Antenado #22

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Jornal Laboratório do curso de Jornalismo - Centro Universitário Módulo

Ano 7 - edição 22 | Segundo Semestre 2016 www.modulo.edu.br/antenado

rosas marcadas

Especial sobre a Violência Contra a Mulher

Todos os dias mulheres são vítimas da violência e até perdem a vida, simplesmente por serem quem são. No mês de novembro é lembrado o Dia Internacional da Não Violência Contra a Mulher e o jornal Antenado aborda as várias faces desse tipo de violência que precisa ser enfrentada.


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editorial>>>

Precisamos falar sobre a Violência Contra a Mulher

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etade dos relatos ao Ligue 180 tratou de violência física. Três em cada cinco mulheres jovens já sofreram agressões em relacionamentos. Além disso, 56% dos homens admitem que já cometeram alguma forma de abuso. Apesar de serem números, atrás deles estão milhares de pessoas: de um lado as que sofrem violência, muitas vezes caladas; do outro, agressores. Muitos desses casos são apenas reflexo da sociedade e

o modo como a mesma tem se desenvol- tenado, que reúne matérias, depoimentos vido ao longo do tempo. e histórias que mostram perfeitamente o Contra fatos, não existem argumen- porquê de o Brasil estar no quinto lutos, por isso, gar do ranking de precisamos falar Três em cada cinco mulheres países com a maior sobre violência jovens já sofreram agressões em taxa de feminicídio contra a mulher. do mundo, segundo relacionamentos Com esse ina ONU. tuito, os alunos A edição tamdo 6º semestre do curso de jornalismo bém apresenta uma linha do tempo que do Centro Universitário Módulo, prepa- mostra os avanços e as conquistas da luta raram uma edição especial do Jornal An- das mulheres através dos anos, trazendo

luz a uma importante questão social. O principal objetivo é propor uma reflexão, para que você que está lendo esse material, possa não só refletir, mas agir para coibir esse tipo de crime, que não deveria existir na sociedade. Homens, mulheres, crianças, jovens, idosos, brancos, amarelos, negros, são todos, antes de tudo, seres humanos, livres e com direitos iguais, que devem ser respeitados e preservados. Boa leitura!

linha do tempo>>> O Antenado é um Jornal Laboratório produzido por alunos do curso de Jornalismo do Centro Universitário Módulo Coordenador do Curso: Prof. Dr. Gerson Moreira Lima Professor Orientador: Prof. Ricardo Hiar (Jornalista Responsável: MTB 47857 ) Repórteres: Ana Carolina Assunção da Silva, Bruna Carla Rodrigues de Oliveira, Conrado Balaut, Izamara Compertino Valentim, Luciana Gomes Máximo Torres, Luiz Henrique Brener, Luiza Ribeiro Manson, Matheus Almeida, Patricia Danelli Santos Giorgetto, Valéria Andrade Santos. Foto Capa: Matheus de Freitas Almeida Projeto Gráfico: Prof. Ms. Paulo Rogério de Arruda - MTB 36577 Diagramação: Luiza Ribeiro Marson/ Matheus de Freitas Almeida/ Prof. Paulo Arruda Tiragem: 2 mil exemplares (Gráfica Lance!) Distribuição: Dentro da Universidade, em bancas de jornais de Caraguatatuba e de outras cidades do Litoral Norte, além de pontos estratégicos de Caraguá. CENTRO UNIVERSITÁRIO MÓDULO – CAMPUS MARTIM DE SÁ Av. Mal. Castelo Branco, s/nº CEP 11.662-700 Caraguatatuba/SP. Tel. (12) 3897-2008 www.modulo.edu.br/antenado / jornalantenado@modulo.edu.br

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1824

Primeira Lei de Educação da Mulher Surgiram escolas destinadas à educação da mulher, mas ainda voltadas a trabalhos manuais, domésticos, cânticos e ensino brasileiro de instrução primária. Mantinha-se a proibição da frequência de mulheres em escolas masculinas.

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Anos 40

Reconhecida a igualdade de gêneros – A igualdade é reconhecida através da Carta das Nações Unidas.

07

02

De 1890 a 1940

Legítima defesa de honra - O Artigo 27 da antiga Constituição previa que o homem que matasse sua esposa se safaria da cadeia caso alegasse o fato como legítima defesa, já que na lei havia uma brecha para quem cometesse um assassinato movido pela emoção.

