ANO 4 Nº 10 - EDIÇÃO ROSH HASHANÁ 5782 - SETEMBRO 2021

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Sefarad Universo

ANO 4 Nº 10 - EDIÇÃO ROSH HASHANÁ 5782 - SETEMBRO 2021

O antigo grito do shofar 1


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Diretor/Editor Executivo Elias Salgado Editora Executiva Regina Igel Diretor de Arte e Design Eddy Zlotnitzki Conselho Editorial HOMENAGEM ESPECIAL: Prof. Samuel Isaac Benchimol z”l

EDITORIAL Nossa edição se abre com um texto extraordinário: “O antigo grito do shofar”. O “antigo” é tão atual e presente quando você e eu... Nossas tradições estão vivas, apesar de tudo e de todas as tribulações que passamos como povo perseguido. Leiam esta reportagem, é edificante, além de ser muito instrutiva. (Aprendi muito... fiquei sabendo, por exemplo, como o chifre pode ser contorcido, furado, transformado numa corneta que anuncia, simbólica e efetivamente, o Novo Ano judaico!) Aliás, as fotos

Andre de Lemos Freixo Fernando Lattman-Weltman Heliete Vaitsman Henrique Cymerman Benarroch Ilana Feldman Isaac Dahan Jeffrey Lesser Michel Gherman Monica Grin Regina Igel Renato Athias Wagner Bentes Lins

contidas neste artigo são dignas de uma enciclopédia, tão

Editores Reina Igel

de judeus e não judeus no Brasil, apresentamos o ensaio

Elias Salgado Projeto gráfico e arte diagramação Eddy Zlotnitzki Revisão Mariza Moreira Blanco Colaboram neste número Alessandra Conde Paulo Valadares Sergio Benchimol Incluí o Suplemento Amazônia Judaica

esclarecedoras e educativas. Dentre a alegria que tentamos transmitir pelas festas de Rosh Hashaná, instala-se a tristeza pelo falecimento da saudosa e inesquecível historiadora, Professora Doutora Anita W. Novinsky. Nossa homenagem à sua vida de inúmeras e inéditas contribuições à História do Brasil e dos judeus na formação do nosso país, está nesta edição. Seguindo com nosso interesse pelas pegadas intelectuais acadêmico da Profa. Alessandra Conde, da Universidade do Pará em Bragança, que esclarece muitos fatos relacionados ao jornal A Columna e de José Benedicto Cohen. Nosso intuito de apresentar a maior variedade possível como atualmente se encontra a comunidade judaica mundial, apresentamos a entrevista conduzida pelo rabino Daniel Bouskila com a rabina Shira M. Mirvis. Ela abre, nos círculos do rabinato ortodoxo (até então quase exclusivamente masculino), uma brilhante senda a ser percorrida por mais mulheres como ela, com vocação e talento, ambos cultivados desde sua infância, com estímulo do seu pai, marroquino. Quando terminarem as leituras de Universo Sefarad, entrem pelo Suplemento – o Editorial lá inserido informa sobre seu conteúdo, imperdível!

Universo Sefarad é uma publicação da Talu Cultural www.talucultural.com.br www.portalamazoniajudaica.com.br Email: contato@talucultural.com.br universosefarad@gmail.com Facebook Universo Sefarad

Que tenham todos um Bom Ano, como dizemos em hebraico: Shaná Tová! Regina Igel Editora Executiva


ÍNDICE

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CAPA - O antigo grito do shofar

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ENTREVISTA Rabbanit Shira Marili Mirvis

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HOMENAGEM ESPECIAL- LeZecher: Professora doutora Anita Novinsky z”l

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LITERATURA José Benedicto Cohen

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SUPLEMENTO UNIVERSO AMAZÔNIA JUDAICA

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CULTURA - Zejut Abot: Um Festival que veio para ficar!


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CAPA

O antigo grito do shofar Por Ticia Verveer – (Fonte: The Times of Israel)

Em minha experiência, o toque do shofar [instrumento musical de sopro, adaptado do chifre de um animal recomendado pela religião judaica, geralmente o carneiro] é um dos momentos de maior carga emocional em Rosh Hashanáh [Ano Novo judaico] Seus gritos penetrantes invadem nossa consciência e imploram que nos aprimoremos. O grito mágico, quase sobrenatural do shofar desperta nossas almas adormecidas, como fez ao longo da história judaica. Os gritos do shofar dão um sinal para nossa memória coletiva, consciência nacional e identidade, criando uma ligação entre o céu e a terra. Esse grito emocional foi ouvido na antiga muralha ocidental de pedra em Jerusalém, em 7 de junho de 1967. Impresso em nossa consciência está o primeiro apelo do chifre de carneiro pelo tenente-coronel Uzi Eilam, seguido pela oração em memória de todos aqueles que foram mortos, recitada pelo rabino 4 | USf | ANO 4 - Nº10 | ROSH HASHANÁ 2021

Goren, quando ele próprio tocou o shofar. O shofar é um dos instrumentos musicais bíblicos mais antigos que ainda está em uso e pode ser tocado por qualquer pessoa e para qualquer propósito. Ele é um lindo símbolo de igualdade social e unidade. Não há nem mesmo barreira de gênero, como o Talmud observa: “Em ocasiões religiosas, o shofar era tocado apenas por sacerdotes e levitas, em eventos seculares e às vezes também em dias de jejum por leigos, crianças e, em caso de emergência, até mesmo por mulheres.” Ele tem sido usado como um sinal de alarme, uma trombeta de guerra, um pedido de socorro, um instrumento de


celebração e também de lamentação, como um sinal de tempo, e é tocado por volta dos dias sagrados. O shofar possuía o poder de assustar e dispersar espíritos malignos e deuses dos inimigos que os ajudavam nas batalhas. As chamadas são diferenciadas pela duração, inflexão e articulação das notas. O Talmud especifica qual variedade de animais podem ter seus chifres permitidos [para essas funções]. No Pentateuco, a extensão do significado simbólico difere pelas diferentes funções do shofar. Estas abrangem associações de redenção da história da Vinculação de Isaac à justiça social e à liberdade, conforme declarado na instrução de proclamar a “liberdade em toda a Terra”, especialmente enfatizada na literatura profética. Como sinal militar, significa sobrevivência e força física

nacional. Como um instrumento ritual e cerimonial, funciona para anunciar memoriais e festivais regulares, enfatizando seus temas de identidade nacional, arrependimento comunitário e redenção. Para transformar o chifre em um shofar, sua ponta é cortada e perfurada para criar uma abertura para o sopro. A extremidade larga do chifre tem formato de sino. O chifre é frequentemente aquecido, de modo que a extremidade estreita pode ser endireitada e moldada e, às vezes, seu corpo também é trabalhado para produzir um perfil mais plano. Dois tipos de shofar são usados [respectivamente] ​​pelas comunidades asquenasita e sefardita. O instrumento maior e contorcido é feito do chifre de um antílope kudu e é usado pelos judeus iemenitas.

Shofar do século 18 feito de chifre de carneiro, com perfil achatado. Inscrição hebraica frequentemente encontrada nos shofarot: ‫ח֣דֶ ׁש ׁשוֹפָ ֑ר בַ ּ֜כֶ ּ֗סֶ ה לְ י֣וֹם חַ ּֽ ֵגנוִת‬ ֹ ַ‫– ּ ִת ְּקעּ֣ו ב‬ Tradução: “Toque o shofar quando a lua estiver coberta”, ou seja, quando a lua estiver pequena, no primeiro dia do mês. Foto cedida por CC0 1.0, Museu Metropolitano de Arte

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CAPA

Está claro desde as primeiras representações na história judaica que o shofar foi estabelecido como um símbolo e emblema religioso já no terceiro século da Era Comum. Sua importância é vista em muitos dos primeiros achados arqueológicos. As catacumbas de Roma renderam uma série de taças de vidro decoradas, representando algumas das primeiras

Medalhão de ouro decorado com um shofar descoberto em um prédio público do período bizantino perto da parede sul do Monte do Templo, em Jerusalém. Foto Ticia Verveer.

Base em vidro dourado do século IV das catacumbas judaicas de Roma, Itália. Museu de Israel, Jerusalém. Foto Ticia Verveer.

representações conhecidas de símbolos judaicos que apareceram fora da Terra de Israel. Foram confeccionadas com uma técnica especial, aplicando-se uma primeira camada de vidro verde escuro, recoberta com uma decoração incisa ou 6 | USf | ANO 4 - Nº10 | ROSH HASHANÁ 2021

contornada a tinta e folheada a ouro como acabamento. Esta superfície decorada foi protegida por outra camada de vidro transparente. Pela forma, concluiu-se que eram o fundo de taças colocadas junto a um falecido. A iconografia retrata, em sua maior parte, cenas do Antigo ou do Novo Testamento. No entanto, uma série mostra símbolos que só poderiam ser identificados como pertencentes a membros das comunidades judaicas. Esta base de vidro do século IV decorada com folha de ouro foi adquirida em 1966 por meio da generosidade de Jakob


A Arca, coberta por uma cortina e uma menorá ladeada por um shofar e uma pá de incenso. Detalhe de um pavimento de mosaico do século VI da Sinagoga de Beth She’an. Museu de Israel, Jerusalém. Foto Ticia Verveer.

Michael, Nova York, em memória de sua esposa, Erna Sondheimer Michael. Foi restituída em 2008 aos herdeiros da Coleção Dzialynska, Castelo Goluchow, Polônia, que eram seus proprietários antes da Segunda Guerra Mundial. Foi comprada em 2008 pelo Dr. David e Sra. Jemima Jeselsohn e depositada novamente no Museu de Israel por empréstimo de longo prazo. No centro do registro superior aparece a Arca com portas abertas, que revelam os rolos da Torá, flanqueada por dois pássaros empoleirados em um globo, com uma menorá (candelabro) no meio, sob a Arca. Em cada lado da menorá

está um leão agachado de frente para a Arca. Os objetos rituais ocupam os espaços de cada lado do candelabro, a folhagem da palmeira (lulav), uma fruta cítrica (etrog: “o fruto de uma árvore bela”, tradicionalmente interpretado como Citrus medica) e o chifre de carneiro (shofar). Um raro tesouro contendo um medalhão de ouro exclusivo decorado com uma 7


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CAPA

Fragmento de verga decorado com menorá ladeada por um shofar e uma pá de incenso. Golan, Israel. Foto Ticia Verveer.

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grande medalhão é desconhecida. Rosh Hashanáh lembra a criação de Deus do cosmos no início dos tempos. A Torá descreve o festival como Yom Teruáh (o dia do toque da buzina) ou Yom Hazikkaron (o dia da Lembrança). Não até o período talmúdico, este dia foi chamado de Rosh Hashaná, literalmente o “Cabeça do Ano”. O Ano Novo marca um novo começo, um tempo de teshuvá, a palavra hebraica para retornar à nossa fonte interior de santidade e transcendência. Chamado de “o aniversário do mundo”, Rosh Hashanáh parece uma época de novos começos e enfatiza nossa relação pessoal com Deus. Gostaria de desejar a todos Shanáh Továh, que possam ser inscritos para um Bom Ano no Livro da Vida. O rabino Shlomo Goren, cercado por soldados das FDI (Força de Defesa de Israel), toca o shofar na frente da parede oeste em Jerusalém. Junho de 1967. Wikimedia 4.0 International.

menorá foi descoberto em um prédio público do período bizantino, perto da parede sul do Monte do Templo. O medalhão de ouro representa uma menorá de sete braços com um suporte de três pernas. À sua esquerda está um shofar e à sua direita, um elemento não identificado, talvez um feixe de ramos de palmeira e murta, ou uma representação estilizada de um rolo da Torá. A função precisa do

SOBRE a AUTORa Como arqueóloga, Ticia Verveer tem mais de 20 anos de experiência em escavações no Oriente Médio, Sahel e Norte da África. Ela é Embaixadora da Saúde Materna do Fundo Global para Mulheres, uma das principais fundações mundiais para a igualdade de gênero. Ticia é descendente de Abraham Salomon Cohen Verveer, avô do pintor romântico judeu mais importante da Holanda, Salomon Leonardus Verveer (1813-1876).

