotógrafo, respectivamente, do jornal O Cruzeiro que registraram parte da viagem de Rosa pelo sertão). Fizeram foto minha com o berrante e tudo. cult E o sr. era bom de berrante? zito Ah, eu era bom. Batia, todo mundo suspirava. Às vezes eu batia o berrante e dizia. Eh, não suspira não que eu vou e volto . c ult Depois de Araçaí, o Rosa foi embora? zito Entregou a boiada em Araçaí, numa fazenda pertinho de onde hoje é a cidade. Tinha uns currais, nós tiramos mais retratos com ele no curral, eu lacei uma vaca, peguei ela e passei a corda pelo pescoço e amarrei no rabo. Fazia tudo pontuadinho, porque tinha esperteza, tinha ligeireza. Eu cantava verso, tudo direitinho. Poesia é pra ser poeta, poeta não. Deus dá o dom pra pessoa, aquele dom ninguém pode tomar. Só agora com a doença. Ia na lapa do Bom Jesus e via

um livro e comprava, comprava outro e guardava. Lia e aprendia. Se eu lesse duas vezes, eu já guardava. Depois, chegando em Araçaí eu fui pra casa do meu pai; eu, o seu Manuel (Manuelzão) e o Bindóia (morto em 98). Dormiram e noutro dia ele pegou um jipe com a carreta e foi embora. cult O sr. era o guia da tropa. Qual a função do guia? zito O guia vai na frente, que ele sabe da distância. Ele sabe quando é descida, dá sinal pro detrás que e pro boi não correr. Se você sabe que tem um córrego, você dá sinal pra afinar o gado e ele passar na água e não sujar demais pros que vêm atrás poder tomar. O guia fica avisando o que vai acontecer. Você é motorista, quando vai fazer uma curva você já dá um sinal, só que com o gado é com a mão. E o gado acostuma. Chega numa porteira, faz um sinal e o outro já sabe que ali é uma porteira. Tudo que você faz é com a mão, tudo sem gritar. O guia vai na frente, quando o gado chega já está o pasto arrumado, o fogo tá aceso. Já vê se a cerca tá boa, se não tem buraco. cult O sr. também era cozinheiro, além de guia. O guia é sempre o cozinheiro?

zito Não são todas as pessoas, mas eu, durante o tempo que eu viajei com gado, em muitas boiadas eu fui cozinheiro. Eu fazia aquele entalagato. Foi o Rosa que colocou esse nome. Dizia que era comida ruim. cult Então ele não gostou da comida do sr.? zito Não, aquilo era só pra fazer graça. Mas não tinha nada. Só tinha arroz, feijão e carne. Frango alguma vez. Mas sempre era carne seca, carne de jabá. Eram nove pessoas, eram nove pedaços de toucinho e nove de carne. E tinha também farinha. c ult E qual era o nome dos outros vaqueiros que acompanharam a viagem? zito Era o Tião Leite (ainda vivo), o Santana, o Sebastião de Jesus, o Gregório, o Manuelzão, o Bindóia, eu e o João Rosa. Tem o Aquiles também, um bom violeiro. Ah, e um rapazinho que não é falado. Ele não saiu na reportagem, era menino, mas acompanhou todos os dias, devia ter saído. Tinha uns doze anos. Falado são sempre os oito, nove com o Rosa. Nós levamos trezentos e sessenta bois. Só boi grande. Eu batia o berrante e eles seguiam. fevereiro/2001 - C u l t 53


Seu Zito fotografado por João Correia Filho, durante a entrevista concedida à CULT

cult Mas era o sr. que ia conversando com o Rosa? zito Conversei durante o tempo todo. cult E sobre o que o sr. ia conversando com ele? zito Falava tudo quanto era bobagem. Inventava as coisas muito bem pra conversar com ele. Às vezes não tinha mais assunto. Falava de mulher, de moça bonita. Falei muita bobagem pro Rosa e ele escrevia tudo. Eu lia muito livro, sabia tudo de cor, mas não sei mais nada. Sabia tudo quanto é bestagem. cult E o Rosa foi anotando tudo isso? zito Tudo, ele escreveu tudo. A sucupira ele anotou, era uma baita de uma árvore. Tinha a flor roxa e a flor amarelada; ele anotou qual a diferença que tem. A diferença da madeira. Tudo tá escrito na caderneta dele. cult E os versos que o sr. fez? Eram feitos quando? zito Era feito durante a viagem, de noite. O que passava no dia, eu escrevia de noite. 54 C u l t - fevereiro/2001

cult Que tipo de história o Rosa gostava mais? zito Verso, ele gostava muito de verso. Mas não aprendia nada... (risos). Eu sabia tudo de cor. Ele anotava tudo. Depois que eu adoeci, a memória ficou fraca e esqueci tudo. Depois que eu adoeci, esqueci quase tudo. cult E como era o Rosa, seu Zito? zito Era uma pessoa excelente, brincalhão. Ele era tão simples que ele veio do Rio e não trouxe nem gilete, nem estojo. Naquele tempo não tinha prestibarba , era estojo. Durante todos os dias ficou sem fazer a barba. Eu tinha, mas ele não falou nada e eu não levei. Até hoje a minha barba é pouca. Pra quem tirava a barba toda manhã, ficar dez dias sem tirar, né? A cara ficou vermelha. Mas ele era mesmo muito simples. E na viagem não podia chamar ele de Dr. João. Era Rosa, vaqueiro Rosa. cult E ele sofreu muito durante a viagem? zito Não tinha garrafa térmica, coava café no bule, tomava ali, e copo de vidro quase