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Aprovada pela Organização Internacional do Trabalho - A igualdade de remuneração entre trabalho masculino e feminino.

08

Anos 30

A mulher tem direito a voto – Getúlio Vargas promulga o novo Código Eleitoral que garante o voto feminino nas eleições.

Anos 50

Anos 70 e 80

Lei do Divórcio – A Lei do Divórcio, além de introduzir o Divórcio no Direito Brasileiro, também alterou a terminologia de desquite para separação judicial. Anos 80 - É criada a primeira Delegacia Especializada da Mulher em São Paulo.

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Anos 90

Discussão sobre violência de gênero - Na Conferência Mundial de Direitos Humanos - Direitos das mulheres e a questão da violência contra o gênero recebem destaque, gerando assim a declaração sobre a eliminação da violência contra a mulher.

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Anos 60

Estatuto da Mulher Casada – Com a Lei 6.121 em 1962, a mulher passa a não precisar da autorização do marido para trabalhar fora. Ela passa então a contribuir financeiramente dentro de casa e o seu cônjuge não pode mais tomar os bens adquiridos por ela.

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Anos 2000

Sancionada a Lei Maria da Penha – A Lei preza por um aumento no rigor nas punições das agressões contra mulher.


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artigo>>>

T

oda vez que se abre uma discussão sobre violência contra a mulher surge algum comentário que coloca a vítima como culpada da agressão. Quem nunca ouviu falar de “mulher de malandro”? Tal expressão serve para definir aquela mulher que decide manter um relacionamento no qual é agredida pelo seu parceiro. Embora seja um tanto complexo e difícil de aceitar que uma pessoa resolva ficar mesmo com todo sofrimento, será que é plausível mesmo assim o argumento de que “ela gosta de apanhar”? Desde pequenas somos ensinadas a nos calar diante da violência por parte dos nossos coleguinhas do sexo masculino. Lembro-me bem de uma cena que aconteceu na minha infância quando um

Não será uma lei que melhorará a situação das mulheres, mas sim, o nosso modo de agir e pensar colega me chamou de “baleia” por eu ser um pouco acima do peso; Reclamei para a professora, ela apenas disse que ele gostava de mim e não sabia como se expressar. Isso ecoou na minha mente durante anos de minha vida e imagino que na de outras mulheres também, porque pode parecer algo bobo, só que a partir de situações como essas nós aprendemos que amor e maltrato andam juntos. Criadas num universo onde existem príncipes encantados superprotetores que salvam princesas belas e indefesas, crescemos procurando por essa proteção em qualquer homem. Veja bem, não há nada de errado em querer se sentir prote-

Elas sempre voltam (ou não) gida, só que existe uma diferença entre ter sua liberdade podada e ter proteção. É por essa confusão que algumas mulheres escolhem permanecer em relacionamentos abusivos, pois muitas delas depois de anos convivendo com um parceiro que tirou a autonomia para fazer até pequenas escolhas, não conseguem mais se imaginar sozinhas. E a sociedade machista impõe que precisamos de um homem para sermos felizes e completas, mesmo parecendo um pensamento antiquado. Muitas vezes além da dependência emocional, acontece também a dependência financeira. Algumas mulheres depois de anos fora do mercado de trabalho por vontade própria ou até mesmo por proibição de seus parceiros, acabam sem saber o que fazer com as finanças que não eram antes de sua responsabilidade. Dentro do senso comum é muito fácil a gente pensar “é só trabalhar”, mas e nos casos em que as mulheres não têm qualquer formação ou nunca fizeram nada além do que cuidar dos filhos e da casa? Eis aí mais um fator para a permanência mesmo nos dias atuais. Além dessa série de fatores, muitas mulheres se sentem presas em um relacionamento abusivo por causa dos filhos. Talvez esse seja o fato mais complicado de se lidar, porque elas titubeiam entre continuar ali com os filhos ou ir embora e acabar com o sofrimento. Mesmo com a grande conquista da Lei Maria da Penha em 2006, pouca coisa mudou e o motivo principal é o modo como fomos todos criados dentro da so-

ciedade machista. Não será uma lei que melhorará a situação das mulheres, mas sim o nosso modo de agir e pensar. Por trás de uma mulher que sempre volta para os seus parceiros, existe uma mulher emocionalmente ferida, educada para aguentar calada. Valéria Andrade

Aluna do 6º semestre de Jornalismo.

