CONTEI ATÉ DEZ - VERA FRUCCI

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VERA FRUCCI

CONTEI ATÉ DEZ 1


Imagem da capa: Mirian Malzyner Diagramação e editoração: Vera Lucia Laporta Ilustrações: Vera Lucia Laporta Prefácio: Roberto Klotz

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VERA FRUCCI

CONTEI ATÉ DEZ 3


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INTRODUÇÃO

A decisão de começar a escrever foi tomada num voo Roma SP, em 2013. Movida por essa decisão, retomei antigos escritos, textos iniciados e nunca finalizados. Por sugestão do meu terapeuta comecei a frequentar Oficinas de Escrita Criativa. Fiz várias. Meu amigo e mestre, o escritor Roberto Klotz, me desafiou sem dó. Foi crítico e com isso expos meus vícios de linguagem e a dificuldade de me soltar e fantasiar. Em 2020 passei a fazer parte do Grupo de Autores de James McSill e aí a coisa deslanchou. Faço um agradecimento especial aos caríssimos amigos do Facebook que leram minhas baboseiras iniciais e sempre me apoiaram com incentivos e elogios. Sem esse apoio, com certeza eu teria desistido. Foram eles que me deram coragem para continuar escrevendo e aprendendo com cada novo texto. “Contei Até Dez” reúne dez pequenos contos, alguns com jeitão de crônica, inspirados em fatos e ocorrências do dia a dia. Presta-se ainda como ensaio para escrever um livro de auto ficção. Aguardem!

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PREFÁCIO

Conheci Vera quando ela começou a escrever. Com um lápis desenhava letras redondas entre as linhas do caderno de caligrafia. Isso foi no século passado. Tempos em que ainda usávamos papel e caneta. Hoje é tudo digital e acontece na tela de um monitor. Tanto que, foi assim que reencontrei a minha colega de escola numa postagem de um conto em que a autora brigava na cozinha com as formigas. Além do meu elogio houve muitos outros pedindo e insistindo que contasse mais histórias. Aos poucos Vera se encorajou, ganhou confiança e postou vários contos e crônicas divertidas. Gosto da pegada maliciosa e bem-humorada com que nos diverte.

O título do livro “Contei até dez” refere-se à seleção de dez textos. Agora, ansioso, espero contar até cem, mil. Beijo grande Klotz

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SUMÁRIO 1. ALPINISTAS ............................................................11

2. NAS CHAMAS DA PAIXÃO.....................................17

3. É COMO ANDAR DE BICICLETA ..........................21

4.. SIBILOS DO PASSADO ........................................25

5. RELÓGIO DE AÇO, NERVOS NEM TANTO .........29

6. POMBOS NA PRAIA, POMBAS NA PRAÇA ........33

7. O QUINTO MANDAMENTO ...................................37

8. EXPRESSÕES ........................................................41

9. LOUCOS POR FUTEBOL .....................................45

10. COM O MACHADO NAS MÃOS .........................49 9


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ALPINISTAS Sidneia entrou e parou maravilhada. Girou os olhos da esquerda para a direita, da direita para a esquerda, como naqueles exercícios de musculação facial.

Um duplex minimalista, de muito bom gosto. Observou a sala: a mesa de jantar branca e brilhante como o manjar que sua avó fazia nas datas especiais. Mais à frente um sofá de três lugares em couro fendi e um par de poltronas em linho cinza. Empilhados sobre a mesa de centro, três livros enormes: Manual da Escalada, O Meu Everest, Resgate Vertical. O pé direito duplo fazia a sala ainda maior. O janelão nu mostrava parte da varanda − gourmet! Sidneia − “Sidy, com ípsilon no final!” − como fazia questão de esclarecer, é dessas pessoas que dão um valor excessivo às aparências: das coisas e dela mesma. Sempre atenta ao seu melhor ângulo, ao cabelo, aos adereços, parecia não relaxar nunca. Seu desejo de estar em evidência punha de ponta cabeça a Pirâmide de Maslow, não estava nem aí para as necessidades fisiológicas, segurança, amor ou estima, sua preocupação era a realização pessoal. O pai sempre dizia: “Estuda filha! Estuda para ser alguém na vida.” A mãe, pragmática, recomendava: “Vê se arranja um bom partido, casa com um homem rico.” Não gostava de estudar, mas lia muito. Devorava revistas de fofocas e notícias sobre celebridades e locais badalados. Conhecia todos os restaurantes da moda, de nome. 11