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ENTREVISTA

Uma ortodoxa pioneira: Rabbanit Shira Marili Mirvis Rabino Daniel Bouskila (Fonte: Jewish Journal - 30 de abril, 2021)

Entre as comemorações e as entrevistas com a imprensa em torno da emocionante notícia de sua nomeação, Shira Mirvis teve tempo para responder às minhas perguntas

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esta semana (abril, 2021), Rabbanit (hebraico, feminino de `rabino`) Shira Marili Mirvis fez história como a primeira mulher israelense indicada para ser a única líder rabínica de uma sinagoga ortodoxa, a congregação Shirat Hatamar em Efrat, Israel. Conversei com Shira sobre sua jornada fascinante 10 | USf | ANO 4 - Nº10 | ROSH HASHANÁ 2021

para este marco inovador. Desde a mais tenra infância, crescendo em Jerusalém, Shira se apaixonou pelo estudo da Torá. Ela amava os “livros sagrados” do judaísmo, particularmente o Talmud e os comentários rabínicos. Esses livros eram tradicionalmente domínio de meninos e


homens, mas o pai de Shira, Yitzhak, um judeu marroquino profundamente piedoso, sempre a encorajou a estudá-los. Na verdade, ele insistiu para que ela comprasse tantos livros sagrados quanto seu coração desejasse. “As crianças de hoje andam por aí com os cartões de crédito dos pais, mas essa não era a norma quando eu estava crescendo”, disse Shira. “Ainda assim, eu realmente tinha o cartão de crédito do meu pai, não para fazer compras no shopping, mas no caso de encontrar outro livro sagrado [que] eu queria ... Meu pai queria ter certeza de que eu nunca ficaria sem comprar livros que ajudassem a avançar meu conhecimento e amor pela Torá.” Dado o anúncio desta semana, o investimento de Yitzhak na compra de livros de Shira claramente valeu a pena. Entre as comemorações e as entrevistas com a imprensa em torno da emocionante notícia de sua nomeação, Shira aproveitou para responder às minhas perguntas e, apesar de não estar com ela pessoalmente, pude sentir as emoções pelo telefone. Entrevista: DB – Rabino Daniel Bouskila; SM – Shira M. Mirvis DB - Como foi crescer em Jerusalém como uma jovem que adorava estudar o Talmud?

SM - Eu cresci em um lar religioso no bairro Kiryat Moshé de Jerusalém. Meus pais nasceram e foram criados no Marrocos, e nossa casa estava profundamente arraigada nas tradições marroquino-sefarditas. Essas tradições incluíam um amor pela Torá e um profundo respeito pelos nossos sábios da Torá. Oramos na sinagoga de Hakham Mordechai Eliyahu, que se tornou o Rabino Chefe Sefardita de Israel. Meu amor pelo estudo da Torá foi nutrido em minha família desde a infância. DB - Então, sua decisão final de se inscrever no Programa de Mulheres Lindenbaum de cinco anos, no Talmud e Halachá (Lei Judaica) não foi vista em sua família como uma rebelião de sua educação tradicionalmente religiosa sefardita-marroquina? SM - Muito pelo contrário. Minha decisão de buscar estudos avançados do Talmud em Lindenbaum é, na verdade, o resultado de minha educação sefarditamarroquina. O amor pelo estudo da Torá era um valor supremo em nosso lar, e minha decisão de estudar o Talmud no mais alto nível foi recebida com grande entusiasmo por meus pais. Na verdade, a admissão ao programa Lindenbaum é bastante competitiva e o processo de aceitação durou um ano. Não sei se teria sobrevivido naquele ano sem o incentivo constante e positivo de meu pai e minha mãe. 11


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ENTREVISTA

Mordechai Eliyahu, Rabino Chefe Sefardita de Israel, 1983-1993

“Minha decisão de buscar um estudo avançado do Talmud em Lindenbaum é, na verdade, o resultado de minha educação sefardita-marroquina.” DB - Qual foi a reação de seus pais quando você foi aceita no programa? SM - Ambos ficaram emocionados! Especialmente como uma mulher que agora estaria envolvida no estudo intenso do Talmud e Halachá, eles me viam como um elo na cadeia de continuidade com meus ancestrais. Eles viam como um privilégio que sua filha levasse o legado das devotas mulheres sefarditas marroquinas de gerações anteriores para o próximo nível. 12 | USf | ANO 4 - Nº10 | ROSH HASHANÁ 2021

DB - Como você está prestes a concluir este programa, como seu pai se sente como aquele que ajudou a financiar seu amor pelos livros sagrados desde a infância? SM - Infelizmente, meu pai faleceu após meu primeiro ano na Lindenbaum. Ao longo daquele primeiro ano neste programa exigente, meu pai foi minha maior fonte de encorajamento. Ele estava constantemente me dizendo para estudar, estudar e estudar um pouco mais e que, independentemente do que acontecesse, ele tinha certeza de que eu seria capaz de fazer grandes coisas para promover a Torá e o judaísmo para o povo judeu.

Simbolicamente... o último feriado judaico que passamos juntos foi Shavuot, o feriado em que celebramos o recebimento da Torá no Monte Sinai. Meu pai morreu no dia seguinte a Shavuot, e suas palavras de encorajamento me acompanham e me inspiram até hoje. DB - Sua nomeação histórica como a primeira líder rabínica de uma sinagoga ortodoxa em Israel é emocionante e emocionante. Como tudo isso aconteceu? SM - A sinagoga em Efrat onde minha família ora - Shirat Hatamar - é uma


comunidade relativamente nova. Nos últimos anos, talvez porque eu estava estudando em Lindenbaum, as pessoas em nossa sinagoga começaram a se aproximar de mim com sérias questões haláchicas... A comunidade também me pediu para fazer sermões no Shabat. Tudo isso não era oficial, e eu o fazia como indivíduo, não em qualquer capacidade oficial. DB - Então, como isso se tornou oficial? SM - Quando Shirat Hatamar foi estabelecida, nós adotamos o rabino Shlomo Riskin como nosso conselheiro haláchico oficial e mentor da comunidade. O rabino Riskin é o fundador das Instituições Or Torah Stone, que inclui o programa Lindenbaum Women’s Talmud & Halakha, onde estudei nos últimos cinco anos. O rabino Riskin fez um trabalho tremendo no avanço do estudo e liderança da Torá entre as mulheres, transformando o programa Lindenbaum no equivalente feminino do que os homens estudam aqui em Israel para a ordenação rabínica do Rabinato Chefe de Israel. Sabendo que eu estava funcionando como a autoridade haláchica da minha sinagoga nos últimos anos, o rabino Riskin abordou a comunidade há alguns meses e disse que é hora de torná-la oficial, então o processo começou... A comunidade se envolveu em um processo exploratório, que incluiu muitas reuniões no Zoom e discussões via grupos de bate-papo do

WhatsApp. Afastei-me desse processo para permitir que a comunidade tomasse essa decisão sem influenciá-la. Na semana passada, eles se sentiram prontos para fazer uma votação, e o resultado foi que 83% da comunidade votou a favor de me indicar como o líder rabínico da comunidade. DB - Então, o seu título é “rabino” da sinagoga? SM - Quando as pessoas se dirigem a mim com um título oficial, eu sou «Rabbanit Shira”. Meu título na sinagoga não é “Rabino” ou “Rabbanit”, mas Manhiga Ruchanit Hilkhatit [“Líder Espiritual e Haláchico”]. DB - A diferença no título altera de alguma forma seus “deveres rabínicos”? SM - Meus deveres na sinagoga são servir como a única autoridade haláchica para nossa comunidade, ensinar a Torá e governar em assuntos haláchicos, que [foram] sempre os [deveres] tradicionais de um rabino em comunidades ortodoxas haláchicas. Também irei aconselhar famílias e indivíduos, fazer sermões e dar aulas de Torá para nossa comunidade. Não há outros rabinos servindo em nossa sinagoga; serei a única “voz rabínica” e “líder espiritual” em todos os assuntos religiosos. DB - Como sua mãe reagiu ao seu compromisso histórico?

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ENTREVISTA

SM - Minha mãe teve um ano desafiador, pois infelizmente ela estava doente com COVID-19. Graças a Deus ela está totalmente recuperada e passando bem e, ao ouvir a notícia de minha nomeação, ela ficou radiante de orgulho e alegria. Dados seus desafios de saúde no ano passado, ela ficou particularmente emocionada e grata por ver este dia na vida de sua filha. Ela apoia muito o que estou fazendo.

Oramos na (sinagoga) Young Israel of Century City, e lembro como a comunidade se reuniu para celebrar ocasiões alegres e como eles apoiaram uns aos outros em tempos de doença ou luto. Quando minha família precisou de apoio durante alguns momentos difíceis, ainda tenho memórias vivas de cada refeição deliciosa oferecida com amor à minha família nos famosos “trens de refeição da comunidade”.

DB - Dez anos atrás, você, seu marido Shlomo e seus filhos vieram para Los Angeles, onde vocês serviram como emissários (shlichim) para o Movimento Juvenil Sionista Religioso Bnei Akiva por dois anos. O seu tempo na comunidade de Los Angeles teve algum impacto em sua jornada?

A Young Israel de Century City e a comunidade judaica de Los Angeles me expuseram ao poder da vida em comunidade. Desde as boas-vindas aos convidados até ao ensino de como fazer compras no Ralphs, no Boulevard Pico, os atos de amor e bondade naquela comunidade foram fantásticos.

SM - Os dois anos que passamos em Los Angeles tiveram um impacto muito profundo na minha vida. Em Israel, as sinagogas geralmente são apenas um lugar para orar. Em Los Angeles, aprendi o quanto uma sinagoga pode ser mais, pois fui testemunha e beneficiária pessoal do tremendo sistema de apoio que a comunidade da sinagoga oferece uns aos outros.

DB - Você encontrou algum apoio como mulher que adora estudar e ensinar o Talmud na comunidade ortodoxa de Los Angeles?

“Em Los Angeles, aprendi o quanto uma sinagoga pode ser mais, pois fui testemunha e beneficiária pessoal do tremendo sistema de apoio que a comunidade da sinagoga oferece uns aos outros.” 14 | USf | ANO 4 - Nº10 | ROSH HASHANÁ 2021

SM - Sempre terei gratidão ao “Jovem Israel” de Century City por me dar a oportunidade de ensinar Torá na sinagoga. Sua abertura ajudou a abrir este caminho para mim, e sou eternamente grata por isso. Além disso, meu trabalho diurno em Los Angeles era como professora de Estudos da Torá para meninas do ensino médio na Escola Maimônides. Essa experiência de ensino permanecerá comigo para sempre, e as meninas a quem ensinei foram uma


inspiração para mim. Os dois anos que passamos em LA foram dois dos anos mais especiais da minha vida, e tudo o que fiz e aprendi lá vai definitivamente me servir nesta posição que agora assumo oficialmente. DB - Ao assumir oficialmente esta posição histórica, você se sente como representante das mulheres de sua geração? SM -Não me considero representante de nenhum movimento ou tendência, e não estou agitando nenhuma bandeira ideológica em particular ao assumir esta posição. Se Deus me deu o privilégio de estudar e ensinar Torá para uma nova geração de estudantes e fieis, foi apenas pelo mérito das mulheres justas e piedosas das gerações anteriores, especialmente aquelas de minha ascendência sefardita-marroquina. Se eu represento alguém, são as mulheres que estudaram a Torá com profunda fé e piedade, criaram suas famílias com amor e serviram suas comunidades. Embora reconheça o significado histórico de meu novo título e posição, não acho que a essência do que estou fazendo difere de forma alguma das mulheres de minha ancestralidade. Estou fazendo o que elas fizeram, apenas em uma capacidade diferente [e] em um contexto e ambiente modernos. Espero ser abençoada com o mesmo nível de fé e

força espiritual que elas tiveram. Esta entrevista foi editada para maior clareza. Post Script do Entrevistador: Durante minha recente estada de três meses em Israel, tive o privilégio de conhecer Rabbanit Shira. Em uma de nossas conversas, perguntei se ela tinha alguma mulher do passado que considerava um modelo para sua própria vida. “Rabbanit Farha Sassoon”, disse ela. Farha Sassoon (1859-1936) era uma mulher iraquiana sefardita que adorava estudar o Talmud e a Halachá. Ela era amplamente conhecida em seus círculos como uma estudiosa da Torá e se correspondia extensivamente com alguns dos rabinos mais proeminentes de sua época sobre assuntos haláchicos. Com as notícias históricas desta semana, Rabbanit Shira Marili Mirvis agora continua o legado de Rabbanit Sassoon.

O rabino Daniel Bouskila é diretor do Centro Educacional Sefardita e rabino da Sinagoga Ortodoxa Moderna de Westwood Village. em Los Angeles.