não tinha e ele não trouxe. Na beira da estrada não tinha nada, você chegava assim pra comprar um frango, pra limpar, pra picar, mas precisava ter um vasilha. Ele comeu muitos dias feijão de manhã, feijão com carne seca cozida no meio e toucinho. Separava o da janta e tomava um gole de café. À tarde comia outra vez. Se ele tivesse pensado, podia ter trazido uma garrafa, deixava na garupa dele, ué. Podia ter trazido uma marmita. Também não tinha banheiro por aqui. De tarde a gente ia tomar banho no córrego. A água era longe, dormia às vezes sem tomar banho. Não tinha água, que banho todo dia não tinha jeito. Fazenda nenhuma tinha um banheiro. A comida era um pouco pesada pra ele que não tinha costume. Mas o que ele queria era aquilo... cult E na hora de dormir? zito Tirava sela, lavava o cavalo, jogava ela no chão e era a cama. Forrava ela no chão, põe o pelego, a coberta, a capoteira, você punha a roupa e virava o travesseiro. Era tudo bem arrumado.


FotosJoãoCorreiaFilho

O vaqueiro Zito, cozinheiro e guia da comitiva de que Rosa participou, e a casa do escritor em Cordisburgo

cult E como o Rosa dormia, era assim? z ito Mesma coisa, ele deitava em

qualquer lugar. Dormiu até em cima de espiga de milho. E ainda que à noite ele gemeu... Você deita igual às galinha quando tá botando ovo , eu disse. Ele não sabia, amanheceu com um caroço na costela. Dormiu também na tábua de rapadura. Tirava os trem até dar o tamanho dele, botei capim, tudo foi eu que fiz. Chegava na casa de Dona Benedita, na casa da Dona Rita, eu pedia cama pra ele. Eu tinha entusiasmo com o povo. Não deixavam eu sair de manhã sem fazer um engrossado, que é um ovo que você frita na água, sem gordura, põe a farinha, cebola e come. Aquele trem é forte. Comia, ficava bem o dia todo. cult E o Rosa comentou alguma coisa sobre o que faria com o material da viagem, sobre o Grande sertão: Veredas, por exemplo? zito Aquele livro não foi escrito com o assunto dessa viagem. Aquele livro foi uma viagem que ele fez pra Fortaleza,

numa saída de boiada. Foi na saída. E aquele Riobaldo foi alguém que contou pra ele e o resto ele inventou. Vou te contar uma coisa, você põe uma coisa que você acha que dá certo naquela estória, então inventa o resto. É assim que o Rosa fez. O que Rosa escreveu foi dito por nós. Ele não sabia daquilo. O Rosa saiu de Cordisburgo rapaz novo, foi fazer medicina, participou daquela revolução de 32 e abandonou a medicina pra ir pro exterior. Aí quando ele morreu, vieram outras pessoas pra confirmar onde o Rosa passou. Mas ele inventou o resto. cult E a história de que o Rosa conversava com os bois? zito Ele conversava com o boi mesmo. Conversava toda a tarde. Quando chegava no pouso, eu que já tinha coado café, já tinha desarreado a besta dele, o meu burro, tudo já estava arrumado. Então ele vinha e falava: meu boizinho tá cansado, tá com a barriga vazia... Todo dia ele conversava, o boi era mansinho. Foi tirado retrato dele passando a mão no boi, lá no

curral da fazenda. Mas eu nunca vi nenhum. Era Tarzan e Cabocla. Cabocla era uma vaca preta que eu furei o nariz dela. Ah... se o boi falasse, a gente morria. Ele só entende o nome. O boi entendia e olhava pra ele. cult Ter encontrado o Rosa mudou a vida do sr.? z ito Vem sempre um povo aqui pra conversar, eu converso. Mas eu não lembro muita coisa. Se for uma pessoa que eu gosto, eu lembro, se não for, eu não tô lembrado de nada. Mas eu gosto de falar do Rosa. Ele queria me levar pro Rio de Janeiro, ele dava lugar pra eu morar, ele pagava meu estudo. Mas na época eu preferi não ir, queria era ser vaqueiro. cult O sr. fica orgulhoso quando alguém o procura? zito Sinto muito orgulho, é uma coisa muito bonita. Eu sinto alegria em falar das coisas do Rosa. Em maio eu vou pra Sete Lagoas e vou mandar fazer outro óculos pra mim e aí eu vou voltar a ler de novo os livros dele, do Guimarães Rosa. fevereiro/2001 - C u l t 55


ArquivodoInstitutodeEstudosBrasileiros–USP

Cleusa Rios P. Passos

desenredos em guimarães rosa A gente vive, eu acho, é mesmo para se desiludir e desmisturar Grande sertão:Veredas

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entre os processos compositivos de João Guimarães Rosa, destaca-se o modo lúdico e laborioso de contar desmanchando , despertando no leitor ressonâncias sutis de causos e estórias, já narrados ao longo de sua obra ou da tradição literária. Paralelamente, o ato de desenredar se faz um de seus traços profícuos, ao lado da mistura de temas, tempos, processos lingüísticos e formas literárias, já assinalada pela crítica. Título de renomado texto de Tutaméia. Terceiras Estórias (1967), o desenredo tanto ganha o papel interno de mudança das relações do casal-protagonista (Jó Joaquim e Livíria/ Rivília/ Irvília) quanto opera a reelaboração de elementos bíblicos (Adão/Eva, Jó) e ficcionais (Odisséia). Reiteram-se aí a inserção de suas narrativas na estória e tradição literárias, bem como a presença de um trabalho determinado, em grande parte, pela linguagem insubordinada e pelo forte lirismo. Análogo à personagem citada, que vivencia com a parceira um amor clandestino, em sua forma local, conforme o

