Revista opinião jurídica 13

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ISSN 1806-0420

Ano IX - n. 13 2011


REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

R. Opin. Jur.

Fortaleza

v. 9

n. 13

p.1-438

jan./dez. 2011


Ficha Catalográfica Opinião Jurídica – Revista do Curso de Direito da Faculdade Christus - n. 13, ano IX, 2011 © Faculdade Christus, 2011 Opinião Jurídica - [n. 13] – Fortaleza: – Faculdade Christus. [2011]v. I. Direito CDD : 340 Dados internacionais de catalogação na publicação (CIP).

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REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

Fortaleza, 2011 R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.1-438, jan./dez. 2011


Opinião Jurídica Revista do Curso de Direito da Faculdade Christus n. 13, ano 09, 2011 Diretor Prof. M. Sc. Roberto de Carvalho Rocha Mantenedor Estevão de Carvalho Rocha Coordenadora-Geral do Curso de Direito Profa. M. Sc. Gabrielle Bezerra Sales Coordenadora de Pesquisa e Monografia do Curso de Direito Profa. M. Sc. Gretha Leite Editora-Responsável pela Revista Opinião Jurídica Profa. Dra. Fayga Silveira Bedê Comissão Editorial Dra. Cláudia Sousa Leitão – (UECE) Dr. Clóvis Gorczevski – (UNISC-RS) Dra. Danielle Annoni – (UFSC) Dr. Everton das Neves Gonçalves – (UFSC) Dr. Etienne Picard – (PARIS I – SORBONNE) Dra. Fayga Silveira Bedê (FCHRISTUS-CE) Msc. Fernanda Busanello Ferreira – (UNIBRASIL) Dr. Friedrich Müller – (UNIVERSIDADE DE HEIDELBERG/ALEMANHA) Msc. Gabrielle Bezerra Sales – (FCHRISTUS-CE) Msc. Germana Parente Neiva Belchior – (FCHRISTUS-CE) Msc. Gretha Leite Maia (FCHRISTUS-CE) Dr. Horácio Wanderlei Rodrigues- (UFSC) Msc. Isaac Costa Reis (INEP/MEC - PE) Dra. Joana Stelzer – (UFSC) Dr. João Luís Nogueira Matias – (UFC) Dr. João Maurício Adeodato – (UFPE) Msc. Maurício Timm do Valle – (ABDCONST/UNICURITIBA) Dr. Octávio Campos Fischer (UNIBRASIL/PR E IDP/DF) Dr. Paulo Bonavides – (UFC) Dr. Rafael Santos de Oliveira - (UFSM-RS) Dr. Roberto Bueno Pinto – (UFU-MG) Msc. Roberto de Carvalho Rocha – (FCHRISTUS-CE) Dr. Roberto Correia da Silva Gomes Caldas – (PUC-SP) Dr. Roberto da Silva Fragale Filho – (UFF-RJ) Msc. Tércio Aragão Brilhante - (FCHRISTUS-CE) Msc. Vera Lucia da Silva – (CNPQ/PPGD/UFSC) Dr. Willis Santiago Guerra Filho – (UNIRIO) Bibliotecária Tusnelda Maria Barbosa Capa Ivina Lima Verde Coordenação de Design John Barros Programação Visual / Diagramação Juscelino Guilherme Correspondência Faculdade Christus Coordenação-Geral do Curso de Direito Avenida Dom Luís, 911 – 5º andar Aldeota – CEP 60.160-230 Fortaleza – Ceará Telefone: 85 3461.2020 e-mail: revistaopiniaojuridica@gmail.com Impressão Gráfica e Editora LCR Ltda. Rua Israel Bezerra, 633 - Dionísio Torres CEP 60.135-460 - Fortaleza – Ceará Telefone: 85 3105.7900 - Fax: 85 3272.6069 www.graficalcr.com.br – atendimento01@graficalcr.com.br Tiragem mínima 200 exemplares R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.1-438, jan./dez. 2011


Apresentação Para ultimar os trabalhos de fechamento dessa edição, contamos com o auxílio luxuoso de 40 pareceristas, dos mais qualificados, sendo 50% do Ceará e 50% de avaliadores externos, cujos pareceres advieram de 5 Estados da Federação (PR/SC/SP/MG/RS). A presente edição conta com 18 artigos, dentre os quais, 25% de convidados. Os demais foram aprovados por, no mínimo, dois pareceristas cegos, nos moldes do sistema “double blind review”. Verticalizamos os esforços para atender, cada vez mais, aos parâmetros do Programa Qualis, atingindo, no presente número, 61,11% de exogenia quanto aos artigos publicados; e 66,66% de exogenia quanto aos membros de nossa ilustríssima Comissão Editorial. Agradecemos a todos aqueles que nos confiaram seus trabalhos, enviando-os de tão longínquas paragens, inclusive de além-mar. Estamos felizes com o atual conceito do periódico (B-4) e confiantes de que, graças aos esforços, à tenacidade e ao empenho acadêmico de nossos inúmeros colaboradores, conseguiremos avançar ainda mais. Esperamos, nesse 13º número, compartilhar com toda a comunidade científica, do melhor da produção de nosso corpo docente e discente, bem como, desfrutar do crescimento exponencial da pesquisa jurídica no Brasil, em termos qualitativos e quantitativos. A ciência jurídica brasileira vive, hoje, um momento muito especial, rumo à sua consolidação no cenário acadêmico brasileiro. E estamos orgulhosos por dar a nossa contribuição. Mas estamos, sobretudo, gratos a todos os colegas pesquisadores que dividiram conosco essa conquista. Aqui, da Cidade Solar, desejamos que essas leituras possam, de algum modo, iluminar as dobras e tessituras de sua pesquisa. Fortaleza, março de 2012.

GABRIELLE BEZERRA SALES Coordenadora-Geral do Curso de Direito da Faculdade Christus FAYGA SILVEIRA BEDÊ Editora-Responsável pela Revista Opinião Jurídica R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.1-438, jan./dez. 2011



Sumário APRESENTAÇÃO PRIMEIRA PARTE – DOUTRINA NACIONAL Estabilidade Extraordinária de Servidores Públicos e a Busca Pela Justiça (Uma análise do Art. 19 do ADCT/CF88 com base na Teoria dos Direitos Fundamentais)..................................................................................................................9 Clovis Renato Costa Farias “Distraídos Venceremos”: Laboratório de Criatividade em Direito, Arte e Cultura – Um Estudo De Caso........................................................................................................... 33 Fayga Silveira Bedê, Tércio Aragão Brilhante, Francisco José Alves de Aragão, Andréa Micaelle Santos Sousa, Maria Eurídice Ferreira Cavalcante, Ana Virgínia Ramos Cardoso Saúde e Meio Ambiente: Uma Imbricada e Necessária Relação......................... 56 Germana Parente Neiva Belchior e Gleice Silva Queiroz de Lima O Ser dos Direitos Humanos na Ponte Entre o Direito e a Música........................... 70 Horácio Wanderlei Rodrigues e Leilane Serratine Grubba A Obrigatoriedade de Conexão às Redes Públicas de Abastecimento de Água e de Esgotamento Sanitário e a Remuneração dos Serviços.............................................. 93 Ivo César Barreto de Carvalho e Álisson José Maia Melo Jurisdição Constitucional e Controle da Política: Fundamento e (I)Legitimidade Democrática............................................................................................................. 114 Jânio Pereira da Cunha Estatuto da Igualdade Racial: Ações Afirmativas de Integração Étnica ou Políticas de Discriminação Reversa?................................................................................................... 141 José Adeildo Bezerra de Oliveira e Gretha Leite Maia O Papel do Juiz na Tentativa de Pacificação Social: a Importância das Técnicas de Conciliação e Mediação............................................................................................ 153 José Herval Sampaio Júnior Investigando a Possibilidade de Criação do Conselho Nacional da Defensoria Pública.................................................................................................................. 182 Leandro Sousa Bessa, Mariana Urano de Carvalho Caldas e Caio Werther Frota Neto R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.1-438, jan./dez. 2011


Valores Político-Jurídicos na Epopeia Homérica: Uma Leitura Jusfilosófica da Ilíada e da Odisseia ............................................................................................................... 200 Luiz Ismael Pereira A Transação como Forma de Extinção do Crédito Tributário: Uma Análise das Alterações Preconizadas Pelos Projetos de Lei Nº 5.082/2009 e 469/2009, Sob a Égide dos Princípios da Administração Tributária................................................................... 217 Maurício Muriack de Fernandes e Peixoto e Caroline Mello Boaroli A Ideologia do Atraso a Partir das Análises Weberianas no Brasil e a (Re)Construção Da(s) Identidade(s) Nacional(is).............................................................................. 256 Rogério Monteiro Barbosa e Davi Niemann Ottoni O Direito Tributário como Instrumento para Adoção de Políticas Públicas Afirmativas Ambientais: o Estudo das Lâmpadas Fluorescentes ................................................ 275 Tábata Mineiro Bezerra e Tagore Trajano de Almeida Silva A Inclusão de Crianças Autistas .............................................................................. 299 Taís Nader Marta e Telma Aparecida Rostelato A Responsabilidade do Estado Pelos Danos Causados às Pessoas Atingidas pelos Desastres Ambientais Associados às Mudanças Climáticas: Uma Análise à Luz dos Deveres de Proteção Ambiental do Estado e da Proibição de Insuficiência na Tutela do Direito Fundamental ao Ambiente...................................................................... 322 Tiago Fensterseifer Pesca Artesanal e Gênero: Políticas Públicas para o Reconhecimento Jurídico do Trabalho da Mulher Pescadora no Litoral de Santa Catarina – Brasil.......................... 355 Vera Lúcia da Silva e Olga Maria Boschi de Aguiar SEGUNDA PARTE – DOUTRINA ESTRANGEIRA Eficácia e Adequação na Tutela Sancionatória dos Bens Ambientais..................... 386 Heloísa Oliveira Droit International de L’environnement: Le Statut International des Personnes Victimes de Catastrophes Naturelles: Être ou Ne Pas Être un Réfugié?................................. 414 Philippe Gamito Normas de Publicação.............................................................................................. 432

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Estabilidade Extraordinária de Servidores Públicos e a Busca Pela Justiça (Uma análise do art. 19 do ADCT/CF88 com base na teoria dos direitos fundamentais) Clovis Renato Costa Farias* 1 A Situação Excepcional dos Trabalhadores Abrangidos Pelo Art. 19 do ADCT/CF88. 2 Breve Escorço Histórico Sobre a Estabilidade e a Efetividade no Constitucionalismo Brasileiro. 3 Ponderações Sobre a Diferenciação Entre Estabilidade e Efetividade. Regra e Excepcionalidade do Art. 19 do ADCT. 4 O Posicionamento Restritivo e em Descompasso do STF e do STJ com Relação ao Art. 19 do ADCT. 5 Sintonia Social Emergente na Jurisprudência e na Legislação Dinâmica das Relações de Trabalho. Referências.

RESUMO A estabilidade extraordinária positivada no art. 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988, que concedeu direitos aos servidores que laboravam em condições equiparadas aos que prestaram concurso público, ante a existência da duplicidade de regimes na administração pública brasileira, atende aos valores postados na Constituição de 1988, bem como ao Estado Democrático de Direito, devendo no caso ser vista de forma ampliativa e valorada nos aspectos sociais intrincados em seu contexto fático-jurídico. O que, de plano parece cristalino, mas, que aos olhos da doutrina majoritária brasileira e da jurisprudência dos Tribunais Superiores, tem sido visto restritivamente, reconhecendo-se apenas a estabilidade sem efetividade, prejudicando os trabalhadores especialmente se tratando de discriminações sofridas nos próprios locais de trabalho, quanto na aquisição de direitos decorrentes da relação mantida com a administração pública. Clama-se pelo reconhecimento do período ou da condição de efetivo, que deve ser entendida no caso excepcional criado pelo art. 19 do ADCT intrincando os institutos da estabilidade e da efetividade no serviço público. Situação que justifica o manejo da teoria dos direitos fundamentais, por tratar-se de direito fundamental de segunda dimensão, * Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará – UFC, Especialista em Direito e Processo do Trabalho, Membro do GRUPE (Grupo de Estudos e Defesa do Direito do Trabalho e do Processo Trabalhista) e do Grupo de Estudos Boaventura no Ceará. Professor de Sociologia Jurídica, Constitucional e Direito do Trabalho e Processo Trabalhista da Faculdade Christus e da Unifor. E-mail: clovisrenatof@yahoo.com.br R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.9-32, jan./dez. 2011

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o direito ao trabalho, a ser prestado de forma digna, para que se possa aproximar paulatinamente do ideal de justiça social. PALAVRAS-CHAVE: Art. 19 do ADCT/CF88. Estabilidade e efetividade no serviço público. Situação excepcional. Teoria dos direitos fundamentais. Justiça. 1 A SITUAÇÃO EXCEPCIONAL DOS TRABALHADORES ABRANGIDOS PELO ART. 19 DO ADCT/CF88 Alvo de inúmeras discussões, robustamente fundamentadas, a questão da situação excepcional dos trabalhadores criada pelo art. 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias1 continua a gerar interpretações divergentes e desconfortos sociais, especialmente por parte dos obreiros que conquistaram o direito à estabilidade extraordinária no serviço público, por terem atendido aos requisitos impostos pelo referido artigo. A norma em tela, criada para equilibrar possíveis conflitos decorrentes de questões eminentemente sociais ligadas ao trabalho, dispõe que os servidores públicos civis da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, da administração direta, autárquica e das fundações públicas, em exercício na data da promulgação da Constituição, há pelo menos cinco anos continuados, e que não tenham sido admitidos na forma regulada no art. 37, da Constituição de 1988 (por concurso público), são considerados estáveis no serviço público. Em continuidade, delimita que o tempo de serviço dos servidores detentores de tal estabilidade será contado como título quando se submeterem a concurso para fins de efetivação (art. 19, § 1º, ADCT), o que não foi estendido aos ocupantes de cargos, funções e empregos de confiança ou em comissão, nem aos que a lei declare de livre exoneração, cujo tempo de serviço não será computado para os fins deste artigo, exceto se tratar-se de servidor, nem aos professores de nível superior, nos termos da lei. Observe-se, contudo, que a literalidade do artigo em tela incorre em uma incoerência lógica entre os fatos sociais e a mens normativa, uma vez que veio com efeitos ampliativos que visam proteger os trabalhadores e respeitar os serviços por eles desenvolvidos até a ocasião. Algo constatado pelo fato de que a CF/67 já previa o concurso público para a efetividade e estabilidade dos servidores públicos, mas faticamente houve a contratação, em todos os entes e poderes da Federação por décadas, de um grande número de servidores pelo regime celetista, convivendo nas mesmas condições e prestando serviços equiparados aos estatutários. Comprova-se assim o caráter fático-jurídico de que o art. 19 do ADCT veio para criar uma situação excepcional para os obreiros por ele abarcados e pensar de forma contrária significa até mesmo mitigar a cidadania dos obreiros que trabalharam para a administração pública, outro dos fundamentos da República brasileira, como assevera Torres2, uma constelação de direitos e deveres do homem em comunidade. 10

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Estabilidade Extraordinária de Servidores Públicos e a Busca Pela Justiça

O trabalho digno é um direito fundamental, oponível ao Estado e aos particulares, de segunda dimensão (art. 6º, CF/88) que não pode ser esquecido na análise de casos que envolvem o labor. Na esteira de Faria3, os direitos sociais não configuram um direito de igualdade, baseado em regras de julgamento que implicam um tratamento formalmente uniforme; são, isto sim, um direito das preferências e das desigualdades, ou seja, um direito discriminatório com propósitos compensatórios; um direito descontínuo, pragmático e por vezes até mesmo contraditório, quase sempre dependente da sorte de determinados casos concretos. No caso dos servidores abrangidos pelos efeitos do art. 19 do ADCT/ CF88, é óbvio que não pode basear-se em regras de julgamento que implicam um tratamento formalmente uniforme, ou seja, não se dirige a todos os cidadãos brasileiros. A norma foi dirigida a uma parcela específica da sociedade (os que preenchiam os requisitos do referido artigo), para a qual foram estendidos os benefícios da estabilidade e da efetividade, decorrentes de uma interpretação teleológica visando aos fins intentados pelo artigo e superando suas eventuais atecnias literais. Efetivou-se com o art. 19 do ADCT, como asseverou Faria acima e perfeitamente aplicável ao caso em questão, um direito discriminatório (com foco em determinados sujeitos) com propósitos compensatórios (como uma forma contraprestativa do Estado reconhecer sua falha em ter permitido a existência da duplicidade de regimes jurídicos de trabalho a obreiros nas mesmas condições). O Estado deve buscar a inclusão dos trabalhadores englobados pelo art. 19 do ADCT, evitando-se até definições preconceituosas como cargos isolados, em extinção, entre outros, como foi feito pelo art. 243 da Lei 8.112/90 (§ 1º os empregos ocupados pelos servidores incluídos no regime instituído por esta Lei ficam transformados em cargos, na data de sua publicação). Como assevera Bercovici4, já a necessidade de pensar a possibilidade de um Estado promotor do desenvolvimento e da inclusão social. De maneira que o caput trata de fato da estabilidade e começa a restringir seu comando quanto à contagem de tempo de serviço, submetida a concurso público, o que, de plano, vergasta toda a noção de tempo de serviço, considerado o efetivamente prestado, registrado e contribuído, situação já contornada pelo legislador ordinário. Assim, os art. 100 e 101 da Lei 8.112/90 (utilizada, em geral, de forma simétrica pelos demais poderes e entes da federação) dispõem que é contado para todos os efeitos o tempo de serviço público federal, inclusive o prestado às Forças Armadas, bem como que a apuração do tempo de serviço deve ser feita em dias, que serão convertidos em anos, considerado o ano como de trezentos e sessenta e cinco dias. Previsões aplicáveis ao caso sui generis criado pelo art. 19 do ADCT, uma vez que os obreiros contratados sem concurso público, em regra, foram estabilizados nos respectivos poderes em que laboravam. Em outras palavras, não é razoável que os servidores abrangidos pelo art. 19 do ADCT prestem concurso público para que tenham computado o seu tempo de serviço, nem foi essa a vontade do legislador, bem como acabaria por R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.9-32, jan./dez. 2011

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gerar inúmeras controvérsias quanto à legitimidade dos obreiros em seus postos de trabalho, impondo-lhes condições diferentes das pactuadas na contratação. Esclarece-se que é princípio básico nas relações de trabalho (públicas ou privadas) a intenção de manter-se trabalhando, uma vez que o direito ao trabalho é um direito fundamental oponível a todos no Estado Democrático de Direito. O que não foge à realidade vivenciada no período em que havia duplicidade de regimes jurídicos na administração pública, materializada pela natureza dos contratos de trabalho, presumidos por tempo indeterminado, dada a necessidade que têm os obreiros de venderem sua força de trabalho para que possam ter como contraprestação seus vencimentos que viabilizam a administração de sua vida de forma digna. Permanência reconhecida pelo ordenamento jurídico brasileiro pela extinção da duplicidade de regimes jurídicos na administração pública e pela criação da estabilidade extraordinária (art. 19, ADCT). O reconhecimento da igualdade plena entre os servidores públicos concursados e os abrangidos pela estabilidade extraordinária atende também aos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 3º da CF/88), por pacificarem a questão quanto à qualidade do trabalhador e do trabalho prestado pelos detentores de estabilidade extraordinária, de forma que, se entendida de forma restritiva acaba por gerar interpretações equivocadas na sociedade e entre os servidores que são trabalhadores nessas condições, são inferiores ou prestam trabalho de menor qualidade do que os detentores da estabilidade ordinária, malferindo o princípio irradiante da CF/88, a dignidade da pessoa humana. Constrói-se, com esses pequenos ajustes hermenêuticos, uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I, CF/88) e se promove o bem de todos, sem preconceitos ou quaisquer formas de discriminação (art. 3º, IV, CF/88). Efetiva-se direito social, atende-se aos ditames valorativos da Constituição. Como declara Sarmento5, o Estado não mais se contenta com a proclamação retórica da igualdade de todos perante a lei, assumindo como tarefa impostergável a promoção efetiva dessa igualdade no plano dos fatos. Desse modo, reafirma-se a posição quanto à paridade plena entre os servidores públicos ocupantes de cargo efetivo com estabilidade ordinária e os detentores da estabilidade extraordinária, a qual não deve ser tecnicamente afastada desconsiderando os valores inerentes à dignidade dos trabalhadores. A igualdade plena de condições ficou marcada na vontade do constituinte originário com as condições criadas com a positivação do art. 19 do ADCT, garantindo um direito fundamental social que, como delimita Silva6, exige uma prestação estatal exclusiva que só é aproveitada na sua realização, mas não na realização de outros, a qual foi efetivada na norma transitória em questão. Ademais, corrente que tem sido atualmente minoritária junto à doutrina e aos Tribunais Superiores, não raro destoantes da realidade social (mas que tem crescido na realidade nacional, podendo ser em breve, reavaliada pelos próprios Tribunais Superiores), repisando-se que os princípios que norteiam a 12

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CF/88, tais como a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), os valores sociais do trabalho (art. 1º, IV) e a justiça social (que tem como base o primado do trabalho, e, como objetivo, o bem-estar e a justiça sociais) devem regar quaisquer interpretações sobre a matéria. Esclarecendo-se, nesse ponto, que a questão de ser uma tese minoritária não conduz à ideia de ser o referido posicionamento verdadeiro ou o único possível, assim como não é motivo justo para que os juristas ou a sociedade se calem frente ao que crêem ou se sintam desfalecidos quanto à luta que são capazes de enfrentar. Principalmente de tais embates ideológicos em busca da Justiça é que vide a ciência do direito, caso contrário todos estaríamos desamparados, o Direito morto como ciência e a emancipação individual e social jazeria em berço esplêndido, enfim, estaríamos a viver a tirania da maioria, como alertou Tocqueville 7. 2 BREVE ESCORÇO HISTÓRICO SOBRE A ESTABILIDADE E A EFETIVIDADE NO CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO Para demonstrar a intencionalidade progressiva do constituinte originário, em benefício dos trabalhadores, será feito um breve escorço histórico no constitucionalismo nacional para demonstrar quando surgiram os institutos da efetividade e da estabilidade nas cartas políticas. As constituições de 25 de março de 18248 (primeira da independência) e a de 24 de fevereiro de 18919 (primeira da República) não tratavam sobre estabilidade ou efetividade, nem sobre concurso público. O Título VII (Dos Funcionários Públicos), art. 168 a 173, da Constituição de 16 de julho de 193410, tratava sobre o acesso aos cargos públicos pelos trabalhadores. Na época, os cargos públicos eram acessíveis a todos os brasileiros, sem distinção de sexo ou estado civil, observadas as condições a serem estatuídas pela lei específica (art. 168). Tratava de efetivo exercício, não de efetividade do cargo, como se pode destacar: Art 169 - Os funcionários públicos, depois de dois anos, quando nomeados em virtude de concurso de provas, e, em geral, depois de dez anos de efetivo exercício, só poderão ser destituídos em virtude de sentença judiciária ou mediante processo administrativo, regulado por lei, e, no qual lhes será assegurada plena defesa. Parágrafo único - Os funcionários que contarem menos de dez anos de serviço efetivo não poderão ser destituídos dos seus cargos, senão por justa causa ou motivo de interesse público.

Conforme a CF/34, o Poder Legislativo votaria o Estatuto dos Funcionários Públicos, obedecendo às normas dispostas no texto constitucional, de modo que o quadro dos funcionários públicos compreendia todos os que exercessem cargos públicos, seja qual fosse a forma do pagamento; e que a primeira investiR. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.9-32, jan./dez. 2011

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dura nos postos de carreira das repartições administrativas e, nos demais que a lei determinar, efetuar-se-á depois de exame de sanidade e concurso de provas ou títulos (art. 170, 1º e 2º, CF/34). No período abrangido pela CF/34, somente foi utilizado o termo estabilidade nos arts. 131 (É vedada a propriedade de empresas jornalísticas, políticas ou noticiosas a sociedades anônimas por ações ao portador e a estrangeiros. Estes e as pessoas jurídicas não podem ser acionistas das sociedades anônimas proprietárias de tais empresas. A responsabilidade principal e de orientação intelectual ou administrativa da imprensa política ou noticiosa só por brasileiros natos pode ser exercida. A lei orgânica de imprensa estabelecerá regras relativas ao trabalho dos redatores, dos operários e dos demais empregados, assegurando-lhes estabilidade, férias e aposentadoria) e 150, ‘f’ (reconhecimento dos estabelecimentos particulares de ensino somente quando assegurarem a seus professores a estabilidade, enquanto bem servirem, e uma remuneração condigna), não utilizada especificamente para servidores públicos. E, quanto à efetividade, não há menção específica, apenas refere-se ao efetivo exercício (art. 169). A Constituição de 10 de novembro de 193711, no art. 156, dispunha que o Poder Legislativo organizaria o Estatuto dos Funcionários Públicos, que deveria obedecer a preceitos vigorados pela Constituição, tais como o de que o quadro dos funcionários públicos compreenderia todos os que exercessem cargos públicos criados em lei, seja qual for a forma de pagamento; bem como que a primeira investidura nos cargos de carreira se faria mediante concurso de provas ou de títulos. A CF/37, identicamente, não trazia o termo efetividade, mas apenas efetivo serviço (art. 156, ‘e’, CF/37). Discriminava apenas que os funcionários públicos, depois de dois anos, quando nomeados em virtude de concurso de provas e, em todos os casos, depois de dez anos de exercício, só poderiam ser exonerados em virtude de sentença judiciária ou mediante processo administrativo, em que fossem ouvidos e pudessem se defender (art. 156, alínea ‘c’, CF/37). E falava sobre estabilidade no art. 137, ‘f’ (nas empresas de trabalho contínuo, a cessação das relações de trabalho, a que o trabalhador não haja dado motivo, e quando a lei não lhe garanta, a estabilidade no emprego, cria-se o direito a uma indenização proporcional aos anos de serviço) e, para os funcionários públicos, no art. 157, verbis: Art 157. Poderá ser posto em disponibilidade, com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço, desde que não caiba no caso a pena de exoneração, o funcionário civil que estiver no gozo das garantias de estabilidade, se, a juízo de uma comissão disciplinar nomeada pelo Ministro ou chefe de serviço, o seu afastamento do exercício for considerado de conveniência ou de interesse público.

A Constituição de 194612 dispunha, no art. 186, q ue a primeira investidura em cargo de carreira e em outros que a lei determinasse seria efetuada mediante concurso, precedendo inspeção de saúde, 14

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bem como no art. 187, que seriam vitalícios somente os magistrados, os Ministros do Tribunal de Contas, os titulares de Ofício de Justiça e os professores catedráticos. E declarava, no art. 188, como se dava a estabilidade, benesse aos que, depois de dois anos de exercício, sendo funcionários efetivos nomeados por concurso e, depois de cinco anos de exercício, os funcionários efetivos nomeados sem concurso, algo que não se aplicava aos cargos de confiança nem aos que a lei declare de livre nomeação e demissão. Torna-se óbvio que existiam funcionários públicos efetivos sem concurso público e que podiam conquistar a estabilidade, situação que impõe questionamentos à doutrina restritivista que somente relaciona a efetividade, para todos os casos (ordinários e excepcionais), à existência de concurso público, de modo que a norma foi apenas copiada na história do constitucionalismo brasileiro com breves modificações. Definição com diferenciação restritiva entre estabilidade e efetividade que, por óbvio, pode ser aplicada nos casos posteriores à promulgação da Constituição de 1988 como regra, mas obrigando-se a considerar a salutar vontade do constituinte na positivação do art. 19 do ADCT para beneficiar os trabalhadores. A estabilidade, em 1946 (CF, 18.09.1946), já delimitava que os funcionários públicos perderiam o cargo, quando vitalícios, somente em virtude de sentença judiciária; e, quando estáveis, no caso do número anterior, no de se extinguir o cargo ou no de serem demitidos mediante processo administrativo em que se tenha-lhes assegurado ampla defesa (art. 189, CF/46). Em casos de extinção do cargo, o funcionário estável ficava em disponibilidade remunerada até o seu obrigatório aproveitamento em outro cargo de natureza e vencimentos compatíveis com o que ocupava (art. 189, parágrafo único, CF/46). Antecedendo a CF/88, a Constituição de 20 de outubro de 196713 (Emendada pela EC nº 01/69) dispunha que eram estáveis, após dois anos, os funcionários, quando nomeados por concurso, e que ninguém poderia ser efetivado ou adquirir estabilidade, como funcionário, se não prestasse concurso público (art. 99, § 1º, CF/67). Declarando ainda que, extinto o cargo ou declarada pelo Poder Executivo a sua desnecessidade, o funcionário estável ficará em disponibilidade remunerada, com proventos proporcionais ao tempo de serviço. (art. 99, § 2º, como redação dada pelo Ato Complementar nº 40, de 1968). Constata-se que, em análise histórica e fático-jurídica, o termo estabilidade englobava o atual conceito de efetividade, sendo que, atualmente, a efetividade é condição sem a qual a estabilidade não pode ocorrer, uma vez que somente se pode ser estabilizado em cargo de natureza efetiva, permeado pela necessidade, permanência e continuidade da prestação. 3 PONDERAÇÕES SOBRE A DIFERENCIAÇÃO ENTRE ESTABILIDADE E EFETIVIDADE. REGRA E EXCEPCIONALIDADE DO ART. 19 DO ADCT A utilização da razoabilidade (bom senso – critério transversal) deve ser utilizada pelo hermeneuta para afinar a norma à justiça efetiva no caso R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.9-32, jan./dez. 2011

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de trabalhadores que desempenham as mesmas funções, ora beneficiados por norma progressiva emanada pelo normatizador constitucional originário (art. 19 ADCT), no sentido de manter as condições asseguradas aos demais servidores, uma vez que o Poder Constituinte Originário reconheceu a prestação, o seu valor e resolveu efetivar os que preenchessem as condições impostas pelo art. 19, do ADCT, de modo que se deve atender a igualdade e equipar todos os trabalhadores no serviço público. Asseverando-se que, agir contrariamente, estabelece clara diferenciação entre servidores que prestavam e, atualmente, prestam seus serviços nas mesmas condições, criando problemas ao invés de manter a justiça social, função maior do direito, com fim de obter-se a tão perseguida Justiça. Atualmente reconhece-se que há diferenças entre estabilidade e efetividade, as quais devem ser ponderadas de forma razoável no caso do art. 19 do ADCT, seguindo-se pela jurisdição de equidade, assim como considerando o contexto social em que foi criada a estabilidade extraordinária e a atual situação após a promulgação da CF/88. Assim, com a positivação do referido artigo, foi criada nova condição, pautada no valor social do trabalho, na dignidade da pessoa humana e na justiça social, uma vez que se criou fato completamente novo para garantir trabalhadores que almejavam e necessitavam trabalhar e permanecer laborando. Como destacado por Bonavides, ao analisar os arts. 39 a 41 da Constituição de 1988: Estabilidade é o direito subjetivo de lastro constitucional que assegura a permanência do servidor no serviço público. O efeito da aquisição do direito reside na impossibilidade de o servidor ser excluído do quadro funcional (demissão) sem que tenha cometido falta grave.

O pressuposto para a aquisição do direito consiste no efetivo exercício das funções do cargo pelo período de três anos.14 Da doutrina de Meirelles15, destaca-se que a investidura administrativa é toda aquela que vincula o agente ao cargo, à função ou ao mandato administrativo, atendidos os requisitos de capacidade e idoneidade que a lei estabelecer, destinando-se, em geral, à composição dos quadros do serviço público. Sua forma usual é a nomeação, por decreto ou portaria, mas admite, também, a admissão, a designação, a contratação e a eleição administrativa, nos termos regulamentares, regimentais ou estatutários. Conforme Mello16, identicamente em análise à regra postada nas Constituições de 1967 e 1988, os cargos públicos, quanto a sua posição no quadro, classificam-se em de carreira e isolados. São de carreira quando encartados em uma série de classes escalonadas em função do grau de responsabilidade e do nível de complexidade das atribuições; já os isolados são os previstos sem inserção na carreira. Delimita ainda o autor que, quanto à sua vocação para retenção dos ocupantes, os cargos dividem-se em comissão, de provimentos efetivo e de provimento vitalício, conforme predispostos, respectivamente, a receber ocupantes transitórios, permanentes ou com uma garantia ainda mais acentuada de permanência. 16

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Com relação à definição de servidor público, conclui Mello17 que são os que entretêm com o Estado e com as pessoas de Direito Público da Administração indireta relação de trabalho de natureza profissional e caráter não eventual sob vínculo de dependência. Compreende, entre suas espécies, os remanescentes do regime anterior, no qual se admitia amplamente o regime de emprego. Ademais, sopesando a realidade normativa e fática, assume o autor, em nota de rodapé, o que se segue: Ditos servidores, ainda que estabilizados pelo art. 19 das Disposições Constitucionais Transitórias, [...]. Na órbita federal, entretanto, por força do art. 243 e § 1º da Lei nº 8.112/90, todos os empregados da administração direta, das autarquias e fundações de Direito Público que estavam sob regime de emprego foram inconstitucional e escandalosamente incluídos em cargos públicos sem concurso algum e, até mesmo, sem que se fizesse acepção entre estabilizados e não-estabilizados, pelo art. 19 das aludidas Disposições Transitórias.18

Em outras palavras, nos termos registrados pelo autor aludido, houve, no contexto social e fático-jurídico, uma situação excepcional que, inquestionavelmente, beneficiou os obreiros, valorizando socialmente seu trabalho, com reconhecimento legislativo inclusive, a qual não pode ser valorada para prejudicar os que obtiveram o reconhecimento de tais direitos. Assim, a realidade dos trabalhadores permaneceu e permanece, sem retoques, como servidores públicos efetivos e estáveis. A postura retrógrada não se restringe ao Poder Judiciário, mas a outros órgãos como a Procuradoria Geral da República, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2968-1, tramitando ainda sem qualquer decisão no STF19, protocolada em 13.08.2003, distribuída ao Ministro Cesar Peluso em 19.08.2003, que trata sobre a constitucionalidade do art. 243, da Lei nº 8.112/90, como se pode destacar: ADI PROCURADOR-GERAL ENVIA PARECER AO STF SOBRE REGIME JURÍDICO DOS SERVIDORES PÚBLICOS O procurador-geral da República, Claudio Fonteles, enviou parecer ao Supremo Tribunal Federal sobre a Ação Direta de Inconstitucionalidade 2968, ajuizada em agosto do ano passado no STF. Na ADI 2968, Fonteles questionou o artigo 243 da Lei nº 8.112/90, que permitiu a investidura de servidores em cargo ou emprego público sem a prévia aprovação em concurso público, violando o artigo 37, inciso II, da Constituição Federal. A ADI foi ajuizada por Claudio Fonteles. Em setembro, o relator, ministro do STF Cezar Peluso, enviou a ADI para manisfestação à Presidência da República, à Advocacia-Geral da União e ao Senado Federal. Em resposta, essas instituições informaram que a elaboração do artigo 243 da Lei 8.112/90 foi a maneira de se unificar os regimes jurídicos dos servidores públicos em obediência ao artigo 39 da Constituição Federal, em redação anterior à Emenda Constitucional 19/98 (Reforma Administrativa). R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.9-32, jan./dez. 2011

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Depois dessas manifestações, a Ação retornou à PGR para parecer. No documento, Claudio Fonteles afirma, porém, que não está sendo questionada a mudança de regime jurídico dos servidores públicos, mas o fato de o artigo 243 da Lei 8.112/90 ter afrontado o inciso II, do artigo 37, da Constituição Federal, que determina a obrigatoriedade de aprovação em concurso público para a investidura em cargo ou emprego público “e não por mero ato de unificação de regime”. O procurador-geral afirma que o artigo da Lei 8.112/90 não fez distinção entre servidores concursados ou não, “permitindo que fossem investidos em cargos ou empregos públicos pessoas que não se submeteram ao prévio concurso público”. Fonteles esclarece que não serão atingidos pela declaração de inconstitucionalidade do artigo 243 da Lei 8.112/90 os servidores que, na época da adoção do regime único, haviam sido aprovados em concurso público e os servidores considerados estáveis pelo artigo 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, da Constituição Federal, ou seja, aqueles que tinham pelo menos cinco anos de exercício contínuos na data da promulgação da CF/88, mesmo não tendo sido aprovados em concurso público. Não serão atingidos, também, “para resguardar a situação jurídica”, os servidores aposentados que, apesar de não terem se submetidos a prévio concurso público foram qualificados como servidores públicos. O procurador-geral conclui que “os princípios da impessoalidade, da moralidade e da eficiência administrativa (artigo 37, caput) têm no disposto no inciso II, do artigo 37, da Constituição Federal a garantia da sua observância”20

Ainda diante de todo o exposto, que se assoberba na atualidade enfrentando nossa proposta ligada aos valores da Constituição, conscientes da luta pela Justiça e crentes na permanente mudança na dinâmica social, ousamos dizer com Dworkin: “As velhas idéias são agora abandonadas aqui.”21 Assim, conclui o autor, com relação à imprescindibilidade da relevância política que deve ser considerada nas decisões dos juristas, os quais devem fugir à mera exegese: Os juízes não podem decidir qual foi a intenção pertinente dos constituintes, ou qual processo político é realmente justo ou democrático, a menos que tomem decisões políticas substantivas iguais àquelas que os proponentes da intenção ou do processo consideram que os juízes não podem tomar.22

Nesse passo, conforme as definições citadas, a vocação para retenção dos ocupantes de cargos públicos abrangidos pelo art. 19 do ADCT da Constituição de 1988, somente pode ser enquadrada como de provimento efetivo, uma vez que não são de livre nomeação e exoneração (comissionados – vocacionados para serem ocupados em caráter transitório), nem há vocação de retenção maior como os vitalícios (somente desligados mediante processo judicial, como os magistrados, os membros do ministério público, os conselheiros de contas, entre outros legalmente discriminados). 18

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Outrossim, conforme Süssekind23, o princípio da proteção do trabalhador resulta das normas imperativas que caracterizam a intervenção básica do Estado nas relações de trabalho, visando opor obstáculos à autonomia da vontade, sendo regras que formam a base do contrato de trabalho e representam um mínimo de proteção legal. E, conclui o autor: Os instrumentos normativos alusivos às relações de trabalho devem objetivar a prevalência dos valores sociais do trabalho. E o respeito à dignidade do trabalhador constitui um dos direitos supraestatais inerentes ao ser humano, cuja observância independe da vigência de leis nacionais ou tratados internacionais.24

As normas que envolvem os trabalhadores em todos os âmbitos laborais devem ser observadas sopesando aspectos sociais decorrentes da prestação dos serviços, o que não pode ser excluído mesmo quando se trata da administração pública, que, seguindo a legalidade estrita, optou, no ordenamento, pátrio a positivar conquistas de trabalhadores no mundo, como se pode observar na Lei 8.112/90. Respeita-se assim todos principais fundamentos da República Federativa do Brasil, como destaca Pinero: […] a dignidade, a liberdade, a privacidade, o livre desenvolvimento da personalidade devem ser tutelados não apenas em face do Estado e dos poderes públicos, mas também em face dos particulares. Daí a interrupção da Constituição nas relações entre particulares, pois doravante ninguém escapa da sua longa manu”.25

Para os casos criados pela norma de transição analisada, deve-se partir do conceito de efetividade e dos valores atrelados ao trabalho, entendendo, assim, efetividade como uma característica do provimento de certos cargos (criados por lei específica, com natureza de continuidade e permanência do seu ocupante, gerando determinados direitos dele decorrentes - cargo com rubrica orçamentária de custeio própria e finalidade específica com ânimo de continuidade e permanência), o que seria o ponto irradiante para a análise dos casos transitórios em tela. E, quanto à estabilidade, impõe-se que seja seguida a literalidade das normas que a delineiam, nos termos delimitados pela CF (em seus artigos base e nos ADCTs). Para Meirelles, a nomeação em caráter efetivo é a condição primeira para a aquisição da estabilidade. A efetividade, embora refira-se ao servidor, é apenas um atributo do cargo, concernente à sua forma de provimento e, como tal, deve ser declarada no decreto de nomeação e no título respectivo, porque um servidor pode ocupar transitoriamente um cargo de provimento efetivo (casos de substituição, por exemplo), sem que essa qualidade se transmita ao seu ocupante eventual. Não há de se confundir efetividade com estabilidade, porque aquela é uma característica da nomeação, e esta é um atributo pessoal do ocupante do cargo, adquirido após satisfação de certas condições de seu exercício. A efetividade é um pressuposto necessário da estabilidade.26 Como destaca Santos27, a Justiça Federal há alguns anos vem modificando o posicionamento acerca da efetividade pleiteada para o servidor que adquiriu R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.9-32, jan./dez. 2011

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a estabilidade no cargo público da administração direta, suas fundações e autarquias, por força do Artigo 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). O entendimento que prevalecia, inclusive em vários julgados, diga-se de passagem, por inspiração dos julgados anteriores à Constituição Federal de 1988, de que a estabilidade concedida pela Constituição Federal ao servidor que contava cinco (05) anos até a data de sua promulgação, não lhe assegurava a “efetividade” e esta somente seria adquirida após aquele ser submetido ao concurso público. Felizmente, esse entendimento está evoluindo seguindo a lógica na qual o princípio é de que a “efetividade” sempre foi pressuposto para a aquisição da “estabilidade” no cargo público, e não o inverso, ou seja: “a estabilidade como pressuposto da efetividade”. O art. 99, § 1º da CF/67 (anterior à de 1988)28, como apresentado acima, previa o requisito do concurso público para a efetivação de servidores, vigente à época da contratação dos servidores que conquistaram os direitos positivados no art. 19 do ADCT da CF/88. Algo que torna cristalina a mens do normatizador originário de respeitar e tornar iguais os que estavam em condições semelhantes pela positivação do art. 19, ADCT. 4 O POSICIONAMENTO RESTRITIVO E EM DESCOMPASSO DO STF E DO STJ COM RELAÇÃO AO ART. 19 DO ADCT Em sentido contrário ao valor social do trabalho e à dignidade dos trabalhadores abrangidos pelo art. 19 do ADCT, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), no RE 400343 AgR/CE, que teve como relator o Ministro Eros Grau (ora aposentado), julgado em 17/06/2008, publicado no DJe em 01.08.2008, assim manifestou-se sobre a matéria: EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ADCT, ARTIGO 19. INCORPORAÇÃO. GRATIFICAÇÃO DE REPRESENTAÇÃO. LEI N. 11.171/86 DO ESTADO DO CEARÁ. 1. É necessário que o servidor público possua --- além da estabilidade --- efetividade no cargo para ter direito às vantagens a ele inerentes. 2. O Supremo fixou o entendimento de que o servidor estável, mas não efetivo, possui somente o direito de permanência no serviço público no cargo em que fora admitido. Não faz jus aos direitos inerentes ao cargo ou aos benefícios que sejam privativos de seus integrantes. Precedentes. Agravo regimental a que se nega provimento.

Contrariando, também, a corrente da igualdade plena entre os detentores da estabilidade ordinária e extraordinária, está o Superior Tribunal de Justiça (STJ), como se pode notar no Acórdão da Quinta Turma, no EDcl no RMS 14806 / RO, que teve como relator o Ministro Gilson Dipp, julgado em 24/08/2004, publicado no DJ em 27/09/2004, verbis: PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO - EMBARGOS DE DECLARAÇÃO - ART. 535 DO CPC. AUSÊNCIA DOS 20

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PRESSUPOSTOS - SERVIDOR ESTADUAL - MAIS DE CINCO ANOS CONTÍNUOS DE SERVIÇO À ÉPOCA DA EDIÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 - ESTABILIZADO PELO ART. 19 DO ADCT - NÃO EFETIVADO POR CONCURSO PÚBLICO - NÃO SUBMISSÃO À LEI COMPLEMENTAR ESTADUAL Nº 68/92, O ESTATUTO DOS SERVIDORES DO ESTADO DE RONDÔNIA - APOSENTADORIA COM PROVENTOS INTEGRAIS - IMPOSSIBILIDADE - PRECEDENTES - EMBARGOS REJEITADOS. I - Os embargos de declaração devem atender aos seus requisitos, quais sejam, suprir omissão, contradição ou obscuridade, não havendo qualquer um desses pressupostos, rejeitam-se os mesmos, mormente quando o ponto fulcral da controvérsia reside na insatisfação do ora embargante com o deslinde da controvérsia. II - Foram considerados estáveis no serviço público todos os servidores civis que já estavam em exercício há pelo menos cinco anos continuados, em 5 de outubro de 1988, e que não tenham sido admitidos na forma regulada no art. 37, inciso II da Magna Carta. III - Sem a efetividade no cargo público, que só pode ser imprimida ao servidor pela aprovação em concurso público, não se pode submeter o empregado público contratado pelo regime da Consolidação das Leis do Trabalho ao Estatuto dos Servidores do Estado para fins de aposentadoria. Os efeitos da estabilidade adquirida pelo art. 19 do ADCT limitam-se à impossibilidade de ser afastado do cargo, senão em virtude de sentença judicial transitada em julgado ou de resultado do processo administrativo disciplinar, no qual lhe tenha sido assegurada ampla defesa, não transformando em estatutário aquele que entrou no serviço público sem o devido certame. Precedentes. IV - A estabilidade conferida pelo art. 19 do ADCT não permitiu o alcance, também, da efetividade, que se dá única e exclusivamente através da aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, conforme exigido pelo art. 37, inciso II da Constituição Federal de 1988.29

Comentando a postura do STF, destaca-se do voto do relator, Desembargador Federal Rogério Fialho Moreira, na Primeira Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, em apelação cível no Processo nº 000326275.2004.4.05.8201, julgado em 04/06/2009, publicado no DJ em 14/08/200, que é cristalino ao abordar a matéria, verbis: A postura do Supremo Tribunal Federal na defesa da exigência do concurso público para provimento de cargos em empregos nas Administrações Públicas dos três entes políticos, dos três Poderes, é, sob todos os aspectos, digna de aplausos. De outra face, a jurisprudência desenvolvida pela Corte Suprema pertinente à estabilidade excepcional instituída pelo art. R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.9-32, jan./dez. 2011

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19 do ADCT/88, e sua relação com o instituto da efetividade, merece ser objeto de algumas considerações. Neste tocante, é certo que o Supremo vem entendendo que a estabilidade em cargo público não se confunde com a efetividade que somente é adquirida com a nomeação após aprovação em concurso público (CF, arts. 37, II e 41). Não obstante, veja-se que, em relação aos servidores celetistas, contratados há cinco anos antes da promulgação da Constituição Federal, o art. 19, caput, do ADCT/88 determinou, com eficácia e aplicabilidade plenas, que os servidores originariamente contratados para empregos públicos na Administração Federal direta e autárquica, ou fundacional seriam considerados “estáveis”. Até aí, poder-se-ia admitir a continuidade do vínculo celetista, já que o instituto da estabilidade não é exclusivo, ou, pelo menos, não era exclusivo, considerando-se as modificações introduzidas pela Emenda nº 19/98, da natureza estatutária do vínculo. Entretanto, a estabilidade, prevista no caput do art. 19 do ADCT/88, deve ser conjurada com o instituto da efetividade, prevista no § 1º deste mesmo artigo, principalmente porque o tempo de serviço do servidor aprovado no “concurso para fins de efetivação” seria “contado como título”. Segundo o § 1º do art. 19 do ADCT/88, só poderia ser contado como título, como critério para classificação no concurso, caso haja a aprovação, na hipótese do servidor que já havia sido estabilizado pelo referido art. 19, caput do ADCT/88, cujo resultado seria atribuição da qualidade de “efetivo”. Infere-se, pois, que o legislador constitucional incidiu em flagrante contradição quando da formulação do § 1º mencionado. É que, por definição e princípio, a efetividade sempre foi pressuposto para aquisição da estabilidade no cargo público, e não o inverso.

Destaca-se que o comportamento das cortes tem sido bastante restritiva, por considerar apenas a estabilidade, que tem sido assumida pelos Colendos Tribunais Superiores, não se afina sequer com a realidade trabalhista mundial para a iniciativa privada (distante ainda da qualidade de trabalho conquistada pelos trabalhadores no serviço público), submissa aos reveses do mercado, de maneira que um dos assuntos mais falados na contemporaneidade é a Convenção nº 158 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que trata sobre o Término da Relação de Trabalho por Iniciativa do Empregador vedando a dispensa arbitrária pelo empregador (denunciada pelo Brasil - Decreto nº 2.100, de 20 de dezembro de 1996 – Presidente Fernando Henrique Cardoso), já concedendo o instituto da estabilidade por impor a motivação da despedida, que logicamente deve ser apurada por processo administrativo específico, o qual pode ser repetido frente ao Poder Judiciário. 22

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A Convenção 158 da OIT proíbe a demissão de um trabalhador, “a menos que exista para isso uma causa justificada, relacionada com sua capacidade ou seu comportamento, ou baseada nas necessidades de funcionamento da empresa, estabelecimento ou serviço” (Art. 4º).30 Esclarecendo-se que no dia 14 de fevereiro de 2008, o Presidente Lula encaminhou, para apreciação do Congresso Nacional, as convenções 151 e 158 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), com intuito de torná-las novamente vigente no Brasil.31 Seguem-se os moldes de estabilidade repetidos pelo art. 41 da CF/88, que reconhece a estabilidade, e no § 1º, dispõe que o servidor público estável só perderá o cargo em virtude de sentença judicial transitada em julgado; mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa; ou mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar, assegurada ampla defesa. Ademais, os servidores detentores da estabilidade extraordinária são servidores públicos investidos de todos os poderes inerentes a seu cargo, assumem funções de confiança e cargos comissionados dentro do percentual mínimo de 50% reservado a servidores do quadro de carreira da instituição em que trabalha. Entrementes, a evolução jurisprudencial com revisão de posicionamentos é sempre possível e comum, especialmente no Supremo Tribunal Federal (STF), dada a constante busca pelo ideal de justiça, a inesgotabilidade do saber e a dinâmica própria das relações sociais, como destacado pelo Ministro Celso de Melo, quando relator do MS 26603/DF, julgado em 04/10/2007, publicado no DJe em 19/12/2008. Em seu voto32, o Ministro destacou, com relação à revisão jurisprudencial pelo STF, que os precedentes firmados pela Corte desempenham múltiplas e relevantes funções no sistema jurídico, pois lhes cabe conferir previsibilidade às futuras decisões judiciais nas matérias por eles abrangidas, atribuir estabilidade às relações jurídicas constituídas sob a sua égide e em decorrência deles, gerar certeza quanto à validade dos efeitos decorrentes de atos praticados de acordo com esses mesmos precedentes e preservar, assim, em respeito à ética do Direito, a confiança dos cidadãos nas ações do Estado. Continua o Ministro Celso de Melo delimitando que os postulados da segurança jurídica e da proteção da confiança, enquanto expressões do Estado Democrático de Direito, mostram-se impregnados de elevado conteúdo ético, social e jurídico, projetando-se sobre as relações jurídicas, inclusive as de direito público, sempre que se registre alteração substancial de diretrizes hermenêuticas, impondo-se à observância de qualquer dos Poderes do Estado e, desse modo, permitindo preservar situações já consolidadas no passado e anteriores aos marcos temporais definidos pelo próprio Tribunal. E, conclui o Ministro, a ruptura de paradigma resultante de substancial revisão de padrões jurisprudenciais, o exercício da jurisdição constitucional, que tem por objetivo preservar a supremacia da Constituição, põe em evidência a dimensão essencialmente política em que se projeta a atividade institucional do R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.9-32, jan./dez. 2011

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Supremo Tribunal Federal, pois, no processo de indagação constitucional, assenta-se a magna prerrogativa de decidir, em última análise, sobre a própria substância do poder. No poder de interpretar a Lei Fundamental, reside a prerrogativa extraordinária de (re)formulá-la, eis que a interpretação judicial acha-se compreendida entre os processos informais de mutação constitucional, a significar, portanto, que “A Constituição está em elaboração permanente nos Tribunais incumbidos de aplicá-la”. A interpretação constitucional derivada das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, a quem se atribuiu a função eminente de guarda da Constituição (CF, art. 102, caput), assume papel de fundamental importância na organização institucional do Estado brasileiro, a justificar o reconhecimento de que o modelo político-jurídico vigente em nosso País conferiu, à Suprema Corte, a singular prerrogativa de dispor do monopólio da última palavra em tema de exegese das normas inscritas no texto da Lei Fundamental. Contexto que justifica a viabilidade da revisão de posicionamentos por parte do colegiado que compõe o STF, viabilizando a defesa de pontos analíticos divergentes dos acompanhados pela doutrina majoritária, mesmo no Supremo Tribunal Federal. 5 SINTONIA SOCIAL EMERGENTE NA JURISPRUDÊNCIA E NA LEGISLAÇÃO. DINÂMICA DAS RELAÇÕES DE TRABALHO Em face de tão acalorado debate, cumpre destacar a existência de posicionamentos jurisprudenciais recentes, eminentemente mais sintonizados com a dinâmica das relações de trabalho, a realidade dada na prestação laboral, a dignidade da pessoa humana e no valor social do trabalho, o que se fará a seguir. Na Ação Ordinária nº 0023727-35.1995.4.05.8100 (nº antigo 95.237270), na Justiça Federal no Ceará, confirmada pelo TRF/5ª Região, pedia-se que fosse ordenado à União Federal que transformasse o emprego celetista de Assessor Jurídico do TRT-7ª Região, isolado, em cargo de provimento efetivo, a partir da vigência da Lei 8.112/90, sem prejuízo da remuneração, com consequente perda dos efeitos da decisão do TRT-7ª Região que o converteu em cargo de provimento em comissão. Nestes termos, a decisão do Juiz Federal declarou o seguinte: Em face dos fundamentos expendidos, julgo PROCEDENTE o pedido do autor XXX, porque ocupante de emprego público, no TRT da 7a. Região, na data da edição da Lei 8112/90, estando amparado, portanto, pelo disposto no seu art. 243.33 O art. 243 da Lei nº 8.112/90, inserido nas disposições transitórias da norma, dispõe sobre os servidores que passaram a pertencer ao Regime Jurídico único dos servidores públicos civis da União disciplinados pela referida Lei, verbis: Art. 243. Ficam submetidos ao regime jurídico instituído por esta 24

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Lei, na qualidade de servidores públicos, os servidores dos Poderes da União, dos ex-Territórios, das autarquias, inclusive as em regime especial, e das fundações públicas, regidos pela Lei nº 1.711, de 28 de outubro de 1952 - Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União, ou pela Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1o de maio de 1943, exceto os contratados por prazo determinado, cujos contratos não poderão ser prorrogados após o vencimento do prazo de prorrogação. § 1o Os empregos ocupados pelos servidores incluídos no regime instituído por esta Lei ficam transformados em cargos, na data de sua publicação. § 2o As funções de confiança exercidas por pessoas não integrantes de tabela permanente do órgão ou entidade onde têm exercício ficam transformadas em cargos em comissão, e mantidas enquanto não for implantado o plano de cargos dos órgãos ou entidades na forma da lei.34 (grifou-se).

Corroborando com o posicionamento defendido no presente trabalho, a Primeira Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, em apelação cível no Processo nº 0003262-75.2004.4.05.8201, que teve como relator o Desembargador Federal Rogério Fialho Moreira, julgado em 04/06/2009, publicado no DJ em 14/08/200, é cristalino ao abordar a matéria, litteris: CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. RESTITUIÇÃO DOS VALORES DESCONTADOS, A TÍTULO DE CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA, INCIDENTE SOBRE A REMUNERAÇÃO DE SERVIDOR ESTÁVEL DO MUNICÍPIO DE CAMPINA GRANDE, REQUISITADO PELA JUSTIÇA FEDERAL. ART. 19 DO ADCT. EFETIVIDADE COMO PRESSUPOSTO DA ESTABILIDADE. INCIDÊNCIA DO ART. 12, PARÁGRAFO 2º DA LEI Nº 8.213/91. POSSIBILIDADE. 1. A TESE DE QUE O ART. 19 DO ADCT SOMENTE DARIA ESTABILIDADE E NÃO EFETIVIDADE AOS SERVIDORES QUE INGRESSARAM NO SERVIÇO PÚBLICO SEM CONCURSO PÚBLICO, ANTERIORMENTE À PROMULGAÇÃO DA CF/88, NÃO DEVE PROSPERAR. 2. A ULTIMA RATIO DA NORMA INSCULPIDA NO ART. 19 DO ADCT É DE PROMOVER A IGUALDADE ENTRE OS SERVIDORES PÚBLICOS E SUA INTEGRAÇÃO, EVITANDO DAR TRATAMENTO DESIGUAL ÀQUELES QUE, APÓS A ENTRADA EM VIGOR DA NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL, PASSARAM A REUNIR CONDIÇÕES IGUAIS, VALE DIZER, A NORMA EM REFERÊNCIA VISA COLOCAR TODOS OS AGENTES PÚBLICOS EM IGUALDADE DE CONDIÇÕES. DO CONTRÁRIO, ESTAR-SE-IA CRIANDO UMA NOVA ESPÉCIE DE AGENTE PÚBLICO, QUE NÃO É CELETISTA (AUTOMATICAMENTE TRANSFORMADO R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.9-32, jan./dez. 2011

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EM CARGO PÚBLICO PELA APLICABILIDADE DO ADCT), NEM É ESTATUTÁRIO (PORQUE NÃO TEM A EFETIVIDADE DECORRENTE DO CONCURSO PÚBLICO), NA MEDIDA EM QUE, EMBORA MANTENHAM UM VÍNCULO DE TRABALHO JUNTO À ADMINISTRAÇÃO, CONFORME É O CASO DOS AGENTES ADMINISTRATIVOS, SERIAM REGIDOS POR NORMAS SUI GENERIS, POIS LHES SERIA APLICADO O ESTATUTO DOS SERVIDORES PÚBLICOS EM DETERMINADAS SITUAÇÕES E EM OUTRAS NÃO. 3. ALÉM DISSO, ESTA SOLUÇÃO TAMBÉM NÃO SE MOSTRA JUSTA, NA MEDIDA EM QUE A ESTAS PESSOAS SOMENTE SERIAM TRANSFERIDOS OS ÔNUS DO SERVIÇO PÚBLICO, MAS NÃO OS BÔNUS INERENTES AO CARGO QUE OCUPAM. 4. É APLICÁVEL, PORTANTO, AO ORA APELADO, A PREVISÃO INSERTA NO ART. 12, PARÁGRAFO 2º DA LEI Nº 8.213/91, COM A NOVA REDAÇÃO CONFERIDA PELA LEI Nº 9.876/99, SENDO-LHE DEVIDA A RESTITUIÇÃO DAS CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS, REFERENTES AO PERÍODO COMPREENDIDO ENTRE 26 DE NOVEMBRO DE 1991 E MAIO DE 2001. 5. APELAÇÃO IMPROVIDA. (grifou-se).35

Do voto do relator Desembargador Federal Rogério Fialho Moreira, extrai-se o seguinte raciocínio que se torna oportuno transcrever: Assim, o legislador constituinte brasileiro, enfim, equivocou-se quando da redação do § 1º do art. 19, já que no “caput” deste mesmo artigo concedeu o mais – a estabilidade no serviço público. Afinal, de que adiantaria fazer depender o menos – a efetividade – de futura participação do servidor em concurso? Ora, neste sentido, é que cumpre estabelecer que o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, conforme se infere da própria denominação, é norma constitucional transitória, vale dizer, muitos dos seus dispositivos visam a estabelecer normas de transição entre o ordenamento jurídico anterior e aquele trazido à baila pela nova Constituição. Entrementes, para se alcançar a última ratio da norma constitucional em estudo (art. 19 do ADCT), deve-se ter em mente que a análise das normas constitucionais não se fixa na literalidade, mas parte da realidade social e dos valores subjacentes do texto, buscando sempre o espírito, ou como alguns preferem, a alma da Constituição. Desta feita, chega-se ao entendimento de que a pretensão da norma insculpida no art. 19 do ADCT, de forma a torná-la coerente com a nova ordem constitucional inaugurada, deve ser interpretada no sentido de que esta visa promover 26

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a igualdade entre os servidores públicos e sua integração, evitando dar tratamento desigual àqueles que, após a entrada em vigor da Constituição/88, passaram a possuir condições iguais, vale dizer, a norma em referência visa a colocar todos os agentes públicos em igualdade de condições. Neste espeque, não há razão para pretender que os servidores públicos que adquiriram estabilidade nos termos do art. 19 do ADCT não tenham também direito à efetividade e aos consectários a ela inerentes, até mesmo porque, se assim não for, estar-se-ia criando uma nova espécie de agente público (que não é celetista - automaticamente transformado em cargo público pela aplicabilidade do ADCT, nem é estatutário - porque não tem a efetividade decorrente do concurso público), na medida em que, embora mantenham um vínculo de trabalho junto à administração, conforme é o caso dos agentes administrativos, seriam regidos por normas sui generis, pois lhes seria aplicado o Estatuto dos Servidores Públicos em determinadas situações e em outras não. Além disso, esta solução também não se mostra justa, na medida em que a estas pessoas somente seriam transferidos os ônus do serviço público, mas não os bônus inerentes ao cargo que ocupam, o que não me parece nem um pouco razoável. Por tal motivo, apresenta-se equivocada “data máxima vênia”, assertiva de que a estabilidade excepcional prevista no art. 19 do ADCT/88 não significa efetividade no cargo, para a qual é imprescindível o concurso público. É aplicável, portanto, ao autor, ora apelado, a previsão inserta no art. 12, § 2º da Lei nº 8.213/91, com a nova redação conferida pela Lei nº 9.876/99, sendo-lhe devida a restituição das contribuições previdenciárias, referentes ao período compreendido entre 26 de novembro de 1991 e maio de 2001, razão porque não merece reforma a sentença apelada. Ante o exposto, NEGO PROVIMENTO à apelação.36

A problematização do tema decorre da grave crise pela qual passam as instituições brasileiras, como assevera Lima37, imergindo em dificuldades várias e pondo em xeque sua legitimidade, pelo menos tendo por referencial a função social a que estão teoricamente fadadas a desempenhar. Impõe-se o atendimento à essência da igualdade para o caso dos servidores abrangidos pelo art. 19 do ADCT. O que se pode aclarar com a lição de Miranda38, de modo que a análise do sentido da igualdade tem de assentar em três pontos firmes, quais sejam, que igualdade não é identidade e igualdade jurídica não é igualdade natural ou naturalística; significa intenção de racionalidade, e em último termo, intenção de justiça; e, não é uma ilha, encontra-se conexa com outros princípios, tem de ser entendida – também ela – no plano global dos valores, critérios e opções da Constituição material. R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.9-32, jan./dez. 2011

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É clara a complexidade da questão analisada, bem como de cunho jurídico-social, como destaca Barcelos39, a complexidade da vida e das construções e relações humanas repercute, como é natural, no direito, que também vai desenvolvendo formas cada vez mais complexas. O que possibilita uma nova valoração da questão por parte da doutrina e da jurisprudência na contemporaneidade, a qual deve pautar-se nos princípios e fundamentos da República Federativa do Brasil. Meton Marques, em suas considerações sobre Direito e Valor, expõe que o valor é a “principal instância metajurídica de interpretação (re)construtiva do Direito a partir do caso concreto”40, considerando que o que existe é o valor de caráter moral juridicamente considerado. Arremata seu raciocínio atestando que Direito e Valor andam juntos, vez que o primeiro municia o segundo, sem perder a identidade própria nem usurpar a do Direito, verbis: [...] O valor atua como instrumento de orientação de rumos do Direito, de dissipação das contradições, de correção finalística e sistêmica. Nessa condição, o valor mantém-se autônomo, porque a sua fusão com o Direito o enquadraria no sistema, com sujeição às mesmas nuanças que lhe caberia dissipar.41

Segue-se advogando, como postado na oração de Santo Ivo42 (patrono dos advogados), enquanto houver homens imperfeitos que se querelem entre si e enquanto houver legislador que produza, como uma terra fértil, uma colheita de leis complexas e contraditórias que ninguém deve ignorar, o que, em verdade, não sucede nunca, em virtude deste célebre adágio que vós conheceis muito bem: Plurimae leges, pessima res publica... 43 Luta-se por se acreditar, como destaca Tavares44, prefaciando a 2ª edição da obra de Dantas, na força de que dispõem os juristas para a construção e preservação da paz. Desse modo, quaisquer análises não equitativas e que não considerem o sistema normativo como um todo, a teoria dos direitos fundamentais, a dignidade da pessoa humana e os demais valores que permeiam a Justiça, são eivadas de vício, podendo ser atacados ostensivamente, passíveis de modificação a qualquer momento, pois no neoconstitucionalismo a forma submete-se ao conteúdo e aos valores, estando, para tanto, em completo descompasso com a realidade social e com o Estado Democrático de Direito. REFERÊNCIAS ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS SERVIDORES DA PREVIDÊNCIA SOCIAL. Net: http://www.anasps.org.br. BARCELOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. 2. ed.São Paulo: Renovar, 2008. BONAVIDES, Paulo; Miranda, Walter de Moura Agra Jorge. Comentários à Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Forense, 2009.

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gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao46.htm>. Acesso em 28 dez.2010. 13 PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Constituição de 1967. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao67.htm>. Acesso em: 27 dez.2010. 14 BONAVIDES, Paulo; Miranda, Walter de Moura Agra Jorge. Comentários à Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 833. 15 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 34. ed. São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 2008, p. 83. 16 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 26. ed. São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 2009, p. 300-302. 17 Ibid., p. 248-249. 18 Ibid., p. 249. 19 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/ verPeticaoInicial.asp?base=ADIN&s1=2968&processo=2968>. Acesso em: 28 dez. 2010. 20 ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS SERVIDORES DA PREVIDÊNCIA SOCIAL. ANASPS. Disponível em: <http://www.anasps.org.br/index.asp?id=875&categoria=29&subcategoria=89>. Acesso em: 28 dez. 2010. 21 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Tradução: Luís Carlos Borges. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 43. 22 Ibid. 23 SÜSSEKIND, Arnaldo; TEIXEIRA FILHO, João de Lima. Instituições do Direito do Trabalho. 22. ed. São Paulo: LTr, 2005, p. 144, v. 1. 24 Ibid., p. 143. 25 PINERO, Miguel Rodríguez. Constituição, direitos fundamentais e contratos de trabalho. In: Revista Trabalho e Doutrina, n. 15. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 25. 26 MEIRELLES, op. cit., p. 377. 27 SANTOS, Nildo Lima. A efetividade como consequência do direito à estabilidade excepcional de servidor alcançado pelo art. 19 do ADCT – entendimento em evolução. A efetividade como consequência do direito à estabilidade excepcional de servidor alcançado pelo art. 19 do ADCT – entendimento em evolução. O caso dos servidores de juazeiro e o direito a integrarem plano de carreira e vencimentos e aos benefícios pecuniários estabelecidos em estatuto. Nildo Estado Livre. Disponível em: <http://wwwnildoestadolivre. blogspot.com/2009/08/efetividade-como-consequencia-do.html>. Acesso em: 24 dez. 2010. 28 CF/67: Art 99 - São estáveis, após dois anos, os funcionários, quando nomeados por concurso. § 1º Ninguém pode ser efetivado ou adquirir estabilidade, como funcionário, se não prestar concurso público. 29 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. STJ. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/ ita.asp?registro=200200584190&dt_publicacao=27/09/2004>. Acesso em: 28 dez. 2010. 30 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO (OIT). Ilo. Disponível em: <http://www.ilo. org/public/portugue/region/ampro/brasilia/rules/organiza.htm>. Acesso em 24 dez. 2010. 31 CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS VIGILANTES E PRESTADORES DE SERVIÇOS. Vigilantecntv. Disponível em: <http://www.vigilantecntv.org.br/Dieese/nota%20tecnica%2061%20-%20 RatificacaoConvencao158rev.pdf>. Acesso em: 26 dez. 2010. 32 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, op cit. 33 Nome propositalmente recortado para preservar os direitos relativos à personalidade do autor da referida ação, mas que pode ser visualizado no acompanhamento processual via internet na página do Tribunal Regional Federal da 5ª Região. 34 PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Lei 8.112/90. Planalto. Disponível em: <http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/Leis/L8112cons.htm>. Acesso em: 27 dez.2010. 35 TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 5ª REGIÃO. TRF5. Disponível em: <http://www.trf5.jus.br/ Jurisprudencia/resultados.html>. Acesso em 24 dez.2010. 36 Idem. Disponível em: <http://www.trf5.jus.br/archive/2009/08/200482010032621_20090814.pdf>. Acesso em: 23.12.2010. 37 LIMA, Francisco Gérson Marques de. O STF na crise institucional brasileira: estudos de casos: abordagem interdisciplinar de sociologia constitucional. São Paulo: Malheiros Editores, 2009. 38 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Direitos Fundamentais. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1993, t. 4, p. 213. 39 BARCELOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. 2. ed.São Paulo: Renovar, 2008, p. 74.

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40 LIMA, Francisco Meton Marques de. O resgate dos valores na interpretação constitucional: por uma hermenêutica reabilitadora do homem como “ser-moralmente-melhor”. Fortaleza: ABC/Livraria FortLivros, 2001, p. 48. 41 LIMA, Francisco Meton, Ibid, p. 50. 42 BORGES, Arthur de Castro. Santo Ivo, patrono dos homens da Justiça. 3. ed. São Paulo: LTr, 1994, p. 233. 43 Plurimae leges, pessima res publica: o pior governo é aquele que tem muitas leis. 44 DANTAS, Ivo. Novo direito constitucional comparado. 3. ed. Curitiba: Juruá, 2010, p. 13.

EXTRAORDINARY STABILITY OF PUBLIC SERVANTS AND THE SEARCH FOR JUSTICE (AN ANALYSIS OF ART. 19 OF ADCT/CF88 BASED ON THE THEORY OF FUNDAMENTAL RIGHTS) ABSTRACT The extraordinary stability established in art. 19 of the Temporary Constitutional Provisions Act of the 1988 Constitution (ADCT/CF88), which granted rights to government servants that worked in equivalent conditions to those hired through public service admission examinations, due to the existence of a duplicity of regimes in Brazilian public administration, adheres to the values posted in the 1988 Constitution, as well as the Democratic State, thus it should be seen as amplifying and rooted in social aspects of its intricate factual and legal context. What at first sight seems crystal clear, in the eyes of the majority of Brazilian doctrine and jurisprudence of the Superior Courts has been seen narrowly, recognizing only stability, not permanency, harming workers especially with discrimination suffered in their workplace and regarding the acquisition of rights in their relationship with the public administration. We claim for the recognition of the previous period of work or actual condition, which must be understood in the exceptional circumstances established by art. 19 ADCT that details the institution of stability and permanency in public service. This situation justifies using the theory of fundamental rights, because it refers to a fundamental right of the second dimension, the right to work, to be provided in a dignified manner, so that Brazil can be gradually closer to the ideal of social justice. KEY WORDS: Article 19 of the ADCT/CF88. Stability and permanency in public service. Exceptional situation. Theory of fundamental rights. Justice. 32

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“Distraídos Venceremos”: Laboratório de Criatividade em Direito, Arte e Cultura – Um Estudo de Caso1 Fayga Silveira Bedê* Tércio Aragão Brilhante** Francisco José Alves de Aragão*** Andréa Micaelle Santos Sousa**** Maria Eurídice Ferreira Cavalcante***** Ana Virgínia Ramos Cardoso****** 1 Introdução. 2 Do Novo Paradigma Educacional Às Novas Diretrizes Para O Ensino Jurídico. 3 Grupo De Estudos “Ensino Jurídico, Arte E Cultura”: Modus Operandi. 3.1 Quanto À Origem. 3.2 Quanto À Metodologia. 3.3 Quanto Aos Objetivos. 4 Transdisciplinaridade. 5 Formação Humanística E Cultural: O Ensino Jurídico Para Além Do Direito. 6 Direito, Arte E Literatura. Consideracões Finais. Referências.