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LITERATURA

José Benedicto Cohen:

UM ESCRITOR JUDEU MARROQUINO NA AMAZÔNIA Por Alessandra Conde*

José Benedicto Cohen nasceu no Marrocos em 31 de dezembro de 1872. Ainda na meninice veio para o Pará com o pai rabino, recebendo dele instrução religiosa que lhe permitiu desempenhar funções rabínicas em Itacoatiara, no Amazonas

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ormou-se em Direito e em Odontologia, mas foi também poeta, ensaísta, tradutor, professor e jornalista. No jornal sionista carioca A Columna, fundado por David José Pérez e Álvaro de Castilho, cuja primeira edição é de 14 de janeiro de 1916, Cohen publicou a poesia “A Sulamita”, tradução do Cântico dos Cânticos de Salomão que ele verteu para o português diretamente do hebraico. Nas edições de fevereiro, março, abril, maio, agosto e dezembro de 1916 do jornal carioca, há as continuações de “A Sulamita”. Estão publicados também, no A Columna. os poemas datados de 1916: “Pessah”,“Hagar”, “Israel”, “Soneto” e “Vanitas”; e os datados de 1917: “A Garça”, “Prometeu”, “Macacos”, “O Furão” e “Vampiros”.

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O poeta marroquino tem quatro livros publicados: Verdades e fantasias – contos (1925), Cântico dos Cânticos, junto com João de Deus (1944), A Sulamita (1959) e Um poeta esquecido (1997). Não é fácil encontrar os livros de J. Benedico Cohen ou Benedicto Cohen como se vê referenciado o nome do poeta em livros ou jornais entre as décadas de 20 e 30 do século 20. Cohen também assumiu o acrônimo JOBECO “em jornais locais que circulavam em Belém, Manaus e Rio de Janeiro” (OLIVEIRA, 2019, p. 65). Aliás, assim como Sultana Levy Rosenblatt, escritora judia amazônica de origem sefardita marroquina, os livros de Benedicto Cohen são de dificílimo acesso. Muitos deles já se encontram esgotados e sem


nenhum exemplar em bibliotecas de Universidades. De alguns, só se sabe dos nomes. Alguns de seus poemas e contos foram publicados no jornal carioca O Malho, como se vê na edição de 5 de abril de 1930. Nele foi publicado o conto “Um aviso posthumo”. No pequeno quadro de apresentação do autor consta que ele já era conhecido dos leitores de O Malho pelo conto “Um desafio sinistro” da edição de 18 de janeiro de 1930 e que teve uma continuação em 25 de janeiro de 1930. Identifica-se ainda o autor pela tradução de “’Sulamita’, do Cântico dos Cânticos, de Salomão, diretamente do hebraico”, conforme consta na edição de janeiro de 1930 de O Malho. Atribui-se ao escritor amplo conhecimento do idioma, “exímio

polemista, [e a autoria] de mais de doze obras editadas no Pará” segundo o exposto em O Malho, edição de abril de 1930. Uma boa polêmica, a propósito, Benedicto Cohen não recusava. Na edição de agosto de 1917 do A Columna, publicou a crônica “Nossos irmãos da Amazônia”. Nela, adverte os judeus do Pará e Amazonas a se preocuparem com a causa sionista, “um ideal ha vinte séculos sonhado”. Referencia também o malgrado com que os irmãos judeus amazônicos receberam um seu artigo publicado na Folha do Norte, em 1909, intitulado “Atravez do Marrocos”. Neste texto, Cohen atestou a pobreza dos judeus do Marrocos: Sabida é por todos a tremenda campanha que me foi movida quando, de minha viagem a Marrocos, escrevi alguns artigos para a Folha do Norte, do Pará. Os meus queridos irmãos e correligionários não poderam soffrer que eu criticasse essas ruas estreitas e tortuosas das cidades marroquinas e os cretinos costumes daquelle povo bestificado por um fanatismo sem limites. Dizer que aquellas cidades eram arcaicas ou, o que é mais, que naquella data (1909) remontavam á época do mammuth, que os 17


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LITERATURA

seus naturaes, mergulhados na mais sórdida barbaria, faziam do seu império um degredo inquisitorial, foi o grande crime em que incorri. E ainda que batendo no peito, bradasse mil vezes a mea culpa, o perdão me não foi concedido nem m’o será, estou certo, emquanto houver quem de tão mal fadados artigos se não esqueça. Mal comprehenderam os meus bem amados irmãos que eu, escrevendo aquelles artigos, tive apenas em mira, separando o joio do trigo, provar que do atraso daquelle império eram únicos responsáveis os seus naturaes e não os Judeus, contrariamente ao que em sua obra sobre Marrocos affirmou D’Amicis. (COHEN apud A COLUMNA, 1917, p. 108).

Em outro tópico, da mesma edição de agosto de 1917 do A Columna, Cohen, para satisfazer aos editores do jornal, segundo expõe no artigo, descreve a sociedade judaica na Amazônia, suas organizações e seus protagonistas. No percurso, enaltece a comunidade judaica no Pará, identificando-se como uma paraense: Escusado será repetir que o Pará possue a maior, mais rica e illustrada colónia hebraica do Brasil. E o nosso 18 | USf | ANO 4 - Nº10 | ROSH HASHANÁ 2021

conhecimento é tão vasto e seguro sobre este ponto que, sem difficuldade, poderemos delle fornecer os melhores dados estatísticos e, o que é mais, citando nomes, posições, fortuna, etc.; pois que. apesar de vivermos no Amazonas ha alguns annos, somos paraense e ahi crescemos e recebemos a nossa educação. (COHEN apud A COLUMNA, 1917, p. 109). Cita grandes personalidades judaicas paraenses, no comércio, na medicina, na política e na educação, destacando na docência pública a presença de mulheres judias. Dentre essas personalidades, Eliezer Levy, político influente, editor do Jornal Kol Israel, e pai da escritora Sultana Levy Rosenblatt. Aliás, segundo Claudemilson Santos de Oliveira (2019, p. 67), “Benedito Cohen, pode ser considerado, juntamente com o Major Elieser Levy, David José Pérez e Álvaro de Castilho, como um dos ideólogos do Sionismo brasileiro”. Sobre o Amazonas, Cohen economiza os adjetivos, mas atesta que em Itacoatiara, que agregou, em sua época, mais de 80 judeus, habitaram valorosos praticantes do judaísmo. Secamente decide não estender os comentários sobre Manaus, concluindo que: Sobre o resto, achamos melhor nada dizer, nada commentar,


principalmente sobre Manáos, onde a colónia israelita já numerosa e contando entre seus membros fortunas assombrosas, não tem um cemitério, não tem uma casa de orações, não tem uma Hebrá, não tem... cousa alguma. (COHEN apud A COLUMNA, 1917, p. 110). O Sionismo se mostrou matéria cara a Benedicto Cohen. Respondendo a uma carta de um judeu contrário ao Sionismo, Cohen, na edição do último quadrimestre de 1917, atesta com ardor a sua visão sionista:

Sobre o Sionismo, penso que é o mais nobre, eloquente e alevantado ideal israelita! Elle brotou, cresceu e avolumouse por uma lei fatal, cujos primórdios datam da tomada de Jerusalém por Tito, e que, vencendo a resistência de quasi 2000 annos de obstáculos e luctas, parece attingir agora, ao máximo do seu apogeu! E si ha muito, este povo preferido e odiado, perseguido e invencível, não conseguio vêr o seu ideal realisado, foi por que desde 19


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LITERATURA

remotas eras sempre nos sobraram os A B. de todas as espécies e quejandas de peor jaez. E nem se pense que a maioria desses obstáculos ao grande ideal jaziam nas camadas menos doutas do povo de Israel, mas ainda na mais alta como na mais baixa: deles rabinos, delle scientistas, delles medíocres e ignorantes. (COHEN apud A COLUMNA, 1917, p. 147).

Além dos artigos publicados sobre a comunidade judaica amazônica ou sobre o Sionismo, José Benedicto publicou em jornais poemas e contos. Em “Pessah”, o eu lírico volta-se para a história de Israel, da saída do Egito, onde os filhos de Jacó foram feitos escravos e a busca pela Terra Prometida, segundo o Tanach (Antigo Testamento). A proeminência de Israel, “esse povo eleito” (COHEN apud A COLUMNA, 1916, p. 70), arremata o soneto, ladeado pela ideia de que se trata de um grupo étnico que detém a revelação do Eterno: Vencendo o fanatismo e a alma infida Da dissoluta gente egvpciana. Do povo de Israel a onda humana Parte em busca da Terra Promettida. O Mar Vermelho corta e mais se 20 | USf | ANO 4 - Nº10 | ROSH HASHANÁ 2021

ufana Aquella raça, agora redmida, Vendo a inimi ga gente submergida Do salso rubro na onda quasi insana. E, emquanto Memfis se rebolca já Na noite do terror e da inclemência. Treme o deserto aos echos da askird. Raiara emfim o sol da independência Para esse povo eleito, a quem Jeovah Se revelara em toda a Omnipotência!. (COHEN apud A COLUMNA, 1916, p. 70).

Em “Israel”, no primeiro quarteto, há claras referências a respeito dos sofrimentos do povo israelita, aos assassinatos cometidos contra os judeus na Europa, à época da Primeira Guerra Mundial. Evocando as profecias dos rabinos, o eu lírico atem-se à ideia do “galuth” ou Galut, da dispersão, da Diáspora judaica: Israel! Israel! As santas profecias Dos teus santos Xabis, realizam-se por certo! A Europa em convulsões nos mostra a descoberto O fim do teu galuth e os ditos


de Isaias... Raça bendita, ri que a remissão vem perto! Atira para o olvido as paginas sombrias Dessa historia de dòr e amargurados dias Que os ecos do shophar já vibram no deserto! Um homem se erguerá... e os homens ajustados. Por largo tempo assaz, em guerras de extermínios, Trarão o céo, a terra e o mar incendiados... Mas. Tu, persistirás, lê dor vador, bendito

Entoando a Axirá nos teus vastos domínios Para gloria de Deus e do que está escripto. (COHEN apud A COLUMNA, 1916, p. 76).

O Galut pode ser compreendido tanto como dispersão e sofrimento como “propaganda religiosa” a fim de promover uma “conversão interna”, isto é, os judeus errantes pelo mundo padecem pela sua fé. O sofrimento levaria a emendar suas más ações. Segundo Itzack Baer (1977, p. 9), a palavra “Galut” envolve todo um mundo de fatos e idéias que surgem, com força e 21


Sefarad Universo

LITERATURA

clareza invariáveis, em todas as épocas da história judaica. A servidão política e a Dispersão, o desejo de libertação e de reunião, o pecado, a contrição e a expiação, eis os elementos mais gerais que devem figurar na elaboração do conceito de Galut, se quisermos que o termo retenha qualquer sentido real.

O poema que se mostra messiânico, evoca, no segundo quarteto, assim como em “Pessah” a separação étnica de Israel na longa duração da História das Diásporas e das perseguições antissemitas. Mas o eu lírico convoca o povo a esquecer o sofrimento. Há barulho no deserto, o som do shophar (instrumento musical feito do chifre encurvado de carneiro) anuncia mudança e clama por alegria, riso. O primeiro terceto vaticina o grande mal que acometerá contra Israel (e contra outros povos também?), por um tempo, ainda que longo, mas logo se vê, no último terceto, que o povo deve rejubilarse por ser o detentor do conhecimento que leva o homem ao Criador, a adorálo, a entoar a “Axirá” (cântico). Por fim, Israel, em largas terras, continuará de geração em geração (lê dor vador). Em “Israel”, poema publicado em março de 1917, o eu lírico alude a uma Europa convulsa (“A Europa em convulsões 22 | USf | ANO 4 - Nº10 | ROSH HASHANÁ 2021

nos mostra a descoberto”), em guerra: “[...], em guerras de extermínios, /Trarão o céo, a terra e o mar incendiados...” (COHEN apud A COLUMNA, 1917, p. 76). O tempo das dores será longo, abalará céus, terra e mar. Era do conhecimento da comunidade judaica dos assassinatos e perseguições que os judeus padeciam na Europa no tempo da Primeira Guerra Mundial. Era um tempo de extermínio e de destruição. Cohen, na “Carta aberta ao Sr. A. B.”, escrita em Óbidos, no Pará, em novembro de 1917, explicita ter ciência dos torpes acontecimentos antissemitas. Comparando a terra brasileira com a europeia, compreende o Brasil um país tolerante, mas se coloca à espreita, em atenção constante. Ao Sr. A. B. diz: Affirma A. B. que não irá á nova pátria, porque está em um paiz onde goza de toda a liberdade e regalias. Perfeitamente. Eu também não irei porque nasci no Brasil, aqui eduqueime e sou formado por uma das escolas superiores deste paiz que eu idolatro e onde tenho ocupado empregos de Fazenda, na Instucção e no Magistério Públicos, o que equivale a affirmar que, mais do que o sr. A. B., eu gozo de todas as prerrogativas contidas na nossa Constituição. Mas.