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mundo é mundo , Rosa também oscila entre o dado regional e o mundo. Mencionado com freqüência em estudos críticos, esse movimento marca o autor mineiro, não só por que seus textos pontuam experiências, afetos e destinos de qualquer sujeito, mas também pela maneira bela e multifacetada de criar. Logo, o conto de Tutaméia é exemplar para se apreender uma das faces recorrentes de sua produção: o desenredo, percebido, especificamente, no sentido de desfazer, tramas ou no de estabelecer desfechos e suspensões inesperadas. Procedimento observado desde Sagarana (1946), adentra com maior intensidade Grande sertão: Veredas (1956), voltando a insistir nas publicações posteriores. Contudo, o recorte aqui escolhido se ancora em momentos pontuais de Corpo de baile (1956) em função de textos que, sutilmente, dialogam entre si por meio de ecos sonoros, reencontros de personagens, retomada de ambíguas significações etc. Recobrar Desenredo tem em vista, portanto, sublinhar um espaço no qual trama e temática se incorporam, permitindo um olhar mais certeiro sobre passagens do ciclo novelístico, reveladoras de uma prosa peculiar, vinculada a uma

espécie de trapaça com a língua (no sentido barthesiano), recurso responsável por efeitos estéticos dos contares de Guimarães. Revisitando a narrativa, cabe lembrar que Jó Joaquim reconstrói o passado da amante, depois esposa-adúltera, apagando sua traição e restaurando a imaginária e desejada fidelidade conjugal, aos olhos da vigilante aldeia e da amada que se crê nua e pura , retornando sem culpas para a convivência feliz. Ora, a artimanha do enamorado está em reoperar cenas pretéritas, apoiado em negaceios, desvios da lógica aristotélica, rupturas com a cronologia dos fatos etc. E a estratégia é o manejo singular da palavra, o uso de expedientes verbais (prefixos de negação, por exemplo) que escamoteiam e subvertem o poder dos ditos cristalizados, graças à celebração do contraditório e do absoluto amar . Sintomaticamente, Jó engendra o desmanche da traição pelo mesmo processo que estigmatizara a mulher: a repetição, contagiada, entretanto, por negativas, inversões e infinita paciência. No afã de redimi-la, consegue reverter a antiga trajetória, impulsionado por outra lógica , a do desejo. A comunidade acaba cedendo a sua fala, discreta e convicta, pactuando com a verdade agora reinscrita.


O processo de contar desmanchando, pelo qual o autor de Tutaméia estabelece ressonâncias sutis de causos e estórias, mesclando enredos já narrados ao longo de sua obra ou da tradição literária, faz contraponto à mistura de temas, tempos, processos lingüísticos e formas literárias já assinalada por seus leitores e críticos Rosa em seu apartamento em Copacabana

Parece instaurar-se uma mise en abîme, pois no interior da ficção o conto a verdade se estrutura como ficção (utilizando aqui reflexões lacanianas) e ganha novo estatuto. Da oralidade fabular passa-se à ata, isto é, da fugaz memória popular rasurada e transfigurada à autoridade da letra, matéria concreta e testemunho mnêmico para sempre registrado, sem reticências ou desconfianças. Se, no texto, o desenredo é explícito, diferentes cenas da produção rosiana dele se valem. Semelhante a Jó Joaquim, Soropita, personagem de Dão-Lalalão (Corpo de baile), tenta imaginariamente recompor a estória da mulher, exprostituta em Montes Claros, denegando desejos e prazeres vividos só por ela num tempo em que não a conhecia. Fantasioso, tem por tarefa escutar uma novela de rádio num povoado distante e transmitila aos moradores do seu. As viagens são preenchidas com a ficção ouvida e com os próprios devaneios, cujo centro é Doralda, a parceira sedutora e inapreensível. Assim, a novela de Rosa condensa outras, mesclando enredos e transformando-os. Soropita narra os capítulos a companheiros que saem recontando-os

boca a boca, às vezes floreadamente. De forma análoga, o sonhador repassa o vivo que viera inventando/.../ e que tomava, sobre vez, o confecho, o enredo, o encerro, o encorpo/.../ , ou seja, recriar e desmanchar o vivido faz parte da viagem imaginária, realizada nas trilhas dos Gerais. As duas novelas a radiofônica e a pessoal são mediadas por desejos inconfessos, sugestivos de uma realidade diversa e imperiosa, a psíquica. Obcecada, a personagem confina a mulher ao lar ilusória forma de ocultar um passado já desdobrado em inquietante presente. Ora, próxima a Jó Joaquim, busca desarticular, desenredando-os, fatos e sensações de outrora em respeito a interditos da comunidade. O resultado, porém, não é o mesmo: enquanto o primeiro alcança seu intento, ao verbalizar o desejo pessoal, Soropita se entrega aos devaneios, sem os relatar, confinandose conforme faz com a parceira, que, entretanto, resiste à revogação da própria estória, orgulhando-se do prazer e das experiências como meretriz. Não fica por aí a diversidade de temas e faturas ancorados no desenredo. Apenas variam suas formas. Permanecendo em Corpo de baile, a personagem feminina de