RESUMO O exercício de competências e apetências quanto ao uso da palavra oral e escrita, por meio do desenvolvimento de habilidades expressivas e performáticas, tornam-se ferramentas para o ensino 1 “Distraídos Venceremos” é homenagem carinhosa à obra homônima do poeta curitibano Paulo Leminski. Vide: LEMINSKI, Paulo. Distraídos venceremos. 5. ed. 3. reimpr. São Paulo: Brasiliense, 2002. * Responsável pela criação e orientação do projeto “Distraídos venceremos”. Professora de Tópicos Especiais em Direito I na Faculdade Christus. Doutora em Sociologia pela UFC. Mestre em Direito do Estado pela UFPR. Editora da Revista Opinião Jurídica. Autora de artigos, organizadora e colaboradora de coletâneas. E-mail: faygabede@hotmail.com ** Mestre em Direito Constitucional pela UNIFOR. Professor de Hermenêutica. Procurador Federal. Autor de artigos, organizador e colaborador de coletâneas. *** Graduado em Direito pela Faculdade Christus. Graduando em História pela UFC. Integrante de núcleo de pesquisa da História – UFC. Ex-monitor de Tópicos Especiais em Direito I. Autor de artigos sobre ensino jurídico. **** Graduanda em Direito na Faculdade Christus. Bolsista de pesquisa do Programa de Iniciação Científica, cujo tema de pesquisa é o grupo “Distraídos Venceremos”. Co-autora de artigo sobre o mesmo tema, constante dos anais do XX CONPEDI, realizado em Vitória-ES, em 2011. ***** Graduanda em Direito na Faculdade Christus. Integrante do Projeto “Distraídos Venceremos”. Co-autora de artigo sobre o projeto “Distraídos venceremos”, constante dos anais do XX CONPEDI, realizado em Vitória-ES, em 2011. ****** Graduanda em Direito na Faculdade Christus. Bolsista de pesquisa do Programa de Iniciação Científica, cujo tema de pesquisa é o grupo “Distraídos Venceremos”. R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.33-55, jan./dez. 2011

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Fayga Silveira Bedê  Tércio Aragão Brilhante  Francisco José Alves de Aragão  Andréa Micaelle Santos Sousa  Maria Eurídice Ferreira Cavalcante  Ana Virgínia Ramos Cardoso

jurídico, tema que se pretende pesquisar neste trabalho. O projeto “Distraídos Venceremos: Laboratório de Criatividade em Direito, Arte e Cultura” utiliza metodologias inovadoras para consolidar a formação geral e humanística dos alunos envolvidos, promovendo uma experiência que congrega pesquisa, extensão e responsabilidade social, com foco na ampliação da bagagem cultural requerida pelo ENADE. O artigo em questão tem como escopo relatar o savoir-faire metodológico empreendido pelo grupo, como contraproposta a um ensino jurídico formalista, tecnicista e reducionista. Palavras-chave: Ensino Jurídico. Arte. Cultura. ENADE. Novas metodologias. 1 INTRODUÇÃO Tudo já foi dito sobre a crise do ensino jurídico. Tudo, ou perto disso. Quem já não ouviu – ou mesmo proferiu – uma fala de repúdio contra um ensino jurídico exacerbadamente academicista, dissociado de sua dimensão social e reflexiva? Quem já não fez coro a Paulo Freire, contra um ensino tributário do velho modelo “bancarista”, em que professores depositam informações, enquanto os alunos, meros receptáculos, memorizam e reproduzem o seu conteúdo? 1 Todos nós, atores envolvidos no processo de ensinar e aprender o Direito, temos, em maior ou menor grau, a consciência de que entrou em colapso a mentalidade arcaica de que o ensino jurídico pode ser resumido à tarefa de dissecar códigos em sala de aula. E, se muitos ainda resistem à idéia de uma mudança didático-pedagógica, é muito mais por não saberem como operá-la, do que por simples renitência. De fato, em sociedades pós-modernas,2 hipercomplexificadas, que se volatilizam em arranjos instáveis, em plena era da velocidade,3 seria ingenuidade supormos que antigos pactos pedagógicos, calcados no velho argumento de autoridade de que “manda quem pode, obedece quem tem juízo”, poderiam surtir os efeitos desejáveis. A despeito disso, não temos nenhuma ilusão de que práticas de violência simbólica 4 comumente perpetradas nos cursos de Direito tenham chegado ao fim. Por toda parte, ainda pululam professores que, consoante a filosofia de Maquiavel, preferem ser temidos que amados, 5 valendo-se de toda sorte de técnicas de usurpação da autonomia de pensamento de seus alunos, a fim de convencê-los de que só aos mestres é dado pensar; enquanto aos aprendizes reserva-se a tarefa, bem mais modesta, de anotar. Dessa forma, ainda hoje observamos currículos jurídicos demasiadamente normativistas, pautados apenas por uma transmissão de conhecimentos dogmáticos, pouco dirigidos à solução real de problemas. Isso resulta na elaboração de um conhecimento precarizado, cujas conseqüências reverberam na seara jurídica, culminando na formação de profissionais inábeis e acríticos. 34

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Grades curriculares relativamente desligadas da realidade social, lastreadas em projetos pedagógicos legalistas, com baixo teor humanístico, e engendradas em relações professor-aluno autoritárias e verticalizadas: não admira que tenhamos em sala tantos alunos entediados, desinteressados, apáticos, e em estado de sofrimento psíquico. Assim, os estudos sobre ensino jurídico parecem ter chegado a um ponto de inflexão. Superabundam diagnósticos sombrios a seu respeito. Não por acaso, “crise” é a palavra mais recorrente quando o tema é o ensino do Direito. Mas, se há muitos trabalhos destinados à problematização e reflexão crítica sobre as razões que ensejam essa crise, o mesmo não podemos dizer quanto ao volume de trabalhos que se ocupam em pensar sobre possíveis soluções e/ ou alternativas quanto aos problemas diagnosticados. Nesse contexto, entendemos que seria pertinente fazermos um estudo de caso, a fim de relatar a experiência empreendida pelo projeto “Distraídos Venceremos: Laboratório de Criatividade em Direito, Arte e Cultura”, que vem sendo implementado na Faculdade Christus, em Fortaleza, em diferentes formatos, ao longo de 2011. O projeto “Distraídos Venceremos” consiste em proposta metodológica inovadora, face aos desafios engendrados pela emergência de sociedades mais complexas, com mercados mais competitivos - de um lado - e pelo aumento do número de alunos com déficits em sua formação geral, de outro.6 Nesse contexto de dificuldades ampliadas, o projeto se propõe ao desenvolvimento de competências e habilidades discursivas, tais como leitura, compreensão, elaboração e interpretação de textos, expressividade e performance, pautadas numa abordagem lúdica, criativa, estética e sensorial. Como pano de fundo, relações horizontalizadas e descontraídas embasam a concepção “anti-maquiavélica” de que é melhor amar, do que temer o conhecimento. Portanto, o presente artigo vem compartilhar com a comunidade acadêmica algumas das experiências traçadas até aqui, por meio de um relato vivo, que conjuga avanços, mas também paralisias. Em funcionamento há menos de um ano, o projeto vem sendo objeto de estudos de campo relativos ao seu desenvolvimento, os quais, embora se encontrem ainda em fase relativamente incipiente, já nos autorizam, ao menos, as conclusões parciais da pesquisa. Para tanto, conjugaremos uma análise que parte de um novo paradigma educacional, em direção às novas diretrizes legais para o ensino jurídico, culminando em uma abordagem cruzada com a pesquisa de campo focada nesse estudo de caso. Então... voilà! 2 DO NOVO PARADIGMA EDUCACIONAL ÀS NOVAS DIRETRIZES PARA O ENSINO JURÍDICO Observamos que a sociedade atual se configura em um cenário cada vez mais complexo, veloz, plural, fragmentário e heterogêneo; o que demanda uma R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.33-55, jan./dez. 2011

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formação profissional capaz de oferecer respostas aos novos desafios. Agora que a informação está disponível on-line, ao alcance de uma tecla, a figura do mestre detentor do saber e da verdade tornou-se insustentável. De fato, na era digital, em que os estudantes se vêem sufocados por uma sobrecarga ininterrupta de informações, trocadas em tempo real e em escala planetária, já não se trata de termos acesso à informação. Trata-se, na verdade, de sabermos o que fazer com ela. Nesse sentido, convém mapearmos algumas das principais tendências contemporâneas acerca dos sentidos que a educação deve assumir na sociedade pós-moderna. Francisco Gutiérrez, ao refletir sobre a necessidade de uma “Educação Planetária”, nos ensina que “a preocupação do educador não será tanto a de ensinar, mas a de promover, provocar, facilitar, criar e recriar experiências de aprendizagem”. 7 Para Gutiérrez, tais experiências [...] têm que preencher as seguintes características: Tem que acontecer na vida, na realidade, no processo vital: vivências, sucessos, fatos, relatos, partes da própria vida; Elas precisam implicar-se em todos os sentidos, quanto mais melhor, em uma dimensão pluri-sensual. Só assim elas promoverão o sentido; Elas têm que satisfazer, agradar, divertir. Jogos para jogar no gozo de viver prazerosamente o presente; Têm que despertar interesse, adesão, implicação, relação significativa; Têm que gestar, criar e recriar relações com o contexto, com os outros e consigo mesmo. Dimensão sinergética que dá potência; Têm que despertar o desejo de intrometer-se na temática estudada por meio de implicações pessoais, comunitárias e sociais; Têm que empurrar a vontade de se colocar em processo, em movimento, em ação, para conhecer a realidade em seu porvir, para poder transformá-la. É um conhecimento produtivo e transformador.8 (grifos nossos)

Em sentido convergente, Moacir Gadotti salienta que “os paradigmas educacionais clássicos, fundados numa visão industrialista predatória, antropocêntrica e desenvolvimentista, estão se esgotando, não dando conta de responder às necessidades futuras”. 9 É preciso, segundo o autor, outro paradigma, fundado numa visão sustentável do planeta Terra. O educador filia-se à corrente pedagógica descrita como “Pedagogia da Terra”,10 que, segundo ele, é apropriada à cultura da sustentabilidade e da paz. Tal pedagogia se fundamenta num paradigma filosófico emergente na Educação, que propõe um conjunto de saberes e valores interdependentes, dentre eles: 36

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Educar para pensar globalmente; Educar os sentimentos; Ensinar a identidade terrena como condição humana essencial; Formar para a consciência planetária; Formar para a compreensão; Educar para a simplicidade e para a quietude.11 (grifos nossos)

Não temos a pretensão, nos estreitos limites do presente trabalho, de aprofundar o tratamento de cada uma dessas teorias, mas precisamos situá-las como precursoras das novas mentalidades planetárias e holísticas, que se constituíram como alternativas ao paradigma positivista de educação, formal e antropocêntrico. Nesse mesmo viés, Edgar Morin nos alerta acerca da necessidade de uma reforma do pensamento e de uma reforma do ensino. Segundo esse renomado pensador contemporâneo, a missão do ensino “é transmitir não o mero saber, mas uma cultura que permita compreender nossa condição e nos ajude a viver, e que favoreça, ao mesmo tempo, um modo de pensar aberto e livre.” 12 Para Morin, “a educação pode ajudar a nos tornarmos melhores, mais felizes, e nos ensinar a assumir a parte prosaica e viver a parte poética de nossas vidas.” 13 Para o grande pensador da teoria da complexidade, existe uma inadequação ampla e profunda entre os saberes, compartimentados entre disciplinas, ao mesmo tempo em que emergem cada vez mais realidades e problemas transversais, multidimensionais, globais, planetários. Assim, saberes hiperespecializados impedem de ver o global, o complexo. Para ele, problemas essenciais nunca são parceláveis e problemas particulares só podem ser pensados corretamente em seus contextos. Todavia, o próprio contexto desses problemas deve ser posicionado no contexto planetário: [...] os desafios da complexidade inevitavelmente nos confrontam com os desenvolvimentos próprios de nosso século e de nossa era planetária [...] a inteligência que só sabe separar fragmenta o complexo do mundo, fraciona os problemas, unidimensionaliza o multidimensional, eliminando assim as oportunidades de um julgamento corretivo ou de uma visão a longo prazo. [...] uma inteligência incapaz de perceber o contexto e o complexo planetário fica cega, inconsciente e irresponsável .14 (grifos nossos)

Questionando o problema da expansão descontrolada do saber, Morin assinala que estamos afogados em informações, nas ciências e nas mídias. No entanto, conhecimento só é conhecimento se relacionado com as informações e inserido no contexto destas. Já as informações, sendo parcelas dispersas do saber, ao se proliferarem em escala planetária, fogem ao nosso controle. Assim, temos o árduo desafio de conjugá-las, integrando os conhecimentos disponíveis. Por seu turno, o professor Sílvio Sánchez Gamboa, ao tratar dos desafios da educação em meio ao mundo globalizado, num recorte mais apontado à R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.33-55, jan./dez. 2011

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América Latina, faz-nos perceber que, neste caso, a educação encontra-se num limbo entre a pré e a pós-modernidade. Segundo Gamboa, um dos pais da educação moderna, Jan Amos Comenius15, propugnava uma educação para todos, e com qualidade, uma escola que ensinasse tudo, com aprendizagem satisfatória e competente. Confrontada com a educação contemporânea, a proposta de Comenius revela paradoxos. A partir dos anos 1970, diz o autor, “foram impostas legislações na América Latina sobre a profissionalização do ensino, em conseqüência do desenvolvimento industrial da região”. 16 Essa política traduziria a nova fase de expansão capitalista, demandando um sistema educativo que formasse os recursos humanos necessários àquela expansão. Treinar o homo faber em detrimento do homem integral, eis a questão. Sob essa ótica fabril, os métodos pedagógicos têm objetivos neutros e tecnicistas, a didática se reduz à operacionalização de instrução, mecanizando os processos ensino-aprendizagem. Em sentido contrário, Comenius pensava num cidadão do mundo, que transcendesse o homo faber. O homem tem necessidade de ser formado para se tornar homem e não apenas máquina produtiva. Então, pergunta Gamboa: “Qual a educação para a Pós-modernidade? O que fazer com a educação inconclusa da Modernidade?” 17 Assim, Gamboa entende que o ideário da Modernidade nem chegou a se realizar plenamente na América Latina, e já estão proclamando uma educação pós-moderna, por meio de novas ondas tecnicistas, como a informática e a microeletrônica. Para o autor, na América Latina, a nova educação, “em vez de resgatar as dívidas da modernidade, cria novos desafios, na medida em que surgem novos analfabetos e excluídos”. 18 Ainda que no Terceiro Mundo fosse distribuído um computador por cabeça, isto nada modificaria sua situação, pois as pessoas não saberiam o que fazer com ele. O caminho que leva à utilização apropriada da informática, nesses países, é longo e impregnado de obstáculos. 19 (grifos nossos)

Todas essas transformações geram novas concepções de trabalho e criam novos estratos sociais, como por exemplo: os incluídos e os excluídos digitais. Assim, para Gamboa, as informações “não podem ser abordadas pela quantidade ou pela rapidez com que são transmitidas, mas por sua dimensão qualitativa.” 20 Enfim, a crítica do professor Gamboa é a da pretensão de se passar, no contexto latino-americano, de uma pré-modernidade a uma pós-modernidade, sem sequer realizar o ideário iluminista de educação, propugnado por Comenius, por exemplo. Outro teórico que merece a nossa menção é o autor da Teoria das Inteligências Múltiplas. No início da década de 1980, Howard Gardner chamou a atenção do mundo para a sua TIM - Teoria das Inteligências Múltiplas. 38

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Gardner considera que há um caráter múltiplo na inteligência, que consiste na possibilidade de vermos a habilidade se manifestar entre diferentes dimensões. As inteligências são distintas, mas interagem entre si. Para resolver um problema de matemática, por exemplo, Gardner considera a utilização das dimensões lingüística e espacial. A inteligência, segundo Gardner, não pode ser medida, pois o espectro das oito inteligências observadas por ele é desenvolvido entre fatores biopsicológicos e condições ambientais ao longo da vida do indivíduo. Cada inteligência tem seu próprio sistema simbólico e deriva da compreensão e do uso dos diferentes grupos culturais. A existência desses diferentes níveis de inteligência apóia a noção de que cada um desses níveis tem sua própria trajetória, de acordo com seu desenvolvimento. Afirma o teórico: “Cada inteligência está baseada, pelo menos inicialmente, em um potencial biológico que se expressa como o resultado da interação dos fatores genéticos e ambientais.” 21 No campo educacional, a Teoria das Inteligências Múltiplas pode auxiliar os educadores, apresentando alternativas para as seguintes práticas educacionais: avaliação, currículo, educação inclusiva e educação ambiental numa abordagem interdisciplinar e na valorização de oficinas pedagógicas, projetos educacionais e centros de interesse. As inteligências catalogadas por Gardner são: a) Inteligência Lingüística: apresenta elementos primordiais, que estão presentes na vida do indivíduo: escutar, falar, ler e escrever. Esses elementos dão sentidos à experiência educacional porque fazem conexão entre as disciplinas; b) Inteligência Lógico-Matemática: abrange três campos: matemática, ciência e lógica. O aluno deve ter habilidade para trabalhar com números e problemas matemáticos. A lógica, por sua vez, tem a ver com o processo de raciocínio. Então, a proposta é que o raciocínio lógico seja desenvolvido cientificamente em todas as disciplinas na arte de resolver problemas, de uma forma interdisciplinar. Ou seja, formular a hipótese, observar, experimentar dados, interpretar e elaborar conclusões; c) Inteligência Cinestésica: diz respeito à integração do corpo e mente. É necessário reintroduzir o conhecimento físico, por meio do movimento em sala de aula. Deve enfatizar a integração entre as experiências do corpo, relacionando a expressão corporal ao pensamento abstrato e simbólico. Nesse sentido, a arte é fundamental. É importante que o professor dê condições para que o indivíduo possa desenvolver o seu potencial criador; d) Inteligência Espacial: habilidades relacionadas indiretamente e não necessariamente com a visão, assim como manipulação de imagens, organização espacial, projeção e reconhecimento. É preciso estimular e desenvolver o mapeamento mental, a visão em R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.33-55, jan./dez. 2011

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perspectiva e a memória visual. Assim, constrói-se ou representa-se mentalmente, em abstrato, planos concretos ou idealizações; e) Inteligência Musical: Os primeiros anos de vida são fundamentais para essa inteligência, pois o bebê no útero convive com seus ritmos, suas batidas cardíacas, respiração, ondas cerebrais e outros fenômenos. O ritmo e a harmonia podem penetrar em sala de aula, estabelecendo um alto grau de equilíbrio entre corpo e mente. Ademais, a apreciação musical estimula a audição e o saber ouvir; f) Inteligência Interpessoal: permite a compreensão e a comunicação entre as pessoas. Todo professor deve ter essa habilidade, pois poderá observar, por meio do temperamento e do humor, os vários papéis que os alunos podem assumir dentro dos grupos. O professor deve promover o respeito entre os alunos, de forma que os medos de falar e de se expressar sejam superados; g) Inteligência Intrapessoal: Compreender-se melhor. Inclui nossos pensamentos e sentimentos. É, na verdade, uma maneira de aumentar o autoconhecimento. Tem a ver com a percepção de identidade, com a auto-estima, com estabelecimento de objetivos, com a educação emocional e com o aprender com seus próprios erros. h) Inteligência Naturalista: os primeiros humanos desenvolveram essa inteligência diante da necessidade de sobrevivência. Todos a utilizamos quando identificamos, classificamos ou categorizamos. Para se formar o indivíduo de forma holística, é necessário que essa inteligência se estenda à investigação das origens, do crescimento, da estruturação e da sobrevivência. Capacidade de perceber os fenômenos que ocorrem no espaço macrocosmo e microcosmo.22

O ensino na contemporaneidade deve se pautar por buscar a interdisciplinaridade e a contextualização. Assim, perseguimos uma visão orgânica do conhecimento, afinada com as mutações que o acesso à informação está causando no modo de abordar, analisar, explicar e prever a realidade. A Teoria das Inteligências Múltiplas possibilita, portanto, o vislumbre de novos caminhos na prática do professor e compõe uma nova abordagem: a de observação e acompanhamento do aluno dentro de suas possibilidades. Não poderíamos deixar de analisar por fim e, fundamentalmente, a publicação, pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO, em 1998, de “Educação: Um Tesouro a Descobrir – Relatório da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI”, coordenado por Jacques Delors. Esse relatório é fruto de uma conferência mundial de educação, realizada em 1990, em Jomtien, na Tailândia. Após todos os amplos debates realizados com educadores de todo o mundo, foram eleitos quatro pontos que devem representar o consenso de uma educação de qualidade, por meio dos quais as políticas nacionais de educação devem se nortear. 40

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Sabemos não ser fácil falar de consenso educacional, haja vista as diversidades e particularidades nacionais e regionais, problemas específicos e singulares, todavia, os quatro pilares da educação mundial (a seguir referidos) não foram pensados em termos deste ou daquele país, desta ou daquela ciência, ou desta ou daquela disciplina, mas foram pensados como um estatuto ético, valorativo, filosófico, abrangente, e plástico, fundado em princípios plasmados em valores consensuados em amplos debates. 23 O relatório consiste em importante diretriz educacional face às questões que desafiam os devires de um novo mundo, complexo, plural e globalizado, tornando oportuna a construção dialógica de um novo conceito de educação para o terceiro milênio. O relator, J. Delors, utilizou-se de uma metáfora, citando quatro pilares básicos e fundamentais para a educação do futuro, que são: “1. Ensinar/ Aprender a Conhecer; 2. Ensinar/ Aprender a Fazer; 3. Ensinar/ Aprender a Viver Juntos (compartilhar); 4. Ensinar/ Aprender a Ser.” 24 (grifos nossos) Os quatro pilares da educação mundial, de acordo com o relatório, dizem respeito à educação ao longo de toda a vida e, visando à sua implementação, indicou diretrizes a serem seguidas, com a finalidade de tornar concretos seus postulados abstratos. São elas: Aprender a conhecer, combinando uma cultura geral, suficientemente vasta, com a possibilidade de trabalhar em profundidade um pequeno número de matérias. O que também significa: aprender a aprender, para beneficiar-se das oportunidades oferecidas pela educação ao longo de toda a vida. Aprender a fazer, a fim de adquirir, não somente uma qualificação profissional, mas, de uma maneira mais ampla, competências que tornem a pessoa apta a enfrentar numerosas situações e a trabalhar em equipe. Mas também aprender a fazer, no âmbito das diversas experiências sociais ou de trabalho que se oferecem aos jovens e adolescentes, quer espontaneamente, fruto do contexto local ou nacional, quer formalmente, graças ao desenvolvimento do ensino alternado com o trabalho. Aprender a viver juntos, desenvolvendo a compreensão do outro e a percepção das interdependências – realizar projetos comuns e preparar-se para gerir conflitos – no respeito pelos valores do pluralismo, da compreensão mútua e da paz. Aprender a ser, para melhor desenvolver a sua personalidade e estar à altura de agir com cada vez maior capacidade de autonomia, de discernimento e de responsabilidade pessoal. Para isso, não negligenciar na educação nenhuma das potencialidades de cada indivíduo: memória, raciocínio, sentido estético, capacidades físicas, aptidão para comunicar-se.25

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Ressalta-se a importância de tais pilares no ensino jurídico, justamente pela necessidade de se inovar os métodos didáticos utilizados no campo da estrita racionalidade lógico-formal, tendo em vista os desafios que emergem das sociedades hipercomplexificadas no mundo contemporâneo. Assim, é imprescindível que os novos estudantes de Direito possuam um vasto conhecimento de mundo, para que possam estar mais sensíveis e aptos à resolução dos problemas humanos e sociais em sociedades cada vez mais complexas. Não obstante essa necessidade de aporte dos discentes quanto aos saberes transdiciplinares, observamos que uma parcela considerável dos ingressantes (nos cursos jurídicos) trazem graves defasagens em sua bagagem cultural, problemas na escrita e dificuldades em se expressar em público. Esse quadro endêmico resulta em uma geração que não consegue se estabelecer no competitivo mercado de trabalho, demonstrando a insuficiência do ensino jurídico tradicional face aos problemas que lhe desafiam. Já não se trata, neste primeiro quadrante do século XXI, de entoarmos um “de marré”, engrossando ainda mais as fileiras dos descontentes, mas de refletirmos positivamente sobre as possíveis soluções e alternativas aos problemas ensejados pelo ensino jurídico tradicional. Assim, mudanças vêm sendo promovidas no âmbito do ensino jurídico, a fim de adequar os discentes aos desafios decorrentes do mercado profissional. Encontra-se, em consonância com essas transformações, a Portaria MEC/ CES nº 1.886 de 30 de dezembro de 1994, importante marco legal desse novo paradigma de ensino jurídico, que ressalta, entre outras diretrizes, a importância da interdisciplinaridade.26 Outrossim, nota-se que a Portaria consagra uma visão de ensino jurídico que transcende em muito a sala de aula, ao determinar que “o curso jurídico desenvolva atividades de ensino, pesquisa e extensão interligadas e obrigatórias”, ultrapassando o antigo modelo de ensino unidimensional, ao incluir “pesquisa, extensão, seminários, simpósios, congressos, conferências, monitoria, iniciação científica e disciplinas não previstas no currículo pleno”, com o propósito de aperfeiçoá-lo. Diante do panorama anteriormente exposto e no intuito de contribuir para a formação dos graduandos em Direito da Faculdade Christus, 27 oferecendo-lhes uma formação cultural e humanística mais adequada, é que criamos, em 2011.1, o grupo de estudos “Ensino Jurídico, Arte e Cultura (Distraídos Venceremos)”; convertido, a partir de 2011.2, em um projeto mais amplo: “Distraídos Venceremos: Laboratório de Criatividade em Direito, Arte e Cultura”. Em atendimento às diretrizes estabelecidas na Resolução n° 09/2004, do Conselho Nacional de Educação CNE/CES, o Projeto constitui um laboratório criativo voltado ao manejo da palavra oral e escrita, por meio de metodologias heterodoxas, com vistas ao desenvolvimento das competências e habilidades necessárias à qualificação da leitura, da compreensão, da produção textual e da performance dramática dos futuros profissionais do Direito. In verbis: 42

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Art.4º - O curso de graduação em Direito deverá possibilitar a formação profissional que revele, pelo menos, as seguintes habilidades e competências: I - leitura, compreensão e elaboração de textos, atos e documentos jurídicos ou normativos, com a devida utilização das normas técnico-jurídicas; Curso de Direito mescla arte, cultura e responsabilidade social. Revista Interagir, Fortaleza, CE, maio/jun. 2011. II - interpretação e aplicação do Direito; [...] V - correta utilização da terminologia jurídica ou da Ciência do Direito; VI - utilização de raciocínio jurídico, de argumentação, de persuasão e de reflexão crítica; [...] VIII - domínio de tecnologias e métodos para permanente compreensão e aplicação do Direito.

Assim, percebemos que as mais novas diretrizes legais para o ensino jurídico são, na verdade, reverberações de uma mudança paradigmática da Educação contemporânea, em termos nacionais e transnacionais. Nesse contexto, o projeto ao qual dedicamos nosso estudo é um laboratório de experimentações, que visa à realização dos ideais pedagógicos aqui apresentados. As atividades realizadas no projeto oportunizam aos alunos, de forma transdisciplinar e prazerosa, o exercício positivo de suas competências discursivas. A integração de literatura, poesia, prosa e aspectos culturais de diversos movimentos artísticos proporcionam ao aluno o alargamento de seu horizonte hermenêutico, ao descortinar novos modos de pensar e de ver o mundo. A experiência se enriquece ainda mais, por estar amparada em tríplice dimensão de extensão, responsabilidade social e pesquisa. Esta última acontece por meio de pesquisa de campo acerca do ensino jurídico, com foco na análise dos resultados obtidos pelas metodologias empregadas no projeto. O que se pretende mensurar, ao longo da pesquisa, será o grau de desenvolvimento dos alunos, a partir de sua participação no grupo. Assim, os alunos envolvidos devem tornar-se objeto e sujeitos da pesquisa, ao mesmo tempo, por meio de técnicas de pesquisa qualitativa, tais como, entrevistas, grupo focal e observação participante; além de mensurações quantitativas, por meio de questionários com perguntas fechadas. O caráter multifacetado das diversas experiências do grupo intenta contribuir para a ampliação dos recursos interpretativos da realidade disponíveis pelos alunos. A propugnada interdisciplinaridade irá, ademais, valorizar todas as disciplinas ministradas no curso de Direito (propedêuticas e dogmáticas), posto que se interagem, conciliam-se e aplicam-se todos os estudos e atividades propostas à R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.33-55, jan./dez. 2011

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dogmática jurídica. 3 GRUPO DE ESTUDOS “ENSINO JURÍDICO, ARTE E CULTURA”: MODUS OPERANDI 3.1 Quanto à origem “Distraídos Venceremos” é o apelido carinhoso com que a professora responsável se refere ao projeto, que iniciou em 2011.1, como um grupo de estudos denominado “Ensino jurídico, arte e cultura”. Como as ações do grupo transcendiam os limites da pesquisa, o projeto foi reconfigurado, vindo a tornar-se, desde 2011.2: “Distraídos venceremos: Laboratório de Criatividade em Direito, Arte e Cultura”. A alcunha do grupo é um tributo à obra homônima de Paulo Leminski, escritor, poeta, tradutor e professor curitibano, por meio da qual ele intentava inserir a poesia no dia a dia das pessoas, de forma natural, despretensiosa, quase “distraída”. Nesse mesmo viés, o grupo foi concebido com a tríplice função de realizar pesquisa, extensão e responsabilidade social, com uma abordagem metodológica lúdica, estética e anticonvencional, numa experiência atravessada pela literatura e pelo teatro, tudo em um mesmo projeto. Ainda sobre o seu nascedouro: Ele (o grupo) foi idealizado como uma espécie de linha de fuga (Deleuze), frente às formas convencionais de abordagem do ensino jurídico. Um modo estético de pensar a sala de aula. Ou melhor: a sala de aula para além da sala de aula. A grandeza do pequeno sonho. A beleza da pequena via. De como mirabolar pequenos milagres e, enquanto isso, fazer grandes amigos. De como aprender que o que humaniza o homem não é apenas a sua racionalidade, mas notadamente a sua dimensão simbólica (Durand). De como emprestar vida e beleza ao trato comezinho das coisas, aproximando a sala de aula de um encontro lúdico e festivo (Maffesoli), em vez de fazer dela um encontro meramente burocrático. 28

Eis aí o mais interessante do grupo: o paradoxo. Este consiste num projeto ambicioso em que os alunos almejam a realização de objetivos complexos e variados, mas que são tratados com uma abordagem metodológica de leveza, delicadeza, fruição, prazer e ludicidade. Acerca desse paradoxo, a professora responsável compartilha alguns de seus questionamentos e inquietações, colhidos em nos estudos de campo: Como realizar objetivos ambiciosos com alunos ‘distraídos’, em vez de ‘oprimidos’? Como conduzir estudantes de Direito a promoverem o acesso de minorias sociais à cultura e ao conhecimento, enquanto eles mesmos reforçam, sem se darem conta, suas próprias competências discursivas? Como levar os nossos estudantes a abrir novas janelas, descortinando mundos que até então lhes pareciam insuspeitos? Como promover revoluções silenciosas, num plano molecular (Deleuze), suscitando o amor pela palavra, e não pela violência da exclusão? Como infundir em nossos alunos o amor pelo belo, enquanto empres44

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tam sua voz, sua emoção, seu gestual, seu corpo, sua performance, a serviço da beleza? Como desenvolver e consolidar competências discursivas, de produção e interpretação textual, ao mesmo tempo em que se investe nas habilidades performáticas e dramatizantes do discurso falado, tão caras aos futuros advogados? 29 O nascedouro do grupo foi marcado por uma disputada seleção, constando de duas etapas classificatórias, que chegaram ao preenchimento de 20 vagas. A 1ª etapa consistiu em uma leitura expressiva, performática e dramatizada de dois textos literários (os poemas “Quero” de Drummond e “Uma Arte” de Elizabeth Bishop, com tradução de Paulo Henriques Britto), perante banca examinadora. Os candidatos que alcançaram a média mínima 7,0 (sete) na 1ª etapa foram imediatamente convocados para a 2ª etapa, que se constituiu de prova dissertativa acerca do “Estudo de campo no ensino jurídico”, com especial enfoque em estudo de caso, observação participativa, grupo focal e pesquisa qualitativa em geral. 3.2 Quanto à metodologia Selecionados os alunos, foram iniciados os trabalhos concernentes ao projeto, observada a seguinte ordem de trabalhos: • rodas de leituras, mediante pesquisas coletivas de textos literários, de prosa e poética de autores consagrados, nacional e internacionalmente, com ênfase em produções contemporâneas; • discussão dos textos literários trabalhados em blog do grupo e em página de comunidade do grupo no Facebook; • ensaios de leitura dramatizada, expressiva e performática dos textos literários selecionados; • realização de apresentações em espaços públicos, voltadas, num primeiro momento, aos deficientes visuais da Associação dos Cegos do Estado do Ceará – ACEC (como ação de responsabilidade social), em 10 e 31 de maio de 2011; • apresentações, num segundo momento, voltadas ao público interno (em maio de 2011, na abertura de encontro de pesquisa da IES) e para o público externo, de modo geral, no Centro Cultural Dragão do Mar, em Fortaleza, esta última, ocorrida em 02 de julho de 2011; • coleta e análise de dados a partir de observação participativa e realização de entrevistas e aplicação de questionários para avaliar os resultados obtidos com a experiência, confrontando-os com os resultados pretendidos, de modo a municiar os alunos interessados na produção de artigos científicos acerca da experiência individual e de grupo, enquanto estudo de caso, de modo a aferir as possíveis repercussões da experiência vivida pelo alunado (na condição de sujeito e objeto de seu próprio conhecimento), em relação ao paradigma de ensino jurídico traçado pela Resolução n.9/2004. 3.3 Quanto aos objetivos

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Dentre os objetivos gerais almejados pelo grupo, enfatizamos o desenvolvimento das competências discursivas concernentes às performances oral, escrita e interpretativa, utilizadas como ferramentas indispensáveis à orientação multilateral dos estudantes, rompendo, assim, com o paradigma metodológico tradicional adstrito à memorização de textos normativos e à aceitação passiva de argumentos. Dentre os objetivos específicos, o grupo se propôs a desenvolver nos discentes: • o domínio da palavra escrita, a partir da influência das estratégias e dos estilos de literatos; • o reforço dos subsídios de apresentação em público; • a possibilidade de ampliação do horizonte hermenêutico dos envolvidos por meio da literatura e da alteridade que ela promove; • a realização de ações multifacetadas, mediante a experiência concreta de atividades que conjugassem pesquisa, extensão e responsabilidade social. 4 TRANSDISCIPLINARIDADE Partimos da premissa de que, para compreender o Direito, é necessário compreender muito mais do que o Direito. Fica claro, portanto, que a formação dos profissionais jurídicos deve, necessariamente, passar pelo crivo multidisciplinar de outros saberes humanos. Só assim o padrão normativo tão utilizado pelo Direito terá condições de ser mais bem manipulado e, vale dizer, adequadamente aplicado às condições do meio social, inclusive aos casos concretos por eles expressos, com maior eficácia. Em realidade, as relações sociais afloram de aspectos íntimos que confluem de cada indivíduo, sendo alguns deles a linguagem, o saber e as obrigações, acompanhadas de suas normas. Percebemos, então, que é a junção, e não a individualidade dos elementos diversos, a responsável pela formação da multidimensionalidade 30 nas vivências humanas. Torna-se possível, facilmente, perceber que nenhum estudo normativo consegue se exteriorizar, satisfatoriamente, quando se encontra isolado. Como acentua François Recanati: “a compreensão dos enunciados, longe de se reduzir a mera decodificação, é um processo não-modular de interpretação que mobiliza a inteligência geral e faz amplo apelo ao conhecimento do mundo”. 31 De igual modo, a análise do grupo “Distraídos Venceremos” permitiu-nos acesso a uma série de fatores desencadeadores de relações transdisciplinares. A simples leitura e a interpretação de textos conseguem unir o despertar de sentimentos juntamente ao relacionamento com a platéia, assim como, de forma despretensiosa, amealha caracteres caros aos profissionais jurídicos, com ênfase na retórica e na oratória. Partindo das prerrogativas anteriormente elencadas, não podemos, contudo, nos furtar aqui de tecer um breve comentário acerca da influência exercida pelo desenvolvimento de atividades multidisciplinares no que tange 46

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ao desenvolvimento retórico-oratório dos profissionais jurídicos. A retórica não é um recurso novo, ela remonta aos tempos da práxis greco-romana, quando, como é sabido, fazia parte da formação do jurista. Como explica Ferraz Júnior: “A influência da retórica é visível nas técnicas de interpretação, não só no seu arcabouço teórico, mas também na fixação das diversas tendências: interpretação da letra de lei contra interpretação do seu sentido”. Mais uma vez observamos, além do entrelaçamento transdiciplinar, que a maximização das competências discursivas possibilita, a influência de um desempenho performático por parte do jurista, a fim de que consiga legitimar-se em face de seu auditório – seja uma grande audiência, seja uma situação comunicacional promovida entre dois interactantes . Isso significar que precisamos dispor de ferramentas que consolidem o arsenal dialógico inerente às exigências de cognição e interpretação normativas, fato este, como já explicitado anteriormente, constituinte de um dos principais objetivos do grupo “Distraídos Venceremos”. Em outro plano, é importante registrar que a disjunção entre as humanidades e as ciências, assim como a separação das ciências em disciplinas hiperespecializadas32, contribuem para uma menor inserção do profissional jurídico no âmbito real dos problemas que os rodeia. Este se transforma num mero disseminador de leis que já lhe foram impostas no tempo de sua formação, sendo impedido de realizar juízos de valor adequados, o que justifica, em parte, a falta de preparo dos recém formados em lidar com as questões apresentadas logo no início da sua carreira profissional. Os problemas fundamentais e os problemas globais, quando da formação dos estudantes de Direito, não podem se ausentar das ciências disciplinares. Uma vez unidas, seus aportes irão figurar numa agregação de completude aos futuros profissionais, fazendo que o humano não mais se desloque dos caracteres subjetivos, existenciais e poéticos, os quais se encontram confinados nos departamentos de literatura e poesia. 33 Nessas condições, havendo uma distorção no ideal de unir disciplinas do saber para uma maior formação humanística, as mentes dos discentes, que, vale ressaltar, estão em estado de formação, perdem suas aptidões naturais para contextualizar os saberes. Torna-se difícil integrar situações fragmentadas e distintas, causando o enfraquecimento da responsabilidade (cada qual incumbindo-se apenas de sua tarefa especializada), reportando-nos a modelos ultrapassados de produção moderna em que o homem é alienado da totalidade de suas funções. Outrossim, percebemos a fragilização da solidariedade, com a perda dos vínculos entre os concidadãos, que são mecanicamente levados a resolver problemas sem se preocupar com a diversidade de soluções que a eles podem ser aplicadas. Com efeito, ressaltamos que a completude dos profissionais jurídicos encontra-se alicerçada na gama de conhecimentos por eles oferecida. A presença da transdisciplinaridade na vida desses profissionais, principalmente durante a sua formação, amplia os horizontes para a resolução de casos concretos, pois, os R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.33-55, jan./dez. 2011

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profissionais serão obrigados a sopesar conjecturas, e a resolver, com equidade, os casos concretos. Daí, advêm alguns dos aspectos que o projeto “Distraídos Venceremos” buscou aprimorar durante a sua trajetória como grupo de estudos, destacando a necessidade de apostar na formação de estudantes multifacetados, preparados para lidar com as demandas multitarefárias a que serão, posteriormente, submetidos em sua atuação profissional. 5 FORMAÇÃO HUMANÍSTICA E CULTURAL: O ENSINO JURÍDICO PARA ALÉM DO DIREITO Na sociedade informacional da era digital, em que as informações estão disponíveis on-line, mais do que nunca, a arte de ensinar não pode estar adstrita à simples transmissão de conhecimentos; do mesmo modo que a experiência de aprender não pode resumir-se ao mero acúmulo de informações a serem transferidas pelos professores aos seus alunos. Não obstante, a formação humanística do profissional do Direito se encontra, ainda hoje, no mais das vezes, limitada à excessiva utilização de metodologias formalísticas e reprodutoras de um conhecimento senhorial e dogmático. O que culmina na formação de profissionais alienados face à realidade social. Esse estado de coisas se expande para uma população não esclarecida, já que os profissionais responsáveis pela transmissão de um pensamento crítico, aberto e plural, estão, eles mesmos, enfronhados em pensamento auto-referencial e enclausurado. [...] é preciso reconhecer que, nos dias atuais, quando se fala em ciência do direito, no sentido do estudo que se processa nas faculdades de direito, há uma tendência em identificá-la com um tipo de produção técnica, apenas a atender às necessidades do profissional (o juiz, o promotor, o advogado) no desempenho imediato de suas funções. Na verdade, nos últimos 100 anos, o jurista teórico, pela sua formação universitária, foi sendo conduzido a esse tipo de especialização, fechada e formalista. 34

No atual ensino jurídico, ainda tendemos predominantemente para a cristalização de ideologias dominantes, por meio de posturas metodológicas que encarceram os alunos em um pensamento não reflexivo e acrítico, basicamente voltadas ao reforço do chamado “argumento de autoridade”. Assim, não se desenvolvem as ferramentas apropriadas à formação de um pensamento autônomo, criativo e reflexivo, capaz de construir alternativas para problemas cujas soluções não estão prontas no mundo codificado da norma. Partindo da premissa de que a dúvida é a origem da verdade, entendemos que ações destinadas à ampliação do horizonte hermenêutico dos discentes são mais que benfazejas, por não adestrarem o seu pensamento, mas sim, desenvolvê-lo. 6 DIREITO, ARTE E LITERATURA 48

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Capacitar-se para as artes da retórica e da oratória, por meio de apresentações públicas, reiteradas e sistemáticas, não deve levar os futuros profissionais do Direito a se ancorarem apenas no triunfo pragmático de uma performance eloquente. 35 Então, compreendemos que a experiência da leitura, além de funcionar como ferramenta de auxílio do profissional jurídico, encerra uma atividade especialmente humana, empática, de alteridade: a leitura pode ensinar o homem a se compreender e a se encontrar com o outro. Sendo assim, percebemos que o entrelaçamento 36 entre leitor e livro propicia uma maior visibilidade do interlocutor para com os problemas advindos da realidade circundante, pois os leitores adquirem uma sensibilidade para resolver os mais variados problemas graças às experiências proporcionadas pelo relacionamento com os sujeitos dos textos, ou seja, é possível tornarmo-nos senhores de nossos problemas e deles nos apoderarmos, partindo de uma simbiose entre literatura e vida.37 Quanto aos estudos de campo, envolvendo os alunos partícipes do grupo, ainda em fase inicial de pesquisa, percebemos a compreensão, da parte dos entrevistados, acerca do papel da literatura no meio acadêmico, a começar pela forma com a qual os textos literários podem contribuir para a formação do sujeito e, mais especificamente, do profissional jurídico, notadamente quanto à possibilidade de despertar o seu interesse pela palavra escrita e pelo desenvolvimento e consolidação de habilidades e competências discursivas. Ressaltamos que a leitura de textos literários dá ensejo, ainda, a uma dimensão catártica, vez que não procura somente despertar conhecimento, gerando, também, um efeito que atiça emoções. Nesse sentido, afirma Bobbio, que “a função expressiva, própria da linguagem poética, consiste em evidenciar certos sentimentos e em tentar evocá-los, de modo a fazer participar os outros de uma certa situação sentimental.” 38 “Eu é um outro”, já dizia Rimbaud, reportando-nos ao universo em que a Literatura se debruça, no qual se implica o leitor como um sujeito ativo de interpretação de problemas fictícios, provindos da identificação do interlocutor com a expressividade adotada pelos personagens literários. Os profissionais jurídicos, igualmente, possuem a necessidade de lidar, frequentemente, com os problemas alheios, tendo que, nessas condições, achar as resoluções mais adequadas e cabíveis. A partir daí, é possível perceber a importância da literatura aplicada ao Direito, pois este exige um contínuo relacionamento com o outro (devido à imposição de um trânsito entre problemas e soluções) e aquela ensina o leitor a lidar com uma realidade distinta da sua. Então, por que não utilizar um em benefício do outro? Por que não alargar o horizonte hermenêutico dos estudantes de Direito, promovendo um laboratório de alteridades, por meio de um contínuo despertar literário? De forma bastante descontraída, o grupo “Distraídos Venceremos” é um laboratório experimental que procura levar o educando a fazer novas descoR. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.33-55, jan./dez. 2011

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bertas em torno do conhecimento, sem que este processo adquira o caráter de adestramento ou domesticação. Nada mais natural, então, que a educação parta da realidade existencial dos indivíduos. Que a educação se fundamente no já conhecido, pois a transmissão do conhecimento se faz a partir da decodificação de símbolos, sendo estes referentes às experiências vividas pelo indivíduo. Em contrapartida, experiências extrassala de aula, palco de atuação do grupo em foco, proporcionam uma maior aplicação do que antes só era absorvido conceitualmente. A transmissão do conhecimento e de conceitos alcança maior sucesso se feita por meio de casos concretos. Sendo assim, por em prática o que antes só se conhecia conceitualmente, culmina numa maior aderência do conhecimento empírico face àqueles que o vivenciam concretamente. A partir dessas premissas, lembremo-nos de Gendlin: “Pensar implica uma corrente de sentimentos e experiências que se referem a algo concreto. O pensamento e a solução de problemas sempre ocorrem através da experiência (felt meaning) e não apenas mediante conceitos verbais como tais [...]” 39 Ora, a teoria jurídica, neste plano, vai além de um construído sistemático40 da razão e, em nome da própria razão, passa a ser um instrumento de crítica da realidade avaliada, deveras, pelos integrantes do grupo, engendrando-se um procedimento de obtenção do conhecimento, como critério de validação dos resultados, os quais foram efetivados de forma gradativa. A propósito, nesse mesmo âmbito, podemos observar como a arte é capaz de educar. É preciso rejeitar o modelo falsamente universal, que consiste num encadeamento de conceitos e que passa pelo filtro da linguagem, e introduzir a ideia de uma compreensão corporal e afetiva, fundada sobre analogias pessoalmente sentidas.41 Faz-se mais interessante estimular as relações humanas exigidas pelo Direito, partindo de um “privilegiado espaço para que os alunos pesquisem, organizem, investiguem e identifiquem as linguagens artísticas no mundo em que vivem e nos anseios com que, por meio da linguagem universal da arte, buscam com os outros conviver”. 42 Partindo da ideia de que o jurista não passa de um ator, tendo que interpretar no seu ambiente de trabalho, percebemos a importância das dramatizações de cunho teatral desenvolvidas pelo grupo “Distraídos Venceremos”. Em sentido convergente, explica Erving Goffman: Não é provavelmente um mero acidente histórico que a palavra “pessoa”, em sua acepção primeira, queira dizer máscara. Mas, antes, o reconhecimento do fato de que todo homem está sempre e em todo lugar, mais ou menos conscientemente, representando um papel [...] é nesses papéis que nos conhecemos uns aos outros; é nesses papéis que nos conhecemos a nós mesmos. 43

É assim, procedendo a partir de dramatizações de cunho literário e teatral, que o grupo “Distraídos Venceremos” vem logrando atravessar o ensino jurídico com uma experiência estética e cultural, usando a Arte em benefício 50

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do Direito, a fim de promover e fomentar o interesse pela leitura, compreensão, produção e interpretação textual, no sentido lato da sua expressão, de forma a reverberar na consolidação dessas mesmas capacidades, no que concerne ao âmbito jurídico. CONSIDERACÕES FINAIS Optando por uma experiência metodológica rica e inovadora, o projeto “Distraídos Venceremos: Laboratório de Criatividade em Direito, Arte e Cultura”, promovido pela Faculdade Christus, proporciona aos seus participantes a ampliação de sua visão de mundo. Dessa forma, dá voz ao aluno e respeita sua compreensão dos fatos, enfatiza a alteridade e introduz uma ampla dimensão de respeito pelo outro. Assim, como bem declara um dos integrantes do grupo, Enyo Venâncio da Silva, “a participação no grupo de estudo é uma experiência importante na carreira acadêmica e, também, na vida profissional [...] é uma ferramenta imprescindível para nossa completa formação”. 44 Como já explicitamos, o projeto em apreço encontra-se amplamente corroborado e justificado por constituir importante instrumento de realização dos objetivos pretendidos pela Resolução n.9/2004, notadamente no que se refere ao aprimoramento das competências e habilidades vertidas em seu art.4º, supra, operando como um espaço qualificado em que se podem transcender os estritos limites da sala de aula. Esperamos voltar a nos debruçar sobre essa temática em oportunidades futuras, quando a pesquisa de campo, que está em andamento, houver chegado ao seu curso, a fim de compartilhar com a comunidade acadêmica, interessada em novas metodologias, o mapeamento dos resultados efetivamente alcançados. REFERÊNCIAS BEDÊ, Fayga Silveira. Ciberintimidade: a escrita de si na era digital. 2010. 246 f. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2010. ______________. Curso de Direito mescla arte, cultura e responsabilidade social. Revista Interagir, Fortaleza, CE, maio/jun. 2011. BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica. São Paulo: Edipro, 2008. BOUDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. CARBONELL, Sonia. Educação Estética para Jovens e Adultos: a beleza no ensinar e no aprender. São Paulo: Cortez, 2010. CASAIS MONTEIRO, Adolfo. O romance (teoria e crítica). Rio de Janeiro: José Olympio, 1964.

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5 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martin Claret, 2000. 6 A proliferação de estudantes universitários com defasagens em sua formação, em geral, e em sua bagagem humanístico-cultural, em particular, é resultado direto do aumento exponencial do acesso ao ensino superior no Brasil, que, antes, estava restrito quase que somente à oferta de vagas nas universidades públicas. 7 GUTIÉRREZ, Francisco. À procura de sentido na Educação. In: ROMÃO, José Eustáquio. Questões do Séc. XXI. São Paulo: Cortez, 2003, p. 42. 8 Ibid., p. 43-44. 9 GADOTTI, Moacir. Pedagogia da terra e cultura da sustentabilidade. In: ROMÃO, José Eustáquio. Questões do Séc. XXI. São Paulo: Cortez, 2003, p. 49. 10 São signatários dessa Pedagogia: Paulo Freire, Leonardo Boff, Boaventura de Sousa Santos, Francisco Gutiérrez, Milton Santos, Fritjop Capra, Edgar Morin, entre outros. 11 Idem, bidem, p. 50-51. 12 MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009. p. 11. 13 Ibid., p. 11. 14 Ibid., p. 14-15. 15 Educador e Filósofo Checo (Morávia – 1592 / 1670). Autor de “The Labyrinth of the Word and the Paradise of the Hearth”. O estabelecimento da British Royal Society foi nele inspirada. Seus escritos sobre educação visavam ao aperfeiçoamento dos alunos em classe e, dessa forma, ao aperfeiçoamento da humanidade em geral. Cf. Palmer, Joy A. 50 grandes educadores. São Paulo: Contexto, 2005. 16 GAMBOA, Sílvio Sánchez. A globalização e os desafios da Educação no limiar do novo século: um olhar desde a América Latina. In: LOMBARDI, José Claudinei. Globalização, pós-modernidade e educação: história, filosofia e temas transversais. Campinas: Autores Associados, 2003, p. 85. 17 Ibid., p. 86 18 Ibid., p. 87. 19 SCHAFF, 1993 apud Gamboa, Sílvio Sanchez. A globalização e os desafios da Educação no limiar do novo século: um olhar desde a América Latina. In: LOMBARDI, José Claudinei. Globalização, pós-modernidade e educação: história, filosofia e temas transversais. Campinas, SP: Autores Associados, 2003, p. 90. 20 GAMBOA, op. cit., p. 92. 21 GARDNER, Howard. Inteligências múltiplas: a teoria na prática. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995, p. 78. 22 ALVES, Solange Vitória. Trabalhando as inteligências múltiplas em sala de aula. Brasília: Plano, 2003, p. 33-34. 23 SELBACH, Simone. Arte e didática. Petrópolis: Vozes, 2010. 24 UNESCO. Relatório Jacques Delours. UNESCO. p. 26. Disponível em <HTTP://www.unesdoc.unesco. org/images/0012/001271/127139Porb.pdf> Acesso em: 28 mar. 2011. 25 UNESCO. Relatório Jacques Delours. www.unesdoc.unesco.org. p. 26-27. Disponível em <HTTP:// www.unesdoc.unesco.org/images/0012/001271/127139Porb.pdf> Acesso em: 28.mar.2011. 26 De acordo com Katya Kozicki, “somente um pensamento verdadeiramente interdisciplinar pode constituir a base para a transformação da realidade”. Cf. KOZICKI, Katya. Afinal, o que significa uma “teoria do direito”? In: CERQUEIRA, Daniel Torres de. FRAGALE FILHO, Roberto (Org.). O ensino jurídico em debate: o papel das disciplinas propedêuticas na formação jurídica. Campinas: Millennium, 2006, p. 27. 27 Em Fortaleza, no Ceará. 28 BEDÊ, Fayga Silveira. Curso de Direito mescla arte, cultura e responsabilidade social. Revista Interagir, Fortaleza, CE, maio/jun. 2011. 29 Cf. trecho de entrevista prestada. 30 Para Edgar Morin, consiste na inter – retroação permanente com todas as outras dimensões humanas, ou seja, a sociedade comporta várias dimensões, dentre elas a histórica, a economia, a sociológica, a religiosa, entre outras. Sendo assim, não se poderia isolar uma parte do todo. MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez, 2000. 31 RECANATI apud MORIN, 2000, op. cit. 32 Segundo Morin, consistiria na especialização que se fecha sobre si mesma, sem permitir sua integração na problemática global ou na concepção de conjunto do objeto do qual ela só considera um aspecto ou uma parte. Cf. MORIN, 2000, ibid. 33 Edgar Morin, 2000, ibid, p.40. 34 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. A ciência do Direito. SÃO PAULO: Atlas, 2009. 35 Cesare Beccaria, em sua obra “Dos Delitos e das Penas”.

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“Distraídos Venceremos”: Laboratório de Criatividade em Direito, Arte e Cultura – Um Estudo de Caso

36 A arte, como produtora de novas conexões, traduz muitas realidades direcionadas a um único sujeito, ou seja, a prática artística remete o sujeito a outras realidades distintas da sua, proporcionando-lhe novos enlaces com o mundo, descortinando diversos saberes que antes se escondiam por trás de interpretações estáticas e predeterminadas. Rodrigo Naves traduz parte desse pensamento ao mencionar: “Creio que não haveria necessidade de arte se nos satisfizéssemos com os nexos que experimentamos corriqueiramente. E portanto considero que a forma artística reside na construção desse outro complexo de relações que remete ao mundo que conhecemos, ainda que lhe voltemos as costas.” NAVES, Rodrigo. O moinho e o vento. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 37 PRIGOL, Valdir. Como encontrar-se e outras experiências através da leitura de textos literários. Chapecó, SC: Argos, 2010, p.17. 38 DUARTE JÚNIOR, João Francisco. Fundamentos Estéticos da Educação. São Paulo: Papirus, 1988, p. 62. 39 GENDLIN apud DUARTE JÚNIOR, João Francisco. Fundamentos Estéticos da Educação. SP: Papirus, 1988, p. 63. 40 O modelo de educação sistemático, cujas conseqüências estamos suportando hoje, segundo Moacir Gadotti: “é um modelo, trazido pelos especialistas norte-americanos, desde 1966, quando foi firmado o acordo entre o MEC e a USAID (United States Agency for International Development)”. Esse modelo dispõe de profissionalização desde os níveis mais baixos do ensino e de especializações pragmáticas, que apresenta fórmulas e sentidos já prontos ao educando, desconectados de sua realidade social e cultural. Cf. GADOTTI, op. cit. 41 TARDY, Michel. O professor e as imagens. SP: Cultrix- EDUSP, 1976, p.93-94. 42 SELBACH, Simone. Arte e didática. Petrópolis: Vozes, 2010, p. 40. 43 Cf. GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis, RJ: Vozes, 1985. 44 Cf. BEDÊ, Fayga. Curso de Direito mescla arte, cultura e responsabilidade social. Revista Interagir, Fortaleza, CE, maio/jun. 2011.

“DISTRACTED WE SHALL WIN”: A LABORATORY OF CREATIVITY IN LAW, ART AND CULTURE - A CASE STUDY ABSTRACT The exercise of abilities and appetencies regarding the use of the spoken and written language, through the development of expressive and performing skills, become tools for legal education, the main focus of this paper. The project “Distracted we shall win: A Laboratory of Creativity in Law, Arts and Culture” uses innovative methodologies to consolidate general and humanistic education of the students involved, by promoting experiences that join research, extension and social responsibility, focusing on the expansion of cultural knowledge as required by ENADE (Brazilian National Exam of Student Performance). This paper aims to describe the savoir-faire of the methodology used by the group as a counterproposal to a formalistic, technical and reductionist legal education. Keywords: Legal Education. Arts. Culture. ENADE. New methodologies. R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.33-55, jan./dez. 2011

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Saúde e Meio Ambiente: Uma Imbricada e Necessária Relação Germana Parente Neiva Belchior* Gleice Silva Queiroz de Lima** Introdução. 1 Considerações concernentes à sociedade de risco e à crise ambiental. 2 Meio ambiente como direito e dever fundamental. 3 Saúde como direito fundamental 4 Os efeitos da qualidade ambiental na saúde. Conclusão. Referências.

RESUMO Durante séculos, o ser humano se apropriou daquilo que a natureza produz sem qualquer preocupação de ordem ecológica. Porém, no século XX, a natureza começou a dar sinais de exaurimento de seus recursos, fazendo surgir uma grave crise ambiental, prejudicando os sistemas político, econômico e social e, principalmente, a saúde de todos os habitantes do planeta. O objetivo geral deste trabalho é, pois, investigar a relação entre os direitos fundamentais à saúde e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, com vistas a garantir uma sadia qualidade de vida do ser humano. Discorrer acerca do direito fundamental à saúde - elencado no caput do art. 6º, como também nos artigos 196 a 200 da Constituição Federal de 1988 – pressupõe, portanto, falar na qualidade do meio ambiente, positivado no artigo 225 da Carta Magna. A metodologia aplicada é bibliográfica, teórica, descritiva, explicativa e dedutiva, ressaltando em uma transdisciplinaridade. A articulação dessas dimensões resultou em uma compreensão coerente da atual sociedade de risco e das incertezas a ela inerentes, como forma de buscar efetivar não apenas o direito fundamental ao meio ambiente sadio, mas também, não menos importante, o direito à saúde, erigido pelo constituinte originário como um direito fundamental. Os principais resultados obtidos demonstram que, para que os problemas revelados na sociedade de risco pós-moderna não se apresentem em graus irreversíveis, necessário se faz repensar o modelo predatório *

Doutoranda em Direito Ambiental pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará. Professora do curso de Direito da Faculdade Christus e de vários cursos de pós-graduação. E-mail: germana_belchior@yahoo.com.br ** Licenciada em Letras pela Universidade Federal do Ceará. Graduanda do curso de Direito da Faculdade Christus, em Fortaleza, e bolsista do Programa de Iniciação Científica da mesma IES.

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e poluidor de desenvolvimento econômico adotado no Brasil, promovendo o desenvolvimento sustentável, o que demanda mudança de mentalidade e de comportamento do homem acerca de seu posicionamento em relação à natureza. PALAVRAS-CHAVE: Saúde. Meio Ambiente. Risco. Relação. INTRODUÇÃO Durante séculos, o ser humano se apropriou daquilo que a natureza produz sem qualquer preocupação de ordem ecológica. Após o advento da Revolução Industrial, que veio a consolidar o sistema econômico capitalista, a natureza passou a ser cada vez mais explorada, impossibilitando, assim, a renovação de muitos de seus recursos. Dessa forma, no século XX, a natureza começou a dar sinais de exaurimento de seus recursos, fazendo surgir uma grave crise ambiental, prejudicando os sistemas político, econômico e social e, principalmente, a saúde de todos os habitantes do planeta. Como sinais dessa crise têm-se a poluição das águas e do ar, os desastres naturais, o efeito estufa, a extinção de espécies da fauna e da flora, as mudanças climáticas, a contaminação dos alimentos, assim como os processos de erosão, de desflorestamento e de desertificação. Referida crise é um dos elementos-chave da atual sociedade de risco, que tem como característica não apenas os riscos ambientais como também os químicos, os nucleares, os genéticos, os econômicos, entre outros. O objetivo geral deste trabalho é investigar a relação entre os direitos fundamentais à saúde e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, com vistas a garantir uma sadia qualidade de vida do ser humano. A metodologia utilizada é bibliográfica, teórica, descritiva, explicativa e dedutiva, ressaltando a transdisciplinaridade. Em um primeiro momento do artigo, efetuar-se-ão considerações concernentes à sociedade de risco e à crise ambiental. Posteriormente, realizar-se-á um estudo a respeito do meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito e dever fundamental. Em seguida, far-se-á um estudo relativo à saúde como direito fundamental. Para, por fim, discorrer sobre os efeitos da qualidade ambiental na saúde humana. 1 CONSIDERAÇÕES CONCERNENTES À SOCIEDADE DE RISCO E À CRISE AMBIENTAL Durante o século XVIII – chamado “Século das Luzes” –, a Europa tornou-se palco de profundas transformações sociais, econômicas, filosóficas e políticas influenciadas pelo Iluminismo, movimento intelectual caracterizador R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.56-69, jan./dez. 2011

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do pensamento da época, que admitia que os seres humanos tornariam o mundo melhor, mediante a introspecção, o engajamento político-social e o livre exercício de suas capacidades. O homem deveria colocar-se no centro das decisões e passar a buscar, por meio da ciência, respostas para as questões que, até então, eram explicadas somente pela fé. Desse modo, apenas o conhecimento levaria o ser humano a conquistar a liberdade e a felicidade. Essa corrente de pensamento tornou-se a mola impulsora de eventos políticos, sociais e econômicos que se revelariam de extrema importância para a constituição do mundo moderno, tais como a Revolução Francesa e a Revolução Industrial. A Revolução Francesa, conjunto de acontecimentos ocorridos entre os anos de 1789 e 1799, que marcou a transição entre Idade Média e Idade Moderna, proclamava os princípios da liberdade, da igualdade e da fraternidade, sob influência de Rousseau. Por sua vez, a Revolução Industrial, ocorrida na Inglaterra no século XVIII, apresentou como consequência o amadurecimento e a consolidação do sistema econômico capitalista, aumentando a exploração dos recursos ambientais, em função da produção industrial.1 Dessa forma, a Idade Moderna ficou marcada pelo predomínio do racionalismo, do antropocentrismo clássico, do universalismo, da valorização da propriedade, do individualismo, do pragmatismo e da defesa da liberdade. A ciência moderna, sem saber o que fazer com a complexidade – uma das características mais visíveis no universo do qual se faz parte – reduziu o complexo ao simples, criando os vários saberes particulares e as diversas especialidades. Ganhou-se em detalhe, mas perdeu-se a totalidade. Houve um formidável esquecimento do ser em favor do existente.2 Ao passo que a filosofia capitalista defende o acúmulo de riquezas, o antropocentrismo, em sua dimensão clássica, eleva o homem a uma posição de dominação do meio ambiente. Apesar das muitas inovações tecnológicas e dos avanços decorrentes da Revolução Industrial, ela também intensificou o processo de degradação ecológica, marcado pelo uso exacerbado e irresponsável dos recursos naturais por parte dos seres humanos, para satisfação de suas necessidades ilimitadas, impossibilitando, assim, a renovação de muitos desses recursos. No século XX, a natureza começou, então, a dar sinais de exaurimento, fazendo surgir uma grave crise ambiental, prejudicando os sistemas político, econômico e social e, principalmente, a saúde de todos os habitantes do planeta. 58

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Como sinais dessa crise têm-se a poluição das águas e do ar, os desastres naturais, o efeito estufa, a extinção de espécies da fauna e da flora, as mudanças climáticas, a contaminação dos alimentos, assim como os processos de erosão, de desflorestamento e de desertificação. Surge, nesse contexto, a chamada sociedade de risco, de acordo com a proposta do sociólogo alemão Ulrich Beck3 característica do período pós-moderno. Esse momento é resultado das frustrações do homem moderno, que não conseguiu pôr em prática os princípios idealizados durante a Revolução Francesa, uma vez que a humanidade tornou-se ainda mais desigual, individualista, narcisista e gananciosa, preocupando-se cada vez menos com o bem-estar coletivo e com o meio ambiente. Oportuna a manifestação de Ferreira: Em um período de transição que guarda poucas certezas, parece evidente que a promessa de bem-estar da civilização não se concretizou. O modelo de desenvolvimento amparado nas dimensões ilimitadas do crescimento econômico projetou-se alheio à justiça social e à prudência ambiental, provocando um abalo considerável na ideologia do progresso. Os efeitos indesejados do processo de modernização anunciam a chegada de tempos de crise generalizada. A sociedade industrial inquieta-se.4

O período pós-moderno também é marcado pela liquidez dos conceitos defendida por Bauman, pois, no mundo hodierno, os valores são muito instáveis, de modo que estão em constante transformação5. A maioria dos seres humanos não está mais preocupada em cultivar valores que elevem seu caráter ou que lhe tornem uma pessoa melhor. Muitas vezes, seguem uma “moda” que dita os valores a serem seguidos de acordo com o que melhor convier. A sociedade de risco é marcada pelo risco permanente, e não mais acidental. Dessa forma, os riscos ambientais (riscos naturais intensificados pela ação humana) trazidos pelas inovações tecnológicas tornam-se planetários, invisíveis, imprevisíveis e, muitas vezes, imperceptíveis, gerando um sentimento de insegurança mundial. Essa liquidez dos conceitos afeta os seres humanos e, consequentemente, atinge todo o meio ambiente, visto que, de acordo com a conveniência, o meio natural pode ser resguardado ou não, causando uma enorme insegurança para o meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem como para a sadia qualidade de vida. Referido sentimento de insegurança e de medo dos riscos desconhecidos trouxe a crise do paradigma positivista da Ciência, ocasião em que a questão ecológica passa a estar na pauta da discussão jurídica. A respeito do tema, aduz Ferreira que “a sociedade de risco origina-se quando os riscos oriundos de ações e decisões humanas rompem os pilares de certeza estabelecidos pela sociedade industrial, minando, como consequência, os seus padrões de segurança”6.

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Destarte a pós-modernidade, a sociedade de risco e a crise ambiental impõem mudanças estruturais no Estado e no Direito, fazendo emergir um Estado de Direito Ambiental (BELCHIOR, 2011). Nessa esteira, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 225, positivou o meio ambiente sadio como um direito fundamental7. Além disso, o constituinte originário foi mais além ao prever que o meio ambiente ecologicamente equilibrado constitui-se um dever fundamental não só do Estado como também de toda a coletividade e do indivíduo de forma isolada, não sendo, desse modo, uma mera faculdade protegê-lo8. 2 MEIO AMBIENTE COMO DIREITO E DEVER FUNDAMENTAL Conquanto não elencado no rol dos direitos e deveres individuais e coletivos, trata-se (em decorrência da cláusula de abertura, extraída do conteúdo do art. 5°, §2°, da Constituição Federal de 1988)1 de direito formal e materialmente fundamental, devido à importância de seu conteúdo, indispensável à existência, ao exercício e à conservação da vida humana digna, saudável e segura. O direito ao meio ambiente sadio possui dupla perspectiva, uma subjetiva – direito individual de impedir ações que degradem ou ameacem a degradar o meio ambiente– e outra objetiva– dever de o Estado e a coletividade manterem um ambiente saudável e equilibrado9–, devendo, com base no art. 5°, §1°, da Carta Magna possuir aplicabilidade imediata.2 Em sua dimensão subjetiva, o direito ao meio ambiente possui como centro o interesse individual de seus titulares, gerando para esses a possibilidade de perseguirem sua realização por intermédio do Poder Judiciário, que estabelecerá condutas positivas ou negativas aos destinatários desse direito. A dimensão objetiva, por outro lado, funciona como um “sistema de valores”10 que corrobora o ordenamento jurídico e condiciona não só o Estado como também os demais poderes públicos, cominando-lhes obrigações ecológicas. Logo, segundo essa dimensão, o Poder Legislativo possui como obrigação a emissão de normas que tutelem o direito ao meio ambiente sadio, assim como a invalidação daquelas que com ele sejam incompatíveis; ao passo que o Executivo é obrigado a agir concretamente na prevenção e na reparação de possíveis lesões a esse direito; e o Judiciário, na sua tarefa de interpretação e ponderação, tem o dever de considerar seu poder axiológico e aplicá-lo ao caso concreto. Essa perspectiva, por conseguinte, permite aos titulares do direito ao meio 1 O art. 5°, §2°, da Constituição Federal prevê: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” 2 O art. 5°, §1°, da Lei Maior prevê: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.

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ambiente o ingresso de ações judiciais em casos de lesão ou de ameaça de lesão ao bem jurídico ambiental, sendo proveniente não só de atos de particulares (pessoas físicas e jurídicas) como também dos próprios entes estatais. O direito fundamental ao meio ambiente enquadra-se na categoria de direito de terceira dimensão - direitos de solidariedade ou de fraternidade -, “fruto do sentimento de solidariedade mundial que brotou como reação aos abusos praticados durante o regime nazista”11. Os direitos de terceira dimensão visam à proteção de toda a humanidade, e não apenas do indivíduo ou de determinados grupos, caracterizando-se, por consequência, como direito difuso, ou seja, com titulares indeterminados unidos por uma mesma situação fática. Diz-se, então, que o direito ao meio ambiente possui titularidade coletiva ou transindividual, o que lhe confere a prerrogativa de subordinar o interesse privado ao público, na busca do bem comum. Pode-se extrair do art. 225, CF/88 que a sadia qualidade de vida é o núcleo do direito ao meio ambiente, tendo como objeto imediato a qualidade ambiental e como mediato a saúde, o bem-estar e a segurança da população12. Daí, segundo Teixeira, “poder-se concluir que o ambiente é definido como equilibrado na medida em que possibilite uma vida saudável e digna”13. Deve-se pontuar também que a Constituição não elenca o meio ambiente apenas como direito, mas também como dever fundamental, impondo condutas positivas e negativas a seus destinatários, conforme se pode extrair do artigo 225 e de seus parágrafos. As condutas positivas dizem respeito ao dever de proteger os recursos naturais (especialmente os não renováveis), de restaurar áreas devastadas, de promover a educação ambiental, de definir áreas de proteção, entre outros. Já as condutas de cunho negativo estabelecem o dever de se abster de exercer atividades que degradem o meio ambiente, prevendo o §3° que “as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”. Portanto, além de impor a obrigação de não gerar danos ao meio ambiente, esse parágrafo também comina sanções àqueles que o fazem. O dever de proteção ambiental tem como titulares o Poder Público, que deve executá-lo por meio de políticas públicas e demais instrumentos previstos na ordem jurídico-ambiental, e a coletividade, que pode utilizar-se de instrumentos jurídicos, tais como a ação popular e a ação civil pública, bem como da participação na gestão ambiental, seja em conselhos ambientais, seja em audiências públicas14. A sociedade pode também exercer esse dever informando as autoridades competentes dos danos dos quais tem conhecimento. Nesse caso, pode-se denunciar junto ao Ministério Público, à prefeitura, à polícia ambiental ou aos demais órgãos de fiscalização ambiental15. R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.56-69, jan./dez. 2011

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Cumpre ressaltar, ainda, a “transtemporalidade”16 do direito ao meio ambiente, “no sentido que ele se revela como uma herança do passado, a qual, transitando pelo presente, é destinada a dotar os hóspedes futuros do planeta”17. Esse direito transcende, pois, o tempo presente, na medida em que o comportamento e a postura da sociedade hodierna perante o meio ambiente repercutirá diretamente nas condições existenciais das gerações vindouras, assim como as decisões tomadas pelas gerações passadas foram determinantes para o surgimento da atual sociedade de risco. 3 SAÚDE COMO DIREITO FUNDAMENTAL O constituinte também positivou como fundamental o direito social à saúde, um dos bens mais preciosos do ser humano, devido ao fato de estar indissociavelmente atrelado ao direito à vida18. Referido direito, de tão importante, encontra-se arrolado não só no caput do art. 6º da Constituição Federal de 1988, como também nos artigos 196 a 200, possuindo uma seção própria.3 Trata-se de direito fundamental de segunda dimensão, cujo objetivo é “impor diretrizes, deveres e tarefas a serem realizadas pelo Estado, no intuito de possibilitar aos seres humanos uma melhor qualidade de vida e um nível razoável de dignidade como pressuposto do próprio exercício da liberdade”19. Dessa forma, a saúde constitui-se direito de todos, indivíduos e coletividade, e dever do Estado. Aludido direito, assim como o direito ao meio ambiente sadio, também possui uma dimensão objetiva (dever do Poder Público de garantir a efetivação do direito à saúde, seja no desempenho das políticas públicas de saúde seja na imposição de deveres da iniciativa privada atuante na área) e outra subjetiva (direito individual oponível contra o Estado, passível de ação judicial movida por seus titulares sempre que o gozo desse direito estiver ameaçado). Bem como todo direito fundamental, o direito à saúde possui também aplicação imediata, devendo estar plenamente integrado às políticas públicas governamentais, nos termos do art. 5º, §1°, da Carta Magna de 1988. Isso significa que todos, individual ou coletivamente, têm direito, independentemente de regulamentação infraconstitucional, de exigir do Estado uma atuação positiva na redução dos riscos à saúde humana, tornando a atuação do Poder Público fundamental para o real gozo desse direito. O direito à saúde é a todos dispensado, sendo obrigação do Estado, no sentido amplo de Poder Público, tanto proteger quanto preservá-la20. Por ser um direito prestacional, sua proteção efetiva-se no momento em que o Estado oferece aos indivíduos possibilidades de tratamento, ao passo que a preservação ocorre no momento em que políticas públicas que visem à redução do risco de 3 O art. 196 assim expressa: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

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doenças são efetivadas. Isso demonstra que o direito à saúde engloba não só a busca pela cura de doenças adquiridas, mas também a concretização de ações que evitem que corpo humano adoeça. Mas o termo “saúde” recebe um significado mais alargado com a publicação da Constituição da Organização Mundial de Saúde, cujo preâmbulo aduz que “saúde não é apenas a ausência de doenças, mas também um completo bem-estar, seja físico, mental ou social”, o que sugere que “ela (saúde) é um sistema dentro de um sistema maior (a vida), e com tal interage”21. Sendo parte de um sistema, o avanço, a garantia e a estabilidade desse direito dependem necessariamente dos progressos feitos em relação àqueles que com ele se comunicam. Uma das muitas maneiras de garantir o direito à saúde se faz por meio da efetivação do direito ao meio ambiente equilibrado, uma vez que o artigo 3º da Lei n° 8080 de 19 de setembro de 1990 (que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, assim como a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes) preceitua que “a saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente [...]”4, ao passo que o artigo 225 da Carta Política de 1988 conceitua meio ambiente como “bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida”, o que comprova que saúde e meio ambiente equilibrado mantêm entre si uma relação de indissociabilidade. 4 OS EFEITOS DA QUALIDADE AMBIENTAL NA SAÚDE Assim como as demais espécies vivas, o homem depende essencialmente do meio em que vive, porquanto todos os organismos vivos só subsistem em virtude de trocas constantes, não existindo, portanto, organismos fisiologicamente autônomos. O universo é, pois, o conjunto das conexões dos sujeitos (rochas, ventos, sol, águas, florestas, animais, homens) que interagem constantemente em uma complexa teia de relações22. O ser humano é totalmente dependente do ar, da água e das espécies vegetais e animais para sua sobrevivência. Os danos a eles causados certamente afetarão a saúde humana. Seguindo esse raciocínio, Jean-François Mattei refere que: O ambiente é reconhecido como um dos quatro grandes determinantes do estado de saúde de uma população, ao lado dos fatores genéticos, dos comportamentos individuais e da qualidade dos tratamentos médicos. A sua deterioração tem uma grande responsabilidade nas doenças da civilização: de4 O art. 3º da Lei n°8080 de 1990 assim estabelece: “A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais; os níveis de saúde da população expressam a organização social e econômica do País.” R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.56-69, jan./dez. 2011

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pressão nervosa, hipertensão, perturbações digestivas. Tratar os problemas do ambiente e da saúde separadamente é um erro23.