Tentava frequentar ambientes e grupos que pudessem lhe trazer alguma vantagem. Foi assim quando aceitou ser dama de companhia de D. Maria Augusta Alvez de Albuquerque, uma senhorinha viúva e cheia da grana. Às terças e quintas Sidy vestia sua melhor roupa e ia para o Itaim passar a tarde com D. Maria Augusta. Às vezes saiam para tomar um chá, mas o mais comum era que ficassem por lá mesmo vendo TV, olhando fotos antigas ou lendo revistas. Numa dessas tardes, já voltando para casa, quis o destino que Sidy fosse abalroada por um ciclista. Quase morreu... de emoção! O ciclista era um deus grego, alto e musculoso. Simulou um mal estar, por pouco não desmaiou. O ocorrido se deu bem em frente ao CAP − Clube Alpino Paulista, na Vila Olímpia. Max, que costumava ir ao CAP pedalando, logo se prontificou a prestar assistência. Mediu Sidy da base ao topo e, constatando que nada sério ocorrera, convidou-a para um suco no seu apartamento. ─ Venha! Deixo a bike no clube e vamos caminhando, moro a três quadras daqui. No caminho falaram sobre amenidades, sobre o clube, sobre montanhismo. Max empolgado explicava seu hobby e Sidy, sem muito a dizer, mantinha a conversa fazendo perguntas. Ao entrarem no apartamento Max propôs que ela ficasse à vontade enquanto prepararia uma bebida. Sidy foi direto para a varanda. A parede ensolarada que fora adaptada para rapel chamou sua atenção. Pedras salientes em desalinho formavam um desenho estranho, pelo menos para Sidy que nunca havia trepado em paredes. Do teto pendiam dois ganchos de metal. Notou uma grande poltrona circular próxima a parede. Apoiados no encosto mosquetões presos 12


uns aos outros formavam um alegre colar de cores metálicas que se alternavam: azul, vermelho, verde, azul, vermelho, verde. Sobre a almofada um capacete amarelo cor de ovo, e o que parecia ser uma sapatilha. Na parede oposta uma bancada de granito preto com pia de inox, churrasqueira, e uma mini geladeira, também preta. Acima da bancada prateleiras de madeira clara acomodavam vasinhos com temperos: hortelã, sálvia, alecrim e manjericão.

Sidy passou os dedos cheios de anéis pelas plantinhas e sentiu o aroma se espalhar. Respirou fundo, ou melhor, suspirou, menos pelo perfume e mais pela perspectiva do bom partido. Sentiu o “cheiro-verde” dos dólares. Só queria relaxar e sonhar. Calçou as sapatilhas e sorriu. Eram desengonçadas e folgadas, mas muito mais confortáveis que sua plataforma salto oito, além de combinarem com sua legging amarela, justa como luvas cirúrgicas. Max era bem nascido. Filho único de um fazendeiro de Palmas, no Tocantins, viera para São Paulo estudar Agronomia. Do cerrado mantivera o gosto pelas coisas naturais e saudáveis, mas também certa sofisticação propiciada pela conta bancária. Não fumava, bebia pouco, e praticava esportes radicais. Acreditava que um dia encontraria uma moça simples, educada, e que gostasse da vida ao ar livre.

Veio para a varanda trazendo dois copos altos com uma bebida esverdeada. Ofereceu um para Sidy e de um só gole bebeu metade do seu. Sentindo-se revigorado agarrou-a pela cintura e a beijou. Sidy cedeu. Fizeram sexo ali mesmo na varanda gourmet junto aos mosquetões. Max escalou o corpo de Sidy começando pelos pés. Atingiu o clímax no monte de Vênus. Depois desse encontro, saíram umas poucas vezes. Alguns programinhas gastronômicos, por insistência dela, uma caminhada no Ibirapuera, por insistência dele. 13


Algo não se encaixava. Sidy achava Max muito simplório. Quase sempre de moletom e tênis, preferindo sucos de frutas a um bom uísque. E a mania de detox, aquele suco horrível de couve com gengibre, com cor de Hulk e gosto de mato. Max, por sua vez, foi se apercebendo de uma Sidy um tanto deslumbrada que só pensava em locais badalados e caros. E os inúmeros anéis e pulseiras! Não os tirava nem quando faziam sexo, o que deixava Max estressado só de imaginar os balangandãs enroscados no seu bilau. Terminaram. Max se prepara para escalar o monte Fitz Roy, no extremo sul da Argentina. Sidy está realizada, encontrou seu Everest, só anda de Mercedes ao lado do namorado, o motorista de D. Maria Augusta.