Lélio e Lina desloca a lembrança sem paragens da Moça Sinhá-Linda, a amada inacessível de Lélio, substituindoa no jogo do amor cortês e desfazendo o nó afetivo que o perturba. Rosalina arma estórias, seduz pelo verbo e parte com o jovem na contramarcha do tempo desafiando leis e preconceitos. Sua dúbia silhueta ( mocinha-velha / Mãe Lina e apenas Lina ) evoca o universo feérico (ecos de intrigantes fadas de dupla-face, como Melusina ou Belkis?), reforçado pelo perfil de donzela na hora da fuga proibida. Por outro lado, seu nome e características recobram e revertem o topos do carpe diem, que não confere encanto à mulher fanada. Velhinha como-uma-flor , Rosa/ Lina mantém aspectos do floral também nas recordações do vivido. Comparada a um amorperfeito, sem perfume e desbotado , desperta vislumbres da antiga beleza; audaz, não descarta sonhos, nem teme o imprevisível: Parece até que ainda estou fugindo com namorado. Meu Mocinho /.../ , declara ela a Lélio. Nesse texto, o desenredo pode ter a função de desfecho, recusa ou relembrança da rede textual já citada. O leitor de Corpo de baile obtém notícias de personagens de uma novela em outra, acom fevereiro/2001 - C u l t 57


lançamentos As revisões críticas da obra de Guimarães Rosa incluem, além dos livros analisados neste dossiê, outros quatro lançamentos. A diplomata e ensaísta Heloísa Vilhena de Araújo é responsável por duas análises comparativas de Guimarães Rosa. Em Palavra e tempo (256 págs., R$ 28,00, editora Mandarim, tel. 11/36494600), ela aproxima o escritor a Dante Alighieri e a Lewis Carroll; e, em As três graças (328 págs., preço não definido, editora Mandarim), pesquisa os pontos de intersecção entre duas obras de Rosa: Grande sertão: Veredas e Tutaméia. Em Guimarães Rosa Magma e gênese da obra, Maria Célia Leonel (288 págs., R$ 25,00, Editora Unesp, tel. 11/232-7171) busca no livro de poemas Magma publicado apenas em 1997 e normalmente considerado pela crítica e por seu próprio autor uma obra menor o embrião de sua obra madura. Já Duas visões: Guimarães Rosa & Clarice Lispector (editora Ágora da Ilha, tel. 21/3393-4212, 3353-4465, 278 págs., R$ 25,00) reúne os ensaios O tempo em Grande sertão: Veredas (Um estudo entre Luz & Sombras) , de Carlos Theobaldo, e Balada da paixão sem fim , texto de Ercília Bittencourt sobre Clarice Lispector. Em seu estudo, Theobaldo analisa os elementos épicos, líricos, dramáticos e os recursos narrativos que aproximam a obraprima de Rosa ao romance de cavalaria. Além disso, Theobaldo destrincha os nomes das personagens principais de Grande sertão (numa tentativa de decifrar essas pequenas esfinges ), o sentido simbólico dos números utilizados na narrativa e a travessia infinita representada pela passagem do tempo no romance.

panhando uma particular comédia humana que amplia a recorrência do sertão como mundo. Logo, cabe assinalar relações entre algumas das novelas. Tomezinho, Drelina e Chica, irmãos de Miguilim, o menino que dá título a um dos textos do ciclo, ressurgem em Lélio e Lina . Por sua vez, Miguilim-adulto retorna em Buriti para tratar do gado e cumprir seu destino, percorrendo os Gerais e apaixonando-se por Maria da Glória, filha do fazendeiro de BuritiBom. A já citada Lina tem parentesco com tais personagens, se associada à tiavó Rosalina , casada com André Faleiros, pai de seu único filho e irmão do avô de Glória. Não se pode ignorar, também, ecos mais amplos do universo rosiano em Corpo de baile. Veja-se Manuelzão . A figura de Joana Xaviel, contadeira capioa e marginal, estabelece um sub-reptício diálogo com Grande sertão: Veredas, confirmando renomada leitura, apontada inicialmente por Cavalcanti Proença: a presença da donzela guerreira em pleno sertão! Joana encanta pela dramatização e ousadia de suas narrativas; apropria-se, por exemplo, da estória do vaqueiro que não mentia (cf. Camara Cascudo) e que, pressionado pela amada, sacrifica o boi 58 C u l t - fevereiro/2001

predileto do patrão. Arrependido, acaba confessando o fato e obtendo perdão. Peculiar a culturas distintas, o causo se reelabora na fala da contadeira, que o centra na Destemida , a esposa grávida do vaqueiro, desejosa da carne da vaca preferida do fazendeiro. O animal é igualmente sacrificado e a mãe do dono envenenada, por descobrir o acontecido. Sem qualquer punição, a destemida apodera-se de seus bens, enriquecendo. Conforme se vê, Joana subverte a tradição, reconstrói o enredo, negando-se a desmanchá-lo , quando os ouvintes, perplexos, sugerem a falta da segunda parte e erro no desfecho. Análoga à destemida , que ingere a carne proibida para satisfazer desejos, a capioa absorve antropofagicamente relatos orais, reelaborando-os. De modo paradoxal, o desenredo esperado por Manuelzão (capataz dos vaqueiros) e seu vilarejo respeitaria a variante folclórica conhecida, porém configuraria um ato de submissão às normas pela narradora, que suspende o causo no ponto exato da vitória do mal, transgredindo o instituído e a lei, levada por seus desejos, realizados fugazmente na magia renovadora dos contares. A refatura dos desenredos multiplica e desloca, ainda, os efeitos de sentidos, para além das ficções nas quais se inserem. A