Dessa forma, não se pode pensar a saúde humana desprezando-se o cuidado ambiental (manutenção da saúde das demais espécies), já que “o nosso ambiente diário é um <<catalisador>>> real, com seus numerosos factores físicos e químicos que provocam reacções só pela sua presença”24. É sabido que a incidência de doenças varia muito de um lugar para outro, o que fez que, inicialmente, esse fato fosse atribuído a fatores genéticos. Todavia estudos feitos em diferentes países demonstraram que o câncer primário de fígado, muito comum nos negros africanos, não foi encontrado nos negros norteamericanos. Restou comprovado também que o risco de câncer multiplica-se por cinco em crianças adotadas cujos pais (adotivos) morreram de câncer, o que leva a crer que “as mesmas exposições no ambiente familiar podem desencadear idênticas patologias sem predisposição hereditária”25. Assim sendo, as ações do homem no meio ambiente interferem diretamente na sua qualidade de vida. Uma pesquisa publicada no boletim Nature Neuroscience, reforça teorias de que a exposição constante a pequenas quantidades do pesticida Rotenone, empregado na eliminação de insetos e peixes, prejudica o cérebro gradativamente, produzindo sintomas análogos aos do Mal de Parkinson, cujas causas não puderam ser ainda comprovadas26. R.C. Hatch, em sua obra intitulada “Venenos que provocam estimulação ou depressão nervosa”, associa má formação genética ao uso de alguns agrotóxicos da classe dos organofosforados na agricultura27. O artigo “Alumínio como fator de risco para a doença de Alzheimer” evidencia cientificamente que o alumínio, nos últimos anos, tem intervindo nos diversos processos neurofisiológicos responsáveis pela degeneração característica da doença de Alzheimer28. Tem-se verificado, igualmente, a ocorrência das chamadas doenças por carência, que são aquelas decorrentes da presença insuficiente de minerais e vitaminas nos alimentos naturais, consequência da utilização maciça, na forma de adubos, de produtos como azoto, fósforo e potássio. Mas, ao mesmo tempo em que os fertilizantes levam à carência de vitaminas e minerais essências à manutenção da saúde humana, originam a presença de pesticidas e nitratos nos alimentos. Na Holanda, por exemplo, país que vem empregando fertilizantes à base de azoto ao longo dos anos, ficou comprovada a carência de cobre nas vitelas, o que acarreta ganho de peso e diminuição na produção de leite29. Um estudo realizado pela IFA (International Fertilizer Industry Association) demonstrou que as plantas hortículas adubadas podem ter um teor de nitrato mais alto quando comparadas a plantas produzidas organicamente. O nitrato, que se transforma rapidamente em nitrito no corpo, oxida a hemoglo64

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bina do sangue, impedindo-a de transportar oxigênio para os tecidos. Isso em bebês de até seis meses de idade pode causar a síndrome do bebê-azul. A mesma pesquisa constatou que o uso de quantidades excessivas de nitrogênio tem como resultado o baixo teor de açúcar na beterraba açucareira. Longe de serem exaustivos, esses são apenas alguns dos inúmeros exemplos de como o dano ambiental é causa determinante do dano à saúde. Muitos outros poderiam ser mencionados, tais como os efeitos dos lixões, do desmatamento, da poluição atmosférica e da utilização de petróleo, carvão, gás natural e minerais nucleares na produção de energia. Diante do exposto, resta claro que a alteração ambiental produzida pela atividade humana reflete inteiramente na saúde dos homens, não sendo possível pensar a saúde sem que se preserve o meio ambiente. Uma vez que não se pode pensar a existência humana sem alteração ambiental, afinal a sobrevivência da espécie se dá a partir daquilo que se extrai da natureza, urge repensar a atitude humana diante do meio ambiente. CONCLUSÃO A Pós-modernidade é produto da frustração das ideologias iluministas, cuja concepção de progresso revelou-se um erro. Os riscos advindos da industrialização e suas consequências ganharam dimensões globais, rompendo as barreiras espaciais e temporais, de forma a pôr em risco a preservação da vida no Planeta. Por conta desses riscos globais, a sociedade pós-moderna recebe a denominação “sociedade de risco”, a qual é marcada pelo risco permanente, planetário, invisível, imprevisível e, muitas vezes, imperceptível, o que faz surgir um sentimento de insegurança mundial. A humanidade, ao contrário do que se previa ao tempo da Revolução Francesa, tornou-se ainda mais desigual, individualista, narcisista e gananciosa, preocupando-se cada vez menos com o bem-estar coletivo e com o meio ambiente. O modelo econômico adotado, como não poderia ser diferente, para suprir as necessidades de consumo, passa a fundamentar-se em um pensamento que leva à degradação ambiental progressiva, a danos à saúde e ao risco de aniquilamento da vida humana. Para que seja possível a manutenção da existência humana na Terra, necessária se torna a conscientização da humanidade de que faz parte de uma complexa e vasta teia de organismos vivos, da qual não pode dispor a seu bel-prazer, e pela qual é responsável, pois o homem é o único ser vivente capaz de autodestruir-se. A sociedade precisa despertar para a problemática ambiental, afinal a conservação do meio ambiente implica a sobrevivência da espécie humana. No R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.56-69, jan./dez. 2011

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entanto para que seja garantida não só a sobrevivência, mas também, e principalmente, a vida com dignidade, é preciso que as políticas relacionadas ao meio ambiente e à saúde caminhem lado a lado, uma vez que essas se constituem áreas afins, sendo impossível o gozo desta sem a proteção daquele. Para tanto, os indivíduos precisam decidir se continuam com o atual modelo de gestão político-econômica destrutivo ou se altera, por meio de uma participação consciente, seus rumos, concretizando os direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal de 1988. De acordo com a Carta Magna, a saúde possui como um de seus fatores determinantes e condicionantes o meio ambiente, que, por sua vez, é essencial à sadia qualidade de vida, o que demonstra que um depende fundamentalmente do outro. O problema do direito ao meio ambiente e à saúde, desse modo, não reside na falta de normatização - uma vez que estão garantidos em diversas normas nacionais e estrangeiras, constitucionais e infraconstitucionais - mas na falta de efetivação. Essa efetivação só é possível mediante a participação coletiva, pois a vida digna em um planeta preservado não é apenas um direito, mas também um dever a todos imposto. A preservação da vida demanda, por conseguinte, uma mudança de atitude globalizada, tendo como base a solidariedade. A política pós-moderna deve ter como meta o equilíbrio entre desenvolvimento econômico, equidade social e saúde ambiental. Esse é o tripé sobre o qual se fundamenta o desenvolvimento sustentável, que é aquele que permite o desenvolvimento econômico levando-se em conta a capacidade de renovação dos recursos naturais e a igualdade entre os indivíduos. Somente se alcançará o desenvolvimento sustentável se houver um comprometimento dos indivíduos da geração hodierna de resgatar os sentimentos de responsabilidade, de pertença e de solidariedade, indispensáveis para a mudança positiva do status quo. Enfim, a realização dos direitos fundamentais à saúde e ao meio ambiente equilibrado deve partir de pessoas que se reconheçam como parte do meio em que vivem, que se sintam por ele responsáveis e que repartam entre si não só direito de usufruí-lo como também o dever de preservá-lo. Diante do exposto, este trabalho se mostra relevante pelo fato de evidenciar que não se pode pensar o direito à saúde deixando de lado o cuidado ambiental, e que um e outro (saúde e maio ambiente) pertencem a um sistema de valores muito maior, tendo como objetivo primário a vida digna (não apenas a sobrevida). Além disso, demonstra também que ainda é possível, mediante o desenvolvimento econômico sustentável, evitar a destruição do meio ambiente, da saúde e, consequentemente, da vida humana.

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Germana Parente Neiva Belchior  Gleice Silva Queiroz de Lima

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HEALTH AND ENVIRONMENT: AN INTRICATE AND NECESSARY RELATIONSHIP ABSTRACT Over the centuries, humans have appropriated natural resources without any ecological concern. However, in the twentieth century, nature began to show signs of depletion of its resources, giving rise to a serious environmental crisis, damaging political, economic and social systems, and especially the health of all inhabitants of the planet. The main goal of this work is therefore to investigate the relationship between fundamental rights to health and ecologically balanced environment, aiming at ensuring a healthy quality of life to human beings. To talk about the fundamental right to health – in accordance with the provisions of Article 6, as well as the Articles 196 to 200, of the Brazilian 68

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Federal Constitution of 1988 – consequently requires discussing the quality of the environment, provided for in Article 225 of the Constitution. The methodology used in this work is bibliographical, theoretical, descriptive, explanatory and deductive, emphasizing transdisciplinarity. The association of these methods resulted in a consistent understanding of the current society and the uncertainties related to it, in order to grant not only the fundamental right to an ecologically balanced environment, but also the right to health, as provided by the Brazilian Constitution as a fundamental right. The main results show that in order to avoid that the problems revealed in postmodern risk society become irreversible, it is necessary to rethink the predatory and polluter model of economic development pattern adopted in Brazil, by promoting sustainable development, which demands in mentality and behavior changes of human beings concerning their attitude towards nature. Keywords: Health. Environment. Risk. Relationship.

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O Ser dos Direitos Humanos na Ponte Entre o Direito e a Música Horácio Wanderlei Rodrigues* Leilane Serratine Grubba** 1 Introdução. 2 O Que é Direito? A Filosofia Jurídica de Lyra Filho. 3 Os Direitos Humanos: A Luta Por Vida Digna. 4 Para uma Aproximação Entre o Direito e a Música: A Teoria da Musicalidade do Direito. 5 Considerações Finais. Referências.

RESUMO Este artigo tem por objeto os direitos humanos, efetivamente a possibilidade de compreensão da luta por dignidade e por vida digna a partir da relação entre o Direito e a Música. Apesar de não existir uma teoria que vincule o campo cognitivo do direito à expressão artística musical ou à Teoria Musical, a relação contingencial entre ambos ocorre de diversas formas. A Música, muito mais do que qualquer obra de arte, essencialmente quando popular, detém a capacidade de influenciar uma imensa quantidade de pessoas e, por conseguinte, pode * Doutor e Mestre em Direito pela UFSC, com estágio de Pós-doutorado em Filosofia na UNISINOS. Professor Titular do Departamento de Direito da UFSC, lecionando no Curso de Graduação e no Curso de Pós-graduação, nos Programas de Mestrado e Doutorado. Pesquisador do CNPq. Escreveu os livros “Ensino jurídico: saber e poder”, “Ensino jurídico e direito alternativo”, “Acesso à justiça no direito processual brasileiro”, “Novo currículo mínimo dos cursos jurídicos”, “Ensino do Direito no Brasil: diretrizes curriculares e avaliação das condições de ensino” (esse em conjunto com Eliane Botelho Junqueira), “Pensando o Ensino do Direito no Século XXI: diretrizes curriculares, projeto pedagógico e outras questões pertinentes” e “Teoria Geral do Processo” (esse em conjunto com Eduardo de Avelar Lamy); organizou as coletâneas “Lições alternativas de direito processual”, “Solução de controvérsias no Mercosul”, “O Direito no terceiro milênio” e “Ensino Jurídico para que(m)?”. Publicou dezenas de artigos em coletâneas e revistas especializadas, em especial sobre Direito Educacional, Ensino do Direito e Metodologia do Ensino e da Pesquisa, Teoria do Processo e Processo Constitucional. Atualmente suas pesquisas estão concentradas no tema “Processos de produção do conhecimento na área do Direito - o conhecimento jurídico produzido através da pesquisa, do ensino e das práticas profissionais”. E-mail para contato: horaciowr@ccj.ufsc.br. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/1611197174483443. ** Doutoranda em Direito, pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD/UFSC). É aluna pesquisadora dos projetos NECODI (Núcleo de Estudos Conhecer Direito), sob a orientação do professor Doutor Horácio Wanderlei Rodrigues, USM (Universidade sem muros), sob a orientação do professor Doutor Alexandre Moraes da Rosa, e Direito e Literatura, sob a orientação do professor Doutor Luis Carlos Cancellier de Olivo, todos vinculados à UFSC. E-mail para contato: lsgrubba@ hotmail.com. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/2294306082879574.

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promover mudanças nos valores sociais, práticas humanas, etc., e, enfim, no próprio Direito (normativo). Nesse sentido, a luta por dignidade e por direitos humanos, no campo musical, é passível de ser compreendida, em primeiro lugar, por meio do pensamento de Lyra Filho, uma vez que o direito é concebido como um processo de luta permanente, ou seja, no seio das práticas sociais. Em segundo lugar, no pensamento de Herrera Flores, que compreende os direitos humanos como os resultados sempre provisórios das lutas políticas, sociais, econômicas, culturais, jurídicas, etc., pelos bens materiais e imateriais que perfazem uma vida digna de ser vivida. Palavras-chave: Direitos Humanos. Dignidade. Sistema Jurídico. Música. Lyra Filho. 1 INTRODUÇÃO A relação entre o Direito e a Música não é recente. O que é recente e pouco explorado é a busca de uma relação teórica entre os campos cognitivos do Direito e da Música, mais propriamente da Teoria Jurídica e da Teoria Musical. Até porque, não existe uma teoria que vincule ambas as esferas do conhecimento, mas permanecem apenas pontos de encontro e de convergência. Se, como afirmamos, a relação do Direito com a Música não é recente, isso se deve, em grande parte, a duas posições. Em primeiro lugar, as normativas jurídicas regulam a exploração da atividade musical, a exemplo do direito autoral, embora não dialoguem com a Teoria Musical. Em segundo lugar, a música, expressão da arte e do ser humano, dialoga com o Direito, principalmente com o Direito percebido como um ente social, além de promover críticas ao mundo jurídico. Ou não é verdade que Raul Seixas1 cantou: “Todo homem tem direito de pensar o que quiser [...] todo homem tem direito de pensar, de dizer e de escrever”? A música, muito mais do que qualquer obra de arte, principalmente quando popular, detém a capacidade de influenciar uma imensa quantidade de pessoas. Tocando nas rádios de norte a sul do país, pode promover mudanças de grande porte nos valores sociais, práticas, etc., e, enfim, no próprio Direito. As críticas sociais e do ordenamento jurídico, provindas da musicalidade, por vezes se escondem por trás do registro de signos linguísticos ambíguos. Ou não foi dessa forma que Roberto Carlos2 conseguiu promover uma crítica ao regime militar, nos anos 70 do século XX, principalmente ao exílio de Caetano Veloso? Diz a letra:

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Debaixo dos caracóis dos seus cabelos; Uma história pra contar de um mundo tão distante; Debaixo dos caracóis dos seus cabelos; Um soluço e a vontade de ficar mais um instante; As luzes e o colorido; Que você vê agora; Nas ruas por onde anda; Na casa onde mora; Você olha tudo e nada; Lhe faz ficar contente; Você só deseja agora; Voltar pra sua gente; Dependendo da época, as críticas sociais, ademais, são explícitas nos significados das letras musicais. Nesse sentido, assim cantou Legião Urbana3: Nas favelas, no Senado; Sujeira pra todo lado; Ninguém respeita a Constituição; Mas todos acreditam no futuro da nação; Que país é esse? Ainda assim, continua pouco explorado esse campo de estudo. Até porque, não existe uma única teoria que tenha aventado um espaço intersticial entre o Direito e a Música, mas existem tão somente análises que, partindo de pesquisadores jurídicos, principalmente dedicam-se à compreensão do direito na Música. Quer dizer, intentam estudar as manifestações do Direito ou da Teoria Jurídica nas representações musicais. Se tanto o Direito quanto a Música se desenvolvem no mesmo campo, o campo das relações humanas, podemos dizer que, da mesma forma com que o Direito influencia o contexto social e, consequentemente, as manifestações artísticas; a música, de seu turno, enquanto expressão do corpo individual e social, pode oferecer informações para a compreensão do Direito ao exprimir uma visão da sociedade, de onde o direito emerge e onde atua. A relação entre o Direito e a Música é dialética. A música não somente perpetua os valores culturais e as práticas sociais de uma dada sociedade, como também, por outro lado, critica-os, assim como exerce influência na formação de novos valores e práticas humanas. E o Direito, enquanto regulador estatal das relações humanas, cria práticas sociais e valores, mas também é por eles modificado com o passar do tempo. Quer dizer, tanto o Direito quanto a Música estão sempre em constante transformação. Nesse marco situa-se o objetivo deste trabalho: vislumbrar a possibilidade de uma intersecção entre os campos cognitivos do Direito e da Música para compreender a luta pela dignidade humana à luz do direito vivo, ou seja, das práticas sociais. 72

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2 O QUE É DIREITO? A FILOSOFIA JURÍDICA DE LYRA FILHO Se este estudo tem por objeto a relação entre o Direito e a Música, para a compreensão da luta por dignidade e por direitos humanos, devemos compreender, em primeiro lugar, o que é o Direito, isso porque, existem distintas maneiras de percebê-lo. Quer dizer, se o Direito fosse reduzido ao código normativo, por certo que não poderíamos falar do Direito na Música. No máximo, poderíamos aventar uma investigação de como o Direito – código normativo – regula as atividades musicais, ou de como as letras musicais tratam do Direito estabelecido. Daí importa estabelecermos o que entendemos por Direito. Ademais, a necessidade de refletirmos sobre o que o Direito é recai sobre a possibilidade de acabarmos preconizando visões sobre o jurídico que só apreendem o Direito positivado pelo Estado, como se este fosse todo o Direito. Para nós, muito embora exista o Direito como um código normativo ou, em outras palavras, o Direito legislativamente estabelecido, este não é a única faceta do Direito. Assim, existe um equívoco generalizado e estrutural na própria concepção de Direito. É daí que partem os problemas. Quando se analisa o fenômeno jurídico é preciso chegar à fonte e não às consequências. Assim, em primeiro lugar, não podemos reduzir o direito ao ordenamento jurídico4. Nesse sentido, as questões jurídicas ou as investigações sobre o Direito não podem ser colocadas, nem resolvidas, sem a consciência de que estão ligadas à percepção da correta visão do Direito. Ou seja, considerando-se que o Direito admite variadas abordagens, recaimos numa falácia quanto percebemos em um discurso jurídico a abrangência do fenômeno em sua totalidade5. O Direito é amplo, pois se configura como um fenômeno social e, justamente por isso, engloba a faceta normativa. A possibilidade de uma abordagem do Direito que esquematize os pontos de integração do fenômeno jurídico na vida social e que verifique como transparecem os ângulos de entrosamento dos diferentes aspectos, se dá por meio da aplicação de um modelo dialético. Esse modelo “[...] há de ser aberto e com a preocupação constante de encarar os fatos, dentro de uma perspectiva que enfatiza o devir (a transformação constante) e a totalidade (a ligação de todos os segmentos da realidade, em função de conjunto)”. Somente dessa forma é que podemos apreender o pluralismo no Direito6. A análise dialética não é conclusiva, mas de cunho social, uma vez que, ao refletir o real, não visa à superação ou anulação de suas contradições intrínsecas, mas, antes, quer absorvê-las e reorganizá-las, pois as considera tanto parte integrante quanto elementos fundidos e transfigurados7. Daí, que nas observações que faz a respeito do Direito, Lyra Filho8 deseja salientar que, não somente o Direito é um fenômeno complexo, mas também que as análises que se procedem sobre ele, quando, tradicionalmente vinculadas ao Direito como norma, acabam por desfigurá-lo, uma vez que R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.70-92, jan./dez. 2011

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o apreendem apenas em cada um dos seus aspectos isolados e de maneira a torna-los não comunicáveis. Portanto, é na dialética social e no processo histórico que surge o Direito, ou seja, a essência do jurídico é o conjunto do social. E assim, não se trata de um ente engessado, mas de um processo de modificação e de libertação permanente. Diante desse fato é que podemos vislumbrar a música como enquanto luta por dignidade e por Direito (direitos humanos). Quer dizer, a música é manifestação individual do corpo social, detendo o condão de traduzir as aspirações populares, as críticas à sociedade, à ausência da eficácia dos direitos ou à ausência da vida digna. A música então, enquanto manifestação humana, não é considerada um fim em si mesma quando utilizada como um meio para a luta por vida digna e por direitos, entendidos como o resultado provisório das próprias lutas por dignidade (ou por bens materiais e imateriais necessários a uma vida digna). Assim, é todo o processo, a luta social constante, que define o Direito em cada etapa, na busca das direções de superação dos conflitos da sociedade e entre essa e o Direito. Diante disso é que consideramos que a grande “[...] inversão que se produz no pensamento jurídico tradicional é tomar as normas como Direito e, depois, definir o Direito pelas normas, limitando estas às normas do Estado e da classe e grupos que o dominam.”9. O Direito não se reduz às normas, pois como dissemos, o Direito é o próprio movimento social. Por isso é que, na visão de Lyra Filho, o Direito e a Justiça caminham juntos. Sendo o Direito parte do social, lei e Direito divorciam frequentemente. E a justiça real está no processo histórico, de que é resultante, pois é nele que se realiza progressivamente. Isto é, para Lyra Filho10, Justiça é justiça social, antes de tudo. Já o Direito é a expressão dos princípios supremos da justiça social, enquanto modelo avançado de legítima organização social da liberdade. Numa visão dialética do social, então, a Justiça mostra-se como uma substância atualizada do Direito e tem seu valor na libertação alcançada, significa dizer que a justiça é valorada em concreto, no seio da libertação social, e não abstratamente. No âmbito da Música como luta por direitos, por conseguinte, a Justiça reside justamente nas conquistas sociais, medidas pelo grau de empoderamento social. Ou seja, a difusão de uma melodia de luta por dignidade pode gerar uma conscientização popular e novas práticas sociais para a vida digna, as quais, consequentemente, também podem se transformar em direito normativo. Por isso que o grave problema que apresentam, regra geral, as teorias jurídicas contemporâneas é que elas normalmente reduzem na organização de sua argumentação, o Direito ao Direito positivado pelo Estado, silenciando o Direito surgido do próprio seio da sociedade. Trata-se de uma visão positivista que confunde o dever ser das normativas jurídicas com o próprio ser do Direito (o social). 74

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Como afirmamos, existe uma um duplo corte mutilador. Em um primeiro aspecto, reside na “[...] confusão entre as normas que enunciam o Direito e o Direito propriamente dito, que nelas é enunciado. O segundo aspecto do mesmo erro é o que, a pretexto de melhor assinalar o que é, afinal, jurídico, nega vários aspectos e setores do Direito.”11. As teorias jurídicas, ao dizerem que o Direito se reduz às normas estatais, contraem, arbitrariamente, a dialética do fenômeno jurídico, deixando em aberto o que tais normas pretendem veicular. Isso traz como consequência a negação de positividade ao que não é Direito estatal que dessa forma, se coloca como dogma inquestionável. É a influência da ciência positivista (dogmática jurídica) sobre a práxis do Direito. Este tipo de concepção nega dois fatos óbvios: o primeiro é a existência de normação jurídica nas sociedades em que não há Estado. O segundo é que fatos jurídicos, como, por exemplo, o poder constituinte, passam a ser algo não jurídico. Qual a solução, então, para a ciência do Direito? Não é, obviamente, nenhum tipo de positivismo, pois este, em todos os seus matizes, de um ou de outro modo, percebe o Direito somente como ordem enquanto controle social. Assim, mostrando-se engessado e estático, atribui a flexibilidade à hermenêutica12. Também não está nos tipos de jusnaturalismo. O Direito Natural, em todas as suas concepções, faz apelos de índole nitidamente idealista, não possuindo base social. Contudo, podemos afirmar que igualmente não reside na Teoria Crítica do Direito de origem no marxismo ortodoxo, que o reduz a uma simples instância superestrutural determinada, fruto de uma leitura mal feita de Marx – o mecanicismo. É ela, também, uma forma de positivismo. A tentativa de captar o Direito em bloco, para Lyra Filho13, deixando de lado as postulações idealistas e as reduções positivistas, aponta um caminho em três etapas: a) a abordagem do fenômeno jurídico em uma perspectiva sociológica, abrangendo todos os aspectos da sua manifestação; b) a procura de um preliminar síntese do direito (social) ao empírico, assim como da formação e da aplicação das normas jurídicas; e c) a busca de um reenquadramento global, como tarefa da filosofia jurídica. Ou seja, a reelaboração dos dados empíricos em busca das categorias, “[...] como formas do ser e determinações da existência”14, por meio de uma ontologia dialética do Direito. Em suma, o Direito é visto em globo, tanto como teoria, quanto como práxis social, visto que envolve as possibilidades da concretização da Justiça como justiça social. Quer dizer, o Direito “[...] assume o aspecto geral de setor da práxis social de maior força vinculante, que visa à Justiça por meio de norR. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.70-92, jan./dez. 2011

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mas, indicando procedimentos e órgãos mais nitidamente demarcados do que em outros tipos de regulamentação da conduta.”15 O Direito, nesta proposta, é a síntese a cada momento, é o guia da práxis humana progressista, práxis que envolve: “a) o aproveitamento das contradições dos sistemas normativos estabelecidos [...]; b) a criação de novos instrumentos jurídicos de intervenção, dentro da pluralidade de ordenamentos”16 Teorias em que tal visão seja omitida ou negada, segundo Lyra Filho17, mutilam o Direito, paralisando-o na descrição do direito positivado pelo Estado, para que não se dedique a repensar o direito da independência econômica e da liberdade político-social. Entende ele e nós que necessitamos buscar a criação de uma nova sociedade, não fundada em discriminações, privilégios ou minorias favorecidas e/ou oprimidas, etc., mas fundada na justiça social. O pensar o Direito está ligado a um objetivo único, a nível histórico presente, para todas as nações, que é a participação progressista do corpo social, visando a um modelo sócio-político e jurídico de ampliação da democracia e de cidadania participativa e ativa (controle do poder). Justamente nesse aspecto é que importa o entendimento da relação entre o Direito e a Música, ou seja, a Música como Direito, quando visa ao empoderamente e à luta por bens materiais e imateriais a uma vida digna (direitos humanos). Concordamos com Lyra Filho, então, quando ele defende a necessária destruição da visão positivista da ciência que, por meio do método lógico-formal da dogmática, se coloca numa posição de neutralidade e objetividade no ato de conhecimento do objeto de estudo. Segundo ele, já no século XX sabia-se que inexiste a verdade científica como uma coisa absoluta e pura. No que tange às ciências sociais aplicadas, como o Direito, não existe propriamente uma interpretação prévia para que, após, emerja a crítica ou conformismo, pois que esses dois elementos já estão presentes no momento da interpretação.18 Ou seja, a ciência e a ideologia, nesse ponto, confundem-se e geram um empobrecimento da ciência pela transmissão de verdades ideológicas, isto é, imagens deformadas do real.19 Por conseguinte, o Direito só pode ser apreendido em sua dinâmica social, por meio da dialética. Apenas uma visão sociológico-dialética, que enfatize o devir e a totalidade, será capaz de apreender a síntese jurídica – a positivação da liberdade conscientizada e conquistada nas lutas sociais, expressão da justiça social atualizada. Assim, emerge a proposição da dialética como método de apreensão do fenômeno jurídico em sua totalidade e devir, e na enunciação de uma nova visão do que é o Direito – como positivação da liberdade conscientizada e conquistada nas lutas sociais e formulador dos princípios maiores da justiça social que nelas emergem – a partir disto. 76

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Nesse sentido, Lyra Filho vê a dialética como tendo na totalidade e no devir as suas mais importantes categorias. A sociedade é um sistema (uma totalidade dialética) em que tudo está interrelacionado. O método dialético por ele empregado busca apreender o objeto do conhecimento em todos os momentos das várias contradições existentes, tanto em nível de infraestrutura como de superestrutura - ambas em nível nacional e internacional – em seu devir histórico, em sua transformação constante. Nessa relação dialética de contradições vê a infra-estrutura não como determinante, pois é ela, também em parte, condicionada pela superestrutura, como uma condicionante. Há, nessa concepção de dialética, uma certa influência da Escola de Frankfurt, além das influências hegeliana e marxista.20 Para Chauí21 existem três aspectos importantes na abordagem dialética do Direito feita por Lyra Filho. Em primeiro lugar, o Direito é temporalizado. É estabelecida a distinção entre a lei e o Direito, por meio da emersão do direito em sua dimensão social e política. Em segundo lugar, o Direito é apreendido em sua totalidade, ou seja, na própria história22. Finalmente, em terceiro lugar, proporciona a percepção das contradições entre a ideia de justiça e as leis, visando à sua superação, para se inserir o Direito para a história e para a política transformadora. A proposta teórica deste autor busca desvincular o Direito da lei23 e colocá-lo a serviço da justiça social, recuperando sua dignidade política. Aproveitamo-nos dessa reflexão teórica para falar que a desvinculação do direito à lei permite-nos falar da Música como uma manifestação do Direito, quando luta pela dignidade, fato que seria impossível se o Direito fosse percebido apenas como um código normativo (lei). É necessário mudar a teoria do direito tradicional para poder colocá-lo a serviço da Democracia. Trata-se, portanto, de uma proposta teórica que rompe com o senso comum teórico dos juristas, afastando o Direito dos positivismos reducionistas e dos jusnaturalismos idealistas, buscando colocá-lo dentro da história e a serviço da sociedade. Ou seja: o legalismo, o idealismo e a validade são substituídos em sua obra pela legitimidade, a história e a eficácia. Considerado um crítico marxista do Direito, Lyra Filho percebe que a questão central de que partem todos os problemas jurídicos contemporâneos é o equívoco generalizado e estrutural existente sobre o que é o Direito – este tem sido reduzido unicamente ao direito positivado pelo Estado. O fenômeno jurídico, segundo ele, admite várias abordagens e não se pode crer que o discurso elaborado sobre uma delas possa abrangê-lo em sua totalidade. Assim como Lyra Filho, percebemos o Direito como a expressão dos princípios supremos da justiça social de um dado momento histórico. É ele entendido, por conseguinte, como a positivação da liberdade conscientizada e conquistada nas lutas sociais e formulador dos princípios maiores da justiça social que nelas emergem. Sob essa ótica é que, nesse momento, podemos preliminarmente falar da relação do direito e da música quando se trata da música como luta por dignidade (direitos humanos) e para o empoderamento. R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.70-92, jan./dez. 2011

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3 OS DIREITOS HUMANOS: A LUTA POR VIDA DIGNA No intuito de traçarmos uma relação entre o Direito e a Música, para a compreensão da música na luta por dignidade e por direitos humanos, devemos, ademais, delimitarmos nosso campo de atuação, isto é, o que entendemos por Direitos Humanos. No decorrer da história, movimentos culturais diversos modificaram visões de mundo e filosofias, acarretando mudanças no padrão de comportamento das sociedades. Diante desse fato é que Heller e Fehér24 apontam que foi nos próprios “[...] movimentos que se mudaram padrões de vida e que se começou lentamente a criar um novo grupo de culturas no cotidiano.”. Quer dizer, vivemos em um mundo aberto e plural, que está sempre em constante modificação. Justamente nessa ordem contemporânea do século XXI em movimento, na qual nada é, ontologicamente, mas pode vir-a-ser um algo diverso, que Joaquín Herrera Flores25 percebeu os Direitos Humanos como o principal desafio teórico e prático. Para entender o que são os Direitos Humanos, sua necessidade e sua finalidade, Herrera Flores propôs uma teoria crítica e realista que os compreendesse em sua complexidade e em sua natureza impura e híbrida. Assim, nessa visão, com a qual concordamos, os Direitos Humanos passaram a ser vistos como processos que possibilitam a abertura e a consolidação de espaços de luta pela dignidade humana. Isso, em virtude de que o humano não tem necessidade de direitos em si, mas de dignidade, ou seja, de uma vida digna na qual possa satisfazer e lutar pela satisfação de seus desejos e necessidades, sejam elas materiais ou imateriais. Nesse sentido é que, de maneira preliminar, afirmamos a relação do Direito e da Música, quando ela visa à luta por dignidade (direitos humanos). Quer dizer, como um processo específico que possibilita a abertura e a consolidação de espaços de luta pela dignidade, a música pode ser considerada como um processo de Direitos Humanos. Significo dizer que, é justamente nesse sentido que falamos da melodia dos Direitos Humanos, quer dizer, a utilização da música na luta por dignidade e vida digna. Isso porque, em um sentido social, os Direitos Humanos são “[...] o resultado de lutas sociais e coletivas que tendem à construção de espaços sociais, econômicos, políticos e jurídicos que permitam o empoderamento de todas e todos para poder lutar plural e diferenciadamente por uma vida digna de ser vivida.”26. A igualdade perante a lei é acrescida de potencialidades emancipatórias, visando à construção de um espaço de igualdade material (imanente), o qual somente pode ser construído com o cimento de condições materiais e imateriais libertária, ou seja, condições sociais, econômicas e culturais que nos permitam situar na realidade contextual em que estamos inseridos, bem como a abertura de processos de luta por alternativas. 78

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Daí que, apesar da importância das normas legais, os direitos não se reduzem às normas, tal como já havíamos afirmado. Se a noção de Direitos Humanos fosse sinônima de lei, pressuporíamos uma falsa concepção da natureza do Jurídico. Por conseguinte, torna-se urgente a reformulação dos limites de Direitos Humanos impostos ao longo da história pelas propostas do liberalismo político e econômico (individualismo, competitividade e exploração, com legitimação jurídica formalista e abstrata), para que se atenda aos desejos e necessidades humanas, por meio de uma pauta jurídica, ética e social, ou seja, distinguindo-se o sistema de garantias daquilo que deve ser garantido, o Direito deve ser visto como um meio, dentre outros, a garantir o resultado das lutas de interesses sociais. Pois bem, tradicionalmente, basta saber o que são os Direitos Humanos: são as normas legais supranacionais que universalmente dotam todos os humanos de direitos. Contudo, as normativas de direitos humanos não são exigíveis perante o Poder Judiciário, por exemplo. Principalmente em se tratando de direitos sociais, econômicos e culturais, os quais são reduzidos a meros princípios orientadores de políticas públicas, permeados por interesses ideológicos. Reconhecendo a importância das normas legais de garantias, como a Declaração Universal de Direitos Humanos, a percepção da vida cotidiana, seja nas grandes metrópoles, nas pequenas cidades brasileiras, permite uma suposição de que o impasse da dignidade humana tende apenas a se agravar. Se, por um lado, há normas legais, por outro, ou elas não são exigíveis, ou não satisfazem a carências materiais das pessoas. Dentro de uma ética de Direito Humanos, Herrera Flores27 busca a subversão do instituído. Ao considerar desiguais os processos de divisão do fazer humano (divisão social, sexual, étnica, territorial), que fazem que uns tenham mais facilidade em obtê-los e outros tenham mais dificuldade, a ponto de impossibilidade, se luta por direitos porque todos necessitam ter acesso aos meios para lutar e aos bens materiais e imateriais a uma vida digna de ser vivida. Por isso, Herrera Flores28 nos pergunta: quais os objetivos das lutas por Direitos Humanos? A luta ocorre somente pela obtenção de bens a garantir a sobrevivência ou pela satisfação da dignidade? Afirmar que se busca empoderar todos que sofrem com as violações cotidianas, dotando-os de meios necessários a lutar, plural e diferenciadamente, pelo acesso aos bens materiais e imateriais, de forma igualitária e não hierarquizada a priori, implica falar de dignidade humana, não a partir de um conceito ideal ou abstrato, mas de modo a perceber a dignidade como fim material, ou seja, concretiza-se o objetivo na obtenção dos bens necessários a garantir uma vida digna de ser vivida. Nesse ponto, rechaçam-se todas as teorias e pretensões intelectuais que se situam na neutralidade, por não pautarem-se pelas condições reais e concretas em que as pessoas vivem e habitam o mundo como seres fronteiriços. R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.70-92, jan./dez. 2011

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“Para nós, o conteúdo básico dos Direitos Humanos será o conjunto de lutas pela dignidade, cujos resultados, se é que temos o poder necessário para isso, deverão ser garantidos por normas jurídicas, por políticas públicas e por uma economia aberta às exigências da dignidade.”29 E assim, “[...] como qualquer produção cultural, os Direitos Humanos devem ser entendidos e colocados em prática em seus contextos históricos concretos.”30 Para que se possa construir uma alternativa a favor do ser humano e da dignidade de vida, é necessário que se busque uma concepção histórica e contextualizada da realidade dos direitos humanos. Nesse ponto, fazemos um parêntese para afirmar que a música, tal como outras formas de expressão humana, se configura como uma expressão individual e social. Quando se presta à crítica de instituições sociais, políticas, econômicas, etc., quando visa ao empoderamento ou mesmo quando luta por dignidade, por certo que parte de uma análise imanente para proceder à abstração da melodia. Quer dizer, trata-se de uma concepção histórica e contextualizada da realidade, tal como a música de Roberto Carlos salientada neste texto. Por conseguinte, para caminharmos rumo à vida imanentemente digna ou, em outras palavras, a uma ideia contextualizada de direitos humanos, é necessário que recuperemos o político e a luta política e democrática pelo dissenso, o que acarreta em romper “[...] definitivamente com as posições naturalistas que concebem os direitos como uma esfera separada e prévia à ação política democrática.”31 Considerar os Direitos Humanos em sua falsa naturalidade, enquanto esfera separada e prévia à ação política, supõe uma dicotomia insolúvel entre o ideal dos direitos, platonicamente essencias, e os fatos concretos da vida prática e contextual de existência humana. Por isso, desejamos uma teoria dos direitos humanos contaminada de contextos e materialista da realidade. Ao propor a reinvenção dos Direitos Humanos, Herrera Flores32 percebeu-os em sua constante mobilidade, em sua constante transformação. Direitos, nessa perspectiva, não se reduzem aos direitos juridicamente postos. Os Direitos Humanos estão no mundo da prática cotidiana, tal como a expressão musical. São os anseios das pessoas por uma vida digna e pela dignidade humana. São processos de luta pelo acesso igualitário aos bens materiais e imateriais a uma vida digna de ser vivida, sejam eles de expressão, convicção religiosa, educação, moradia, trabalho, meio ambiente, cidadania, alimentação sadia, lazer, formação, patrimônio histórico, cultural, etc.33 Nesse sentido, são sempre o resultado transitório pela vida digna. Portanto, direitos positivados não criam direitos. Mas Direitos Humanos podem ser positivados, em que pese nunca definitivamente, com o fim de obtenção de garantias jurídicas para facilitar sua eficácia, efetividade e validade. Por isso, para Herrera Flores34, antes de se falar em direitos, há que se referir aos bens materiais e imateriais que garantem a dignidade da vida huma80

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na, pois aqueles somente serão provisoriamente o resultado das lutas sociais, políticas, econômicas, comunitárias, etc., pelo acesso aos bens aptos a garantir uma vida digna. Essa luta, por conseguinte, enquanto prática social, política, etc., pode ocorrer por meio da arte – Música. Isso porque, em grande medida, as belas obras de arte nos permitem uma modificação do olhar, rumo a uma abertura de consciência ao novo. Em vez de nos determos na mera mimetização temporal e espacial do passado, podemos vislumbrar criticamente a história e as necessárias transformações sociais. No campo da música para a dignidade, a grande obra de arte não encontra fundamento na erudição do artista ou na harmonia, mas antes, na desestabilização do instituído para a luta por vida digna. Quando grande obra de arte, a música é uma descrição crítica da realidade social. Ela luta por dignidade, por igualdade e pela eficácia dos Direitos Humanos. Assim como a vida concreta em sociedade gera reflexo nas criações das melodias, as próprias melodias geram consequências na vida social quando, criticando a realidade, geram uma conscientização cidadã. São, por conseguinte, formas de luta pela dignidade. 4 PARA UMA APROXIMAÇÃO ENTRE O DIREITO E A MÚSICA: A TEORIA DA MUSICALIDADE DO DIREITO Não existe uma Teoria da Musicalidade do Direito. Contudo, o Direito se aproxima da Música, enquanto arte, de variadas maneiras. Em primeiro lugar, ambos, o Direito e a Música, se desenvolvem no mesmo campo, o campo das relações humanas. Em segundo lugar, as consequências sociais da aplicação do Direito geram influência nas letras das músicas, que tanto podem elogiar os resultados sociais, quanto criticar as políticas públicas, legislações e suas consequências no âmbito da sociedade. Desse modo, a música pode influenciar a própria sociedade na busca de empoderamento, de liberdade, de igualdade, etc., enfim, a música grita dignidade; como tal, a música pode servir de termômetro para os pesquisadores do Direito. Enfim, podemos afirmar que a relação entre ambos é dialética. A música, não somente por meio de suas letras, significantes e significados, pode nos transformar por meio de sua melodia, aguçando nossa sensibilidade. Importa a Teoria Musical para a estética e a harmonia. Em conjunto, leva-nos a uma compreensão nova e intersubjetiva. Leva a uma luta por dignidade humana: [...] um Branco e um Preto unido, Respostas que cala o ridículo, Vejo assim confisco, mundo submisso, eu adquiro alivio, R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.70-92, jan./dez. 2011

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paz para os meu filhos, na decente, atenciosamente eu sigo em frente tipo assim, regenerado delinquente lá do Brooklyn [...] mais vale uma família e um qualquer no bolso, medo, talvez desemprego, sofrimento, lamento, vai ser demais, vou viver sem Paz, pagar veneno, nas ruas falcatrua zé povinho, um isqueiro, o itinerário de um puteiro é o Brasil [...]35.

Como grande obra de arte, a música é uma descrição crítica da realidade social. Ela luta por dignidade, por igualdade e pela eficácia dos direitos humanos. Quer dizer, uma grande obra de arte é fruto do seu tempo, do modo de vida à época, das narrativas, das teorias, da sociedade, da política, ou seja, da conjuntura social que inspira o artista no momento da criação. Isso quer dizer que o mundo das ideias humanas, mundo das criações, é influenciado pelo mundo material (mundo concreto), bem como pela consciência humana. Daí que dizemos que todo o texto tem seu contexto. Que melhor descrição de uma grande obra de arte, no que tange à análise social e à luta por bens materiais e imateriais para uma vida digna, assim como a luta por democracia e cidadania ativa e participativa do que a música Só Deus pode me julgar, do brasileiro MV Bill? Assim diz a música: Vai ser preciso muito mais pra me fazer recuar; Minha autoestima não é fácil de abaixar, olhos abertos fixados no céu, Perguntando a Deus qual será o meu papel. Fechar a boca e não expor meus pensamentos, Com receio que eles possam causar constrangimentos. Será que é isso? Não cumprir compromisso, abaixar a cabeça e se manter omisso. A hipocrisia, a demagogia se entregue à orgia. Sem ideologia, a maioria fala de amor, no singular. Se eu falo de amor é de uma forma impopular; Quem não tem amor pelo povo brasileiro; Não me representa aqui nem no estrangeiro; Uma das piores distribuições de renda; Antes de morrer, talvez você entenda. Confesso para ti que é difícil de entender, no país do carnaval o povo nem tem o que comer; Ser artista, Pop Star, pra mim é pouco; Não sou nada disso, sou apenas mais um louco, clamando por justiça, igualdade racial, preto, pobre é parecido, mas não é igual; É natural o que fazem no senado; Quem engana o povo simplesmente renúncia o cargo. Não é caçado, abre mão do seu mandato; Nas próximas eleições bota a cara como candidato; 82

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Povo sem memória, caso esquecido; Não foi assim comigo, fiquei como bandido; Se quiser reclamar de mim, que reclame; Mas fale das novelas e dos filmes do Van Damme; Quem vive no Brasil, no programa do Gugu; Rebolou, vacilou, agachou e mostrou; Volta pra América e avisa pra Madonna; Que aqui não tem censura, meu país é uma zona; Não tem dono, não tem dona, nosso povo tá em coma erga sua cabeça que a verdade vem à tona. É! Mantenho minha cabeça em pé! Fale o que quiser, pode vir que já é! Junto com a ralé Sem dar marcha ré! Só Deus pode me julgar, por isso eu vou na fé ! Soldado da guerra a favor da justiça. Igualdade por aqui é coisa fictícia; Você ri da minha roupa, ri do meu cabelo; Mas tenta me imitar se olhando no espelho Preconceito sem conceito que apodrece a nação; Filhos do descaso mesmo pós-abolição; Mais de 500 anos de angústia e sofrimentos; Me acorrentaram, mas não meus pensamentos; Me fale quem... Quem!? Tem o poder... Quem!? Pra condenar... Quem!? Pra censurar... Alguém!? Então me diga o que causa mais estragos 100 gramas de maconha ou um maço de cigarros? O povo rebelado ou polícia na favela? A música do Bill ou a próxima novela? Na tela, sequela, no poder, corrupção; Entramos pela porta de serviço Nossa grana não Tapão [...] só pra quem manda bater; Pisando nos humildes e fazendo nosso ódio crescer (CV) MST, CUT, UNE, CUFA (PCC); O mundo se organiza, cada um a sua maneira; Continuam ironizando; Vendo como brincadeira, besteira; Coisa de moleque revoltado; Ninguém mais quer ser boneco; Ninguém mais quer ser controlado; Vigiado, programado, calado, ameaçado; Se for filho de bacana o caso é abafado; A gente é que é caçado, tratados como Réu; As armas que eu uso é microfone, caneta e papel; A socialite assiste a tudo calada; Salve! Salve! Salve! Oh! Pátria amada, mãe gentil. Poderosos do Brasil; que distribuem para as crianças cocaína e fuzil; Me calar, me censurar porque não pode fala nada; É como se fosse o rabo sujo falando da bunda mal lavada; Sem investimento, no esquecimento, explode o pensamento; Mais um homem violento; Que pega no canhão e age inconsequente; Eu pego o microfone com discurso contundente; Que te assusta uma atitude brusca; Dignificando e brigando por uma vida justa; Fui transformado no bandido do milênio; O sensacionalismo R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.70-92, jan./dez. 2011

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por aqui merece um prêmio; Eu tava armado, mas não sou da sua laia; Quem é mais bandido? Beira mar ou Sérgio Naya? Quem será que irá responder: Governador, Senador, Prefeito, Ministro ou você? Que é caçado e sempre paga o pato; Erga sua cabeça pra não ser decepado; É! Mantenho minha cabeça em pé! Fale o que quiser pode vir que já é! Junto com a ralé. Sem dar marcha ré! Só Deus pode me julgar por isso eu vou na fé ! Como pode ser tragédia a morte de um artista; E a morte de milhões, apenas uma estatística? Fato realista de dentro do Brasil; Você que chorava lá no gueto ninguém te viu Sem fantasiar realidade dói; Segregação, menosprezo é o que destrói; A maioria é esquecida no barraco; Que ainda é algemado, extorquido e assassinado; Não é moda, quem pensa, incomoda; não morre pela droga, não vira massa de manobra; Não idolatro a mauricinho da Tv, não deixa se envolver; Por que tem proceder Pra quê? Por que? Só tem paquita loira, aqui não tem preta como apresentadora; Novela de escravo a emissora gosta de mostrar os pretos; Chibatadas pelas costas; Faz confusão na cabeça de um moleque que não gosta de escola; E admira uma intra-tek, Clik-clek; Mão na cabeça; Quando for roubar dinheiro público; Vê se não esquece que na sua conta tem a honra de um homem envergonhado; Ao ter que ver sua família passando fome; Ordem e progresso e perdão; Na terra onde quem rouba muito não tem punição; É! Mantenho minha cabeça em pé! Fale o que quiser pode vir que já é! Junto com a ralé Sem dar marcha ré! Só Deus pode me julgar por isso eu vou na fé!36 Nesse sentido, por meio dessa letra, MV Bill analisa os valores que regem a sociedade brasileira do século XXI. Dentre outras críticas, como ele mesmo disse, como a morte de um artista vira assunto importante enquanto a morte de milhares de excluídos sociais vira apenas estatística? Por isso, briga por dignidade. Além disso, propõe uma suposição do futuro e a possibilidade da fissura com vistas a um novo modelo de sociedade, baseada na emancipação, na dignidade, na liberdade, na igualdade, na democracia e na cidadania participativa. Trata-se de uma letra que induz ao empoderamento cidadão e que critica não somente valores sociais, mas também políticas públicas, legislações, essencialmente a criminal, o próprio direito, etc. Quer dizer, trata-se de uma luta popular em prol da dignidade humana. Assim, no que tange aos direitos humanos e à emancipação da cidadania, a diferença entre as grandes obras de arte e as obras de arte menores vincula-se à luta por dignidade. No campo da música para a dignidade, a grande obra de 84

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arte não encontra fundamento na erudição do artista ou na harmonia, mas antes, na desestabilização do instituído para a luta por vida digna. Quer dizer, independentemente de estamos falando de gêneros musicais, o que importa é a luta pela dignidade. A música, nesse sentido, grita imanência. E sendo essa luta travada por diferentes gêneros musicais, desde a MPB até o RAP, atinge-se pessoas de diferentes estratos sociais, de diferentes valores, etc., ocasionando um fenômeno de conscientização. Isto é, a música não serve apenas para ser ouvida, mas para ser refletida. Conforme Herrera Flores37, as pequenas obras de arte nos levam apenas a uma fuga temporal da realidade e que apenas reproduzem esquemas conceituais de maneira ortodoxa, o que equivaleria a dizer uma música para ser ouvida. Diferentemente, as grandes obras de arte contêm em seu seio uma semente de ruptura: são propostas de movimento criador. As grandes obras de arte não nos permitem uma fuga da realidade; pelo contrário, levam-nos a nos situarmos na própria realidade para procedermos à sua análise crítica. Trata-se, portanto, no âmbito musical, de uma melodia que, baseada nas relações e em fatos concretos da sociedade, da política, do direito, etc., nos leva a refletir e a questionar a realidade. Quer melhor exemplo disso que a letra da música Rodo Cotidiano, do Rappa? Assim ela diz: A ideia lá corria solta; Subia a manga amarrotada social; No calor alumínio nem caneta nem papel; E uma ideia fugia; Era o rodo cotidiano; O espaço é curto, quase um curral; Na mochila amassada uma quentinha abafada; Meu troco é pouco, é quase nada [...]; Não se anda por onde gosta; Mas por aqui não tem jeito, todo mundo se encosta; Ela some, ela no ralo, de gente; Ela é linda, mas não tem nome, é comum e é normal; Sou mais um no Brasil da Central; Da minhoca de metal que corta as ruas; Da minhoca de metal; Como um Concorde apressado cheio de força; Voa, voa mais pesado que o ar; O avião do trabalhador [...] Uma letra que fala do dia a dia de um trabalhador brasileiro, anônimo, um mais um no Brasil da Central, que utiliza o metrô como meio de transporte, tão quente e curto como um curral. E assim, o trabalhador vive sempre o mesmo, sem saber se anda por onde gosta, mas pela necessidade de manutenção da vida. Isso porque, se o troco é pouco, quase nada, o que percebe pelo trabalho R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.70-92, jan./dez. 2011

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efetuado garante-lhe somente o mínimo dos bens materiais e imateriais para a vida. Que falar então em vida digna? Em Direitos Humanos? Por conseguinte, começa a existir um critério de seleção estética: a grande obra ou, em outras palavras, a obra de arte bela, é aquela que nos permite uma modificação do olhar, rumo a uma abertura de consciência ao novo. Em vez de nos determos na mera mimetização temporal e espacial do passado, podemos vislumbrar criticamente a história e as necessárias transformações sociais. Do mesmo modo com que a letra de Rodo Cotidiano grita por dignidade, a letra de Hino da Repressão, de Chico Buarque, também promove uma crítica à ausência de dignidade, promovendo uma luta por direitos, assim: Se atiras mendigos No imundo xadrez Com teus inimigos E amigos, talvez A lei tem motivos Pra te confinar Nas grades do teu próprio lar Se no teu distrito Tem farta sessão De afogamento, chicote Garrote e punção A lei tem caprichos O que hoje é banal Um dia vai dar no jornal Se manchas as praças Com teus esquadrões Sangrando ativistas Cambistas, turistas, peões A lei abre os olhos A lei tem pudor E espeta o seu próprio inspetor E se definitivamente a sociedade só te tem desprezo e horror E mesmo nas galeras és nocivo, és um estorvo, és um tumor Que Deus te proteja És preso comum Na cela faltava esse um! A partir de uma relação entre a melodia e quem a escuta, é possível a compreensão da dignidade humana. A vinculação essencial entre o Direito e a Arte, nesse ponto, leva a Arte a ser vista como uma consciência (est) ética e o Direito se constitui em um código regulamentador da conduta humana para a convivência da vida em sociedade, não somente um sistema pretensamente coerente e completo. O próprio Direito que precede esse 86

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sistema de Direito pode ser entendido, de maneira mais abrangente, como uma manifestação da Arte, também subordinado à est-ética das relações entre os seres humanos. Daí que tanto o Direito quanto a Arte e, neste gênero, englobamos a Música como espécie, são produções ficcionais dos seres humanos, porém também podem ser abstrações fundadas na imanência do mundo. São, portanto, um e outro, ficções culturais. São produtos culturais que emergem dos contextos práticos de produção do conhecimento e, além disso, dialeticamente, influem nas constantes novas manifestações conjunturais da sociedade. Com essa tomada de posição, colocamos em evidência o fronteiriço: o periférico intersubjetivo. E assim, podemos entender o Direito por meio da Arte, o que implica em situar o texto em seu devido contexto, mas também fazer conviver o lógico com o ilógico, em um sistema híbrido de mesclas, que pode culminar na emancipação do pensamento criativo. Nesse sentido, a luta por dignidade humana também é uma luta pela explosão do riso (a descarga do reprimido, a liberdade), pela vinculação do direito – instituído – à arte – instituinte –, como maneira de mirar uma alternativa ao que se apresenta como imutável, de exercitar a capacidade humana de fazer e desfazer o real, em vez de nos situarmos como tristes espectadores de uma realidade transcendental que se apresenta a priori como tal em sua universalidade dogmático-formal. A Música e o Direito são manifestações linguísticas: ambos são polissêmicos e comportam múltiplas interpretações. Não há nada fechado e imutável a fazer fechar as portas de uma imaginação poética. Tal relativização, todavia, não significa que tudo valha igual, outra face do pensamento absolutista, mas que todas as situações devem ser compreendidas em um marco de relação, despojando-nos da visão narcísica e deformada do real. Que nem tudo (toda a arte) vale igual, portanto, como nos disse Herrera Flores38, significa a possibilidade de nos colocarmos em relação com o mundo contextual do qual emergimos e no qual nos situamos, para podermos lutar por nossa capacidade de ser e de fazer valer nossas formas plurais de luta pela dignidade do ser humano. A criatividade, então, cumpre seu papel emancipador de luta pela dignidade quando percebida como a arte de criar vida, ou seja, quando sentida como a abertura ao novo que, por si só, sempre será subversão da ordem hegemônica. Um novo utópico39 que não pode mais ser visto como um lugar em nenhum lugar: um não lugar ou lugar que inexiste, tampouco que nunca existirá; mas como uma mirada de horizonte, um utópico a que se quer chegar. O importante é delimitarmos um lugar utópico que funcione como um dever ser de dignidade, para pautar as ações concretas dos indivíduos em sociedade. Aí reside a maior importância da arte: recuperar a criatividade – criar R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.70-92, jan./dez. 2011

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vida – humana enjaulada, para a mirada de um novo mundo possível, que seja lúdico, porém comprometido com a vida, em um sempre constante deslocamento de criação e recriação do que nunca é, nem poderá ser, estático. Herrera Flores40 disse que nem toda a arte vale igual: existe um critério de seleção estética. Diferenciamos as grandes obras artísticas das obras de menor porte. A diferença reside justamente nas lutas pela dignidade humana. As pequenas obras são apenas repetições de esquemas conceituais prévios, aceitação e reprodução de dogmas assumidos acriticamente. Já as grandes obras, levam consigo a potência humana, a capacidade de criatividade. São movimentos criadores do que pode vir-a-ser ante a pluralidade do mundo, buscando caminhos possíveis de igualdade e de dignidade. A arte não pode ficar na simples repetição, mas deve posicionar-se, libertar a possibilidade de constante recriação do mundo e das relações humanas. Ao gritar imanência, a arte pertence ao mundo humano, alheia às transcendências que impedem os seres humanos de se conscientizarem do contexto societário e do mundo no qual habitam e, assim, de humanizarem-se. Isso é o que Herrera Flores41 chama de lógica do vulcão, ou seja, uma metáfora, no âmbito dos direitos humanos e da dignidade humana, para a aposta na erupção do novo, que muitas vezes se encontra esmagado debaixo da pétrea laje do convencional. Ou seja, o que já está normatizado e a luta por novos direitos ou, antes, por bens materiais e imateriais que perfazem uma vida digna. A arte é filha de Taumas e, assim, descendente da admiração e da surpresa diante da pluralidade e do movimento do real. “[...] toda produção cultural – seja um romance, uma teoria ou uma norma jurídica – muda e se transforma ao largo das histórias pelas quais atravessa o ser humano, nesse contínuo processo de reação cultural em meio aos sistemas de relações em que vivemos.”42 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Este trabalho teve por objeto vislumbrar a possibilidade de uma intersecção entre os campos cognitivos do Direito e da Música para compreender a luta pela dignidade humana à luz do direito vivo, ou seja, das práticas sociais. Embora seja recente e pouco explorada a busca de uma relação teórica entre os campos cognitivos do Direito e da Música, a relação entre ambos não é recente, visto que, em primeiro lugar, as normativas jurídicas regulam a exploração da atividade musical, a exemplo do direito autoral, embora não dialoguem com a Teoria Musical. Ademais, em segundo lugar, a música, expressão da arte e do ser humano, dialoga com o Direito, principalmente com o Direito percebido como um ente social, além de promover críticas ao mundo jurídico. Assim, para a luta por direitos humanos (dignidade), a música, muito mais do que qualquer obra de arte, essencialmente quando popular, detém a 88

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capacidade de influenciar uma imensa quantidade de pessoas, tocando nas rádios de norte a sul do país, pode promover mudanças de grande porte nos valores sociais, práticas, etc., e, enfim, no próprio Direito. Se tanto o Direito quanto a Música se desenvolvem no mesmo campo, o campo das relações humanas, podemos dizer que, da mesma forma com que o Direito influencia o contexto social e, consequentemente, as manifestações artísticas, a Música, por seu turno, enquanto expressão do corpo individual e social, pode oferecer informações para a compreensão do Direito ao exprimir uma visão da sociedade, de onde o direito emerge e onde atua. Assim, a música pode influenciar a própria sociedade na busca de empoderamento, de liberdade, de igualdade, etc.; enfim, a música grita dignidade. Daí que no campo da música para a dignidade, a grande obra de arte não encontra fundamento na erudição do artista ou na harmonia, mas antes, na desestabilização do instituído para a luta por vida digna. Ainda assim, para falarmos de uma relação entre o Direito e a Música, no sentido da busca por dignidade e por Direitos Humanos, importa sabermos o que é Direito. Em primeiro lugar, não podemos reduzir o Direito ao ordenamento jurídico. Conforme Lyra Filho, é na dialética social e no processo histórico que surge o Direito, ou seja, a essência do jurídico é o conjunto do social. Não se trata, portanto, de um ente engessado, mas de um processo de modificação e de libertação permanente. O Direito é o próprio movimento social. Nesse sentido é que salientamos o Direito na Música, como instrumento de crítica da ausência de dignidade humana e como reflexo do social que busca empoderamento, vida digna (bens materiais e imateriais), como o Direito. Os Direitos Humanos, passam, assim, a ser percebidos a partir de uma teoria crítica e realista que os compreende em sua complexidade e em sua natureza impura e, híbrida, e os Direitos Humanos passam a ser vistos como processos que possibilitam a abertura e a consolidação de espaços de luta pela dignidade humana. Isso porque o humano não tem necessidade de direitos em si, mas de dignidade, ou seja, de uma vida digna em que possa satisfazer e lutar pela realização de seus desejos e necessidades, sejam elas materiais ou imateriais. Para essa finalidade, a Música pode contribuir para a luta por dignidade e cidadania. Por serem os Direitos Humanos o resultado sempre provisório das lutas por conquistas sociais e pela aquisição de bens materiais e imateriais, a dignidade é tida como um fim material, ou seja, concretiza-se o objetivo na obtenção dos bens necessários à garantia de uma vida digna de ser vivida. Essa luta, por conseguinte, enquanto prática social, política, etc., pode ocorrer por meio da arte – Música, isso porque, em grande medida, as belas obras de arte nos permitem uma modificação do olhar, rumo a uma abertura de consciência ao novo. Em vez de nos determos na mera mimetização temporal e espacial do passado, podemos vislumbrar criticamente a história e as necessárias R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.70-92, jan./dez. 2011

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Trecho extraído da música A lei, de Raul Seixas. Trecho extraído da música Debaixo dos caracóis dos seus cabelos, de Roberto Carlos. Trecho extraído da música Que país é esse?, do grupo Legião Urbana. LYRA FILHO, Roberto. O Direito que se ensina errado. Brasília: Centro Acadêmico de Direito da UnB, 1980, p. 6. 5 Ibid., p. 8. 6 Ibid., p. 14. 7 Ibid., p. 29. 8 Ibid., p. 14; LYRA FILHO. Roberto. O que é Direito?. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 115. 9 LYRA FILHO, 1982, op. cit., p. 118-109. 10 Ibid., p. 121. 11 LYRA FILHO, 1980, op. cit., p. 20.

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LYRA FILHO, Roberto. Problemas atuais do ensino jurídico. Brasília: Obreira, 1981, p. 30. LYRA FILHO , 1980, op. cit., p. 26. Ibid., p. 26, Ibid., p. 26. Ibid., p. 27. LYRA FILHO, 1982, op. cit., p. 27-28. LYRA FILHO; Roberto. Pesquisa em que Direito? Brasília: Nair, 1984a, p. 34. (LYRA FILHO; Roberto. Por que estudar Direito, hoje? Brasília: Nair, 1984b, p. 24-25. RODRIGUES, Horácio Wanderlei. O ensino jurídico de graduação no Brasil contemporâneo: análise e perspectivas a partir da proposta alternativa de Roberto Lyra Filho. Florianópolis, CPGD/UFSC, 1987. (Dissertação de mestrado), p. 157-158. 21 CHAUÍ, Marilena; LYRA FILHO, Roberto. Da dignidade política do Direito. Direito e Avesso, Brasília, Nair, I (2):21-30, jul./dez. 1982, p. 29. 22 Segundo Chauí (1982, p. 29), “[...] a apreensão do Direito na totalidade histórica (nacional e internacional) permite rever a idéia, clássica no marxismo, segundo a qual o Direito é parte da mera superestrutura, quando se considera, como o faz Roberto Lyra Filho, que a exploração, a desigualdade, a dominação, a violência e a injustiça se efetuam no nível da infra-estrutura, graças ao próprio Direito”. 23 Neste sentido, para Faoro (1982, p. 34), pelo menos duas vertentes no pensamento de Lyra Filho evitam que este caia na armadilha positivista dominante: a) “[...] o alargamento do Direito para abranger as ‘normas não estatais de classes e grupos espoliados e oprimidos’”; e b) “[...] de outro lado, [...] franqueia-se o bloqueio, com a descaracterização do Direito da qualidade de ideologia”. 24 HELLER, Agnes; FEHÉR, Ferenc. In: SANTARRITA, Marcos (Trad.). A condição política pósmoderna. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 195. 25 HERRERA FLORES, Joaquín. In: GARCIA, Carlos Roberto Diogo; SUXBERGER,

Antônio Henrique Graciano; DIAS, Jefferson Aparecido (Trads.). A reinvenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009a.

26 HERRERA FLORES, Joaquín . In: CAPLAN, Luciana; GARCIA, Carlos Roberto Diogo; SUXBERGER, Antônio Henrique Graciano; DIAS, Jefferson Aparecido (Trad.). Teoria crítica dos direitos humanos: os direitos humanos como produtos culturais.. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009b, p. 193. 27 HERRERA FLORES, 2009a, op. cit., p. 36. 28 Ibid., p. 36. 29 Ibid., p. 39. 30 Ibid., p. 40. 31 Ibid., p. 78. 32 Ibid., p. 34. 33 Ibid., p. 34. 34 Ibid., p. 34. 35 Trecho extraído da música Mun-Rá, de Sabotage. 36 Letra da música Só Deus pode me julgar, de MV Bill. 37 HERRERA FLORES, Joaquín. In: KAWAY JÚNIOR, Nilo (Trad.). O nome do riso: breve tratado sobre arte e dignidade. Porto Alegre: Movimento; Florianópolis: CESUSC; Florianópolis: Bernúncia, 2007, p. 19. 38 Ibid., p. 14. 39 Utopia é o termo cunhado por Thomas More para designar uma ilha – lugar – que não está em local nenhum real, somente existindo no plano do ideal, como um projeto de antecipação. As utopias modernas se inserem na dimensão do futuro, projetando uma antecipação dele como forma de criticar os valores que predominam no presente. E assim, a utopia existe modernamente em suas mais variadas vertentes, utopia socialista, capitalista, dos direitos humanos, etc. (SÁNCHEZ VÁZQUEZ; 2001, p. 361-363). 40 HERRERA FLORES, 2007, op. cit., p. 19-20. 41 Ibid., p. 31. 42 Ibid., p. 33.

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Horácio Wanderlei Rodrigues  Leilane Serratine Grubba

THE BEING OF HUMAN RIGHTS ON THE BRIDGE BETWEEN LAW AND MUSIC ABSTRACT This article focuses on Human Rights, especially on the possibility of understanding the battle for dignity and a dignified life in the light of the intersection between Law and Music. Even though there is no theory that links the cognitive fields, the relationship between them occurs in several ways. Indeed, music has the ability to influence a large number of people, much more than any other work of art, especially when popular, therefore, it can promote changes in social values, human practices, etc., and even in law itself. In this sense, the battle for dignity and Human Rights, in the field of music, may be understood at first according to Lyra Filho’s thoughts, since the law is conceived as continuous battle, i.e., within social practices. Secondly, it can be seen through the thoughts of Herrera Flores, which conceive Human Rights as the always provisional consequences of political, social, economic, cultural and legal, among other, battles for tangible and intangible assets that make life worth living. Keywords: Human rights. Dignity. Legal system. Music. Lyra Filho.

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A Obrigatoriedade de Conexão às Redes Públicas de Abastecimento de Água e de Esgotamento Sanitário e a Remuneração dos Serviços Ivo César Barreto de Carvalho* Álisson José Maia Melo** 1 Introdução. 2 O Artigo 45 da Lei Federal Nº 11.445/07. 3 A Obrigatoriedade de Conexão. 4 O Serviço Público Obrigatório. 5 Taxas. 6 Preço Público. 7 A Remuneração dos Serviços Previstos no Art. 45 da Lei Nº 11.445/07. 8 Soluções Alternativas de Interpretação. 9 Conclusões. Referências.

RESUMO O presente artigo examina a questão relativa à obrigatoriedade, ou não, da conexão às redes públicas de abastecimento de água e de esgotamento sanitário e da remuneração decorrente desses serviços, propondo algumas soluções para a implementação do art. 45 da Lei Federal nº 11.445/07. Palavras-chave: Saneamento Básico. Serviços Públicos. Obrigatoriedade da Conexão.

1 INTRODUÇÃO O alcance da universalização dos serviços públicos de saneamento básico, em especial o abastecimento de água e o esgotamento sanitário, constitui processo cuja etapa necessária passa pela realização de pesados investimentos em infraestrutura. Tendo em vista que os investimentos privados, ante as características que lhes são peculiares, qualificam-se como fórmula mais eficiente para a satisfação, a curto prazo, do direito ao acesso universal, cabe ao poder público, de modo a estimular a participação da iniciativa privada, disciplinar os serviços públicos mediante regras claras e objetivas. Nessa perspectiva, pretende-se analisar o artigo 45 da Lei Federal nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007, que estabelece as diretrizes nacionais dos serviços públicos de saneamento básico. Referido dispositivo, considerando-se sua redação confusa e a possibilidade de interpretações diversas, pode ser mal * Mestre em Direito Público pela Universidade Federal do Ceará – UFC, Especialista em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, Professor da Faculdade Christus, Advogado e Procurador-Chefe da Agência Reguladora de Serviços Públicos Delegados do Estado do Ceará – ARCE. Email: prof_ivo@hotmail.com ** Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Ceará – UFC, Advogado e Analista de Regulação da Agência Reguladora de Serviços Públicos Delegados do Estado do Ceará – ARCE. R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.93-113, jan./dez. 2011

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compreendido como entrave para a participação do setor privado. A questão em exame perpassa dispositivos constitucionais e legais, bem como discussões doutrinárias do Direito Administrativo, Financeiro e Tributário. 2 O ARTIGO 45 DA LEI FEDERAL Nº 11.445/07 Antes de introduzir o estudo do dispositivo legal, são necessárias algumas considerações acerca da Lei Federal nº 11.445/07. Decorrente de um período de aproximadamente 20 (vinte) anos de discussão, ou seja, desde a época da redemocratização do país, essa lei buscou trazer um regime jurídico mais próspero para o setor de saneamento básico, adequado aos fundamentos e aos objetivos fundamentais da nova República de acordo com a Constituição de 1988. Nesse processo de discussão, houve participação e defesa de interesses de diversos atores nos referidos serviços, incluindo usuários, empresas privadas prestadoras de serviços públicos, Estados, Municípios e respectivas entidades de regulação. Na tentativa de convergir interesses por vezes díspares e considerando a realidade institucional do setor e as perspectivas esperadas a longo prazo, pode-se dizer, sem medo de erros, que a Lei Federal nº 11.445/07 é bastante confusa e traz diversos dispositivos conflitantes entre si. Por motivos de políticas públicas decorrentes de projetos governamentais, buscou-se aprovar a referida lei sem, contudo, definir as principais bases do setor. A compreensão adequada de seu conteúdo é medida mais do que necessária para a segurança jurídica, inclusive no que importa aos investimentos privados. Entre os dispositivos conflitantes, há um que traz em si próprio, mesmo sem o confronto com outros artigos, uma contradição aparentemente irremediável, capaz de pôr em cheque toda a sistemática de remuneração dos serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário. Trata-se do artigo 45, que possui a seguinte redação: Art. 45. Ressalvadas as disposições em contrário das normas do titular, da entidade de regulação e de meio ambiente, toda edificação permanente urbana será conectada às redes públicas de abastecimento de água e de esgotamento sanitário disponíveis e sujeita ao pagamento das tarifas e de outros preços públicos decorrentes da conexão e do uso desses serviços.

O conflito ao qual se chama a atenção reside na correlação determinada pela obrigatoriedade de conexão às redes públicas ao lado do pagamento por preços públicos. Esses pontos serão desenvolvidos nos tópicos seguintes. 3 A OBRIGATORIEDADE DE CONEXÃO Com efeito, a primeira parte do dispositivo legal (“toda edificação permanente urbana será conectada às redes públicas de abastecimento de água e de esgotamento sanitário disponíveis”), numa primeira interpretação, traz uma determinação do poder público direcionada aos proprietários de edificações 94

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permanentes urbanas. Referido comando já constava em outras normas federais, como a Lei Federal nº 2.312, de 3 de setembro de 1954, o Código Nacional de Saúde, em seu artigo 11, e o Decreto Federal nº 49.974-A, de 21 de janeiro de 1961, que o regulamentava, no artigo 36, segundo o qual: “É obrigatória a ligação de tôda construção considerada habitável à rêde pública de abastecimento de água e aos coletores públicos de esgoto”. É plenamente viável a interpretação do artigo 45 da Lei nº 11.445/07 no sentido de se tratar de uma limitação administrativa. A partir da lição dos principais manuais de Direito Administrativo, a manifestação da limitação administrativa se caracteriza pela fixação em normas de caráter genérico, sem a individualização de seus destinatários, com a imposição de uma conduta para determinação do direito de propriedade segundo certo interesse público relevante.1 No caso do artigo 45 da Lei 11.445/07, o interesse público relevante está consubstanciado em dois pilares constitucionais, a saber: a defesa do meio ambiente (CR/88, artigo 125, caput) e a garantia da saúde pública (CR/88, artigo 196, caput). Ademais, considerando a natureza econômica dos serviços públicos de abastecimento de água e de esgotamento sanitário, a elas não escapa também a necessidade de compatibilização dos princípios norteadores da ordem econômica da República, conforme disposto no artigo 170 da Constituição: Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; [...] V - defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; [...]. (grifo nosso)

Assim, a limitação administrativa objetiva atender aos princípios da soberania nacional, da função social da propriedade e à defesa do meio ambiente. Como limitação administrativa, não se pode interpretar propriamente como uma restrição à propriedade, mas em verdade como conformação do direito de propriedade à sua função social (CR/88, artigo 5º, incisos XXII e XXIII). Sendo imposição do Poder Público incidindo genericamente sobre o direito de propriedade, trata-se de uma das formas de manifestação do poder de polícia administrativa,2 “expressão da supremacia geral que o Estado exerce sobre pessoas e coisas existentes no seu território”, na clássica lição de Hely Lopes Meirelles3. Por fim, resta verificar qual a natureza da referida limitação. Segundo a doutrina administrativista, as limitações administrativas podem estabelecer aos R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.93-113, jan./dez. 2011

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proprietários comandos positivos (fazer), negativos (não fazer) ou permissivos (deixar fazer).4 Nesse sentido, é de se ver que a determinação legal sob comento implica um “deixar fazer”, qualificando-se como proposição normativa na modalidade permissiva. Deve o proprietário de edificação urbana tolerar que o prestador de serviços efetue a conexão às redes públicas de abastecimento de água e de esgotamento sanitário. Todavia, entender a primeira parte do artigo 45 da Lei nº 11.445/07 como manifestação do poder de polícia entra em aparente conflito com a natureza jurídica da lei, que objetiva tratar dos serviços públicos de saneamento básico. A dúvida existente pode ser traduzida em saber se a regra em exame configura de fato manifestação do poder de polícia, ou se ela estaria incluída de alguma forma nas regras do serviço público. A questão, portanto, se imiscui no conceito de serviço público obrigatório. 4 O SERVIÇO PÚBLICO OBRIGATÓRIO A discussão acerca da classificação dos serviços públicos como obrigatórios carece de profundas discussões na doutrina do Direito Administrativo. O tema deve ser analisado a partir da distinção entre serviço público e poder de polícia administrativa. Inicialmente, ambos configuram-se como grandes espécies de atividades do Estado dirigidas aos cidadãos, voltadas à proteção do interesse público e regidas pelo regime jurídico-administrativo. O serviço público e o poder de polícia se diferenciam principalmente de acordo com a forma pela qual o Estado executa essa atividade: quando a atividade estatal consubstancia o oferecimento de utilidade ou comodidade destinada à satisfação de necessidade (intervenção positiva ou prestação), tem-se serviço público; quando a atividade estatal se traduz em imposições para o adequado exercício da liberdade ou da propriedade (intervenção negativa ou prescrição), tem-se exercício do poder de polícia.5 Em consequência dessa distinção ontológica, outra diferença entre os institutos é que o exercício do poder de polícia ocorre independente da vontade do cidadão, ao contrário do serviço público, que, em regra, depende do consentimento e da vontade do usuário. Todavia, há uma zona de penetração entre essas duas atividades, sendo um claro exemplo os serviços públicos obrigatórios ou compulsórios. Diógenes Gasparini6, classificando os serviços, faz rápida incursão sobre o tema: Em razão da obrigatoriedade da utilização, são compulsórios e facultativos. Compulsórios são os impingidos aos administrados, nas condições estabelecidas em lei, a exemplo dos serviços de coleta de lixo, de esgoto, de vacinação obrigatória, de internação de doentes portadores de doenças de caráter infectocontagioso. Facultativos são os colocados à disposição dos usuários sem lhes impor a utilização, a exemplo do serviço de transporte coletivo.