Pequeno Dicionário Feminicídio – Acontece quando uma mulher é morta por ser mulher. Normalmente, o que leva alguém a cometer esse crime é o ódio, desprezo, sentir que não exerce mais controle sobre a companheira.

Gaslighting - Forma de abuso psicológico, no qual o abusador faz com que a vítima duvide de sua própria memória, percepção e sanidade mental. Stalking – Quando o uma pessoa

passa a seguir ou assediar a vítima seja no mundo virtual ou fora dele. Coação sexual – Quando um dos parceiros tenta convencer o outro a praticar o sexo. Pode ser oferecendo bebidas para a companheira ficar mais

“soltinha”, fazendo chantagem emocional, ou tentando convencê-la porque deu algum presente a ela. Sexting – Pressão para mandar fotos íntimas ou mensagens de conteúdo sexual.


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Cicatrizes no corpo e na alma “Tinha medo diz vítima de

Mulher sofreu tentativa de homicídio pelo ex-companheiro e hoje carrega consigo marcas que não a deixam esquecer de um passado violento

Apesar de poucos casos registrad Carol Assunção

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Após violência, mulheres têm dificuldades em recomeçar a vida.

Bruna Carla Rodrigues

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inguém imaginava que ele teria uma atitude assim, porque sempre foi uma pessoa calma. Quem se exaltava durante as discussões era eu”. Com essa frase, Isa Maria Rodrigues, 37 anos, começa a relembrar o episódio em que se viu entre a vida e a morte, após ser vítima de violência doméstica. O caso aconteceu no dia 20 de setembro de 2007, quando o ex-marido, Rogério Gaspar, tentou matá-la por não aceitar o fim do relacionamento. Segundo contou, Rogério nunca teve uma atitude violenta e era bom pai. O marido costumava consumir com frequência bebidas alcoólicas, mas quando exagerava, dormia ou ficava fora de casa. “Ele chegava a ficar três dias fora e nunca me importei com isso”, afirmou. Mas a relação se desgastou e a esposa resolveu dar um fim ao relaciona-

mento. Gaspar saiu de casa, mas voltava com frequência ao imóvel para visitar os filhos. Numa dessas visitas, enquanto conversava com a ex-mulher, Rogério começou a insistir para reatar o casamento. Mesmo com as recusas, não demons-

Rogério enfiou um espeto de churraso na minha barriga trou alteração no seu comportamento e se manteve aparentemente calmo. Porém, bastou um momento de distração de Isa Maria para ele agir. “Inesperadamente eu me virei e o Rogerio enfiou um espeto de churrasco na minha barriga”, contou a mulher, em meio a lagrimas. Ela contou que sua primeira atitude na hora foi retirar o espeto que a perfurara e correr. “Não saberia o que poderia acontecer se continuasse ali, fui socorri-

da por amigos e encaminhada ao hospital”, completou. O espeto perfurou diversos órgãos, parando perto de sua coluna. Durante o trajeto até o hospital, Isa Maria disse que só pensava em seus filhos. Depois que passou pela cirurgia o médico que a atendeu disse que ela só sobreviveu por sorte. Conforme explicou, a mulher não poderia ter retirado o espeto do corpo, ação esta que comprometeu ainda mais seu estado de saúde. Depois de uma semana do ocorrido ela registrou a denúncia na Delegacia da Mulher de Ubatuba. Como não houve flagrante o processo está em andamento. Rogerio foi intimado, mas responde em liberdade até hoje. Ela, em contrapartida, carrega as cicatrizes da agressão, ainda sente dores provenientes do ato criminoso e tem medo. De acordo com seu relato, esse episódio abalou completamente sua vida, tanto até hoje não conseguiu manter outros relacionamentos desde então.