sugestiva musicalidade de Dão-Lalalão , título aberto a várias leituras, reaparece em Lélio e Lina , mais precisamente na concepção do amor que, com todas as letras, se configura por meio de ressonâncias de outra estória: O amor era isso lãodalalão um sino e seu badalalal . Complexos nós se desatam graças a anagramas, jogos lingüísticos, inversão de provérbios, reconstituição de recados e, sobretudo, causos especulares que reiteram, em ponto menor, eixos textuais básicos. Em meio a muitos, dois exemplos deixam entrever tais procedimentos: a destemida reflete algo da rebeldia de sua narradora, cuja audácia espelha para Manuelzão seus desejos interditos pela nora. Cara de bronze , texto dedicado à composição de canções, contém um diálogo em que uma personagem propõe a busca de palavras-cantiga , recebendo do interlocutor a resposta aparentemente desordenada : Aí, Zé, Opa! . Ora, as expressões exigem mudança do olhar e de linearidade na leitura para que o sentido aflore a po ez ia (cf. correspondência de Rosa com Edoardo Bizzarri), fulcro maior da novela. Em O recado do morro , marginais e poeta, indiferentes a regras econômicas


ArquivodoInstitutodeEstudosBrasileiros–USP

Da esquerda para a direita, Manuel Bandeira, Peregrino Jr., Curt Meyer-Clason (tradutor de Guimarães Rosa para o alemão), Rosa, Geraldo Magela (atrás do escritor), Carlos Drummond de Andrade, Gabriel Athos (de perfil), Geraldo França de Lima e Fábio Penna da Veiga

(trabalho) e sociais (casamento, comunidade etc.), transmitem mensagens numa viagem pelos Gerais. Desconexas e fragmentárias, elas principiam com um estranho e arcaico habitante de gruta que afirma tê-las escutado de um morro. Um alerta de morte à traição , mesclado à idéia de festa , vai passando de boca a boca, preservando-se certos traços e, ao mesmo tempo, alterando-se outros, segundo as fantasias pessoais de cada recadeiro. Assim, a tessitura da novela se apóia em dizeres enigmáticos, reunidos por Laudelim, autor da canção responsável pela ordem do recado e revelador do destino de Pedro Orósio, personagem principal e guia dos viajantes. Namorador, o rapaz tem amigos-rivais que planejam matá-lo à traição e os recados constituem a matéria desse ato, só percebido por ele no vivo da estória cantada . Enquanto o poeta desencantava solene lá dentro o estribil/.../ (persistindo, astuciosamente, o prefixo des em duas acepções, a de negação e reforço), o guia desperta para o perigo, contrapondose ao determinado (a morte), num belo exemplo de desenredo vinculado à vida. Ora, a personagem presenciara os avisos, mas não os interpretara. Cego, reconhece sua estória só depois de ouvir a

cantiga continuada . Repete-se, então, o processo metonímico dos recadeiros, em situação inversa: Pedro desconstrói versos e pontua fragmentos, reorganizando a nova significação da mensagem, como receptor sensível ao lirismo de Laudelim. Respeita-se aí o tempo para compreender e a conseqüente reinscrição de seu passado não sabido Parecia coisa que tinha estado escutando aquilo a vida toda! tendo em vista a recomposição do viver. A metafórica viagem do recado obedece sempre a outra lógica , a da loucura (Guégue e semelhantes), a da infância (Joãozezim), a da poesia (Laudelim); todas alheias às marcas do tempo cronológico. Por sua vez, cabe a Pedro Orósio recobrar tal trajetória, inserindose na rede poética, já que se constitui seu principal destinatário. O guia configura o outro lado do cantador: o da escuta, primeiro flutuante , depois atenta . Curiosamente, ambos percorrem todo o viajar juntos e em tempos diferentes. Laudelim torna a sorte de Pedro matéria vertente da canção, cuja leitura permite ao namorador vislumbrar a posteriori sua verdade, já contagiada pelo lirismo que o leva a regressar aos campos gerais, pulando de estrela em estrela .

Enfim, a ficção rosiana pode ser lida a partir de uma sinuosa tensão entre os códigos (obra/leitor), mistura e ato de desmisturar (enredo/desenredo), pois se vale de uma linguagem lírica e vertiginosa como resistência ao instituído, ao assentado, imposto pela língua e normas estabelecidas. Perseguir os meandros de possíveis instabilidades dessa língua implica recriar e pontuar a expressividade do universo por ela engendrado. Dar vida a um mundo em devir (palavra-chave emprestada de Alfredo Bosi) depende, na obra de Guimarães, de um movimento pendular que mescla sujeitos, objetos, épocas, espaços etc. e, paradoxalmente, os desloca e desenfeixa. Desiludir, desmisturar e desfigurar clichês, reiventando a tradição e dramatizando linguagem e mundo, revelamse uma das formas de o autor pôr suas fábulas em ata similar aos narradores de Desenredo preservando seu lema de prestar a si mesmo, como escritor, contas de cada palavra e considerar cada palavra o tempo necessário até ela ser novamente vida . Cleusa Rios P assos P.. P Passos professora de teoria literária e literatura comparada daUSP,autora, entre outros, de GuimarãesRosa: dofemininoesuasestórias (Hucitec/Fapesp)

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veredas da palavra FotosArquivodoIEB–USP

Veja nesta página alguns dos verbetes do livro As muitas palavras de João Guimarães Rosa, de Nilce Sant Anna Martins, que será lançado em abril pela Edusp e que constitui um inventário de cerca de 8.000 palavras utilizadas pelo autor de Grande sertão: Veredas, com abonações, definições e raízes etimológicas que fazem dessa obra um dicionário do dialeto literário de Guimarães Rosa

desdeslembrar

anúvio “Aquele Antenor já tinha depositado em mim o anúvio de uma má idéia: disidéia, a que por minhas costas logo escorreu, traiçoeirinha como um rabo de gota de orvalho.” (Grande sertão: Veredas)/ Não dicionarizado (ND). Nuvem, névoa, bruma// Calcado em anuviar, “nublar”, do latim annubilare.