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NAS CHAMAS DA PAIXÃO O veranico de maio prometia um sábado quente e ensolarado. Apesar do resfriado Ana acordou bem disposta e decidiu que passaria o dia no clube tomando sol. O bronzeado do verão já se fora há muito tempo e ela se gostava “pretinha”; sentia-se ainda mais sexy com os cabelos loiríssimos contrastando com a pele queimada. Antes de ir ao Clube, perfeccionista, passaria no escritório para uma última olhada no relatório que enviaria à matriz na segunda-feira logo cedo. O escritório da regional, provisoriamente alocado num prédio antigo e precário de cinco andares, estava vazio, pois não trabalhavam aos sábados.

Ana ocupava uma salinha no 3º andar. Chegou por volta das 9h, ligou seu pequeno ventilador de mesa, o computador e abriu o relatório. Uma última relida seria suficiente antes de enviá-lo ao gerente. Precisava ter certeza de que o trabalho estava perfeito, queria mostrar que, além de gostosa era uma profissional capaz. Recém-formada, se apaixonou pelo Dr. Fernando, seu gerente, assim que o viu. Advogado, com 50 e poucos anos, charmoso, sedutor e um galinha! Ah, como ela o odiava! O odiava com a mesma intensidade com que o desejava. Haviam se conhecido há seis meses numa reunião na matriz, em Águas de Lindóia. Ana não resistiu à cantada do chefe e passaram a noite juntos no hotel Guarany onde ela estava hospedada.

Desde então o Dr. Fernando lhe enviava e-mails dúbios. Telefonava para elogiar seus olhos, o corpo de tanajura, os 17


cabelos que cheiravam a maçã verde. Dizia que logo se encontrariam novamente. A cada ligação prometia que viria à regional passar uns dias só para ficar com ela. Promessas nunca cumpridas. A paixão virou obsessão. A ausência de notícias a levava ao desespero e ao devaneio. As palavras de Dorinha, a prima carola a quem confessara sua aventura, ecoavam em sua mente: “Cuidado menina, onde se ganha o pão não se come a carne!”. E quem quer comer pão com carne? Bobagem! Entorpecida pelo desejo, nem raciocinava mais. A última ligação, um mês atrás, fora bastante profissional e fria. O chefe pedia um relatório. Desde então emudeceu. Não ligou, não enviou e-mails. Sumiu.

Tanta coisa a ser dita! O não dito, o já dito, o redito. Pôs-se a escrever para ele. Nem notou que teclava voraz no corpo do relatório logo abaixo do item ‘Conclusões Finais’. “Meu amor, seis meses atrás você entrou em minha vida. Tão sedutor e insistente que não tive forças para resistir. Apaixonei-me pela sua voz de barítono, por suas promessas, pelo seu tesão.

Após cinco meses de meu amor, minha vida, de cá e de lá, você sumiu. O telefone emudeceu, os e-mails não chegaram, as promessas se perderam. O que aconteceu? Sinto o calor de sua presença me envolvendo, não posso mais viver esta paixão sozinha.” A temperatura subia, Ana transpirava. Suas mãos úmidas marcavam a mesa de fórmica. Sentia o suor escorrer pela nuca, os longos cabelos grudados nas costas. Ofegava. Sentiu uma tontura, mal conseguia respirar, mas seguiu te18


clando. “... sinto um torpor... como um fogo dentro de mim, que arde... que queima, ah, meu amor, como eu queria...”. Ana não terminou a frase. O fogo começara no 2º andar, no almoxarifado. Um curto circuito e logo as labaredas devoravam papéis velhos e amarelados, pastas e mais pastas de papelão. Subiu pelas paredes, invadiu o 3º andar. As chamas da tragédia se juntaram às chamas da paixão e Ana nem se apercebeu do incêndio. Ficou ali imóvel, na cor que se gostava tanto.

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É COMO ANDAR DE BICICLETA Manoela ultimamente vivia assim, meio sem graça, sem vontades, sem desejos. Fazia um bom par de anos que não saia com ninguém. Não namorava, não paquerava, nem olhava mais. Não tinha e nem buscava oportunidades.

Andava pensando que talvez tivesse esgotado sua cota de prazer, o que de certo modo era uma forma de se consolar com a solidão. Difícil mesmo era se conformar! “Quem sabe as pessoas tenham uma cota de prazer, de dor, de felicidade... vai ver já vivenciei o que me cabe. Namorei, tive lá minhas paixões, meus casos. Acho que esgotei também minha cota de tesão”, conjecturava.