Pergunto ao sr. A. B.: os nossos irmãos nascidos na Rússia, na Allemanha , na Áustria, na França, na Hespanha, em Marrocos ou na própria Palestina, podem jactarse de gosar esta felicidade que nos é dado desfrutar? E nós mesmos podemos contala duradoura? Para que o sr. A. B. não tenha duvida em responder-me negativamente, basta que se não esqueça que o israelita nascido aqui .no Cairo, em Malta, em Nazareth ou no Egypto, nunca deixará de ser um hospede! E um hospede sr. A. B., por mais amável que elle seja, é sempre incommodo quando nos demora muito em casa!... Si no Brasil ainda não sentimos os effeitos do antissemitismo, é simplesmente por ser o paiz ainda muito novo e o numero de israelitas pouco vultuoso. Entretanto, quando um facto menos digno se dá entre polacos, russos El reliqua, os jornaes, sem tergiversar, attribuem-o a judeus. E isto não é mais do que os primórdios da manifestação daquele sentimento! Não se pôde negar que o Brasil é um paiz essencialmente progressista, incomparavelmente tolerante; isto porém não basta para que possamos confiar no Amanhã. (COHEN apud A COLUMNA 1917, p. 147).

A causa sionista move-lhe os humores e as intenções, tornando-se um escape às aflições causadas pelos assassinatos contra o seu povo. Em dado momento, em meio aos seu arrazoado sobre a causa sionista recorre a interrogações retóricas: Sabe o sr. A. B. o que é um judeu, na Rússia? Um cão! Na Allemanha? Um burro de carga! Em Marrocos, pátria do sr. A. B.? Um deposito de pancadaria (kethe); um sinonimo de imundície, porque nenhum mussulmano pronuncia a palavra — judeu — sem aiteporlhe — o clássico — haxak hasidi, o equivale litteralmente a—Com respeito do meu senhor. Na Rumania o judeu só tem direito ao ar que respira. (COHEN apud A COLUMNA 1917, p. 148). Para além dos motivos sionistas, o poeta Cohen logrou espaço em antologias paraenses. Carlos Rocque (1940, p. 145), na Antologia da Cultura Amazônica, José Beneditto Cohen publicou um livro de poesias chamado Psalterio, com prefácio do poeta e professor Remígio Fernandez. Além de poeta era ensaísta, jornalista, orador e tradutor. Elemento de destaque na maçonaria, tanto 23


LITERATURA

em Belém, como em Manaus e “por onde também andou, com a beleza do seu verbo empolgante” (Eustachio de Azevedo, Literatura Paraense). De suas viagens pela África, escreveu Através de Marrocos. Faleceu a 7 de janeiro de 1923, com 49 anos de idade. Usava o pseudônimo Jobeco (união das primeiras sílabas de seu nome).

Nesta Antologia da Cultura Amazônica foram publicados os poemas “A um suicida” e “Alma doente”, este último dedicado a José Eustáquio Azevedo. Este, a propósito, em Literatura paraense atesta: Só um poeta autêntico que fala o português e que sente perfeitamente a alma dolorosa dos hebreus podia reproduzir o estro e o coração da raça multisecular, dispersa no globo, porém unificada no sentir e no desejo, devorada de sede de Deus, inquebrantável na fé bendita das promessas de Adonay e Abraão, quando a tristeza do infortúnio lhe descia sobre a veneranda velhice. Benedito Cohen encheu os templos maçônicos do Pará e do Amazonas por onde também andou com as belezas de seu verbo empolgante. (AZEVEDO, 1943, p. 135-136).

O ardor de J. Benedicto Cohen de fazer seus escritos repercutirem “a alma dolorosa dos hebreus” (AZEVEDO, 1943, p. 135) mostrou-se ser um dos pontos principais de sua articulação não apenas poética, mas política. Como religioso, destacouse com dedicação e solidariedade, auxiliando muitos judeus que viveram no interior do Pará, sem a presença imediata de oficiantes religiosos. No A Columna há uma referência às atividades do poeta como perito mohel:

24 SUPLEMENTO AMAZÔNIA JUDAICA No 9 - SETEMBRO 2021

Effectuou-se a milá do filho do sr. Marcos Belichah, em Óbidos, exercendo as funcções de mohel o dr. José B. Cohen que proveu muita habilidade e perícia apezar de estar ha pouco tempo iniciado nessa arte sagrada. Depois elle mesmo celebrou o Kidusch o que lhe valeu a confirmação da fama de petitrabbin de que gosa entre os nossos correligionários desse Estado. São desnecessários elogios ao presado poeta, pois o nosso valente collaborador é sobejamente conhecido, comtudo causa agradável surpresa descobrir-lhe mais uma forma de actividade que nos era completamente desconhecida. Nossos sinceros parabéns. (COHEN apud A COLUMNA, 1917, p. 156).


Muitas atividades foram desempenhadas por J. Benedicto Cohen, filho de um rabino marroquino que veio para a Amazônia em busca de esperança e liberdade, causas essas que o poeta sionista Cohen jamais abandonou.

DocReader.aspx?bib=116300&Pesq=edi%c3%a7%c3%a 3o%201428&pagfis=72140. Acesso em 03/02/2021. O MALHO. Edição 1438. 1. 5 de abril de 1930. p. 6. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/ docreader.aspx?bib=116300&pasta=ano%20 193&pesq=um%20aviso%20posthumo&pagfis=72742. Acesso em 03/02/2021. OLIVEIRA, Claudemilson Nonato Santos de. A KIPÁ E O

Fonte: COHEN, J. Benedicto. “Pessah”, in: A COLUMNA. n. 5, Ano I, 05-05-1916. Fonte: O MALHO. Edição 1438. 1. 5 de abril de 1930. p. 6. Disponível em:

Referências

COCAR: A rede intercomunitária judaica na estruturação urbana de Itacoatiara. 2019. f. 213. Tese (Doutorado em Sociedade e Cultura na Amazônia.) - Universidade Federal do Amazonas, 2019. ROCQUE, Carlos. Antologia da Cultura Amazônica. v. I Poesias. Amazônia Edições Culturais: Belém, 1940.

A COLUMNA. n. 21, 22, 23, 24, Ano II, set. out. nov. dez., 1917. AZEVEDO, J. Eustáquio de. Literatura Paraense. Oficinas Gráficas do Instituto Lauro Sodré: Belém, 1943. BAER, Itzack. Galut. Trad. J. Ginsburg. São Paulo: Editora Perspectiva, 1977. p. 9. COHEN, J. Benedicto. “Carta aberta ao Sr. A. B.”, in: A COLUMNA. n. 21, 22, 23, 24, Ano II, set. out. nov. dez., 1917. COHEN, J. Benedicto. “Israel”, in: A COLUMNA. n. 17 e 18, Ano II, 04-05 e 01-06-1917.

*Alessandra F. Conde da Silva é Doutora em Letras e Linguística pela UFG e professora de Literatura Portuguesa da UFPA, campus de Bragança. É coordenadora do projeto Ecos Sefarditas: judeus na Amazônia e do NESA (Núcleo de Estudos Sefarditas da Amazônia). È membro do Conselho Acadêmico do CEJA – Centro de Estudos Judaicos da Amazônia

COHEN, J. Benedicto. “Nossos irmãos da Amazônia”, in: A COLUMNA. n. 20, Ano II, 03-08-1917. COHEN, J. Benedicto. “Pessah”, in: A COLUMNA. n. 5, Ano I, 05-05-1916. O MALHO. Edição 1427. 1. 18 de janeiro de 1930. p. 10-11. Disponível em: http://memoria.bn.br/ DocReader/docreader.aspx?bib=116300&pasta=ano%20 193&pesq=um%20aviso%20posthumo&pagfis=72034. Acesso em 03/02/2021. O MALHO. Edição 1428. 1. 25 de janeiro de 1930. p. 48. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/

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5782-2022 SERÁ UM ANO INESQUECÍVEL

www.amazoniajudaica.com.br

AMAZÔNIA JUDAICA COMPLETARÁ 20 ANOS DE FUNDAÇÃO E A FESTA SERÁ DE TODOS NÓS. SHANÁ TOVÁ


Suplemento Universo

EDIÇÃO DE ROSH HASHANÁ 5782 - SETEMBRO 2021

FESTIVAL ZEJUT ABOT UN ROS-HASSANÁ EN HAQUITÍA 27


NO PRELO A Ed. Talu Cultural com apoio do IBI – Instituto Brasil Israel lançará brevemente, no Brasil e em Israel, o novo livro do mais premiado correspondente internacional para o Oriente Médio da atualidade


EDITORIAL Amigos leitores, nosso Suplemento Universo Amazônia Judaica começa com uma bela e merecida Homenagem Especial à brilhante e saudosa Profa. Doutora falecida recentemente e que foi a maior autoridade em pesquisa e estudos da Inquisição e dos cristãos-novos, no Brasil e Portugal. Seguindo, nos traz a exultante notícia de que o Festival sobre a Haquitia foi um absoluto sucesso. É com o coração e a mente, com afeto e conhecimento, que nossos leitores aderiram ao concurso idealizado pelo Dr. Sergio Benchimol e pelo Amazônia Judaica, além de outros colaboradores. Parabéns a todos (modestamente, a nós também...). A crônica do Dr. Benchimol, contida neste Suplemento, explica muito bem porque a Haquetia (ou Haquitia), linguajar dos nossos antepassados, não deve desaparecer. Quem cuida (e muito bem) do passado é o nosso genealogista de plantão, Paulo Valadares. Mais uma de suas magníficas apresentações, desta vez como a Genealogia é importante na nossa vida. É nosso orgulho ter Valadares entre nossos assíduos e sempre renovados colaboradores. Na ladeira das memórias, Elias Salgado lembra-se do seu querido irmão, o Leléu, numa crônica amorosa, que revive um episódio envolvendo-o e o pai de ambos. Para coroar este Suplemento, cheio de novidades, uma entrevista com a etno-musicóloga Judith Cohen, natural do Canadá, que abrilhantou o nosso Festival de Haquetia. Seu profundo conhecimento e prática da música sefardita (entre muitas outras, incluindo não judaicas) a coloca no patamar dos grandes intelectuais, estudiosos da área musical de nossos antepassados. Este Suplemento tornará o seu Ros-Hassaná (como dizemos em Haquetia), diferente. Haquetia, Genealogia, Música sefardita estão presentes! Uma alegria do cérebro e do coração ler estes artigos! Realmente, este Suplemento 04 HOMENAGEM ESPECIAL: Universo Amazônia Judaica, Le Zecher: Professora Doutora Anita Novinsky como os que o antecederam, é z”l digno de ser lido, repartido e comentado. E guardado! Boas 08 CULTURA Zejut Abot: Um festival que veio para ficar leituras e até a próxima!

ÍNDICE

Shaná Tová a todos. Os editores.

16 GENEALOGIA

Como fazer a genealogia dos “hebraicos”

24 CRÔNICA

*Alma Volante – Sergio Benchimol *Um shabat diferente dos outros – Elias Salgado

Diretor de Edição: Elias Salgado | Editora Executiva: Regina Igel | Diretor de Arte e Design: Eddy Zlotnitzki | Amazônia Judaica é uma publicação da TALU CULTURAL | Sites: www. talucultural.com.br | www.amazoniajudaica.com.br | Emails: contato@talucultural.com.br | ed.amazoniajudaica@gmail.com


HOMENAGEM ESPECIAL

Le Zecher: Professora doutora Anita Novinsky z’l Em 20 de julho deste ano, o Brasil e o mundo se despediram da Professora Doutora Anita Novinsky

F

alecida em São Paulo, aos 98 anos, a historiadora foi uma das maiores estudiosas - se não a maior - do tema Inquisição Portuguesa e cristãos novos no Brasil. Universo Sefarad presta aqui sua

homenagem a essa gigante da historiografia judaica. NA SALA DE ANITA – Por Elias Salgado Era o início dos anos 80. Foi naquela época que eu comecei a dar os primeiros passos como interessado pelo tema “Judeus no Brasil”.