“Tenho de me recuperar, desdeslembrar, escogitar – que sei? – das camadas angustiosas do olvido” (Primeiras estórias)/ ND. Lembrar o que estava esquecido.// [des + (des + lembrar)]; des + lembrar = “esquecer”; des + esquecer = “lembrar de novo”. É um sutil e insólito jogo com o prefixo negativo num empenho em exprimir um complexo fenômeno psíquico.]

remembrança

nonada

“Reperdida a remembrança, a representação de tudo se desordena” (Primeiras estórias)/ Lembrança// Forma arcaica.

“Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja.” • “Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano.” (Grande sertão: Veredas)/ Nada; coisa sem importância.// Forma arcaica resultante da aglutinação de non + nada. É a palavra que abre o romance, constituindo sozinha a primeira frase e a primeira estranheza. Reaparece mais cinco vezes, sendo a última no parágrafo final. Heloísa Vilhena de Araújo diz: “A palavra ‘nonada’, que inicia o livro, poderia, assim, ser a indicação de que o mundo de Grande sertão: Veredas estaria, numa imitação da Criação, sendo criado ex-nihilo (Roteiro de Deus, p. 337). [Nei Leandro de Castro cita estudos em que se relaciona tal negação com a preocupação ontológica da obra.] (Veja Tutaméia).[Conferir Gonçalves Dias: “Hoje leigos de nonnada/ (He lhes o demo caudel)/ Praguejão a meza escaça/ E as arestas do burel.” (Obra poética de Gonçalves Dias) • Godofredo Rangel: “Gostava das conversações científicas, não admitindo que se perdesse tempo em prosas de nonada.” (Vida ociosa) • Aquilino Ribeiro: “Danado aquele Malhadinhas de Barrelas... reles de figura, voz tão untuosa e tal ar de sisudez que nem o próprio Demo o julgaria capaz de, por um nonada, crivar à naifa o abdómen dum cristão” (O Malhadinhas)]

carocho “Deus não devia de ajudar a quem vai por santas vinganças?! Devia... Ah, então: mas tem o Outro – o figura, o morcegão, o tunes, o cramulhão, o dêbo, o carocho, o péde-pato, o mal-encarado, aquele – oque não existe!” (Grande sertão: Veredas)/ Diabo// [Este é um dos passos em que é arrolada rica sinonímia de Diabo.]

arrenegado “E as idéias instruídas do senhor me fornecem paz. Principalmente a confirmação, que me deu, de que o tal não existe; pois é não? O Arrenegado, o Cão, o Cramulhão, o Indivíduo, o Galhardo, o Pé-dePato, o Sujo, o Homem, o Tisnado, o Coxo, o Temba, o Azarape, o Coisa-Ruim, o Mafarro, o Pé-preto, o Canho, o Duba-Dubá, o Rapaz, o Tristonho, o Não-sei-que-diga, O-que-nunca se ri, o Sem-gracejos... Pois não existe.” (Grande sertão: Veredas)/ Diabo// É esta a mais longa enumeração de denominações do diabo na obra do Autor. 60 C u l t - fevereiro/2001

Nas fotos, cenas do sertão pertencentes ao acervo pessoal de Guimarães Rosa


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a angústia das inadaptações

A travessia da obra literária de Guimarães Rosa para o universo imagético do cinema configura um processo criativo de risco devido à irredutibilidade essencial de sua linguagem, encravada num solo de oralidade regionalista e de erudição universal

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e viver já o é, filmar Guimarães Rosa também é muito perigoso. No meio do redemoinho de imagens e sons, reside o diabo das adaptações literárias que buscam verter em cinema as complexas veredas do sertão de palavras de Rosa(s). Pensando o ofício do artista, escreveu o autor mineiro: o incontentamento é o seu clima . Parece ser a mesma condição e sina do árido exercício da transposição, acidentada topologia de deslocamento que atravessa livro e filme, cartografiaenigma. Nonada: ponto de indagação e inflexão para quem decidir ousar pela aventura, âncora de angústia das inadaptações. Ambiciosa ou modesta, seja a tarefa, sempre resta o desafio, incômodo e inquieto. O poeta não cita: canta , reza Guimarães Rosa. O mais costumeiro entrave na travessia é a irredutibilidade da linguagem ( Quando escrevo, repito o que já vivi antes. E, para estas duas vidas, um léxico

Cena de Sagarana, o duelo (1973).

só não é suficiente ). Da pontuação à ortografia, da oralidade regionalista à erudição universal, o aparato construído através da sutil carpintaria do escritor traz problemas no transplante de meios. Mas tal entrave é estímulo para se descobrir o percurso (ou por ele perderse) de criação como processo inventivo de risco (afinal, o homem nasceu para aprender , diz GR, e também para errar). Se a prosa do escritor faz da essência seu lavor como instância irredutível, a grafia do cineasta elabora sua idéia de imanência como valor de irredutibilidade essencial. Recursos cinematográficos já foram explorados à exaustão como método comparativo na crítica literária. E não seria diferente no caso do autor de Ave, palavra. Os flash-backs, os travellings e a montagem correspondem, respectivamente, às idas e vindas no tempo e espaço do relato, ao ato de percorrer a memória e a paisagem num fraseado contínuo, à decupagem e à composição de palavras em novas rela-