E assim seguia Manoela, um dia a dia banal dedicada ao trabalho, à família e aos amigos, sem qualquer expectativa amorosa. Um dia leu sobre um tal de Chip Fashion que entre outras coisas reavivava a libido. Esperançosa consultou seu ginecologista, mas ele desaconselhou: ─ Hum... hormônios! Sabe como são essas coisas... e os possíveis efeitos colaterais: pelos, voz grossa. Recuou. Dramática como ela só, se imaginou protagonizando o noticiário: “Mulher barbada ataca garotão em estacionamento de supermercado”. Foi quando, já decidida a aposentar a “dita cuja”, que, assim do nada, um ex-colega de trabalho a localizou por intermédio do Facebook.

Não se viam há mais de dez anos. Ele havia casado e fora 21


morar em Bruxelas. De volta ao Brasil contatava velhos amigos para colocar as fofocas em dia. Marcaram um almoço, ele desmarcou e sugeriu um jantar. Manoela foi sem qualquer segunda intenção. Afinal, pensava, é sempre bom rever as pessoas, manter contatos profissionais. Na despedida ele tentou beijá-la. Recuou. Um rápido “selinho” foi tudo que rolou, mas que deixou em Manoela um gostinho bom, de quero mais. Alguma coisa renascia, a lascívia se instalava em Manoela. Ficaram de se falar, de marcar novo jantar ou almoço. Ele quis repetir o jantar. Não sabia explicar direito, mas a sensação do vai rolar insistia em dominar seus pensamentos. Sexto sentido? Quem sabe...

Entrou em pânico! E agora? Agora que se sentia tão enferrujada, como seria? Como reagiria? Recatada? Tarada? Consultou uma astróloga: ─ É a conjunção astral, Manoela, a revolução de Saturno. Você passou uma fase muito recolhida, mas agora acabou. Vai firme! Vai te fazer bem. Se acontecer, dê! Dê muito! Entre animada e constrangida levou a questão à terapia. Afinal já era tempo de falar sobre seus desejos, ou a ausência deles! O terapeuta, um homem sério, porém afável e continente, com certeza lhe teria uma palavra, um conselho que acalmasse sua ansiedade. Manoela enrolou um tanto, falou amenidades, criou coragem e se abriu. Expôs o fato, seus medos, suas inseguranças, o longo tempo sem ninguém, e num tom melodramático desabafou: e se acontecer? Faz tanto tempo que nem sei mais o que 22


devo fazer! Após alguns segundos de silêncio que lhe pareceram horas, o terapeuta disse o óbvio: ─ Manoela, isso é como andar de bicicleta, se já fez, não esquece! ─ Não estou falando do ato em si, esse não esqueci, ainda! Refiro-me ao antes, ao depois, à situação como um todo... O fato é que de fato rolou. Manoela seguiu os conselhos da astróloga. Gostou. Repetiu. Adorou. Retomou o gosto pela coisa e hoje vive feliz a pedalar pela vida.

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SIBILOS DO PASSADO A noite foi mal dormida, Fátima sonhou que estava em Nova Delhi e era estuprada. Levantou suada e assustada. Para afugentar o pesadelo lavou o rosto com água fria. Ainda trêmula escovava os dentes num vai e vem nervoso quando achou ter ouvido aquele som, exatamente como na semana anterior.

─ Não pode ser! De novo, aqui nesse fim de mundo? Com a escova no ar, a boca aberta cheia de espuma, esticou o pescoço adiantando o queixo como se esse movimento apurasse o ouvir. O sibilo novamente. Não, não estava sonhando, o som era real, era ele.

─ Desta vez você não me escapa! disse cuspindo uma constelação branca no espelho. Sem enxaguar a boca, jogou a escova na pia e correu para a cozinha. Tinha que ser rápida. Abriu a gaveta dos talheres, pegou a maior faca, a mais pontuda. Descabelada e de pijama correu para a rua. O som intervalado se afastava. Empunhando a faca, saiu desembestada tentando alcançá-lo. Um menino olhou assustado. Uma senhora pensou em chamar a polícia. ─ Aonde vai essa louca com um facão na mão? Não sabe que agora é proibido portar facas? Vendo que o homem dobrava a esquina, Fátima gritou o mais alto que pode: ─ Espera!

O homem parou e se virou. Fátima apontou-lhe a faca. 25


Sorriu feliz. Só mesmo num fim de mundo para encontrar um autêntico amolador de facas.

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RELÓGIO DE AÇO, NERVOS NEM TANTO Num átimo, como que cuspido pelo meio-fio o pivete se materializou ao lado do carro, bateu com o cano da arma no vidro e ordenou: ─ Passa o relógio, cadela!

