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6. POMBOS NA PRAIA, POMBAS NA PRAÇA

POMBOS NA PRAIA, POMBAS NA PRAÇA

Estavam na praia o Sr. Alberto e a filha, a Cidinha. Ela olhava o mar com aquela preguiça gostosa de sol de inverno; ele comia milho no pratinho: embora não usasse dentadura, os dentes não tinham mais competência para roer espigas. O Sr. Alberto fora um homem forte e espadaúdo, quando jovem praticava natação. Fora também implicante, chegando a ser rude quando contrariado. Mas era um galanteador, não podia ver moça bonita que já ensaiava um gracejo, característica, aliás, que insistia em manter mesmo correndo o risco de ser visto como um velho gagá. Seus 90 anos eram um alvará para que agisse como criança, o que deixava Cidinha um tanto irritada. ─ Pai, pare de jogar milho para os pombos! Aí eles não saem mais de perto. Pombos transmitem doença! Odeio pombos, pensava Cidinha, só ficam bem na Piazza San Marco, e olhe lá, pombas! Foi então que se lembrou de outra pomba, a “gira” e da aventura na praça. Uma amiga deveria fazer uma oferenda para a pomba-gira, que, segundo uma vidente, era a entidade que atrapalhava os relacionamentos amorosos. Pediu a Cidinha que a acompanhasse, sugerindo que ela também levasse uma oferenda. Cidinha, que se arrepiava só de pensar em trabalhos e terreiros, acabou cedendo − quem sabe não fosse essa a solução para seus amores encruados − e propôs a Praça Horácio Sabino, ali no Jardim das Bandeiras, onde costumava caminhar. Local afastado e discreto, mesmo de dia quando havia pessoas levando os cães para passear.

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Numa noite foram as duas de carro explorar o local. Deram uma volta na praça grande e ovalada circundada por eucaliptos e outras árvores encorpadas. Gostaram. Havia um espaço central descampado e cimentado, mas, no restante, muito chão de terra batida, requisito para o sucesso do despacho. Aqui e ali, cantos velados com arbustos e bancos de cimento. Contaram três guaritas, dotadas por seguranças contratados pelas casas à volta da praça. O pai balançando o pratinho como que dizendo “já terminei” a fez voltar do devaneio à praia. Ultimamente falava pouco, a mímica substituía as palavras e era capaz de ficar horas repetindo um gesto até que alguém o atendesse. ─ Deixa, eu jogo o pratinho. Cidinha se irritava com os que abandonavam os destroços das comilanças na areia, alheios aos cuidados com a natureza. Depois vinha a maré e levava tudo mas trazia de volta, e a praia virava aquele horroroso vai e vem de sabugos, latinhas, pratos de isopor, palitinhos de picolé com a inscrição “madeira de reflorestamento”. Levantou da cadeira, enxotou um pombo que ciscava o milho derrubado pelo pai e buscou um dos latões de lixo. ─ Pombos! Os pensamentos voltaram para a praça, e para o dia da oferenda. Foram numa quinta-feira à noite. Nem era tão tarde, mas tudo era um breu devido ao tempo instável, dificultando reencontrar o local escolhido alguns dias atrás. Com o farol baixo procurando ser discretas, deram três voltas na praça. Queriam estar protegidas dos olhares de curiosos ou transeuntes. Estacionaram e olharam em volta. Apesar da hora e da chuva recente, a praça não estava totalmente deserta. Uma mulher com seu cão, um casal de namorados e um vigia ameaçavam

perturbar a expectativa de privacidade. Após alguns minutos, tensas pelo inusitado do programa, pegaram as tralhas e se encaminharam para um conjunto de árvores em semicírculo. Alguns pingos ainda se equilibravam nas folhas e a terra úmida exalava um cheirinho bom. Mais marcante e delicioso era o odor dos eucaliptos e dos pinheiros, que, banhados pela chuva, exibiam o asseio no perfume adocicado. Em silêncio, cada uma estendeu seu pedaço de pano vermelho travestido de toalha, onde foram arrumando as oferendas: rosas, esmalte e batom carmim, cigarros fincados em montinhos de areia, algumas moedas douradas. Uma Sidra Cereser e taças descartáveis. O estouro do espumante soou alto como um tiro. Cidinha, com o susto, deixou cair o esmalte e pisou nos cigarros. Fecharam os olhos e se concentraram nos respectivos pedidos. Mudas, em parte pelo nervoso, em parte para o pedido de uma não se sobrepor ao pedido da outra. Direto ao ponto: o amor ou desamor. Terminaram antes que um dos vigias percebesse o movimento e as botasse para correr. Cidinha ainda tremia quando entrou no carro. Tremeu também quando voltou para o guarda-sol. O pai agarrava as mãos de uma mocinha que sorria sem graça, mas se mantinha imóvel na certeza de estar fazendo a boa ação do dia: dar atenção e carinho a um velho gagá.

Ao redor do estranho casal, pombos arrulhavam.