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A citação, limitando-se a apresentar a classificação, não explica em que consistiria a distinção entre essas duas modalidades de serviço público. Buscando trazer mais algum desenvolvimento ao tema, é digna de nota a citação de Alexandre Santos de Aragão7 no seguinte sentido: [...] todos os serviços públicos são de elevado interesse público, mas alguns deles possuem tamanho interesse para a coletividade que o particular não é apenas um beneficiário da sua prestação, mas também um sujeito obrigado a fruí-lo, ou seja, deve se abster de satisfazer aquela determinada necessidade humana através de outro meio que não seja o serviço público.

No caso do artigo supracitado, não há, a princípio, determinação expressa de utilização exclusiva dos serviços públicos de abastecimento de água e de esgotamento sanitário, ao tempo em que não veda a utilização de outros meios idôneos, mas estabeleceria tão somente o dever de conexão. No entanto, o § 1º do artigo 45 estipula que: § 1º Na ausência de redes públicas de saneamento básico, serão admitidas soluções individuais de abastecimento de água e de afastamento e destinação final dos esgotos sanitários, observadas as normas editadas pela entidade reguladora e pelos órgãos responsáveis pelas políticas ambiental, sanitária e de recursos hídricos.

Uma interpretação a contrario sensu do § 1º permite inferir, como regra geral, que, na presença de redes públicas de saneamento básico, não seriam admitidas soluções individuais. E, dessa maneira, uma limitação administrativa que consistia num simples permissivo (deixar fazer), passa a estabelecer também um comando negativo (deixar de utilizar soluções individuais de abastecimento de água e de esgotamento sanitário). Pode-se concluir que o serviço público obrigatório é, ao fim e ao cabo, valendo-se da distinção entre as atividades públicas, o oferecimento impositivo de uma utilidade ou comodidade; uma prestação prescrita. Em que pese configure uma síntese das duas principais atividades da Administração, a doutrina dá prevalência ao caráter prestacional, preferindo qualificá-la como uma modalidade especial de serviço público, considerando especialmente que as atividades a serem realizadas se identificam menos com aquelas tipicamente realizadas no exercício do poder de polícia do que com a prestação de serviço. O tema dos serviços públicos obrigatórios ainda mereceria maiores digressões teóricas. Entretanto, o que há de relevante a se destacar é que o artigo 45 da Lei Federal nº 11.445/07 permite que seja analisado tanto sob a ótica do exercício do poder de polícia por meio de limitações administrativas quanto pelo viés da prestação de serviço público compulsório. E, nesse tocante, a parte final do dispositivo supracitado (“e sujeita ao pagamento das tarifas e de outros preços públicos decorrentes da conexão e do uso desses serviços”) vai, ao menos a princípio, de encontro à interpretação da primeira.

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5 TAXAS Para a análise da parte final do art.45 da Lei Federal nº 11.445/07, entendemos necessário estabelecer a seguinte premissa: o que é norma jurídica tributária? Sem este conceito, parece-nos deveras complicado resolver o problema proposto neste trabalho. A norma jurídica é o enunciado normativo mínimo prescritor de condutas. Tais condutas são disciplinadas mediante os seguintes linguagens jurídicas: permitido, obrigado e proibido. A norma jurídica tributária, por decorrência lógica, é o enunciado normativo mínimo prescritor de condutas da relação jurídica que envolve o Fisco e as pessoas sujeitas à sua imposição tributária. Desta feita, podemos chegar à primeira conclusão: a norma jurídica tributária stricto sensu, via de regra, contém um modal deôntico (dever-ser) de cunho obrigatório. Noutros termos, os tributos são constituídos por normas jurídicas que prescrevem condutas obrigatórias aos contribuintes que se enquadrarem nas suas respectivas hipóteses de incidência. E as taxas, por serem uma dessas espécies tributárias, não fogem à análise dessa regra. Segundo conceito consagrado na doutrina brasileira, as taxas são espécies de tributos vinculados à atuação estatal. Contudo, esse vínculo não se dá para qualquer atuação estatal, mas apenas a duas modalidades: exercício do poder de polícia ou prestação de serviço público específico e divisível. Nesta senda, Kiyoshi Harada define a taxa, vinculando seu surgimento a uma atuação estatal diretamente dirigida ao contribuinte, além de ressaltar que sua base de cálculo não pode coincidir com nenhum imposto.8 Roque Antônio Carrazza conceitua a taxa como uma prestação que se inspira na comutatividade. Nessa relação jurídica tributária, o Estado tem o dever de prestar algo em favor do contribuinte, de modo que dele possa exigir algo (taxa).9 Diante disso, podemos concluir que as taxas são tributos que têm por hipótese de incidência uma atuação estatal diretamente ligada ao contribuinte. O art. 4º do Código Tributário Nacional dispõe, expressamente, sobre a interpretação acerca da natureza jurídica específica do tributo, devendo esta ser “determinada pelo fato gerador da respectiva obrigação, sendo irrelevantes para qualificá-la: I – a denominação e demais características formais adotadas pela lei; II – a destinação legal do produto da sua arrecadação.” Por essa razão, é possível distinguir as taxas dos impostos, pois nestes o fato gerador não possui qualquer vinculação com uma atividade estatal, diferentemente daquelas. Paulo de Barros Carvalho assim leciona: Nisso diferem dos impostos, e a análise de suas bases de cálculo deverá exibir, forçosamente, a medida da intensidade da participação do Estado. Acaso o legislador mencione a existência de taxa, mas eleja base de cálculo mensuradora de fato estranho a qualquer atividade do Poder Público, então a espécie tributária será outra, naturalmente um imposto.10 98

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Característica interessante do instituto jurídico das taxas no Direito brasileiro é que elas não podem, em hipótese alguma, possuir base de cálculo própria de impostos. Tal vedação possui amparo tanto constitucional (art. 145, §2º, CR) como legal (art.77, parágrafo único, CTN). Bernardo Ribeiro de Moraes pontua alguns elementos que não são adequados para caracterizar as taxas: a) destino da arrecadação; b) benefício especial; c) interesse público ou privado; d) voluntariedade.11 Mais adiante, o eminente jurista elenca os elementos peculiares às taxas, presentes em todas as espécies tributárias: a) receita derivada; b) compulsoriedade; c) prestação pecuniária; d) contraprestação.12 Entendemos que as taxas, como uma das espécies tributárias, são prestações pecuniárias compulsórias, que consistem em receitas derivadas, vinculadas a uma atividade estatal. Salientamos, entretanto, em que pese as respeitáveis opiniões em contrário, que a contraprestação ou a troca não é elemento configurativo da taxa. Não vislumbramos correta a afirmação de que há uma troca entre o Estado e o contribuinte nessa relação jurídica. A taxa deve ser paga independentemente de qualquer condição, posto estabelecida em lei. Superadas as questões conceituais, é necessária a análise das espécies de taxas. No Brasil, o direito positivo vigente13 prevê duas espécies de taxas: a) cobradas em razão do exercício do poder de polícia; e b) cobradas pela prestação de serviços públicos. Noutros termos, as taxas se apresentam como regulatórias do poder de polícia ou como remuneratórias de serviços. Sacha Calmon Navarro Coêlho preceitua que as taxas podem incidir sobre a matriz do poder de polícia ou sobre a matriz dos serviços públicos de utilidades usufruíveis pelos contribuintes. No primeiro caso, o Estado age, ainda que não solicitado; na segunda hipótese, o Estado age somente se solicitado.14 Para análise da primeira hipótese para criação das taxas, mister antes definir o que se entende por poder de polícia. O próprio Código Tributário Nacional, em seu art.78, traz uma definição legal do instituto jurídico em comento, verbis: Art. 78. Considera-se poder de polícia a atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

Parágrafo único. Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder. R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.93-113, jan./dez. 2011

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Infere-se, portanto, do dispositivo legal supracitado que o poder de polícia se refere a uma atividade administrativa que é desempenhada em razão de interesse público. Tais interesses foram, erroneamente, listados na norma em comento, vinculados à segurança, higiene, ordem, costumes, entre outros. Não é tarefa do legislador exemplificar a norma jurídica, tal ato configura-se em pobre técnica legislativa. Vale salientar, outrossim, que a cobrança da taxa de poder de polícia somente pode ocorrer a partir de uma ação concreta da Administração Pública, e não apenas no simples exercício do referido poder, em caráter geral e abstrato. Tal raciocínio não difere do exposto por Roque Antonio Carrazza: Não é qualquer ato de polícia que autoriza a tributação por meio desta modalidade de taxa, mas tão-somente o que se consubstancia num agir concreto e específico da Administração, praticado com base em lei, que levanta uma abstenção ou que mantém ou fiscaliza uma exceção já existente. O simples exercício do poder de polícia – tornamos a repetir – não enseja a cobrança da taxa de polícia. O que enseja tal cobrança é o desempenho efetivo da atividade dirigida ao administrado.15

O desempenho efetivo da atividade estatal, por outro lado, não quer dizer sempre presencial, com o deslocamento de agentes administrativos para o exercício da fiscalização in loco. A jurisprudência da Suprema Corte, aliás, já sedimentou este entendimento pautado na irrelevância da fiscalização “porta a porta” para caracterizar o efetivo exercício do poder de polícia.16 Quanto às taxas cobradas pela prestação de serviços públicos, estas têm por hipótese de incidência uma prestação de serviço público destinada diretamente ao contribuinte. Como já é cediço, e discorrido no item 4 deste artigo, o serviço público caracteriza-se como a prestação de utilidade material ao cidadão, fruível individualmente por este. Por certo, tal serviço deve estar submetido ao regime jurídico de direito público. Também sedimentada na doutrina, nacional e alienígena, a distinção entre os serviços públicos gerais e indivisíveis dos específicos e divisíveis. Magistrais e completas são as lições de Renato Alessi acerca do tema: A primeira (espécie de serviços públicos) compreende as atividades dirigidas a procurar uma utilidade genérica aos cidadãos uti universi, sem possibilidade de distinguir a quantidade de utilidade que cada cidadão obtém. A segunda (espécie de serviços públicos), pelo contrário, compreende as atividades voltadas a procurar utilidades específicas para determinados cidadãos que se servem do serviço oferecido pela Administração. Trata-se, pois, de atividades que se convertem num benefício desfrutado pelos cidadãos uti singuli. Esta distinção dos serviços públicos em serviços desfrutados pelos cidadãos uti singuli e uti universi tem importância, embora, apenas em relação aos primeiros, é possível configurar a atividade 100

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administrativa como sendo uma prestação administrativa aos particulares em sentido técnico, vale dizer, entendendo em sentido técnico a noção de prestação: atividade pessoal objeto de uma relação de caráter obrigatório, intercorrente entre dois sujeitos, já que unicamente no caso de serviços públicos desfrutados pelos cidadãos uti singuli é possível configurar uma concreta relação jurídica que tenha por objeto a atividade administrativa objeto do serviço, entre a Administração que presta o serviço e o particular que o desfruta.17

Assim, enquanto os serviços públicos gerais ou universais (uti universi) são prestados a todos os cidadãos indistintamente – e por isso devem ser custeados, no Brasil, da arrecadação oriunda das receitas gerais do Estado, e não por meio de taxas –, os serviços públicos específicos ou singulares (uti singuli) – por referirem-se a pessoas determinadas ou determináveis, bem como por serem de utilização individual e mensuráveis – são passíveis de serem custeadas por meio de taxas de serviço. Na mesma esteira, o art. 79 do CTN dispôs sobre os serviços públicos, constituindo hipótese de incidência das taxas apenas aqueles utilizados pelo contribuinte, desde que prestados de forma específica e divisível. A utilização dos referidos serviços pelo contribuinte (inciso I) pode ser efetiva (alínea a – “quando por ele usufruídos a qualquer título”) ou potencial (alínea b – “quando, sendo de utilização compulsória, sejam postos à sua disposição mediante atividade administrativa em efetivo funcionamento”). Esclarece Hugo de Brito Machado que a compulsoriedade está atrelada à utilização efetiva do serviço e, por conseguinte, à cobrança de taxa: Se o serviço não é de utilização compulsória, só a sua utilização efetiva enseja a cobrança de taxa. Se a utilização é compulsória, ainda que não ocorra efetivamente essa utilização a taxa poderá ser cobrada. Em qualquer caso é indispensável que a atividade estatal, vale dizer, o serviço público específico e divisível, encontre-se em efetivo funcionamento. Em outras palavras, é condição indispensável para a cobrança da taxa a efetiva existência do serviço à disposição do contribuinte.18

Em seguida, o CTN esclarece as duas características dos serviços públicos tributáveis mediante taxa: a especificidade e a divisibilidade. São específicos os serviços “quando possam ser destacados em unidades autônomas de intervenção, de utilidade ou de necessidade públicas” (inciso II). A divisibilidade, por sua vez, ocorre nos serviços “suscetíveis de utilização, separadamente, por parte de cada um dos seus usuários” (inciso III). Não obstante a aparente clareza da norma retrocitada, Hugo de Brito Machado critica a forma com as duas características dos serviços públicos foram dispostas no código, tendo em vista que são inseparáveis. Para o ilustre jurista, não há qualquer sentido prático em separar tais definições.19 R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.93-113, jan./dez. 2011

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Muito se discute acerca da existência ou não da contraprestação estatal no tocante às taxas. A ideia da contraprestacionalidade é útil ou não para caracterizar as taxas?20 Juristas brasileiros de expressão nacional entendem que não há a necessidade constitucional de atrelar as taxas à natureza jurídica contraprestacional.21 Kiyoshi Harada assim desenvolve seu raciocínio acerca das taxas: Embora incontestável que o móvel da atuação jurisdicional do Estado não seja o recebimento da taxa, o legislador, no plano pré-jurídico, ao elaborar a lei instituindo a sua cobrança, desenvolve a idéia de contraprestação do ponto de vista econômico, para possibilitar a fixação de seu quantum, dentro de bases razoáveis. Nem a Constituição, nem o CTN exigem perfeito equilíbrio na equação custo-benefício, exatamente porque a taxa não tem, juridicamente, natureza contraprestacional. Prevalece certa dose de arbítrio do legislador na fixação do valor da taxa, porém, nunca ao ponto de inverter a relação custo-benefício ou violentar o seu conceito, transformando-a em instrumento de retirada compulsória da parcela da riqueza produzida pelo particular, como se de imposto tratasse.22

Para outra parcela da doutrina brasileira23, a contraprestação é elemento intrínseco das taxas, a fim de demonstrar o caráter sinalagmático dessas espécies tributárias. Sacha Calmon Navarro Coêlho afirma que o sinalagma é característica essencial da taxa, em que pese a compulsoriedade de sua exigência. Entendemos que o sinalagma não é característica da relação jurídico-tributária, incluindo aí a das taxas, que envolve o contribuinte e o ente público tributante. É precisão não confundir a bilateralidade com o caráter sinalagmático. A relação jurídico-tributária é bilateral (envolve o Poder Público tributante e as pessoas sujeitas a uma imposição tributária estatal), mas não envolve sinalagma, pois não há uma dinâmica transformação das posições dos sujeitos na relação. A título de comparação, o contrato de compra e venda é uma relação jurídica que envolve um negócio bilateral sinalagmático. Há direitos e obrigações recíprocos para comprador e vendedor. Cada uma dessas partes figura ora no polo ativo (detentor de direitos), ora no polo passivo da relação jurídica (detentor de deveres). Isto não ocorre no cerne da relação jurídico-tributária. O contribuinte não figura ora no polo passivo, ora no polo ativo da relação. Não estamos afirmando que inexistem direitos e obrigações recíprocos entre o Poder Público tributante e os contribuintes, mas que o direito destes de exigir daqueles a contraprestação estatal não tem natureza tributária, é de caráter administrativo. Esta singela diferenciação entre a bilateralidade e o caráter sinalagmático de uma relação jurídica é essencial para entender a existência ou não do elemento contraprestacional no âmago das taxas.

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6 PREÇO PÚBLICO Ao contrário das taxas – que obedecem ao regime jurídico tributário e, portanto, constituem obrigação ex lege –, os preços públicos (tarifas) são regidos pelo direito privado, não havendo em suas relações jurídicas conteúdo publicístico. Os preços derivam de contrato firmado entre entes da Administração Pública Indireta (ou entidades delegadas) e o administrado (cidadão que pactuou com o ente público ou entidade delegada). Nota-se, destarte, que os princípios da autonomia da vontade (consensualismo), liberdade contratual e da força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda) são inerentes aos contratos em que haja a previsão de cobrança de preços públicos ou tarifas. Roque Antonio Carrazza alude a essas características ao diferenciar as taxas dos preços públicos: Se, no entanto, o Estado pretender remunerar-se pelos serviços públicos que presta ou pelos atos de polícia que realiza (tudo vai depender de sua decisão política, expressa em lei), deverá, obrigatoriamente, fazê-lo por meio de taxas (obedecido, pois, o regime jurídico tributário). Nunca por meio de preços públicos (também chamados tarifas ou, simplesmente, preços). Apenas para tangenciarmos o assunto, os preços possuem regime jurídico diverso das taxas, não sendo dado ao legislador transformar estas naqueles, e vice-versa. De feito, enquanto os preços (tarifas) são regidos pelo direito privado, as taxas obedecem ao regime jurídico público. Nelas não há relação contratual, mas relação jurídica de conteúdo manifestamente publicístico. Noutras palavras, o preço deriva de um contrato firmado, num clima de liberdade, pelas partes, com o fito de criarem direitos e deveres recíprocos. Sobremais, as cláusulas desta obrigação convencional não podem ser alteradas unilateralmente por qualquer dos contraentes, que devem observar, com fidelidade, o que pactuaram. Destarte, as prestações de cada uma das partes equivalem-se em encargos e vantagens, sendo umas causa e efeito das outras.24

Na mesma linha, Geraldo Ataliba distingue, de forma precisa e concisa, os dois institutos: [...] se o serviço é público, deve ser desempenhado por força da lei, seu único móvel. O pagamento (taxa) é-lhe logicamente posterior: é mera conseqüência; não é essencial à relação de prestação-uso do serviço [...] Se o serviço não é público – o que só seu regime jurídico pode definir, e não preconceitos políticos, administrativos etc. – então pode ter mola ou força impulsionadora o pagamento (preço) do particular que recebe esse serviço.25

Verifica-se, portanto, que a observância do regime jurídico atribuível ao serviço é essencial para a configuração do pagamento. Tal definição do regime não é uma questão política, que deva ficar a cargo de uma decisão da autoridade R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.93-113, jan./dez. 2011

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administrativa, mas trata-se de um balizamento inerente à lei. Noutros termos, tratando-se de serviço cujo regime jurídico é de direito público, cabe à lei estabelecer todas as suas premissas, inclusive a questão remuneratória – por meio das taxas – devendo estas obedecerem a todos os ditames do sistema tributário brasileiro, mormente os princípios constitucionais tributários. A diferença entre preços públicos e taxas já se encontra sedimentada na jurisprudência brasileira, mormente na Súmula nº 545 do Supremo Tribunal Federal: “Preços de serviços públicos e taxas não se confundem, porque estas, diferentemente daquelas são compulsórias e têm sua cobrança condicionada à prévia autorização orçamentária, em relação à lei que as instituiu.” Percebe-se, claramente, no entendimento sumulado da Excelsa Corte a alusão aos princípios da anualidade (financeira) e da legalidade (tributária). Não obstante, para Hugo de Brito Machado, não é tão fácil assim a distinção prática entre taxa e preço público. Isto porque, no âmbito jurídico, o regime jurídico ao qual se submeterá a atividade estatal será formulado no plano político e, portanto, ao alvedrio do Poder Legislativo: Não é fácil, nos domínios da Ciência das Finanças, estabelecer a diferença entre taxa e preço público. No âmbito jurídico, porém, a questão se resolve em admitir-se que a distinção entre atividade própria do Estado e atividades que podem ser exercidas por particulares há de ser formulada no plano político, vale dizer, há de ser fixada pelo Legislativo. Assim, admite-se que a lei estabeleça a fronteira entre a taxa e o preço, instituindo o que se pode entender como taxa por definição legal. Assim, temos que: a) se a atividade estatal situa-se no terreno próprio, específico, do Estado, a receita que a ela se liga é uma taxa; b) se a atividade estatal situa-se no âmbito privado, a receita a ela vinculada deve ser um preço; c) havendo dúvida, pode a lei definir a receita como taxa ou como preço.26

A solução apresentada ao embate entre as taxas e as tarifas é magistral e bastante atual, tendo em vista a dinâmica da administração pública brasileira. Com as privatizações de inúmeras empresas públicas por todo o país, vários dos serviços antes prestados, de forma indubitável, pelo Estado, hoje são atividades ligadas ao âmbito privado e, portanto, remuneráveis por meio de tarifas. Para Hugo de Brito Machado, no caso sob enfoque no presente trabalho, a remuneração dos serviços públicos de água e esgoto pode ser realizada tanto por meio de taxa como por tarifa, dependendo da característica do serviço (compulsoriedade ou facultatividade) adotada por sua lei instituidora: O mesmo pode ser dito do serviço de água e esgoto. Se há norma proibindo o atendimento da necessidade de água e de esgoto por outro meio que não seja o serviço público, a remuneração correspondente é taxa. Se a ordem jurídica não proíbe o fornecimento 104

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de água em pipas, nem o uso de fossas, nem o transporte de dejetos em veículos de empresas especializadas, nem o depósito destes em locais para esse fim destinados pelo Poder Público, ou adequadamente construídos pela iniciativa privada, então a remuneração cobrada pelo serviço público de fornecimento de água e esgoto é preço público. Se, pelo contrário, existem tais proibições, de sorte a tornar o serviço público o único meio de que se dispõe para o atendimento da necessidade de água e de esgoto, então a remuneração respectiva será taxa.27

Em verdade, cabe ao ente político competente para prestar o serviço público a atribuição, por meio de lei, da natureza jurídica do serviço prestado e sua consequente remuneração. 7 A REMUNERAÇÃO DOS SERVIÇOS PREVISTOS NO ART. 45 DA LEI Nº 11.445/07 Enfrentadas as questões teóricas acerca dos institutos jurídicos administrativos e tributários envolvidos, mister desvendar a natureza jurídica da remuneração dos serviços previstos no art. 45 da Lei Federal nº 11.445/07. Afirma-se, textual e peremptoriamente, que a remuneração dos sobreditos serviços será efetivada por meio de “tarifas e de outros preços públicos decorrentes da conexão e do uso desses serviços”. Como visto, a primeira parte do dispositivo legal, numa leitura inicial da norma, encerra uma determinação do poder público direcionada aos proprietários de edificações permanentes urbanas. Seu fundamento pode ser observado no recente Decreto Federal nº 7.217, de 21 de junho de 2010, no art. 3º, que explicita o caráter essencial dos serviços de saneamento básico, ligando-se fortemente ao princípio fundamental do art. 2º, inc. III, da Lei, para proteção da saúde pública e do meio ambiente. Tal comando pode ser interpretado sob duas óticas distintas. A primeira delas entende que a lei teria tornado compulsórios os serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário, já que teria obrigado à conexão. E a segunda, numa interpretação mais difícil, no sentido de que esse comando seria uma limitação administrativa, expressão do poder de polícia que visa a dar o contorno dos direitos constitucionais de propriedade e de sua função social (art. 5º, incs. XXII e XXIII, CR). Observe-se, ainda, que a própria lei traz os condicionamentos mínimos para tal obrigação. Primeiramente, somente se pode exigir a conexão caso as redes públicas estiverem disponíveis. Na ausência de redes disponíveis, o § 1º do art. 45 autoriza a adoção de soluções individuais, respeitadas as normas regulamentares referentes ao serviço público, ao meio ambiente, à saúde e aos recursos hídricos. Outra condição para a obrigatoriedade de conexão está na ausência de ressalvas na legislação específica do serviço, que poderá dispensar no todo ou em parte a conexão, de acordo com a política pública que o titular adotar para os serviços. Uma última condição, aponR. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.93-113, jan./dez. 2011

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tada por Roque Carrazza, no sentido de que, quando se trata do serviço de fornecimento de água e esgotamento sanitário, a cobrança da taxa somente é possível se tal atividade puder ser traduzida em unidades de medida e atribuída ao sujeito passivo.28 Entretanto, a parte final do dispositivo vai de encontro à interpretação da primeira. Ora, se a obrigatoriedade de conexão é nítida manifestação do poder de império da Administração, tanto sob a ótica de serviço público compulsório quanto de poder de polícia, qualquer cobrança pela realização dessa atividade administrativa deve passar pela aplicação de normas tributárias. Caso se entenda tratar a primeira parte do dispositivo como indicativo da compulsoriedade do serviço, com base no qual seria possível, conforme a segunda parte, a cobrança pelo uso do serviço decorrente da conexão, inclusive o potencial, há aqui a perfeita identificação da hipótese genérica de aplicação da taxa de serviços, quando postos à disposição. A doutrina tributária é quase unânime quanto à obrigatoriedade da cobrança de taxa nessa situação, a saber, pela mera disponibilidade do equipamento, caso a lei instituidora da taxa considere obrigatória a utilização de referido equipamento.29 No outro sentido, caso se interprete a primeira parte do dispositivo como manifestação do poder de polícia por meio de uma limitação administrativa à propriedade urbana, sob pena de multa, haverá um ato comissivo (conexão) por parte da autoridade responsável, e a cobrança deverá ser, a princípio, relacionada ao custo dessa atividade. Nesse caso, vislumbrar-se-ia uma taxa de polícia. Todavia, traduzindo-se num ato de polícia, não poderá um delegatário do Poder Público fazer as vezes deste, com entendimento pacificado no Pretório Excelso30. Em suma, caso o titular dos serviços deseje cobrar algum valor pela conexão, ou pelo uso (ainda que potencial) desses serviços diante de sua disponibilidade (em razão da conexão obrigatória), deverá fazê-lo mediante taxa, nos termos do art. 145, inc. II, da Constituição e dos arts. 77 e 79 do Código Tributário Nacional. Além disso, a cobrança do uso das redes públicas apenas será tarifária se o proprietário assim concordar e contratar com o prestador de serviços, revelando-se o caráter voluntarístico da relação jurídica custeada por tarifa. O Decreto Federal nº 7.217/2010, quando poderia ter solucionado o conflito ao regulamentar a Lei, nos arts. 6º e 11, manteve a mesma determinação, e, não bastasse isso, qualificou o proprietário como usuário do serviço31 e, ainda, determinou prazo para que este se conecte, sob pena de multa32. Portanto, a interpretação do dispositivo, segundo os métodos clássicos, não permite, em primeiro plano, uma aplicação racional e juridicamente possível. Faz-se necessário, nesse diapasão, buscar algumas soluções alternativas para a aplicação da norma.

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8 SOLUÇÕES ALTERNATIVAS DE INTERPRETAÇÃO As soluções alternativas de interpretação deverão buscar possíveis aplicações não no texto da norma em si, mas questionando-se as premissas, decorrentes dos métodos literal e lógico, das quais partimos inicialmente para chegar ao entrave observado. 1. Uma primeira solução, sempre presente nesse tipo de raciocínio, está em questionar a constitucionalidade do dispositivo. Ora, ao fazer de um lado uma imposição aos proprietários, típica do poder de império da Administração, e, de outro, instituir a cobrança mediante preço, essencialmente vinculado a um compromisso de pagá-lo, o dispositivo estaria confrontando o art. 145, II, da Constituição, que determina a instituição de taxa (e não de tarifa). Ademais, ainda que se reconhecesse, numa interpretação extensiva ou analógica de “outros preços públicos” a inclusão das taxas, de modo a salvaguardar o dispositivo sob o crivo constitucional, ainda é possível vislumbrar no art. 45 da lei violação ao pacto federativo (arts. 1º e 18 da Constituição), uma vez que a União estaria determinando aos titulares (Estados e Municípios33), pela via indireta (a saber, mediante diretrizes gerais), a obrigação de instituir tributo. Somente estes detêm a competência para instituir ou não as taxas em razão de serviços públicos que prestem. A obrigação tributária é ex legis, a despeito de haver certa discricionariedade na escolha (pré-legislativa) de instituir ou não uma taxa. Todavia, entender pela inconstitucionalidade do dispositivo é medida bastante confortável para o intérprete descompromissado com a realidade social. A prestação dos serviços públicos de saneamento básico, dado seu caráter essencial para a vida humana digna, reveste-se de relevo jurídico-constitucional que impede ou ao menos dificulta uma solução nesse sentido. Outrossim, a constitucionalidade dos dispositivos legais é presumida até que o Poder Judiciário diga o contrário, e, dessa maneira, os titulares dos serviços, enquanto entes da Administração Pública submetidos ao princípio da legalidade (art. 37, caput, CR/88), eventualmente aplicarão o comando. Logo, caberá ao titular dos serviços a solução do problema inserido no art. 45 da Lei Federal nº 11.445/07, devendo garantir a segurança jurídica necessária aos investimentos no setor, diante do dilema dos riscos existentes entre a existência de demandas judiciais discutindo a natureza da cobrança e a sustentabilidade econômica da prestação. Sob a ótica do usuário, ele não tem o dever de pagar tarifa (preço público) por algo que é obrigatório. Viola os direitos fundamentais e as garantias dos princípios da tributação protegidos na Constituição da República. Por outro lado, sob a ótica do prestador, este não pode ter prejuízos nos serviços, devendo ser respeitado o equilíbrio econômico-financeiro da delegação. 2. Nessa perspectiva, uma segunda solução seria o titular dos serviços reconhecer na primeira parte do art. 45 uma manifestação da potestade pública, como espécie de atividade de polícia, podendo optar por sujeitar ou não o proprietário R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.93-113, jan./dez. 2011

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ao pagamento de taxa. Contudo, ao proceder dessa forma, a princípio, somente a Administração Pública poderá tanto realizar a conexão quanto proceder ao lançamento do tributo, sendo vedado ao prestador de serviços delegatário do Poder Público. Nada obstante, duas subsoluções emergem. 2.1. Tendo em vista a primazia do direito à saúde (arts. 5º, caput, e 196 a 200 da Constituição Federal) e da proteção do meio ambiente (art. 225 da Constituição da República), o titular dos serviços poderá optar por dispor de uma estrutura própria da Administração Pública de direito público (Secretaria, Departamento ou Autarquia) para realizar o serviço público. Nesse caso, vislumbrando-se a conexão obrigatória como qualificação do serviço público como compulsório, seria legítima a instituição de taxa de serviço público, tendo como hipótese de incidência o uso efetivo ou potencial, este último pela mera disponibilidade. 2.2. A Administração poderia, ainda, optar por dispor de uma estrutura própria tão somente para executar as conexões obrigatórias, cabendo ao delegatário a prestação dos serviços eventualmente contratados; nessa situação, a instituição de taxa de polícia seria também aceitável, fundada na limitação administrativa, cujo valor deveria corresponder ao custo da simples conexão. Contudo, vislumbra-se um conflito na presente solução. A conexão aos serviços de água e esgoto, não obstante obrigatória, serviria justamente para possibilitar ao respectivo proprietário sua utilização a qualquer instante, notadamente num momento de necessidade, por força dos princípios da precaução e da prevenção ambientais e sanitárias. E, uma vez utilizando-se efetivamente o serviço, que, como dito, seria prestado pelo delegatário do Poder Público, o prestador seria incapaz de buscar junto ao usuário específico o ressarcimento, pela ausência de vínculo contratual. Também não poderia fazê-lo com base em responsabilidade civil, uma vez que a culpa redundaria sempre na Administração Pública. O prestador de serviços também não poderia cobrar pela chamada tarifa mínima (também objeto de discussões jurídicas quanto a sua legitimidade), uma vez ausentes requisito mínimo para sua cobrança, a saber, a existência de contrato firmado com o usuário do serviço. Assim, a responsabilidade pelo ressarcimento recai sobre titular dos serviços, não podendo ter repercussões para o prestador ou para o usuário. E a Administração Pública teria a obrigação de ajustar contratualmente com o titular dos serviços como se daria o pagamento. Por outro lado, questionamos quanto à possibilidade de a Administração Pública, nessa específica situação, custear o ressarcimento ao prestador de serviços mediante a instituição de taxas de serviço. Ora, a redação constitucional e legal das taxas não explicita quem irá prestar o serviço público; uma vez que é a Administração Pública quem assume o ônus (ainda que financeiro) pela prestação dos serviços, não vislumbramos óbices jurídicos para a instituição de taxa de serviço, tanto nos casos de utilização efetiva quanto nos casos de utilização potencial, 108

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facultando-se a possibilidade de celebração de contrato com o prestador de serviços, mediante o pagamento de tarifas, momento em que deixará de incidir a taxa. Aliás, a Administração poderia inclusive colocar o valor da taxa em um patamar um pouco acima do valor da tarifa, como uma forma extrafiscal de estimular os proprietários a contratar com o prestador de serviços e, assim, fomentar a modicidade tarifária. Dessa maneira, os recursos da taxa poderiam ser destinados ao pagamento dos custos do prestador, devendo, nesse caso, a lei que a institui vincular a destinação de uma parcela, uma vez que a vinculação das receitas, como visto, não é da essência desse tributo. A rigor, ao titular caberia o compromisso de pagar com recursos orçamentários ao prestador pelos custos despendidos com as ligações obrigatórias, independentemente de onde vierem esses recursos orçamentários (tributos e outras receitas correntes). É preciso alertar, porém, que não é o prestador que irá proceder ao lançamento; a Administração é quem deverá identificar a utilização dos serviços, podendo o prestador auxiliá-la com a instalação de hidrômetros, por exemplo. Além disso, o valor arrecadado com essa taxa de serviço não deve ser totalmente destinada ao ressarcimento do prestador, uma vez que haveria aí uma descaracterização da finalidade da taxa (que, em princípio, não pode ter finalidade lucrativa). Por fim, o pagamento ao prestador pelo titular do serviço não pode ser de valor superior ao devido segundo os índices tarifários aplicáveis. 3. Mais uma alternativa, ao decidir o titular pelo custeio dos serviços por meio de “tarifas e de outros preços públicos”, considerando o princípio da autonomia da vontade nas relações contratuais, seria a opção pela ressalva total à obrigatoriedade da conexão, devendo, sem quaisquer prejuízos, dar continuidade às fiscalizações sanitária e ambiental. Em vez de instituir um aparato para prestar o serviço ou realizar as conexões, a Administração do titular faria seu enfoque na fiscalização ambiental. Não se está dizendo aqui que, caso o titular adote esta última opção, os cidadãos estariam autorizados a jogar o esgoto nas ruas. Trata-se de infração grave à legislação ambiental, podendo a fiscalização servir como incentivo para o usuário celebrar contrato com o prestador. Outrossim, haveria, nessa hipótese, um conflito de normas jurídicas; de um lado, as de âmbito federal, considerando a essencialidade dos serviços públicos de saneamento básico, fundamento suficiente para torná-los obrigatórios; e de outro, as oriundas do titular, no sentido de que, não obstante o caráter essencial dos serviços, não há necessidade de fazê-los compulsórios aos cidadãos. Tendo em vista que a criação de tributo por lei e a elaboração de regras legais específicas acerca da metodologia de conexão são medidas difíceis sob o ponto de vista prático, forçoso concluir que o dever de conexão obrigatória disposto no art. 45 somente poderá ser cobrado dos cidadãos quando o titular dos serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário confirmá-lo R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.93-113, jan./dez. 2011

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em lei específica referente à política pública de saneamento básico, conforme o art. 9º, inc. IV, da Lei Federal nº 11.445/2007. E, na elaboração da política, caso mantenha a obrigatoriedade da conexão, deverá determinar os meios para sua cobrança, não podendo fazê-lo por tarifas. 4. Por fim, uma última solução a ser aventada diz respeito a uma interpretação razoável do art. 45. Colocando em cheque a premissa do destinatário do comando legal, inicialmente afirmado como o proprietário de “edificação permanente urbana”, passa-se a desconstruir a noção de conexão da propriedade às redes públicas com o qual se trabalhou ao longo do presente estudo, para dar uma interpretação coerente ao comando legal. Nesse diapasão, pode-se observar (sendo uma visão juridicamente possível) que a Lei Federal nº 11.445/07 possui normas relativas à estruturação do serviço público, cuja quase totalidade dos capítulos e dos artigos reporta-se seja ao titular dos serviços, que deverá organizá-los, seja aos agentes públicos envolvidos (prestador e regulador), estabelecendo relações de cooperação e de competência entre uns e outros. Sob essa via lógica, o art. 45 encontra-se no capítulo relativo aos aspectos técnicos, ou seja, num capítulo cujas regras possuem como destinatário, a princípio, o prestador dos serviços. Considerando a aparente incoerência do dispositivo, no caso de o art. 45 ser compreendido como comando ao usuário dos serviços, conforme foi exposto neste trabalho, deve-se perquirir se essa norma não seria destinada ao prestador de serviços. Nesse raciocínio, o texto do dispositivo legal em comento poderia ser compreendido como um dever ao prestador de serviços para, sempre que solicitada pelo usuário, proceder imediatamente à conexão. Ao estatuir que “toda edificação permanente urbana será conectada às redes públicas”, a Lei pode estar determinando ao prestador de serviços que este deverá atender ao princípio da universalização do acesso aos serviços de saneamento básico (art. 2º, I, da Lei Federal nº 11.445/07), traduzido sob dois comandos específicos: a) que o prestador deverá expandir as redes públicas de modo a deixá-las à disposição de todos os proprietários de edificações permanentes urbanas; b) que o prestador não se escuse de realizar a conexão e prestar o serviço quando solicitado pelo usuário interessado. Tal solução coaduna-se com uma análise sistêmica da norma, adequando-se com a parte final, autorizando a cobrança de tarifas e de outros preços públicos. Por outro lado, o Decreto regulamentador não caminhou nesse sentido, razão pela qual esta última solução parece não ter sido aquela querida pelo regulamentador34. 9 CONCLUSÕES Partindo da premissa da universalização dos serviços de saneamento básico, a questão da conexão às redes públicas de água e esgoto deve ser vista sobre o prisma do princípio da dignidade da pessoa humana. 110

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Na interpretação do art. 45 da Lei Federal nº 11.445/07, propomos as seguintes soluções hermenêuticas ao dispositivo legal citado, alternativas entre si: a) declarar a inconstitucionalidade do dispositivo legal em comento, ante o confronto com o art.145, II, da Constituição Federal, que dispõe sobre taxas; b) identificar, na primeira parte do art. 45, uma manifestação da potestade pública, como espécie de atividade de polícia, podendo optar por sujeitar ou não o proprietário ao pagamento de taxa, ora vislumbrando-se a conexão obrigatória como qualificador da compulsoriedade do serviço público, ora dispondo de uma estrutura própria tão somente para executar as conexões obrigatórias, cabendo ao delegatário a prestação dos serviços eventualmente contratados; c) flexibilizar a “obrigatoriedade da conexão” às redes públicas de água e esgoto, caso o titular decida por custear os serviços por meio de tarifas e outros preços públicos, sem prejuízo das fiscalizações sanitária e ambiental; d) interpretar o conteúdo da norma sub examine como um dever ao prestador de serviços para, sempre que solicitado pelo usuário, proceder imediatamente à conexão. Por fim, quanto à remuneração desses serviços, caso o titular dos serviços deseje cobrar algum valor pela conexão, ou pelo uso (ainda que potencial) desses serviços diante de sua disponibilidade (em razão da conexão obrigatória), deverá fazê-lo mediante taxa, nos termos do art. 145, inc. II, da Constituição e dos arts. 77 e 79 do Código Tributário Nacional. Além disso, a cobrança do uso das redes públicas apenas será tarifária se o proprietário assim concordar e contratar com o prestador de serviços, revelando-se o caráter voluntarístico da relação jurídica custeada por tarifa. REFERÊNCIAS ARAGÃO, Alexandre Santos de. Direito dos serviços públicos. Rio de Janeiro: Forense, 2007. ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 17. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. COÊLHO, Sacha Calmon. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2007. R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.93-113, jan./dez. 2011

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Ivo César Barreto de Carvalho  Álisson José Maia Melo

FURTADO, Lucas Rocha. Curso de Direito Administrativo. 2. ed. Belo Horizonte: Forum, 2010. GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. HARADA, Kiyoshi. Direito Financeiro e Tributário. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2007. MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 31. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. MORAES, Bernardo Ribeiro de. A Taxa no Sistema Tributário Brasileiro. São Paulo: RT, 1968. 1 Cf. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 17. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 676-679; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 117-119; FURTADO, Lucas Rocha. Curso de Direito Administrativo. 2. ed. Belo Horizonte: Forum, 2010, p. 815 GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 744-745; MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 632-633; MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 882-883. 2 DI PIETRO, op. cit., p. 119; FURTADO, op. cit., p. 815; MEIRELLES, op. cit., p. 633. 3 Op. cit., p. 632. 4 CARVALHO FILHO, op. cit., p. 676; DI PIETRO, op. cit., p. 119; FURTADO, op. cit., p. 815; GASPARINI, op. cit., p. 744; MEIRELLES, op. cit., p. 633. Em sentido contrário, entendendo que as limitações administrativas importam apenas numa determinação negativa (não fazer), MELLO, op. cit., p. 883. 5 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Direito dos serviços públicos. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 148, 166-169; DI PIETRO, op. cit., p. 108; FURTADO, op. cit., p. 665-667; MELLO, op. cit., p. 667-669. 6 Op. cit, p. 296-297. 7 Op. cit., p. 551. 8 HARADA, Kiyoshi. Direito Financeiro e Tributário. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 333. 9 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 21 ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Malheiros, 2005, p.499. 10 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p.71. 11 MORAES, Bernardo Ribeiro de. A Taxa no Sistema Tributário Brasileiro. São Paulo: RT, 1968, p.38-39. 12 Ob.cit., p. 54. Em relação ao último elemento, o autor entende a contraprestação como resposta do Estado ao tributo recebido. Noutros termos, a contraprestação consiste na utilização das receitas tributárias para os fins ou atividades estatais, o que é característica de qualquer receita derivada. 13 Constituição Federal, Art. 145, inciso II; Código Tributário Nacional, Art. 77. 14 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p.614. 15 Ob. cit., p.503. 16 Vide AgR no RE 361009/RJ, Rel.Min. Joaquim Barbosa, 2ª Turma, julg. em 31.08.2010, publ. no DJe de 12.11.2010; RE 416.601, Rel. Min. Carlos Velloso, Pleno, DJ de 30.09.2005; RE 588.332-RG, Rel. Min. Gilmar Mendes, Pleno, julgado em 16.06.2010. 17 Apud Roque Antonio Carrazza. Curso de Direito Constitucional Tributário. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. 18 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 31. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 451. 19 Ob. cit., p.451.

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A Obrigatoriedade de Conexão às Redes Públicas de Abastecimento de Água e de Esgotamento Sanitário e a Remuneração dos Serviços

20 A contraprestação ora aludida é no sentido de troca, ou seja, de uma atividade estatal prestada ao contribuinte. 21 Fazem parte dessa corrente doutrinária: Hugo de Brito Machado e Kiyoshi Harada. 22 HARADA, Kiyoshi. Ob.cit., p. 334. 23 Paulo de Barros Carvalho, Sacha Calmon Navarro Coêlho, Edvaldo Brito e Alberto Xavier são os expoentes dessa corrente doutrinária. 24 Ob. cit., p. 509-510. 25 ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p.166. 26 Ob. cit., p. 455. 27 Ob. cit., p. 456-457. 28 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p.502. 29 COÊLHO, Sacha Calmon. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 9. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 614. 30 Vide, a título de exemplo desse entendimento, a ADI 1717, Rel. Min. Sydney Sanches, Pleno, julgado em 07.11.2002, DJ 28.03.2003, p.61. 31 A esse respeito, a indicação do proprietário como usuário do serviço é nitidamente uma opção do legislador por um sujeito passivo ficto, ou, se melhor analisado, de um responsável, sendo uma técnica típica do Direito Tributário. No âmbito da prestação de serviços por meio de contrato, o usuário (de direito) será sempre aquele que se assume o compromisso contratual com o delegatário de efetuar os pagamentos das tarifas em virtude da utilização, não havendo vínculo necessário com a propriedade do imóvel ou com os usuários de fato. 32 A indicação de sanção administrativa (multa) pelo descumprimento, como uma forma de execução indireta, traduz-se claramente como uma consequência do atributo da autoexecutoriedade dos atos administrativos. Não cabendo a delegatários do Poder Público a lavratura de auto de infração, tal sanção também corrobora no sentido de se entender a conexão obrigatória como uma limitação administrativa. 33 O tema da titularidade é nebuloso, havendo entendimentos em diversos sentidos (não somente em sentidos opostos). Indicamos esses dois níveis federativos em razão da plausibilidade jurídica de defesa das respectivas competências, aliados à indefinição pelo Judiciário, pendente de decisão no Supremo. 34 Paira sobre o Decreto Federal nº 7.217/10 uma razoável suspeita de ilegalidade e de inconstitucionalidade, porquanto o Poder Executivo federal estaria determinando como a Lei Federal nº 11.445/07 deve ser aplicada pelos titulares dos serviços públicos, que indubitavelmente não são federais. Se a atribuição constitucional dada à União foi para instituir diretrizes nacionais do saneamento básico, não haveria cabimento para especificação das diretrizes sem violação à repartição de competências constitucionais entre os entes federativos.

THE MANDATORY CONNECTION TO WATER AND SEWERAGE PUBLIC SYSTEMS AND THE SERVICE COST ABSTRACT

This article studies the matter of mandatory connection to water and sewerage public systems and the payment of such services, proposing solutions for the implementation of art. 45 of Federal Law n. 11.445/07. Keywords: Water and Sanitation. Public Services. Mandatory Connection.

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Jurisdição Constitucional e Controle da Política: Fundamento e (I)Legitimidade Democrática Jânio Pereira da Cunha* “Aquele que detém a autoridade absoluta de interpretar qualquer lei escrita ou falada; este é, em todo caso, o verdadeiro legislador, e não aquela pessoa que escreveu ou falou tais leis” (Bispo Benjamin Hoadly).1 1 Introdução. 2 Fundamento Ideológico. 3 Ilegitimidade Democrática. 4 Conclusão. Referências.

Resumo O artigo trata da jurisdição constitucional da política, com foco no fundamento ideológico e na (i)legitimidade da atuação do Poder Judiciário sobre os assuntos políticos. Observa-se que o fundamentoideológico do controle judicial é a filosófica política liberal, com a finalidade de conter os eventuais riscos para os direitos e garantias individuais levados a cabo pelo Parlamento. Por outro lado, tem-se por ilegítima a revisão judicial das deliberações políticas, já que, no plano da teoria da democracia, parece não ser razoável admitir que o legítimo representante da soberania popular – o Parlamento – tenha suas deliberações invalidadas por um Poder carente de legitimidade e responsabilidade democráticas, como é o caso do Judiciário. Portanto, conclui-se que a intervenção judicial na política exorbita do âmbito de legitimidade constitucional e democrática. Palavras-chave: Jurisdição constitucional. Controle da política. Fundamento ideológico. (I)legitimidade democrática. 1 INTRODUÇÃO Um dos assuntos mais debatidos no âmbito do direito constitucional e da teoria política na atualidade é concernente à jurisdição constitucional. Nada obstante, a maior parte dos trabalhos cinge-se a analisar os aspectos * Professor de Direito Constitucional, Teoria Geral do Estado e Ciência Política da Faculdade Christus. Professor do Curso de Direito da Universidade de Fortaleza (Unifor). Mestre e Doutorando em Direito Constitucional (Unifor). E-mail: janiopcunha@ig.com.br

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dogmáticos do controle de constitucionalidade, particularmente as questões procedimentais desse instituto, como, por exemplo, as espécies e formas de nulidade judicial dos atos e matérias advindos dos poderes políticos propriamente ditos - Legislativo e Executivo; sem, contudo, perquirir os temas de fundo do controle jurisdicional, quais sejam, o fundamento e a (i)legitimidade da jurisdição constitucional.2 É verdade que tais assuntos não são inéditos na discussão que se propõe desenvolver neste artigo, já que a problemática dos limites, fundamento e legitimidade da revisão judicial desenvolveu-se concomitantemente com a evolução histórica do controle de constitucionalidade nos Estados Unidos da América. Tanto isso é verdade que já foi o centro de um dos mais profundos e acalorados embates teóricos na Europa, notadamente o que envolveu os pensadores Hans Kelsen e Carl Schmitt, acerca de qual órgão deveria ser o protetor da constituição, se o chefe do Executivo ou uma Corte Constitucional. Nessa perspectiva, o presente trabalho discorre sobre o fundamento ideológico que há por trás do controle jurisdicional da política, defendendo-se a idéia de que a supervisão judicial trata-se de um mecanismo de controle da soberania popular, idealizado para conter os eventuais riscos do Poder Legislativo para os direitos individuais. De outro turno, analisa-se a (i)legitimidade da revisão judicial das deliberações do legislativo, ante a carência de legitimidade e responsabilidade democráticas do Poder Judiciário para invalidar deliberações advindas do represente por excelência da soberania do povo: o parlamento. Adite-se, para finalizar este intróito, que a abordagem do presente artigo mostra-se salutar, na medida em que se verifica que o Judiciário passa a ostentar papel de destaque no cenário nacional, dado que esse órgão expande, a cada decisão atinente a assuntos primacialmente políticos, sua esfera de atuação institucional, num processo conhecido mundialmente por judicialização da política. 2 FUNDAMENTO IDEOLÓGICO O movimento de expansão progressiva do controle judicial sobre a seara política parece ter como justificação ideológica o liberalismo.3 O liberalismo, correndo o risco da generalização, trata-se de uma corrente do pensamento político4 que, se assentada na idéia de liberdade5, teorizava o estabelecimento de limites ao poder do Estado por intermédio da separação das suas principais funções - legislativa, executiva e judiciária6 -, com o objetivo de proteger os direitos de liberdade do indivíduo. Com efeito, as primeiras constituições escritas são a concretização, no plano jurídico, dessa idéia liberal de proteção de direitos e divisão e organização de Poderes. A proteção de direitos do liberalismo resumia-se, entretanto, exclusivamente, aos direitos hoje denominados de primeira geração (direitos R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, 13, p.114-140, jan./dez. 2011

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negativos), que têm a função de evitar a interferência do poder na liberdade e na propriedade individuais. São direitos e garantias privadas, exclusivamente, em face do poder do Estado. A princípio, pode-se dizer que a teorização levada a cabo pelo liberalismo foi imprescindível para romper-se com a ideologia do Estado absoluto, a qual estava impregnada por um viés de domínio ilimitado do Estado, leia-se, monarca absoluto, sobre a totalidade da vida social e política. De fato, no Absolutismo, o poder soberano do Estado pertencia ao monarca, em quem se concentravam praticamente todas as funções estatais, pois não havia ainda se manifestado a divisão tripartite dos poderes.7 No Estado constitucional de direito, o centro do sistema político passa a gravitar ao redor do Parlamento; mas o Legislativo, sob a perspectiva da tradição liberal, deveria ser imune à participação e influência política do povo. Tanto é assim que as constituições do século XIX, decorrentes, no plano teórico, dessa corrente de pensamento, “embora liberais [...], não serão, ainda, democráticas”.8 Dito de outro modo, o Estado constitucional nasceu liberal, mas não era democrático, pois, para o liberalismo, a democracia permitiria o arbítrio das massas.9 Lembre-se de que, na tradição liberal, o vocábulo povo tem conotação excessivamente preconceituosa, tanto é assim que é sinônimo de “ralé”, “choldra”, “infantil”, “imbecil”, “ignorante”, “inferior”, entre outros epítetos pejorativos. Destaque-se, por oportuno, que os principais teóricos do liberalismo, mesmo advogando a limitação jurídica do Poder do Estado, sempre permaneceram fiéis à tese de que o povo não deveria – por incapacidade – participar ativamente das decisões políticas gerais e fundamentais da vida pública. Assim sendo, a idéia de sufrágio universal igualitário foi sempre combatida pelo pensamento liberal por intermédio de teorização que excluía o povo do âmbito dos direitos de cidadania, isto é, direitos políticos de votar e ser votado. De fato, o credo liberal pregava um sufrágio excessivamente restrito a uma ínfima parte da população.10 Destarte, pode-se dizer que o Parlamento, na concepção liberal, jamais teve o escopo de ser o local da representação popular, mas sim o espaço dos atores “cultos”, “competentes”, “afortunados”, “de boa estirpe” etc. Nesse sentido, além de livre da “massa imbecil”, o sistema social e político vigente, no Estado de Direito liberal, precisava de maior segurança, certeza e estabilidade para a conservação dos direitos e liberdades individuais, já que, nada obstante o povo não participar diretamente do exercício do poder político, poderia influenciar - ante a possibilidade de ampliação do sufrágio universal - o Parlamento, e este, por via de conseqüência, colocar em risco os bens jurídicos liberais por excelência: a propriedade privada e a liberdade individual, em es116

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pecial a liberdade contratual do mercado.11 De fato, como bem asseverou Domenico Losurdo, “o que importa é a preocupação com os graves riscos que um poder legislativo fortemente influenciado pelas massas populares faz correr a propriedade e as relações econômicas existentes”.12 E, em verdade, a soberania popular tem ínsita a potencialidade de risco para as condições sociopolíticas e econômicas vigentes. Isso é uma verdade histórica certamente inquestionável. Assim, para fazer frente aos perigos do Parlamento, o liberalismo, entenda-se, o constitucionalismo liberal burguês, idealizou a possibilidade de controle jurisdicional do Legislativo, isto é, da política, de sorte que o Judiciário passaria a atuar como “terceira câmara” do sistema dominante para contenção dos riscos para os direitos e liberdades individuais, notadamente, os direitos de propriedade – bens, herança - e liberdade dos indivíduos, em especial a econômico-contratual, que fossem levados a efeito pelo Parlamento, por intermédio de edição de atos e aprovação de leis.13 Essa parece ser a idéia fundante da jurisdição constitucional.14 Veja-se que, com o objetivo de controlar as decisões da maioria parlamentar, é institucionalizada a Corte Suprema norte-americana, símbolo por excelência da jurisdição constitucional (judicial review). A esse respeito, ponderou com muita propriedade Aliomar Baleeiro: [...] a Corte Suprema foi concebida como instituição da classe poderosa e abastada, para defesa da Constituição e da propriedade contra os apetites e reivindicações da massa, que, pelo voto popular, poderia dominar o Poder Legislativo e, mercê de maiorias ocasionais, elaborar leis perigosas e demagógicas. Seria, pois, um órgão conservador dos objetivos e dos interesses econômicos das classes dominantes, para deter avanços temerários, que os líderes admitiam pudesse provir da elevação das massas por meio de processos democráticos de Governo, sobretudo a probabilidade futura do sufrágio universal. Nasceu, pois, a Corte Suprema com endereço pragmático, o da manutenção da propriedade, garantida pela Constituição mais do que a da própria liberdade, contra os atentados, caso maioria eventual viesse a desvairar, como se receava, o Congresso. Se contra este falhasse o veto do Executivo, haveria o controle da Corte. [...] ‘a Corte Suprema foi concebida à maneira de freio e amortecedor dos previstos desvarios do Congresso’.15

Assim sendo, percebe-se que a judicialização da política, a despeito de justificada formal e publicamente pela necessidade de proteção dos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos, em face das denominadas “maiorias eventuais” ou “ocasionais” do Parlamento16, trata-se, na verdade, da manifestação mais evidente da ideologia liberal de exclusão do povo para decidir sobre as questões políticas fundamentais do Estado - como as relacionadas à R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, 13, p.114-140, jan./dez. 2011

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propriedade e à liberdade individuais -, objetivando infirmar qualquer “excesso” ou “desvio” indesejado decorrente da atuação do Legislativo.17 Talvez por isso se possa compreender a maneira preconceituosa dispensada ao Parlamento e aos seus agentes pela teoria constitucional e pela jurisprudência, ambas fortemente influenciadas historicamente, pela ideologia liberal. A esse respeito, jamais se poderia se furtar de colacionar a observação de Jeremy Waldron, um dos principais críticos no mundo da judicialização da política, que, pela clarividência, dispensa qualquer comentário extraordinário: [...] a nossa jurisprudência está repleta de imagens que apresentam a atividade legislativa comum como negociata, troca de favores, manobras de assistência mútua, intriga por interesses e procedimentos eleitoreiros – na verdade, como qualquer coisa, menos decisão política com princípios. E há razão para isso. Pintamos a legislação com essas cores soturnas para dar credibilidade à idéia de revisão judicial (isto é, revisão judicial da legislação, sob a autoridade de uma carta de direitos) e ao silêncio que, de outra maneira, seria o nosso embaraço quanto às dificuldades democráticas ou ‘contramajoritárias’ que, às vezes, pensamos que a revisão judicial implica18 (grifou-se).

E completa o autor: Em outras palavras, tenho certeza de que a má reputação da legislação na teoria jurídica e política está intimamente relacionada com o entusiasmo (especialmente o entusiasmo da elite) por essa mudança. As pessoas convenceram-se de que há algo indecoroso em um sistema no qual uma legislatura eleita, dominada por partidos políticos e tomando suas decisões com base no governo da maioria, tem a palavra final em questões de direito e princípios. Parece ser que os tribunais, com suas perucas e cerimônias, seus volumes encadernados em couro e seu relativo isolamento ante a política partidária, sejam um local mais adequado para solucionar questões desse caráter.19

Adite-se, no caso específico do Brasil, o fato de que a judicialização da política, ou, nas palavras de Canotilho, a jurisdição sobre a “constitucionalidade do político”20, é aplaudida, grosso modo, pela imprensa a cada manifestação de juízes e tribunais em temas essencialmente políticos, sem nenhuma preocupação maior a respeito das conseqüências dessa atuação para autonomia e independência dos poderes públicos, para Constituição e, sobremodo, para a democracia brasileira. Ainda pior é o fato de que a apreciação dos “parâmetros jurídico-constitucionais para o comportamento político”21 pela via judiciária é acolhida pela teoria constitucional brasileira como fenômeno natural, necessário e inevitável.22 Não se poderia esperar, entretanto, uma conduta diferente da doutrina constitucional pátria, uma vez que a sua origem e a sua natureza são de feição extremamente “liberal-conservadora-autoritária”, fato esse que levou e leva os 118

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seus doutrinadores a teorizar, sob a perspectiva liberal 23, no sentido da exclusão do povo, direta ou indiretamente, como agente principal dos processos decisórios sobre questões fundamentais do Estado brasileiro. Essa posição liberal-conservadora e antidemocrática do constitucionalismo nacional foi bem detectada por Antonio Carlos Wolkmer e Martonio Mont’Alverne Barreto Lima, quando assinalam, respectivamente, que: A ausência de uma prática autenticamente democrática nos parâmetros do que se convencionou chamar de liberalismo burguês clássico, faz com que inexista, na evolução das instituições do País, a linearidade de um constitucionalismo de base popular-burguesa, pois, quer seja o político, quer seja o social, ambos foram sempre construção momentâneas e inacabada das elites oligárquicas. O constitucionalismo brasileiro tem sido, até hoje, o contínuo produto da ‘conciliação-compromisso’ entre o autoritarismo social modernizante e o liberalismo burguês conservador.24 A vocação conservadora do constitucionalismo brasileiro iniciou com a independência do país [...]. No constitucionalismo brasileiro enxerga-se muito pouco a esperança de que a força dos atores sociais possa funcionar como motor da atualização constitucional. Conseqüentemente, a certeza de que dos órgãos do Estado depende a aferição da força da Constituição Federal de 1988 conduziu a maior parte da produção constitucionalista a legitimar a judicialização da política. [...] No Brasil de hoje, o constitucionalismo que defende o ativismo judicial e vê nele a redenção de nossos pecados não realizadores da efetivação constitucional possui uma tradição liberal, cuja origem moderna muito herda da tradição americana de common law.25

Adite-se, de outro turno, o fato de que, em vários países que albergam a separação dos poderes estatais, inclusive, muitos deles com tradição democrática consolidada, como, por exemplo, Finlândia, Holanda, Dinamarca, Suíça, Reino Unido, Israel, Luxemburgo, Nova Zelândia e Suíça, não é permitida a revisão judicial de leis e atos do Parlamento. Com isto, parece correto afirmar que a jurisdição constitucional não é elemento essencial aos sistemas constitucionais democráticos, pois nem todos os países reconhecidamente democráticos prevêem o direito de revisão dos atos do Parlamento pelo Judiciário.26 Por isso é que Javier Perez Royo afirma que “A justiça constitucional não é, pois, um indicador de saúde democrática”.27 Em conclusão, é possível dizer que, por trás da idéia de controle jurisdicional da política, tem-se um arcabouço teórico de fundo liberal, cuja ideologia busca “neutralizar politicamente as massas populares”28, de maneira a contrapor-se a qualquer expectativa perigosa de radicalidade democrática das condições sociais e políticas vigentes na sociedade. De fato, como asseverou Domenico Losurdo, a tradição de pensamento liberal não apenas fala com frieza e hostilidade, mas também com evidente desprezo para com a democracia29, de tal sorte poder-se inferir R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, 13, p.114-140, jan./dez. 2011

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que a democracia – fundada na idéia e práxis da soberania popular - não é, notadamente porque nunca o foi, e talvez nunca o será, um valor caro ao pensamento liberal.30 Em última análise, a jurisdição constitucional da política parece não ser outra coisa senão a maneira contemporânea de controle da soberania popular. E isso tem uma racionalidade patente, na medida em que, se antes a política era controlada soberanamente pelo monarca, e, no ápice do liberalismo, por um Parlamento não representativo da vontade popular – que não levava perigo para o status quo vigente – hoje, após a ampliação do sufrágio universal, era preciso um novo agente para exercer o papel de limitador da vontade política e soberana do povo. E ninguém mais apto – porquanto tecnicamente preparado – e mais confiável historicamente, do que o Judiciário para exercer tal mister.31 3 ILEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA Do ponto de vista da teria política de matriz francesa, a jurisdição constitucional representa fenômeno altamente antidemocrático. Veja-se que a teoria do poder manifestada em França durante a Revolução Francesa, e com base em Rousseau, pautou-se pela radicalidade política, na medida em que a soberania popular, fincada na idéia de “vontade geral”, é a única forma de legítimação do poder, em contraposição ao ideário de justificação do poder do liberalismo burguês, vinculado apenas à limitação e controle do Estado por meio da separação de poderes e declaração de direitos individuais.32 Daí que o poder político supremo, na melhor leitura do iluminismo democrático francês, pertence ao povo soberano, não sendo esse poder “subordinado a nenhum outro e ilimitado em sua competência”33 na ordem interna. Veja-se, a esse respeito, a observação de Rousseau, na obra O Contrato Social, ao destacar o fato de que, na democracia, a supremacia entre os poderes deve pertencer ao Legislativo: O primado da vida política repousa na autoridade do soberano. O poder legislativo é o coração do Estado; o poder executivo, o cérebro, que dá movimento a todas as partes. O cérebro pode paralisar-se e o indivíduo continuar a viver. Um indivíduo torna-se imbecil e vive, mas, tão logo o coração deixa de funcionar, o animal morre. Não é pelas leis que o Estado subsiste, mas em virtude do poder legislativo.34

Igualmente, ratifica a tese da soberania do Poder Legislativo numa democracia, outro teórico da tradição clássica, Immanuel Kant, na sua Metafísica dos Costumes, ao ponderar que: Todo Estado encerra três poderes dentro de si, isto é, a vontade unida consiste de três pessoas (trias políticas): o poder soberano (soberania), na pessoa do legislador; o poder executivo, na pessoa 120

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do governante (em consonância com a lei) e o poder judiciário, (para outorgar a cada um o que é seu de acordo com a lei), na pessoa do juiz.35

Na contemporaneidade, ninguém traduziu melhor o pensamento de Rousseau e Kant do que Norberto Bobbio, ao observar que o órgão de maior autoridade no Estado é o Parlamento: “Apesar da afirmação da subordinação de um poder ao outro, o fundamento da separação dos poderes é ainda a supremacia do poder legislativo sobre os outros dois poderes: o poder legislativo deve ser superior porque somente ele representa a vontade coletiva”.36 Assim sendo, à luz da teoria política de base iluminista, o controle da política pelo Judiciário constitui evento sem legitimidade democrática, uma vez que importa em transferir o poder supremo na sociedade de um órgão diretamente vinculado à soberania popular – o Parlamento – para órgão destituído de autoridade advinda da “vontade soberana”, isto é, para órgão do Poder Judiciário, no caso, do Supremo Tribunal Federal, ou corte constitucional nos moldes europeus.37 De fato, a jurisdição da soberania popular traz em si o defeito congênito de ilegitimidade democrática. E essa questão do controle judicial do espaço político, ou melhor, da ilegitimidade do controle judicial das decisões do povo soberano, foi bem detectada por John Ely, para quem, “o problema central da revisão judicial é este: um órgão que não é eleito, nem politicamente responsável de nenhuma outra forma importante, diz aos representantes eleitos do povo que eles não podem governar como gostariam”.38 A jurisdição constitucional não é ilegítima apenas porque os agentes responsáveis pelo controle da política não passam pelo crivo popular.39 É antidemocrática também em razão de que uma elite – entendida como um pequeno grupo de técnicos (juízes, juristas), ou na expressão de Aliomar Baleeiro, uma “oligarquia judiciária”40 – passa a supervisionar, inclusive podendo anular41, as decisões advindas de parcela significativa de representantes da soberania popular, tomadas com base num dos princípios fundamentais da democracia: a regra ou vontade da maioria. Ademais, não se pode deixar de acrescer a noção de que, por ser um poder sem tradição cultural democrática, o Poder Judiciário exerce papel conservador na sociedade, dado que passa a domesticar – restringindo ou bloqueando – a potencialidade, ou o espaço, da política, e, por via de conseqüência, sendo importante instrumento de segurança das relações sociais e “de manutenção de um dado status quo político.42 É verdade que o argumento levantado pelos defensores do judicial review para justificar a judicialização da política é sobremodo sedutor, mas ainda assim, de todo, objetável.

