A BIGORNA

Page 16

seminais

mon + tar ao vivo

Montar ao vivo Desde que trabalho no oficina como montador venho aprendendo e praticando uma ação específica: concentração. Isso geralmente não é um pré-requisito para a prática dentro de uma ilha de edição, a atenção sim, mas a concentração nem tanto: pode-se discutir no meio das cenas ou parar para ver outra imagem, fazer outra operação – é só voltar onde estávamos e rever o take, o corte, com atenção. Ao vivo, como na vida, não existe controle do tempo. Tudo passa e é nosso dever acompanhar. Como montador, preciso manter o olho focado, preciso, e como diria Walter Murch, só piscar na hora do corte. A prática talvez deve ser rotineira para um editor de partidas de futebol, pois são muito mais câmeras e nunca se sabe para onde a bola vai. Entre as atividades humanas que se assemelham posso citar dirigir em estradas. Quem já viajou conduzindo um automóvel com outras pessoas dentro sabe o que estou querendo dizer: nossa concentração deve ser indefectível, não podemos tirar o olho da rota, todos os movimentos são controlados e um erro pode ser fatal para si e os outros. Outra prática a ser comparada poderia ser o tiro ao alvo móvel, ou a caça: um atirador precisa olhar atentamente, segurando sua mira, suspendendo suas ações até o momento de agir, apertar o gatilho - ou no meu caso, na ilha, a tecla enter. A dispersão é nosso principal inimigo, nos faz perder a noção de onde a bola foi parar entre um toque ou outro, ou simplesmente seguir pela tangente numa curva perigosa. Traduzo tais metáforas no teatro como o toque de bola sendo o diálogo entre os atores, e as curvas as mudanças espaciais. Já me ocorreu de perder dois segundos e me deparar com o telão mostrando um fundo vazio, pois o ator havia se retirado e por alguma distração interna (operações necessárias dentro da própria ilha ou projeção) ou externa (alguém me perguntando alguma coisa na cabine). É um erro grave. Para quem assiste a transmissão ao vivo, um espaço vazio é um corte na dramaturgia, uma desconstrução da catarse da pior forma possível – através do descuido e não pela escolha estética. Atualmente trabalhamos com duas câmeras no teatro, dois globos oculares por meio dos quais eu enxergo a peça. Preciso ter consciência de ambos, como um camaleão que pode mexer cada olho independentemente. Caso fossem mais câmeras, como já ocorreu no teatro de serem até oito, a operação se torna infinitamente mais complexa. Gosto de pensar que somos um polvo, um só organismo consciente de tudo que pre16 A BIGORNA julho 2017

cisa fazer para conseguir o que almeja. Em alguns momentos conseguimos atingir essa plenitude, são poucos, mas quando ocorrem não passam despercebidos, tanto por nós da equipe, que sentimos imediatamente uma reverberação transpessoal de sucesso (parecida com o jazz quando um momento único surge entre os músicos), quanto pelos outros presentes. Dessa forma, em contato com o devir da peça, criamos então nosso roteiro - quando percebemos que fizemos algo que se tornou um filme - consolidamos tais ações e buscamos reconstruí-las a cada espetáculo, dentro da limitação chamada realidade, pois como as águas de um rio, nossas rito-peças nunca são as mesmas.

Reconsiderando o paralelo ao jazz com respeito a todo o tyaso, precisamos estar sempre afinados. Existe uma partitura, porém essa é mutável, e todos precisam estar conscientes do caminho que cada mudança toma, para que individualmente possamos seguir unidos. Somos, ou precisamos ser, uma grande revoada de pássaros voando juntos, ou um imenso cardume de sardinhas: a cada instante algum integrante assume a liderança, e logo a cede para que outro ocupe a posição – o importante é estarmos conectados como um grande sistema, para que possamos, junto com os presentes que vieram estar conosco, voar juntos em uma intensa e profunda harmonia. PEDRO SALIM


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.