30 SUPLEMENTO AMAZÔNIA JUDAICA No 9 - SETEMBRO 2021


Recém havia chegado ao Brasil o sistema conhecido como gravações em vídeo. Alguém aí lembra como eram os aparelhos? Eram 3 peças: A filmadora, o gravador e o aparelho de reprodução. Aquilo não tinha como não encantar. Encantou a dois jovens parceiros - o grande Fernando Lattman-Weltman e eu. Toda novidade tecnológica que surgia, lá ia o Fé e a adquiria. Foi assim também com o Lap Top. O primeiro que vi de perto, foi o dele. Um pequeno Apple de cor branca, no qual demos os primeiros passos de pequenos empreendedores.

Sim, havia ousadia em nossas pretensões. Mas tínhamos as costas largas e uma gigante como fada-madrinha. Às vezes me pergunto: Como cabia tanta generosidade em uma pessoa só? Ai Anita, você vai fazer falta, Mestra! Tihiê Nishmatá Tzerurá Letzror HaChaim

Para o vídeo-cassete, o primeiro projeto pensado já trazia a marca da ousadia da dupla. Era algo como: Os Grandes Estudiosos Judeus, inserido no tópico “Judeus no Brasil”. A ideia era entrevistar todos os intelectuais judeus que estudavam e pesquisavam este assunto. O tema era muito pouco conhecido e o número de intelectuais que compunham aquele time se poderia contar nos dedos e a maioria absoluta era da USP. Cabiam todos numa sala. Mas não numa sala qualquer. Couberam na sala de visitas da querida Anita Novinsky. Foi ela quem nos recebeu em sua casa. A nós e aos seus demais colegas, para que pudéssemos apresentar nosso projeto. Lembro que foi um encontro marcante. Muitos olhares curiosos e outros desconfiados: Afinal quem eram aqueles dois jovens e de onde surgiram com tamanha ousadia?

Anita Waingort Novinsky (Stachow, 22 de novembro de 1922 - São Paulo, 20 de julho de 2021) foi uma historiadora brasileira, especializada na Inquisição portuguesa no Brasil, os costumes dos criptojudeus deste 31


HOMENAGEM ESPECIAL

nas universidades Brown, Rutgers-New Brunswich, Austin, além de dar palestras em outras mais, assim como na Europa e em Israel.

país e o renascimento da consciência judaica destes, 200 anos após o fim da Inquisição no Brasil. Nascida em Stachow, Polônia e com nacionalidade brasileira, emigrou com sua família para o Brasil quando ela tinha um ano de idade. Graduou-se em Filosofía pela Universidade de São Paulo (USP) em 1956, com especialização em Filosofia. No Brasil, obteve o título de Doutora em História Social pela USP, em 1970. Na Sorbonne (École des Hautes Etudes en Sciences Sociales), estendeu suas pesquisas em “Racismo no Mundo Ibérico”, em 1977. Retornou à França, onde fez cursos em programa de pós-doutorado na Universidade de Paris I, em 1983. Foi Livre Docente da Universidade de São Paulo até o fim de sua vida pois, ainda que aposentada, recebia e orientava estudantes de pós-graduação. Participou de congressos nacionais e internacionais. Foi a fundadora do Laboratório de Estudos sobre a Intolerância (LEI), da USP, entre outras organizações que visam ampliar e esclarecer a história dos judeus no Brasil, dos cristãos novos, dos criptojudeus e de assuntos relativos a esses tópicos. Nos Estados Unidos, foi professora-convidada

A Universidade Federal Rural de Pernambuco tem uma cátedra que leva seu nome desde 2015, pertencente ao Departamento de Ciências Sociais. Em 2013, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico outorgou à Professora Doutora Novinsky a distinção de Pioneira da Ciência no Brasil em homenagem à sua trajetória como investigadora. O documentário A Estrela Oculta do Sertão, que versa comunidades de criptojudeus no nordeste do Brasil, está baseado parcialmente nas investigações de Novinsky, incluindo uma entrevista com ela. Anita Waingort Novinsky foi casada com o empresário Maurício Novinsky (Z’L). Deixa duas filhas, netos e bisnetos.

Obras (selecionadas) •

Cristãos-novos na Bahia: 1624-1654. Perspectiva & USP (EDUSP), 1972.

Inquisição: Inventários de bens confiscados a cristãos novos no Brasil. Imprensa Nacional, Casa da Moeda e Livraria Camões, Lisboa, 1976.

Bens confiscados a Cristãos-novos no Brasil, século XVIII. Editora Imprensa

32 SUPLEMENTO AMAZÔNIA JUDAICA No 9 - SETEMBRO 2021


Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1978.

A Inquisição. Editora Brasiliense, São Paulo, 1982 e re-edições (1983 ... 1990).

Padre Antônio Vieira, a Inquisição e os Judeus

O olhar Judaico em Machado de Assis. Expressão e Cultura, Río de Janeiro, 1990.

Os judeus que construíram o Brasil, antologia, org. por Novinsky et al. Editora Planeta, 2015.

“My Identity as a Brazilian Jew”, A. Novinsky, in Identity in Dispersion, Selected Memoirs from Latin American Jews, Supplement to the American Jewish Archives Journal. Jacob Rader Marcus Center Cincinnati: Hebrew Union College, pp. 81-83.,

Inquisição. Ensaios sobre Mentalidades, Heresias e Arte. Expressão e Cultura, Río de Janeiro, 1992

Inquisição. Rol dos Culpados. Editorial Expressão e Cultura, Río de Janeiro, 1992.

Ibéria Judaica, Roteiros da memória, org. por Novinsky & Diane Kuperman. .EDUSP, São Paulo, 1996.

Inquisição: Prisioneiros do Brasil. Editorial Expressão e Cultura, Río de Janeiro, 2002.

O Santo Ofício da Inquisição no Maranhão. A Inquisição de 1731. UEMA (Universidade Estadual do Maranhão), São Luiz, Maranhão, 2006.

Inquisição. Cristãos Novos na Bahia, 11ª ed. Editora Perspectiva, São Paulo, 2007.

Gabinete de Investigação: uma “caça aos judeus” sem precedentes. BrasilHolanda, séculos XVII e XVIII. Editora Humanitas, São Paulo, 2007.

(Fonte: Texto adaptado da Wikipédia)

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CULTURA

Zejut Abot*: o mérito dos patriarcas.

Um festival que veio para ficar! Esta é uma matéria especial. Ela registra uma iniciativa histórica, inédita e exitosa

Tudo começou com a brilhante sugestão de Dr. Sergio Benchimol ao Amazônia Judaica de realizar um concurso sobre Haquitia. Sua intenção era homenagear seus pais, Donna e Raphael Benchimol de abençoada memória, apoiando um evento que contribuísse com a preservação e a continuidade da cultura sefardimarroquina, em especial o idioma falado pelos judeus originários do norte do Marrocos, Haquitia. E assim foi que, contando com seu apoio e o de outras pessoas iluminadas, que citaremos ao longo desta matéria, Amazônia Judaica entrou de corpo e alma no projeto, culminando com uma grande festa virtual, que aproximou pessoas de vários países: Brasil, Argentina, Venezuela, EUA, França, Austrália e, claro, de Israel. Estamos certos de que esta iniciativa abriu um novo e promissor caminho nos esforços pela preservação deste tão belo idioma, bem como de outras manifestações culturais sefardi-marroquinas. *Usamos aqui o termo zejut abot conforme escrito e falado no idioma haquitia 34 SUPLEMENTO AMAZÔNIA JUDAICA No 9 - SETEMBRO 2021


Ecos del primer Festival Internacional de Ḥaketía Zejut Abot** Por Line Amselem y Yehuda Benguigui

P

rimeramente diremos «sheeḥeyanu» (bendición inaugural) por este primer Festival Internacional de Ḥaketía Zejut Abot, organizado y ‘adleado (arreglado) por la revista Amazônia Judaica y su director el Ma’al.lem (profesor) Elías Salgado, hechos buenos se le hagan (bendición). Wa (Pues), entre los que participaron, los que organizzaron y el jurado, el festival ĵem’eó (reunió) a ĵudiós de diez países y varios continentes : Brazil, Argentina, Venezuela, España, Marruecos, Israel, Estados Unidos, Canadá, Francia y Australia. Moz llegaron diezisiete trabajos, con munshísima variedad en el soporte (textos, audios y vídeos) y en la forma (chistes, cantares, ma’asés (cuentos), recuerdos, teatro, traducciones/adaptaciones), de todo lo bueno ¡berajjá del Dio! (fórmula que expresa satisfacción y bendición). Con qué palabras diremos el kabod (honor) que se moz hizo en proponernos ser parte del jurado del concurso. Todos sabemos que desgrassiadamente nuestra lengua querida -la ḥaketía - hablada por nuestros antepasados en el Norte del

Marruecos, en Tánger, Tetuán, Alcázar, Larache, Arzila, Chauen, Melilla y Ceuta, y que guardimos en nuestras cazzas y corassones está la pobrezita muy poco hablada awwera (ahora) y que algunos dizen que ya no se hablá gga’ (para nada). Por eso moz alegramos con los concursos, fiestas, reuniones, pa conservar, hazer que se mente (mencione) y se conozca nuestra lengua luzzida : la ḥaketía. Ansina (así) moz farjeímos (alegramos) y moz reímos y moz emocionimos con lo que leímos: la carta de una abuela a su nietezito, palabritas de criaturas, creación de ma’asés nuevos, recuerdos de viajes de una familia de los nuestros, taḥramías (travesuras) de Djoḥa, teatro pa una fiesta de ḥanukkah, kavod a personas que munshos hizieron pa lo muestro en mizvot y escritos, cantares tradicionales vivos y graciozzos y ḥatta un poquito de picardía ḥaketillesca... Si a alguno olvidimos, le olvide la muerte (fórmula de protección). Lo que verifiquimos es cómo y cómo se adapta la ḥaketía a los diferentes países y cómo siguió cambiando ḥatta (hasta) hoy en día en documentos venidos de ciudades de Brazil como Belem, Manaos, Rio de Janeiro y San Paulo. Dirís (diréis) que 35


CULTURA

no es ningún ness (milagro), que todas las lenguas de los judiós lo hazen, aiwa (pues) claro, pero moz alegrimos al ver con que sezzo y hojmá los autores uzzaro y transcribieron su ḥaketía brazileña. Salió a reluzzir una variante ĵudeo-hispanomarroco-brazileña, muy sabrozza y a vezes un poco ḥarra. (picante). Entonces lo jammeímos (pensamos) y lo shaureímos (consultamos) con los organizadores y decidimos sin querer copiar a Selomó Ha-Melej (al Rey Salomón) que todas las contribuciones merecían recibir premio por su uzzo singular de la ḥaketía. Por eso mos alegramos y mos farĵeamos y celebramos el trabajo de cada uno y de todos por conservar, por enaltecer, por recordar, por ensalsar nuestra querida ḥaketía. ¡Mazaló! ¡Besimantó! ¡Parabién, parabién, parabién! Quiera el Dio que este sea el primero de munshos más festivales de ḥaketía. Amén, ve amén.

Com vocês os concorrentes, seus trabalhos e a avaliação do júri É imensa a dívida de gratidão que nós do Amazônia Judaica temos para com as pessoas que nos ajudaram a tornar realidade o I Festival Internacional de Haquitia - Zejut Abot Além do querido Dr. Sergio Benchimol, nosso colaborador e incentivador, e dos brilhantes jurados, Dra. Line Amselem e Dr. Yehuda Benguigui, gostaríamos de agradecer a Alicia Sisso Raz, diretora do site Voces de Haketia, pela dedicação na preservação da haquitia em todo o mundo e por nos ajudar na divulgação do evento em vários países. E claro nosso muito obrigado a todos os participantes do concurso.