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Sedutor, porquanto alguns de seus adeptos partem da analogia “Ulisses e as Sereias”, na obra Odisséia, de Homero, segundo a qual aquele, para não sucumbir ao canto irresistível e mortal das sereias, pede aos companheiros de embarcação que o amarrem por cordas ao mastro do navio quando passarem pela ilha habitada por sereias, e não o soltassem, ainda que diante de sua ordem. E assim poderia escutar o belo canto das sereias sem entregar-se, mortalmente, a elas.43 Transpondo a mística de Ulisses para o campo do Direito Constitucional, a Constituição seria um “pré-compromisso” que auto-restringiria o povo no sentido de impedi-lo, em momentos excepcionais, de destruir a si mesmo. Um pré-compromisso de “autopreservação e auto-sacrifício”44. Nas palavras de Daniel Sarmento, “o pré-compromisso de Ulisses, que limitou o poder de sua vontade no futuro para evitar a morte, poderia ser comparado àquele que se sujeita o povo, quando dá a si uma constituição, e limita seu poder de deliberação futura, para evitar que, vítima de suas paixões e fraquezas momentâneas, possa pôr em risco o seu destino coletivo”.45 Com efeito, o controle jurisdicional da constitucionalidade seria legitimado pela necessidade de se garantir esse pré-compromisso, isto é, assegurar a vontade do povo manifesta em momento de “sobriedade democrática”.46 Noutras palavras, decorreria a justificação do controle judicial dos atos do Parlamento da imprescindibilidade de proteção da Constituição e do próprio povo – leia-se, dos direitos fundamentais do indivíduo, inclusive das minorias - contra as maiorias transitórias e eventualmente tentadas pelo autoritarismo e arbítrio.47 A esse respeito, a primeira objeção que se pode declinar é no sentido de que não há nenhuma garantia ou segurança de que a jurisdição constitucional atuará em consonância com a Constituição, respeitando as regras do jogo, direitos e liberdades fundamentais. Destarte, é procedente a ponderação dos críticos da judicialização da política (judicial self-restraint), de que o poder dos juízes fundar-se-ia em um mito, isto é: [...] na vitoriosa idéia que foi inculcada em corações e mentes mais crédulas. Tal mito expressa a crença de que os juízes, ao atuarem, estão agindo conforme lhes foi determinado pela Constituição. Os magistrados afirmam que as escolhas políticas que realizam não são deles, mas daqueles que elaboraram a Carta Magna.48

Efetivamente, não há como sustentar a idéia de que os tribunais constitucionais, entenda-se, no Brasil, Supremo Tribunal Federal, sendo antimajoritários, ou seja, controlando as decisões (leis, atos) das maiorias “transitórias” no Parlamento, estejam, ao agir assim, corrigindo os abusos eventuais dessas maiorias e protegendo, necessariamente, os direitos e liberdades fundamentais dos indivíduos plasmados no Texto Constitucional. Isso em virtude da impossibilidade talvez de se demonstrar concretamente que a atividade da justiça 122

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constitucional é mais positiva do que negativa para a proteção e efetivação dos direitos fundamentais, e por que não dizer da própria democracia. Tanto isso é assim que é reconhecido inclusive por um dos teóricos do liberalismo contemporâneo, Robert Dahl, para quem “não se pode comprovar empiricamente a capacidade efetiva de bloqueio das decisões majoritárias pela Suprema Corte americana, mas apenas a sua capacidade de retardar mudanças”.49 E a experiência histórica confirma, de alguma maneira, esta observação. É que, de fato, há inúmeros exemplos na jurisprudência americana (EUA) de que a atuação da Suprema Corte, no lugar de favorecer os direitos do indivíduo, prejudicou-os, na medida em que, por intermédio do controle judicial, anulou, por inconstitucionalidade, várias leis aprovadas pelo Parlamento que protegiam direitos fundamentais.50 Anota Samuel Freeman que a Suprema Corte americana, durante parcela significativa de sua existência “[...] tendeu, contra as tentativas de reformas legislativas, a consagrar constitucionalmente as leis, as convenções e os privilégios vigentes relativos à propriedade privada que favoreciam especialmente aqueles que controlavam legalmente a massa maior de riqueza”.51 Assim, a referida Corte “[...] impugnou leis estaduais que, de sua perspectiva, ofendiam o direito de propriedade e a liberdade contratual” 52, assim como leis federais que infringiam a competência dos Estados. A título ilustrativo, pode-se mencionar a invalidação, pela Corte Suprema, de lei do Congresso que dificultava o trabalho infantil (crianças menores de 14 anos) nas indústrias e minas, por considerar tal matéria de competência exclusiva estadual.53 Igualmente, tem-se o caso Dred Scott versus. Sandford, em que a Suprema Corte dos Estados Unidos declarou, em 185754, a inconstitucionalidade de uma lei federal que proibia a escravidão em determinados Estados, sob a fundamentação de que o Congresso não tinha competência para proibi-la. “Desta forma, retirou do Congresso norte-americano – conseqüentemente, da decisão da maioria – qualquer possibilidade de abolir ou, ao menos, enfraquecer a instituição da escravidão”.55 Ademais, assentou a decisão que Dred Scott, por ser escravo, não ostentava a condição (direitos e privilégios) de cidadão, de tal forma que não tinha o direito de se fazer representar perante os tribunais federais. 56 Acresça-se, ainda, o caso Lochner versus New York, em que a Suprema Corte declarou inconstitucional lei que estabelecia o tempo de trabalho nas padarias em 10 (dez) horas por dia, com fundamento no princípio da liberdade contratual.57 Os exemplos citados, no entanto, não são exclusivos da Corte Suprema americana, pois, em verdade, quem se der ao trabalho de consultar a jurisprudência de qualquer país que permita a revisão judicial dos atos e decisões políticas não terá quiçá muita dificuldade de selecionar assuntos e R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, 13, p.114-140, jan./dez. 2011

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casos julgados pelos juízes e tribunais nos quais se poderá vislumbrar violação de direitos e garantias fundamentais. De fato, a jurisdição constitucional “não está livre de converter uma vantagem democrática num eventual risco para democracia”58, inclusive bloqueando o desenvolvimento constitucional do país.59 Dito de outro modo, a revisão judicial pode muito bem se transmudar em um perigo em vez de uma garantia.60 É por isso que observa Martonio Mont’Alverne Barreto Lima que “[...] em muitas das questões políticas resolvidas pelo STF [...] o limite constitucional foi ultrapassado – esse é um fenômeno que não ocorre somente com o STF, mas com todas as cortes controladoras da constitucionalidade das leis que se tem notícia”.61 Acresça-se, por oportuno, a crítica de Ingeborg Maus, bem resumida por Sérgio Pompeu de Freitas Campos, no sentido de que a ampliação do poder judicial, à sombra de proteger os direitos fundamentais, pode implicar risco de restrição arbitrária da soberania popular, da própria idéia de Estado Democrático de Direito62, fincada no pressuposto teórico do respeito à vontade da maioria e da separação dos Poderes Públicos. Por outro lado, uma coisa é certa: o receio e a desconfiança levantados por parte da doutrina política e jurídica63 e da jurisprudência de que as autoridades políticas estão mais sujeitas a ofender os direitos e garantias individuais - visto que a arena política é uma instância mais sujeita a exageros, excessos, aventuras, paixões de momento e sem compromisso com a fundamentação jurídica64 - não têm razão de ser.65 O fato de se partir, a priori, da tese do menor compromisso das autoridades políticas para com a legalidade constitucional não se sustenta. É que não há base jurídica, muito menos científica, para se creditar um grau mais elevado de confiabilidade às autoridades judiciais do que às políticas. Jurídica, porquanto a ordem constitucional não estabelece dispositivo normativo outorgando maior credibilidade aos atores jurídicos. Ao contrário, infere-se da Constituição que os Poderes Públicos são harmônicos e independentes e, por via de conseqüência, gozam do mesmo teor de dignidade constitucional, de tal forma que as autoridades públicas detêm, ou pelo menos devem deter, a mesma deferência e respeito institucionais. Certamente, é preconceituosa e ilógica a idéia de que somente as autoridades judiciais são aptas e imparciais para assegurar as liberdades públicas, pois, a se aceitar essa idéia, ter-se-ia também de reconhecer, forçosa e necessariamente, a noção de que as autoridades parlamentares e executivas se encontram em plano político-institucional inferior às autoridades judiciais, deixando o Poder Judiciário em posição de prevalência sobre os demais poderes, fato esse que comprometeria a relação de harmonia e interdependência deles. Em verdade, a desconfiança nas esferas políticas não passa de um preconceito, que traz em si uma contradição nos termos, já que a desconfiança na 124

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política e nos políticos66 implica, obrigatoriamente, desapreço à própria democracia, uma vez que as autoridades políticas são atores caríssimos a qualquer regime político digno desse nome. Em termos mais refinados, pode-se dizer que a democracia é produto direto da política, de sorte que esse regime requer, ao menos idealmente falando, o respeito à política e aos seus agentes.67 Enfim, sem um grau razoável de confiabilidade e apreço nos atores públicos não há democracia, ao menos a democracia possível, real, factível, aduzida por Rousseau. A propósito do assunto, é taxativo Martonio Mont’Alverne Barreto Lima: O Poder Judiciário entende-se como último árbitro das questões que se discutem no Poder Legislativo pela razão de, preconceituosamente, não aceitar que a política possa ser realizada a partir de parâmetros legais. A incongruência deste pensamento não poderia ser maior. A domesticação da política pelo direito consiste precisamente no cerne do Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, a política somente será realizada nos limites determinados pelo Direito, pelas leis.68

Não há, também, substrato científico, porque não existem razões abstratas para se enaltecer e glorificar mais as autoridades jurisdicionais, em detrimento das legislativas e executivas. Ora, se fosse lídima a concessão de supremacia a um dos poderes, decerto deveria ser ao Parlamento e aos seus membros, pois, com base na história e na melhor tradição da filosofia política democrática, pode-se garantir que o Legislativo, como poder soberano, deve ostentar o mais alto grau de confiança entre os poderes do Estado. A esse respeito, colacionam-se indagações fundamentais - e que não foram respondidas pelos adeptos da tese do controle jurisdicional da política – atinentes à substituição do Poder Legislativo, eleito por intermédio da soberania popular, pelo governo dos juízes constitucionais: “Em quem o cidadão deve confiar: no representante eleito ou no juiz constitucional? Se o legislador não pode fugir à tentação do arbítrio, por que o juiz poderia?”69 (grifou-se). Em sentido similar, são as palavras de Roberto Gargarella, ao tecer as seguintes ponderações: Nossos oponentes terão de nos convencer, por exemplo, de que é desejável que juízes não eleitos pela cidadania, nem sujeitos a uma responsabilidade eleitoral imediata, sigam decidindo questões substantivas (por exemplo, decidindo se regula o aborto, decidindo se é bom ou ruim consumir estupefacientes, distribuindo como se podem distribuir os recursos sociais e como não etc.). Nossos oponentes deverão nos dar razões para outorgar ao poder judicial a última palavra em matéria constitucional quando sabemos (particularmente na América Latina) o quanto a magistratura é permeável à pressão dos grupos de poder. Nossos oponentes deverão persuadir-nos de que a reflexão individual e isolada dos juízes nos garante a imparcialidade de um modo certeiro que a própria reflexão coletiva. Nossos oponentes terão que nos fazer entender R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, 13, p.114-140, jan./dez. 2011

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que é desejável que o bom exercício judicial siga dependendo do azar de contar com “bons juízes’. Nossos oponentes deverão aclarar estas dúvidas a menos que – como tantas vezes – prefiram simplesmente negar-se ou impor as suas razões.70

Enquanto os defensores do controle judicial da política não respondem a essas indagações basilares, ressalta-se que se está convencido que entre os dois riscos de eventual prática de abuso e arbitrariedade – por desvio ou excesso de poder - pelo Legislativo e Judiciário, fica-se com o risco representado pelo Parlamento. É que, pela tradição democrática, aberta e pluralista que tem esse poder, é possível presumir, racional e abstratamente, que este se comportará, com maior acatamento aos direitos, liberdades e garantias constitucionais e às regras do procedimento democrático ou, em termos mais amplos, à normatividade constitucional, do que o Judiciário. E, sob a óptica da teoria constitucional democrática, o risco que o Parlamento leva à Constituição e aos direitos fundamentais da pessoa humana trata-se de risco da democracia que deve ser resolvido a favor do Parlamento. É que, tendo um órgão que decidir em último lugar e de forma incontrastável, o mais compatível com os parâmetros da radicalidade democrática é conceder a palavra final sobre determinada questão político-constitucional ao representante direto da soberania do povo: o Legislativo. Notadamente, pelo fato de que, ainda que o Parlamento eventualmente incorra em erro, arbitrariedade ou excesso, ao decidir determinada contenda, tem-se que o equívoco ou arbítrio por ele cometido reveste-se de menos ilegitimidade do que se fosse perpetrado pelo Judiciário. Com efeito, “Não é a mesma coisa, no sentido democrático, se um tribunal erra acerca das condições democráticas (ou de associação moral) ou se o erro é cometido por um corpo legislativo. O segundo está, pelo menos, dotado de legitimidade democrática”.71 Talvez por isso Dicey, citado por Pinto Ferreira, afirmava sem tergiversar que “Invasões do Parlamento na Constituição constituem perigo menor do que a participação dos juízes nos conflitos políticos”.72 Assim sendo, quando aqui se defende a posição de que o maior apreço a um dos poderes, numa democracia, deve ser para o Legislativo, com todas as implicações e desdobramentos que daí advêm73, faz-se isso sustentado em razões de filosofia política. Razões históricas, no entanto, com peso igualmente significativo, leva a que se permaneça fiel ao apelo democrático da radicalidade iluminista (soberania popular). É que o Poder Judiciário tradicionalmente não tem uma cultura de índole democrática, seja aqui ou alhures. Pelo contrário, a análise histórica revela que o Judiciário, especificamente o brasileiro, ainda se encontra maculado por um viés conservador 74, patrimonialista, autoritário e pela falta de transparência de suas atividades75, o que leva tal poder a permanecer acometido por um alto défice de legitimidade e democracia 76, principalmente pelo fato de seus 126

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membros não passarem pelo controle da soberania popular, assim como não são objeto de controle periódico por parte da sociedade, já que, regra geral, são vitalícios.77 Calha, ademais, aduzir que a jurisdição constitucional apresenta um potencial de risco paternalista, na medida em que os juízes e tribunais constitucionais “desempenharia ainda a função de ‘pais da sociedade’, no sentido da condição tradicional da paternidade provedora de todos os bens – materiais e imateriais – da família”,78 com o perigo de “redução dos cidadãos ao estatuto de indivíduos-clientes de um Estado providencial”.79 Em sede ainda de objeções à tese da jurisdição constitucional, não há como fugir de se aditar a idéia de que a interpretação constitucional não é, e não pode ser, monopólio do Judiciário, como amiúde afirmam os tribunais e o constitucionalismo de natureza liberal. Em verdade, “[...] O direito constitucional e a interpretação são frutos de uma coordenação entre os poderes políticos e o judiciário. Nenhuma instituição, muito menos o judiciário, pode ter a palavra final nas questões constitucionais”.80 Importa ainda anotar a preocupação lançada por Pedro de Verdú García, e lembrada por Gilberto Bercovici, de que o problema europeu – e que também é do Brasil - é que “[...] os tribunais constitucionais, de defensores da Constituição, tornaram-se os donos da Constituição; para eles só é Constitucional aquilo que o tribunal constitucional diz que é”.81 Em face disto, adverte Gilberto Bercovici, “[...] acaba havendo um processo de formalização excessiva, em que se discutem os acórdãos do tribunal, não se discute a democracia, não se discute a questão política e este é o problema fundamental”82. Afinal, diz o autor: [...] não só para o Professor Canotilho, mas para qualquer grande constitucionalista, como Konrad Hesse, Böckenförde, Hans-Peter Schneider, Mortati, Häberle, O Direito Constitucional é o direito do político, é a ligação do político com o jurídico. Não dá para ficarmos limitados à decisão de um tribunal constitucional, em qualquer uma das suas formas, seja um tribunal constitucional propriamente dito, seja nosso órgão máximo do Poder Judiciário, por mais correta ou culta que essa decisão possa ser. Este é um ponto que tem que ser pensado: não podemos achar que as soluções serão alcançadas pelo Judiciário, limitando o Direito Constitucional às decisões judiciais. Não será deixando que o tribunal resolva, já que o Executivo não quis, ou o Legislativo não quis, que eu acredito que nós vamos resolver ou refletir melhor sobre as questões constitucionais.83

4 CONCLUSÃO A título conclusivo é possível fincar a idéia de que o fundamento ideológico da jurisdição constitucional é a filosofia política do liberalismo. R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, 13, p.114-140, jan./dez. 2011

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De fato, tem-se que a tradição liberal, ao defender a separação dos poderes e direitos individuais, necessitava de um órgão do Estado para fazer frente aos riscos, porventura advindos de um Parlamento fortemente influenciado pela vontade popular, para os bens jurídicos por excelência dessa corrente de pensamento: a propriedade privada e a liberdade individual. Assim, pode-se sustentar a tese de que o controle da política pelo Judiciário apresenta uma racionalidade evidente, qual seja, domesticar judicialmente a vontade soberana do povo possivelmente plasmada no Legislativo, restringindo e controlando o espaço da política, a fim de levar segurança e certeza jurídicas para as relações dominantes, de tal sorte a não submeter a perigo os direitos de liberdade e propriedades individuais em face das denominadas maiorias parlamentares eventuais e momentâneas. Destaque-se também que o controle jurisdicional de constitucionalidade do comportamento do Parlamento, além de exorbitante dos limites constitucionais, não se compatibiliza com o princípio da teoria da democracia de matriz radical, fundada na soberania popular, na qual a vontade do povo, direta ou indiretamente, é superior à vontade dos outros poderes. Assim sendo, quando o Judiciário atua sobre o Legislativo, restringindo-lhes os poderes e invalidando-lhes os atos e deliberações, tal comportamento implica vilipêndio da soberania popular, uma vez que a vontade ou decisão política do povo passa a ser controlada ou anulada por um órgão sem qualquer legitimidade e responsabilidade popular. E tal estado de coisas provoca uma perda democrática, pela diminuição ou restrição do espaço político de participação do povo ou pelos resultados das decisões dos juízes, que podem, como a história jurisprudencial de qualquer país parece provar, atentar contra os direitos e garantias da pessoa humana positivados constitucionalmente. Noutras palavras, o controle jurisdicional é evidentemente antidemocrático, uma vez que constitui fenômeno no qual um Poder do Estado não eleito diretamente e sem controle periódico de responsabilidade política – o Judiciário - passa a controlar, restringir, anular a vontade do órgão por excelência da representação popular: o Parlamento. Portanto, reveste-se de menos legitimidade democrática uma decisão política tomada pelo Judiciário do que oriunda do Parlamento, eis que aquele não se encontra autorizado, constitucional e politicamente, para decidir matérias políticas. REFERÊNCIAS ALEXY, Robert. In: HECH, Luís Afonso (Trad.). Constitucionalismo discursivo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. ARENDT, Hannah. In: GUARANY. Reinaldo (Trad.). O que é política? 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. BALEEIRO, Aliomar O Supremo Tribunal Federal, esse outro desconhecido. 128

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1 Professor de Direito Constitucional, Teoria Geral do Estado e Ciência Política da Faculdade Christus. Professor do Curso de Direito da Universidade de Fortaleza (Unifor). Mestre e Doutorando em Direito Constitucional (Unifor). Apud Martonio Mont’Alverne Barreto Lima. Súmula vinculante e constituição dirigente: uma questão de soberania. In: OLIVEIRA NETO, Francisco José Rodrigues de [et. al] (org.). Constituição e estado social: os obstáculos à concretização da constituição. São Paulo: RT; Coimbra: Coimbra, 2008. p. 286. 2 “As produções teóricas sobre controle de constitucionalidade no Brasil bem demonstram uma preocupação exclusiva com pontos que envolvem (...) somente a articulação jurídico-dogmática (...) entre os dispositivos constitucionais para o resultado daquilo que é constitucional ou inconstitucional” (LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto: A jurisdição constitucional: um problema da teoria da democracia política. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira da; BERCOVICI, Gilberto; MORAES FILHO, José Filomeno de. Teoria da Constituição: estudos sobre o lugar da Política no Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 200-201, nota de rodapé nº. 03.). 3 José de Sousa e Brito diz ser um dos possíveis “fundamentos da legitimidade do Tribunal Constitucional a tradição liberal de proteção dos direitos do Homem”. BRITO, José de Sousa apud TAVARES, André Ramos. Tribunal e jurisdição constitucional. São Paulo: Celso Bastos editor, 1998. p. 73. 4 Emprega-se neste texto o termo liberalismo no significado político moderno, isto é, na acepção de Estado (de direito) com “poderes e funções limitadas”, em contraposição ao Estado absoluto. Ver: BOBBIO, Norberto. In: NOGUEIRA, Marco Aurélio (Trad.). Liberalismo e democracia. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 08, 17 e 29. 5 MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, p. 47, 2003. 6 As diversas funções do Estado, inicialmente descritas por Aristóteles, tiveram sistematização teórica mais sofisticada e desenvolvida em John Locke e, mais ainda, em Montesquieu. Esses autores clássicos do liberalismo político partiram da premissa de que haveria necessidade de repartição das funções entre órgãos estatais diversos a fim de evitar-se a concentração abusiva do poder e, por conseguinte, garantir a liberdade individual. 7 Para Jorge Miranda, Estado absoluto é “aquele em que se opera a máxima concentração do poder no rei (sozinho ou com seus ministros) e em que, portanto: 1º) a vontade do rei (mas sob forma determinadas) é lei; 2º) as regras jurídicas definidoras do poder são exíguas, vagas, parcelares e quase todas não reduzidas a escrito”. MIRANDA, op. cit., 2003. p. 42. 8 BERCOVICI, Gilberto. A constituição dirigente e a crise da teoria da constituição. In: SOUZA NETO, Claudio Pereira de; MORAES FILHO, Jose Filomeno de; LIMA, Martonio Mont`Alverne Barreto. Teoria da Constituição: estudos sobre o lugar da política no direito constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 79. Segundo Fioravanti, não havia na Europa do início do século XX nenhuma Constituição Democrática. FIORAVANTI apud CAMPOS, Sérgio Pompeu de Freitas, op. cit., 2007. p. 33. 9 VIEIRA, Oscar Vilhena. A constituição e sua reserva de justiça: um ensaio sobre os limites materiais ao poder de reforma. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 43. No mesmo sentido, Cláudio Pereira de Souza Neto: “Não poucas vezes, tanto no mundo dos fatos quanto no plano teórico, a soberania popular foi vista como uma ameaça à liberdade individual”. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria constitucional e democracia deliberativa: um estudo sobre o papel do direito na garantia das condições para a cooperação na deliberação democrática. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 19. 10 A história da tradição liberal, anota Domenico Losurdo, confunde-se, de certa forma, com a restrição ao sufrágio universal por meio de discriminações censitárias, pelas quais as pessoas eram excluídas da cidadania em razão da raça, honra, sexo, quantidade de bens, nível de escolaridade etc. LOSURDO, Domenico. In: HENRIQUE, Luiz Sérgio (Trad.). Democracia e bonapartismo: triunfo e decadência do sufrágio universal. Rio de Janeiro: UFRJ/UNESP, 2004, p. 15-60. Particularmente o capítulo I, denominado “A luta pelo sufrágio: uma história atormentada e ainda não concluída”. 11 Segundo Roy C. Magridis, o núcleo do liberalismo econômico é “o direito de propriedade, o direito de herança, o direito de acumular riqueza e capital, a liberdade de produzir, de comprar e de vender”. MAGRIDIS, Roy C. apud WOLKMER, Antonio Carlos. Ideologia, Estado e Direito. Revista dos Tribunais, 2003. p. 122. 12 LOSURDO, 2004, op. cit., p. 117. 13 Renato Stanziola Vieira assevera que “o constitucionalismo trouxe o primeiro argumento favorável à jurisdição constitucional” (Jurisdição constitucional e os limites de sua legitimidade democrática. Rio

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de Janeiro: Renovar, 2008. p. 48). Gustavo Binenbojm lembra que um dos formuladores da idéia de jurisdição constitucional foi o ideólogo da burguesia Emmanuel Joseph Sieyès, para quem caberia a um tribunal “conter os excessos cometidos por maiorias legislativas irresponsáveis, cuja vontade não se poderia sobrepor à vontade superior do povo expressa na Constituição” (BINENBOJM, Gustavo: A nova jurisdição constitucional brasileira: legitimidade democrática e instrumentos de realização. 2. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 24). 14 Nesse sentido, confira: LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto. A jurisdição constitucional: um problema da teoria da democracia política. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira da; BERCOVICI, Gilberto; MORAES FILHO, José Filomeno de; LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto. Teoria da Constituição: estudos sobre o lugar da Política no Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 229: “A jurisdição constitucional funcionando como a instância moderadora dos eventuais abusos do poder legislativo e de sua maioria parlamentar assegurava a estabilidade desejada pelos liberais”. Além da teoria liberal para justificar o controle de constitucionalidade pelo Judiciário ou cortes constitucionais, há o argumento procedimentalista e a doutrina substancialista. Na tese procedimentalista, a atribuição do Judiciário para anular as decisões do Parlamento explica-se pela necessidade de garantir as condições ou regras procedimentais do processo democrático, atuando estritamente apenas como árbitro da tomada de decisão política. Já na tese substancialista, a legitimidade do Judiciário decorre da necessidade de proteção dos princípios e valores fundamentais, inclusive dos valores morais, em face da vontade legislativa das maiorias políticas eventuais. Na corrente procedimentalista, alinha-se o nome de John Hart Ely, e, no grupo substancialista, Ronald Dworkin. Sobre o assunto, ver: STAMATO, Bianca. Jurisdição constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2005. p. 103-104 e 159-161; TAVARES, André Ramos. Jurisdição constitucional. In: DIMOULIS, Dimitri (Coord.). Jurisdição constitucional. Dicionário brasileiro de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 205. Para uma visão ampliada dos argumentos favoráveis à jurisdição constitucional, confira: SAMPAIO, José Adércio Leite Sampaio, op. cit., 2002. p. 60-101; LEAL, Mônia Clarissa Hennig. Jurisdição constitucional aberta: reflexões sobre a legitimidade e os limites da jurisdição constitucional na ordem democrática – uma abordagem a partir das teorias constitucionais alemã e norte-americana. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 02. 15 BALEEIRO, Aliomar O Supremo Tribunal Federal, esse outro desconhecido. Rio de Janeiro: Forense, 1968. p. 31 e 35. Nesse diapasão, acrescente-se a ponderação de Domenico Losurdo: “[...] nos Estados Unidos, a Corte Suprema funciona na prática como uma Terceira Câmara chamada a ser ‘a guardiã da propriedade contra o poder do número’; e é justamente desta forma que ela, no século XIX, obstaculiza fortemente o desenvolvimento da democracia, o associativismo sindical, o imposto de renda progressivo, a proibição de trabalho infantil, etc.”. LOSURDO, Domenico, op. cit., 2004. p. 25. 16 Cláudio Pereira de Souza Neto pondera: “O argumento liberal sustenta que a função da jurisdição constitucional é garantir a liberdade e os direitos das minorias contra as maiorias eventuais. Para esse ponto de vista, o poder do Estado só é legítimo quando exercido de maneira moderada, pelo que, se a maioria atua imoderadamente, cabe a uma instituição politicamente neutra, como seria o caso das cortes constitucionais, invalidar a sua ação. Esse argumento [...] enfatiza a proteção das liberdades não-políticas [...]” SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Controle de constitucionalidade (legitimidade política). In: TAVARES, op. cit., p. 90. 17 Aqui urge salientar diferença substancial entre o fundamento do controle de consti-

tucional nos Estados Unidos e na França. Veja-se que nos Estados Unidos o judicial review tem como justificativa a desconfiança no Parlamento, já que este é visto como potencial ameaça aos direitos e liberdades individuais, de modo que compete ao Poder Judiciário atuar ativamente para salvaguarda desses direitos. Já na França, a desconfiança dá-se em relação ao Judiciário, já que os membros da magistratura francesa sempre estiveram atrelados ao Antigo Regime, atuando na defesa e conservação intransigente dos direitos e privilégios dos agentes do regime absolutista. Ver. LEAL, Mônia Clarissa Hennig, Jurisdição constitucional aberta: reflexões sobre a legitimidade e os limites da jurisdição constitucional na ordem democrática – uma abordagem a partir das teorias constitucionais alemã e norte-americana. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 23, 25 e 27-28; ROCHA, José de Albuquerque. Estudos sobre o Poder Judiciário. São Paulo: Malheiros, 1995. p. 93; HORTA, Raul

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Machado. Direito constitucional. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 176. A esse respeito, observa Mônica Clarissa Hennig Leal: “se a desconfiança com relação aos juízes levou, na França, à radicalidade do controle de constitucionalidade – onde o mesmo é feito em caráter preventivo, por um tribunal de natureza política – essa mesma desconfiança levou, em outro nível, à exclusão dos juízes ordinários na maioria dos países da Europa, através do estabelecimento de Tribunais Constitucionais que se localizam fora da estrutura do Poder Judiciário”. LEAL, Mônica Clarissa Hennig, op. cit., 2007. p. 46.

18 WALDRON, Jeremy. In: BORGES, Luís Carlos (Trad.). A dignidade da legislação. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 02. 19 Ibid., 2003. p. 05. 20 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Livraria Almeida, 1993. p. 1111. 21 Ibid., 1993. p. 1111. 22 Nesse sentido é a idéia de José Herval Sampaio Júnior, para quem a judicialização da política é “uma conseqüência lógica e natural da nova concepção de jurisdição no Estado Constitucional Democrático de Direito”, segundo a qual o ativismo judicial seria indispensável para proteção e efetividade dos direitos fundamentais da pessoa humana. SAMPAIO JÚNIOR, José Herval. Nova concepção de jurisdição. Fortaleza: Unifor, 2007. p. 136. Dissertação de Mestrado. No Brasil, um dos principais trabalhos sobre a judicialização da política decorre de pesquisa realizada por Luiz Werneck Vianna, Maria Alice Rezende de Carvalho, Manuel Palacios Cunha Melo e Marcelo Baumann Burgos, intitulado de “A judicialização da política e das relações sociais no Brasil”. Nesse trabalho, a judicialização do espaço político é vista como importante meio de democratização do Estado brasileiro, eis que o Judiciário seria agente essencial da proteção e concretização dos direitos constitucionais fundamentais. Ver: VIANNA, Luiz Werneck et al. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999. 23 Cláudio Pereira de Souza Neto anota que a teoria constitucional brasileira, embora eclética, se caracteriza pela considerável predominância do argumento liberal para legitimar o controle judicial de constitucionalidade. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Controle de constitucionalidade (legitimidade política). In: DIMOULIS, Dimitri (Coord.). Dicionário brasileiro de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 90. 24 WOLKMER, Antônio Carlos. A origem liberal-conservadora do constitucionalismo brasileiro. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 22, n. 87, p. 167-174, jun./set. 1985. p. 174. 25 LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto. O constitucionalismo brasileiro ou de como a crítica deficiente ignora a consolidação da democracia. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, v. 01, nº. 02, 2004. p. 331, 333 e 336. 26 Ver. LIJPHART, Arend. In: FRANCO, Roberto (Trad.). Modelos de democracia: desempenho e padrões de governo em 36 países. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 254 e 257; LEAL, Mônica Clarissa Hennig, op. cit., 2007. p. 98-99. 27 Apud Lima, Martonio Mont’Alverne Barreto: Justiça constitucional e democracia: perspectiva para o poder judiciário. Revista da Procuradoria-Geral da República, São Paulo: RT, jan./jun., n. 08, 1996. p. 81-101. 28 LOSURDO, 2004, op. cit., p. 31. 29 LOSURDO, Domenico. In: SEMERARO, Giovanni (Trad.). Contra-História do liberalismo. Aparecida (SP): Idéias e Letras, 2006. p. 357. 30 SOUZA NETO, Cláudio Pereira de, op. cit., 2007. p. 108. Para Augusto Lanzoni, o liberalismo está repleto de ambigüidades: “Se ele prega a liberdade, como bem supremo do homem, de um lado, de outro ele limita a ação daqueles que não possuem dinheiro. Se ele se apresentou como revolucionário e progressista, em relação ao Antigo Regime, ele é, no entanto, conservador em relação às reivindicações populares. Portanto, ele é revolucionário e ao mesmo tempo conservador. Se no início do século XIX ele luta contra a monarquia absolutista e no século XX contra as ditaduras e regimes totalitário, de um lado, de outro ele vai contra as autoridades populares e sobretudo contra a democracia e contra o socialismo”. LANZONI, Augusto apud WOLKMER, op. cit., 2003. p. 122. 31 Na Europa, um debate rico e célebre sobre quem deveria ser o guardião da Constituição foi travado, na década de 1920, entre Carl Smitt e Hans Kelsen. O primeiro defendendo a posição de que a autoridade mais legitimada para exercer a jurisdição constitucional seria o chefe do Estado e o segundo sustentando

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que a proteção da Constituição deve realizar-se por intermédio de uma corte constitucional. Confira: SCHMITT, Carl. In: CARVALHO, Geraldo (Trad.); MOREIRA, Luiz (Coord.). O guardião da constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2006 e KELSEN, Hans. Jurisdição constitucional. Introdução e revisão técnica Sérgio Sérvulo da Cunha. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 237-298. cap. “Quem deve ser o guardião da constituição?”. 32 Anota Bianca Stamato que os liberais defendem a primazia dos direitos humanos sobre as decisões públicas, ainda que fruto da vontade da maioria. STAMATO, 2005, op. cit., p. 37-38. Já Cláudio Pereira de Souza Neto aduz que liberalismo e democracia têm escopos diferentes: “O liberalismo quer limitar o poder do estado, não importando se é exercido por uma assembléia eleita pelo povo. A democracia, por seu turno, vincula a legitimidade do poder do estado necessariamente à vontade popular: se o povo não exerce o poder, este é ilegítimo”. SOUZA NETO, Cláudio Pereira. Teoria constitucional e democracia deliberativa: um estudo sobre o papel do direito na garantia das condições para a cooperação na deliberação democrática, Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 55. 33 COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno.

São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 638. Destaque-se que se, na vertente liberal, a garantia da liberdade requer a separação e limitação dos poderes, na matriz democrática, o meio ideal para assegurar a liberdade e os direitos do indivíduo é o exercício do poder diretamente pelo povo, isto é, o autogoverno democrático por intermédio da soberania popular. Ver: MIRANDA, 2003, op. cit., 2003. p. 98. STAMATO, 2005, op. cit., p. 26. nota nº. 08. Anote-se que grande parte dos teóricos da Ciência Política e Jurídica enxerga um dilema fundamental na relação entre democracia – como questão política, relacionada à vontade soberana da maioria -, e constitucionalismo, como questão jurídica, atinente a direitos. A despeito disso, assevera Martonio Mont’Alvere Barreto Lima que as decisões políticas não significam a superposição do político frente ao Direito, uma vez que isso se traduziria numa inversão do Estado Democrático de Direito. LIMA. Martonio Mont’Alverne Barreto. Jurisdição constitucional: um problema da teoria política da democracia. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira da; MORAES FILHO, José Filomeno de. Teoria da Constituição: estudos sobre o lugar da política no direito constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 208.

34 ROUSSEAU, Jean-Jacques. In: DANESI, Antonio de Pádua (Trad.). O contrato social: princípios do direito político. São Paulo: Martins Fontescial Renovar,ireitocia deliberativa: um lítico, 2003. p. 107. 35 KANT, Immanuel. In: BINI, Edson (Trad.). A metafísica dos costumes. Série Clássicos Edipro. Bauru (SP): Edipro, 2003, p. 155. 36 BOBBIO, Norberto apud LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto. Judicialização da política e comissões parlamentares de inquérito: um problema da teoria constitucional da democracia. Constitucionalizando direitos: 15 anos da Constituição brasileira de 1988. Rio de Janeiro e São Paulo: Renovar, 2003. p. 222. 37 Anota Gilberto Bercovici: “O constitucionalismo foi utilizado, de um lado, para contrapor-se ao contratualismo e à idéia de soberania popular idéias chaves da Revolução Francesa (...)” (apud Renato Stanziola Vieira: Jurisdição constitucional e os limites de sua legitimidade democrática. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 48). 38 ELY, John apud FREEDMAN, Samuel. Democracia e controle jurídico da constitucionalidade. Lua Nova, Revista de Cultura e Política, nº. 32, 1994. p. 182. 39 Ressalte-se que o fato de os membros das cortes constitucionais, e, no caso brasileiro, do Supremo Tribunal Federal, passarem pela apreciação do Parlamento, não desnatura a crítica de ilegitimidade democrática da jurisdição constitucional, visto que a escolha de seus integrantes, em última análise, é feita indiretamente, isto é, sem deliberação direta da sociedade por meio do voto popular. 40 BALEEIRO, Aliomar. O Supremo Tribunal Federal: Esse outro desconhecido. Rio de Janeiro: Forense, 1968. p. 44. 41 STAMATO, Bianca, op. cit., 2005. p. 96. 42 LIMA, Martonio Mont`Alverne Barreto. A constituição dirigente e a crise da teoria da constituição. In: SOUZA NETO, Claudio Pereira de; BERCOVICI, Gilberto; MORAES FILHO, Jose Filomeno

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de; LIMA, Martonio Mont`Alverne Barreto. Teoria da Constituição: estudos sobre o lugar da política no direito constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 218. Acerca do caráter conservador e antidemocrático do controle de constitucionalidade pela jurisdição constitucional, ver, por todos, Lima, Martonio Mont’Alverne Barreto: Justiça constitucional e democracia: perspectiva para o poder judiciário. Revista da Procuradoria-Geral de República, São Paulo: RT, jan./jun., n. 08, 1996. p. 81-101. 43 “Ulisses pretende ouvir o canto irresistível das sereias, que enlouquece os homens a ponto de eles se jogarem ao mar. Então ordena a seus comandados que tapem os ouvidos com cera e o amarrem ao mastro. Tomado pelo desejo ao ouvir o canto, ele grita desesperadamente para que o desamarrem, mas seus companheiros não podem escutá-lo” (REPA, Luis Sérgio. A crise da teoria crítica: razão instrumental e declínio do indivíduo. Revista Mente e Cérebro. Especial: Mente, Cérebro e Filosofia – fundamentos para a compreensão contemporânea da psique, São Paulo: Ediouro, 7 ed., 2008, p. 21.). 44 REPA, Luis Sérgio. A crise da teoria crítica: razão instrumental e declínio do indivíduo. Revista Mente e Cérebro. Especial: Mente, Cérebro e Filosofia: fundamentos para a compreensão contemporânea da psique, São Paulo: Ediouro, 7 ed., 2008, p. 21. 45 Daniel Sarmento apud Rodrigo Brandão: As culturas liberal e democrática de proteção dos direitos individuais no constitucionalismo clássico. Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 44, n. 175, jun./ set., 2007. p. 257. 46 SOUZA NETO, 2007, op. cit., p. 90. 47 VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua reserva de justiça: um ensaio sobre os limites materiais ao poder de reforma. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 19,20 e 227; STAMATO, Bianca, op. cit., 2005. p. 180. 48 CASTRO, Flávia de Almeida Viveiros de. O papel político do Poder Judiciário. Revista de Direito Constitucional e Internacional, a. 11, n. 42, p. 167-180, jan./mar., 2003. p. 175. 49 VIEIRA, Oscar Vilhena. Império da lei ou da corte? Dossiê, Revista da USP, n. 21, p. 70-77, mar./maio 1989. p. 73. nota nº. 06. 50 José Albuquerque Rocha adverte que “o judiciário viola também os direitos fundamentais quando de sua interpretação, seja limitando-lhes o conteúdo normativo essencial, seja negando-lhes aplicação. Então, sendo as coisas assim, coloca-se a necessidade de proteger os direitos fundamentais contra as violações oriundas do judiciário”. ROCHA, José Albuquerque. Estudos sobre o Poder Judiciário, São Paulo: Malheiros, 1995. p. 6. 51 FREEMAN, Samuel. Democracia e controle jurídico da constitucionalidade. Lua Nova, Revista de Cultura Política, nº32, p. 181-199, 1994. 52 MELO, Manuel Palácios Cunha. A suprema corte dos EUA e a judicialização da política: notas sobre um itinerário difícil. In: VIANNA, Luiz Werneck (Org.). A democracia e os três poderes no Brasil. Belo Horizonte: UFMU, Rio de Janeiro: IUPERJ/FAPERJ, 2002. p. 75. 53 ROCHA JÚNIOR, José Jardim. Problemas com o governo dos juízes: sobre a legitimidade democrática do judicial review. Revista de Informação Legislativa, ano 38, n. 151, jul./set. 2001. p. 264. 54 MELO, Manuel Palácios Cunha. A Suprema Corte dos EUA. In. Vianna. Luiz Werneck (org.). A democracia brasileira e os três poderes no Brasil. Belo Horizonte: UFMU, Rio de Janeiro: IUPERJ/FAPERJ, 2002. p. 70. 55 VIEIRA, Oscar Vilhena, op. cit., 1999. p. 70-71. 56 Ver: COOLEY, Thomas M. Princípios gerais do direito Constitucional nos Estados unidos da América. Tradução de Ricardo Rodrigues Gama. Campinas/SP: Russell, 2002. p. 213. Frise-se que, nada obstante a jurisprudência norte-americana haver modificado vários entendimentos judiciais atentatórios aos direitos fundamentais, não há razões para sustentar a tese da capacidade, permanente, do Judiciário de autocorrigir os erros, como defende Leda Boechat Rodrigues. RODRIGUES, 1977, op. cit., p. 62-63 e 133-134. Para Domenico Losurdo “Os méritos do liberalismo são importantes e evidentes demais para que haja necessidade de atribuir-lhe outros, totalmente imaginários. Faz parte desses últimos a presumida capacidade espontânea de auto-correção”. LOSURDO, 2006, op. cit., p. 361. 57 STAMATO, 2005, op. cit., p. 156. 58 MENDES, Gilmar Ferreira. Prefácio à obra de TAVARES, André Ramos. Jurisdição e tribunais constitucional. São Paulo: Celso Bastos editor, 1998, p. XIV. 59 GRIMM, Dieter apud MENDES, Gilmar Ferreira. Prefácio à obra de TAVARES, André Ramos. Jurisdição e tribunais constitucional. São Paulo: Celso Bastos editor, 1998, p. XIV. 60 BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang apud LEAL, Mônia Clarissa Hennig, op. cit., 2007. p. 102. 61 LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto. A jurisdição constitucional: um problema da teoria da demo-

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cracia política. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira da; BERCOVICI, Gilberto; MORAES FILHO, José Filomeno de; LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto. Teoria da Constituição: estudos sobre o lugar da política no direito constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 239-240. 62 CAMPOS, Sérgio Pompeu de Freitas. Separação de poderes na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 2007. p. 242. Ingeborg Maus, ainda, observa: “Quando a justiça ascende ela própria a condição de mais alta instância da sociedade passa a escapar de qualquer mecanismo de controle social; controle ao qual normalmente se deve subordinar toda instituição do Estado em uma forma de organização político-democrática. No domínio de uma justiça que contrapõe um direito ‘superior’, dotado de atributos morais, ao simples direito dos outros poderes do Estado e à sociedade é notória a regressão a valores pré-democráticos de parâmetros de integração social”. MAUS, op. cit., p. 129. 63 Confira-se, por oportuno, transcrição de parte de artigo de autoria de Manoel Gonçalves Ferreira Filho: “[...] o Judiciário goza de uma confiabilidade que os Poderes “políticos’ Legislativo e Executivo perderam. Estes são olhados com desconfiança pela opinião pública, alimentada pelos meios de comunicação de massa. A presunção de que os atos destes dois Poderes sejam legítimos e visem ao interesse geral mantém-se no plano jurídico-formal. Do ângulo da opinião pública, não. São compostos de ‘políticos’ e estes são objeto de escárnio, pois, todos duvidam, trabalhem para o interesse geral. [...]. Este descrédito não colhe o juiz. No fundo, é este uma personalidade mais próxima dos bens pensantes que fazem a opinião pública. E mais aceitável para essa burguesia ‘esclarecida’. É formado em nível superior, selecionado por meio de concurso, adstrito à independência e à imparcialidade, por isso – entendem essa faixa da sociedade – é melhor que a ele seja dada a decisão em matérias importantes – como as grandes decisões políticas – do que aos ‘políticos’ – vistos como ignorantes, corruptos, interesseiros, demagógicos [...]”. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O poder judiciário na Constituição de 1988: judicialização da política e politização da justiça. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro: Renovar, v. 198, out./dez. 1994. p. 15-16. 64 São autores que comungam com esta visão preconceituosa do Poder Legislativo, entre outros, Luis Roberto Barroso. BARROSO, Luis Roberto. Comissões parlamentares de inquérito: limite de sua competência, sentido da expressão constitucional “poderes de investigação próprios das autoridades judiciais” e inadmissibilidade de busca e apreensão sem mandado judicial. Boletim de Direito Administrativo, São Paulo, ano 12, n. 12, dez. 1996. p. 807; TAVARES, André Ramos, op. cit., 1998. p. 62; BULOS, Uadi Lammêgo. Comissões parlamentares de inquérito: técnica e prática. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 203; BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de segurança nº. 21.689. Tribunal Pleno. Impetrante: Fernando Affonso Collor de Mello. Impetrado: Senado Federal. Rel. Min. Carlos Velloso. Brasília, 16 de dezembro de 1993. Impeachment: jurisprudência. Brasília: Imprensa Nacional, 1996. p. 38. No plano internacional, tem-se, com entendimento similar, o autor Robert Alexy: “O cotidiano da exploração parlamentar contém o perigo que maiorias imponham-se desconsideradamente, emoções determinem o ocorrer, dinheiro e relações de poder dominem e simplesmente sejam cometidos erros graves”. ALEXY, Robert: Constitucionalismo discursivo. Tradução Luís Afonso Hech. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 54. 65 No tocante, especificamente, à crítica do Judiciário em termos de que seria um poder mais apto para decidir fundamentadamente os casos concretos, inclusive, melhor aferindo as decisões advindas dos outros Poderes do Estado, quer parecer a este autor que tal entendimento não passa de prepotência e arrogância da magistratura togada, já que, assim procedendo, arroga para si o monopólio – único, exclusivo e final – de dizer o que é certo ou errado, justo ou injusto, conveniente ou inconveniente, oportuno ou inoportuno, no sistema jurídico brasileiro. Esta observação parafraseou, em certo sentido, o posicionamento esposado por Guilherme de Souza Nucci, na sua tese de doutorado, na qual dissertou sobre a ilegitimidade dos tribunais para anular as decisões judiciais proferidas por jurados (juízes leigos) nos crimes de competência do Tribunal do Júri, uma vez que tal interferência consistiria, para esse autor, em desrespeito à instituição do Júri e, por via de conseqüência, em violação da soberania (supremacia e independência) dos vereditos e da competência constitucional do povo de julgar seus pares. Ver.: NUCCI, Guilherme de Souza. Júri: princípios constitucionais. São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999. p. 119 e 186, e outras. 66 Martonio Mont’Alverne Barreto Lima aduz que há, no Brasil, uma cultura da desconfiança e do preconceito contra a política e os políticos. Ver: LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto. A constitucionalização dos procedimentos parlamentares: Legislativo e Judiciário no jogo político democrático. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel (Coord.). A constitucionalização do direito: fundamentos teóricos e aplicações especiais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 652. Sobre o preconceito contra a política, ver: ARENDT, Hannah. O que é política?. Tradução de Reinaldo Guarany. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. p. 25-37. 67 No Brasil atual, constata-se um fato curioso: muitos intelectuais (jornalistas, juristas, formadores de

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Jurisdição Constitucional e Controle da Política:Fundamento e (I)Legitimidade Democrática

opinião em geral) dizem-se democratas e defensores da democracia, mas repetem lugares-comuns que não condizem com a filosofia democrática, tais como: “todo político é ladrão”; “no Brasil não tem democracia”, “nepotismo não é incompatível com democracia”, “o povo não sabe votar”. A esse respeito, é importante transcrever a advertência de Carlos Alberto Libânio, o Frei Betto: “Quando admitimos que todos os partidos são ‘farinhas do mesmo saco’, fazemos o jogo dos corruptos, pois quem tem nojo de política é governado por quem não tem. Se todos se enojarem, será o fim da democracia e da esperança de que, no futuro, venha a predominar a política regida por fortes parâmetros éticos” (“E Agora José”. Folha de São Paulo, 25. jul. 2005). 68 LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto. Judicialização da política e comissões parlamentares de inquérito – um problema da teoria constitucional da democracia. Constitucionalizando direitos: 15 anos daConstituição brasileira de 1988. Rio de Janeiro e São Paulo: Renovar, 2003. p. 237. 69 BERCOVICI, Gilberto. A constituição dirigente e a crise da teoria da constituição. In: SOUZA NETO, Claudio Pereira de; BERCOVICI, Gilberto; MORAES FILHO, José Filomeno de; LIMA, Martonio Mont`Alverne Barreto (Coord.). Teoria da Constituição: estudos sobre o lugar da política no direito constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 125. Sobre a preservação da garantia das liberdades constitucionais pelo Judiciário, é interessante registrar o pensamento do ministro da Suprema Corte Americana Robert Jackson, em conferência na Universidade de Harvard: “Não sei de nenhum exemplo moderno, em que qualquer Judiciário tenha salvo um povo inteiro das grandes correntes de intolerância, paixão, usurpação e tirania ameaçadora da liberdade e das instituições livres. Não constitui especulação ociosa indagar a precedência, no tempo ou em importância, de um judiciário independente e ilustrado ou de uma sociedade livre e tolerante”. RODRIGUES, Leda Boechat. Direito e política. Os direitos humanos no Brasil e Estados Unidos. Porto Alegre Coleção AJURIS/8, 1977. p. 95. 70 Roberto Gargarella apud Emerson Garcia. Jurisdição constitucional e legitimidade democrática. Leituras complementares de Constitucional – controle de constitucionalidade. Salvador (BA): Podivm, 2007. p. 44. Nota de rodapé nº. 56. 71 WALDRON, Jeremy apud STAMATO, Bianca, op.cit., p. 157. Entende-se que os equívocos e arbitrariedades que se imputam comumente ao Parlamento apenas podem ser aferidos de forma legítima pela própria sociedade, jamais por autoridades não escolhidas pela vontade popular, como o são os membros do Judiciário. 72 DICEY apud FERREIRA, Pinto. Curso de Direito Constitucional. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 430. 73 Notadamente no campo jurídico-político, no qual, havendo dúvida sobre a possibilidade ou não de controle judicial dos atos do Legislativo, isto é, se a questão é ou não política, tal problema deve ser resolvido a favor do Parlamento. 74 “Tradicionalmente, os juízes formam uma corporação de espírito conservador”. COMPARATO, Fábio Konder, op. cit., 2006. p. 675. Corrobora tal assertiva, Lenio Luiz Streck: “O Judiciário ainda possui um alto grau de comprometimento com a manutenção do status quo [...]”. STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 126. 75 De fato, o Poder Judiciário brasileiro é “[...] sem dúvida nenhuma o mais impenetrável dos Poderes da República”. SOUTO Paulo. Síntese do Relatório da CPI sobre o Poder Judiciário. Relator Senador Paulo Souto. Brasília: Senado Federal, 2000. p. 37. 76 A respeito dessa problemática, confira-se a obra de CASTRO JÚNIOR, Osvaldo Agripino de. A democratização do Poder Judiciário. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris editor, 1998. p. 120-121. Diz o autor citado: “O Judiciário brasileiro foi o primeiro a aderir ao malsinado golpe de 64, pior, o Poder Judiciário absorveu boa parte da estrutura autoritária da ditadura. Ao contrário dos Poderes Legislativo e Executivo que, na chamada Nova República se tornaram mais liberais, o Judiciário mantém estas estruturas até hoje. Está fechado em si mesmo e acha que não pode ser fiscalizado pela sociedade brasileira. É fiscal de si mesmo. Os outros dois poderes buscam sua legitimidade na verdadeira origem do poder, o povo, enquanto o Judiciário usa outra mecânica”. E acrescenta o autor: “o Poder Judiciário, é o patrimonialista, em decorrência da cultura tradicionalista que ainda permeia a maior parte das suas atividades”. CASTRO JÚNIOR, Osvaldo Agripino de, op. cit., 1998. p. 124. Finalizando, arremata o precitado professor: “A crise do Judiciário que, no caso, decorre do exacerbado corporativismo que norteou as suas atividades, principalmente no período militar, quando seus membros, com poucas exceções, aplicaram os dispositivos legais sem que houvesse o menor questionamento sobre a origem da sua ‘legitimidade’ disposta nos textos constitucionais elaborados pelos juristas subservientes aos militares. Assim, grande parte destes magistrados ainda faz parte da magistratura, gerando, ainda, uma cultura jurídica dogmática e distante das necessidades da sociedade civil [...]”. Ibid., 1998. p. 139.

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77 José Albuquerque Rocha adverte que “o judiciário, justamente por sua origem não representativa, é o órgão menos indicado para o papel de intérprete da vontade do povo, consubstanciada na Constituição e, por conseguinte, de censor do Legislativo. Efetivamente, é inadmissível que um órgão sem ligações com a vontade popular seja encarregado de traduzir, exprimir, compreender e dar significação a esta vontade. Certamente, aqui, temos uma das explicações para a não aplicação das regras consagradoras dos valores democráticos e sociais da Constituição: a origem não democrática do judiciário a transformá-lo em uma instituição distante do povo e próxima das elites”. ROCHA, José Albuquerque, op. cit., 1995. p. 80. 78 LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto. A jurisdição constitucional: um problema da teoria da democracia política. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira da; BERCOVICI, Gilberto; MORAES FILHO, José Filomeno de; LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto. Teoria da Constituição: estudos sobrde o lugar da Política no Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 206. Ver. MAUS, Ingeborg, op. cit., 2000, p. 125-156. 79 VIANNA, Luiz Werneck et al. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999, p. 24. 80 FISHER, Louis apud BERCOVICI, Gilberto. Constituição e política – uma relação difícil, Revista Lua Nova, nº 61, p. 5-24, 2004. p. 21. 81 BERCOVICI, Gilberto. 2ª Parte - Mesa Redonda (síntese) In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Org.). Canotilho e a constituição dirigente. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 77. 82 Ibid., 2005. p. 77. 83 Ibid., 2005. p. 77.

CONSTITUTIONAL JURISDICTION AND THE CONTROL OF POLITICS: JUSTIFICATION AND DEMOCRACTIC (IL)LEGITIMACY ABSTRACT This paper approaches the theme of constitutional jurisdiction of politics, focusing on the ideological foundation and on the (il)legitimacy of the Judiciary authority over political issues. It is observed that the ideological foundation of judicial control is the liberal philosophical policy, in order to avoid the possible risks to individual rights and guarantees carried out by Parliament. On the other hand, it is considered illegitimate for the judicial authority to review political deliberations, since, in terms of the democratic theory, it does not seem reasonable to acknowledge that the legitimate representative of popular sovereignty – Parliament – could have its deliberations invalidated by an authority lacking democratic legitimacy and accountability, such as the Judiciary. Therefore, we conclude that judicial intervention in politics extrapolates constitutional and democratic legitimacy. Keywords: Constitutional Jurisdiction. Control of politics. Ideological foundation. Democratic (il) legitimacy. 140

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Estatuto da Igualdade Racial: Ações Afirmativas de Integração Étnica ou Políticas de Discriminação Reversa? José Adeildo Bezerra de Oliveira* Gretha Leite Maia** Introdução. 1 As Marcas de CAM. 2 Uma Miscelânea Cultural Chamada Brasil. 3 Por uma Cidadania Cultural e uma Igualdade Real no Brasil. Conclusão. Bibliografia.

RESUMO O presente estudo busca questionar a eficácia social, cultural e cidadã das políticas de ação afirmativa no Brasil, mais precisamente a prevista na Lei n° 12.288, de 20 de julho de 2010, o Estatuto da Igualdade Racial. A partir de uma análise multidisciplinar, se há a possibilidade real de tais políticas fomentarem a igualdade entre as etnias e corrigirem o erro histórico da escravidão e a discriminação em relação ao negro, bem como o risco de promoverem a divisão da sociedade brasileira e perpetuarem práticas de racismo com a discriminação reversa de grupos tradicionalmente oprimidos no país, além de limitarem a cidadania cultural dos afrodescendentes com a manutenção da tradicional mentalidade paternalista e assistencialista na política brasileira. Palavras-chave: Raça. Etnia. Discriminação. Igualdade. Cidadania. INTRODUÇÃO Entendendo o campo jurídico como causa e efeito das tensões sociais estabelecidas historicamente a partir de disputas políticas entre os diversos segmentos sociais e étnicos nacionais, as tentativas de resolução da problemática racial, em um país marcado, há mais de trezentos anos, por escravismo, como o Brasil, vem se refletindo na produção normativa desde o contexto imperial brasileiro. Apesar de podermos citar várias leis referentes ao comércio de escravos e ao processo de emancipação da mão de obra escrava por meio de compensações aos * Historiador licenciado pleno e bacharelando pela Universidade Federal do Ceará (UFC), acadêmico do curso de Direito da Faculdade Christus. E-mail: ad.direitoch@gmail.com ** Bacharela e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC), professora do Curso de Direito da Faculdade Christus, Advogada. R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.141-152, jan./dez. 2011

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proprietários por parte do Estado brasileiro, o reconhecimento da condição de sujeito de direitos aos negros no Brasil não foi objeto de normatização imperial ou republicana. A problemática racial foi e é uma questão central na formação sócio-cultural e cidadã do país. Muitos teóricos se debruçaram em torno da questão, considerando a herança da distância social como parte das dificuldades de nossa sociedade em superar os padrões de relacionamento raciais inerentes à ordem social, escravocrata e senhorial, para a formação de uma sociedade de classes compatível com a nova ordem econômica, fundada na mão de obra assalariada e na livre competição. No contexto do processo de formação do Estado-nação brasileiro, no século XIX, a produção da memória da formação sócio-cultural do país girou em torno de ideias racistas que condenavam a mestiçagem como degeneradora do homem. A partir do Modernismo, a mestiçagem passou a ser valorizada como algo positivo e surgiu o mito da “democracia racial” brasileira, no qual, supostamente, brancos e negros conviviam harmonicamente no país. Tal mito é contestado veementemente pela maior parte dos intelectuais brasileiros desde as décadas de cinquenta e sessenta, desde o saudoso Florestan Fernandes a Guerreiro Ramos, devido à sua idealização e à omissão das tensões étnicas e sociais no país, ao mesmo tempo em que denunciavam a função social do preconceito para preservar privilégios em uma ordem social arcaica, baseada no prestígio de posições herdadas. Além das divergências de opinião em torno da mestiçagem, a questão racial vem suscitando debates acalorados desde os tempos do Império até os nossos dias. Várias são as posições e os interesses políticos em torno da questão racial e da cidadania negra no Brasil de hoje. Há os que defendem a “compensação” dos negros por meio de mecanismos jurídicos que garantam a “igualdade” de condições, com favorecimentos para eles, pelos sofrimentos causados pela elite branca desde os tempos coloniais; como também há os que contestam o “favorecimento” dos negros com ações afirmativas que, supostamente, estariam perpetuando o racismo com a chamada discriminação reversa. O intuito desta pesquisa é promover uma reflexão multidisciplinar em torno da Lei n° 12.288, de 20 de julho de 2010, destinado, na forma do art. 1º, a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica. Pode-se afirmá-la como um tipo de reparação à etnia negra que foi oprimida historicamente pelos brancos com o escravismo e, após a Lei Áurea, com a discriminação “racial”. A problemática central da investigação é a contestação de tal diploma normativo como fomentador da igualdade entre as etnias, pelo argumento de que não se promove a igualdade social e “racial” por meio de classificações que remetem a cor e que, provavelmente, acabariam por originar identidades paralelas e opostas, como fazia o racismo “científico” no século XIX. Não se nega, entretanto, as tensões de classe nem as atrocidades 142

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cometidas pelos brancos em relação aos negros, apenas se questiona a eficácia real de tais ações afirmativas como estimuladoras da igualdade. O estudo é dividido em três partes: a primeira põe em questão o discurso dos defensores das ações afirmativas como “redentoras” dos oprimidos. Em seguida, realiza-se uma breve explanação dos discursos defensores do escravismo e a mudança da mentalidade em torno da escravidão a partir da modernidade urbano-industrial. No intuito de se mostrar a insistência em erros históricos por meio da lei, realiza-se também uma analogia entre a produção normativa imperial (Lei Eusébio de Queiroz, Lei do Ventre Livre, Lei dos Sexagenários e Lei Áurea) e a produção normativa atual. Em um segundo momento, questiona-se a viabilidade das ações afirmativas para negros em um país essencialmente mestiço como o Brasil, pois como seria possível identificar os destinatários de tais garantias em um país marcado por uma miscelânea cultural? Em um terceiro momento, é realizada uma discussão em torno do princípio da isonomia, objetivo maior do Estatuto da Igualdade Racial. Paradoxalmente, tal princípio constitucional é ponto de partida para a construção da argumentação jurídica, quer contra, quer a favor das ações afirmativas, pois o referido princípio da isonomia admite uma plasticidade na definição de seu conteúdo, conforme será visto. Por fim, discute-se a interferência que as possíveis definições materiais do princípio da igualdade podem causar na formação de uma cidadania cultural no Brasil para, em seguida, verificar a viabilidade da proposta de construção de uma cultura política humanística, marcada pela negação da “raça” como fator de discriminação, a partir da realização de políticas públicas que valorizem o indivíduo enquanto ser humano, independentemente de sua cor ou de eventuais preferências pessoais de qualquer natureza. Tendo em vista o ideal de cidadania grego, em que ser cidadão era ser livre e participar ativamente da comunidade política, o que se traduz na modernidade nos direitos políticos, também se propõe a efetivação de políticas sociais para as populações menos favorecidas, independentemente da cor, mas sem esquecer o fomento estatal à cidadania cultural negra, entendida como o conjunto de direitos e deveres, e não apenas como direitos. 1 AS MARCAS DE CAM Basta, Senhor! De teu potente braço Role através dos astros e do espaço Perdão p’ra os crimes meus! Há dois mil anos eu soluço um grito... escuta o brado meu lá no infinito, Meu Deus! Senhor, meu Deus!!... Vozes d’África – Castro Alves

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Os versos de Castro Alves nos fazem um relato poético das agruras enfrentadas pelos aproximados cinco milhões de escravos negros que percorreram o caminho da desgraça sócio-cultural. Esse caminho, especificamente falando do escravismo moderno, foi trilhado por traficantes de escravos entre a África e as Américas durante mais de trezentos e cinquenta anos. Da colônia ao contexto da crise monárquica, a escravidão estava largamente instalada no Brasil, em que uma elite branca comandava os principais postos políticos e detinha os privilégios sociais. Após a Lei Áurea, o instituto jurídico da escravidão acabou, mas a mentalidade escravista se perpetuou. Conforme lições de Fernandes: Como ex-agentes do trabalho escravo e do tipo de trabalho manual livre que se praticava na sociedade de castas, o negro e o mulato ingressaram nesse processo com desvantagens insuperáveis. (...) Percebe-se com facilidade como a degradação pela escravidão, a anomia social, a pauperização e a integração deficiente combinam-se entre si para engendrar um padrão de isolamento econômico e sócio-cultural do negro e do mulato que é aberrante em uma sociedade competitiva, aberta e democrática. (Destaque do autor)1

Como fruto do movimento multiculturalista, entre os muitos discursos utilizados pelos defensores das ações afirmativas no Brasil, há o da retribuição aos negros pelos sofrimentos de outrora. De acordo com Magnoli, ao se referir à Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, A Xenofobia e Intolerâncias Relacionadas: A Declaração oficializou o conceito de ‘afrodescendentes’ e solicitou o reconhecimento da ‘cultura’ e ‘identidade’ dos ‘afrodescendentes’ nas Américas e, de modo geral, nas regiões da ‘diáspora africana’. Utilizando esses termos, o documento recolhia o conceito de uma nação diaspórica, constituída com base na ancestralidade e na cultutra. A proclamada nação na diáspora estaria composta por populações espalhadas em diversos países e seria detentora de um direito à reparação.2

Da Colônia ao Império, vários foram os discursos e as leis que defenderam o escravismo negro. Alguns segmentos da própria Igreja católica defenderam a escravidão negra sob o pretexto da maldição de Cam. Os discursos contrários à escravidão negra só começaram a ganhar força após a montagem da modernidade urbano-industrial, que fez surgir uma nova teoria da colonização baseada no livre-cambismo. Tal teoria dizia que o sistema colonial era espoliativo para as metrópoles, sempre obrigadas a manter despesas com suas colônias e a comprar produtos inferiores por elas produzidos. Além disso, interessada em liberar a mão de obra escrava para que se tornasse consumidora de produtos industriais, a Inglaterra passou a defender a emancipação da mão de obra escrava e a adoção do sistema de trabalho assalariado, o que a fez pioneira na Revolução Industrial, a realizar constantes pressões ao longo do século XIX para que o Brasil acabasse com a escravidão negra. Além das razões econômicas, também foram feitas as proposições jus144

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naturalistas dos iluministas, para quem a escravidão era contrária aos direitos naturais do homem, posto que todos sejam livres e iguais perante a natureza. Fundamentadas em tais proposições, as Declarações Universais, entretanto, não incluíram os escravos como titulares de direitos. Os discursos humanitários não se convertiam em ações ou reconhecimentos expressos do direito ao trabalho, como pagamento igual para o trabalho igual; do direito à educação ou do direito ao descanso, sem mencionar o direito ao voto. No contexto da independência brasileira, intelectuais do porte de José Bonifácio começaram a defender discursos morais, econômicos e sociais contrários ao escravismo. À medida que as relações capitalistas avançavam no mundo e no Brasil, o problema jurídico da escravidão era encaminhado para seu fim. O ano de 1850 foi decisivo para a questão do comércio de escravos, pois, com a Lei Eusébio de Queiroz, que extinguiu o tráfico internacional de escravos para o Brasil, o instituto jurídico facilitou o tráfico interno, transferindo os escravos dos latifúndios decadentes do Nordeste para as lavouras do café do Sudeste. As décadas de 1870 e 1880 vieram a confirmar o que já se imaginava em meados do século: o fim jurídico do instituto da escravidão. No entanto, se for analisada a essência das leis “abolicionistas”, vê-se que tais leis seguiam uma sábia lição sobre a lei e a conservação do poder para uma classe, que diz: São as suas criações, meu tio: os grilhões e os bastões. O senhor as criou há quatrocentos anos e as utiliza até hoje. O senhor as criou. Mais isso não representa mais do que uma fração da sua barbárie, meu tio. O senhor utilizou a árvore e a corda para enforcá-lo. Utilizou a faca para castrá-lo enquanto ele lutava com a corda para recuperar o alento. Utilizou o fogo para que ele se contorcesse ainda mais, porque o enforcamento e a castração não eram divertimento suficiente. Depois o senhor utilizou outra coisa – uma das suas criações – essa coisa a que o senhor chama de lei. Era escrita para o senhor e os de sua espécie, e todo o homem que não era da sua espécie devia infringi-la mais cedo ou mais tarde.3

Nessas décadas, foram aprovadas as leis do Ventre-Livre (1871) e dos Sexagenários (1885), consideradas, por um lado, como concessões dos escravocratas aos abolicionistas; por outro, como tentativa de enfraquecimento da luta abolicionista. Aqui se percebe como a elite branca buscava adiar a abolição com concessões imediatistas, bem ao estilo patriarcal brasileiro. Até mesmo a famosa Lei Áurea veio de “cima para baixo”, como uma concessão do Estado brasileiro e, por isso mesmo, ao limitar a luta, limitou a ascensão da cidadania negra no país. Neste ponto, encontra-se um dos aspectos centrais da problemática “racial” brasileira de ontem e que, ainda hoje, permanece: o Paternalismo. A cultura do pedir e do dar, já tradicional na política do Brasil, acaba por limitar a cidadania dos indivíduos, pois leva à acomodação e à consequente manutenção camuflada da essência do problema: o racismo. R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.141-152, jan./dez. 2011

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Hoje, o risco de apropriação das ações afirmativas por um discurso equivocado, de “politiqueiros” não esclarecidos e interessados em voto (posto que os envolvidos na questão correspondam a uma grande parcela do eleitorado brasileiro), ameaça os efeitos positivos das políticas públicas inclusivas em geral, desvelando uma face da cultura paternalista que se apoiaria no discurso de concessão de benefícios aos descendentes dos oprimidos do passado, mas que, vistos sob esses argumentos, limitariam a cidadania cultural e política de negros e brancos, ao perpetuar a acomodação política e ao promover o risco da discriminação reversa, informada por Magnoli ao se referir à origem das ações afirmativas nos Estado Unidos: O movimento pelos direitos civis empolgou multidões. Em contraste, as políticas de discriminação reversa nunca foram sustentadas por um movimento de massas. Mas a sua difusão, para além dos limitados programas federais, deu-se com a entrada em cena dos intelectuais e acadêmicos, que implantaram sistemas de admissão universitária orientados por critérios raciais, articularam iniciativas de ‘equilíbrio’ racial nas escolas públicas e, sobretudo, formularam uma explicação multiculturalista da nação americana.4 Apesar de o autor se referir ao caso dos Estados Unidos, considera-se a sua colocação válida para a realidade brasileira, pois o que ocorre no Brasil é a importação de um paradigma estadunidense. O que os defensores brasileiros das ações afirmativas não perceberam é que esse modelo parece ser inviável para um país marcado pela mestiçagem, como é o caso do Brasil. 2 UMA MISCELÂNEA CULTURAL CHAMADA BRASIL De acordo com o art. 1°, inciso IV, do Estatuto da Igualdade Racial (Lei n° 12.288, de 20 de julho de 2010), entende-se por populações negras o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou que adotam autodefinição análoga. Vejamos algumas implicações problemáticas sobre o referido dispositivo normativo. Primeiro, começamos por indagar sobre a forma prática e verdadeira para definir quem seriam os beneficiados por tais ações afirmativas, pois o Brasil é um país essencialmente mestiço, como nos informou Freyre: Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo (...) a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro. (...) Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra.5 Aqui, percebe-se o primeiro desafio do referido Estatuto: identificar quem 146

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é negro em um país como o Brasil. O inciso VI, do mesmo Estatuto, diz que são ações afirmativas: os programas e as medidas especiais adotados pelo Estado e pela iniciativa privada para a correção das desigualdades raciais e para a promoção da igualdade de oportunidades. Sabe-se que a eficácia de uma política pública depende do uso racional dos recursos e da identificação precisa dos seus destinatários, pois, caso contrário, o objetivo almejado não será atingido. Nesse sentido, indaga-se como o Estado poderá promover a igualdade entre as etnias se é quase impossível ou pouco provável identificar os destinatários de tais benefícios. De acordo com o censo do IBGE no ano de 2010, pela primeira vez na história nacional, o número de pessoas que se declaram pretas ou pardas é maior que os que se declaram brancas. Vejamos a seguinte notícia: Em 2010, do total de 190.749.191 brasileiros, 91.051.646 se declararam brancos - o que faz com que, apesar de continuar sendo o grupo com maior número de pessoas em termos absolutos, a população branca tenha percentual menor do que a soma de pretos, pardos, amarelos e indígenas. A população negra aumentou em quatro milhões, indo de 10.554.336 em 2000 para 14.517.961. Já a parda aumentou em 16,9 milhões: foi de 65.318.092 para 82.277.333. (...) Paula Miranda-Ribeiro, professora de demografia do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da UFMG, sublinha essa mudança cultural. - O Brasil está mais preto, algo mais próximo da realidade - diz Paula, para quem a principal razão é a maior identificação de pretos e pardos com sua cor. - É a chamada desejabilidade social. Historicamente, pretos e pardos eram desvalorizados socialmente, o que fazia com que pretos desejassem ser pardos, e pardos, brancos. Agora, pretos e pardos quiseram se identificar assim.6

De acordo com os dados acima e o posicionamento da socióloga, é perceptível o crescimento acentuado do número de pessoas que se declaram como negros exatamente no mesmo contexto em que as ações afirmativas começaram a ganhar força e a serem materializadas no país a partir de normas. Seria isso um avanço na consciência cultural dos negros ou, pelo contrário, um meio para as pessoas em geral, mesmo as que não possuem vínculos sentimentais ou identitários com o movimento negro, poderem se beneficiar de alguma forma com as ações afirmativas? Levantando uma hipótese contrária à da socióloga Paula Miranda Ribeiro, o sociólogo Demétrio Magnoli afirma que tal “desejabilidade” social não é fruto da consciência étnica dos negros. Vejamos: Na margem, os dados do último censo mostram um desvio discreto em relação à trajetória histórica. A população autodeclarada “preta”, que retrocedera de 14,6% em 1940 para 5,9% em 1980, cresceu de 6,2% em 2000 para 7,6% em 2010. O movimento de reclassificação talvez seja uma resposta sociológica ao estímulo R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.141-152, jan./dez. 2011

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estatal dos programas de cotas raciais nas universidades e das projetadas preferências raciais no serviço público e no mercado de trabalho. Nessa hipótese, a “valorização étnica” sonhada pelos arautos das políticas de raça se traduziria por um reposicionamento tático de indivíduos que, mesmo sendo absolutamente indiferentes aos hinos marciais do “orgulho racial”, temem perder oportunidades concretas de ascensão social.7

Como tratamos de conjecturas, tanto a hipótese de Paula Miranda como a de Magnoli podem ser válidas, desde que sejam realizados estudos mais aprofundados sobre a questão. 3 POR UMA CIDADANIA CULTURAL E UMA IGUALDADE REAL NO BRASIL O objetivo central da Lei n° 12.288, de 20 de julho de 2010, é garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidade e a defesa de direitos. Pode-se questionar a colocação do termo racial no referido Estatuto, pois, como se sabe cientificamente, não existem raças, mas a Raça humana. No entanto, em nível didático, entenderemos a expressão “raça”, colocada pelo Estatuto em questão, como sinônimo de etnia, pela força semântica do vocábulo raça. Em seu art.1o, caput, reza o diploma normativo que serão garantidos os direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica. É o princípio da isonomia que orienta, portanto, a construção normativa ora em estudo. Tal princípio é um dos objetivos fundamentais da República brasileira, enumerado na Constituição Federal de 1988, em seu art. 3°, inciso IV. Além disso, também faz parte rol exemplificativo dos direitos e das garantias individuais ressaltados no art. 5°, caput, da CF/1988: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade é materialmente construído sempre que tal princípio for evocado para orientar a significação valorativa do ordenamento. Como nos informa o professor Celso Antônio Bandeira de Mello, O princípio da igualdade interdita tratamento desuniforme às pessoas. Sem embargo, consoante se observou, o próprio da lei, sua função precípua, reside exata e precisamente em dispensar tratamentos desiguais. Isto é, as normas legais nada mais fazem que discriminar situações, à moda que as pessoas compreendidas em umas ou em outras vêm a ser colhidas por regimes diferentes.8

Assim, distinções devem ser cuidadosamente analisadas, para que não se aplique incorretamente a orientação normativa valorativa da isonomia, princípio basilar do Estado de Direito. Note-se, porém, que, a despeito de as ações afirma148

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tivas possuírem constitucionalidade já reconhecida e, teoricamente, buscarem a promoção da igualdade, elas correm o risco de serem deturpadas e entendidas como ofensivas à isonomia por propagar uma cultura da discriminação a partir da lei. Vejamos o que diz Sérvulo Cunha sobre a discriminação: Toda discriminação opera dentro de uma relação de discriminação, e a relação de discriminação que se estabelece entre duas pessoas é precedida e envolvida por uma relação grupal de discriminação. Não há discriminação sem uma cultura da discriminação, que transforma preconceitos em razões e as internaliza. O preconceito, assim como a ideologia, é uma armadilha do entendimento. Ambos são racionalizações: o primeiro, dos nossos sentimentos, e o segundo, dos nossos interesses.9

Não negando a pluralidade cultural tupiniquim, como já foi visto anteriormente, afirma-se, com Magnoli, que o argumento multiculturalista que faz referência à cor e aos sofrimentos passados da etnia negra como fundamento para a promoção de políticas públicas afirmativas concorrem, ao contrário, para perpetuação da ideia de racismo no país. Para Magnoli, Do ponto de vista teórico, o multiculturalismo assenta-se sobre um primeiro pressuposto que não é dramaticamente distinto do artigo de fé do ‘racismo científico’. Esse pressuposto pode ser expresso como noção de que a humanidade se divide em ‘famílias’ discretas e bem definidas, denominadas etnias. O ‘racismo científico’ fazia as suas ‘famílias’ – as raças – derivarem da natureza. O multiculturalismo faz as etnias derivarem da cultura.10

Dependendo do interesse em questão, pode-se considerar tal argumentação eficaz ou ineficaz para responder aos questionamentos em torno da problemática da desmarginalização sociocultural do negro no Brasil contemporâneo. A resposta a tal problemática, se é que é possível encontrá-la com precisão, deverá passar por mais estudos e debates públicos na sociedade brasileira. Em sua análise sobre o pensamento racial, Magnoli ainda enfatiza que o fundamento teórico para as ações afirmativas nos Estados Unidos é a teoria da justiça de John Rawls. Vejamos os pressupostos de tal teoria: Os princípios de justiça escolhidos no acordo original, que Rawls concebe como ‘substantivos’ (LP, PP. 187, 213 e 215), a rigor, são dois: primeiro, o da igual liberdade para todos; segundo, o da repartição equitativa das vantagens da cooperação social. (...) O primeiro princípio reza, assim, em sua última formulação: ‘Cada pessoa tem igual direito a um esquema plenamente adequado de liberdades para todos’ (LP, p. 271). (...) Segundo princípio – Esse princípio reza: ‘As desigualdades sociais e econômicas têm de satisfazer duas condições: primeira, relacionar-se com postos e posições abertos para todos em condições de plena equidade e de igualdade de oportunidades; e, segunda, redundar no maior benefício dos membros menos privilegiados da sociedade’ (LP, R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.141-152, jan./dez. 2011

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p. 271). (...) o segundo princípio (...) submete as desigualdades a duas condições: a) que os cargos e posições sociais estejam abertos para todos (princípio da igualdade de oportunidades); b) que se maximize a expectativa dos menos favorecidos (princípio da diferença).11

É o princípio da diferença que fundamenta as ações afirmativas, e isso não pode confundir-se com ofensa ao princípio da isonomia. Tratar diferente os desiguais corresponde ao cumprimento do princípio da igualdade. No entanto, frisar apenas ou principalmente critérios étnicos como fator de um discrímen parece-nos perigoso para a construção de uma cultura democrática, entendendo a democracia não como a igualdade entre todos, o que poderia gerar a homogeneização, mas como o respeito às diferenças. Nesse sentido, ante a afirmação da modernidade burguesa, marcada pela concentração de renda, e a quase que impossibilidade do estabelecimento de políticas sociais que promovam uma educação igual para todos, são aceitáveis, por exemplo, ações afirmativas para os setores menos favorecidos economicamente, não porque são negros, mulheres ou índios, mas porque são pessoas em condições sociais desiguais e que, por isso mesmo, merecem um tratamento diferenciado. Isso porque, em uma sociedade capitalista, correndo o risco de um reducionismo economicista, mas ao mesmo tempo reconhecendo o papel relevante do econômico, é o dinheiro, antes de qualquer coisa, que leva à discriminação ou ao preconceito. Como não se pretende negar que a cor também contribua para a discriminação ou para o preconceito, defende-se, neste estudo, o uso de critérios de recortes identitários plurais que sejam capazes de operar com os identificadores de minorias de maneira a não se excluir mutuamente, nem priorizar critérios étnicos, mas a combinar-se entre si, multiplicando os grupos minoritários, como mulheres, negros, índios e, em especial, os menos favorecidos economicamente. CONCLUSÃO A questão do combate aos problemas socioculturais dos povos afrodescendentes no Brasil é tão controvertida que ultrapassou os séculos e as transformações políticas e sociais nacionais sem uma solução minimamente eficaz. Depois de abolida a escravidão, a ausência de dispositivos integrativos das populações negras em uma sociedade de classes como a brasileira gerou dificuldades socioculturais para tais populações afrodescendentes e acabou por perpetuar o poder de uma elite branca e racista. No entanto, tais problemáticas não podem ser tratadas com negligência ou com ligações a interesses momentâneos de políticos, mas sim com as devidas precauções. Nesse sentido, devemos questionar qual o impacto que um diploma normativo na contemporaneidade, afirmativo de direitos, pode ter na construção da cidadania dos afrodescendentes, ou se os legisladores, ao frisarem exclusiva ou essencialmente o problema da 150

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cor, reconhecem como real e necessário um “acerto de contas”. Nesse sentido, procura-se revisitar a temática para desafiar a eficácia de uma política que, em respeito às diferenças, não incorra na perpetuação da discriminação.