Cadela, eu? ─ Vai, cadela! O relógio, rápido! repetiu a voz embrutecida pela raiva. A postura ensaiada para intimidar, a arma empunhada para apavorar. Dizem que muitos assaltam com arma de brinquedo, e daí? Nessa situação, um 38, uma metralhadora ou um revólver comprado na loja de 1,99 falam todos o mesmo idioma.

Humildemente atendi à solicitação do gajo e entreguei o relógio. O farol da Bela Cintra com a Santos abriu, mas eu fiquei ali paralisada pelo susto, o pulso vazio, o retrovisor mostrando o safado se afastar. Um rapaz novo, alto e magro, camiseta clara, bermuda de tactel, boné enterrado no cabeção e tênis de correr da polícia: default de trombadinha. Por nada desse mundo ousaria encará-lo. Vivendo numa cidade como São Paulo as recomendações que sempre acompanham os noticiários sobre assaltos já estavam impregnadas no meu inconsciente: “nunca reaja!”, “não encare!”. E foi assim que fiquei sem meu lindo reloginho trazido de uma viagem ao exterior. A prima que viajava comigo insistira num relógio de respeito, inconformada com o fato de que eu, uma executiva, andasse por aí desfilando acessórios plásticos: um Champion no pulso, uma caneta Bic e um isqueiro idem 29


na bolsa. ─ Tenho alergia de contato, não posso usar nada metálico que fico empipocada. Tanto ela insistiu que me convenceu. Saí da loja com um belo Cartier antialérgico, delicado e discreto. Talvez não tão discreto assim já que o gatuno o percebeu de longe. Pior do que ficar sem o relógio foi ser chamada de cadela.

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POMBOS NA PRAIA, POMBAS NA PRAÇA Estavam na praia o Sr. Alberto e a filha, a Cidinha. Ela olhava o mar com aquela preguiça gostosa de sol de inverno; ele comia milho no pratinho: embora não usasse dentadura, os dentes não tinham mais competência para roer espigas.

O Sr. Alberto fora um homem forte e espadaúdo, quando jovem praticava natação. Fora também implicante, chegando a ser rude quando contrariado. Mas era um galanteador, não podia ver moça bonita que já ensaiava um gracejo, característica, aliás, que insistia em manter mesmo correndo o risco de ser visto como um velho gagá. Seus 90 anos eram um alvará para que agisse como criança, o que deixava Cidinha um tanto irritada. ─ Pai, pare de jogar milho para os pombos! Aí eles não saem mais de perto. Pombos transmitem doença! Odeio pombos, pensava Cidinha, só ficam bem na Piazza San Marco, e olhe lá, pombas! Foi então que se lembrou de outra pomba, a “gira” e da aventura na praça. Uma amiga deveria fazer uma oferenda para a pomba-gira, que, segundo uma vidente, era a entidade que atrapalhava os relacionamentos amorosos. Pediu a Cidinha que a acompanhasse, sugerindo que ela também levasse uma oferenda. Cidinha, que se arrepiava só de pensar em trabalhos e terreiros, acabou cedendo − quem sabe não fosse essa a solução para seus amores encruados − e propôs a Praça Horácio Sabino, ali no Jardim das Bandeiras, onde costumava caminhar. Local afastado e discreto, mesmo de dia quando havia pessoas levando os cães para passear. 33


Numa noite foram as duas de carro explorar o local. Deram uma volta na praça grande e ovalada circundada por eucaliptos e outras árvores encorpadas. Gostaram. Havia um espaço central descampado e cimentado, mas, no restante, muito chão de terra batida, requisito para o sucesso do despacho. Aqui e ali, cantos velados com arbustos e bancos de cimento. Contaram três guaritas, dotadas por seguranças contratados pelas casas à volta da praça. O pai balançando o pratinho como que dizendo “já terminei” a fez voltar do devaneio à praia. Ultimamente falava pouco, a mímica substituía as palavras e era capaz de ficar horas repetindo um gesto até que alguém o atendesse. ─ Deixa, eu jogo o pratinho. Cidinha se irritava com os que abandonavam os destroços das comilanças na areia, alheios aos cuidados com a natureza. Depois vinha a maré e levava tudo mas trazia de volta, e a praia virava aquele horroroso vai e vem de sabugos, latinhas, pratos de isopor, palitinhos de picolé com a inscrição “madeira de reflorestamento”. Levantou da cadeira, enxotou um pombo que ciscava o milho derrubado pelo pai e buscou um dos latões de lixo. ─ Pombos! Os pensamentos voltaram para a praça, e para o dia da oferenda. Foram numa quinta-feira à noite. Nem era tão tarde, mas tudo era um breu devido ao tempo instável, dificultando reencontrar o local escolhido alguns dias atrás. Com o farol baixo procurando ser discretas, deram três voltas na praça. Queriam estar protegidas dos olhares de curiosos ou transeuntes. Estacionaram e olharam em volta. Apesar da hora e da chuva recente, a praça não estava totalmente deserta. Uma mulher com seu cão, um casal de namorados e um vigia ameaçavam 34