**Texto en Haquitia elaborado pelos jurados do festival: Dra. Line Amselem (Ph.D.) e Dr. Yehuda Benguigui. 36 SUPLEMENTO AMAZÔNIA JUDAICA No 9 - SETEMBRO 2021

Alicia Sisso Raz, diretora do site Voces de Haketia


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CULTURA

Amazônia judaica entrevista a etnomusicóloga e artista, especialista no cancioneiro sefardi, Judith Cohen Tradução do espanhol ao português por Regina Igel

E

m todo este caminhar rumo a realização do I Festival Internacional de Ḥaketía Zejut Abot, uma pessoa em especial nos encantou a todos e abrilhantou nossa festa com sua apresentação musical: a etnomusicóloga, Judith Cohen. A seguir uma pequena e exclusiva entrevista dada por Judith ao Amazônia Judaica, desde Montreal no Canadá. AJ - Ferazmal Judith, faça um resumo das suas origens, sua formação e, principalmente, porque escolheu estudar e pesquisar a temática sefardita, em particular a sua música. JC - (Respondo em espanhol, pois escrevo e, assim, faço menos enganos…) Nasci em Montreal, no Canadá, como meus pais. Meus avós nasceram em diversos países do Leste europeu – que agora são Letônia, Lituânia, Belarus… Mas, naquela época, nos diziam simplesmente que eram da Rússia. Chegaram ao Canadá no começo do século XX, em Montreal

e se conheceram aí, dentro do que era, então, uma comunidade judaica nova. A geração de meus pais, que nasceram entre 1910 e 1920, viveu durante a grande crise econômica e minha mãe e seus irmãos tiveram que sair da escola (pública) com 13 ou 14 anos de idade, para trabalharem nas fábricas. Meu pai foi o único que cursou uma universidade, mas ele faleceu quando eu tinha cinco anos; não cheguei a conhecê-lo muito bem e nossa mãe teve que procurar emprego fora de casa e contratar uma série de babás para cuidar de nós, quando éramos pequenas – quase todas eram imigrantes recém-chegadas da Grécia e não falavam inglês. Na universidade, primeiro estudei Filologia inglesa e francesa e, em seguida, algo mais de música – na escola secundária me tinham dado um clarinete e também, como era a época do “folk revival” (volta do folclore), tocava violão como todo o mundo e cantava canções do movimento sobre os direitos civis dos negros nos Estados Unidos (ainda que morando no Canadá). Trabalhei como secretária para

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A etnomusicóloga e música canadense, Judith Cohen

poder sustentar meus estudos universitários no Departamento de Epidemiologia e, por acaso, justamente agora mesmo estou visitando Montreal e escrevo estas respostas na casa de um dos meus ex

chefes, que naqueles anos era o reitor da Escola de Medicina na universidade e que atualmente está com 101 anos, que chegue aos 120. Depois da Licenciatura, me pus a viajar

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CULTURA

– já tinha visitado a ex Iugoslávia, com uma amiga – fizemos tudo de carona. Pois, em setembro de 1971, faz exatamente 50 anos, comprei uma passagem de avião só de ida, para Paris e comecei, com muito pouco dinheiro, a viajar durante todo um ano – França, Marrocos, Turquia, Bulgária, Escócia – e Espanha. É uma longa história como cheguei lá – basicamente por um suíço que tinha conhecido no ano anterior em Bósnia, e que tinha um amigo pintor em Valência. Fiquei por lá uns meses ensinando francês, mas era a época do Franco e prenderam meus novos amigos porque falavam valenciano (catalão valenciano) com seus alunos e seus pais. Tive que ir embora, peguei um barco turco barato de Barcelona a Istambul. Isto foi em 1972 e no Grande Bazar conheci, por acaso, uns sefarditas. Mas como eu não sabia nada da história deles e meu espanhol não era muito bom – eu o havia praticado em Valência, mas já tinha estudado latim – não me importei. Viajei por toda a Turquia durante uns dois meses, peguei um ônibus noturno para a Bulgária e passei um par de meses viajando de carona nos Balcãs até voltar para o Oeste da Europa e, finalmente, ao Canadá. Recebi o grau de Mestrado em Estudos Medievais, sobre a mulher e a música nas três religiões da Espanha e de Portugal medievais. Formei um grupo de música medieval. Também cantava muito (do repertório) dos Balcãs e dançava seus passos. Voltei a viajar para a Espanha, a Portugal, Israel… conheci Galícia e

outras regiões da Espanha, que não tinha conhecido da primeira vez. Em certo día, comecei a estudar para o meu Doutorado, agora em Etnomusicologia envolvida com a música sefardita e o ser judia, distinguindo o que era e o que não era música medieval – da Espanha e de Portugal, do Marrocos, da Turquia, dos Balcãs… e a música sefardita não é medieval! Conheci Oro pelo seu ex professor, o grande sábio Samuel Armistead e formamos, com Solly Levy (Z’L) e Kelly Sultán Amar, o Grupo Gerineldo. Fiz muito trabalho de campo com a comunidade sefardita em Montreal, Toronto, Nova York, Israel, na Grécia, Espanha… E sempre combino o ser música – canto, toco vários instrumentos medievais e tradicionais – com o ser acadêmica universitária – e, o que mais me fascina, sou viajante. Minha filha nasceu em 1986, sempre viajava comigo (fui mãe solteira desde que ela fez dois anos de idade) e cantava comigo já com cinco aninhos. Na década de 1990, comecei a estudar o papel da música entre os criptojudeus de Portugal. AJ - Muitos ficaram curiosos e surpresos ao ouvir você falar um excelente português, mesmo sendo uma canadense anglófona. Afinal, de onde vem o seu conhecimento de português? JC – De todo o trabalho de campo – pesquisas e questionários – em cidadezinhas pequenas, em aldeias de Portugal, para entrevistar os criptojudeus e os ciganos que moram ao lado deles.

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Ter ido a congressos em Portugal também ajudou. São mais de 25 anos durante os quais fiquei várias vezes nas pequenas casas de famílias criptojudias (então já eram abertamente judeus) e passei muito tempo com eles e com os ciganos. Estive em Belmonte e em toda a região de Belmonte, Trás-os-Montes – muitos vilarejos – tudo isto bem antes da folclarização que agora acontece. Belmonte e cada vez mais Trás-os-Montes parecem cada vez mais a um “Disney” turístico. As velhas “rezadeiras” judias já faleceram e a vida atualmente não tem nada a ver com o que foi antes. Tive muita sorte em poder conhecer aquele mundinho em seus últimos anos antes das grandes mudanças ocorridas (entre estas, claro, a chegada da Internet). Então, tive que começar a falar português – fiz o mesmo que já havia feito ao aprender espanhol, nos anos 70: comprei um livro de gramática e o lia, praticava falando. Também tinha estudado latim e, com a música medieval, sempre cantava muito em galaico-português medieval, as ‘cantigas de amigo’, as ‘cantigas’ de Alfonso X, etc. (isto em catalão medieval). Ah, sim, durante alguns meses em 1999, frequentei um curso de portugués avançado em Toronto, com uma professora do Instituto Camões, que ainda é minha amiga. AJ - Na tua opinião pessoal, qual é, dentre os inúmeros estudos, pesquisas e apresentações musicais, o ponto alto do teu trabalho?

JC – Ah… não sei como dizer. O melhor da minha vida foi ter minha filha, ser sua mãe, vê-la crescer e procurar seu caminho. Depois disto… não sei. Combinar o ser ‘performer’ (cantora, instrumentista, também contadora de histórias) e ‘acadêmica’ e assim apresentar a música sefardita de maneira entretida e de instrução ao mesmo tempo. Que eu saiba, nenhum outro etonomusicólogo fez o trabalho em que levo mais de 25 anos fazendo: com os criptojudeus nos vilarejos e também com os ciganos. Mas também trabalho em outras coisas.sou “consultant” (em inglês) para a Coleção Espanha -1952, do grande musicólogo americano Alan Lomax (19152002); dou aulas, continuo com a música folclórica de vários países (os Balcãs, Canadá francês, Portugal não judaico, Inglaterra, Escócia, a música medieval…) – e viajo quando posso… AJ - Como está sendo a experiência da tua parceria com o Amazônia Judaica e como membro do Conselho Acadêmico do CEJA - Centro de Estudos Judaicos da Amazônia? JC - Pois até agora tenho pouco tempo nisto, mas vocês são pessoas super amáveis e espero continuar colaborando – e aprendendo – durante muito mais tempo. E, quando as circunstâncias permitirem, pessoalmente! 41


GENEALOGIA

COMO FAZER A GENEALOGIA DOS “HEBRAICOS” – judeus do Magreb (norte da África) no Brasil Por Paulo Valadares*

Creio que completo trinta anos como genealogista este ano – pouco mais, pouco menos. Meu interesse inicial era conhecer apenas os meus avós, tios (tias) e primos, com quem não tinha nenhum contato – na época sentia-me uma espécie de Kaspar Hauser (aquele alemãozinho que surgiu do nada e deu até filme)

P

orém, no final destes anos, cheguei até o séc. XV, o que pode ser considerado uma façanha, pois somos gente modesta e discreta, espalhada pelo mundo. Não descendemos de reis godos ou visigodos e o máximo que podem nos atribuir é ter feito cenas de multidão para Moisés.

GENEALOGIA Sou genealogista no sentido conservador da definição: aquele que, através de documentos produzidos pelo Estado ou pela Igreja (e similares), por indivíduos (diários, memórias, etc.), de lápides, trabalhos de outros genealogistas, estabelece o encadeamento de gerações até onde estas fontes chegarem. Com o tempo, alarguei esta pesquisa, pois encontrei gente da parentela penitenciada pela Inquisição, que me levou aos descendentes genealógicos de cristãos-

novos e passei deles aos judeus sefarditas (ou “sefaradis”, como será mantido neste ensaio) na Diáspora. Desde que o Cavalli-Sforza começou esta história de “genealogia genética”, tenho acompanhado o tema, dentro de minhas imensas limitações científicas – só entrei na faculdade por não zerar em Biologia. Continuo um genealogista secular, limitado – interessa-me apenas os portugueses, os judeus – notadamente os que estão na “fronteira” (v. Isaac Deutscher, “O judeu não-judeu (...)”. Já escrevi alguns livros, ensaios; editei revistas especializadas e até ganhamos um prêmio internacional por trabalho em Genealogia. O meu primeiro contato com a genealogia judaica magrebina (de Magreb, relativo ao norte da África) foi quando escrevi o ensaio “Qual a família judia mais antiga de S.

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Paulo” em 2007. É sobre os descendentes do comerciante português Isaac Amzalak (? – Salvador, 1872), que chegou ao Brasil em 1829. As suas filhas eram tão bonitas que o poeta Castro Alves fez corte a elas. Deixou um poema notável sobre uma delas: “A Hebreia” (1866). Segui os seus descendentes até o séc. XX.

OS HEBRAICOS

Os judeus marroquinos dividem-se em dois grupos: são os megorachim, expulsos de Portugal e Espanha no séc. XV; e os tochavim (autóctones, de origem berbere), mas chamados impropriamente de “forasteiros” pelos sefaradis. Com uma capacidade de organização maior que os judeus autóctones, os sefaradis impuseram a sua cultura aos locais, mas também se miscigenaram. Regulavam-se pelas “leis de Castela” e nas ketubot (contratos de casamentos), até o século XX, o dote é especificado em “duros espanhóis” (moeda corrente no tempo da expulsão). Os sefaradis se espalharam entre Tetuán, Tânger, Fez, Rabat, Salé, Marrakesh, Arzila, Larrache, Ceuta e Melilha. Assentaram-se nos portos e nas proximidades. A divisão étnica reaparecia na emigração: assentados principalmente na Amazônia, em Belém (Brasil), os toshavim fundaram a sinagoga Essel Abraham (Bosque de Abraham) em 1824, a esnoga de los pobres y de los forasteiros (como também são chamados); e os megorashim fundaram a sinagoga Shaar Hashamaim (Portas dos

Céus) em 1889, ponto de encontro da elite local.