BIBLIOGRAFIA CUNHA, Sérgio Sérvulo da. Princípios constitucionais. São Paulo: Saraiva, 2006. DUARTE, Alessandra. Censo 2010: população do Brasil deixa de ser predominantemente branca. In: O Globo política. Disponível em: <http://oglobo. globo.com/politica/censo-2010-populacao-do-brasil-deixa-de-serpredominan temente-branca-2789597#ixzz1L0J5Priu>. Acesso em: 31 mai 2011. FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. 3. ed. São Paulo: Ática, 1978, Vol. 1, p. 247 e 248. FILHO, Agassiz Almeida. & BARROS, Vinícius Soares de Campos (orgs.). Novo manual de ciência política. São Paulo: Malheiros, 2008. FREYRE,Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 51. ed. São Paulo: Global, 2006. MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue: história do pensamento racial. São Paulo: Contexto, 2009. _______. O país dos impuros. In: Instituto Millenium. Disponível em: <http:// www.imil.org.br/artigos/o-pais-dos-impuros/>. Acesso em 31 mai 2011. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. PERRAULT, Gilles (ORG.). O livro negro do capitalismo. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2000. 1 FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. 3. ed. São Paulo: Ática, 1978, Vol. 1, p. 247 e 248. 2 MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue: história do pensamento racial. São Paulo: Contexto, 2009, p. 101. 3 Gaines, 1996. apud: PAC, Robert. Estados Unidos: o sonho inacabado: A longa marcha dos afro-americanos. in: PERRAULT, Gilles (ORG.). O livro negro do capitalismo. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 345-346. 4 MAGNOLI, Demétrio. op. cit., p. 88. 5 FREYRE,Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 51. ed. São Paulo: Global, 2006. p. 367. 6 DUARTE, Alessandra. Censo 2010: população do Brasil deixa de ser predominantemente branca. In: O Globo política. Disponível em: < http://oglobo.globo.com/politica/censo-2010-populacao-do-brasil-deixa-de-ser-predominantemente-branca-2789597#ixzz1L0J5Priu>. Acesso em: 31 mai 2011.

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7 MAGNOLI, Demétrio. O país dos impuros. In: Instituto Millenium. Disponível em: <http://www.imil. org.br/artigos/o-pais-dos-impuros/>. Acesso em 31 mai 2011. 8 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 12. 9 CUNHA, Sérgio Sérvulo da. Princípios constitucionais. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 129-129. 10 MAGNOLI, op. cit., p. 92. 11 NEDEL, José. A teoria da justiça de John Rawls – um esboço. In: FILHO, Agassiz Almeida. & BARROS, Vinícius Soares de Campos (orgs.). Novo manual de ciência política. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 491-492.

T H E S TAT U T E O F R AC I A L E Q UA L I T Y: A F F I R M AT I V E AC T I O N S O F E T H N I C INTEGRATION OR REVERSE DISCRIMINATION POLICIES? ABSTRACT This study aims at questioning the social, cultural and citizen effectiveness of affirmative action policies in Brazil, more precisely, under Law No. 12288 of July 20th, 2010, the Statute of Racial Equality. The goals of the article are, from a multidisciplinary analysis, to verify if there is a real possibility that such policies encourage equality among ethnicities and correct the historical errors of slavery and discrimination against black persons, as well as the risk of promoting a division in Brazilian society, thus perpetuating racism through reverse discrimination of traditionally oppressed groups in the country, besides limiting the cultural citizenship of African descendants by maintaining the usual paternalistic and all-encompassing welfare state mentality in Brazilian politics. Keywords: Race. Ethnicity. Discrimination. Equality. Citizenship.

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O Papel do Juiz na Tentativa de Pacificação Social: a Importância das Técnicas de Conciliação e Mediação José Herval Sampaio Júnior* 1 Delimitação do Tema e Considerações Iniciais Sobre a Atividade Judicial com Vista à Obtenção da Pacificação Social. 2 Meios Alternativos de Solução de Conflitos e Suas Vantagens. 3 Distinção Entre Conciliação e Mediação. 4 Utilização Pelo Magistrado das Técnicas de Conciliação e Mediação. 5 Limites Formais e Materiais Para o Uso da Mediação e Conciliação Pelos Juízes. 6 Mediação Familiar e a Atuação Judicial. 7 Conclusões. Bibliografia.

RESUMO O trabalho enfoca o papel do Juiz na busca incessante pela pacificação social, escopo maior da Jurisdição, tutelando os direitos, por meio da utilização de meios alternativos de solução de conflitos, mais precisamente a conciliação e mediação. Abordam-se as diferenças entre tais institutos, enfatizando a pouca aplicabilidade de ambos, em que pese a expressa previsão legal da conciliação - o que não ocorre com a mediação - principalmente pela autoridade judiciária. Prioriza-se a necessidade de que os Juízes se conscientizem de que esses meios são mais eficazes, devendo o Poder Judiciário se estruturar melhor com esse objetivo, criando ambientes que propiciem a solução consensual dos litígios, despindo-se dos dogmas atuais que torneiam o tema. Palavras-Chave: Pacificação Social. Técnicas de Mediação e Conciliação. Jurisdição Consensual. 1 DELIMITAÇÃO DO TEMA E CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE A ATIVIDADE JUDICIAL COM VISTA À OBTENÇÃO DA PACIFICAÇÃO SOCIAL A jurisdição hodiernamente vem sofrendo profunda alteração na sua compreensão e, por conseguinte, condicionando os seus resultados, principalmente * Professor da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN, Universidade Potiguar - UNP, Escola da Magistratura do Rio Grande do Norte - ESMARN. Especialista em Processo Civil e Penal ESMARN/UNP. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR. Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade Del Pais Basco/UNP. Coordenador do Curso de Especialização em Direitos Humanos da UERN. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual - IBDP. Juiz de Direito no Estado do Rio Grande do Norte. E-mail: hervaljunior@tjrn.jusc.br R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.153-181, jan./dez. 2011

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o atinente a tentativa de obter a almejada pacificação social e para tanto suas premissas estão sendo repensadas, já que esta, pelo menos através da sentença, só poderia ser satisfeita, evidentemente, para somente a parte vencedora, por uma efetiva tutela dos direitos violados ou ameaçados, na forma do preconizado no artigo 5º inciso XXXV de nossa Carta Magna.1 Entretanto, em que pese todo esse esforço para se alcançar uma atividade jurisdicional que se preocupe, em cada caso concreto, com uma substancial proteção dos direitos, talvez, a solução consensual dos conflitos seja um modo mais eficiente, pelo menos, no aspecto de se atingir a uma verdadeira pacificação social, pois em não havendo vencedor e perdedor, as chances de uma continuidade de relação pós-lide são bem maiores e mesmos em casos que não se exige a continuidade do relacionamento, o acordo gera uma sensação de maior satisfatividade e muitas vezes a certeza do cumprimento da obrigação. É nesse sentido que se prega a necessidade de que o Juiz passe a se preocupar com a pacificação social em todas as suas decisões, ou melhor, esclarecendo, nas suas atitudes dentro do processo, pois como a direção é sua, nada mais lógico de que se conduza sempre com a visão de que não é com a sentença, mesmo de mérito, que aquele conflito, no plano fático, estará materialmente solucionado, já que a idéia de que a sentença põe fim ao litígio é ilusória e até mesmo ao processo, não necessariamente o finaliza consoante recente mudança advinda pela Lei 11.232/05.2 Desta forma, a preocupação constante com uma efetiva satisfação social dos contendores deve ser uma busca incessante da autoridade judiciária e a sentença, ao qual infelizmente se encontra falida3 na consecução desse objetivo, somente deve ser utilizada quando não for possível qualquer forma de negociação em sentido amplo, já que não existe vedação legal nesse tocante, pelo contrário, as legislações atuais prestigiam muito a auto-composição das lides, principalmente a conciliação.4 A realidade é dura, mas tem que ser encarada por todos aqueles que laboram com o Direito, pois, na maioria das vezes, a sentença não só não resolve o problema específico do litígio, mas ainda cria outros conflitos, que inviabilizam completamente qualquer possibilidade de solução amigável, criando uma ambiente de litigiosidade, que dificilmente vai ser desconstruído, logo, a perspectiva deve ser sempre de paz e harmonia, mesmo entre os que litigam, pois o conflito é ínsito ao ser humano e tem o seu lado bom, na qual o Juiz, como intermediário das partes, deve estimulá-las a reconhecerem e encontrarem a melhor solução ou até mesmo sugerir essas resoluções. Os Juízes precisam se desprender dessa concepção de que sua tarefa precípua é decidir e que a tentativa de conciliação prevista nos procedimentos é somente uma formalidade. Ora, o processo não pode ser compreendido nunca como um fim em si mesmo, daí porque todas suas previsões têm um objetivo claro e definido, qual seja assegurar que os contendores solucionem a sua pendenga 154

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de forma que a pacificação social reste atingida.5 Essa premissa não vem sendo sentida pelos operários do direito6, o que pode ser amenizada com a inserção de todos os meios alternativos de solução dos conflitos. Acrescente-se, ainda, que essa preocupação constante com a pacificação social efetiva, por meio de uma solução consensual, resolve outro problema grande da prestação jurisdicional, qual seja a morosidade infensa a todos os procedimentos e que inquieta sobremaneira à sociedade quanto à atuação judicial, pois o que interessa para alguém que seja reconhecido como titular de um dado direito, é o pronto restabelecimento de forma específica e a Justiça infelizmente não vem conseguindo e muitas vezes em razão da demora da entrega da prestação jurisdicional, esta não é efetiva no sentido de satisfazer pelo menos ao vencedor.7 Por todos esses motivos, não resta dúvida alguma de que o prestígio a jurisdição consensual não traz nenhum malefício aos desígnios dessa função tão cara a sociedade, devendo, por conseguinte, ser prestigiada em todos os sentidos, como felizmente vislumbrou recentemente o Conselho Nacional de Justiça, ao lançar o dia nacional da conciliação e ao instituir um projeto de estruturação de todo o Poder Judiciário para obtenção de uma solução amigável entre os litigantes judiciais, até mesmo antes de o processo formalmente ser instaurado.8 Pensar em uma atividade jurisdicional que não vise obrigatoriamente a pacificação social é tratar essa função pública com descaso, pois todo o agir das autoridades em geral devem aspirar ao bem comum e este só é atingido com uma solução efetivamente satisfatória para ambas as partes, mesmo que uma das partes perca processualmente falando, mas que fique consciente de seus erros. Destarte, quando se utiliza das formas de auto-composição, as partes chegam a um consenso, ciente destes erros e infelizmente a sentença quase nunca os transmite, substancialmente falando, principalmente por sua linguagem técnica excessiva. Nessa conjuntura, acredita-se que a Justiça de um modo geral, ou seja, todos aqueles que laboram com o direito e até mesmo os próprios litigantes devem se imiscuir de um espírito de pacificação social, pois não se pode sempre tratar o conflito como algo negativo, sendo imperioso a análise de que, através de um bom diálogo quase sempre se atinge uma boa solução e principalmente a satisfação dos que contendem é cristalina. 2 MEIOS ALTERNATIVOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS E SUAS VANTAGENS Já ficou evidente pelas colocações firmadas, que infelizmente a sentença não vem conseguindo atingir a almejada pacificação social, indispensável quando do surgimento de um conflito, daí porque se apresentam com esse desiderato alguns meios alternativos, que primam pelo aspecto da democracia participativa, R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.153-181, jan./dez. 2011

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responsabilizando-se os próprios envolvidos pela solução, já que se estes a encontram, essa premissa, por si só, já se alinha com o escopo de satisfação social. Nesse contexto, interessa ao presente escrito a análise dos meios de solução dos conflitos - ditos democráticos em razão das próprias partes em disputa resolverem as diferenças - o que se convencionou chamar de auto-composição e na qual se depreende que, dentre eles, a conciliação e a mediação tem oportuna possibilidade de direta aplicação na atividade dos Juízes, desde que seja desconstruída a idéia de adversariedade e surja em conseqüência a eficaz cooperação entre os interessados. Esse desafio não é difícil de ser cumprido, pois as condições normativas são amplamente favoráveis, inclusive de nossa Carta Magna9, daí porque o que falta é a conscientização dessa eficácia quanto ao resultado harmonioso da solução e se começar a aplicar as técnicas existentes na praxe forense, sem se descurar evidentemente de sua posição diretiva, contudo, esta não inviabiliza a adoção dessa nova postura. A negociação é por excelência a forma mais conhecida de solução dos conflitos onde as próprias partes, sem qualquer tipo de interferência de uma terceira pessoa - daí a sua distinção com a conciliação e mediação – resolvem o seu litígio através de um acordo após conversação das diferenças. Historicamente, é o modo mais antigo de resolução de desavenças e tem a nítida vantagem de propiciar a continuidade do relacionamento entre os envolvido, pois sequer foi necessário um interventor.10 Por outro lado, percebe-se, claramente, a impossibilidade da utilização pelo Magistrado, em razão de que por esta via, mesmo que existente já um processo, a iniciativa e efetiva solução é dos próprios envolvidos, logo, o que pode ser feito pelo Juiz é uma instigação a que as partes se sentem numa mesa de negociação para chegarem a um consenso. Já a conciliação é a maneira clássica de solução amigável dos litígios quando já existe um processo ou até mesmo antes dele, principalmente pelas propostas já enunciadas do Conselho Nacional de Justiça, onde um terceiro, que pode ser o Juiz – essa é a idéia principal – formule uma resolução que seja aceita pelas partes, através de propostas das mesmas, ou também por sugestão do terceiro, sendo bastante prestigiada na legislação, inclusive penal. Essa forma de solução vem sendo largamente aplicada e com muito sucesso no que tange à pacificação social e rápida resolução, devendo, por isso, ser mais bem estudada para que se crie a almejada cultura de consensualização dos litígios como prioridade. A mediação, por sua vez, não se preocupa tão-somente com a resolução do conflito posto em evidência e a sua característica principal consiste de que a participação do terceiro, que também pode ser o Juiz, é estimuladora para que os interessados encontrem a melhor solução, prestigiando a continuidade do 156

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relacionamento. Sua eficácia de satisfação social é bem mais evidente do que na conciliação, como será visto no capítulo seguinte. A par dessas considerações, vislumbra-se que esses meios democráticos de solução dos conflitos devem permear a atividade jurisdicional de modo que se transforme em uma prática constante e não somente se cumpra mais uma formalidade, pois como já sentido nessas primeiras linhas, a sua efetividade quanto à pacificação social é bem mais intensa do que a sentença, o que por si só, já justificaria essa mudança de paradigma, contudo, outras vantagens podem ser percebidas, dentre elas, a já citada, mas sempre importante celeridade na resolução do litígio, valor dos mais buscados pela sociedade em geral. Por fim, ainda se pode trazer como vantagens da utilização desses meios alternativos de solução dos conflitos, a responsabilização dos envolvidos pela decisão, o que prestigia a democracia, a igualdade de tratamento, a solidariedade, a prevenção de novos litígios, a harmonização e talvez a mais significativa, a própria transformação social, pois quando as partes resolvem amigavelmente uma contenda, acabam retirando muitas lições que representam um avanço nos seus ideais, construindo uma nova realidade.11 Desta forma, patente que esses meios são muito eficientes em várias nuances, o que já legitima a adoção integral dos mesmos, pelo menos, como complemento dessa nova concepção de jurisdição constitucional, que como visto, não pode ter preocupações formais e sim resultados materiais de ampla satisfação no plano fático.12 3 DISTINÇÃO ENTRE CONCILIAÇÃO E MEDIAÇÃO No tópico anterior propositadamente foram expostas de modo perfunctório a compreensão dos institutos da conciliação e mediação, tendo se ressaltado as suas convergências e apontado algumas das diferenças, sendo imperioso que se debruce com mais vagar nesse tocante. Primeiro, foi visto que na conciliação o terceiro acaba propondo o acordo, ou seja, de alguma forma participa, mesmo que indiretamente da solução, que é aceita pelas partes, enquanto que na mediação essa solução é encontrada, através do diálogo constante pelos próprios envolvidos, só havendo intermediação do terceiro, enfatizando, por obvio, que o Magistrado se encaixa nesses dois perfis. Na conciliação13, que tem como objetivo precípuo tão-somente a solução específica do conflito, o terceiro sempre está propondo as alternativas de resoluções, a partir das peculiaridades de cada caso, o que denota sua maior intervenção na solução propriamente dita e por conseqüência uma participação mais intensa quanto à responsabilidade da solução do conflito, sem evidentemente, se impor qualquer decisão, já que a consensualidade é inerente a ambos os institutos. Já no que concerne à mediação, vislumbra-se que a importância das partes R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.153-181, jan./dez. 2011

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com relação ao terceiro é bem mais evidente, visto que a responsabilização pela solução encontrada pelos mesmos é deles, o que informa uma maior participação, ressaltando-se, destarte, que esse modo ainda é mais democrático. Também é de se apontar que como os interessados são estimulados a dialogar e tentar entender o lado do outro, a solução, quase sempre, prima não só pela resolução em específico do litígio, mas com a continuidade do relacionamento.14 A par dessas primeiras ponderações de distinção, já se verifica que os dois modos devem ser utilizados de acordo com o objeto da lide, pois se não há um relacionamento anterior entre os envolvidos, como por exemplo, um acidente de trânsito entre desconhecidos, a conciliação parece ser o meio mais eficaz e até mesmo, dependendo do modo de condução e técnicas usadas, pode se estimular uma amizade. Noutro quadrante, se a lide trata de um conflito interpessoal entre pessoas ligadas por um sentimento e que acaba envolvendo uma relação patrimonial, a mediação se afigura como o instrumento mais eficaz, já que a visão do mediador não deverá ser somente solucionar aquele problema, porém, permitir que os litigantes possam, entendendo suas diferenças, manter uma relação, no mínimo, amistosa, atingindo, com mais sucesso, a pacificação social. Desta forma, analisando com essa visão mais acurada, pode-se depreender facilmente que esses modos de compor um conflito tanto pode ser utilizado se já houver um processo, pelo Juiz ou seu auxiliar, ou até mesmo antes de se instaurar um processo, o que se afigura ainda mais benéfico, ressalvando, que se por acaso, dentro de um processo judicial se tentar a solução, por um desses meios, deve se despir daquela idéia de adversariedade, prestigiando sempre a cooperação e o diálogo. Nesse diapasão, ainda se pode ressaltar como distinção entre os dois modos, que a conciliação é prevista expressamente na legislação processual civil, trabalhista e até mesmo penal em alguns casos, pois como o Poder Público de algum modo interfere no mérito, contudo, sem decidir, parece que esse meio fora priorizado, o que não se entende cientificamente falando, já que na mediação, apesar de não haver essa interferência, o trabalho e até mesmo importância da figura do mediador é bem mais relevante do que a do conciliador, conforme será percebido quando do estudo das técnicas. A mediação também previne com muita mais eficácia a possibilidade de novos conflitos, já que a conversação é priorizada e a decisão é das próprias partes, logo, a dificuldade para não haver seu cumprimento é bem menor do que na conciliação, até mesmo, pela natureza das causas que a ela são submetidas. Ressalve-se, por ser esse o objetivo desse artigo, que tanto a conciliação como a mediação quanto ao cumprimento do acordado, são mais eficazes, nesse quadrante, do que as decisões jurisdicionais, o que deve ser levado em consi158

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O Papel do Juiz na Tentativa de Pacificação Social: a Importância das Técnicas de Conciliação e Mediação

deração em razão do movimento de algum tempo pela efetividade do processo. Para fechar o raciocínio até o momento ofertado no que tange à eficácia desses modos para a obtenção da pacificação social, em especial através da mediação, que, como visto, de forma mais intensa alcança tal escopo, é importante a transcrição do pensamento das estudiosas do assunto, Lília Maia de Morais Sales e Mônica Carvalho Vasconcelos in albis: Em uma sociedade tão dividida e intolerante, necessário se faz a utilização de mecanismos que proporcionem a compreensão do mundo como multicultural e multifacetado, tais como a mediação de conflitos. Essa compreensão traz grandes benefícios também para a área social, visto que promove a inclusão e pacificação sociais...Nesse enfoque a mediação visa a pacificação social. Note-se que essa pacificação não significa a ausência de conflitos. Como já explicado, os conflitos são necessários e, se resolvidos adequadamente, promovem crescimento. Fala-se em paz em um sentido amplo, que pressupõe como elemento primordial a comunicação; o diálogo cooperativo.15

Na esteira do preconizado acima, em que pese as diferenças entre os dois institutos, duas conclusões parecem cristalinas; a primeira no sentido de que as suas características, em momento algum, inviabiliza a sua profícua utilização pelos juízes; a segunda é de que os conflitos, mesmo aqueles já judicializados devem ser analisados sob a ótica positiva, pois como ambos institutos prestigiam o diálogo - com mais veemência a mediação – sempre consegue se obter ganhos para os envolvidos16, que crescem a cada conflito e principalmente quando encontram, por si sós, a solução. Por fim, ainda é oportuno reforçar que a mediação proporciona uma maior participação17 dos envolvidos na solução dos conflitos, dando-os auto confiança e autodeterminação para a execução de suas demais tarefas pessoais, já que quando se envolvem valores e sentimentos, como patente restou esclarecido quanto à mediação, os conflitos reais surgem em detrimentos dos aparentes, desconstruíndo aquela infame idéia de que no final existe um vencedor e por conseqüência um perdedor e isto não é realidade, já que na mediação, com mais clareza, verifica-se que a idéia é o ganha-ganha para os dois lados. 4 UTILIZAÇÃO PELO MAGISTRADO DAS TÉCNICAS DE CONCILIAÇÃO E MEDIAÇÃO De tudo quanto já fora dito, vislumbra-se que a conciliação e mediação não são instrumentos que venham a competir com o Poder Judiciário, pois não há qualquer elemento, que de um modo geral, possa excluir suas aplicações, ressalvando, contudo, os limites que serão analisados no tópico seguinte, já que uma certeza parece evidente, de que nada é absoluto. Desta maneira, em havendo total permissividade e conveniência para R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.153-181, jan./dez. 2011

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suas utilizações, faz-se necessário e até mesmo imprescindível, em termos de resultados positivos para se atingir a pacificação social, de que os Juízes conheçam as técnicas de conciliação e mediação que os orientarão para um bom desempenho dessa atividade. Em que pese os estudiosos não se referirem a esse primeiro elemento como técnica, entende-se pertinente que para ambos os institutos, deve a autoridade judiciária ou seus auxiliares se preocuparem em criar um ambiente para a solução amigável, de modo que aquela postura e indicações de adversariedade sejam esquecidas e os envolvidos se sintam bem a vontade para dialogar, quebrando os protocolos formais que acabam os intimidando, para tanto, devem se despir daquele sentimento de superioridade e tentar conversar de igual para igual. Nesse sentido, ainda se deve pensar que o espaço físico seja agradável e que a posição de um em frente ao outro pode inibir o acordo, logo, o ideal é que todos fiquem sentados em círculo como se estivessem conversando normalmente, sem aquele ar de litígio, muito comum nas salas de audiência dos fóruns. Não está se dizendo que deve necessariamente se criar uma sala em específico para esses diálogos, mas, na medida do possível, mudar o ambiente tradicional já vai ser um grande passo.18 Desta forma, faz-se necessário que o Poder Judiciário adapte-se a essa nova realidade, que como dito, não tem qualquer elemento de exclusão quanto aos procedimentos já existentes na Justiça, motivo pelo qual os Juizes, antes mesmo das técnicas, precisam saber de modo cristalino seus desafios na conciliação e mediação, ficando claro que para a primeira, as coisas são mais simples, pelo seu próprio objetivo e natureza dos conflitos que a envolvem, e essa distinção, no final das contas, vai fazer a diferença, não somente quanto às técnicas, mas principalmente pelo modo de condução e objetivo final de cada instituto. A conciliação tem uma vantagem sobre a mediação em termos legais para fins de sua imediata aplicação, ou melhor, dizendo, completa observação, pois se constitui como direito das partes de poderem conversar com o fim de se chegar a um acordo, já que em todos os procedimentos judiciais deve o Juiz tentá-la a qualquer momento, afora as previsões específicas nesse sentido - principalmente a do procedimento considerado padrão, o ordinário - que na audiência preliminar determina que se inicie com a conciliação, não sendo lógico que essa atividade se subsuma a perguntar as partes se tem acordo. Pensar dessa maneira é tratar o processo como despresivo a dignidade da pessoa humana. Entretanto, alguns desafios são bem claros, pelo menos quanto à conciliação: primeiro, como se preparar tecnicamente quando você não tem muito tempo; segundo, como descobrir os verdadeiros interesses envolvidos no conflito e saber o que realmente o outro lado quer; terceiro, como se posicionar diante de um não - que é tão comum pelo menos no início das conversações -; quarto, como criar uma opção que facilite a outra parte dizer sim, sem entrar no mérito e de nenhum modo forçar a parte; quinto, como gerar soluções para se obter 160

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ganho mútuo, dentre outros, que surgem em cada caso. Desta forma, parece que somente a utilização correta das técnicas conduzirá a uma eficaz solução e esses obstáculos serão facilmente enfrentados e transpostos. Os estudiosos do tema trazem inúmeras técnicas, muitas vezes, distintas umas das outras, somente pela nomenclatura, as vezes com acréscimos não vistos em uma técnica, por conseguinte, criando outras, motivo pelo qual, a experiência do subscritor comungada com essas idéias é o que se vislumbrará nesse trabalho. Quanto à conciliação, podem-se enunciar as seguintes: primeiro, as pessoas devem ser conscientizadas da importância e o resultado prático do ato de conciliar, principalmente a satisfação social e o conseqüente cumprimento do acordado, para tanto, o Juiz deve conversar genericamente nesse sentido; segundo, saber resumir as idéias, de modo a destacar as convergências, terceiro, ser bastante flexível ao lidar com o nível cultural das partes; quarto, dar o direito de todos falarem, mas respeitando sempre que cada um fala, sem interrupção do outro; quinto, ter a mente aberta e receptiva para ouvir, sem que seus juízos de valores, de algum modo, inibam as partes de se abrir, já que essa escuta, chamada de ativa, também pode ser eficaz na conciliação, visto que na mediação é imprescindível. Sexto, a linguagem deve ser a mais simples possível, evitando os “juridiques”; sétimo, deve ter uma postura calma e serena, em que a sua autoridade não se imponha pelo cargo e sim pelo modo de conduzir e se portar perante as partes; oitavo, deve estudar previamente o caso antes do encontro, de modo que conhecendo os anseios e resistência, tenha melhores condições de propor uma solução; nono, na medida do possível e sem exageros ou emissão de posição pessoal, destacar como a jurisprudência e a lei tratam da situação em tese, pois essa explicação esclarece muitos dos pontos controvertidos, que inclusive devem ser fixados antes mesmo da tentativa de conciliação, evidentemente sem preocupação técnica, já que servirá tão-somente para subsidiar o ato consensual; décimo, quando for o caso, com o mesmo escopo da anterior, enunciar conciliações anteriores sobre a mesma situação jurídica, sem contudo emitir qualquer posição meritória, ou seja, tudo em tese.19 Ressalve-se, contudo, que essas são algumas das técnicas e dependendo da situação, outras específicas devem ser implementadas em cada caso concreto, contudo, o mais importante é a conscientização dos Juízes do uso dessas técnicas e o espírito de conciliação a qual deve reinar até o último momento em que se possa atingir o acordo. Por fim, quanto à conciliação e até mesmo já servindo para a mediação, é imperioso que se destaque o que o Juiz, no exercício dessas funções consensuais, não pode ser: confuso, indeciso, agressivo e emotivo, visto que tais situações emocionais deixam as partes instáveis e descredibilizam à atuação judicial, podendo gerar desconfiança e com isso, uma das partes ou todas, não quererem R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.153-181, jan./dez. 2011

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sequer começar ou continuar o ato de tentativa da solução amigável. Também, não podem os Juízes realizar algumas condutas, como, por exemplo; de modo algum, coagir as partes a acordar sobre o que não desejam; redigir o acordo de forma que não expresse a real vontade das partes; não entregar o termo de acordo para as partes assinarem, sem que seja lido em voz alta; propor acordo que tem ciência que uma das partes não pode cumprir; permitir acordo que tenha clausula leonina; não permitir composição em processo na qual estejam as partes dele se servindo para fins escusos ou ilegais; conduzir o debate de forma atribulada, indo e voltando a pontos já discutidos; sugerir, de plano, sem provocação das partes, acordo que possa ser bom para as partes, já que nesse caso, dependendo dos litigantes, pode ser que um deles fique desconfiado de que o Juiz esteja prestigiando uma das partes.20 Enfim, percebe-se que a atuação judicial, do mesmo modo de que em sua atividade precípua de julgar e materializar suas decisões, bem assim tomar providências acauteladoras, deve transmitir aos interessados uma posição de equilíbrio e neutralidade, tudo para que a confiança no Juiz seja uma premissa básica e intangível em todo o processo de tentativa de se obter o acordo. A par dessas colocações, parece que não é tão difícil que os Juízes passem a ter essa consciência e com ela pratiquem o hábito de tentar a conciliação em todos os momentos, inclusive até mesmo antes da citação ou deliberação de uma medida liminar, como já visto ocorrer em alguns processos com bastante êxito, desde que não se esqueçam que as técnicas lhe auxiliarão não só para se realizar e materializar o acordo, bem como para a garantia de que o mesmo se concretizou a partir da livre vontade dos envolvidos. Ainda é oportuno que se esclareça na linha de tudo quanto já foi ponderado, que os Juízes não podem ter aquela idéia infame de que um processo conciliado não conta como pronunciamento judicial para fins de estatística, visto que tal pensamento é muito pequeno para sopesar com os escopos da atividade jurisdicional, que até mesmo não se limita ao jurídico, incluindo-se o político e econômico, afora o mais importante, que é a pacificação social.21 No que tange à mediação, instrumento infelizmente pouco conhecido da prática judicial, não havendo ainda legislação específica nesse sentido, o que dificulta ainda mais a sua operabilidade, deve-se, com mais intensidade, se desprender dos preconceitos e passar o Juiz a entender que o processo lida com vida humana e, por conseguinte, com emoções, drama, sentimentos, ou seja, tudo que envolve as subjetividades, logo, nesses casos, principalmente de família, somente o diálogo constante e cooperativo vai encontrar uma solução duradoura para o conflito, que na maioria das vezes é aparente, dificultando até mesmo a solução amigável. Como já visto, a mediação é tida como uma atividade de intermediação, logo, o Juiz não pode ser Juiz e nem sequer árbitro, ou melhor, nem mesmo conciliador, já que a solução deve ser encontrada naturalmente pelas partes envolvidas 162

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nos conflitos, sem qualquer tipo de imposição, o que se apresenta como uma peculariedade que marca todo esse procedimento e na qual, desde já, se vislumbra que algumas das técnicas de conciliação não podem ser usadas pelo Mediador. Antes de se tecer os comentários sobre as técnicas propriamente ditas, torna-se imprescindível que se fale sobre os princípios que a regem, bem assim as fases desse procedimento, que pode ser judicial ou não, contudo, não se pode ter qualquer tipo de formalidade. Quanto aos princípios, é sábia a lição de Fernando Horta: A mediação pode ocorrer dentro de um processo judicial, ou fora dele, aquela endoprocessual, esta, extra processual, e se caracteriza pela observância dos seguintes princípios, assim resumidos: - Voluntariedade: aceitação por livre iniciativa ou aceitação das partes. Significa a disposição de cooperação para o objetivo da mediação.- Não adversariedade: não competição das partes, as quais não objetivam ganhar ou perder, mas solucionar o problema.- Intervenção neutra de terceiros: terceira parte, catalisadora das soluções. – Neutralidade:não interferência no mérito das questões. – Imparcialidade: isto é, ausência de favoritismo ou preconceitos com relação a palavras, ações ou aparência, significando, por parte do mediador, um compromisso de ajuda a todas as partes, por parte do mediador, um compromisso de ajuda a todas as partes e na manutenção desta imparcialidade no levantamento de questões, ao considerar temas como justiça, equidade e viabilidade de opções propostas para acordo. - Autoridade das partes: poder de decisão sobre as questões em disputa, já que são elas as responsáveis pelos resultados e pelo próprio andamento do processo. – Flexibilidade do processo: a mediação não é um processo rígido, uma vez que não está restrita à aplicação de normas genéricas e pré-estabelecidas e sua estruturação depende, basicamente, das partes e dos procedimentos por elas próprias escolhidas. – Informalidade, que se caracteriza pela ausência de estrutura e inexistência de conformidade a qualquer norma substantiva ou de procedimento. – Privacidade: a vontade das partes se manifesta de maneira autônoma, baseadas em interesse privados, no âmbito privado. – Consensualidade, no sentido de não haver uma decisão imposta às partes. Leva–se em consideração o resultado de deliberação das partes e desta vontade é que extrairá a sujeição ao acordo daí surgido. – Confidencialidade, que é um dos princípios norteadores da mediação. As informações são restritas ao âmbito das partes e do interventor. Salvo restritas eventualidades (por exemplo, os próprios sujeitos darem publicidade ao processo ou às decisões, visto que tem liberdade para tal), nada pode ser utilizado em juízo ou ter publicidade. Negrito nosso. 22

Vê-se, que esses princípios não podem ser olvidados em nenhum momento pelos Juízes, já que a mediação possui um objetivo que nunca foi a preocupação R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.153-181, jan./dez. 2011

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central da justiça, qual seja, a continuidade do relacionamento entre os contendores, daí porque, o Juiz como mediador, além de se despir da visão tradicional de compor o litígio pela decisão, deve também atuar um pouco como analista23, tudo para compreender as diferenças junto com as partes, pois a atividade de estimulação da solução necessita do que se chama de uma escuta ativa, ou seja, uma participação que não é central, mas decisiva para o sucesso do diálogo e do acordo a ser implementado. Afora a importância desses princípios, também é imperioso que o Juiz, enquanto mediador atente para as fases materiais desse procedimento, em que pese a sua informalidade e não especificação legal, ressalvando, desde já, que a sua rigorosa observação não se faz necessária, visto que alguns casos podem determinar a supressão de algumas dessas etapas, ou até mesmo o estilo do Mediador. 24 Primeiro, deve o Juiz se apresentar como mediador e expor detalhadamente as regras, esclarecendo bem que o mesmo não vai decidir nada e que sua atuação naquela situação difere totalmente de suas ações ou omissões como Juiz propriamente dito. Depois, os envolvidos do processo expõem os seus problemas e não necessariamente deve se cingir às colocações da inicial ou contestação, se houver, já que não há qualquer vinculação com o processo e suas formalidades. Em seguida, o Magistrado faz um resumo minucioso e sem qualquer conotação pessoal, ressalvando as convergências e ordena pela primeira vez o problema, já tentando acertar quanto ao conflito real, se houver. Complementado a fase anterior, o Juiz deverá descobrir os interesses ainda ocultos, pois como se trata, na maioria das vezes, de sentimentos e valores magoados ou pelo menos esquecidos, os conflitos aparentes podem esconder verdadeiramente o problema, logo, a percepção do magistrado deve ser acurada. Empós, a fase mais importante e que na realidade não necessariamente deve ser seguida essa ordem cronológica, qual seja, a estimulação propriamente dita, com a atividade de se permitir que as partes iniciem a geração das idéias para a resolução dos problemas, começando os acordos parciais. Por fim, deve ser materializado o acordo final, em que as partes acabam chegando ao consenso justamente porque passam a entender suas diferenças e se sentem importantes, porque acabam se descobrindo.25 Após essas considerações, é relevante que se destaquem algumas das técnicas de mediação, devendo ser feita a mesma ressalva das já enunciadas quanto à conciliação, pois vários autores tratam do tema e não há uniformidade, motivo pelo qual se priorizou aquelas que os Juízes, com certeza, podem realizar com mais facilidade.

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As técnicas que podem ser utilizadas pelos Magistrados, levando em consideração as premissas já postas, são as seguintes: apontar, descrever e investigar os pontos de atrito, de forma que não se discuta o que já seja aceito pelos litigantes; coordenar a discussão entre as partes mediadas, cooperando e ajudando a discutir com respeito; ressaltar as convergências e divergências, sugerindo opções para o superamento destas, contudo, não se pode propor a solução, porque nesse caso seria uma conciliação; Motivar a criatividade, na procura de soluções. Auxiliar as partes a descobrirem seus reais interesses, permitindo que o acordo seja justo, eqüitativo e duradouro, logo não há como pensar em desigualdade entre as partes; permitir a livre expressão emocional, motivo pelo qual não deve o Juiz interferir na fala da parte, sem que seja um esclarecimento, pois a sua principal função é ouvir, de forma ativa evidentemente; utilizar uma escuta ativa para verificar a sinceridade das emoções; em alguns casos, utilizar sessões privadas com apenas uma das partes, desde que também o outro tenha o mesmo contato – é o que se chama de “caucus” 26; É importante não perder o controle da situação; também deve manter a ordem mediante uma regra basilar: “uma pessoa fala de cada vez; utilizar parafraseamento: ouvir e repetir conceitos usando palavras diferentes; trabalhar uma questão de cada vez; conclamar as partes para expressarem seus sentimentos com lealdade de forma que o conciliador possa sugerir uma opção de solução que atenda as partes; sugerir uma parada nas negociações quando o clima estiver tenso.27 Ressalve-se, que todas essas técnicas - apesar de extremamente importantes – não devem ser valorizadas, da mesma forma que as vezes se prestigiam as formalidades, pois o fim maior deve ser sempre lembrado, qual seja, que as partes consigam encontrar uma solução de consenso que evidencie a continuidade do relacionamento e a autodeterminação das mesmas, visto que esse instrumento se perfectibiliza como um elemento concretizador da democracia.28 A par de todas essas colocações sobre os princípios, técnicas e até mesmo fases ou etapas com relação à mediação e conciliação – as quais acabam se imbricando – justamente por seus elementos comuns, vislumbra-se, de forma clarividente, que os Juízes, de um modo geral, mesmo naqueles casos em que envolvam direitos indisponíveis29, devem utilizar essas formas alternativas de solução dos conflitos, sem as suas tradicionais regras30, pois se assim ocorrer, pode-se afirmar, que tal atitude vai ser igual a não tentativa de uma solução amigável. 5 LIMITES FORMAIS E MATERIAIS PARA O USO DA MEDIAÇÃO E CONCILIAÇÃO PELOS JUÍZES Como tudo na vida é relativo, nada mais natural de que haja limitações nessa atividade dos magistrados, em que pese todas as vantagens desses institutos e suas informalidades, todavia, muitas situações inviabilizam por completo, R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.153-181, jan./dez. 2011

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tanto a conciliação quanto a mediação, não só pela natureza desses métodos, bem como a própria essência de algumas matérias dos conflitos e a própria estrutura do Poder Judiciário, logo, essa análise torna-se imprescindível, visto que em alguns casos a almejada pacificação social somente vai ser alcançada por uma atuação mais firme e decisiva da Justiça, que, como percebido, não se coaduna com os institutos em exame. Nesse sentido, nem sempre é possível que os Juízes se utilizem desses meios alternativos de solução dos conflitos, quer por limitação formal quer material. Quanto ao primeiro aspecto, é cediço que o ordenamento jurídico, em relação a algumas matérias, não admite conciliação e muito menos mediação, como por exemplo, a maioria esmagadora dos delitos penais.31 Quando ocorre tal tipo de ilícito, por mais que vítima e acusado tenham chegado a um consenso quanto ao fato analisado na Justiça, somente essa tem competência para solucionar esse caso, pois a sociedade se sente lesada e esse bem jurídico é protegido pela legislação, logo o acordo não vai, de um modo geral, influir na atuação jurisdicional stricto sensu.32 Por outro lado, é de se destacar que até mesmo em casos que outrora não se admitia transação, como por exemplo, os direitos indisponíveis33 e aqueles que envolviam o Poder Público, para ser bem específico, hodiernamente, já se permitem que por acordo, se finde processos que tenham tais objetos, demonstrando, por conseguinte, que a Justiça consensual vem ganhando espaço e quem sabe cada vez mais se amplie para atingir outros objetos, até mesmo penal, evidentemente, em caso de reconhecimento pelo acusado da culpa e a aplicação direta da pena privativa de liberdade. Pode se pensar que hoje é inimaginável, mas é possível, pois a consciência do malfeitor será o elemento que justificará a pena, até mesmo sem o devido processo legal, mas nunca como regra geral e sim exceção sob condicionantes rígidas.34 Quanto às limitações materiais, pode-se enunciar, primeiramente, que a boa-fé é a mais importante, pois como se admitir que os envolvidos possam conciliar e principalmente se submeterem à mediação se estiverem ocultando a verdade ou até mesmo mentindo, como infelizmente é muito comum na praxe forense, logo, é imprescindível que essa cultura de litígio e suas amarras sejam deixadas de lado quando as partes quiserem resolver os seus problemas pela via consensual.35 Outra grande limitação para o desenrolar dessas atividades junto à Justiça diz respeito à necessidade imanente de que as partes estejam em condições de igualdade e para tanto a atividade do Juiz, utilizando-se do seu chamado poder assistencial36, é vital, pois em caso das partes não estarem nessa posição, o diálogo, com certeza, vai ser infrutífero, podendo haver coações ou por qualquer forma imposição, o que vai de confronto aos princípios que informam a conciliação e mediação. 166

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Destarte, somente o equilíbrio entre as partes conduzirá a um resultado efetivo quanto à pacificação social, visto que patente, ser a igualdade, uma condição indeclinável para o sucesso e até mesmo início das conversações, logo, esse limite deve necessariamente ser transposto, pelo menos em relação à mediação, na qual a atividade do Juiz é mais limitada do que na conciliação, pois nesta, em havendo essa desigualdade, a proposta do Juiz já pode levar em consideração tal aspecto. Outro limite que muitas vezes pode impedir uma efetiva conciliação ou mediação é a própria atuação do Juiz nessas funções, pois a sua capacidade técnica, a par das ponderações já feitas, bem assim o cuidado para que não haja qualquer interferência no mérito das questões, principalmente na mediação, é imprescindível para o êxito das conversações e conseqüente feitura do acordo. Desta forma, quando o Juiz perceber que, de alguma forma, já acabou se intrometendo no âmago do problema, emitindo a sua posição pessoal, o melhor a fazer é declinar de tal atividade e dependendo do caso e a intensidade da interferência, remeter os autos ao seu substituto, que poderá tentar continuar com a negociação ou então infelizmente ter que decidir pelas vias tradicionais, o que implicará, com certeza, em um grau de eficácia social bem menor. Essa projeção infelizmente se retrata como uma realidade que precisa ser combatida, pelas vias ora comentadas, bem assim a própria competência técnica dos Juízes em assimilar melhor as relações humanas que envolvem todo processo atinentes aos sentimentos e valores envolvidos, já que infelizmente, por melhor que sejam os peticionantes, a forma escrita não consegue transmitir, com a segurança necessária, tais valores, que bem compreendidos, podem ser desprezados ou levados em consideração, dependendo da situação, pois é cediço que muitas vezes esses fatores condicionam todo o conflito e a sentença não os enxerga. Desta forma, esse limite material deve, por conseguinte, ser transposto com muita serenidade e calma pelos Juizes, enquanto conciliadores e mediadores, bem assim até na sua missão de julgar, acaso seja possível, para tanto, o principio da oralidade37 é um instrumento eficiente. Nesse viés, para que os Juízes possam superar esses limites da atividade consensual, principalmente os materiais, devem os mesmos ampliar, sobremodo, a sua atuação para além da ciência jurídica, tentando compreender as inquietudes e incoerências das relações humanas, utilizando-se dos saberes das outras ciências, através da interdisciplinaridade.38 Por outro lado, por mais que os Juízes, enquanto mediadores e conciliadores se capacitem tecnicamente e mudem o paradigma de sua atuação, tudo para transpor esses limites e com sucesso resolverem os conflitos aos mesmos submetidos, é cediço que a sua própria natureza de ser humano, já é por si só, uma limitação insuperável e que os seus atos são passiveis de falha, logo, essa compreensão facilita o seu regular exercício nessa atividaR. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.153-181, jan./dez. 2011

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de, pois a consciência de suas limitações e a virtude da modéstia quanto ao conhecimento, são armas eficientes para a superação de todos os obstáculos dessa atividade de busca do consenso. 6 MEDIAÇÃO FAMILIAR E A ATUAÇÃO JUDICIAL O conflito é inerente à própria convivência humana e como visto deve ser matizado pelos envolvidos a fim de que seus aspectos positivos possam ser otimizados e a partir dessa visão, se evitem novos conflitos, ao mesmo tempo em que a sua solução em específico, leve em consideração, na medida do possível, todos os sentimentos e emoções, sendo clarividente que nas relações familiares a intensidade e complicação dos mesmos é bem maior do que em outros relacionamentos, conforme será analisado nesse tópico, constatando-se, ao final, que para tais conflitos a mediação é a forma por excelência de solução que atende ao escopo da pacificação social. Desta forma, nas relações familiares, pode-se afirmar que é quase impossível que não haja conflitos, todavia, o problema não reside nesse aspecto, e sim na supervalorização dos mesmos, bem assim nos sentimentos egoístas que infelizmente um dos envolvidos sempre ressalta, dificultando a sua composição e muitas vezes inviabilizando a continuidade do relacionamento, logo, somente pela via do diálogo e da cooperação mútua entre os envolvidos, os efeitos maléficos serão minimizados, ressalvando-se sempre o lado positivo das coisas. A família de um modo geral passou por várias transformações no século passado e que tende a continuar nesse século, o que causa uma instabilidade natural, conduzindo, por conseguinte, há mais conflitos do que o natural, o que deve ser sempre levado em consideração, pois além das diferenças normais entre as pessoas que se relacionam; casal; pais e filhos; irmãos; etc., essa insegurança quanto aos papéis de cada membro familiar geram discussões que outrora inexistia, justamente porque antes, a certeza das funções e até mesmo a posição hierárquica, com o pai sendo o chefe da família, propiciava um controle mais rígido do conflito.39 Por outro lado, ainda existe uma complicação em razão da crescente violência doméstica que muitos dos conflitos familiares desembocam, principalmente contra as mulheres, crianças e idosos, em que pese as recentes legislações protetivas dessas pessoas, contudo, infelizmente parece que o ser humano não consegue mais resolver seus problemas com conversa e calma, havendo uma perturbação natural que também origina e incrementa esses conflitos, dificultando, desta feita, a solução dos mesmos não só pela via jurisdicional e infelizmente até mesmo pela consensual, contudo, esta tem maiores chances de obter a almejada satisfação social. Neste tocante, é imperioso que se registre as ponderações de Lilia Maia e Mônica Carvalho, em livro já bastante citado e na qual se debruçou especificadamente sobre o tema: 168

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O relato dos índices de violência doméstica cresceram consideravelmente nos últimos anos, devido aos mais variados fatores: desemprego, falta de diálogo, adultério, alcoolismo etc. A violência doméstica constitui o abuso físico, emocional, sexual ou mental de uma pessoa por outra, com quem teve ou tem um relacionamento íntimo; familiar. Pode acontecer com qualquer individuo, independente da sua idade, classe social, raça, capacidade ou estilo de vida...Nas relações familiares, a violência muitas vezes é caracterizada pela agressividade como um meio de defesa. Quando se sentem ameaçados, os integrantes da família não argumentam ordenadamente para defender seus propósitos, assumindo uma conduta agressiva, violenta. Além dos agravos para a saúde física e mental, a convivência cotidiana vai minando o desenvolvimento dos indivíduos, os quais vivem com medo, camuflando a situação de violência de que são vítimas. 40 Nesse viés, percebe-se, também, que a ausência de comunicação ordinária nas relações familiares faz com que os conflitos, ao surgirem, sejam intensificados e quase sempre sucumbindo à violência, ficando a situação muito difícil e as vezes insustentável para a continuidade de qualquer tipo de relacionamento, quiçá a efetivação de um acordo, sendo cristalino que o Estado-Juiz não é um “salvador da pátria”, que ao decidir encontrará uma solução que restabeleça a paz social. Desta forma, com essa percepção de que é muito difícil, nos conflitos familiares - quer instados à violência ou não – o pronto retorno à paz social pela via impositiva da jurisdição41, o estímulo à conversação, com a manutenção do diálogo constante, parece ser a solução para se minimizar os efeitos maléficos do término de um relacionamento ou até mesmo nas crises familiares cotidianas, que a par dessa prevenção, quando surgir o inevitável, qual seja o conflito, esse será bem compreendido e maturado a ponto de se fortificar o próprio relacionamento. Essa visão pode numa análise perfunctória conduzir ao raciocínio de enfraquecimento da jurisdição, contudo, não é dessa maneira que deve se enfrentar a situação, pois é cediço, conforme sobejamente demonstrado, que a pacificação social, via prestação jurisdicional, por suas próprias características, tem grande dificuldade de materialização e em especial nos conflitos familiares, em que os sentimentos e emoções se afloram com mais veemência.42 Nesse contexto é que se defende a viabilidade técnica da mediação nos conflitos familiares, justamente porque o diálogo é um elemento muito forte e que deve existir durante o próprio relacionamento e com mais intensidade no conflito, daí a constatação atual que infelizmente na Justiça esse fator não vem sendo privilegiado, nem sequer formalmente e muito menos na essência. A jurisdição consensual ora defendida vem sendo implicitamente realizada por advogados nas questões familiares quando o mesmo, após contato inicial, com o seu cliente, chama o outro lado ao seu escritório e ali, após conversação, acabam chegando a um bom termo, que posteriormente segue para homologação do juízo. R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.153-181, jan./dez. 2011

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Nessa situação, realiza-se uma mediação se porventura o causídico não formula diretamente qualquer proposta, o que, na maioria das vezes, acontece pelo menos nos conflitos familiares.43 Esta situação é tão interessante, que o legislador recentemente, através da Lei 11.447/06, expressamente retirou da competência dos Juízes, a análise de pleitos consensuais quanto à separação, divórcios, inventários e partilhas, acertadamente passando essa atuação para a esfera dos Cartórios, que agora podem formalizar esses desejos de por fim à sociedade conjugal, ao matrimônio e a transferência de bens, se porventura já houver consenso dos próprios interessados, ou seja, quando os mesmos apagam, por si sós, as arestas, evitando, por conseguinte, a necessidade da intervenção judicial, ganhando tempo44 e desafogando o Judiciário. A par dessas reflexões, vê-se, de forma cristalina que hodiernamente existe um movimento de implementação de uma Justiça que busque, na medida do possível, o consenso, o diálogo, a responsabilidade dos interessados, a harmonia e principalmente a continuidade do relacionamento, pois quando essa solução advém das partes, tais elementos se apresentam de forma evidente, o que infelizmente não ocorre no procedimento tradicional de jurisdição, que sequer, como já dito, prioriza na prática a oralidade. Existem diversos Tribunais45 que regulamentaram expressamente a mediação em conflitos familiares, justamente porque vislumbraram a ineficácia do Estado-Juiz, ou melhor, a impossibilidade real de que esses agentes consigam, por exemplo, descobrir quem deu causa a dissolução da sociedade ou o cúmulo de poderem afirmar que a continuidade do relacionamento se impõe como a solução para o problema.46 Todas essas situações apontadas como óbices para que a jurisdição tradicional tenha êxito nos conflitos familiares, justificaram sobremaneira que os próprios Juízes possam promover a mediação nesses casos, pois como já asseverado, não há qualquer incompatibilidade, pelo contrário, as circunstâncias e características desses conflitos propiciam a sua resolução por obra e responsabilidade das próprias partes, que se sentirão mais capazes nos futuros problemas, dando-lhes a autoestima porventura perdida no decorrer da relação. Mais uma vez, é oportuno que se transcrevam as lições das professoras Lília Maia e Mônica Carvalho, atinentes à total adequação da mediação, inclusive realizada pelos Juízes, nos conflitos familiares: É nas questões de família que a mediação encontra sua mais adequada aplicação. Há muito, as tensas relações familiares careciam de recursos adequados, para situações de conflito, distintos da negociação direta, da terapia e da resolução judicial. A mediação vem-se destacando como uma eficiente técnica que valoriza a co-participação e a co-autoria. Como já analisado, a mediação consiste em um método eficaz de composição de conflitos, em que um terceiro capacitado e imparcial, denominado mediador, 170

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auxilia as partes na consecução de um acordo mutuamente satisfatório, melhorando o diálogo e a comunicação entre as mesmas. A pacificação social e a prevenção são objetivos da mediação. Na verdade, por sua grande aplicação nas questões familiares, esse procedimento constitui um importante instrumento de combate à violência doméstica...A mediação introduz a cultura do diálogo, ressaltando a importância da comunicação. Na mediação não existem adversários, as partes devem buscar a solução do problema de forma pacífica, construindo conjuntamente uma solução satisfatória.47

Não há como se fugir dessa realidade, pois a mediação judicial nos conflitos familiares, já foi inclusive privilegiada - pelo projeto de lei que tramita no Congresso Nacional, tratando da mediação prévia e incidental – com a previsão de que o Juiz deverá contar com um co-mediador, que poderá ser um psicólogo, psiquiatra, terapeuta ou assistente social, dependendo do caso em específico, para auxiliar nesse processo de estímulo às partes na criação da melhor solução.48 Em se tratando especificamente dos casos mais comuns de conflitos familiares, quais sejam os divórcios e separações judiciais, a mediação se amolda como uma luva, visto que nessas situações as partes estão emocionalmente abaladas e as angústias e decepções do relacionamento se apresentam bem evidentes, sendo necessária a intervenção de uma pessoa, preparada tecnicamente, que propicie o restabelecimento da comunicação, na maioria das vezes, já se encontra interrompida, através de um diálogo, em pé de igualdade, com o uso da boa-fé e pensamento firme na manutenção do relacionamento, principalmente se houver filhos, que não podem ser prejudicados nessa ruptura, logo, o acordo prioriza tais valores.49 Além do mais, é de se frisar que a jurisdição tradicional procura quase sempre um culpado pelo rompimento da sociedade conjugal, quando a realidade demonstra que é quase impossível se imputar a somente um dos cônjuges a culpa, já que na essência todo relacionamento é difícil, por si só, em razão das diferenças de comportamento e a falta de compreensão. Destarte, como na mediação, o diálogo é a sua força motriz, os envolvidos passam a perceber que o mais importante não está no que ocorreu e sim no presente e futuro do relacionamento, que apesar de não ser o escopo necessariamente a continuidade da relação amorosa, no mínimo, deve se buscar a amizade, visto que quando existem filhos, a ruptura total é inaceitável. Dentro dessas peculariedades dos conflitos familiares, principalmente os que envolvem diretamente o casal e a possível separação de fato, quando já não presente tal fato, a mediação consegue adentrar no âmago dos problemas, priorizando o presente e futuro, mostrando às partes que o acordo obtido pelos mesmos, responsabiliza-os de uma forma mais intensa para o constante cumprimento do acordado. Por outro lado, propicia que o respeito prevaleça acima de tudo, já que R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.153-181, jan./dez. 2011

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um dia, os mediados estiveram juntos e formaram uma família, por conseguinte, podem manter, pelo menos, uma relação amistosa que deixe de lado o que aconteceu e passe a tratar o problema não como uma coisa ruim, mas na realidade uma inevitabilidade do destino, que não necessariamente traz somente efeitos maléficos. Essa percepção pode facilmente ser obtida através das sessões de mediação, pois nesta, o comprometimento é transferido para os próprios envolvidos, com tão-somente a intermediação de uma pessoa que não se encontra emocionada, logo, a solução é descurada das picuinhas infelizmente existentes quando do rompimento, já que o desabafo em conjunto alivia em muito toda essa carga emocional e quando esses sentimentos são deslocados, e a primazia passa a ser outra, o acordo é uma questão quase que automática, eis que os mesmos percebem claramente que um terceiro não vai ter condições de decidir por eles.50 Nesse diapasão, a mediação familiar é com certeza a melhor forma de se compor os conflitos surgidos de qualquer tipo de relação familiar, justamente porque, ao considerar todas as situações emocionais, as diferenças existentes entre os envolvidos, conseguem estimular naturalmente o acordo. Destarte, o que o mediador familiar deve fazer, principalmente se for o Juiz, é compreender essas peculariedades e a partir delas, de modo imparcial e sem expressar qualquer emoção, conduzir todo esse processo serenamente, até que os próprios envolvidos encontrem a melhor solução para o seu conflito em específico. 7 CONCLUSÕES A principal função da atividade jurisdicional é, sem sombra de dúvidas, a pacificação social e infelizmente esta não vem sendo alcançada pelas vias tradicionais, logo, se faz necessária a utilização de meios alternativos e os mais democráticos possíveis, para solução dos conflitos, visto que os mesmos possuem características que se afinam com a satisfação social, principalmente pela efetiva participação dos próprios interessados. Afora o fator de eficácia social do acordado pelas partes, as formas de auto-composição também prestigiam a questão da celeridade e até mesmo efetividade, bem como, quando os acordos são realizados, evita-se perda de tempo e economiza-se financeiramente, daí porque, esses fatores devem ser levados em consideração pelo Juiz a fim de que passem a utilizar tais meios, sem que haja qualquer demérito à atividade jurisdicional propriamente dita. A conciliação e a mediação não podem ser compreendidas como institutos que irão excluir a atividade jurisdicional, pois na realidade, elas são complementares, contudo, são mais eficazes em relação à satisfação social dos contendores, escopo maior do Direito e na qual há algum tempo a jurisdição 172

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vem esquecendo pela supervalorização do processo. Na conciliação, o Juiz tem uma participação mais intensa em relação ao resultado, pois pode propor soluções que serão aceitas pelas partes. Já na mediação, a sua participação é mais intensa no procedimento, visto que a sua condução neutra e imparcial, estimula o surgimento da solução e é preponderante, todavia, nesse caso, não pode propor a resolução, esta é alcançada naturalmente pelas partes, através do diálogo e cooperação mútua, desconstruindo a idéia de litígio. A mediação, por sua vez, tem a vantagem de não só se preocupar em resolver o litígio em específico, mas sim permitir, dentro da realidade de cada caso concreto, a continuidade do relacionamento, logo, sua aplicação é mais eficaz nos conflitos que envolvem sentimentos e valores, aos quais infelizmente tendem a esconder os conflitos reais e que a Justiça tradicional, atualmente, só vem resolvendo os aparentes. Tanto a conciliação quanto a mediação se preocupam com a capacidade de deliberação dos conflituosos, desfazendo aquela concepção de que somente a decisão imposta por um terceiro pode solucionar o problema, bem como evidencia, de forma intensa a responsabilidade dos mesmos, o que propicia automaticamente uma maior satisfação social, já que a solução foi aceita e as vezes até encontrada pelos mesmos. As técnicas de conciliação e mediação devem ser utilizadas pelo Magistrado com freqüência, a par dos princípios que as informam, prestigiando sempre a necessidade de que as partes estejam de boa-fé e na medida do possível, em igualdade, de modo que a avença seja um resultado das conversações. Os Juízes devem, portanto, se capacitar tecnicamente e da mesma forma que na entrega da prestação jurisdicional, não podem expressar qualquer tipo de emoção, que possa causar desconfiança das partes em relação ao seu único desejo de obter a satisfação social via consenso, estimulando sempre a comunicação dos envolvidos. Na realidade, faz-se necessário uma mudança de paradigma na atuação judicial, de modo que a conscientização das partes quanto à eficácia social do acordo, seja precedida da do Juiz nesse mesmo sentido, para tanto, as amarras da tutela jurisdicional não podem se imiscuir nessa jurisdição consensual. Como toda atividade, essa também possui limites, tanto os formais quanto materiais, logo, nem todos os objetos dos conflitos podem ser solucionados via acordo, como por exemplo, a maioria dos delitos penais e alguns casos de direito indisponíveis, bem assim as partes e o Juiz devem possuir as condições indispensáveis para que a solução amigável seja encontrada. Os conflitos familiares têm peculariedades que se amoldam como uma luva para serem solucionados via mediação, eis que o diálogo e a cooperação mútua são valorizados, de modo a permitir que os diretamente R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.153-181, jan./dez. 2011

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interessados sejam senhores da decisão, prestigiando, por excelência a continuidade do relacionamento. Os casos de separação e divórcio quase sempre escondem os conflitos reais, já que as partes se apresentam com convicções já postas, dificultando sobremaneira a atuação judicial, todavia, como esse obstáculo já é conhecido, pela experiência, a conversa franca e aberta entre os envolvidos, com a participação do mediador facilitará o acordo, que necessariamente deve primar pela mantença, pelos menos, de uma relação de respeito, principalmente quando o casal tem filhos. O Juiz não pode em nenhum momento, dessa atividade consensual, agir como Juiz propriamente dito, já que quando assim proceder, coloca em risco a feitura do acordo, desacreditando a própria Justiça quanto à sua função pacificadora, em especial quando se trata de conflitos familiares, que como cediço se referem às desilusões e insatisfações de pessoas diferentes que acreditaram numa relação amorosa, o que sempre deve ser considerado. Como os juízes não possuem os elementos necessários para decidirem com certeza de satisfação social, nos conflitos familiares principalmente, a mediação se apresenta como o meio mais eficaz nesse sentido, devendo as partes serem convencidas, desse poder próprio, já no início do procedimento, o que propiciará, no desenvolver das atividades, uma auto-estima que conduz a eficácia social do acordo. Não há dúvida de que os meios democráticos de solução dos conflitos são bem mais eficientes do que a sentença, logo, essa divulgação deve ocorrer entre os operários do Direito como um todo, de modo que a conciliação e a mediação deixem de ser exceção para se tornarem regra geral, já que indiscutivelmente toda a razão de ser do Direito é a pacificação social com Justiça e esta inarredavelmente não vem, infelizmente, sendo realizada pelas vias tradicionais. BIBLIOGRAFIA AMENDOEIRA, Sérgio Jr. In: CARMONA, Carlos Alberto (Org.). Poderes do Juiz e Tutela Jurisdicional. A utilização racional dos poderes do juiz como forma de obtenção da Tutela jurisdicional efetiva, justa e tempestiva. São Paulo: Editora Atlas, 2006. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 16. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2005. _______. A Constituição Aberta. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 1994. BONÍCIO, Marcelo José Magalhães. In: CARMONA, Carlos Alberto (Org.). Proporcionalidade e Processo. A Garantia Constitucional da Proporcionalidade, a Legitimação do Processo Civil e o Controle das Decisões Judiciais. São Paulo: Editora Atlas, 2006. 174

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CAPPELLETI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1988. CANOTILHO, J.J Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3. ed. Coimbra: Almedina, 1999. IHERING, Rudolf Von. A luta pelo Direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1998. MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Editora RT, 2006. ROCHA, José de Albuquerque. Teoria Geral do Processo. 7. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2006. SALES, Lília Maia de Morais. Justiça e mediação de conflitos. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. SALES, Lília Maia de Morais; VASCONCELOS, Mônica Carvalho. Mediação Familiar: Um estudo histórico-social das relações de conflitos nas famílias contemporâneas. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora Ltda, 2006. SANTOS, Boaventura de Souza. O discurso e o poder. Ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988. SILVA, Vírgilio Afonso da. A Constitucionalização do Direito. Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Editora Malheiros, 2005. SOUZA NETO, João Baptista de Mello e. Mediação em juízo Abordagem prática para obtenção de um acordo justo. São Paulo: Editora Atlas, 2000. TAVARES, Fernando Horta. Mediação & Conciliação. Belo Horizonte: Editora Mandamentos, 2002. VEZZULLA, Juan Carlos. Teoria e Prática da Mediação. 5. ed. Florianópolis: Editado pelo Instituto de Mediação e Arbitragem no Brasil, 2001. WARAT, Luis Alberto. O ofício do Mediador. Florianópolis: Habitus Editora, 2001. 1 Para um aprofundamento da compreensão da nova concepção de jurisdição indicamos o nosso livro Processo Constitucional nova concepção de jurisdição, Grupo Gen Editora Método Forense, 2008. 2 Refere-se às alterações do artigo 162, 267, 269 e 463 do CPC que não mais ditam que a sentença necessariamente põe fim ao processo, já que este possui a preocupação de obter a satisfação do direito e não mais somente uma sentença que o reconheça. Essas mudanças estão na trilha dessa nova concepção de jurisdição, que se preocupa sempre com a tutela dos direitos no caso concreto. Essa visão já é um significativo avanço e se embebera nos termos da constitucionalização do direito processual, contudo, ainda prima por uma solução decisória que prestigia um vencedor, logo, essa resolução, na maioria das vezes, também não obtém a satisfação social, principalmente quando se envolve conflitos que precisam ter a continuidade do relacionamento, até mesmo negociais. 3 Também comunga desse entendimento o Desembargador Francisco de Assis Filgueira Mendes, ao se pronunciar na apresentação do livro Mediação Familiar, tendo assim se manifestado, ressaltando inclusive a pertinência dos meios alternativos de solução dos conflitos: “Na visão aguçada de Kazuo Watanabe, existe, com efeito, uma “litigiosidade contida”, abrangendo toda a pletora de insastifação R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.153-181, jan./dez. 2011

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do povo, seja pela dificuldade do acesso à Justiça, seja pela demora da Organização Judiciária, no deslinde das demandas que lhe são apresentadas. Ante esse quadro dantesco, de verdadeira falência da máquina estatal, especialmente no que tange à prestação jurisdicional, em boa hora começaram a ser utilizadas soluções do Direito norte-americano, conhecidas como Alternative Dispute Resolution(ADR), quais sejam o Juízo Arbitral, a Conciliação e a Mediação. SALES, Lília Maia de Morais; VASCONCELOS, Mônica Carvalho. Mediação Familiar: Um estudo histórico-social das relações de conflitos nas famílias contemporâneas. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora Ltda, 2006., Apresentação. 4 Já se encontra no Congresso Nacional um projeto de lei sobre a mediação, atualmente no Senado Federal, sob a relatoria de Pedro Simon, na qual se prevê duas formas de mediação, a prévia e a incidental, ou seja, dentro do processo, o que fortifica a tese de que suas técnicas podem normalmente serem utilizadas em todos os processos e procedimentos que prevêem a conciliação, justamente porque não há qualquer incompatibilidade, contudo, infelizmente tal projeto não prevê que as partes necessariamente sentem numa mesa de negociação, como requisito para admissibilidade da ação e consequentemente a espera da sentença, como se esta fosse a “salvadora do mundo”, o que é cediço que os juízes não podem ser tidos como Deuses. 5 “É inquestionável que o principal objetivo da jurisdição, o que lhe faz a essência, é seu caráter de pacificação. Neste sentido, é muito mais salutar que se encontrem fórmulas de consenso, para que a pretensão resistida chegue a bom termo, atingindo-se o ideal de justiça das partes.” TAVARES, Fernando Horta. Mediação & Conciliação. Belo Horizonte: Editora Mandamentos, 2002, p. 17. 6 Entende-se que esta expressão representa melhor essa nova atividade de efetiva proteção dos direitos e na qual todos os que laboram com o direito não podem continuar sendo mecânicos frios da lei, daí porque o termo operário, sem sombra de dúvida, simboliza uma atuação mais ativa e ao mesmo tempo menos ligada as formalidades que infelizmente ainda dominam o meio jurídico. 7 Em nosso livro Medidas Liminares no Processo Civil: Um novo enfoque, O ministro José Augusto Delgado em seu prefácio atesta para a necessidade inadiável de uma pronta entrega da prestação jurisdicional, bem assim chama a atenção para o fim harmonioso que o processo deve perseguir, consoante pode se vê a seguir: “Os estudiosos do Direito Processual Civil estão convencidos de que técnicas novas devem ser introduzidas na legislação brasileira formal para que sejam atendidas, com eficácia, segurança e efetividade, esse anseio da cidadania. Há de se gerenciar o processo de modo que instrumentos de ação alcancem esse objetivo, sem se afastar do respeito ao princípio democrático informador do devido processo legal. Urge que o Direito Processual Civil consagre, do modo mais evidente e convencedor, o querer constitucional representativo do sentimento da Nação, que é o do Estado Brasileiro tornar vivo e constante o objetivo primordial posto em sua Carta Magna, no seu preâmbulo, que é a entrega da paz com a rápida solução dos conflitos vivenciados pelo cidadão em suas relações comuns e extraordinárias no ambiente social, familiar, financeiro, comercial, industrial e institucional”. José Luiz Carlos de Lima e José Herval Sampaio Júnior, Medidas Liminares no Processo Civil Um novo enfoque, 1ª Edição, Editora Atlas, 2005, pág. 14. 8 O movimento nacional pela Conciliação e os seus atos normativos podem ser consultados no site www. cnj.gov.br, ao qual se acredita, que se por acaso essa política for posta em prática, o que pelo menos já se iniciou formalmente desde o último dia 08 de dezembro de 2006, a Justiça entrará em uma fase que a esperança de uma pacificação social passa a ser um sonho bem possível e real, já que os resultados desta experiência são bem exitosos nesse sentido. 9 “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir em Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a Justiça como valores de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil” Grifo nosso. Preâmbulo da Constituição Federal de 1988. 10 “Sem intervenção de terceiros, as partes procuram resolver as questões, resolvendo disputas mediante discussões que podem ser conduzidas pelas partes autonomamente, ou por representantes. Por isso, alguns autores, não a consideram uma forma de solução de conflitos propriamente dita. A negociação é usada para qualquer tipo de disputa e faz parte do dia-a-dia transacional. É uma atividade constante entre advogados. É um método apropriado a ser utilizado quando as partes continuam a ter relações comerciais, cotidianamente, ou quando é possível solução criativa, sendo certo que tal vínculo caracteriza-se pela confiança mútua e credibilidade entre as partes.” TAVARES, op. cit., p. 42.