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Carlos Adriano

ções de sentido. Sem querer preconizar a cisão de corpo e alma, até porque indecidível, o modo mais imediato de se esquadrinhar a situação é entender o que e como se hesita entre a apresentação episódica e a revelação do espírito. Os filmes brasileiros que releram a obra do escritor oscilam entre esses pólos. O exemplo clássico é um dos clássicos do cinema nacional: A hora e vez de Augusto Matraga (1965), de Roberto Santos. Uma de suas estórias mais importantes e extraída de seu primeiro livro (Sagarana) rendeu um filme cujo impacto está nas elipses, no modo de filmar o vento e a chuva vegetal, o caminhar humano e o agreste ascético, ressoando o obstinado artesanato literário. Planejado como produção de grande orçamento, o filme acabou enfrentando outras condições: roldanas e carros de boi simularam a mecânica de uma grua e barcos e liteiras moveram a câmera em travelling, substituindo os equipamentos adequados. fevereiro/2001 - C u l t 61

Fotosreprodução

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Os duelos entre o bem e o mal/ a violência e a religião contaminam a espessura técnica do filme, da contrastada fotografia em p&b (Hélio Silva), à clivada interpretação dos atores (Leonardo Villar, Jofre Soares, Maria Ribeiro) e à crispada música (Geraldo Vandré). A própria escolha do texto (sem maiores irrupções gramaticais ou vocabulares) contribuiu para um resultado equilibrado (em que pese o teor dilacerado do tema), permitindo que o diretor filmasse uma análise da realidade interna de um homem através de seu meio . Disse Roberto Santos: Quando li o conto pela primeira vez, fiquei principalmente impressionado com sua força popular e logo quis adaptá-lo ao cinema. Não foi fácil. O primeiro roteiro não me satisfez. Fui então falar com Guimarães Rosa . O escritor respondeu com uma chave: Matraga é um místico jagunço e Bem-Bem é um jagunço místico . Outra bela incursão no universo do autor é o curta A João Guimarães Rosa (1968), que o mesmo Roberto Santos realizou com Marcello Tassara. Trata-se de um exercício de montagem e animação com fotografias de sertão e sertanejos ao ritmo épico-poético de encantadas e magnéticas palavras. Outros documentários em curta-metragem, formatados para televisão, em torno das esferas literárias e geográficas de Rosa são dignos de menção e revisão: Do sertão ao beco da Lapa (1973), de Maurice Capovilla, e Veredas de Minas (1975), de David Neves e Fernando Sabino. Já no Grande sertão (1965), dos irmãos Geraldo e Renato Santos Pereira, come62 C u l t - fevereiro/2001

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A teu-se a ousadia (e o desastre) de se adaptar o complexíssimo romance. A intrincada fatura de letras e frases virou maçante aventuras de tiros e galopes. A metafísica arcaica foi reduzida a um canhestro faroeste. Filmes distintos, num lapso de 25 anos, mantiveram a ênfase diegética sem ignorar o discurso e o espírito do escritor, mas também sem incorrer em arroubos de linguagem. Alcançaram momentos inspirados, mesmo que num conjunto irregular. Sagarana, o duelo (1973), de Paulo Thiago, com música de Tom Jobim e Dori Caymmi, usa o conto homônimo para dialogar com certa tradição-sertão do cinema nacional (Vidas secas/1963, Deus e o diabo na terra do sol/1964, A hora e vez de Augusto Matraga/1965). Outras estórias (1999), de Pedro Bial, foca os contos sobre a loucura e a dilacerada angústia da ambigüidade, contidos no livro Primeiras estórias ( Famigerado , Sorôco, sua mãe, sua filha , Os irmãos Dagobé , Nada e a nossa condição , Substância ). Curiosamente, ambos diretores fizeram uma escala, espécie de ensaio preparatório, antes de enfrentar a adaptação de obras para o formato de longa-metragem: Thiago rodou o curta A criação literária de João Guimarães Rosa (1970); Bial dirigiu a série em vídeo Os nomes do Rosa (1998). Também transpondo contos de Primeiras estórias ( A menina de lá , Os irmãos Dagobé , Fatalidade , Seqüência , além do conto que dá título ao filme), A terceira margem do rio (1994), de

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Da esquerda para a direita, cena de A hora e vez de Augusto Matraga (1966), de Roberto Santos, e as atrizes Cristina Achê e Débora Bloch no filme Noites do Sertão (1984), dirigido por Carlos Alberto Prates Correia. Na página oposta, Chico Neto, Guido Corrêa e Jonas Torres, no episódio “Os irmãos Dagobé” do filme Outras estórias (1999), de Pedro Bial e Carlos Alberto Prates Correia (com a mão levantada) dirigindo a filmagem de Cabaret Mineiro (1980).