Três séculos vivendo no Magreb, eles já tinham identidade própria, externalizada no uso da onomástica e pela hakitia, língua própria, mas também novos problemas num país com alguma tolerância religiosa. Dificuldades com o crescimento econômico e principalmente a execução da mártir Solica, foram impulsos para emigrar sem lugar para ir ou voltar. Sol – como diminutivo do nome de Solica Hatchuel (1817-1834) - foi denunciada falsamente às autoridades marroquinas de que se convertera ao islamismo e, portanto, era uma traidora da religião. Presa, foi-lhe oferecida a oportunidade de casar-se com um muçulmano (talvez o filho do rei ou de um paxá) e constituir uma vida islâmica. Ela recusou a oferta e declarou que era judia e sempre fora judia. Foi condenada à morte e executada. Os marroquinos ou magrebinos aproveitaram a abertura de Portugal e Brasil para emigrar. Era a notícia que eles esperavam, que o Império Português abrira as suas portas aos judeus que expulsaram no século XV. Voltaram aos poucos, um a um a princípio, discretamente, testando a tolerância, inserindo-se lentamente no cotidiano. A biografia destes pioneiros é muito parecida. Tome a vida do “ti Abraão” - Abraham Benlisman -: ele nasceu em Mazagão e 43


GENEALOGIA

Isaac Essoudry (1935-2017), judeu marroquino, fundou e acolheu descendentes de cristãos-novos em Recife. Note-se que chamouse Jacques e usava o nome de Isaac. Esta troca de nome é uma dificuldade para pesquisas

Assento de Fortunato Essoudry. 44 SUPLEMENTO AMAZÔNIA JUDAICA No 9 - SETEMBRO 2021


morreu no Algarve (1760-1845). Na primeira década do século XIX, foi perseguido por ser judeu, teve que viver escondido por alguns anos e por convite do seu correspondente em Portugal, o conhecido Jerônimo Martins, estabeleceu-se na indústria algarvia de pesca. O filho Aarão procurou ouro no Brasil. Foi assim também com o “Sr. Salão” - Shalom Buzaglo (1790-1860) -, com os Senhores Abraham e Elias Ben-Saúde, com o Sr. José Azulay, com Fortunato Abecassis, etc. Já na primeira década do século XIX tem um endereço para sinagoga. São as mesmas famílias que se casam entre elas e vão de um lado a outro em busca do sucesso econômico. O genealogista português José Maria Abecassis escreveu o monumental “Genealogia Hebraica. Portugal e Gibraltar. Século XVII e XX”, em quatro volumes, de 750 páginas cada um, contando minuciosamente a história de cada uma destas famílias. Não são todas as parentelas, mas já é um retrato da maioria delas: Abeasis, Abecassis, Abensur, Abitbol, Aboab, Abohbot, Absidid, Abudarham, Acris, Adrehi, Aflalo, Albo, Alkaim, Amar, Amram, Amselem, Amzalak, Anahory, Asayol, Askenazi, Assayag, Athias, Atrutel, Auday, Azancot, Azavey, Azerad, Azelos, Azulay, Balensi, Banon Baquis, Barchilom, Baruel, Belilo, Benabu, Benady, Benaim, Benamor, Benarus, Benatar, Benbunan, Benchaya, Benchetrit, Benchimol, Bendahan, Bendelack, Bendran, Benelisha, Beneluz, Benhayon,

Benison, Benitah, Benjamin, Benjo, Benmergui, Benmiyara, Benmuyal, Benoalid, Benoliel, Benrimoj, Benrós, Bensabat, Bensadon, Bensaloha, Bensaude, Benselum, Bensheton, Bensimon, Bensliman, Bensusan, Bentata, Bentubo, Benudis, Benyunes, Benzacar, Benzaquen, Benzecry, Benzimra, Berdugo, Bergel, Bibas, Bohudana, Brudo, Buzaglo, Bytton, Cagi, Cansino, Cardoso, Carseni, Castel, Cazes, Cohen, Conquy, Coriat, Cubi, Danan, Davis, Delmar, Elmaleh, Esaguy, Esnaty, Farache, Ferares, Finsi, Foinquinos, Fresco, Gabay, Gabizon, Garson, Hadida, Hassan, Hatchuel, Israel, Kadosh, Labos, Laluff, Laredo, Lasry, Lengui, Levy, Malca, Maman, Marques, Marrache, Martins, Massias, Matana, Megueres, Melul, Moreira, MórJosé, Nahon, Namias, Nathan, Nathan, Obadia, Ohana, Oliveira, Pacifico, Pallache, Pariente, Pimenta, Pinto, Querub, Roffé, Ruah, Sabath, Salama, Sananes, Saragga, Schocron, Sebag, Sequerra, Serfaty, Seriqui, Serrafe, Seruya, Sicsú, Tangi, Tapiero, Taregano, Taurel, Tedesqui, Tobelem, Toledano, Tuati, Uziel, Varicas, Wahnon, Waknin, Zaffrany e Zagury.

Esta proximidade familiar entre judeus de Portugal e do Brasil impulsionavam a circulação entre os dois países. Tome os Mendes como exemplo disto: 45


GENEALOGIA

Salomão Levy morreu em Salvador, Bahia, em 1863. A esposa, Dona Ana Judia, da família Zagury, mudou-se para Angra do Heroísmo com a filha baiana Ester, onde tinha casa, vinha e lagar. Ester casou-se com Isaac Mendes (Aferiat?) e tiveram a Mayer Levy Mendes (Ilha Terceira, 1850 – Lisboa, 1914), que ficou órfão e foi criado por Abraham Laredo Bensabat. Em 1867 ele veio para o Rio de Janeiro, e em 1894 casou-se com Rachel e tiveram três filhos: (1) Jonas Mendes (nascido na Penha, S. Paulo, 1896); (2) David Mendes, também nasceu em S. Paulo (1898), casou-se em Lisboa com Ester Tangi Biton (1896-1969), filha de Fortunato (“Messod”) Bitton e Rachel Bentolila Tangi, e passou a velhice no bairro do Brás; (3) Felicidade (“Mazal”) Mendes (1905-1937), nomeada por Jacob Toledano e tendo como padrinhos Arão Benayon e Messod Serruya. David Mendes explicou esta transumância: “(...) Nos primeiros anos deste século ainda não havia uma colônia judaica numericamente considerável em S. Paulo. Isto fez com que seu pai Mayer Mendes (judeu português radicado no Brasil) vendesse sua loja e regressasse com a família à pátria de Fernando Pessoa. A respeito, comenta seu David: “Meu pai sacrificou sua vida para poder dar religião a seus filhos”. Assim com apenas quatro anos de idade, David Mendes estabeleceu-se com sua família em Lisboa (...)” (CORDEIRO, Hélio Daniel. “David Mendes”. Em O

Hebreu nº 90, Elul/Tishri 5747/8, p. 90).

Demoram muitos anos para construírem uma sinagoga que unificasse a todos. Só em 25 de maio de 1902 (18 Iyar, 5662) às 14h30 que se enterrou a pedra fundamental da sinagoga Shaarei Tikvah na rua Alexandre Herculano. Três personagens conduziram esta comunidade por longos anos: o professor Moisés Bensabat Amzalak (1892-1978), exercendo a diplomacia comunitária, fazendo a ligação com o mundo exterior, com acesso pessoal até o professor Salazar; o médico Elias Baruel (1896-1973), nascido na selva amazônica e criado em Lisboa, conduzindo a parte operacional (foi ele quem construiu os projetos da JOINT para resgatar os refugiados durante a II Guerra;) e o rabino Abraham Assor (1920-1993), tangerino, casado com uma brasileira, Rebeca Aflalo, nascida em Manicoré (Amazonas), que dirigiu a parte religiosa em Portugal por mais de meio século. A permanência dos “hebraicos” (como preferem ser chamados) no Brasil trouxe para a visibilidade externa personalidades destacadas nos variados campos de atuação humana. São médicos, advogados, professores, cientistas, empresários, escritores, artistas, militares, políticos, entre muitas outras ocupações e profissões.

COMO RECONSTRUIR ESTA CADEIA FAMILIAR? Se você tem ancestrais neste grupo humano e pretende construir uma genealogia, há

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Ketubah Amzalak/Levi (1844) – uma das mais da antigas no Brasil, se não a mais antiga

Ketubah (contrato de casamento) de Isaac e Irene Sabbá

Mary Roberta Amzalak (Lisboa, 1854 – S. Paulo, 1932), musa do poeta Castro Alves, “A Hebreia”

O comerciante baiano Isaac Amzalak (+ Salvador, 1872)

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GENEALOGIA

algumas fontes que podem ser consultadas para isto. Primeiro, separe uma caixa ou uma gaveta somente para guardar documentos e anotações destas pesquisas. Não confie apenas na memória. Comece pela documentação doméstica – encontrada em sua casa ou com parentes próximos.

1) REGISTROS VITAIS: a) Certidões de Nascimento, de Matrimônio e de Óbito emitidos pelo Estado. Cobrem toda a vida de uma pessoa: trazem datas, locais de nascimento e morte e nomes de duas ou mais gerações; b) Listas de mohelim (circuncisadores); c) Ketubá, contrato de casamento, emitido por uma autoridade judaica. Traz informações como o local, datas e ancestrais. Afirma-se que os celebrantes não gostavam de oficiar os casamentos da parentela Berdugo, pois as ketubot citavam as suas gerações até David HaMelech, levando muito tempo para esta enumeração. Há histórias, como a de Rachel Aferiat que se casou com o seringalista Salomão Melul em Boa Vista, em 26 de janeiro de 1890. Ela tinha apenas doze anos e meio. No casamento, ela não recebeu a sua ketubá, mas o marido mandou uma carta para a família em Tânger comunicando que se casara, quem era a família, tal e tal. Ela, para garantir-se, interceptou a carta e guardou-a escondida no seio por décadas, para lhe servir de ketubá. Nos

anos 60s ela presenteou o neto, Carlos Kertesz, de Salvador (BA), com a carta; d) Anotações e entrevistas familiares.

2) OUTROS REGISTROS: e) Matseivá (lápide cemiterial) em cemitérios israelitas ou em locais próprios em outros cemitérios. Elas trazem datas de nascimento e de morte, o nome religioso (que permite recuar uma geração). O primeiro “hebraico” sepultado em cemitério israelita paulistano foi o industrial Abrahão Hermes Abensur (1900-1944), de Javari (AM), falecido em desastre aéreo. O principal líder espiritual amazônida, Rabino Abraham Hamu (1909-1998), está sepultado no Cemitério Israelita do Butantã; a) Algumas Chevra Kadisha (administradora de cemitérios israelitas) mantêm sítios eletrônicos com informações sobre os seus utentes. A paulistana fornece o local do túmulo, o nome dos pais e a data do falecimento. O que permite a visita e consulta à lápide – veja “Encontre uma sepultura”, no sitio da Chevra Kadisha de S. Paulo.; Registros de entrada no país e processos de naturalização – custodiados pelo ARQUIVO NACIONAL, Rio de Janeiro. As “fichas consulares de qualificação”, emitidas a partir de 1938, trazem foto, dados biográficos, profissão e data de entrada; b) Anúncios e notícias em jornais (da região onde viveram, notadamente na Amazônia); procurá-los no

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sitio eletrônico da BIBLIOTECA NACIONAL, Rio de Janeiro.

3) FONTES IMPRESSAS: a) Primeiro o livro de José Maria Abecassis, Genealogia Hebraica. Portugal e Gibraltar. Século XVII e XX: nele há centenas de genealogias de magrebinos, documentadas com as respectivas ketubot; b) No livro de referência, Dicionário Sefaradi de Sobrenomes (várias edições), de Faiguenboim, Valadares e Campagnano, há registros onde eles viveram, que pode ajudar a localizá-los, delimitar mais o território de pesquisa; c) O casal Egon (1910-1991) e Frieda Wolff (1911-2008) tem alguns livros sobre a entrada e naturalizações de imigrantes no séc. XIX;

universo; g) Há um portal na WEB chamado AMAZÔNIA JUDAICA, onde se pode encontrar muito material histórico sobre este grupo etnocultural. h) CONCLUSÃO O escritor sefaradi Elias Canetti (1905-1994), ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 1981, escreveu que a sua razão de escrever: era uma forma de combater a morte, trazer à vida aqueles que foram para o Esquecimento. Esta razão serve também para nós, genealogistas. *Paulo Valadares é Mestre em História Social pela USP e autor de livros e ensaios sobre a presença judaica no Brasil

d) Samuel Benchimol (1923-2002). Autor de Eretz Amazônia - os Judeus na Amazônia (1998); e) General Abraham Ramiro Bentes (1912–1990), autor de Os sefardim e a hakitia (1981), Das ruinas de Jerusalém à Verdejante Amazônia: Formação da primeira Comunidade Israelita Brasileira (1987) e Primeira comunidade israelita brasileira: tradições, genealogia, préhistória (1989); f) Teses acadêmicas nas universidades brasileiras, notadamente na USP: procure nos “repertórios” eletrônicos com palavra-chave que remeta a este 49


CRÔNICA

Alma volante

*

Por Sergio Benchimol** (Em 21 de abril de 2021- Feriado de Tiradentes)

Ainda me lembro do dia em que sobrevoava a Terra procurando atender a um “pedido” do Chefe. Tinha de encontrar um lar

A

dica Dele era buscar um local em que me emocionasse. Em que me sentisse atraído e decidido a contribuir em tudo que pudesse para fazer parte daquela família e deste mundo. Ia entrando a noite, já havia entrado o Shabat em Eretz (Israel), as luzes na Europa brilhavam, até me ofuscavam um pouco. Decidi buscar em um novo local, mais escuro, mais isolado, mais selvagem. Cumprir Shabat ao lado da sinagoga é mais fácil mas, num ermo, precisa mais emuná (fé inabalável) e bitachon (confiança total). Olhei pra Amazônia, e lá pelas bandas do Brasil, quase Bolívia, bem próximo ao rio Abunã, vi uma velinha sendo acesa no meio da floresta. Era de cera de carnaúba com pavio de algodão. Uma jovem, baixinha e magrinha, com os olhos esbugalhados de emoção, acendia as velas do Shabat. Me aproximei e vi seu rosto, e nele escorria uma lágrima. De olhos fechados dizia a bênção e fazia seus pedidos. Vi claramente o

anjo recolhedor das lágrimas colher aquela lágrima que se transformou num brilhante. Ele me olhou e disse: “Essa vai pro cofrinho do Chefe.”