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11 Interessante de se ressaltar nesse contexto é a posição dos processualistas constitucionais Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pelegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco em sua obra Teoria Geral do Processo, que de maneira clara enfocam a vantagem dos meios alternativos, já os intitulando como de pacificação social, merecendo, por conseguinte, ser transcrito: “Abrem-se os olhos agora, todavia, para todas essas modalidades de soluções não-jurisdicionais dos conflitos, tratadas como meios alternativos de pacificação social.Vai ganhando corpo a consciência de que, se o que importa é pacificar, torna-se irrelevante que a pacificação venha por obra do Estado ou por outros meios, desde que eficiente. Por outro lado, cresce também a percepção de que o Estado tem falhado muito na sua missão pacificadora, que ele tenta realizar mediante o exercício da jurisdição e através das formas do processo civil, penal ou trabalhista”. CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 20. ed. Editora Malheiros, 2004, págs. 25-26. 12 “Assim, o espírito de conciliação deve nortear os envolvidos nas disputas judiciais, uma vez que, por melhores que sejam as leis e a prestação da atividade jurisdicional, ninguém decide os conflitos mais adequadamente aos respectivos interesses do que os próprios litigantes. A mediação frutífera proporciona aos profissionais da área do Direito a rara satisfação de poder rapidamente resolver o problema. O aperto da mão ao término da audiência, em que a conciliação foi atingida, representa o retorno das partes à normalidade social. O que mais poderiam pretender advogados e Juízes? SOUZA NETO, João Baptista de Mello e. Mediação em juízo Abordagem prática para obtenção de um acordo justo. São Paulo: Editora Atlas, 2000, p. 101. 13 “Despido o magistrado do preconceito contrário quanto a se dedicar francamente à tarefa de obter a conciliação e, também ele, desprovido da vaidade de ver sua “bela” sentença elogiada pelos Tribunais, estará livre para perceber, na fase de conciliação, o que significa incorporar a lei, o arquétipo do pai e que, aos olhos das partes interessadas sua palavra impressiona, é contundente. A fala inicial do magistrado nas audiências de conciliação penetra a consciência dos envolvidos e com eles mantém contato direito. É um desperdício perder esse momento por ignorar sua importância e eficácia.” Ibid., p. 48. 14 “Outra vantagem importante da mediação é a contínua e intensa discussão sobre o conflito. Aqui, não se objetiva apenas a consecução do acordo, mas o melhoramento e a continuação do relacionamento dos mediados. Nesta discussão, as pessoas são consideradas como seres únicos, devendo ser respeitadas como tais...Em suma, a mediação é bastante vantajosa. Seus objetivos não atingem apenas os problemas, refletindo seus efeitos nos mediados e na sociedade, fortalecendo e preservando o relacionamento existente entre as pessoas”. SALES; VASCONCELOS, op. cit., p. 94-95. 15 Ibid., p. 90-91. 16 “A mediação procura valorizar esses laços fundamentais de relacionamento, incentivar o respeito à vontade dos interessados, ressaltando os pontos positivos de cada um dos envolvidos na solução da lide para, ao final, extrair como conseqüência natural do procedimento os verdadeiros interesses em conflito”. TAVARES, op. cit., p. 64. 17 “Em outras palavras, a mediação inclui na sociedade na medida em que aumenta a autodeterminação e a responsabilidade dos mesmos. Assim, por meio desse procedimento, os indivíduos passam a ter voz mais ativa dentro da sociedade, uma vez que possuem autonomia e são responsáveis por solucionar suas controvérsias. Como ressaltamos em outro momento: A mediação apresenta-se, pois, com o objetivo de oferecer aos cidadãos participação ativa na resolução de conflitos, resultando no crescimento do sentimento de responsabilidade civil, cidadania e de controle sobre os problemas vivenciados. Dessa maneira, apresenta forte impacto direto na melhoria das condições de vida da população – na perspectiva do acesso à justiça, na concretização de direitos, enfim, no exercício da cidadania”. SALES; VASCONCELOS, op. cit., p. 90-91. 18 Em compromisso de palestra na cidade de Barbacena, verificou-se que um Juiz daquela comarca, “vibrador” por excelência, com a certeza de que essas vias consensuais são a melhor forma para compor os litígios, principalmente os de família, onde o mesmo jurisdiciona, sem qualquer ajuda financeira do Tribunal, deu um passo significativo quanto à ambientação do espaço físico a ponto de criar 04(quatro) salas, nominadas de conciliação, para junto com seus auxiliares servir exclusivamente para esse fim, incluindo aí evidentemente, as mediações. Para tanto, comprou sofás, mesas de centro, aparelho de som, etc., Dispôs a sala da forma em que as partes ficavam entre si se olhando mutuamente sentadas no sofá, tendo ao centro uma mesinha onde havia café, bolachas, bombons, etc. , tudo isso com um som ambiente que tranqüilizava os ânimos. Depois de um longa conversa com o citado Juiz, este contou que o índice de acordo chegava a 90 % (noventa por cento) e o que as partes sentiam necessidade era de conversar, se abrir, serem ouvidas, serviço que tecnicamente parece ser de outro profissional, mas que nessas técnicas constitui uma das maiores habilidades. olhando mutuamente sentadas no sofente para esse fim, incluindo

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a tentar conversar de igual para igual, a fim de que 19 Interessante que se transcrevam neste momento as reflexões de Fernando Horta, baseado nas lições de Luiz Fernando Keppen sobre a importância desse movimento pela solução amigável com uma técnica da atividade jurisdicional, ressaltando o valor da tentativa: “Voltando à indagação sobre a validade do esforço nas tentativas de conciliação, temos que a resposta não poderia ser outra, que não em sentido afirmativo. Indubitável que tal método pacifica as relações conflituosas, humanizando o direito, devendo, por isto mesmo, ser assimilado como técnica, a de propiciar melhores resultados, tudo em benefício dos atores no palco judicial e da sociedade que servimos .E se afinal, este resultado não for alcançado? “Se não houver frutos, valeu a beleza da flores. Se não houver flores, valeu a sombra das folhas. Se não houver folhas, valeu a intenção da semente”. TAVARES, op. cit., p. 127-128. 20 Essas ponderações foram colhidas, com alguns complementos do já citado livro de Fernando Horta, mais precisamente na página 126. 21 Além do mais é de se esclarecer que a idéia amplamente divulgada de que a conciliação é uma atividade simples e que não tem qualquer dificuldade não corresponde a realidade, pois tenho quase dez anos como Juiz e como tenho consciência constante de minha ignorância, sempre estou estudando e tenho capacidade para estudar qualquer assunto técnico, logo, sem qualquer menosprezo a matéria jurídica, tenho condições de confeccionar qualquer tipo de decisão judicial, porém não posso falar o mesmo sobre uma atividade de conciliação e mediação. Desta forma, não tenho dúvidas de que essa atividade requer um preparo técnico constante, contudo não é o lado racional que domina, daí porque os juízes devem se desprender desses dogmas e procura sempre a composição amigável do litígio, podendo inclusive ficar horas conversando nesse sentido. 22 TAVARES, op. cit., p.67-68. 23 “Analistas e juízes tem muito em comum, embora as diferenças os façam como água e vinho. Os dois lidam com processos iniciados há muito e a cujos fatos só tem acesso limitado. Atuamos com os elementos que nos chegam por meio das partes envolvidas, de acordo com seus interesses. Se nas pelejas jurídicas as partes “brigam” e no consultório o cliente é a única parte interessada, não devemos subestimar a capacidade que o conflito interno tem de sonegar informações, obstruir o processo, insistir na idéia de ganhar quando o fundamental é o acordo entre as partes, já que lutamos contra nós mesmos”. Essas ponderações são de Henrique L.M Torres, disposta como apresentação do livro já citado de João Baptista. SOUZA NETO, op. cit., p. 14. 24 “Ressalte-se que, dependendo do conflito e da concepção de cada mediador, algumas etapas podem ser suprimidas, ao passo que outras possam ser introduzidas.” SALES; VASCONCELOS, op. cit., p. 96. 25 Essas reflexões foram trazidas após leitura da obra de Juan Carlos Vezzulla, Teoria e Prática da Mediação, V Edição Comentada e Corrigida, editado pelo Instituto de Mediação e Arbitragem no Brasil, mas como já ressalvado, essas etapas podem ser suprimidas ou até acrescidas, dependendo da situação, bem como não há qualquer rigidez para a sua seqüência, todavia, percebe-se que pelo menos as primeiras são indispensáveis, mas o Juiz não pode, em nenhum momento, querer atuar como Juiz, Advogado, Arbitro, Promotor, etc, sua função é meramente de auxílio e deve contar com um conhecimento interdisciplinar, daí porque, a atividade de Mediador não é necessariamente realizada por um profissional do direito. 26 “Em todo o procedimento o mediador realiza uma escuta ativa dos problemas, ou seja, permanece atento para captar todas as linguagens, associando as verbais com as simbólicas e não verbais. O corpo realmente fala; as expressões demonstram sentimentos”. SALES; VASCONCELOS, op. cit., p. 98. Ainda nesse assunto, entende-se que durante todo o procedimento de mediação não deve o Juiz, sob hipótese alguma, deixar que suas expressões sejam transmitidas para a parte, ou seja, o seu equilíbrio emocional deve perdurar durante toda sua atuação, sem que qualquer postura diferente seja realizada, sob pena das partes perderem a confiança no Mediador. 27 Essas técnicas são trazidas por Fernando Horta em obra já citada várias vezes nesse trabalho, complementadas com as experiências do subscritor como mediador, principalmente em conflitos de família, logo, muitas outras técnicas podem ser implementadas, desde que haja sempre a prioridade para o constante diálogo, o cooperativismo, a efetiva participação das partes, a não imposição da decisão, ou seja, todos os princípios já também expostos por esse autor. 28 Nesse sentido se indica, para aprofundamento do estudo, a obra o Discurso e o Poder, de Boaventura de Souza Santos, que ressalta a importância de se criar mais instrumentos de democracia participativa, complementando a representativa, a fim de que essa junção possa de fato fazer que o povo verdadeiramente decida as questões de seu interesse. 29 A lei 10.444/02 alterou a redação do artigo 331 do CPC para expressamente permitir que todos os direitos que admitam transação tenham necessariamente a audiência ali prevista, pois esse momento é bastante

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propício e na realidade se constitui como direito da parte a esse contato direto com a autoridade judiciária. 30 “Há pouco tempo, em uma aula de mediação, um juiz perguntou-me como se pode executar um acordo obtido mediante um processo de mediação. Ficou abalado com a minha resposta: “os afetos nunca podem ser executados.” Minha resposta o surpreendeu porque estava raciocinando com os mitos, as crenças, o senso comum dogmático que organiza as cabeças dos juristas em geral. A mediação precisa ser entendida, vivida, acionada com outra cabeça , a partir de outra sensibilidade, refinada e ligada com todas as circunstancias, não só do conflito, mas do cotidiano de qualquer existência. Quem vai mediar, precisa estar ligado com a vida”. Luis Alberto Warat, O ofício do Mediador, Florianópolis: Habitus Editora, 2001. Esses, com certeza, são um dos maiores desafios dessa nova postura dos Juízes nessa função de tentativa de se chegar a uma solução amigável. 31 “Em matéria criminal, a conciliação vinha sendo considerada inadmissível, dada a absoluta indisponibilidade da liberdade corporal e a regra nulla poena sine judicio, de tradicional prevalência na ordem constitucional brasileira. Nova perspectiva abriu-se com a Constituição de 1988, que previu a instituição de Juizados Especiais providos por Juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução..de infrações penais de menor potencial ofensivo...permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turma de juízes de primeiro grau.” CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, op. cit., p. 27-28. 32 Ressalve-se que as Leis dos juizados especiais, quer estadual quer federal, prevêem a possibilidade de que alguns ilícitos penais possam ser resolvidos mediante composição civil entre as partes e até mesmo transação direta com o Ministério Público, o que demonstra que a justiça consensual vem ampliando seu espectro de atuação em todos as searas, inclusive penal. 33 “Trata-se dos chamados“ direitos da personalidade “(vida, incolumidade física, liberdade, honra, propriedade intelectual, intimidade, estado). Quando a causa versar sobre interesses dessa ordem, diz-se que as partes não têm disponibilidade de seus próprios interesses (matéria penal, direito de família etc.). Mas, além dessas hipóteses de indisponibilidade objetiva, encontramos aqueles casos em que é uma especial condição da pessoa que impede a disposição de seus direitos e interesses( indisponibilidade subjetiva); é o que se dá com os incapazes e com as pessoas jurídicas de direito público”. Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pelegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria Geral do Processo, 20ª Edição, Editora Malheiros, 2004, pág. 29. 34 Esclareça-se que a Constituição Federal prevê como direito e garantia fundamental do cidadão o devido processo legal, contudo, o que se prega é que esse direito possa ser renunciado em caso de pleno reconhecimento da ilicitude, logo, em havendo aceitação, lhe seja imposto a pena, suprimindo algumas etapas do processo, tudo pela via consensual. 35 “A mediação, para ser bem sucedida, pressupõe boa-fé de ambas as partes. Os mediadores devem estar dispostos para assimilar os princípios da mediação, sobretudo para agir de modo solidário e verdadeiro. Infelizmente, em nossa sociedade, ainda predomina a arcaica mentalidade de cultura do litígio, em que às partes interessa obter vantagens – ganhar”. SALES; VASCONCELOS, op. cit., p. 95. 36 Este poder é amplamente utilizado pelos operários do direito a par do princípio da igualdade das armas, mesmo tendo ciência de que no exercício dessa atividade consensual não qualquer espaço para a cultura de litígio propriamente dito, o juiz não pode deixar de está atento as diferenças econômicas e sociais das partes e quando a mesma for discrepante deve adotar medidas que busquem igualar pelo menos nessa conversa, o que é difícil na prática, contudo, não impossível. 37 Essa acepção do princípio da oralidade inclui, evidentemente, os seus subprincípios, quais sejam a concentração, a imediatividade, a identidade física do Juiz e a irrecorribilidade das decisões interlocutórias, que quando aplicados, na prática, privilegiam a percepção dos sentimentos e emoções, que infelizmente não são repassados pelo princípio da escritura. Desta forma, não só o movimento pela efetividade e o mais recente da conciliação são importantes, pois a adoção na íntegra do princípio da oralidade, com certeza, aproximará a Justiça da verdade real e, por conseguinte, nos casos de tentativa de solução amigável, esse contato é imprescindível. 38 “Uma tarefa básica dos processualistas modernos é expor o impacto substancial dos mecanismos de processamento de litígios. Eles precisam, consequentemente, ampliar sua pesquisa para mais além dos tribunais e utilizar os métodos de análise da sociologia, da política, da psicologia e da economia, e ademais, aprender através de outras culturas”. CAPPELLETI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 13. 39 “Como já salientado, hoje não mais existe apenas o modelo patriarcal de família. Na verdade, coexistem diversas formas, que são marcadas pelos traços de igualdade, individualidade e afetividade. As famílias

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enfrentam um processo de instabilidade, uma vez que as mudanças ainda não foram assimiladas por toda a sociedade. Homens, mulheres, idosos, crianças e adolescentes ainda não conseguem administrar as diferenças que estão surgindo em meio a essas“ famílias eudemonistas”. Como não mais existem papéis pré-estabelecidos, verifica-se a necessidade de constantes negociações no seio familiar”. SALES; VASCONCELOS, op. cit., p. 116. 40 Ibid., p. 118-119. 41 Interessante abordagem sobre a impossibilidade de a jurisdição conseguir resolver efetivamente os conflitos familiares, foi feita por Fernando Horta, em livro já citado, na qual o mesmo conclui nesse sentido, após estudo em sala de aula, com vários estudiosos do direito, que atestaram à eficácia da mediação nesses conflitos. São suas as seguintes digressões: “Guarda dos filhos – a resposta jurisdicional a controvérsia tende a seguir parâmetros pré-estabelecidos de conduta do pai ou da mãe, aplicando cegamente a este ou àquele princípios pautados pela moral e pelo comportamento social. Tal determinação pode ser nefasta para a criança ou desatender à sua expectativa, ou deixar a descoberto suas reais necessidades. Na mediação são exatamente estas necessidades que pautarão o acordo sobre a guarda, levando os pais a se entenderem, visando ao maior conforto físico e espiritual de seus filhos.Neste sentido, a mediação conduz a um questionamento principal: quais as necessidades das criança? E à indagação seguinte: qual a melhor maneira de atender a essas necessidades? O procedimento da mediação, cuidará, então, para resolver a questão da guarda dos filhos: que futuros planos de paternidade podem vocês entabular, de forma a continuar o trabalho de educação e amor com seus filhos? TAVARES, op. cit., p. 72. A continuidade de suas reflexões no mesmo diapasão se referem à eficácia social com relação também a pensão para os filhos, pensão do ex-cônjuge e divisão de bens, abarcando enfim quase todos os conflitos familiares, pelo menos os mais comuns atritos. 42 “A decisão imposta, fruto da análise do arcabouço legal vis-à-vis à verdade formal que se apresenta nos autos, acaba, no mais das vezes, gerando um resultado semelhante àquele que, nas negociações, é conhecido por “barganhas baseada nas posições”, levando a uma partilha de perdas e ganhos entre os litigantes (mesmo a vitória total terá consumido tempo, dinheiro e energias, sendo provável que ainda haverá resistência na fase de execução). A decisão obtida com a mediação judicial tem mais probabilidade de conseguir resultado eficiente com a chamada barganha de interesses, obtendo “soluções integrativas que satisfaçam o maior número possível das necessidades de ambas as partes” SOUZA NETO, op. cit., p. 53. 43 Fernando Horta em estudo já referido chama a atenção para tal fato, acrescentando que tal função também é exercida pelo Ministério Público: “Na realidade, revelou-se no citado trabalho, embora sem se observar adequadamente seus princípios, a mediação já é manejada cotidianamente pelos advogados em seus escritórios, e pelos Promotores de Justiça, quando atuam nos litígios de família. Dessas mediações, geralmente derivam as petições de acordo de separação consensual, nada impedindo que da mesma forma se operem as modificações de cláusula da separação, ou de guarda dos filhos, majoração ou minoração de pensão etc, tudo isso gerando tão-somente a celebração de novo acordo (ou aditivo a outro) e transformando-se em nova obrigação”. TAVARES, op. cit., p. 71. 44 “Pois tudo toma tempo e o tempo é inimigo da efetividade da função pacificadora. A permanência de situações indefinidas constitui, como já foi dito, fator de angústia e infelicidade pessoal. O ideal seria a pronta solução, tão logo apresentados ao juiz. Mas como isso não é possível, eis a demora na solução dos conflitos como causa enfraquecimento do sistema” CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, op. cit., p. 26. 45 Cita-se como exemplo o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, que expressamente regulamentou a questão da mediação por resolução. 46 Por muitas vezes os Juízes se deparam com a seguinte situação: o marido ou a esposa pedem ao magistrado que o outro seja obrigado a voltar o relacionamento ou coisa parecida, o que como se sabe é impossível, não só pelo fato de que não se pode obrigar a duas pessoas ficarem juntas, bem como pela inexistência de fatores objetivos que apontem para a certeza de que essa é a melhor decisão. Nesse tocante, parece que também é impossível se imaginar que um terceiro, que não conhece as partes e muitos menos as suas intimidades, os seus conflitos internos, as suas dificuldades de relacionamento, as diferenças, etc. possa dizer quem é o culpado da separação e a partir daí determinar várias providências. Esse simples raciocínio já é suficiente para apontar que nesses conflitos, somente os próprios envolvidos podem encontrar a melhor solução para os seus problemas, visto por mais competentes que sejam os advogados, não conseguirão exprimir em suas petições todos os valores envolvidos naquele conflito, muito menos os Juízes terão elementos objetivos para aferir com exatidão em suas sentenças todas as problemáticas. 47 SALES; VASCONCELOS, op. cit., p.122-123. 48 Nesse sentido também há previsão do projeto Movimento pela Conciliação, do Conselho Nacional de

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Justiça, que orienta os Tribunais a se estruturarem para inserirem tanto previamente como já no curso do processo todos os meios consensuais de solução dos conflitos, inclusive a mediação”. 49 “Em muitos casos, é intenso o sofrimento de um casal que decide pelo rompimento, havendo filhos ou não. Durante este processo, geralmente a sensação de fracasso vem acompanhada de depressão, ódio, angústia, sentimento de traição, humilhação, além das dificuldades financeiras, decorrentes da repartição de rendas e despesas. Haim Grunspun aponta as fases de desconstrução da família: I-Desilusão de uma das partes, II-A manifestação de insatisfações, III-A decisão de se divorciar, IV-Agindo na decisão, V-Aceitação crescente. Desse modo, o sofrimento inicia-se com a desilusão. Insatisfeitos com a relação conjugal, os esposos trocam ameaças de separação e de divórcio, demonstrando sua insastifação. Geralmente, percebe-se a existência de ressentimentos que foram acumulados ao longo da convivência, que se exprimem por sentimentos como: amor, culpa, ansiedade etc. Uma vez decididos a tornar concreta a separação, os cônjuges vivenciam uma nova realidade permeada por tensão e angústia. Em um primeiro instante, é normal que um dos cônjuges ou ambos enfrentem um momento de negação, recusando-se a aceitara separação, afirmando que se trata apenas de uma situação passageira”. SALES; VASCONCELOS, op. cit., p.125. rcio, demonstrando sua insastifaça desiluçonstruç rompimento, havendo filhos ou nes. 50 “A mediação oferece ao casal separado uma oportunidade de reorganização das suas relações parentais de modo pacífico. A partir da escuta da realidade e dos anseios do outro, verifica-se a possibilidade de restauração da confiança rompida. Nessa reorganização, o procedimento busca ressaltar a importância da co-parentalidade, demonstrando a necessidade dos filhos de manter a ligação com seus pais. Nesse enfoque, a mediação melhora o relacionamento entre o casal rompido e, consequentemente, facilita a convivência dos filhos...Note-se que a mediação familiar facilita a manutenção dessas relações continuadas, propondo uma verdadeira mudança de paradigma. Esse processo incentiva as partes a observarem positivamente os conflitos, entendendo-os como fatos naturais. A partir destas transformações, os parentes passam a conviver melhor, evitando novas contendas”. Ibid., p. 129/130.

THE ROLE OF THE JUDGE IN AN ATTEMPT TOWARDS SOCIAL PACIFICATION: THE I M P O RTA N C E O F C O N C I L I AT I O N A N D MEDIATION TECHNIQUES ABSTRACT This paper focuses on the role of the Judge in the continuous strive for social pacification, the main purpose of the Jurisdiction, protecting rights, through the use of alternative means to solve conflicts, more precisely, conciliation and mediation. The differences between these institutions are approached, emphasizing the little applicability of both, although conciliation, unlike mediation, is legally provided for, especially by the judicial authority. It is argued that there is a need for Judges to know that these alternatives are more efficient and that the Judiciary be better structured to work towards that goal, by creating an environment that will allow a consensual solution of litigations, avoiding current dogmas that govern this matter. Keywords: Social Pacification. Conciliation and Mediation Techniques. Consensual Jurisdiction. R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.153-181, jan./dez. 2011

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Investigando a Possibilidade de Criação do Conselho Nacional da Defensoria Pública Leandro Sousa Bessa* Mariana Urano de Carvalho Caldas** Caio Werther Frota Neto*** 1 Introdução. 2 Referencial Teórico. 2.1 A Defensoria Pública Como Instituição Garantidora de Acesso à Justiça. 2.1.1 Princípios, Funções e Estrutura Institucional. 2.2 O Conselho Nacional de Justiça. 2.2.1 Composição e Atribuições. 2.2.2 Argumentos Contrários à Sua Criação e os Avanços no Judiciário. 2.3 O Conselho Nacional do Ministério Público. 2.4 A Proposta de Criação do Conselho Nacional da Defensoria Pública. 2.4.1 Argumentos Favoráveis e Contrários. 2.4.2 Inadmissibilidade da Pec Nº 525/2010. 3 Metodologia da Pesquisa. 4 Análise dos Resultados . 5 Conclusão. Referências.

RESUMO Este trabalho objetiva analisar a Proposta de Emenda Constitucional nº 525/2010, tendente a criar o Conselho Nacional da Defensoria Pública (CNDP), investigando-se a necessidade da instituição do órgão para a efetivação do acesso condigno dos cidadãos à Justiça. Para tanto, desenvolveu-se pesquisa bibliográfica, referente à Defensoria Pública, ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Em relação à primeira, fez-se necessário também a observância à Constituição e à Lei Orgânica Federal, apontando-se os princípios, as funções e a estrutura da instituição; a análise do III Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil; a realização de entrevistas, concedidas por membros da Defensoria Pública do Ceará. No que concerne aos Conselhos já existentes, utilizou-se o método comparativo, destacando-se o posicionamento de doutrinadores e magistrados a respeito da criação desses órgãos, seguindo-se ao exame das melhorias trazidas ao Judiciário e ao Ministério Público. Como o tema ainda não foi devidamente discutido, empregou-se o método dialético, concluindo-se, ao final da apreciação deste estudo, pela imprescindibilidade da criação do CNDP, cuja composição * Mestre em Direito Constitucional pela Unifor; Defensor Público; professor do curso de Direito da Faculdade Christus. E-mail: l.bessa@uol.com.br ** Aluna do 5º semestre do curso de Direito da Faculdade Christus; pesquisadora do Programa de Iniciação Científica da Faculdade Christus 2010/2011. *** Aluno do 5º semestre do curso de Direito da Faculdade Christus; pesquisador do Programa de Iniciação Científica da Faculdade Christus 2010/2011.

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híbrida impediria o corporativismo e cuja atuação, além de outros benefícios, evitaria o desrespeito às crescentes funções institucionais por parte dos defensores públicos e uniformizaria recomendações, aprimorando a Defensoria Pública e possibilitando, assim, efetiva defesa e orientação aos hipossuficientes. Palavras-chave: Defensoria Pública. Justiça. Conselhos. 1 INTRODUÇÃO A expectativa em torno da criação do Conselho Nacional da Defensoria Pública (CNDP), cuja função seria eliminar a diferença de tratamento existente entre os membros da Defensoria Pública e os membros do Judiciário e do Ministério Público e garantir maior efetividade e unidade àquela função essencial à Justiça, surgiu a partir da Proposta de Emenda Constitucional nº 525/2010, de iniciativa do deputado Mauro Benevides (PMDB/CE). De fato, após chamada “Reforma do Judiciário” (Emenda Constitucional nº 45/2004), com a criação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), a sociedade tem testemunhado um crescente grau de democratização das instituições Judiciário e Ministério Público, paralelamente à uniformização de procedimentos, importante para a segurança jurídica, bem como um controle mais efetivo das funções administrativas e financeiras de juízos, tribunais e órgãos ministeriais. Não se olvida que, à época da instituição dos referidos conselhos, muitos se mostraram contrários à sua criação, afirmando que mais importante seria o fortalecimento das corregedorias e das ouvidorias, órgãos de controle interno do Poder Judiciário e do Ministério Público. Tais argumentos costumam ser esgrimidos também em oposição à criação do Conselho Nacional da Defensoria Pública. Entretanto, como mostra o III Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil, tais mecanismos correcionais nem sequer existem em algumas Defensorias, não havendo, assim, um efetivo controle disciplinar dos integrantes da carreira, bem como não há um órgão nacional, de composição híbrida, para uniformização de procedimentos ou de controle da atuação administrativa e financeira. A experiência tem mostrado que, distante de fragilizar as instituições, o CNJ e o CNMP afinam-se com os anseios da sociedade, haja vista que atribuem maior transparência e eficácia às ações dos integrantes daquelas instituições, servindo, consequentemente, como instrumentos para o desenvolvimento da democracia. Entretanto, é fundamental para o desenvolvimento da pesquisa analisar os diferentes pontos de vista acerca do assunto, buscando-se traçar um paralelo do período de criação dos referidos órgãos com a atual situação da Defensoria Pública, utilizando-se da pesquisa bibliográfica e das informações coletadas durante a realização das entrevistas.

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Toda a pesquisa observa a Lei Complementar nº 80/1994 (com alterações feitas pela Lei Complementar nº 132/2009), que organiza a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios e prescreve regras gerais para a sua organização nos Estados e as normas da Constituição Federal relativas à instituição, a saber, os artigos 5º, LXXIV, 134 e 135, com o apoio indispensável da Lei Complementar nº 06/1997, que organiza a Defensoria Pública Estadual. Isso posto, a presente dissertação tem o fito de delinear ilações acerca da necessidade da instituição do referido órgão de controle para a viabilização do acesso dos hipossuficientes à Justiça, adotando-se como parâmetros os órgãos oriundos da EC nº 45/2004. Necessário se faz também destacar os objetivos específicos deste trabalho: empreender um estudo sobre a importância da Defensoria Pública; descrever a atuação do CNJ e do CNMP e analisar a forma de composição e as modificações que estes trouxeram aos órgãos controlados; destacar a atual estrutura da função essencial à Justiça, assim como seus princípios e funções; investigar, por meio do exame do III Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil, se a Lei Orgânica Nacional está sendo cumprida; possibilitar que se torne conhecida a opinião de membros da Defensoria Pública do Ceará em relação à atuação do órgão estatal, ressaltando-se as melhorias já alcançadas e as suas deficiências; discutir os argumentos apontados como entraves à aprovação da emenda constitucional nos moldes propostos. 2 REFERENCIAL TEÓRICO 2.1 A Defensoria Pública como instituição garantidora de acesso à Justiça A Defensoria Pública, de acordo com o artigo 134 da Constituição Federal, é a função essencial à Justiça destinada a proporcionar a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados. Sua criação remonta à exigência prevista no inciso LXXIV do artigo 5º da Carta Magna, que aduz ser o serviço da assistência jurídica integral e gratuita um direito fundamental a ser garantido pelo Estado àqueles que comprovem insuficiência de recursos. A assistência jurídica integral e gratuita, decorrente da acepção ampla do direito de acesso à Justiça, compreende não só a prestação de assistência processual, haja vista que a Defensoria Pública muitas vezes é procurada por pessoas que pretendem simplesmente ser ouvidas, almejando pela real atenção das instituições governamentais1. Considerada por Ingo Sarlet um “direito fundamental social de cunho prestacional”2 (grifo do autor), representa, em síntese, “a satisfação de necessidades imateriais, uma vez que abrange prestações de fazer (ato de auxiliar), e não de dar (necessidades materiais)”3, não proporcionando comodidades de maneira direta, mas servindo de veículo para que os assistidos as obtenham. Como salientam Mauro Cappelletti e Bryant Garth, o acesso à Justiça 184

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pode ser considerado “o requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos”4. E foi com vistas à sua efetivação que o constituinte de 1988 dispôs acerca da assistência jurídica integral e gratuita, atividade pública se baseia, fundamentalmente, no objetivo da República Federativa do Brasil previsto pelo art. 3º, inciso I, da Constituição, a saber, construir uma sociedade livre, justa e solidária. Em observância à exigência expressa do § 1º do artigo 134, foi elaborada a Lei Complementar nº 80/1994, referente à estrutura da instituição, que será posteriormente analisada. Frise-se, contudo, que foram realizadas, recentemente, várias mudanças na referida lei, decorrentes da Lei Complementar nº 132/2009, entre as quais se destacam a ampliação das funções institucionais; a introdução de ouvidorias; a criação de um rol exemplificativo de direitos para os assistidos; a regulamentação da autonomia constitucionalmente garantida às Defensorias Públicas Estaduais. O referido § 1º prevê ainda a garantia da inamovibilidade aos defensores públicos, sendo-lhes vedado exercer a advocacia fora das atribuições institucionais, demonstrando que a dedicação exclusiva à função é imprescindível para a devida valoração do órgão estatal, que objetiva adquirir tratamento simétrico ao oferecido à Magistratura e ao Ministério Público5. O § 2º, acrescentado pela EC nº 45/2004, que também será avaliada no momento oportuno, concede às Defensorias Públicas Estaduais autonomia funcional e administrativa. A primeira significa que os seus membros, no exercício dos deveres profissionais, não estão subordinados a nenhum outro órgão ou poder, submetendo-se somente “à sua consciência e aos limites imperativos da lei”6. Já a segunda é a “soma de poderes que dispõe a pessoa jurídica de direito público interno da Administração direta ou indireta para o exercício das atividades ou dos serviços públicos, assim como para gerir seus bens e recursos”7. O dispositivo as assegura ainda a iniciativa de suas propostas orçamentárias, que implica, por outras palavras, em autonomia financeira. Apesar de possuir, no âmbito normativo, todas as características supramencionadas, a Defensoria Pública “vem sendo objeto de inúmeros e graves equívocos, ainda não estando estruturada como mostra a Constituição, o que prejudica a formação da sua identidade e a fruição dos consequentes resultados de sua atuação”8. O III Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil aponta que, até 2009, apenas dez Defensorias Públicas elaboravam as suas respectivas propostas orçamentárias, e que algumas ainda se encontravam subordinadas a Secretarias Estaduais9, a demonstrar a limitação da autonomia constitucionalmente garantida. O ex-ministro da Justiça Tarso Genro aduz que, para a formação de uma Defensoria Pública forte e ativa, não bastam alterações normativas, sendo também necessário um conjunto de medidas afirmativas10. Em Santa Catarina, a instituição nem existe, e Goiás, apesar de possuir Lei Orgânica desde 2005, mostra dificuldades na sua implementação11, mostrando-se essencial à obserR. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.182-199, jan./dez. 2011

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vância da referida recomendação. Como enfatizam Amélia Soares da Rocha e Francilene Gomes, falta ao órgão estatal visibilidade na arena política, pois os seus destinatários são as parcelas marginalizadas da sociedade, que não têm consciência do poder de que dispõem, e destaque no âmbito jurídico, pois ainda não se reconhece a sua imprescindibilidade12, embora formalmente estabelecida. 2.1.1 Princípios, funções e estrutura institucional O artigo 3º da Lei Orgânica Nacional aduz serem princípios institucionais da Defensoria Pública a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional. Em síntese, o primeiro indica que os membros de cada Defensoria Pública integram um só órgão, sob a direção do respectivo Defensor Público-Geral13; o segundo, decorrência daquele, significa que “os membros da Defensoria Pública podem ser substituídos uns pelos outros sem que haja prejuízo ao exercício das funções do órgão”14; o terceiro, por fim, objetiva eliminar qualquer possibilidade de hierarquia entre os defensores públicos e os demais agentes do Estado, vedando-se ingerências políticas, a fim de se poder atuar com autonomia e liberdade15. Entre as funções da Defensoria Pública elencadas no artigo 4º da mesma lei, destacam-se prestar orientação jurídica e exercer a defesa dos necessitados; promover, prioritariamente, a solução extrajudicial dos litígios, por meio de mediação, conciliação, arbitragem e outras técnicas; exercer a defesa dos direitos e interesses individuais, difusos, coletivos e individuais homogêneos, sendo-lhe permitido o ajuizamento de ação civil pública. A atuação desse órgão estatal, portanto, além de consistir na proteção dos direitos subjetivos da pessoa hipossuficiente, realiza a tutela dos direitos sociais e metaindividuais, como ocorre no caso da propositura de ações coletivas que visam à proteção do consumidor e do meio ambiente16. No que concerne à estrutura da instituição, são órgãos da administração superior a Defensoria Pública-Geral, a Subdefensoria Pública-Geral, o Conselho Superior e a Corregedoria-Geral. Saliente-se, contudo, que os Conselhos Superiores das Defensorias Públicas Estaduais, além de serem compostos pelos representantes dos demais órgãos citados, possuem a figura do Ouvidor-Geral, inovação trazida pela LC nº 132/2009. Ao Conselho Superior, em síntese, cabe o exercício das atividades consultivas, normativas e decisórias. Já à Corregedoria-Geral compete a fiscalização da atividade funcional e da conduta dos membros e servidores da Defensoria Pública, sendo, principalmente, órgão de condução dos processos da atividade correcional. Ambos são compostos por integrantes da carreira, frisando-se que o último não pode aplicar penalidades. As Ouvidorias-Gerais, como mostra o artigo 105-A da alterada LC nº 186

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80/1994, são órgãos auxiliares das Defensorias Públicas Estaduais e têm por missão promover a qualidade dos serviços prestados por estas, servindo como um canal de comunicação direta entre elas e a sociedade, não se tratando de meros órgãos constituídos para receber e processar reclamações17. Aduz o artigo 105-B que o Ouvidor-Geral deve ser escolhido entre cidadãos de reputação ilibada, não integrantes da carreira, indicados pela sociedade civil. Entretanto, até 2009, entre as dez Defensorias Públicas que possuíam ouvidoria, das quais, saiba-se, exclui-se a do Ceará, apenas três cumpriam essa norma18. O maior desafio, no que concerne à Defensoria Pública, é a criação de mecanismos de exercício constante e eficiente de suas funções institucionais e a sua aproximação com a sociedade civil, afastando o órgão estatal dos riscos inerentes às atividades públicas, a saber, a acomodação e a fuga das crescentes atribuições19, que, como será evidenciado posteriormente neste trabalho, poderiam ser mais frequentemente punidos com a criação do CNDP. 2.2 O Conselho Nacional de Justiça Diante da evidente crise institucional do Judiciário brasileiro, que, segundo conclusão de Maria Tereza Sadek, apresentava deficiências cujo grau de tolerância atingia patamares tão baixos que colocavam em risco a própria convivência democrática20, foi criado, por meio da polêmica EC nº 45/2004, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O órgão, oriundo da chamada “Reforma do Judiciário”, surgiu após intensos e necessários debates acerca da estrutura, da transparência, da competência e da efetividade dos provimentos do Poder Judicante21. De acordo com Marcelo Ribeiro Uchôa, o Poder Judiciário ostenta, no Brasil, dimensões de “Super-Poder”, sendo ele “quem, de fato, lê e soletra a Constituição Federal”22 (grifo do autor). Todavia, ao contrário do que ocorria em relação ao Executivo e ao Legislativo, cujos membros são eleitos e observados pelo povo, o Judiciário não possuía, antes da aludida reforma, um meio de controle que oferecesse à sociedade a possibilidade de fiscalizar os seus membros, função que era atribuída aos próprios magistrados. 2.2.1 Composição e Atribuições O CNJ é composto por 15 integrantes, cuja maioria (nove) integra o próprio Judiciário, sendo os outros seis cargos distribuídos igualmente entre membros do Ministério Público, da Advocacia Privada e da sociedade civil (CF, art. 103-B). Os últimos, indicados pelo Legislativo, são escolhidos entre aqueles que possuem notável saber jurídico e reputação ilibada. Frise-se que estes não pertencem ao Poder que os indica, mostrando-se incoerente o argumento, que será posteriormente referido, de que se estaria violando o princípio da separação de poderes, objetivando-se apenas evitar o corporativismo, que frequentemente sobrevinha nas corregedorias dos tribunais R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.182-199, jan./dez. 2011

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e que as tornou insuficientes. Não sendo um verdadeiro órgão de controle externo, nem a cúpula da magistratura, que é o Supremo Tribunal Federal (STF), o CNJ apresenta-se de acordo com a Constituição e com os princípios que a fundamentam, podendo-se afirmar que “o controle do Poder Judiciário pela sociedade e pelos próprios juízes é um requisito da democracia”, sendo ele “a garantia de eliminação das ações e omissões que, ocultas ou protegidas pelo pretexto da preservação da independência, impedem o Judiciário de ser um verdadeiro Poder democrático”23. De acordo com o § 4º do artigo 103-B da Constituição, “compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes”, cabendo-lhe, essencialmente, as atribuições expostas nos seus sete incisos, que, em síntese, tratam da competência material do CNJ, quando este pratica atos que não visam propriamente à geração de efeitos jurídicos, como a elaboração de relatórios, e da sua competência normativa, como no caso, por exemplo, da estipulação de normas de conduta24, possibilitando-se a melhoria do Judiciário em nível nacional, sem haver, destaque-se, qualquer ingerência no âmbito jurisdicional. Apesar de ter sido criado com o objetivo de “estabelecer a possibilidade de efetivo controle administrativo centralizado de legalidade sobre a atuação dos diversos juízes e tribunais”25 (grifo do autor), o CNJ não retira destes suas competências privativas, elencadas no artigo 96 da Carta Magna, não se atingindo, portanto, o autogoverno do Judiciário. Quanto à função correicional e disciplinar, também não se exclui a competência das corregedorias, que, como ressaltou Wagner Gonçalves, antes da Reforma do Judiciário, não eram suficientes para coibir e evitar as omissões e o comportamento desidioso de alguns servidores do Poder Judicante26. Por fim, ressalte-se que o § 7º do artigo 103-B prevê a criação de ouvidorias de justiça, “competentes para receber reclamações e denúncias de qualquer interessado contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, ou contra seus serviços auxiliares”, percebendo-se, novamente, a preocupação do constituinte derivado em aproximar os órgãos estatais dos cidadãos, proporcionando-se aos usuários da Justiça a oportunidade de aprimorá-la. 2.2.2 Argumentos contrários à sua criação e os avanços no Judiciário Apesar do atual consenso acerca da necessidade do CNJ, vários foram os argumentos apresentados por magistrados e doutrinadores a fim de se declarar a inconstitucionalidade do órgão, entre eles, a suposta violação ao princípio da separação de poderes, cláusula pétrea prevista no art. 60, § 4º, da Carta Magna. Tal transgressão ocorreria em virtude do Conselho compor-se de forma híbrida, fato que, como já se elucidou, não compromete a independência do Judiciário nem o desempenho da sua função jurisdicional27.

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Pode-se afirmar que a implantação de um órgão de controle para o Judiciário no Brasil “fora atrapalhada por incertezas, medos, discursos corporativos e preconceitos”28. Grande parte dessa oposição foi composta por setores conservadores da magistratura, devendo-se destacar que, como preleciona Marcelo Uchôa, a Associação dos Magistrados do Brasil (AMB) foi, ao longo dos anos, “a inimiga número 1 do controle do Poder Judiciário, tanto assim que foi a primeira entidade da sociedade civil a posicionar-se contrariamente ao recém-criado Conselho Nacional de Justiça”29 (grifo do autor). No dia 9 de dezembro de 2004, um dia após a promulgação da Emenda Constitucional nº 45/2004, a AMB já havia proposto a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3367-1/DF, buscando obstar a instituição do neófito Conselho, pretensão que fora definitivamente afastada pelo STF, no dia 13 do ano seguinte30. Alexandre de Moraes, que já foi membro do CNJ, apresenta, de forma clara e conclusiva, três características que confirmam a sua constitucionalidade, a saber, ser órgão integrante do Poder Judiciário (CF, art. 92, I-A), sua composição apresentar maioria absoluta de magistrados e possibilidade de controle de suas decisões pelo STF (CF, art. 102, I, r) 31. Embora tenha havido inicialmente evidente desconfiança acerca das melhorias que o CNJ poderia gerar, restaram inegáveis, após a instituição do mencionado órgão, os significativos avanços ocasionados ao Poder que integra. Entre as medidas de maior destaque, tiveram repercussão nacional a Resolução nº 3, que extinguiu definitivamente as férias coletivas nos tribunais, e a Resolução nº 7, que atacou o nepotismo no Judiciário32, sendo ambas do ano posterior à sua criação (2005). Ainda em conformidade às lições de Uchôa, além das conquistas supramencionadas, muitas outras foram alcançadas pelo Conselho nos anos seguintes à sua instituição, referentes às mais diversas matérias, como “desvios funcionais, moralidade pública, levantamentos estatísticos, estudos específicos relacionados aos problemas do Judiciário, realização de conferências, seminários, etc”33. No âmbito penal, é importante destacar as melhorias obtidas com o mutirão carcerário, criado, em 2008, pelo ministro Gilmar Mendes, e responsável pela libertação de 20 mil presos “que já haviam cumprido a pena a que foram condenados ou se encontravam privados de sua liberdade ilegalmente”34. Por fim, indispensável se faz enfatizar que o Conselho também traça metas35 ao Poder Judicante, podendo-se indicar, resumidamente, as relativas a 2011, referentes à gestão, à modernização das audiências, à celeridade processual e à responsabilidade social. 2.3 O Conselho Nacional do Ministério Público

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Igualmente instituído pela EC nº 45/2004, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) destina-se, basicamente, a acompanhar a atuação dos promotores e procuradores do País e uniformizar recomendações propostas à função essencial à Justiça incumbida de defender a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis (CF, art. 127). Prevendo-se as atividades do Corregedor nacional e das ouvidorias, conclui-se que o CNMP se mostra imprescindível ao bom funcionamento da instituição que integra, voltando-se a aumentar a qualidade de seus serviços. O Conselho compõe-se de 14 membros, sendo oito deles pertencentes ao próprio Ministério Público, dividindo-se as vagas restantes entre juízes, advogados e cidadãos de notável saber jurídico e reputação ilibada. Suas atribuições, distribuídas em cinco incisos, são similares àquelas conferidas ao CNJ, evidenciando-se a imperiosa necessidade de ambos para o correto funcionamento do Sistema de Justiça. Faz-se necessário, entretanto, investigar a necessidade da criação de um órgão de controle, nos mesmos moldes destes, para a Defensoria Pública, que, apesar de não exercer atividade acusatória ou jurisdicional, é fundamental para a viabilização desta e para a efetivação da defesa dos que mais frequentemente sofrem os efeitos daquela. 2.4 A proposta de criação do Conselho Nacional da Defensoria Pública Em dezembro de 2010, o deputado Mauro Benevides (PMDB/CE) apresentou a PEC nº 525, tendente a criar o Conselho Nacional da Defensoria Pública, visando à eliminação da evidente diferença de tratamento ainda existente entre os membros da instituição que visa salvaguardar e os membros da Magistratura e do Ministério Público, apesar de a Constituição tratá-los de forma isonômica. Ressaltou o deputado que a criação dos Conselhos oriundos da EC nº 45/2004 foi um marco na história das carreiras por estes controladas, haja vista que foram conferidas aos órgãos importantes missões, “o que sem dúvidas contribuiu para impulsionar o crescimento e a consolidação de tais instituições”36. No Brasil, cerca de 90 milhões de pessoas vivem com apenas dois salários mínimos, desconhecendo os seus direitos e não possuindo condições financeiras de se fazerem representadas judicial e extrajudicialmente37. A criação do órgão de controle, portanto, proporcionaria maior visibilidade e unidade à instituição em estudo, que poderia, efetivamente, garantir a inclusão social, o pleno acesso à Justiça e o respeito aos direitos fundamentais do cidadão brasileiro38. Com a aprovação da PEC, entre outras modificações, seria acrescido um novo artigo à Carta Magna, a saber, o artigo 134-A, que possuiria, entre outras disposições, as seguintes: Art. 134-A. O Conselho Nacional da Defensoria Pública compõe-se de dezesseis membros nomeados pelo Presidente da República [...], sendo: 190

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I – O Defensor Público eleito, que o preside; II – Nove integrantes das Carreiras da Defensoria Pública da União, Defensoria Pública dos Estados e Defensoria Pública do Distrito Federal e Territórios; III – Dois juízes, sendo um indicado pelo Supremo Tribunal Federal e outro pelo Superior Tribunal de Justiça; IV – Dois advogados, indicados pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; V – Dois cidadãos de notável saber jurídico e reputação ilibada, indicados um pela Câmara dos Deputados e outro pelo Senado Federal. § 1º A Presidência, será exercida, mediante votação secreta e sempre será ocupada por Defensor Público. [...] § 4º Compete ao Conselho Nacional da Defensoria Pública o controle da atuação administrativa e financeira da Defensoria Pública e do cumprimento dos deveres funcionais de seus membros, cabendo-lhe: I - zelar pela autonomia funcional e administrativa da Defensoria Pública, bem como pelo cumprimento de sua Lei Orgânica Nacional, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências; II - zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos da Defensoria Pública Federal e dos Estados, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, sem prejuízo da competência dos Tribunais de Contas; III - receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos da Defensoria Pública Federal ou dos Estados, inclusive contra seus serviços auxiliares, sem prejuízo da competência disciplinar e correicional da instituição, podendo avocar processos disciplinares em curso, determinar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de serviço e aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla defesa; IV - rever, de ofício ou mediante provocação, os processos disciplinares de membros da Defensoria Pública Federal ou dos Estados julgados há menos de um ano; V - elaborar relatório anual, propondo as providências que julgar necessárias sobre a situação da Defensoria Pública no País e as atividades do Conselho [...]39

A composição híbrida e as atribuições sugeridas acima assemelhariam o Conselho àqueles já estudados neste trabalho, possibilitando-se, em virtude da atuação conjunta desses órgãos de controle, um melhor desempenho ao JudiR. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.182-199, jan./dez. 2011

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ciário, ao Ministério Público e, finalmente, à Defensoria Pública. 2.4.1 Argumentos favoráveis e contrários O fato de a proposta de criação do CNDP não ser unanimemente aceita não poderia ser considerado imprevisível. Como destacou, em recente entrevista, Carlos Augusto Medeiros de Andrade, ex-presidente da Associação dos Defensores Públicos do Estado do Ceará (ADPEC), “sempre se têm obstáculos quando se vai, de uma forma ou de outra, buscar meios de controle”40. Frise-se que o III Diagnóstico da Defensoria Pública aponta que quase metade dos defensores públicos não se mostra favorável à norma que declara que o ouvidor não pode ser integrante dos quadros da carreira41, restando evidenciada a desconfiança existente em grande parte deles em relação a novas formas de composição. Epaminondas Carvalho Feitosa, membro do Conselho Superior da Defensoria Pública do Ceará, ressalta que, embora espere que o CNDP possa fortalecer as Defensorias dos Estados, não crê que ele seja suficiente para propiciar o almejado nivelamento de instituições, mostrando-se necessário um somatório de conquistas regionais e nacionais. Quando questionado acerca dos possíveis obstáculos que poderiam existir à criação do órgão híbrido, entretanto, afirmou não acreditar na existência deles, “haja vista a natureza democrática da Defensoria e a necessidade de estar mais próxima da sociedade”42. Tratando das medidas que poderiam ser adotadas para o aprimoramento da Defensoria Pública, Epaminondas Carvalho aduz que a “questão é bastante complexa, que envolve realidade micro e macro”. Para o referido defensor público, na realidade micro, faz-se necessário, entre outras medidas, investimento na instituição “criando quadros de apoio técnico como necessários para o bom andamento do órgão”; melhor estruturando os “atuais órgãos da Defensoria, sobretudo os de apoio ao Defensor no interior e também da Corregedoria”; “reconhecendo o status constitucional de igualdade da carreira de Defensor com as demais carreiras jurídicas, elevando a auto-estima dos operadores do direito que exercem múnus na Defensoria, com o fito de mitigar o problema lamentável da evasão na carreira”; “incrementando a qualificação dos seus membros não somente na área jurídica, mas também nas ciências voltadas para o aperfeiçoamento do atendimento ao público alvo”. Já na realidade macro, Epaminondas Carvalho verifica “a necessidade de maior investimento na educação, favorecendo a cidadania, pois o homem cônscio de seus direitos e vivendo com dignidade favorece, sem dúvida, a mitigação de lides cíveis e criminais e o melhor convívio social. Ademais, ressalta o Conselheiro que não se pode esquecer “que a Defensoria Pública é parte de um complexo maior, o Sistema de Justiça, portanto, havendo melhorias na prestação jurisdicional, certamente, tal fato repercute no aprimoramento dos serviços da Defensoria também”. Asseverando a respeito da diferença entre a previsão constitucional e o real estado da instituição, Fábio Ivo Gomes, presidente da ADPEC à época da 192

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pesquisa, salientou que “a autonomia da Defensoria cearense ainda não vem sendo exercida plenamente por problemas estruturais e ainda de natureza legal”, mostrando-se importante a criação do órgão proposto como forma de ampliar a discussão sobre a função essencial à Justiça e de conferir legitimidade às suas decisões, visto que outras entidades participariam da sua formação43. A defensora pública Roberta Quaranta, presidente da Comissão de Acesso à Justiça da OAB/CE, da mesma forma, julga acertada a iniciativa do deputado Mauro Benevides, ressaltando, em harmonia com o disposto no sugerido artigo 134-A, que a atuação fiscalizadora seria apenas uma das atividades do CNDP, que também deveria coletar dados sobre a instituição e propor medidas a curto, médio e longo prazo, assim como esquematizar “a atuação institucional, elegendo prioridades e construindo um canal de comunicação com a sociedade acerca do planejamento de políticas públicas tendentes a garantir alternativas de desenvolvimento do acesso à justiça e à cidadania no Brasil”44. Para o anteriormente citado defensor público Carlos Augusto Medeiros, em virtude de serem indiscutíveis as vantagens aferidas com a criação do CNJ e do CNMP, entende-se que o CNDP trará as mesmas benesses para a Defensoria Pública, e, não obstante considerar que aqueles não são perfeitos, a “previsão de composição miscigenada, eclética, já é um fator positivo”, pois não se permitiria que apenas membros da carreira exercessem as atividades de controle. Por fim, ele destaca a importância do órgão para a formação de uma instituição verdadeiramente forte e respeitada, possibilitando-se a criação de metas e normas concernentes às Defensorias Públicas Federal e Estadual45. De encontro aos posicionamentos suprarreferidos, Marcus Vinícius Lima, integrante da Defensoria Pública da União em São Paulo, aduz que a PEC em estudo, da forma como se apresenta, é uma incongruência, pois cria um Conselho com a presença de membros do Judiciário e do Ministério Público, sem haver, entretanto, qualquer representante da Defensoria Pública no CNJ ou no CNMP46. Tal argumento, que também foi utilizado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, cujo parecer será analisado posteriormente, apesar de possuir certa coerência, não deveria ser levantado como óbice à instituição do órgão se analisado frente às melhorias acima apontadas pelos membros da instituição. 2.4.2 Inadmissibilidade da PEC nº 525/2010 No dia 11 de maio de 2011, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, por meio de seu relator, o deputado Roberto Freire (PPS-SP), manifestou-se contra a admissibilidade da PEC em estudo. Para os membros da Comissão, a referida proposta fere duas cláusulas pétreas, a saber, a da separação de poderes e a da forma federativa do Estado. Sobre a primeira, o deputado expôs que, independentemente da modalidade de controle a ser exercido, o elemento jurídico essencial de sua constituição R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.182-199, jan./dez. 2011

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é a autonomia integral do Poder ou da instituição. Ao contrário do Ministério Público, que é uma instituição desvinculada dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, a Defensoria Pública da União ainda se apresenta subordinada ao Ministério da Justiça, sendo importante se frisar que somente foi conferida autonomia às Defensorias Públicas Estaduais, não alcançando a EC nº 45/2004 aquela. Entretanto, de encontro a essa situação, encontra-se em tramitação a PEC nº 358/2005, que, se aprovada, dotará a função essencial à Justiça em análise de autonomia integral, não mais havendo violação à cláusula pétrea prevista no inciso III, do § 4º, do artigo 60 da Constituição Federal. De fato, não há razão que justifique a manutenção da Defensoria Pública da União subordinada ao Poder Executivo, quando suas congêneres estaduais desde 2004 são dotadas de tal autonomia, com grande vantagem para uma assistência jurídica integral e de qualidade. Quanto ao desrespeito ao pacto federativo, os membros da Comissão entenderam que há, na PEC supracitada, um vício no § 1º do proposto artigo 134-A, “em que propõe o exercício da presidência do Conselho Nacional da Defensoria Pública (CNDP) por um Defensor Público, Federal, Estadual ou Distrital, eleito mediante votação secreta entre os membros do referido órgão”. Com a aceitação da redação do dispositivo, haveria claro desacordo com as disposições relativas às formas de composição do CNJ e do CNMP, que são presididos pelo Presidente do STF e pelo Procurador-Geral da República, respectivamente, devendo-se ressaltar ainda o papel da União no equilíbrio do pacto federativo (vide art. 34, VII, CF), sendo temerária a possibilidade de ingerência de um defensor público estadual no âmbito da Defensoria Pública da União. Necessário se faz destacar, todavia, que se trata apenas de deficiência na redação do artigo em alusão, que poderia ser facilmente corrigida com a aposição de uma emenda parlamentar. É indiscutível que uma imprecisão formal, facilmente removível, não pode constituir óbice à instauração de um Conselho Nacional capaz de dotar a instituição Defensoria Pública de um viés ainda mais democrático, para que possa com maior sucesso desincumbir-se de seu relevante mister de garantir assistência jurídica integral e gratuita aos mais necessitados do nosso país. 3 METODOLOGIA DA PESQUISA O trabalho ora exposto utilizou-se de pesquisa exploratória, empreendendo-se, de início, estudo bibliográfico e documental, dividido em duas etapas. Primeiramente, buscou-se destacar, a partir da análise de livros, artigos científicos e dissertações de mestrado, juntamente com o exame da Constituição e da Lei Orgânica, os fundamentos, as funções e a atual forma de estruturação da Defensoria Pública, cujas deficiências foram evidenciadas com a apreciação do III Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil. Em um segundo momento, fez-se uma análise comparativa, expondo-se dispositivos constitucionais e o posicionamento de magistrados e doutrinadores relativos à criação do CNJ e do CNMP. Concluídos os referidos estudos, realizou-se pesquisa de campo, formulando194

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-se entrevistas semiestruturadas dirigidas a membros de órgãos da administração superior e de execução da Defensoria Pública do Ceará, objetivando-se conhecer a opinião deles em relação à PEC em estudo, cujo conteúdo foi previamente analisado. Como o tema surgiu recentemente, não se constatando, até o presente momento, a sua discussão em outros trabalhos científicos, foi utilizado, como forma de abordagem, o método dialético, propiciando-se, após o exame da atuação da Defensoria Pública e dos Conselhos já existentes, a observância a posicionamentos favoráveis e contrários à criação do CNDP e à determinação da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania pela inadmissibilidade da PEC, o delineamento de ilações que vão ao encontro à proposta de criação do CNDP. 4 ANÁLISE DOS RESULTADOS Com a apreciação deste estudo, evidencia-se, primeiramente, o caráter imperioso da Defensoria Pública para a proteção e a garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos necessitados, mostrando-se a atuação concreta e supraindividual da instituição essencial à própria concretização do Estado Democrático de Direito. Constata-se, também, o grande contraste existente entre a previsão normativa e as limitações apontadas pelo estudo diagnóstico, restringindo-se o direito de acesso à Justiça e, consequentemente, a promoção da cidadania, mostrando-se urgente a adoção de medidas afirmativas voltadas à sua efetivação. Quanto à estruturação, verifica-se que, apesar de já conter certa miscigenação em virtude da introdução de representantes da sociedade civil por meio das ouvidorias, a maioria das Defensorias Públicas não cumpre o imperativo legal, sendo os ouvidores inexistentes ou integrantes da própria instituição, impedindo-se a contribuição do povo no processo de aperfeiçoamento e controle da qualidade dos serviços prestados. Em relação ao CNJ e ao CNMP, não obstante muitos doutrinadores e magistrados terem se mostrado contrários à criação deles, vê-se a essencialidade desses Conselhos no processo de busca de celeridade e transparência para a prestação jurisdicional e para a atividade de acusação e fiscalização da lei, respectivamente, mostrando-se o caráter híbrido desses órgãos fundamental para a eliminação do corporativismo e para a salvaguarda da autonomia do Judiciário e do Ministério Público, possuindo, para tanto, competência material e normativa. Empreendendo-se, finalmente, a análise da íntegra da PEC nº 525/2010 e o exame das entrevistas concedidas por alguns membros da instituição, permite-se revelar a necessidade da criação do CNDP, apesar de a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania considerá-la atualmente inviável, haja vista que o órgão de controle, entre outros benefícios, possibilitaria o alcance do almejado tratamento isonômico à Defensoria Pública frente aos órgãos estatais já controlados por Conselhos, propiciando-se a merecida visibilidade ao órgão responsável pela R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.182-199, jan./dez. 2011

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prestação da assistência jurídica integral e gratuita aos hipossuficientes e a efetivação da autonomia e dos princípios garantidos no âmbito normativo. 5 CONCLUSÃO Os dados apresentados neste trabalho permitem concluir que é possível e indispensável a instituição do Conselho Nacional da Defensoria Pública, apesar de não haver uniformidade entre os posicionamentos dos membros da carreira entrevistados, devendo-se eliminar as deficiências apontadas no órgão estatal que objetivaria proteger e a inaceitável desigualdade de tratamento existente entre a Defensoria Pública e os órgãos já controlados. Destaque-se que, a partir do estudo acerca do processo de formação da Defensoria Pública, se pode constatar as dificuldades existentes na busca da efetivação dos direitos dos cidadãos necessitados, apesar de protegidos pela “Constituição Cidadã”, devendo-se ressaltar o grande número de hipossuficientes que integram a população brasileira. Espera-se que reste demonstrada, sobretudo, a importância da fiscalização da qualidade dos serviços prestados pela Defensoria Pública e a inafastável necessidade da diminuição das diferenças verificadas entre as unidades da Federação, ansiando-se que, com a criação do órgão híbrido, a função essencial à Justiça ganhe, finalmente, um viés democrático e seja aperfeiçoada em nível nacional, observando-se sempre as melhorias geradas ao Sistema de Justiça com a criação do CNJ e do CNMP. REFERÊNCIAS ANDRADE, Carlos Augusto Medeiros de. O acesso à justiça e a Defensoria Pública. Revista da OAB-CE, n. 07, jan./jul. 2002. _________. O papel da Defensoria Pública no acesso do cidadão à justiça. 2005. 150 f. Dissertação (Mestrado em Direito Constitucional). – Universidade de Fortaleza, Fortaleza, 2005. BRASIL. PEC nº 525/2010. Câmara dos Deputados. Disponível em: <http:// www.camara.gov.br/sileg/integras/828068.pdf>. Acesso em: 30 jan. 2011. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988-2002. CNJ estabelece metas para 2011. Jus Brasil, 16 jan. 2011. Disponível em: < http://www.jusbrasil.com.br/noticias/2534904/cnj-estabelece-metas-para-2011>. Acesso em: 2 abr. 2011. GONÇALVES, Wagner. O Controle externo do Judiciário e do Ministério Público. Revista Jurídica Consulex, Distrito Federal, v. 8, fas. 173, mar. 2004. 196

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Leandro Sousa Bessa  Mariana Urano de Carvalho Caldas  Caio Werther Frota Neto

6 LIMA, Frederico Rodrigues Viana de, ob. cit., p. 88. 7 DINIZ apud LIMA, Frederico Rodrigues Viana de, Defensoria Pública. Salvador: Jus Podivm, 2010, p. 89. 8 ROCHA, A. S.; BESSA, Francilene Gomes de Brito. Defensoria Pública Brasileira: Realidade e Perspectivas. In: Guilherme José Purvin de Figueiredo, André da Silva Ordacgy. (Org.). Advocacia de Estado e Defensoria Pública. Curitiba: Letra da Lei, 2009, p. 35. 9 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. III Diagnóstico Defensoria Pública no Brasil. Brasília-DF, 2009. Disponível em : <http://www.anadep.org.br/wtksite/IIIdiag_DefensoriaP.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2010. 10 Ibid. 11 Ibid. 12 ROCHA, A. S.; BESSA, Francilene Gomes de Brito, ob. cit., p. 34. 13 LANDIM, Maria Noêmia Pereira. A Defensoria Pública e a proteção dos direitos metaindividuais no Estado Democrático de Direito. 2008. 113 f. Dissertação (Mestrado em Direito Constitucional). – Universidade de Fortaleza, Fortaleza, 2008, p. 33. 14 LIMA, Frederico Rodrigues Viana de, ob. cit., p. 97. 15 Ibid., p. 99. 16 LANDIM, Maria Noêmia Pereira, ob. cit., p. 65. 17 LIMA, Frederico Rodrigues Viana de, ob. cit., p. 157. 18 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. III Diagnóstico Defensoria Pública no Brasil. Brasília-DF, 2009. Disponível em <http://www.anadep.org.br/wtksite/IIIdiag_DefensoriaP.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2010. 19 ROCHA, A. S.; BESSA, Francilene Gomes de Brito, ob. cit., p. 44. 20 SADEK, Maria Tereza Aina. Poder Judiciário: perspectivas de Reforma. Opinião Pública, Campinas, v. 10, fas. 1, mai. 2004, p. 48. 21 UCHÔA, Marcelo Ribeiro. Controle do Judiciário: da expectativa à concretização (o primeiro biênio do Conselho Nacional de Justiça). 2007. 207 f. Dissertação (Mestrado em Direito Constitucional). – Universidade de Fortaleza, Fortaleza, 2007, p. 10. 22 UCHÔA, Marcelo Ribeiro, ob. cit., p. 28. 23 DALLARI apud UCHÔA, Marcelo Ribeiro. Controle do Judiciário: da expectativa à concretização (o primeiro biênio do Conselho Nacional de Justiça). 2007. 207 f. Dissertação (Mestrado em Direito Constitucional). – Universidade de Fortaleza, Fortaleza, 2007, p. 48. 24 UCHÔA, Marcelo Ribeiro, ob. cit., p. 71. 25 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 23 ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 523. 26 GONÇALVES, Wagner. O Controle externo do Judiciário e do Ministério Público. Revista Jurídica Consulex, Distrito Federal, v. 8, fas. 173, mar. 2004, p. 34. 27 ADI nº 3367-1/DF, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ 22.9.2006. 28 UCHÔA, Marcelo Ribeiro, ob. cit., p. 61. 29 Ibid., p. 62. 30 Ibid. 31 MORAES, Alexandre de, ob. cit., p. 519. 32 UCHÔA, Marcelo Ribeiro, ob. cit., p. 82. 33 Ibid. 34 Mutirão Carcerário do CNJ já permitiu a libertação de 20 mil presos em um ano e sete meses. Jus Brasil, 16 abr. 2010. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/noticias/2156686/mutirao-carcerario-do-cnj-ja-permitiu-a-liberacao-de-20-mil-presos-em-um-ano-e-sete-meses >. Acesso em: 2 abr. 2011. 35 CNJ estabelece metas para 2011. Jus Brasil, 16 jan. 2011. Disponível em: < http://www.jusbrasil.com.br/ noticias/2534904/cnj-estabelece-metas-para-2011>. Acesso em: 2 abr. 2011. 36 BRASIL. PEC nº 525/2010. Câmara dos Deputados. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/sileg/ integras/828068.pdf>. Acesso em: 30 jan. 2011. 37 Ibid. 38 Ibid. 39 Ibid. 40 Entrevista concedida no dia 14 de março de 2011. 41 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. III Diagnóstico Defensoria Pública no Brasil. Brasília-DF, 2009. Disponível em: <http://www.anadep.org.br/wtksite/IIIdiag_DefensoriaP.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2010. 42 Dados obtidos em entrevista concedida no dia 16 de março de 2011. 43 Dados obtidos em entrevista concedida no dia 16 de março de 2011. 44 QUARANTA, Roberta Madeira. Conselho Nacional da Defensoria Pública: Por que não? ANADEP,

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Investigando a Possibilidade de Criação do Conselho Nacional da Defensoria Pública

13 abr. 2010. Disponível em: <http://www.anadep.org.br/wtk/pagina/materia?id=8658>. Acesso em: 10 mai. 2010. 45 Dados obtidos na entrevista concedida no dia 14 de março de 2011. 46 MATSUURA, Lilian; GHIRELLO, Mariana. “Ações coletivas podem ser a solução para a Justiça”. Revista Consultor Jurídico, São Paulo, 6 mar. 2011. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2011-mar-06/ entrevista-marcus-vinicius-lima-chefe-dpu-sao-paulo>. Acesso em: 15 mar. 2011.

INVESTIGATING THE POSSIBILITY OF CREATING THE NATIONAL COUNCIL OF PUBLIC DEFENDERS ABSTRACT

This paper aims at analyzing the Proposed Constitutional Amendment n. 525/2010 that may create the National Council of Public Defenders (CNDP, in Portuguese), by investigating if its establishment is actually necessary to allow suitable access of the citizens to justice. To that end, a bibliographical research about the Public Defender’s Office, the National Council of Justice (CNJ, in Portuguese) and the National Council of State Public Prosecutors (CNMP, in Portuguese) – was carried out. Regarding the Public Defender’s Office, it was likewise important to observe the National Constitution and the specific legislation on public attorneys, with the intent of pointing out the principles, the functions and the structure of the institution; to analyze the III Diagnosis about the Situation of Public Defender’s Offices in Brazil; and to interview Public Defenders in Ceará. Concerning the existing Councils, a comparative method was used, highlighting the point of view of doctrine and magistrates about the creation of those institutions, followed by the examination of the improvements generated to the Judiciary and to the State Public Prosecutors’ Offices. Since this theme has not yet been fully debated, the dialectic method was used. The final conclusion of this study is that the creation of the CNDP is absolutely necessary. Its hybrid composition would prevent corporatism and its action, including other benefits, would avoid the disregard of the growing institutional assignments of public defenders and would make recommendations uniform, therefore improving Public Defender’s Offices to provide effective defense and the orientation to disadvantaged individuals. Keywords: Public Defense. Justice. Councils. R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.182-199, jan./dez. 2011

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V alores P olítico -J urídicos na Epopeia Homérica: Uma Leitura Jusfilosófica da Ilíada e da Odisseia1 Luiz Ismael Pereira* Ao denunciar sem maiores qualificações a epopéia como romance, ele deixa escapar o que a epopéia e o mito tem de fato em comum: dominação e exploração (ADORNO; HORKKEIMER, 2006: p. 49). Introdução. 1 A Epopeia como Estilo Literário: Entre Estética e Ética. 2 Valores Burgueses em Homero. 3 Ágora e Democracia: Participação Política. 4 Emancipação Política e Valores Jurídicos. Referências.

RESUMO Os valores políticos na epopeia homérica são estudados em vista da produção da Ilíada e da Odisseia. Nessas obras há grande contribuição para o Direito Político, como a verificação da criação de um ideal burguês antes mesmo da formação da burguesia como classe, bem como seus ideais políticos de posse, propriedade e família. A epopeia aparece como ligação entre o mito e o esclarecimento (Alfklärung) conforme entendido por Adorno e Horkheimer, também como forma de criação ética por meio da estética. A dominação de classes já aparece, na leitura frankfurtiana, em Homero como tipo a ser superado, sendo a Dialética do Esclarecimento, o melhor estudo sobre o tema e muito importante para estudar a cidadania cultural. Palavras-chave: Homero. Direito Político. Filosofia do Direito.