om pouco mais de 32 mil habitantes, Ilhabela possui, segundo a Polícia Militar, sete ocorrências de violência doméstica no ano de 2015 e, até agosto de 2016, outros três. Maria Silva está nesta estatística do município: ela foi agredida pelo seu ex-marido, Paulo Santos. Hoje com 30 anos, voltou à cidade depois de passar seis meses na Europa tratando-se de uma depressão. “Ele chegou na minha vida como um raio de sol”, conta a vítima que depois de iniciar um relacionamento com o acusado descobriu que ele era traficante. Por conta disso, resolveu terminar o relacionamento e foi para São Paulo, onde engatou uma nova união que durou três anos. No entanto, não esqueceu o ex-namorado. Foram anos sem contato, até que eles voltaram a conversar e acabaram reatando em 2009. Assim que terminou a faculdade de Psicologia em 2011, Maria estava grávida e decidiu voltar para Ilhabela para morar com o companheiro e pai da criança. As coisas começaram a piorar para Maria após o nascimento da criança. O agressor não ficava mais em casa, chegava sempre durante as madrugadas, brigava na rua e, quando retornava, fazia barulho e não a deixava dormir, além furtar objetos pessoais da vítima. “Nunca acreditei que pudesse ser ele”, comentou. Após mais um dia que passou na rua, o acusado chegou em casa transtornado, quebrando objetos da


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Mulher sofre aborto o que ele me matasse”, após ser agredida e violência doméstica pelo marido

dos, Ilhabela também sofre com a violência contra as mulheres casa e gritando com a vítima, até que pegou um isqueiro e começou a colocar fogo em um dos colchões. Maria conseguiu sair com o filho e chamou a Polícia Militar que não retirou o acusado por não haver um processo. “Tive que ouvir que enquanto não houvesse um processo, seria a minha palavra contra a dele”, lembrou. Cinco anos correram e a situação continuava piorando. O acusado, sob efeito de drogas e álcool, permaneceu fazendo as mesmas coisas, sem nunca a agredir fisicamente. Foi assim até a última briga. “Eu precisava dar fim nisto, mas tinha medo que ele perdesse a cabeça e me matasse”. Enquanto voltavam de carro após a comemoração do seu aniversário de 30 anos, Maria pediu que o ex-marido fizesse silêncio para que ela recebesse uma ligação. Ele correspondeu ao pedido com três socos no rosto. O agressor saiu correndo do veículo e Maria dirigiuse imediatamente à PM, onde registrou o Boletim de Ocorrência. Os policiais a acompanharam até sua casa, onde o acusado a aguardava com uma faca na cintura. Ele, que já estava com vários cortes na perna por ter quebrado portas de vidro, foi preso em flagrante. Apesar de preso, o acusado foi solto no dia seguinte e tentou por várias vezes reatar o relacionamento com Maria: “tive sorte, depois disso ele tentou voltar comigo, achava que eu perdoaria como tantas outras vezes”, afirma. Desde o acontecido passaram-se oito meses e o processo ainda não foi finalizado.

(O nome da vítima e do agressor foram alterados por motivo de preservação da fonte).

A história de Damares ocorreu há 25 anos, quando a Lei Maria da Penha sequer existia

havia uma construção com muitos homens trabalhando. Enquanto a vítima não podia sair de casa, nem ao menos para lavar as roupas, elas mofavam. Em um feriado, os trabalhadores da obra estavam de folga e Damares pulou a janela do seu quarto para lavá-las. Ao chegar, seu ex-companheiro a viu fora de casa e usou os mesmos fios de cobre que usava para pendurar as roupas, para agredi-la. “Depois de tanto bater, ele me mandou tomar um banho e, no chuveiro, apertava os meus seios, batia no meu rosto e puxava meus cabelos”, relata. Após mais essa surra, Damares sofreu aborto de uma gravidez de três meses. Entre torturas de diversas formas: física, psicológica e moral, ela ainda teve dois filhos com o agressor, hoje com 25 e 23 anos. Damares relata que tudo passou a mudar na sua vida quando o acusado começou a usar as crianças contra ela, Em mais de 70% dos casos, a violência foi cometida por homens com quem a vítima possuía vínculo afetivo ensinando-as a agredir verbalmente. “Eu estava doente: era estressada, chorava oi covarde, cruel e equivaleu como a primeira dentre as muito, não era feliz, não possuía objetivos e humilhante”. Esse é o muitas agressões físicas que a vítima nem perspectivas na vida”, desabafa. desabafo de Damares de sofreu ao longo dos anos de convivência “Um dia, depois de mais uma surra, Oliveira Pinto, que passou cerca de com seu ex-companheiro, que consumia peguei umas roupas, coloquei na mala e cinco anos, dos 46 de vida que tem álcool com frequência. saí arrastando meus dois filhos para nunca hoje, sofrendo violência doméstica “Eu me separava e voltava, porque mais voltar”. O acusado nunca foi preso, pelo seu ex-marido. ele demonstrava arrependimento e fazia não respondeu a qualquer processo e O fato aconteceu há 25 anos, novas juras”, falou a vítima. Além da também não ajudou na criação dos filhos, quando ainda não existia qualquer violência física que sofria, Damares que na época da separação tinham três e lei de proteção às mulheres, como a também era mantida em cárcere dois anos, respectivamente. Maria da Penha. privado, onde apenas seu ex-marido Damares recebeu ajuda de sua família Damares casou aos 18 anos e, logo podia abrir a porta de casa quando e passou a morar em uma pequena casa no terceiro dia após as cerimônias chegava do trabalho. A desculpa para feita pelo pai, com a missão de criar dois civil e religiosa, foi agredida. Esta isso era que ao lado de sua residência filhos sozinha. (C.A.)