perturbar a expectativa de privacidade. Após alguns minutos, tensas pelo inusitado do programa, pegaram as tralhas e se encaminharam para um conjunto de árvores em semicírculo. Alguns pingos ainda se equilibravam nas folhas e a terra úmida exalava um cheirinho bom. Mais marcante e delicioso era o odor dos eucaliptos e dos pinheiros, que, banhados pela chuva, exibiam o asseio no perfume adocicado. Em silêncio, cada uma estendeu seu pedaço de pano vermelho travestido de toalha, onde foram arrumando as oferendas: rosas, esmalte e batom carmim, cigarros fincados em montinhos de areia, algumas moedas douradas. Uma Sidra Cereser e taças descartáveis. O estouro do espumante soou alto como um tiro. Cidinha, com o susto, deixou cair o esmalte e pisou nos cigarros. Fecharam os olhos e se concentraram nos respectivos pedidos. Mudas, em parte pelo nervoso, em parte para o pedido de uma não se sobrepor ao pedido da outra. Direto ao ponto: o amor ou desamor. Terminaram antes que um dos vigias percebesse o movimento e as botasse para correr. Cidinha ainda tremia quando entrou no carro. Tremeu também quando voltou para o guarda-sol. O pai agarrava as mãos de uma mocinha que sorria sem graça, mas se mantinha imóvel na certeza de estar fazendo a boa ação do dia: dar atenção e carinho a um velho gagá. Ao redor do estranho casal, pombos arrulhavam.

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O QUINTO MANDAMENTO Algumas pareciam estar de prontidão, outras caminhavam em círculos, outras ainda iam e vinham do nada para lugar nenhum. Ao anoitecer, aquela que parecia liderar o grupo dá o comando: ─ Companheiras, a hora é chegada, em marcha! ─ Aquele bolinho de banana de noooovo? Você sabe que sou diabética! ─ Não! Os doces estão no setor sul, nós vamos para o grande balcão. Fui informada de algo novo que não é doce, mas tem muita energia. Algo a ver com lipídeos. Vamos, temos uma longa caminhada pela frente. Se organizaram e marcharam em fila. Seguiam em direção ao grande balcão, percorreram a planície de parquet, cruzaram a soleira e chegaram ao piso frio e liso. Preferiram seguir pelo traçado mais escuro, poroso, até alcançarem o balcão negro e gelado. A escalada na vertical não as intimidou e logo atingiram o topo. Juntaram-se em volta do quadradinho de cor bege, macio e cheiroso, esquecido no prato de porcelana.

─ Eu experimento! ─ propôs a líder dando uma bocada no estranho elemento. ─ Desconheço, mas é muito bom! ─ Deixa comigo − disse a diabética mais vivida − Hum, toucinho! Há quanto tempo não provo toucinho. Venham, ataquem sem medo e avisem as companheiras. Uma dança de antenas excitadas passava a informação adiante, e logo eram dezenas de obreiras se movendo nos dois sentidos. Formavam duas trilhas, uma que vinha outra que 37


voltava abastecida. Ao se cruzarem, de quando em quando um “olá, como está?”, um breve toque de antenas, um apressado “tem coisa boa à frente”. Prosseguiram incansáveis até o amanhecer quando uma repentina claridade fria precedeu o alerta:

─ Recuem, recuem! Fomos descobertas! Lá vem spray! ─ De pimenta? ─ perguntou uma mais novinha, piscando os olhinhos de prazer. ─ Não, sua anta! Digo “ant”. Spray paralisante! Espalhem-se! O dispersar era instintivo e foi um corre-corre para todos os lados. No prato, o naco de bacon mais parecia um brigadeiro sendo abandonado pelo granulado.

Dona Zezinha empunhando o tubo de inseticida mirava as danadas. Bióloga aposentada nunca escondera sua predileção pela flora em detrimento da fauna. Odiava insetos. Carola desde a infância, sabia de cor os dez mandamentos e foi exatamente por causa do quinto − Não Matarás! − que se danou.

Prestes a pressionar o gatilho sentiu uma forte dor, primeiro na consciência depois no peito. Dona Zezinha ficou ali paralisada, o tubo na mão, a mão no peito, os olhos fixos nos pequeninos seres de Deus. Foi encontrada dias depois, gelada no chão liso, ao lado do grande balcão negro como as formigas que enchiam sua boca.

