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4.. SIBILOS DO PASSADO

SIBILOS DO PASSADO

A noite foi mal dormida, Fátima sonhou que estava em Nova Delhi e era estuprada. Levantou suada e assustada. Para afugentar o pesadelo lavou o rosto com água fria. Ainda trêmula escovava os dentes num vai e vem nervoso quando achou ter ouvido aquele som, exatamente como na semana anterior. ─ Não pode ser! De novo, aqui nesse fim de mundo?

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Com a escova no ar, a boca aberta cheia de espuma, esticou o pescoço adiantando o queixo como se esse movimento apurasse o ouvir. O sibilo novamente. Não, não estava sonhando, o som era real, era ele. ─ Desta vez você não me escapa! disse cuspindo uma constelação branca no espelho. Sem enxaguar a boca, jogou a escova na pia e correu para a cozinha. Tinha que ser rápida. Abriu a gaveta dos talheres, pegou a maior faca, a mais pontuda. Descabelada e de pijama correu para a rua. O som intervalado se afastava. Empunhando a faca, saiu desembestada tentando alcançá-lo. Um menino olhou assustado. Uma senhora pensou em chamar a polícia. ─ Aonde vai essa louca com um facão na mão? Não sabe que agora é proibido portar facas? Vendo que o homem dobrava a esquina, Fátima gritou o mais alto que pode: ─ Espera! O homem parou e se virou. Fátima apontou-lhe a faca.

Sorriu feliz. Só mesmo num fim de mundo para encontrar um autêntico amolador de facas.

RELÓGIO DE AÇO, NERVOS NEM TANTO

Num átimo, como que cuspido pelo meio-fio o pivete se materializou ao lado do carro, bateu com o cano da arma no vidro e ordenou: ─ Passa o relógio, cadela! Cadela, eu?

─ Vai, cadela! O relógio, rápido! repetiu a voz embrutecida pela raiva. A postura ensaiada para intimidar, a arma empunhada para apavorar. Dizem que muitos assaltam com arma de brinquedo, e daí? Nessa situação, um 38, uma metralhadora ou um revólver comprado na loja de 1,99 falam todos o mesmo idioma. Humildemente atendi à solicitação do gajo e entreguei o relógio. O farol da Bela Cintra com a Santos abriu, mas eu fiquei ali paralisada pelo susto, o pulso vazio, o retrovisor mostrando o safado se afastar. Um rapaz novo, alto e magro, camiseta clara, bermuda de tactel, boné enterrado no cabeção e tênis de correr da polícia: default de trombadinha. Por nada desse mundo ousaria encará-lo. Vivendo numa cidade como São Paulo as recomendações que sempre acompanham os noticiários sobre assaltos já estavam impregnadas no meu inconsciente: “nunca reaja!”, “não encare!”. E foi assim que fiquei sem meu lindo reloginho trazido de uma viagem ao exterior. A prima que viajava comigo insistira num relógio de respeito, inconformada com o fato de que eu, uma executiva, andasse por aí desfilando acessórios plásticos: um Champion no pulso, uma caneta Bic e um isqueiro idem

na bolsa.

─ Tenho alergia de contato, não posso usar nada metálico que fico empipocada. Tanto ela insistiu que me convenceu. Saí da loja com um belo Cartier antialérgico, delicado e discreto. Talvez não tão discreto assim já que o gatuno o percebeu de longe. Pior do que ficar sem o relógio foi ser chamada de cadela.

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