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“De repente eu me vi sem nada” conta filha de vítima da violência doméstica Não só as vítimas sofrem o impacto da violência, os filhos também são afetados em grande parte dos casos medo do que poderia acontecer. No dia do crime, a adolescente não queria ir à escola. Ela acordou não se sentindo bem e pensou em ficar em os 15 anos, a vida de Bárbara mu- casa, mas acabou seguindo para os esdou do dia para a noite: ela rece- tudos por insistência do pai. beu a notícia de que a mãe havia “Fui buscar um remédio com a misido assassinada pelo pai. “Eu não en- nha mãe, fiquei conversando um pouco tendi o que ele fez, até hoje é uma in- com ela. Eu disse que a amava, me desterrogação”. pedi e segui para a escola”. É assim que Mesmo tendo acompanhado alguns a vendedora lembra do último contato episódios em que a mãe foi vítima de que teve com a mãe. violência doméstica, ela não imaginava Depois da aula, diferentemente do que a história teria esse desfecho. “De que costumava acontecer, o pai de uma repente eu me vi sem nada, sem famí- amiga da escola as esperava na saída e lia”. as levou para tomar açaí. Após isso ele Segundo o relato da vendedora, hoje, convenceu a jovem a não voltar para aos 22 anos, casada e casa. Bárbara recebeu esperando o primeiro a notícia através da filho, os pais tinham De repente eu me mãe de sua colega: sua uma relação que ela mãe havia sido assasvi sem nada, sem família considerava tradiciosinada a facadas dennal. “Antes sempre tro de casa, pelo seu teve conversa e diápróprio pai, que tentou logo. A amizade entre se matar após cometer os dois era muito forte e eu nunca havia o crime. escutado discussões fortes”, comentou. Apesar disso, essa situação mudou A consequência quando a família se deslocou de São A partir da morte da mãe, BárbaPaulo para Caraguatatuba. De acordo ra passou a viver com seu irmão mais com a jovem, a amizade e o diálogo velho que já era casado. Ela entrou em do casal foram sumindo devido a uma depressão e não confiava em mais ninsimples decisão da esposa, de voltar a guém. “Eu não tinha um sonho, vivia trabalhar fora. cada dia por viver”, diz a jovem, que As brigas começaram a ser mais chegou a receber acompanhamento psiconstantes e por pequenas coisas. A re- cológico. lação foi sendo abalada e logo a mulher Esse quadro só foi revertido cerca pensou em pedir o divórcio. Ao contar a de dois anos depois, quando resolveu decisão para a filha e o marido, ele não participar de um retiro espiritual. “Não aceitou e prometeu mudar. era justo eu também estragar a minha No entanto, a história começou a se vida por alguém que estragou a dela”. agravar e a violência aumentou. “No Ela diz que aceitou ajuda e passou a ver meio da noite ela pegou meu pai em pé sua vida com outros olhos depois dessa com uma faca na mão”, conta Bárbara, experiência no retiro, momento em que ao relembrar de um dos episódios vivi- toda esperança voltou. dos pela mãe. Na ocasião, a mulher precisou se esconder no quarto da filha com O perdão

Izamara Compertino Luciana Máximo

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A violência doméstica vai além da agressão física.