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EXPRESSÕES Dizem que algumas coisas a gente nunca esquece: o primeiro beijo, o primeiro sutiã, uma expressão impactante. Dizem também que a ingenuidade é irmã da sinceridade. Se não dizem, digo eu.

Recém-formada eu era toda certinha e quase não falava palavrão. Estimulada por uma amiga me candidatei a uma vaga em multinacional de prestígio; seria meu primeiro emprego com carteira assinada. Na entrevista com o diretor de marketing, após algumas perguntas sobre experiência anterior, expectativas, etc. veio a fatídica: ─ E como você se vê daqui a cinco anos? ─ Casada com filhos! respondi com olhar sonhador. Hoje, mais madura e menos ingênua provavelmente responderia: “No seu lugar” e talvez tivesse me saído melhor, ou não! Fui contratada. Fazer parte de tão prestigiada empresa me enchia de emoção e orgulho. Estava sempre alerta querendo acertar e disfarçar minha pouca experiência. Uma das primeiras reuniões da qual participei envolvia o alto escalão. A sala enorme, o clima formal e a presença predominante do sexo masculino ampliavam minha insegurança. Meu chefe − dizem que quem tem chefe é índio, não perco esse vício − fazia uma apresentação e num dado momento, contrariado com alguém ou algum fato, já nem me lembro mais, esbravejou:

─ Quero ver fulano botar o pau na mesa! 41


Toin!!! Hein? Como assim, o pau na mesa? Vesti um sorriso amarelo tentando fingir naturalidade. Olhos arregalados fitando o nada, não pude evitar de imaginar a cena literal e comecei a rir. ─ Rindo de quê, mocinha? Não concorda? ─ perguntou o diretor. ─ Eu? Sim! ─ gaguejei corada. Depois, com voz firme: ─ Claro que concordo! Nem quero ver, mas que coloque, sim, o pênis na mesa!

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LOUCOS POR FUTEBOL Era um domingo ensolarado, por volta das três da tarde. Meus sobrinhos, que aos domingos costumavam visitar os avós, jogavam futebol na quadra do prédio. Como última tarefa do dia, após quase 24 horas de plantão no apartamento dos meus pais, deixaria um café pronto. Eu ansiava com a volta para casa, não sem antes tomar o café fresquinho e (maldito vicio!) fumar um cigarrinho, é claro. Nisso entra o mais novo, o pequeno Erick, todo esbaforido e nervoso: ─ Tia, tia, chutei a bola em algum prédio da rua de baixo, e desandou a explicar o passe, que chutou na trave, que a bola quicou e acertou bem no buraco da tela que protege a quadra, que a bola não era dele mas do irmão, o Lucas blá, blá, blá... ─ Certo, e o quê você quer que eu faça? ─ interrompi. ─ Vai comigo tia, vai tentar pegar a bola... E lá fui eu com os dois para a rua de baixo tentar localizar o local, torcendo para não ser uma obra. Avisei: "se for obra não tem ninguém domingo, teremos que voltar amanhã!" Era um prédio, com guarita de vidro fumê e gaiola. Proteção máxima! Aperto o interfone sem ter ideia de quem está do outro lado. Seria um jovem aficionado por futebol? Um velho ranzinza? Resumidamente me apresento e explico o ocorrido. Percebo certa má vontade. Querendo facilitar pergunto aos guris como é a bola. Resposta imediata: ─ É uma Cafusa da Copa das Confederações ─ adianta-se o mais novo, falando diretamente no interfone. 45


─ Não ─ corrige o mais velho ─ é uma Jabulani da Copa de 2010! Cheios de si, como se nominar as bolas, ora bolas, fosse o modo mais natural para localizá-las em terreno alheio. Minha cara de surpresa não disfarça a ignorância futebolística bem como certa tolerância com a ingenuidade infantil.

─ Meninos, a cor! Digam a cor da bola. ─ Verde e branca, tia, mas o branco está cinza de sujo... Depois de algum tempo retorna o porteiro com a tal bola. Abre o primeiro portão da gaiola e joga a bola no cercado. Recolhese em sua fortaleza fumê e libera o segundo portão. Missão cumprida! Voltamos para casa aliviados. O Lucas com a Cafusa nas mãos, e eu com as mãozinhas do Erick entre as minhas. Ah! esses meus lindinhos...