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preenchidos, seis meninos e duas meninas. Então falei: “E desse menino, posso ir pra família dele?” A voz respondeu: “Já tem duas meninas. Um terceiro filho vai depender da tefilá (oração, pedido) da mãe. Não é garantido. Quer arriscar?” Sem titubear, aceitei o risco. Poderia ficar sem cumprir minha missão por muito tempo. Nem sei se teria outra chance, caso eles ficassem somente com suas duas princesas. Mas resolvi arriscar. Estando apalavrado, vi o documento se formar, com a devida ressalva, e ser encaminhado num upload na nuvem. Me afastei com uma boa sensação. Vi o rosto de felicidade da jovem, Lili, como se tivesse

Percebi que ela orava pela sua família, por seu marido Isaac, que estava acamado, seu filho de dois anos, Israel, e um outro menino, de uns seis meses, Raphael, muito doente, com malária e um abscesso nas nádegas por uma tentativa de curar a malária. Vi seus olhos, azuis, muito puros, sua cabecinha redonda e não resisti. Perguntei: “Aquele que recebe o nome Daquele que cura, não será curado?” Atrás de mim ouvi a resposta: “Tens razão, ele será curado e terá uma vida longa e próspera”. Decidi na hora: “É aqui que quero estar, nesta família.” Porém a mesma voz me disse: “Aqui já estão todos os lugares 51


CRÔNICA

certeza de que suas orações foram atendidas. Vi seu Isaac melhorar de sua palidez, se levantar pra colocar seu paletó e preparar o kidush (bênção). E vi o menino, Raphael, que me olhou com os olhos mais ternos que já havia visto, esboçar um sorriso e um soluço de satisfação. Fui buscar nos registros de contratos de quem seria aquela destinada ao Raphael. Várias

candidatas, mas havia uma cujos olhos refletiam os dele, cujos cabelos negros e cacheados compensavam a carequinha futura. E cujo amor se encaixava e se multiplicava a

perder de vista. Traria o nome de sua avó, Donna, herdeiros de uma corrente de judeus do Marrocos, que lá chegaram depois da expulsão de Portugal e Espanha. Dias difíceis aqueles. Mas isso é outra história, fica pra uma outra vez. Continuando, Donna antes de descer já tinha personalidade. Falava com o Chefe sem entrar em fila, falava com respeito e amor, mas com determinação. Veio ao mundo como a filha caçula de Isaac Aarão, um talmid chacham (sábio estudioso), chazan (cantor litúrgico), ben Torah (seguidor da Torá) e um business man (homem de negócios). Casou com uma bat cohen (descendente de sacerdotes), já nascida na Amazônia, no Pará, pra lá de Santarém (onde tem uma rua em seu nome), depois de Buim, nas cercanias de Tucumatuba. Alfabetizada em casa, dona de uma caligrafia abençoada, aprendeu a nadar no rio Tapajós com sua prima Flora, uma descendente de Cohen e índia. Ordoenha, dona do ouro, dona da luz, um amor de pessoa. Não deixou as dificuldades da vida retirar sua paz, sua doçura, seu amor, e criou seus filhos “como e como”. Em especial sua caçula, Doninha, órfã de pai aos 15 anos, amparada pela mãe e por todos seus irmãos, cada um de seu jeito. Cresceu forte, confiante, sensível, atenta, viu, na janela de sua casa no Pará, ainda menina, cravado na madeira, um nome: Raphael. Olhava e se perguntava: quem será esse? Anos mais tarde, já no Rio de Janeiro, numa

52 SUPLEMENTO AMAZÔNIA JUDAICA No 9 - SETEMBRO 2021


num feriado nacional, Tiradentes, teve de desmarcar um cinema no domingo à noite para ir ao hospital da Aeronáutica na Barão de Itapagipe. Ainda sem saber se era menino ou menina, tempos antes do ultrassom, veio a surpresa e a resposta a suas preces: Um menino! Um menino! Gritou Ordoenha dentro da sala de parto. E Assim veio ao mundo esse que aqui vos fala. *Algumas tradições comparam a alma às rosas. Daí inclui outras flores entre as imagens selecionada para ilustrar a presente crônica, devido a diversidade da almas e das flores. Belezas distintas, umas mais complexas, outras mais leves e singelas

saída de um cinema no Largo do Machado, foi apresentada ao jovem tenente médico, Raphael Benchimol. Um encontro pra vida toda. Noivaram, casaram e tiveram suas duas princesas conforme estava escrito. Mas... Donna era decidida. Queria ter um menino. Raphael feliz com tudo que H (inicial de Hashem, “o Nome”, Deus) fez por ele, se dizia satisfeito e feliz, mas sua vida era fazer Donna feliz. E assim, com muita tefilá, muitos pedidos e “conversas” diretas com o Chefe, Donna conseguiu o que queria. Numa manhã de uma lua nova em abril,

**Sergio Benchimol é oftalmologista. Este é seu texto de estreia na literatura judaica nacional.

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CRÔNICA Sefarad Universo

MIGRAÇÃO

UM SHABAT DIFERENTE DOS OUTROS Elias Salgado

Era uma daquelas raras reuniões de família com Vidinha, já que reunir todos os filhos espalhados pelo mundo, há tempos que se tornara algo raríssimo

E

como nosso mano Eliezer, o amado Leléu, nunca estava naquelas reuniões, quase sempre se tornava o centro das memórias de Vidinha e também de suas saudades e, claro, a de todos nós. Na mais antiga foto que possuímos dele, Leléu está de pé, com seus cabelos encaracolados, penteados, provavelmente, com gel e com um topete, símbolo marcante daqueles anos, os 50. Solene, está vestido com sua calça curta estilo jardineira, impecavelmente engomada. Lindíssimo aquele menininho com, no máximo, 2 anos de vida. Impossível não morrer de amores por aquele filho. Dizia Vidinha: - Quando Caceri engravidou de seu segundo filho e sofreu graves complicações na gestação, ela temeu por sua vida e com razão, pois vieram a falecer, ela e seu bebê. Em seu triste leito de morte, me implorou que eu cuidasse de seu filhinho Eliezer. E foi o que fiz. Atendi a seu pedido e também de meu saudoso pai, e fui cuidar de meu sobrinho e, como consequência, casei com David, o pai de vocês. Por inúmeras vezes ouvi Vidinha

contar tal história, a de como meu irmão mais velho e, ao mesmo tempo, meu primo, viveu seus primeiros anos de vida: órfão de mãe e “renascido” por ela, sua tia-mãe. - Eliezer é como um filho pra mim. Eu o considero um de vocês e também meu herdeiro. E assim foi que Leléu cresceu entre nós, como um de nós. Vidinha o tratou com o mesmo carinho que dedicou aos seus quatro filhos, eu entre eles. E assim fez papai, com seu amor muito próprio e sua rigidez de educador à antiga. Não sei porque, mas a imagem e a ideia que faço do Leléu como adolescente e depois jovem rapaz, era de alguém muito fechado. Por

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muito tempo, pensei assim. Mais tarde, passei a acreditar que eu o via deste jeito por conta da nossa diferença de idade – 5 anos – e que, portanto, quando eu me tornei um adolescente, ela já era um jovem de seus 18 anos. Mas não creio que fosse apenas isso. Parece que havia uma certa melancolia em seu olhar e uma sisuda postura. Eu passei a vê-lo como alguém que crescera rápido demais e que, ainda jovem, já parecia ser um velho. Quando voltamos para Manaus com papai, em 1970, ele estudava no ensino médio e trabalhava na empresa em que nosso tio Jaime, irmão de papai, era sócio, a Phillipe Daou. Eu, sempre que descia ao centro


da cidade para andar pelo comércio, passava pela loja de máquinas de escrever Olympia, na qual ele trabalhava como vendedor. Eu ficava orgulhoso por ver meu irmão mais velho, ali na porta da loja, com aquela sua postura aparentemente solene e séria. Após um dia de trabalho ele, devidamente uniformizado, frequentava o Colégio Amazonense Pedro II. Era um aluno brilhante, esforçado e muito responsável para a sua idade. Até hoje sou pego de surpresa com seu vasto conhecimento e inteligência sutil e ímpar. A primeira vez que me dei conta disso, foi numa das diversas tardes de sexta-feira, quando ele voltava do centro da cidade, muitas vezes apressado, pois papai já o aguardava, como sempre, ansiosamente, e o convocava para o grande ato que, em nossa casa, marcava a proximidade do Shabat: o barbear dos dois homens adultos da família.

Ali, de frente para um espelho, eram acompanhados atentamente por mim, que os invejava e já tentava ensaiar os primeiros passos para tentar uma avant première naquele ritual. Ele me parecia mágico, que eu entendia como a porta de entrada triunfal no verdadeiro mundo dos homens. - Você, como sempre, atrasado, seu moleque. Vamos, que o Shabat já está entrando e temos que nos preparar para ir à esnoga. Preparavam seus aparelhos de barbear, munindo-os com novas e afiadas lâminas – aqueles ainda não eram tempos das coisas e dos aparelhos descartáveis. A mim, papai já começava a mostrar sua técnica apurada de barbear: - Você, seu molequinho, fique atento para aprender como se faz uma barba macia e correta. E eu o acompanhava, concentrado – “focado”, como dizemos hoje em dia – ao mesmo tempo que mantinha os ouvidos atentos na conversa deles: - O que está achando destas novas lâminas, Eliezer, gostou? - Sim, parecem muito boas, papai. São inglesas, não? - Claro! São da mesma marca que seu tio Jaime usa. Foi ele quem me presenteou e você sabe como seu tio entende destas coisas... - É, mas o melhor aço do mundo é mesmo o alemão, sabe? Eles o produzem com alta tecnologia. Hum! Vai já-já dar discussão, pensei com meus botões. Meu velho possuía uma desagradável habilidade: a de não aceitar opiniões diferentes da sua.

Mas ainda bem que só pensei e não disse nada. Do contrário, teria que “engolir a língua”, que era o que nos dizia quando não aceitava nossa opinião e tentava a todo custo impor a sua. O que veio em seguida não poderia ser interpretado diferente, se não como um verdadeiro milagre. É que até onde minha memória alcança, naquele Erev Shabat, diferente de todos os outros, algo diferente se deu, que deixou a mim e ao Leléu estupefatos. - Mas ora veja, seu moleque, vejo que você anda estudando muito. Assim você se tornará um grande hibri, como o seu avô. - Obrigado, papai. - É, mas anda logo, se não chegaremos atrasados para o Kabalat Shabat. Naquele fim de tarde subimos, os três, nossa rua rumo à nossa amada esnoga, como três velhos amigos. Eu até vi um sorriso no rosto de papai e uma mudança no olhar do meu irmão, era como se aquela conhecida melancolia o tivesse abandonado. Se aquele Shabat se repetiria outra vez, daquela mesma maneira tão especial, nenhum de nós sabia. Mas uma coisa eu sei: Toda a vez que o Shabat vai chegando, eu de novo me vejo subindo aquela rua da minha infância, com o mesmo sentimento. Mas com uma enorme diferença: Hoje eu sei que não éramos apenas três. É que sobre nós pairava, a nos guiar, a shechiná – a presença divina.

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Desejamos a todo Am Israel

SHANÁ TOVÁ UMEVORECHET Sergio Benchimol e família

SHANÁ TOVÁ A toda a querida Kehilá de Manaus, são os votos de Jaime, Anne e José Benchimol, e de Rebeca, Joshua, Benjamin e Daniel Neman.


LANÇAMENTO EM BREVE A Ed. Amazônia Judaica lançará neste semestre, livro de Iana Barcessat Pinto. Nele a autora registra passagens importantes da história, da memória, dos costumes e tradições da comunidade sefardimarroquina de Belém.

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Sefarad Universo

MIGRAÇÃO

COLETÂNEA COMEMORATIVA DE 20 ANOS Para festejar e registrar a passagem dos 20 anos de criação do Amazônia Judaica, será lançada em Pessach 2022, uma coletânea de artigos, ensaios, resenhas, contos e crônicas sobre o judaísmo na Amazônia e América do Sul, com participação de autores e pesquisadores de vários países. e Cultura ória, Tradição

História, Mem

Organização: e Regina Igel Elias Salgado

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