Hoje, passados sete anos do crime, ela afirma que conseguiu perdoar o pai e que está o conhecendo novamente. “Ele vai conhecendo um pouco de mim, eu vou conhecendo um pouco dele e a gente está aí nessa amizade”. Além de seu irmão que também o perdoou, ela conta que buscam lembrar das coisas boas que os pais passaram para eles e não vivem do passado. A jovem conta que busca focar no que seus pais lhe ensinaram, e o que pretende repassar ao filho. “Apesar do que aconteceu, a educação que os meus pais me deram não foi roubada de mim”, concluiu.


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Estupro e as marcas de uma violência que vão além das agressões físicas Após sofrer abuso de professor, vítima carrega a responsabilidade da violência como se fosse sua Patricia Danelli

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Em alguns casos a violência começa na infância

xistem marcas que nem mesmo o tempo é capaz de cicatrizar. Falar de abuso também não é uma tarefa fácil, ainda mais quando a situação ocorre na infância e foi praticada por uma pessoa que deveria cuidar, passar segurança e ensinamentos para a vida. Mas esse problema que atinge muitas mulheres no mundo faz parte da história de Karoline Santos (nome fictício), de 27 anos. Ela lembra com muito pesar o abuso que sofreu de um professor, quando ainda tinha 11 anos. Ela diz que era uma criança “boba e inocente” e que em determinado dia, foi a um passeio de escuna promovido pela escola. O grupo foi para uma ilha e, chegando ao local, todos desceram do barco e foram brincar na água. “Como não sei nadar, fiquei sozinha no barco. Foi então, que o professor, também conhecido de minha família, disse que eu poderia ir brincar de pular com os colegas, pois ele iria me proteger”, conta. Ele a levou em um barco para pular na água com a turma. “Quando pulei, ele me segurou. Já na água, ele orientou as meninas que boiassem para relaxarem. Nesse momento, ele também sugeriu que eu fizesse o mesmo e respondi que não sabia e que não ia fazer nada daquilo. Ele me segurou e acabou por abusar de mim. Mesmo não sabendo o que estava acontecendo, senti que havia algo errado. De imediato, me afastei dele e fui brincar na areia da praia com os colegas de classe. Não quis mais chegar perto dele”, relembrou.

“Até hoje me sinto culpada, pensando como eu pude deixar isso acontecer”

Depois do episódio, Karolina conversou sobre o ocorrido com uma amiga na hora do intervalo, e o relato caiu nos

ouvidos de uma professora, que passou o caso para a diretoria. “Dias depois, a minha história estava na boca de toda a escola”. Segundo diz, foi um período difícil. “As pessoas que não gostavam de mim, ficaram me julgando até eu terminar a es cola. Falaram pra mim que eu era responsável por tudo isso, que não sabia me defender. Até hoje me sinto culpada, pensando como eu pude deixar isso acontecer”, contou. O caso foi levado à justiça, mas de nada adiantou. A jovem vítima teve que dar o depoimento ao lado do professor, o que a deixou aterrorizada. O pouco que falou foi baseado no que outras vítimas também contaram sobre ele. “Meus pais ficaram revoltados na época, pois ele era amigo da família e vivia em casa. Meu pai se sentiu impotente e minha mãe até hoje tem uma proteção extrema comigo”, disse.

“É uma dor eterna”

Mesmo passados mais de dez anos do episódio, a jovem diz que ainda sofre com depressão e problemas com a autoestima. “É uma dor eterna”. Para Karolina, muitas pessoas a julgaram desde o crime. Ela relatou que inúmeras vezes teve que ouvir que se estivesse em casa, nada disso teria acontecido. “Isso não tem lógica alguma, pois estava sob a proteção da escola e isso não impediu que a violência acontecesse”. A fim de amenizar a dor, Karolina buscou inspiração na literatura. Passou a ler livros de superação, sobre histórias que registram a vida de personagens que sofreram e no fim deram a volta por cima. Atualmente, Karol ainda faz tratamento com psicólogo. “Encontrei ajuda na terapia. Também coloquei na minha vida que ajudar outras pessoas é um modo de eu me sentir melhor”, conclui.



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