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COM O MACHADO NA MÃO

Olhei de cima para confirmar o percurso. Não que precisasse, por mais de cinco anos fiz aquele trajeto a pé. Olhei por olhar, ao longe, para descansar a vista. Tempo bonito, ensolarado, bom para caminhar. Andar a pé faz bem para o corpo e para a alma. Já dizia Jean Jacques Rousseau: “Só consigo pensar quando caminho. Minha mente só funciona com minhas pernas”. Sim, vou caminhar e fazer o que estava protelando há tempos. Devolver o livro que me fora emprestado no início da pandemia com enfáticas recomendações: “Leia e devolva! Inteiro, não rabisque nem amasse as folhas”.

Ao ler a dedicatória entendi o zelo e apego de minha amiga. Fora presente de uma paixão da adolescência, que assinara: “Com amor do seu Bento. O livro, Dom Casmurro de Machado de Assis (1839-1908). E lá fui eu com o Machado em mãos. Nu, sem embrulho, sem qualquer proteção para que revisse antigos contemporâneos. Subimos Theodoro Fernandes Sampaio (1855-1937), engenheiro, geógrafo e historiador, dizem que suas anotações contribuíram para a escrita de Os Sertões, de Euclides da Cunha. Foi breve o percurso na Theodoro, suficiente para tropeçar nas calçadas esburacadas e observar a sujeira acumulada nas lixeiras. Atravessamos Henrique Schaumann (1856-1922). Aos 23 anos formou-se farmacêutico no Rio de Janeiro, assumiu os negócios da família e projetou a botica “Ao Veado d´Ouro”! ─ Sabia disso, Machado? 49


A Henrique Schaumann é uma avenida ampla, arborizada em sua ilha central. Na continuidade ao atravessar a Rebouças, recebe o nome de Av. Brasil e, quando se olha de cima, do meu terraço, pode-se admirar a imensidão verde que circunda o Obelisco. Cá de baixo a vista é menos nobre. Um mendigo, enrolado em farrapos, dorme protegido pela marquise da Drogasil. Cocô canino não recolhido no meio-fio, restos de comida no chão, uma caixinha de “Quarteirão com Queijo”, e uma bandeja de isopor com restos de arroz próximos ao que já foi uma lixeira. Logo alcançamos a praça. Benedito Calixto de Jesus, pintor, mas também professor, fotógrafo, desenhista, historiador, cartógrafo e praça! Muito agradável circundá-la, repleta de espécies tropicais. As árvores aqui dão sombra e alegram os olhos de quem curte a flora, como eu. Há várias pitangueiras, amoreiras, até pés de café já vi. Às terças abriga a feira livre e aos sábados feirinha de antiguidades e artesanato no melhor estilo “mercado das pulgas”. Desde 1987, reúne mais de trezentos expositores que exibem de obras de arte, louças e móveis antigos até bengalas, armações de óculos, bijuterias e mais uma infinidade de tranqueiras. Não resisto e, burlando o trajeto original, aproveito para rodeála, eu e Machado. Não temos pressa e este pequeno desvio não dura mais que dez minutos. Pena que tudo esteja fechado, os restaurantes, as lojas...Maldita pandemia! Rodeada a praça, seguimos pela Rua Lisboa em direção à Rebouças, até o prédio de minha amiga. Aciono o botão do interfone e aviso ao porteiro: ─ Gostaria de falar com a Solange do 54, vim devolver um livro. 50


─ A Dona Solange acabou de sair, a sra. a perdeu por dois minutos! Pode deixar o livro comigo que entrego assim que ela voltar. ─ Agradeço sr...? ─ Assis ─ Então, sr. Assis, não se preocupe, volto outro dia. Depois dizem que coincidências não existem! Retornamos eu e Machado. Desço Artur Nabantino Gonçalves de Azevedo (1855-1908) este sim, além de contemporâneo, símile em profissão. Dramaturgo, poeta, contista, prosador, crítico, comediógrafo e jornalista. Irmão do escritor Aluísio de Azevedo, foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras. ─ Como primeiro presidente da Academia isso você já sabia, não é Machado?

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VERA FRUCCI Aquariana, nascida em São Paulo em sete de fevereiro de 1953, Vera Frucci tem ascendência italiana. Psicóloga formada pela USP em 1975, fez sua carreira em Pesquisa de Marketing, tendo trabalhado em empresas renomadas como Johnson & Johnson, Unilever, RMB e Millward Brown. Em 2005 optou pelo “sabatismo”. Costumava dizer que estava sabática, até que assumiu ser sabática de vez e se aposentou. Foi a partir de 2013 que passou a se dedicar à escrita. Solteira, sem filhos e sem pets, adora cuidar de plantas. Bem humorada, prioriza o lado cômico da vida em detrimento do trágico.

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