Nelson Pereira dos Santos, busca um tom singular e vigoroso no tênue fio do equilíbrio, ao cortejar as beiras de certa corrente de realismo fantástico. A melhor adaptação fílmica de Guimarães Rosa é Noites do sertão (1984), de Carlos Alberto Prates Correia, baseada no poema Buriti (como consta no frontispício do livro Noites do sertão, terceiro volume do ex-Corpo de baile). O roteiro é assinado pelo diretor e pela montadora, Idê Lacreta. Com graça, vigor e maestria sublimes, o filme exibe a exuberância erótica da natureza e da linguagem, fazendo aflorar com malícia e sutileza o corpo do desejo que dança no baile da paisagem agreste mineira. Ora, é poesia na prosa. Faladas como se cantadas, as palavras projetam-se precisas, coisas claras e ambíguas em pleno renovo, arado valor pela estrutura de concisão e silêncio. Por meio da fotografia (José Tadeu Ribeiro) de tom tropical, onde medram o esplendor das pedras e da vegetação de Minas, do elenco (Débora Bloch, Cristina Aché, Tony Ramos) bem escalado e da montagem (Idê Lacreta e Amauri Alves) de teor lunar, onde o ritmo do tempo se desdobra em doce e áspero esplendor, o filme também compõe um recôndito teorema familiar de citações sobre os Gerais, da música de Tavinho Moura à participação de Milton Nascimento entre os atores. Não tanto por ter nascido em Montes Claros (MG), mas este cineasta, um dos mais sofisticados, interessantes e criativos autores do cinema brasileiro (e, inexplicavelmente , há mais de dez anos sem


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filmar uma prova de um certo absurdo e indigência da cultura nacional), é o que logrou realizar com mais inventividade e beleza a tradução do verbo do escritor para o movimento do cinema. A letra e o espírito de Guimarães Rosa encontram nas imagens e sons de Prates Correia um leito perfeito de preciosidades, lav(ou)ra rara de minerais anímicos. Em Cabaret mineiro (1980), seu filme mais famoso, o diretor sacou o título de um poema de Carlos Drummond de Andrade (que é cantado numa cena), mas na seqüência final faz uma bela transposição de Sorôco, sua mãe, sua filha , de Guimarães Rosa. Uma viagem de trem por recantos de Minas, atravessando a narrativa e percorrendo paisagens, recorta a história fragmentária de jogo, paixão e loucura numa realidade onírica. Violentas maravilhas vão compondo uma estrutura imemorial e complexa, e a mão sensível de Prates Correia orquestra, de modo magistral, o coro das lindas intervenções da montagem (Idê Lacreta), da fotografia (Murilo Salles), do elenco (Nelson Dantas, Tamara Taxman, Tânia Alves, Louise Cardoso) e da música (Tavinho Moura). A última fita do cineasta, Minas texas (1989), de argumento original (sobre o velho oeste de seus sonhos), sugere remeter, indiretamente, por sua forma fabular e fabulosa, ao imaginário e ao temperamento do escritor. O cinema falado (1986), filme de Caetano Veloso, traz uma seqüência em que o diretor e ator Hamilton Vaz Pereira dramatiza a récita de um longo trecho de

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Grande sertão: Veredas, após comentar cenas da adaptação do romance para um programa da TV Globo, dirigido por Walter Avancini e roteirizado por Walter George Durst (1985). Livro enraizado no repertório pessoal do autor-cantor, proporciona intervenção das mais interessantes no terreno que trabalha a palavra em outros suportes. A longa seqüência quase não tem cortes, e o relato verbal (economicamente encenado) subjuga os parcos acentos e deslocamentos visuais, reconfigurando a dimensão temporal da experiência no espaço da imaginação. Na moldura artística afinada ao diapasão ousado do projeto (um cinema falado) realizado por Caetano, a fala adquire proeminências de enunciação paramétrica (a fala como autonomia estrutural e narrativa em relação à diegese). Outra categoria a ser brevemente mencionada é a das adaptações indiretas. São filmes não baseados em livros propriamente ditos, mas que estão impregnados do ideário do escritor. A referência mais imediata é Deus e o diabo na terra do sol (1964), de Glauber Rocha, por ter criado um sertão como espaço mítico, mundo de forças antagônicas, com imagens belas e brutas, tão densas quanto imediatas (como o texto de Rosa). O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969) é um serial remake mais político, colorido e alegórico do clássico Deus e o diabo, e coloca a questão noutra clave. O cineasta baiano, um dos mentores do cinema novo e um dos mais importantes do Brasil, levou a cabos extremos seu gosto barroco, aproximando-o dos

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volteios e torneios gramaticais de linguagem do escritor (embora com temperamento e propósitos diversos) vejase, por exemplo, seu filme Di (1977), funeral celebratório do triunfo da arte contra a morte. Ao associar signos de repertórios discrepantes, enfeixados em complexa tessitura do imaginário mítico e alegórico, o estro contundente e vigoroso do cinema de Glauber incorpora tropos e topoi de Guimarães. Os anos 90 apresentaram exemplos que buscavam reinscrever essa árida paisagem mítica num outro cenário, em diferentes horizontes, com filmes como Crede-mi (Bia Lessa e Dany Roland, 1997), que encena Thomas Mann no nordeste, e O sertão das memórias (José Araújo, 1996), que recupera a semeadura de sua família. O feito e o feitiço da retórica do autor João Guimarães Rosa são sua escritura encravada no solo regional, mas com raízes brotando planetárias (metafísica materialista?). As possibilidades de adaptação de sua obra fascinam porque não morrem, mas porque ficam encantadas. Como Magma, seu único livro de poemas, que só foi lançado após sua morte, a transposição cinematográfica de sua literatura talvez ganhe outras dimensões justamente por este sentido de im/permanência (da vida e da escritura). O mistério da experiência de radicalidade é a proeza da prosa poética de Rosa. Seu leme e mote: travessia. Carlos Adriano mestreemcinemapelaUSPecineasta,autor dos filmes A voz e o vazio: A vez de Vassourinha, Remanescências eA luz das palavras

Nota do autor: Agradeço a colaboração do curador de cinema e produtor Bernardo Vorobow. fevereiro/2001 - C u l t 63

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