INTRODUÇÃO É comum creditar à civilização grega o título de berço da cultura ocidental. Isso não é exagero, seja pela influência da língua, seja pelos costumes, seja pelos valores humanistas. O que nos cabe no presente trabalho é entender quais os aspectos existentes no nascedouro da Grécia Antiga que influenciam, hoje, no estudo do Direito Político e Econômico, em especial, a partir da produção poética de Homero. 1 Artigo apresentado em forma de comunicação oral no XX Congresso do CONPEDI, em 2011. * Bacharel e Mestrando em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (SP). Bolsista CAPES/Prosup. Graduando em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (SP). Membro do Grupo de Pesquisas “Cidadania e Direito pelo olhar da Filosofia: tipologia da ação jurídica e política na teoria marxista”. E-mail: luiz.ismael@gmail.com

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A Ilíada e a Odisseia são cantos poéticos que possuem o germe do ideal da civilização grega em aspectos míticos e filosóficos que vão muito além da produção literária, diferentemente do que pensa o senso comum. O culto aos deuses, sua proteção aos seus devotos, bem como a busca de honra e nobreza pelos heróis são algumas das narrações existentes nos mais de vinte e sete mil versos da produção homérica, somando-se ambas as obras. É interessante observar que tais obras, ainda que com conteúdo mítico, são protótipos de diversos temas trabalhados pelo Direito Político. Diversos valores podem ser mais bem compreendidos, como a ideia de esclarecimento – ou iluminação; a estreita relação entre estética e ética no Direito; a formação da participação pública no Estado Democrático de Direito, bem como os mecanismos que tornam mais efetiva a absorção e a aplicação da vontade da sociedade civil pela sociedade política, em destaque, no presente trabalho, as alterações no processo civil brasileiro. Por óbvio, a enumeração dos temas acima citados, objetos do presente estudo, em ligação com a epopeia homérica e, além disso, frutos de pesquisa sobre o Direito Político e sua relação com o conceito de cidadania, não é exaustiva, mas provocativa. O presente artigo segue a metodologia crítico-filosófica com vistas a uma contribuição marxista à leitura atual da epopeia de Homero, no caminho já percorrido em parte por Theodor W. Adorno e Marx Horkkheimer na Dialética do Esclarecimento, terminada em 1947, como um alerta de busca da iluminação que leva à maioridade política do cidadão. A atualidade dessa pesquisa é demonstrada frente à necessidade de uma releitura dos valores político-democráticos no atual estágio da civilização. Marcada por um alto grau de dominação ideológica, assistimos ao crescimento da desconfiança da sociedade no espaço público. Como se propõe, ao jurista é dada a oportunidade da autoreflexão crítica. O materialismo histórico tem demonstrado que a história não acabou com a vitória do capitalismo sobre o socialismo de Estado, conforme Francis Fukuyama declarou ao presenciar o desmantelamento da União Soviética.1 Os caminhos trilhados no/pelo capitalismo não trazem a felicidade necessária para a plena vida humana. A radicalidade do capitalismo, como trem desgovernado, tem demonstrado a necessidade de mãos nos freios. O presente estudo não tem a pretensão de resolver tais problemas, mas demonstrar e colaborar com a teoria marxista que visa ao bem social. Teoria que não se contenta em compreender o mundo tomado por injustiças, mas em concentrar forças para impedir que elas se perpetuem. 1 A EPOPEIA COMO ESTILO LITERÁRIO: ENTRE ESTÉTICA E ÉTICA O mito surge na História ao passo que o homem sente necessidade de entender seu ambiente. Esse mesmo homem é incapaz, inicialmente, de explicar R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.200-216, jan./dez. 2011

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situações pavorosas como a tempestade nos mares, os relâmpagos, que queimam casas e plantações, a morte etc. É por meio da criação mítica que o homem tenta desenvolver respostas para o que não conhece. Com o rito, para Olgária Matos2, o mito é “o eixo das sociedades teológicas antigas”. Mythos, derivado do grego mythéomai (contar, narrar, falar alguma coisa para outros) e mythéo (conversar, contar, anunciar, designar), chega-nos como o mito, mitológico, a história contada. Utilizando de tais “narrativas sobre a origem de todas as coisas, o grego encontra as explicações de que precisa para se acalmar diante de um universo assustador, do qual ele não conseguia ordenar, controlar, nem compreender”.3 Esse estilo se ajusta ao momento pelo qual passa a civilização grega durante a produção homérica. O autoconhecimento como nação, embora ainda estivessem politicamente divididos, foi importante para enfrentar as guerras que viram. Por isso, “as epopeias desejam relatar algo digno de ser relatado, algo que não se equipara a todo o resto, algo inconfundível e que merece ser transmitido em seu próprio nome”4. Ligado ao envolvimento religioso do espírito com o mundo, o mito não pode ser lido separado de ligação com o espiritual. No místico, reside o encantamento do mito. Reflexões essas que permeiam toda a obra daquele que chamamos de “O Homero”.5 Esse caráter mágico, religioso, confere ao mito uma característica especial: a da adaptação. Com o passar dos anos, “trazem consigo, a cada rememoração, um sentido exemplar, suas palavras tem efeito mágico”.6 Os mitos foram, com o tempo, utilizados ao prazer dos poetas com o objetivo de uma formação educativa sobre o povo grego que jamais apagará sua história. Homero os reforça na transformação racional pela qual passam ao criar a epopeia. Para Adorno e Horkheimer, no século XX, numa leitura alegórica de uma sociedade baseada na tensão da dominação dialética entre dominantes e dominados, essa força racional a que o mito se agrega por meio da epopeia é a exata transformação do mythos no logos. Cria-se, nesse instante, o próprio Alfklärung (Esclarecimento e Iluminismo a um só tempo): Mas os mitos que caem vítimas do esclarecimento já eram o produto do próprio esclarecimento. No cálculo científico dos acontecimentos anula-se a conta que outrora o pensamento dera, nos mitos, dos acontecimentos. O mito queria relatar, denominar, dizer a origem, mas também expor, fixar, explicar. Com o registro e a coleção dos mitos, essa tendência reforçou-se. Muito cedo deixaram de ser um relato, para se tornarem doutrina.7

Adotamos a possibilidade de leitura do mito para a aplicação por sua própria natureza de narração. Esse posicionamento não é uníssono, mas não podemos concordar com a estanque leitura histórica dos relatos, apenas ligado à sociedade em que produzida, como propõe Dan Edelstein: 202

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Valores Político-Jurídicos na Epopeia Homérica: Uma Leitura Jusfilosófica da Ilíada e da Odisseia

“A ‘introdução’ do mito no pensamento político moderno é, portanto, tanto um fator de miopia histórica, ou então um evento qualitativo, uma transformação do objeto de ‘mito’ em si. [...] Identificar o momento (ou momentos) em que os mitos políticos se tornaram modernos requer que distingamos tais mitos como clássicos ou antigos. Enquanto há várias características que diferenciam essas duas categorias, argumentaria que o primeiro e mais importante contraste deita na relação entre um mito e a era ou cultura que o produziu. Para as mitologias políticas clássicas, o principal valor do mito reside em sua autoridade tradicional (no sentido de Max Weber): o mito mais velho, e quanto mais respeitável a sociedade à qual ele está ligado, mais autoritário ele é”.8

Não se fecha os olhos para a adequação do mito ao momento histórico em que estiver inserido. O que pode ser feito, e é autorizado pela natureza narrativa do mito, é sua aplicação antitípica. Essa foi a metodologia utilizada na Dialética do Esclarecimento e de valor para entender os modos de atuação do esclarecimento. Além disso, esse caráter histórico possibilita a melhor visualização do “amontoado de ‘agoras’” que compõe a História,9 bem como sua relação com a sociedade e valores políticos atuais. Nesse sentido, para Jeanne Gagnebin, ao comentar a leitura elaborada por Adorno e Horkheimer, “[...] uma interpretação alegórica não é, por definição, nenhum comentário filológico rigoroso, mas sim uma leitura ao mesmo tempo salvadora, porque retoma e transfigura a tradição, e arbitrária, justamente porque não se baseia nos alicerces sólidos da pesquisa filológica”. 10

Essa é “doutrina” impregnada na obra de Homero – conceito utilizado por Adorno e Horkheimer – que permite entender até que ponto o mito e a filosofia, o mythos e o logos caminham lado a lado. Já há nessas obras um meticuloso “desenvolvimento íntimo e necessário das ações, que se sucedem passo a passo, numa inviolável conexão de causas e efeitos”11. Como dizem os frankfurtianos, “ao se apoderar dos mitos, ao ‘organizá-los’, o espírito homérico entra em contradição com eles”12. É a filosofia, pautada na razão, que deriva diretamente da epopeia mítica, como Aristóteles já destacara: “o amante do mito já é, de algum modo, filósofo” (Metafísica A 2, 982 b 18s). A idéia de Homero como totalmente irracional é absurda. [...] Em vez criar violentas oposições entre o pensamento racional e irracional e assumir que há períodos em que um ou outro dominam completamente; em vez de propagar a noção de que há uma classe especial de pensamento mítico é o oposto, em certo sentido, à filosofia, seria melhor olhar com mais atenção, em primeiro lugar, o que entendemos com o pensamento racional e filosófico e, em seguida, diferentes tipos de atitude mental que estiveram realmente presentes nos mitos gregos.13

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É esse elemento “racional”, iluminista – ou esclarecedor, para não confundir, por uma leitura apressada, com a doutrina desenvolvida apenas na Idade Moderna – que mostra a atualidade do estudo da obra homérica. Afinal, “o romance, cujos primórdios remontam à Antiguidade, precisou de centenas de anos para encontrar, na burguesia ascendente, os elementos favoráveis a seu florescimento”. Até lá, frise-se, são os ideais burgueses que permeiam a epopeia, separada do romance, apenas, pela forma do livro14. O papel fundamental da produção de Homero sobre a formação do homem grego é destacada por Jaeger que vê a impossibilidade e o estudo da civilização daquele povo sem incluir o estudo da obra literária.15 É o que nos permite afirmar que a estética condiciona a ética e por ela é mutuamente condicionada. Essa relação dialética entre as categorias filosóficas fica clara com a visão da literatura como produção educadora. Nesse sentido, Walter Benjamin, com campo revolucionário, liga a importância da arte na formação política de um povo: “A dialética dessas tendências [evolutivas da arte] não é menos visível na superestrutura que na economia. Seria, portanto, falso subestimar o valor dessas teses [sobre a arte] para o combate político”16, seja para a conformação do povo aos valores de uma classe dominante, do Estado, seja mesmo para a produção de um espírito libertador. A estética condiciona a ética: a ação é sempre delimitada pelo modo como um povo recebe e compreende a produção cultural de sua época. Um povo que absorve uma cultura construtora de consciência, dotada de aura própria – o hic et nunc – de seu tempo, é muito mais crítico, exigente e consciente de seu papel. O contrário também é verdadeiro: para destruir um povo, destrua sua cultura, povoe sua mente com o lixo cultural que apenas (re)produz, somente repete, não reflete. Na Ilíada, a figura de Fênix, mestre de Aquiles, bem como os tipos da Telemaquia e de Ulisses, na Odisseia, são grandes exemplos dessa relação entre a estética e a ética na obra de Homero como meio de educação e formação do homem grego. Nessas figuras, o papel do tutor, ou Mentor – nome de um amigo próximo e, por força do travestismo de Palas Atenas, guia de Telêmaco, filho de Ulisses – na indicação do caminho a seguir na busca do verdadeiro ideal de arete (dignidade, honraria, dignificação)17 – é imprescindível. Isso é notado no Canto II, versos 267 a 271 da Ilíada18. E quem é o homem Ulisses que Palas Atenas – na figura do amigo da família, Mentor – admoesta para que Telêmaco o siga como exemplo de vida? É o pai, o dono de terras, o senhor de escravos, o detentor de grandes honrarias e respeito por parte de seus ajudantes e dos próprios deuses, que luta para voltar a sua terra, família e tesouros. Esse ideal de educação do homem é o que perdurará por toda a obra de Homero e será impregnado na formação do grego que dele lê e houve falar, seja na aristocracia, seja nos cantos populares posteriores. 204

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2 VALORES BURGUESES EM HOMERO Seria impossível e, por isso, é ingenuidade falar na formação da burguesia durante a Antiguidade Clássica. A classe mercantil, que nasceu nas feiras da Europa Medieval, nos chamados burgos, não existia durante o sistema escravagista da Grécia Antiga. Mas esse fato não nos desautoriza a entender que o ideal burguês – ou, para Jaeger, “cultura aristocrática helênica”19 – já nascerá lá. Walter Benjamin combatera a ideia conformista de visão histórica apenas como a linearidade que vulgarmente aprendemos, como se, ao fim de cada grande marco histórico, todos os valores sumissem como um todo da face do planeta. Como diz na tese 14, “a história é o objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’”20. Disso decorre que é possível pensar na formação de um embrião na Antiguidade Clássica que formaria, futuramente, a burguesia: seus medos, suas buscas, suas preocupações e seus padrões morais. Adorno e Horkheimer21 mais uma vez lembram que as linhas da razão identificam, ou assim o deveriam fazer, o aparecimento desse ideal burguês, já no aparecimento da epopeia homérica, não apenas na forma estética, mas nos valores demonstrados na figura de Ulisses e, ainda, nas características romancistas que destacamos na epígrafe: dominação e exploração, pois o direito das figuras míticas é sempre o do mais forte. Como se observa na Odisseia, Ulisses é o verdadeiro padrão do homem burguês: luta contra o tempo, contra Sereias, vai ao Hades e retorna vivo, passa pelo grande Gigante de um único olho, todas essas aventuras com o objetivo de voltar a sua propriedade, seus tesouros e sua família. Sem qualquer pudor, a forte figura da família-e-propriedade é o motivo que o impulsiona. Não se deixa barrar, prossegue como fim justo, justificando os meios utilizados para tanto. Como já referira Lukcás22, “o romance é a epopeia de uma era para a qual a totalidade extensiva da vida não é mais dada de modo evidente, para a qual a imanência do sentido à vida tornou-se problemática, mas que ainda assim tem por intenção a totalidade”. A epopéia imita o fascínio do mito, mas para amenizá-lo. [...] Por ser um empreendimento antimitológico, ela se destaca no esforço iluminista e positivista de aderir fielmente e sem distorção àquilo que uma vez aconteceu, exatamente do jeito como aconteceu, quebrando assim o feitiço exercido pelo acontecido o mito em seu sentido próprio. [...] Na ingenuidade épica vive a crítica da razão burguesa. Ela se agarra àquela possibilidade de experiência que foi destruída pela razão burguesa, pretensamente fundada por essa própria experiência. [...] Mas é apenas essa ingenuidade, novamente, que permite a alguém narrar os primórdios do capitalismo tardio uma era repleta de desgraças, apropriando-se desse momento pela anamnesis, em vez de simplesmente relatá-lo e, por meio de um protocolo que R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.200-216, jan./dez. 2011

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se relaciona com o tempo como um mero índex, rebaixá-lo com um ar enganador de atualidade a um nada incapaz de propiciar qualquer memória.23

As fortes semelhanças entre os temas de ambos os estilos literários demonstram que mantém uma decorrência: embora radicalmente opostos no marxismo, parece que Adorno concorda nesse ponto com Lukcás ao afirmar o ideal positivista da epopeia, bem como sua forma “ingênua” que, diante das paranoias perpetradas pelo capitalismo tardio, permitem seu relato. Desse modo, fica clara a ligação entre a epopeia e o romance burguês, sem a qual seria impossível contar suas façanhas, em que pese o pensamento de Lukcás que acaba por colocar o tema da epopeia – e por extensão a homérica – no campo do coletivo, como narração de façanhas de um povo, não do indivíduo, em oposição a Adorno: O herói da epopéia nunca é, a rigor, um indivíduo. Desde sempre considerou-se traço essencial da epopéia que seu objeto não é um destino pessoal, mas o de uma comunidade [...] a série de aventuras na qual o acontecimento é simbolizado adquire seu peso pela importância que possui para a fortuna de um grande complexo vital orgânico, de um povo ou de uma estirpe.24

Nesse aspecto, Lukcás vai de encontro direto com as ideias de Adorno. Posicionamento este que adotamos, há um “eu sobrevivente” da dialética expressa na aventura de Ulisses. “Como os heróis de todos os romances posteriores, Ulisses, por assim dizer se perde a fim de se ganhar”25. Esse pensamento de Lukcás não se ajusta à individualidade de que permeia a Odisseia e os valores que Ulisses tenta alcançar: família, propriedade e escravos. Vale destacar que Habermas chega a concordar com Adorno e Horkheimer26 ao confirmar que “nas aventuras de Ulisses, astuto e duplo sentido, espelha-se a proto-história de uma subjetividade que se desprende da coerção dos poderes míticos”, mas sem razão ao afirmar que não fazem “justiça ao conteúdo racional da modernidade cultural, que foi conservado nos ideais burgueses27. É simplesmente impossível entender o motivo para se crer que há algum caráter emancipatório na civilidade moderna – e pós-moderna por consequência. A semicultura, produto da semiformação da sociedade é a regra de toda produção educacional, influindo em todos os campos da vida em sociedade – inclusive no Direito.28 Para Habermas e todos os que creem nessa impossível utopia do capitalismo tardio e, mais uma vez, inclusive no Direito, repetimos as palavras de Marcuse a Heidegger: “This not a political but instead an intellectual problem - I am tempted to say: a problem of cognition, of truth”29. 3 ÁGORA E DEMOCRACIA: PARTICIPAÇÃO POLÍTICA Sobre o papel político da Ágora grega, verifica-se que as decisões, de início, não eram democráticas, como se vê na Política atual. O centro de decisão 206

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era na parte alta da cidade, onde as pedras invocavam a presença de Themis, a deusa da Justiça na teogonia homérica. Themis, palavra cuja raiz é ponto em comum com a da palavra pedra, era quem presidia a reunião aristocrata para a tomada de decisões. Em regra, no início, o povo não participava desses encontros. Com o passar do tempo, a situação muda. Isso fica claro na passagem da Ilíada na qual os senhores, reunidos na Ágora, deliberam sobre a saída das tropas gregas em direção a Tróia. É na ágora – tipo do reino da liberdade, além da democracia, tendo o indivíduo atingido a emancipação política – que se decide o destino da cidade. Com o tempo, em especial com o nascimento de uma nova teogonia na obra de Hesíodo, a Themis de Homero é substituída por Diké, deusa que simboliza a justiça ligada aos homens. A Ágora passa, também com o tempo, para o centro das Cidades-Estado, onde, equidistantes de quaisquer lugares, permitia a fala e a participação política direta do povo. No cenário político atual, vê-se um esvaziamento da Ágora política com a criação de uma verdadeira massa de fantasmagorias – fantasmas na ágora, que caminham para a participação política sem qualquer preparação. Naquele tempo, não era dado ao povo opinar, participar. Hoje, em que pese a abertura, não há qualquer vinculação emocional direta entre o cidadão e o destino da cidade. Fala-se na existência de uma ágora virtual, como os sítios de relacionamentos facebook e twitter, para citar apenas alguns. Mas não há a verdadeira crítica e participação no destino da cidade, o que se espera de um povo que possui a tradição e a herança da formação ideal do homem grego. O que se observa é um verdadeiro vazio político, infantilização e despreparo. Em grande parte, essa é a conformação ética que a estética – e mais uma vez voltamos à relação da filosofia geral com a filosofia do Direito – na produção cultural do homem médio. Nesse ponto, mais uma vez Adorno e Horkheimer são os pioneiros ao descortinar o papel da Indústria Cultural no (des)ideal do homem contemporâneo. 4 EMANCIPAÇÃO POLÍTICA E VALORES JURÍDICOS Mito e esclarecimento não são duas faces da mesma moeda. Eles são a mesma face, possuem as mesmas forças motivadoras: o medo, a autoconservação do sujeito e o instinto de sobrevivência. Não por acaso os artifícios criados na mitologia se ligarem à mimese, a cópia da Natureza pelo sujeito como meio de adequar-se ao ambiente, passar-se imperceptível. Introjetam-se características para assimilação ao meio. Como diz Márcia Tiburi30, “assimilação física do indivíduo à natureza que ainda não estaria subjugada ao conceito e à racionalidade desejosos de poder”. Da mesma forma, com o projeto de emancipação iluminista, a razão passa a impedir a clara atuação da mimese.

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Tanto a mitologia quanto o Iluminismo filosófico (dos séculos XVII e XVIII) e científico encontram suas raízes nas mesmas necessidades básicas: sobrevivência, autoconservação e medo (Angst). [...] a autoconservação nasce do medo mítico de perder o próprio eu, medo da morte e a da destruição. [...] o outro é visto como hostil, perigoso e devendo ser dominado. Para tanto, mito e ciência têm procedimentos diversos: no mito, o recurso ao mimetismo; na ciência, à identidade.31

Aliás, não poderia ser de outra forma. Não é útil para quem determina a ordem (e por isso tem o poder de decisão) que as pessoas saibam de algo tão fantasmagórico: “A ratio, que recalca a mimese, não é simplesmente seu contrário. Ela própria é mimese: a mimese do que está morto”32, enquanto a mimese original “permanece como nostalgia”33. Para isso, com o fim de sobreviver, não mede esforços, como no episódio em que Ulisses, utilizando da razão (ainda não suficiente) para safar-se do ataque dos demais Ciclopes ao atacar Polifemo, engana-o com o nome de Ninguém34. Nesse momento, cabe crítica própria ao pensamento jurídico como utilitário do esclarecimento que nasce com o pensamento burguês. Tendo como espelho a produção nacional, o ensino jurídico – que se reflete na produção da literatura e das decisões judiciais – tem formado cada vez mais técnicos que o são apenas dentro da técnica. A retomada ético-moral promovida pelo Juspositivismo Ético não permite uma real revolução contra a desigualdade social existente na era da sociedade industrial. O direito, como ‘instrumento da dominação destinado a dominar todos, deve se deixar alcançar por todos’35. O Direito ainda está preso a um ritual que já se observava nos mitos: uma vez acontecido no passado determinado ato, esse era relembrado ano a ano por meio de festas e sacrifícios, como se reproduzisse sua realização. O Direito também tem como função a autopreservação para a salvação da morte. “O automatismo ou a repetição do ritual é phármakon que faz ‘esquecer’ o horror e o medo da morte violenta da vida em comum dos homens”36. O que o Juspositivismo Ético tem realizado com os discursos que dão vazão a diferenças menores entre regras e princípios é prender o pensamento ao binômio legalidade-ilegalidade, o que será o mesmo que incluir a promoção de justiça social dentro do binômio violência-poder. Walter Benjamin, ao trabalhar a função da justiça promovida pelo Direito e pelo Poder Judiciário, considerou-a como Gewalt, poder e violência, a um só tempo. O Direito – e as instituições jurídicas, aproveitando o argumento de Benjamin37 – é instituído como forma de aplicação da violência/poder diretos sobre os movimentos que tendem a diminuir sua legitimidade. Não aceita a criação de outro direito que lhe faça as vezes. Regras ou princípios serão sempre formas de imposição de violência/poder 208

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– características, também, dos mitos homéricos. Como já dito, a importância do Direito, bem como seus aparelhos de atuação – como valores, relevâncias, verdadeira arete – está para nossa sociedade total administrada, assim como a metafísica para os destituídos de utopia concreta: “permite o progresso, mas não sem abrir as portas para suas consequências intramundanas, a saber: poder e violência (Gewalt)”.38 O Direito não pode se isolar, como se nada mais importasse além das construções legais e principiológicas diante das alterações filosófico-econômico-sociais ocorridas no decorrer da História, em especial das especificidades do povo brasileiro. O problema a enfrentar é a crescente velocidade de modificação da pós-modernidade. “O individualismo dos princípios gerais esquece que cada pessoa é um mundo e passa a existir em relação com outros, que todos nós estamos em comunidade”39 A reprodução da norma pelo pensamento jurídico técnico como fim de autoconservação não tem qualquer caráter emancipatório. Permite o apaziguamento do medo da desordem rumo ao progresso, ao desenvolvimento tecnológico e científico. O Direito, como ideologia, louva o sistema que instiga os desejos sem permitir as condições de realização. Ao capital são realizados, sistematicamente, diversos sacrifícios, os quais prendem os juristas ao mesmo medo que tentam esquecer. Diz-se que não há emancipação, pois o clima de semicultura existente – não apenas nas classes pobres – é o de construção de minoridade, de dependência, não de realização própria. Os artifícios de Ulisses são o protótipo da renúncia burguesa. A astúcia passa a ocupar o lugar do sacrifício, astúcia que é injustiça porque logra a natureza, e cada mudança na lei – a injustiça – ameaça e ao mesmo tempo, reforça o eu. [...] A viagem atraiçoadora de Ulisses antecipava a ideologia burguesa do risco como justificativa moral dos lucros. O homem se realiza na medida em que se sacrifica [...] A viagem de Ulisses é a viagem metafórica que a humanidade precisou realizar para efetuar a passagem da natureza à cultura, do instinto à sociedade, da auto-repressão ao autodesenvolvimento40.

A passagem da natureza à cultura, a criação de uma Segunda Natureza, está bem demonstrada no protótipo de Ulisses que, por todas as artimanhas possíveis, busca os meios para chegar a seus fins: o retorno ao lar, a busca da propriedade e dos servos que já tivera. “Para Ulisses, Itaca é o centro do mundo, seu eixo arquimediano, o ponto fixo”41. Da fuga do real, da natureza, o homem cria: para justificar a propriedade privada, não mede esforços nessa empreitada. “O que os homens querem aprender da natureza é como empregá-la para dominar completamente a ela e aos homens. Nada mais importa”42. O programa do esclarecimento era o desencantamento do mundo, Sua meta era dissolver os mitos e substituir a imaginação R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.200-216, jan./dez. 2011

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pelo saber. [...] Contudo, a credulidade, a aversão à dúvida, a temeridade no responder, o vangloriar-se com o saber, a timidez no contradizer, o agir por interesse, a preguiça nas investigações pessoais, o fetichismo verbal, o deter-se em conhecimentos parciais: isto e coisas semelhantes impediram um casamento feliz do entendimento humano com a natureza das coisas e o acasalaram, em vez disso, a conceitos vãos e experimentos erráticos: o fruto e a posteridade de tão gloriosa união pode-se facilmente imaginar43.

Para uma demonstração atualíssima dessa característica jurídica do Direito burguês que impõe a igualdade como meio de autoconservação – fruto da mimese, como já referimos –, afinal, só no campo da equivalência formal impera o conformismo, os mitos homéricos são de ajuda. Pode-se citar, ainda, o mítico e o sublime Escudo de Aquiles (Canto XVIII), episódio-relato das armas de guerra da Ulisses, em que uma cidade grega antiga é descrita com uma riqueza de detalhes invejável. Vemos o relato de um julgamento entre os gregos44: Cheio se encontrava o mercado, que dois cidadãos contendiam sobre quantia a ser paga por causa de um crime de morte: um declarava ante o povo que tudo saldara a contento; outro negava que houvesse, até então, recebido a importância. Ambos um juiz exigiam, que fim à contenda pusesse. O povo, à volta, tomava partido, gritando e aplaudindo. A multidão os arautos acalmam; no centro, os mais velhos em um recinto sagrado, sentados em pedras polidas, nas mãos os cetros mantêm dos arautos de voz sonorosa. Fala cada um por seu turno, de pé, e o seu juízo enuncia. Quem decidisse com mais equidade, dois áureos talentos receberia, que ali já se achavam, no meio de todos.

Nas sequências de imagens acima, reside um dos procedimentos processuais civis mais antigos, no qual se ultrapassa a autotutela como meio de solução de conflitos, embora não seja possível discernir se o relato se refere a um costume observado e vivido por Homero ou se trata de memórias relatadas como observou Hans Julius Wolff.45 Esse relato versa sobre a responsabilidade civil pela morte de uma pessoa. A compensação em dinheiro deve ser prestada e, para isso, as partes vão a público para ter resolvido o litígio: o homem que clama pela justiça, que inicia o pedido de julgamento, assassinou e, sabendo o dever indenizar, alega que já o fizera a contento, não havendo mais nada a saldar. Buscam um juiz neutro, imparcial, o istor, com o fim de decidir o caso. Primeiramente, destaca-se que a busca do início do procedimento está com o réu, com o devedor, com a pessoa que sofrerá no âmbito privado as conseqüências da justiça pessoal do credor, caso não haja quem o socorra, de modo a garantir a justiça no caso concreto. Por que esse detalhe seria de importância atualmente? O valor político da justiça para a solução dos litígios 210

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tem levado ao desenvolvimento do ordenamento processual brasileiro, com fins a permitir sua atualidade. Dentre os institutos discutidos no projeto de lei de um Novo Código de Processo Civil que tramita no Congresso Nacional, bem como seu substitutivo, está o que se chama de estabilização da tutela satisfativa e da tutela de urgência, pela qual, em termos simples, o réu poderá propor ação para discutir a tutela concedida anteriormente, sob pena de formar coisa julgada. Os valores parecem não coincidir, pois lá a proteção é anterior, com o fim de “obter proteção do devedor contra a execução ilegal”46; já aqui a proteção é posterior à ação, ainda que pela mão de um juiz. Tal dispositivo se baseia em estudo organizado por Ada Pellegrini Grinover, produzido com o fim de concatenar as técnicas processuais utilizadas em países dos cinco continentes, citando, por exemplo, as disposições do direito italiano sobre as tutelas de urgência. No estudo original, conclui-se que a técnica de processos com estrutura monitória é a mais difundida, tendo em vista o fim de promover a satisfação antecipada do pedido do autor. Chamado de “procedimento ingiuntivo” na Itália, de “mahneverfahen” na Alemanha e na Áustria, de “injonction de payer” na França e na Bélgica, o processo monitório é exclusivamente documental em alguns países (como na Itália, Bélgica e Brasil), conhecendo outros países a forma “pura”, em que a emissão da escrita do débito (França Alemanha, Áustria). Mas o traço comum é o de que a cognição se limita à prova produzida pelo requerente e é normalmente caracterizada pela ausência de contraditório inicial. Somente se o devedor, após o decreto injuntivo, se opuser à ordem de pagamento, é que se instaurará o procedimento comum, em contraditório pleno.47

Seguindo o raciocínio positivista já bem difundido, a proposta prevê a instauração de um procedimento sumário, monitório, no qual o autor requer a antecipação da tutela satisfativa, com o fim de dosar os efeitos que a cognição exauriente pode ter sobre o autor que, supostamente, tem direito. Reconhecendo o respeito ao devido processo legal, o contraditório diferido se tornaria a regra do sistema, pois se pretende atribuir ao réu o ônus de provocar a cognição plena48. Trata-se de técnica inovadora para o ordenamento civil brasileiro, em que pese a aproximação teórica com o procedimento monitório de adiantamento da tutela executiva. Como regra, não se prevê a cognição exauriente para a formação de preclusão com força de coisa julgada. Caso entenda necessário, poderá o réu mover a ação principal de conhecimento, sem a qual tornará a tutela como final, caso deferida. O que preocupa nesse tipo de procedimento é o equilíbrio de forças. Em que pese a difusão dos direitos na sociedade por órgãos como o IDEC, o PROCON, a TV Justiça e o famoso “boca a boca”, em geral não há uma cultura jurídica amplamente difundida. R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.200-216, jan./dez. 2011

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A Defensoria Pública continua defasada, pouco aparelhada, com poucos defensores concursados, com quadro de pessoal reduzido. A insegurança gerada por um procedimento posto na mão de um autor com possibilidade econômica de contratar grandes bancas de advogados para ajuizar um cidadão que necessite daquela instituição, ou não a procure, pois não sabe como fazê-lo, é de grande preocupação. Não se pode permitir, isso sim, que a História seja mais uma vez narrada pelos vencedores. CONCLUSÕES Identifica-se, pelo exposto, que há verdadeira ligação entre a produção artística de Homero no campo da estética e sua produção política, pois, como vimos, há uma forte ligação entre a estética e a ética que não pode ser apagada. Tais influências, inclusive, repercutiram na própria formação do ideal burguês. Isso não ocorre apenas para o lado bom: como visto, a mimese do mito é transportada para a equivalência burguesa, característica não desejável quando se fala em práticas de justiça. O pensamento jurídico atual deve ir além da reprodução ritual morta, como se o sacrifício – de animais, ou da própria vida do herói (Aquiles ou Ulisses) – fosse o mais importante. Ir além, por meio da crítica, inovar, pensar na conjuntura social é o que diferenciará o jurista que se preocupa, verdadeiramente, com a esperança de modo progressista. Categorias fundamentais para o estudo do Direito Político podem ser aprofundadas com o estudo da epopeia homérica: como a participação popular, a busca de uma emancipação política por meio de ações afirmativas que vão além dos direitos humanos garantidos e que só reforçam o papel ideológico do Direito. O procedimento judicial dos gregos, visto na cena do Escudo de Aquiles, permite um melhor entendimento do que está implicado em renovar o pensamento processual – e por envolver a atuação do Estado, é Direito Político – deve envolver a realidade histórica, tendo em vista não apenas os cidadãos. Falamos em “para além do cidadão” com base na própria epopeia homérica, a qual destaca os feitos de quem tinha direitos, de quem era o cidadão e tinha voz na ágora. O que temos hoje é um exército de pessoas que, por estarem à margem econômico-social, de algum modo, estão à margem do direito. Para essas devemos olhar não de modo ideológico, mas de maneira humana, entendendo que esses também buscam justiça e que, por tais características, devem ser melhores assistidos, sob pena de cometermos a pior das injustiças: perpetuação da dominação.

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internal transformation of the object “myth” itself […]. Identifying the moment (or moments) when political myths became modern requires that we distinguish such myths from classical or ancient ones. While there are various characteristics that differentiate these two categories, I would argue that the first and most important contrast lies in the relation between a myth and the age or culture that produced it. For classical political mythologies, the principal value of a myth resides in its traditional authority (in Max Weber’s sense): the older the myth, and the more venerable the society to which it is attached, the more authoritative it is”. 9 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da História. ROUANET, Sérgio Paulo (Trad.). Magia e técnica, arte e política. Obras Escolhidas. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 229. 10 GAGNEBIN, Jean-Marie. “Resistir às sereias”. In: SOCHA, Eduardo (org.). Escola de Frankfurt: uma introdução às obras de Theodor Adorno, Walter Benjamin, Herbert Marcuse. São Paulo: Bregantini, 2008, p. 16-18. 11 JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 78. 12 ADORNO; HORKHEIMER, op. cit., p. 47. 13 KIRK, G.S. La naturaleza de los Mitos Griegos. Barcelona: Paidós, 2002, p. 275. No original: “La idea de Homero como totalmente irracional es absurda. (...) En lugar de plantear violentas oposiciones entre pensamiento racional e irracional y suponer que hay periodos en los que uno u otro dominan completamente; en lugar de propagar la desvaída noción de que existe una clase especial de pensamiento mítico que es lo opuesto, en cierto sentido, a la filosofía, sería mejor examinar más detenidamente, en primer lugar, lo que entendemos por pensamiento racional y filosófico y luego los diferentes tipos de actitud mental que estaban realmente presentes en los mitos griegos”. 14 BENJAMIN, Walter, op. cit., p. 202. 15 JEAGER, Werner, op. cit. pp. 3-.20. 16 Ibid., p. 166. 17 Confome Jaeger, “tanto em Homero como nos séculos posteriores, o conceito de Arete é frequentemente usado no seu sengtido mais amplo, isto é, n;ao só para designar a excelência humana, como também a superioridade de seres não humanos [...]. A arete é o atributo próprio da nobreza”. Cf JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. 5.ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 26. 18 HOMERO, In: NUNES, Carlos Alberto (Trad.). Odisseia. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001, p. 49. 19 JEAGER, Werner, op. cit. pp. 98. 20 BENJAMIN, 1994c, op. cit., p. 229. 21 ADORNO; HORKHEIMER, op cit., p. 49-57. 22 LUKÁCS, Georg. In: MACEDO, José Marcos Mariani de (Trad.). A teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2009, p. 55. 23 ADORNO, 2003, op. cit., p. 49-50. 24 LUKÁCS, op. cit., p. 57. 25 ADORNO; HORKHEIMER, op. cit., p. 50. 26 Ibid., p. 155. 27 Ibid., p. 162. 28 A teoria da semicultura de Adorno demonstra o estado de desencantamento da sociedade, onde houve uma “queda irrevogável da metafísica”, afetando não só as classes pobres, banhadas na indústria cultural de massa, mas também nas chamadas semicultas, pois a condição geral é a de que o espírito foi “conquistado pelo caráter fetichista da mercadoria” (1996, p. 398 e 400). 29 MARCUSE, Herbert; HEIDEGGER, Martin. In: WOLIN, Richar (Trad.). Herbert Marcuse and Martin Heidegger: an Exchange of Letters. New German Critique. Durham: Duke University Press, 2001, n. 53, Spring-Summer, p. 28-32, p. 31. 30 TIBURI, Márcia. Crítica da razão e mímeses no pensamento de Theodor W. Adorno. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995, p. 84. 31 MATOS, op. cit., p. 155-156. 32 ADORNO; HORKHEIMER, op. cit., p. 55. 33 TIBURI, op. cit., p. 88. 34 HOMERO, 2001, op. cit., p. 164-165. (Canto IX) 35 ADORNO; HORKHEIMER, op. cit., 42. 36 MATOS, op. cit., p. 85. 37 BENJAMIN, 1986, op. cit., p. 160. 38 PEREIRA, Luiz Ismael. O rapto de Perséfone e o Pensamento Jurídico. Revista Crítica do Direito. n. 1, v.

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POLITICAL AND LEGAL VALUES IN THE HOMERIC EPIC: A JUSPHILOSOPHICAL READING OF THE ILIAD AND THE ODYSSEY ABSTRACT Political values in the Homeric epic are studied on the basis of The Iliad and The Odyssey. These works include a major contribution to Political Law, such as evidence of the creation of a bourgeois ideal even before the formation of the bourgeoisie as a class as well as its political ideals of tenure, property and family. The epic appears as liaison between myth and enlightenment (Alfklärung), as understood by Adorno and Horkheimer, also as a way of ethical formation through aesthetics. Class domination is already present according to the Frankfurt School, in Homer as something to be overcome, and the Dialectic of Enlightenment, as the best work on the subject and very important to study cultural citizenship. Keywords: Homer; Political Law; Philosophy of Law.

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A Transação Como Forma de Extinção do Crédito Tributário: Uma Análise das Alterações Preconizadas Pelos Projetos de Lei Nº 5.082/2009 e 469/2009, Sob a Égide dos Princípios da Administração Tributária1 Maurício Muriack de Fernandes e Peixoto* Caroline Mello Boaroli** 1 Introdução. 2 A Administração Pública e a Atividade Tributária: A Administraçâo Tributària. 2.1 Origem, Conceito, Natureza Jurídica e Estrutura da Administração Tributária. 2.2 Atribuições e Poderes da Administração Tributária. 2.3 Os Limites Jurídicos às Prerrogativas da Administração Tributária. 3 A Utilização da Transação Como Forma de Extinção do Crédito Tributário. 3.1 Dos Projetos de Lei em Exame. 3.1.1 Argumentos em Favor da Utilização e Ampliação da Transação em Matéria Tributária: Exposição dos Motivos Justificadores. 3.2 O Entendimento Atual Acerca da Utilização da Transação do Crédito Tributário. 3.3 A Ampliação do Instituto da Transação Tributária. 3.4 Os Limites Principiológicos Inerentes à Administração Tributária e as Novas Proposições Normativas Sobre a Transação Fiscal. 3.4.1 A Transação e os Princípios Norteadores da Administração Tributária. 4 Considerações Finais. Referências.

RESUMO A análise de propostas de lei ordinária e complementar que alteram e ampliam o potencial de utilização do instituto da transação em matéria tributária, ao lume dos princípios constitucionais, tributários e administrativos que condicionam a 1 Este artigo foi inspirado e adaptado do trabalho monográfico de conclusão de curso apresentado por Caroline Mello Boaroli para obtenção do Grau de Bacharel, no Curso de Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense, UNESC, com Linha de Pesquisa em Direito Tributário, o qual foi aprovado com nota máxima e menção honrosa “com louvor” pela banca composta pelos Professores Maurício Muriack de Fernandes e Peixoto (orientador), Márcia Andréia Schutz Lírio Piazza e Maicon Henrique Aléssio, por ocasião da apresentação verbal realizada em 22 de novembro de 2011. * Advogado da União de Categoria Especial, Mestre em Ordem Constitucional pela Universidade Federal do Ceará (UFC-2000), e Professor de Processo Constitucional do Curso de Graduação em Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc). Ex-professor da Universidade Católica de Brasília (UCB). Ex-Professor da Universidade Federal do Ceará. Ex-Coordenador-Geral (Nacional) de Assuntos Militares da Procuradoria Geral da União (PGU/AGU). E-mail: muriack@yahoo.com ** Bacharelanda do Curso em Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense-UNESC e estagiária do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, atuando perante a Vara da Fazenda Pública em Criciúma-SC. R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.217-255, jan./dez. 2011

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atuação da Administração Tributária, sugerindo-se a adoção de aperfeiçoamentos na redação originariamente enviada pelo Governo Federal à deliberação do Congresso Nacional. Palavras-chave: Análise de projeto de lei. Transação tributária. Princípios e limites do Fisco. 1 INTRODUÇÃO O presente artigo tem como principal escopo concretizar uma análise jurídica perfunctória e introdutória acerca do instituto da transação, como modalidade de extinção do crédito tributário, especialmente, no pertinente às mudanças propostas por intermédio de dois projetos de lei, ora autuados sob o nº 5.082/2009 (Projeto de Lei Ordinária) e sob o nº 469/2009 (Projeto de Lei Complementar), que ainda tramitam no Congresso Nacional, por ocasião da confecção do presente labor. A transação é instituto expressa e originariamente previsto pelo Código Tributário Nacional como um dos motivadores legais da extinção do crédito tributário; no entanto, até os dias atuais, não ocorreu a regulamentação desse instituto no âmbito federal, por meio de lei ordinária, bem como, em face da atual conjuntura de autocomposição estimulada pela doutrina especializada e pela própria jurisdição, eis que a redação do artigo 171 do Código Tributário Nacional perdura em se revelar inadequada ou lacunosa, motivo pelo qual sua utilização também tem sido escassa no âmbito estadual e municipal. Tais motivos, em verdade, ensejaram a apresentação, pelo Governo Federal, dos epigrafados projetos de lei, os quais procuram regulamentar a transação na seara federal e ampliar seus atuais horizontes normativos. Assim, verifica-se a necessidade de uma análise dessas mudanças propostas à luz de alguns princípios que regem a Administração Tributária e o próprio Direito Tributário vigente. Para tanto, neste trabalho, foram abordados os aspectos específicos do Direito Tributário, bem como da Administração Tributária e, ainda, tratou-se da transação do crédito tributário conforme albergada nos projetos de lei. Buscou-se elucidar o conteúdo, as vantagens e algumas inviabilidades da transação, na forma preconizada nestes projetos de lei. Tal tema é de grande importância, haja vista que tal instituto é instrumento apto a solucionar demandas que envolvem os contribuintes e o Estado, e tal potencial não pode permanecer ignorado pelo legislador e pelos operadores do direito, máxime, em quadra temporal em que a desjudicialização e a autocomposição são correta e freqüentemente estimuladas como verdadeiras panacéias para a solução de problemas juridicamente idênticos e massificados, descrição que se encaixa à perfeição nos constantes e infindáveis conflitos tributários. 218

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No entanto, apesar de estar o instituto da transação previsto pelo Códex Fiscal, o mesmo tem origem no direito privado, e, ao ser aplicado e regulamentado em um ramo de direito público, pode gerar problemas jurídicos, administrativos e operacionais sérios, tanto para o Estado como para os contribuintes, motivos pelos quais impende os alinhavar e enfrentar a deliberação iminente dos epigrafados projetos de lei sob um ponto de vista crítico e propositor de soluções, labuta que passamos a empreender doravante. 2 A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E A ATIVIDADE TRIBUTÁRIA: A ADMINISTRAÇÂO TRIBUTÁRIA 2.1 Origem, conceito, natureza jurídica e estrutura da Administração Tributária A Atividade Financeira do Estado existe para servir de instrumento assecuratório à consecução dos desideratos estatais finalísticos, nos mais diversos aspectos, destacando-se, sobretudo, as finalidades estatais de investimentos em áreas voltadas à concretização dos direitos fundamentais, em geral, e dos direitos sociais, econômicos e culturais, em especial, bem como na estruturação e na prestação dos serviços públicos. A mais importante das receitas obtidas pela atividade financeira estatal emana da atividade exacional, por meio da arrecadação compulsória dos tributos. Essa prerrogativa é prevista e delimitada pela Constituição, dotando cada ente político de competência tributária. Assim, cada qual pode instituir e cobrar os tributos do qual é titular, numa atividade que pressupõe o poder e dever de fazê-lo. Dessa forma, a estrutura destinada a arrecadar e fiscalizar os tributos é o que se poderia denominar de “Administração Tributária”1. Para Kiyoshi Harada2, “administração tributária é a atividade do poder público voltada para a fiscalização e arrecadação tributária. É um procedimento que objetiva verificar o cumprimento das obrigações tributárias [...]”. No mesmo giro, Luciano Amaro3 ensina que o papel desempenhado pela Administração Tributária é de grande relevância no que concerne ao recolhimento dos tributos, isso ocorre, porque, dela emanam os atos que conferem exigibilidade ao crédito e, ainda, a ela incumbe a tarefa de verificar o cumprimento das obrigações tributárias. A Administração Tributária pode ser conceituada como o conjunto de órgãos e agentes públicos estatais aos quais incumbe realizar a tarefa de executar a legislação tributária e, conseguintemente, gerir, fiscalizar e arrecadar os tributos previstos no ordenamento jurídico brasileiro. No Direito Constitucional Brasileiro, há norma expressa que conceitua a Administração Tributária como “atividade essencial ao funcionamento do Estado” 4, motivo pelo qual deverá ser estruturada por meio de carreira específica de servidores, no plano federal, estadual, distrital e municipal. R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.217-255, jan./dez. 2011

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Além disso, a própria Constituição Brasileira afirma que “a administração fazendária e seus servidores fiscais terão, dentro de suas áreas de competência e jurisdição, precedência sobre os demais setores administrativos”5, o que revela o caráter prioritário e essencial que lhe foi atribuído pela Lex Fundamentalis, justificando-se, inclusive, até mesmo, a possibilidade normativo-constitucional prevista de excepcional vinculação da receita de impostos para a sua adequada e necessária organização e funcionamento – nos termos do artigo 167, inciso IV, in fine, da Carta Política. Ora, tal condição e natureza “prioritária e essencial” imputada pela Carta Política à Administração Tributária é de se reconhecer como algo razoável e sensato, visto que a atividade financeira do Estado existe justamente para viabilizar todas as demais atribuições estatais, as quais, sem recursos monetários disponíveis, estariam inviabilizadas sob o ponto de vista orçamentário e fático, por conseguinte. Logo, para exercer tarefa tão importante ao funcionamento e justificação da existência do Estado, eis que surge um conjunto de órgãos e agentes públicos destinados exclusivamente a tornar socialmente eficaz o cabedal de normas tributárias vigentes, assegurando, de forma indireta, o funcionamento de todos os setores estatais em seus diversos planos federativos: o federal, os estaduais, o distrital e os municipais. Nesse sentido, a estrutura da Administração Tributária, necessariamente, se prende à própria competência tributária plena para legislar, criando-se o tributo, na forma do artigo 6º do Código Tributário Nacional, o qual determina que a competência tributária envolve a atribuição “legislativa plena”. Dessarte, haverá uma estrutura autônoma de administração tributária para cada competência tributária independente que existe, para cada ente federativo, uma vez que a liberdade financeira, tributária e orçamentária é ínsita à própria noção de federalismo real e leva a que cada entidade política tenha sua própria estrutura de gestão, fiscalização e arrecadação de gravames 6. Por tal motivo, especificamente, se revela dual ou bifronte a estrutura da Administração Tributária, no âmbito federal, em face dos artigos 37, incisos XVIII e XXII, e 131, § 3º, da Constituição de 1988, bem como, do artigo 12, incisos I e II, da Lei Complementar Federal nº 73/93. Deveras, na esfera federal, temos dois órgãos a exercer o papel da Administração Tributária: a Secretaria da Receita Federal do Brasil, órgão ao qual incumbe executar os lançamentos fiscais e demais procedimentos administrativos da cobrança não-judicial dos tributos7, e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, a qual, no âmbito da estrutura administrativa fiscal federal compete operacionalizar a inscrição dos débitos tributários ou não tributários não pagos na dívida ativa da União e, por conseguinte, aviar a pertinente ação de execução fiscal, transformando o crédito tributário “exigível” em um crédito tributário “exequível”, não sendo esta última atribuição de representação judicial, por evidente, atividade inserida na órbita específica da Administração Tributária propriamente dita, diferentemente da tarefa de “apurar a liquidez e certeza da dívida ativa da 220

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União de natureza tributária, inscrevendo-a para fins de cobrança, amigável ou judicial”, estabelecida no inciso I do artigo 12 da Lei Complementar nº 73/93. Portanto, além da Secretaria da Receita Federal do Brasil, a quem incumbe realizar atividades inerentes à administração tributária, anteriores à inscrição da dívida ativa dos tributos federais não delegados a outros entes de direito público – como autarquias, fundações públicas, agências reguladoras, municípios8, et caterva -, temos também os órgãos estaduais de administração tributária – cujas denominações não são padronizadas (“auditorias”, “inspetorias”, etc), os quais convivem com a incumbência obrigatória de que a representação judicial ou administrativa para a cobrança da dívida ativa estadual inscrita seja feita pela Procuradoria Geral Estadual9. Por seu turno, a estrutura da Administração Tributária no âmbito municipal dependerá da previsão na respectiva lei orgânica, sendo certo que, pela simplicidade do modelo, a maioria dos Municípios adotou uma estrutura não dual, com acumulação no mesmo órgão da tarefa de cobrar administrativamente o lançamento fiscal e, sendo inadimplente o tributo, proceder à consequencial inscrição na dívida ativa10. Enfim, a Administração Tributária se desvela como atividade administrativa essencial e prioritária, consistente na realização dos procedimentos e atos indispensáveis à fiscalização, gestão e arrecadação dos tributos, bem como a normatização secundária e demais rotinas pertinentes, a serem exercidas por órgãos e agentes públicos estruturados na forma da lei11. 2.2 Atribuições e poderes da Administração Tributária Conceituada a Administração Tributária, em seus termos essenciais, é oportuno proceder ao estudo das principais fainas e tarefas que lhes foram outorgadas pela ordem jurídica vigente, máxime, no Código Tributário Nacional-CTN. Realmente, o rol de atividades incumbidas à Administração Tributária encontra-se albergado dentre os artigos 194 e 208 do CTN, incluindo, em suma, as atribuições de fiscalizar, constituir em dívida ativa e emitir certidões a requerimento do interessado. Da mesma forma essas atividades são reguladas pela legislação tributária, conforme previsto no art. 96 do mesmo diploma legal. A atuação eficiente da administração tributária requer uma infra-estrutura de qualidade, no intuito de colher melhores índices de arrecadação, advertindo o contribuinte da necessidade, proporcional à sua capacidade contributiva, de adimplir com seu dever jurídico de pagar tributos12 No mesmo giro, extrai-se dos ensinamentos de Dejalma de Campos13 que cada esfera federativa possui sua Administração Tributária, em virtude da competência delimitada pela CRFB onde a cada ente político é atribuída a instituição de determinados tributos. Desse modo, a estrutura dessas entidades integra a Administração Pública. R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.217-255, jan./dez. 2011

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Admitida a existência de estrutura destinada a administrar e gerir a receita advinda da tributação, cumpre proceder ao estudo de suas funções, disciplinadas pelo Código Tributário Nacional. Por motivos didáticos, podemos enumerar os seguintes poderes da Administração Tributária, expressamente previstos na legislação tributária: a) Prerrogativa de utilizar especial poder normativo de regulamentar a fiscalização e a arrecadação de tributos, por meio da outorga de normas infra-legais específicas para cada tributo, se for o caso, as quais submetem às obrigações acessórias pertinentes todas as pessoas físicas e jurídicas que tenham relação direta ou indireta com o fato gerador, até mesmo, pessoas imunes ou isentas, pois a fiscalização e a cobrança do tributo pode depender de informações, documentos e comportamentos mesmo daqueles que não têm o dever ou a responsabilidade relativos ao pagamento14 (vide artigo 194 do Código Tributário Nacional); b) Prerrogativa de examinar mercadorias, livros, arquivos, documentos, papéis e efeitos comerciais ou fiscais, dos comerciantes, industriais ou produtores, e prerrogativa de exigir, de forma obrigatória, a exibição deles – incluindo-se o dever legal de conservação dos livros obrigatórios de escrituração comercial e fiscal e dos comprovantes dos lançamentos neles efetuados pelo prazo de prescrição tributária15 (vide artigo 195 do Código Tributário Nacional); c) Prerrogativa de proceder diligências investigatórias in loci, no domicílio fiscal do contribuinte, responsável ou da pessoa submetida à fiscalização tributária, desde que preenchido documento oficial/administrativo (auto de fiscalização) que indique a data de início e de finalização da diligência, a ser aposto nos livros obrigatórios ou entregue em separado ao sujeito fiscalizado (vide artigo 196 do Código Tributário Nacional); d) Prerrogativa de exigir informações, mediante documento oficial que funcionará como notificação administrativa (“intimação escrita”, no linguajar atécnico usado pelo caput do artigo 197 do Código Tributário Nacional), sobre bens, negócios ou atividades empresariais de terceiros, das seguintes pessoas que as detenham por dever legal, contratual ou de outra natureza: 1) os tabeliães, escrivães e demais serventuários de ofício; 2) os bancos, casas bancárias, Caixas Econômicas e demais instituições financeiras; 3) as empresas de administração de bens; 4) os corretores, leiloeiros e despachantes oficiais; 5) os inventariantes; 6) os síndicos, comissários e liquidatários; 7) quaisquer outras entidades ou pessoas que a lei designe, em razão de seu cargo, ofício, função, ministério, atividade ou profissão16 (vide artigo 197 do Código Tributário Nacional); e) Prerrogativa das autoridades administrativas fiscais de requisitar ao Poder Judiciário o auxílio da força pública federal, estadual ou municipal, e reciprocamente, quando vítimas de embaraço ou desacato no exercício de suas funções, ou quando necessário à efetivação de medida fiscalizatória prevista na legislação tributária, ainda que não se configure fato definido em lei como crime ou contravenção, desde que observados os direitos fundamentais (artigo 200 do Código Tributário Nacional); 222

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f) Prerrogativa de, após esgotado o prazo para pagamento do tributo ou após a coisa julgada administrativa ou judicial eventual sobre a exigibilidade, fazer a inscrição na dívida ativa tributária ou não-tributária, a qual, desde que preenchidos os requisitos legais exigidos17, tem presunção de certeza e liquidez e efeito de prova pré-constituída no desiderato de permitir a execução fiscal, nos termos da Lei Ordinária Federal nº 6.830/81 (vide artigos 201, 202, 203 e 204 do Código Tributário Nacional); g) Prerrogativa de divulgar as seguintes informações de caráter público - e não-submetidas ao sigiloso dever de segredo fiscal ínsito legalmente à Administração Tributária: 1) a realização da expedição de representações fiscais ao Ministério Público Federal ou Estadual para fins penais; 2) a realização de inscrições na Dívida Ativa da Fazenda Pública em nome de pessoa física ou jurídica; 3) a concessão de parcelamento ou moratória a pessoa física ou jurídica (vide artigo 198, § 3º, do Código Tributário Nacional); h) Prerrogativa de transferir, excepcionalmente, desde que preenchidos os requisitos formais de garantia da preservação do sigilo, as seguintes informações de caráter não-público e submetidas ao sigiloso dever de segredo fiscal ínsito legalmente à Administração Tributária: 1) determinação judicial ou de Comissão Parlamentar de Inquérito para acesso a informações de natureza fiscal; 2) solicitações de autoridade administrativa no interesse da Administração Pública, desde que seja comprovada a instauração regular de processo administrativo, no órgão ou na entidade respectiva, com o objetivo de investigar o sujeito passivo a que se refere a informação, por prática de infração administrativa, pertinente ou não à matéria tributária, desde que a entrega seja feita pessoalmente à autoridade solicitante, mediante recibo, que formalize a transferência e assegure a preservação do sigilo (vide artigo 198, §§ 1º e 2º, do Código Tributário Nacional); i) Prerrogativa de, tendo por objetivo, dentre outros, o de identificar corretamente a capacidade contributiva e econômica, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte (vide artigo 145, § 1º, da Constituição da República); j) Prerrogativa das Administrações Tributárias da União, Estados, Distrito Federal e Municípios de, por meio de lei ou convênio, prestar mútuas assistências para a fiscalização dos tributos respectivos e permuta de informações, na forma estabelecida, em caráter geral ou específico (vide artigo 199, caput, do Código Tributário Nacional); k) Prerrogativa singular e específica da Administração Tributária da União de, na forma estabelecida em tratados, acordos ou convênios, permutar informações com Estados estrangeiros, no interesse da arrecadação e da fiscalização de tributos (vide artigo 199, parágrafo único, do Código Tributário Nacional); l) Prerrogativa dos Poderes Executivos federal, estaduais, distrital e municipais de realizar, por decreto, expedição anual da consolidação, em texto único, da respectiva legislação tributária vigente, relativa a cada um dos tributos, R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.217-255, jan./dez. 2011

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repetindo-se essa providência até o dia 31 de janeiro de cada ano, dando publicidade e transparência à normatização tributária (vide artigo 212 do Código Tributário Nacional e do artigo 150, § 5º, da Constituição da República); m) Prerrogativa de autotutela da Administração Tributária, consistente em exceção ao princípio da imutabilidade do lançamento tributário, autorizando o Fisco a, extraordinariamente à regra do artigo 145 do Códex Fiscal, alterar o lançamento anteriormente realizado, desde que relativo às hipóteses debuxadas no artigo 149 do Código Tributário Nacional desde que não tenha ocorrido a decadência tributária18; n) Prerrogativa de a Administração Tributária poder proceder à aferição indireta ou o arbitramento da base imponível do tributo, nas hipóteses enumeradas no artigo 148, do CTN, o qual serve de supedâneo para o lançamento por valor presumido, desde que observados os princípios da finalidade da lei, da razoabilidade, da proporcionalidade e da capacidade contribuinte 19; o) Prerrogativa da Administração Tributária de operacionalizar, nos limites da autoexecutoriedade, observando as hipóteses de intervenção obrigatória da jurisdição, todas as garantias e os privilégios do crédito tributário20, enumerados nuclearmente – porém, de forma não exclusiva, nos artigos 183 a 192 do Código Tributário Nacional; p) Prerrogativa da Administração Tributária de constituir o crédito tributário21, por meio da realização do lançamento tributário ou do cotejar do autolançamento realizado pelo contribuinte, nos estritos termos da legislação tributária vigente à época da ocorrência do fato gerador (vide arts. 142 e 144 do Código Tributário Nacional). Ora, todas essas prerrogativas ou poderes da Administração Tributária foram criados pelo ordenamento para correta e adequedamente instrumentalizarem a concreção das leis tributárias, não sendo correto imaginar que tais poderes devem se converter ou se modificar em hipóteses concretas ou potenciais de arbítrio da Administração Tributária. Por isso, é certo que, além de poderes e prerrogativas, está a Administração Tributária adstrita a limites jurídicos intransponíveis, que sinalizam os lindes diante dos quais irá atuar de forma vinculada. 2.3 Os limites jurídicos às prerrogativas da Administração Tributária Uma vez descritos e delineados, mesmo que de forma sumariada e sintética, o conjunto de prerrogativas essenciais e nucleares da atuação da Administração Tributária impende, simetricamente, desvelar a epistemologia dos limites ínsitos, explícitos ou tácitos, ao exercício dos poderes da Administração Tributária. Nesse sentido, podemos enumerar quatro tipologias de lindes, válidos e de natureza normativa, que têm por funcionalidade condicionar material e formal224

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mente o exercício das prerrogativas da Administração Tributária: os princípios e imunidades tributárias que consubstanciam o estatuto do contribuinte – limites formais e materiais ao poder de tributar, os princípios gerais do direito público (princípios gerais do Direito Constitucional e do Direito Administrativo) e, por fim, os direitos e garantias fundamentais. Nesse sentido, podemos mencionar, de forma genérica, o conjunto de princípios tributários e imunidades fiscais que consubstanciam o “Estatuto dos Contribuintes”22 como aplicáveis como lindes à atuação da Administração Tributária 23, bem como mencionar também os próprios limites principiológicos oriundos do Direito Constitucional24 e do Direito Administrativo25, aos quais o próprio Códex Fiscal denomina de “princípios gerais de direito público” 26. Nessa seara, destacam-se sobretudo os limites jurídicos que se impõem à Administração Tributária por meio do norte axiológico que lhe é cogente em derivação dos princípios constitucionais da Administração Pública, mormente, aqueles mencionados no artigo 37 da Constituição da República. Logo, pode-se dizer que as atividades de cunho administrativo do Estado vinculam os agentes que a exercem ao cumprimento do princípio da legalidade tributária e administrativa. Da mesma forma ocorre com os agentes incumbidos de desempenhar atividades “administrativas” na seara da Administração Tributária, já que estão adstritos ao mesmo regime jurídico e atrelados ao cumprimento das normas de direito administrativo e tributário.27 Assim, depreende-se dos ensinamentos do autor supracitado que da mesma forma que ocorre com a atividade desenvolvida pela Administração Pública propriamente dita, a atividade da Administração Tributária está subordinada a uma série de princípios, principalmente, aos da legalidade tributária e administrativa, senão vejamos, in verbis: Evidentemente, porém, quando se fala em Administração Tributária está-se falando na atividade administrativa do Poder Público voltada à fiscalização e arrecadação de tributos. Trata-se, pois, de atividade administrativa, que deve ser genericamente considerada. Atividade administrativa é aquela levada a efeito pela Administração Pública a fim de atender, precipuamente, o interesse ou bem comum28.

Portanto, delineadas as atividades elementares da Administração Tributária, é conveniente analisar os limites de seu efetivo cumprimento, tendo como parâmetro a aplicabilidade dos princípios da Administração Pública à Administração Tributária. A atividade da Administração Tributária deve estar permeada pela ordem de princípios jurídicos e garantias fundamentais próprios do sistema jurídico vigente. O interesse público é o principal fim a ser atingido já que configurado, R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.217-255, jan./dez. 2011

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em termos, pela necessidade de carrear os recursos necessários ao próprio funcionamento do Estado, que infere diretamente na satisfação das necessidades da sociedade e na manutenção da ordem pública. Do mesmo modo, o agente da administração tributária não pode dispor dos bens, interesses e serviços públicos, uma vez que estes são indisponíveis por natureza. Ainda, importante salientar que essa atividade deve ser regulada pela legislação de cada ente político, principalmente no que concerne à atividade de fiscalização, em que não há margem para qualquer manifestação arbitrária ou volitiva por parte do Estado e de seus agentes29. Nesses termos, pode-se dizer que os princípios que norteiam a Administração Pública, tal como brevemente mencionamos, são os mesmos que regem a Administração Tributária e todas as atividades dela provenientes, servindo, portanto, de linde jurídico observável e exigível em relação ao Fisco. Por fim, podemos e devemos mencionar os direitos e garantias fundamentais gerais como elementos limitativos não-óbvios - mas devidamente insculpidos de forma sistêmica - como linde jurídico da Administração Tributária. Com efeito, não é possível imaginar lícita a atuação do Fisco que deixe de observar os direitos fundamentais “gerais” (não-tributários”) dos contribuintes, uma vez que estes, antes de serem integrantes da relação tributária, são destinatários das normas constitucionais fundamentais e protetivas. Logo, embora a doutrina ainda não esteja preocupando-se de tal tema com a nitidez que o mesmo deveria, entendemos que uma atuação fiscal que não tem preocupação isonômica, ou que invade a esfera da privacidade ou da intimidade do contribuinte de forma solerte ou reprovável (inclusive, deixando de observar os contornos legais do sigilo fiscal), ou que se manifesta de modo contrário ao devido processo legal substantivo ou material, não deve, realmente, subsistir. Nesse sentido, a jurisprudência atual do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que não são absolutos os poderes de fiscalização da Administração Tributária, sendo-lhe objetáveis os direitos e liberdades fundamentais e os princípios da Administração Pública, motivo pelo qual não pode o Fisco invadir recinto privado assemelhado a domicílio sem a regular e prévia autorização judicial30. Da mesma forma, por descumprimento do direito fundamental à preservação da intimidade e da esfera da privacidade, o Supremo Tribunal Federal interpretou de forma “consentânea” com a Constituição da República as regras da Lei Complementar nº 105/2000 que autorizavam o Fisco a decretar a quebra do sigilo bancário do contribuinte sem prévia e formal autorização judicial nesse sentido31. Por fim, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal não aceita que a Administração Tributária utilize “sanções de natureza política” contra os contribuintes, tolhendo sua liberdade fundamental de iniciativa econômica: a princípio, é vedado utilizar outros meios heterodoxos e/ou indiretos de co226

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brança de tributos que não sejam exatamente os que a legislação fiscal geral (Constituição e CTN) preconizam32, de molde que, em regra33, se proíbe instituir vedações e restrições profissionais e empresariais que tenham o objetivo, direto ou indireto, de constranger o contribuinte ao pagamento de tributos, exceto situações excepcionais (tendo por critérios, dentre outros: o caráter vultoso da dívida, a constatação de comportamento fiscal temerário e recalcitrante pelo contribuinte e a observância do devido processo legal34), em que reste ameaçada a concreção do dever fundamental de pagar tributos e do direito fundamental à livre concorrência empresarial. Alfim, às prerrogativas jurídicas da Administração Tributária, estatui-se o plexo de lindes normativos que regem a sua atuação, conduzindo-a para a seara do Direito Justo e Bom e afastando-a do arbítrio e da tirania autoexecutória. É exatamente diante dessas premissas e perspectivas que se fará, adiante, o exame dos epigrafados projetos de lei. 3 A UTILIZAÇÃO DA TRANSAÇÃO COMO FORMA DE EXTINÇÃO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO 3.1 Dos projetos de lei em exame Este capítulo trata da utilização da transação como forma extintiva do crédito tributário, especialmente no que concerne aos pontos polêmicos que norteiam o Projeto de Lei Ordinária nº 5.082/2009 e o Projeto de Lei Complementar nº 469/2009, que tramitam no Congresso Nacional com o escopo de regulamentar tal instituto35. O Projeto de Lei Ordinária autuado sob o nº 5.082/2009, apresentado pelo Poder Executivo Federal ao Congresso Nacional, dispõe sobre a transação tributária de forma geral, estabelecendo e detalhando o procedimento a ser observado em âmbito federal para a celebração da transação, motivo pelo qual é denominado como “Lei Geral de Transações”, embora sua eficácia normativa seja cingida ao Fisco Federal. Da mesma forma, o Projeto de Lei Complementar nº 469/2009 visa a acrescer dispositivos ao Código Tributário Nacional e, embora vários aspectos desse projeto de lei possam ser objeto de análise e reflexões jurídicas, para o desfecho específico do presente trabalho, doravante, far-se-á um corte epistemológico para tratar apenas de uma das propostas albergadas – a mais polêmica, em nosso sentir que diz respeito àquela propositura que tem por escopo alterar substanciosamente a vigente redação do art. 171 do Código Tributário Nacional(CTN), ampliando os liames do instituto da transação em direito tributário. Tais projetos, em conjunto com outros dois projetos de lei, compõem o denominado “Segundo Pacto Republicano”, que tramita desde abril de 2009. Essas propostas estão repercutindo de forma a acarretar uma série de discussões R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.217-255, jan./dez. 2011

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por parte dos juristas, uma vez que, com eles (os projetos em epígrafe), passa-se a admitir a transação na composição de conflito ou de litígio bem como, sob certo aspecto, transfere do Judiciário para a Administração Tributária uma grande parte do procedimento de cobrança de dívidas tributárias, sob o argumento de ser medida indispensável ao estágio atual de arrecadação no país. 3.1.1 Argumentos em favor da utilização e da ampliação da transação em matéria tributária: exposição dos motivos justificadores Segundo os motivos expostos pelos preconizadores do anteprojeto de Lei Ordinária nº 5.082/2009, os dispositivos que ali se encontram foram elaborados no intuito de viabilizar e regulamentar a previsão já contida na atual e vigente redação dos arts. 156, inciso III, e 171 do CTN. Conforme estes, tal implementação viria a contribuir para a plena eficácia do princípio da eficiência, já que constituiria uma nova relação entre Administração e contribuinte, permitindo uma maior participação deste; dessa forma, argumenta-se, o fato de se tornar mais viável a cobrança dos créditos tributários, já que grande parte da carga tributária do país não consegue ser convertida aos cofres públicos. Na mesma linha retórica, a celebração da transação se tornaria melhor do que uma decisão judicial tendo em vista que o anteprojeto de estabelece a criação de um órgão julgador especializado o que acabaria por aperfeiçoar e uniformizar a interpretação das normas tributárias no âmbito da Administração e ainda diminuiria os desperdícios públicos decorrentes do sistema de cobrança que vigora atualmente, dada a ineficácia do processo de execução fiscal. Da mesma importância é o argumento acerca da morosidade na resolução judicial e administrativa dos litígios tributários o que acaba por prejudicar a livre concorrência, uma vez que as sociedades empresárias que cumprem com suas obrigações fiscais são levadas a concorrer com outras que postergam o adimplemento de suas obrigações tributárias, por meio de discussões judiciais e administrativas de caráter meramente protelatório (BRASIL, 2011-D). Hugo de Brito Machado e Hugo de Brito Machado Segundo36 destacam, ainda, que os que defendem a transação em matéria tributária o fazem por acreditar que a parcela de discricionariedade conferida à Administração na composição do litígio é mais eficaz no que concerne à satisfação do crédito tributário e que será exercida de acordo com o objetivo precípuo daquela, ou seja, qual seja o interesse público. Desse modo, pode-se afirmar que a inserção da possibilidade de transação no sistema tributário brasileiro configuraria um novo paradigma na relação entre a Administração Tributária e os contribuintes, que deixariam de se confrontar indefinidamente e arcar com os custos e a insegurança que essa condição lhes proporciona, para passarem a compor as posições divergentes, a fim de estabilizá-las em um patamar razoável para ambas as partes.37

Por outro lado, concomitantemente com o projeto de lei ordinário acima mencioado, também tramita o Projeto de Lei Complementar nº 469/2009, 228

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elaborado originariamente no âmbito do Ministério da Fazenda, que - além de outras mudanças - objetiva alterar a redação do art. 171 do CNT, adotando um modelo mais amplo de transação tributária, passando a admitir a atuação preventiva da Administração Tributária, segundo consta de sua oficiosa exposição de motivos (BRASIL, 2011-E). Descritos de forma nuclear os motivos que justificam a elaboração dos projetos de lei em questão, é coerente estabelecer o entendimento que norteia a utilização da transação como forma extintiva do crédito tributário, conforme atualmente prevista, bem como os pontos que estão sendo objeto de críticas e de controvérsias por parte da doutrina, procedendo ao seu devido equacionamento, o que passamos a realizar doravante. 3.2 O entendimento atual acerca da utilização da transação do crédito tributário Acerca da previsão contida no art. 171 do CTN, Vittorio Cassone38 leciona: [...] em nosso ver, a transação, insituto de direito privado adotado pelo direito tributário, somente ocorre em casos excepcionais, de estrema dificuldade econômico-financeira do sujeito passivo, situação que merecerá o devido exame para justificar a transação.

Bernardo Ribeiro de Moraes39 cuida de direcionar a transação no campo tributário, expondo que, em uma primeira análise, a sua utilização é inviável em detrimento do caráter vinculado da atividade administrativa de lançamento, no qual a autoridade administrativa não pode fazer concessões. No entanto, aquela poderia vir a se tornar uma necessidade, podendo ser usada para terminar litígios tributários, se estes apresentarem dúvidas sobre determinados pontos, uma vez que, inexistindo controvérsias, não caberia a transação. Na prática, esse instituto é comumente tratado pela doutrina, mesmo necessitando de lei específica (de cada ente federativo – pertinente apenas a seus tributos), que o regulamente, sendo certo que esta normativização derivada de concreção não tem sido comum nos Entes Federativos Brasílicos, os quais, decerto, ainda não acederam ao imenso potencial do referido instituto. Ademais, mesmo nas raras vezes em que existem leis regulamentadoras, nem sempre elas são editadas tratando a transação em sentido idêntico ao que prevê o CTN. A jurisprudência distingue os institutos da transação, que é modalidade de extinção do crédito tributário (art. 156, III, do CTN), e do parcelamento, que é modalidade de suspensão do crédito tributário (art. 151, VI, do CTN). Nesse sentido, ilustra-se a seguir com uma breve análise de julgado do Superior Tribunal de Justiça a respeito do assunto.Com efeito, em decisão recente, no sentido de demonstrar que ambos os institutos não se confundem, destaca-se o entendimento da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça que, em decisão unânime, deu provimento a Recurso Especial interposto pelo R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.217-255, jan./dez. 2011

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Estado do Mato Grosso do Sul contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça daquele Estado, alegando contrariedade e interpretação divergente do art. 26, § 2º, do Código de Processo Civil. No caso em tela, o Estado do Mato Grosso do Sul alega que não houve transação, e sim o pagamento da dívida mediante benesses instituídas em lei estadual, o que levou o Superior Tribunal de Justiça a fixar honorários advocatícios diante da não configuração do instituto em comento – o que deixou cristalino que o instituto da transação foi utilizado em confusão com o instituto do parcelamento, o qual tem outra natureza e outros efeitos tributários-, senão vejamos, in literris: Ementa: PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL. EXTINÇÃO DO PROCESSO EM VIRTUDE DE ADESÃO DO CONTRIBUINTE A PROGRAMA DE PARCELAMENTO OU PAGAMENTO À VISTA DE CRÉDITOS TRIBUTÁRIOS. TRANSAÇÃO NÃO-CONFIGURADA. CONDENAÇÃO EM HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. CABIMENTO. 1. A adesão do contribuinte a programa instituído por lei para fins de parcelamento ou pagamento à vista de créditos tributários não configura transação, pois o Código Civil só permite a transação quanto a direitos patrimoniais de caráter privado (art. 841). Se recair sobre direitos contestados em juízo, a transação será feita por escritura pública, ou por termo nos autos, assinado pelos transigentes e homologado pelo juiz (art. 842). De acordo com o Código Tributário Nacional, a lei pode facultar, nas condições que estabeleça, aos sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária celebrar transação que, mediante concessões mútuas, importe em determinação de litígio e consequente extinção de crédito tributário (art. 156, III, c/c art. 171). A lei indicará, ainda, a autoridade competente para autorizar a transação em cada caso (art. 171, parágrafo único). Por não se tratar de transação, não se aplica ao caso o § 2º do art. 26 do Código de Processo Civil, segundo o qual, “havendo transação e nada tendo as partes disposto quanto às despesas, estas serão divididas igualmente”. 2. Em se tratando de extinção do processo em virtude de adesão a parcelamento, a incidência ou não da verba honorária deve ser examinada caso a caso, à luz da legislação processual própria. Por exemplo, em se tratando de mandado de segurança, é indevida a condenação em honorários advocatícios, nos termos do art. 25 da Lei nº. 12.016/2009 e em conformidade com as Súmulas n.s 512 do STF e 105 do STJ. Por sua vez, em embargos à execução fiscal de créditos da União, não cabe a condenação em honorários advocatícios porque já incluído no débito consolidado o encargo do Decreto-lei nº. 1.025/69, nele compreendidos os honorários, consoante enuncia a Súmula nº. 168 do extinto TFR. Já em ação desconstitutiva, ação declaratória negativa, ou em embargos à exe230

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cução nos quais não se aplica o Decreto-Lei nº. 1.025/69, a verba honorária será cabível nos termos do art. 26, caput, do Código de Processo Civil. Nesse sentido, aliás, são os seguintes precedentes da Primeira Seção: EREsp 475.820/PR, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJ de 15.12.2003, p. 175; EREsp 426.370/RS, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ de 22.3.2004; p. 189. 3. Esta Turma, ao julgar o REsp 884.071/GO, sob a relatoria da Ministra Eliana Calmon, enfrentou situação semelhante à dos presentes autos, ocasião em que decidiu serem devidos os honorários advocatícios em sede de embargos à execução, independente da condenação em honorários na execução fiscal. Essa tese fixou-se após o julgamento dos EREsp 81.755/SC, pela Corte Especial, e vem sendo aplicada desde então. 4. Recurso especial provido (sem grifos na origem) (BRASIL, 2011-F)40.

O festejado doutrinador Leandro Paulsen41 em adição, sublinha que a transação não pode ser confundida com o parcelamento da dívida, isso ocorre porque este último, além de não extinguir o crédito (por ser simples hipótese de suspensão do crédito), no acordo de parcelamento não há previsão acerca de qualquer concessão mútua, estando prevista apenas a divisão do crédito em prestações cujo adimplemento seja periódico, e nos estritos termos da lei instituidora42. Por sinal, nestes mesmos termos é decisão emanada da Segunda Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, proveniente de ação originária da Comarca de São Leopoldo, que deu provimento de forma unânime à Apelação Cível nº 70030532469 da qual é apelante o Município de São Leopoldo. Tal apelação fora interposta contra sentença que determinou a extinção da Execução Fiscal, que aquele move contra particular, por entender que pedido de parcelamento implica novação ou transação. Ementa: DIREITO TRIBUTÁRIO. APELAÇÃO CÍVEL. EXTINÇÃO DO FEITO EXECUTIVO, COM BAIXA NA DISTRIBUIÇÃO, EM FACE DE MORATÓRIA SOB CUMPRIMENTO: IMPOSSIBILIDADE. À vista do disposto no inciso I do art. 151 do Código Tributário Nacional a concessão de moratória (parcelamento) apenas suspende a exigibilidade do crédito tributário, sem implicar novação ou transação, devendo, portanto, os autos permanecer em Cartório, administrativamente arquivados, aguardando pedido de extinção pelo integral cumprimento do pacto ou, então, de prosseguimento da execução, para o caso de descumprimento, nada impedindo, contudo, que as condições da ação sejam examinadas de ofício para ver se efetivamente o feito comporta prosseguimento, como, entre outras, a consumação de prescrição e o preenchimento dos requisitos legais da Certidão de Dívida Ativa (CDA) (sem grifos na origem) (RIO GRANDE DO SUL, 2011-A).

Alfim, esse ponto é um dos principais equívocos em leis que, atualmente, apresentam a possibilidade de transacionar o crédito tributário, já que findam por R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.217-255, jan./dez. 2011

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tratar de tal meio extintivo como mera negociação, diga-se como um acordo que poderia ser materializado por meio de um parcelamento, o que é incompatível com a previsão contida no CTN. Entendimento compatível com a noção doutrinariamente aceita e prevista no CTN é ilustrado pelo julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em que a Vigésima Primeira Câmara Cível concluiu pelo descabimento da fixação de honorários advocatícios, já que convencionado no termo de transação, regulamentado por lei específica. Os julgadores entenderam que, em virtude desse acordo, os honorários advocatícios acabam por integrar o requisito “concessões mútuas”, que é indissociável do conceito de transação. Assim, por maioria, foi provido o Agravo de Instrumento nº 70029192267, proveniente da Comarca de Porto Alegre, interposto por Sogenalda Sociedade de Gêneros Alimentícios, tendo como agravado o Estado do Rio Grande do Sul, senão vejamos, in literris: Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO. tributário. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE DÉBITO FISCAL. ADESÃO AO REFAZ/RS. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. DUPLA EXIGÊNCIA. DESCABIMENTO. A adesão ao REFAZ/RS afeiçoa-se à transação pelo que importa extinguir o litígio mediante concessões recíprocas - de um lado o pagamento do tributo, de outro, a remissão da multa e a redução dos juros (art. 171 do CTN). Como a transação faz cessar a instância, não há de se falar em vencedor ou vencido, para o efeito de sucumbência, tudo se exaurindo, no caso, na forma e no teor da lei, por se tratar de crédito público e indisponível. Por isso que sobre indevida, importa dupla exigência a verba honorária, a par de ir contra o propósito do programa que outorga benefício em troca de extinção do litígio e do pronto pagamento do tributo (sem grifos na origem) (RIO GRANDE DO SUL, 2011-B).

Para tanto, pode-se depreender que a adesão aos programas de arrecadação importa em transação quando resulta em concessões concomitantes do sujeito ativo e passivo do crédito tributário, diga-se o pagamento pelo sujeito passivo e não apenas o parcelamento do débito. Compreendidos tais aspectos relevantes da utilização da transação tributária, é oportuno verificar os pontos controversos que emanam dos projetos de lei em exame. 3.3 A ampliação do instituto da transação tributária Para se configurar o instituto da transação tributária, é imprescindível que estejam presentes alguns requisitos, tais como a existência de relações jurídicas controvertidas, interesse das partes em acordar no sentido de extinguir as dúvidas, e concessões de ambas as partes para que esse acordo possa ocorrer, bem 232

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como, no caso da transação tributária, ser um crédito tributário regularmente instituído o objeto da negociação. Interpretando o art. 171 do CTN, Paulo de Barros Carvalho43 observa que, na transação de cunho tributário, além destes requisitos, é necessária a existência de lei que a autorize e indique a autoridade competente para efetivá-la. Sacha Calmon Navarro Coêlho44 assinala que “pelo sistema do CTN, portanto, a transação só pode ser terminativa do litígio, afastada a modalidade preventiva.” Enfim, a verdade é que a questão do cabimento da transação apenas quando da existência de litígio é entendimento predominante na doutrina, residindo a discussão subjacente tão-somente a respeito da necessidade de estar essa controvérsia deduzida judicialmente ou apenas em âmbito administrativo. Nesses termos, colhe-se dos ensinamentos de Paulo de Barros Carvalho45 que: Ao contrário do que sucede no direito civil, em que a transação tanto previne como termina o litígio, nos quadrantes do direito tributário só se admite a transação terminativa. Há de existir litígio para que as partes, compondo seus mútuos interesses, transijam. Agora, divergem os autores a propósito das proporções semânticas do vocábulo litígio. Querem alguns que se trate de conflito de interesses deduzido judicialmente, ao passo que outros estendem a acepção a ponto e abranger as controvérsias meramente administrativas. Em tese, concordamos com a segunda alternativa

Bernardo Ribeiro de Moraes46 menciona que transigir em matéria tributária apenas é possível quando já existe lide judicial instaurada: Assim, verifica-se que a transação tem por objeto exclusivamente a terminação de litígio e o não litígio, dúvida ou controvérsia (como é no direito privado). Como litígio somente existe em processo contencioso, onde existe formação de juízo para a apreciação da causa, a transação somente pode ser realizada em processos judiciais.

Deveras, em que pese existirem entendimentos divergentes, uma das discusões acerca dos projetos de leis reside justamente na possibilidade de transacionar o crédito tributário administrativamente ou seja, antes de ser suscitada a controvérsia na via judicial. Tal embate decorre da previsão do artigo 15, inciso IV, do projeto de Lei nº 5.082/2009, que admite a transação em via administrativa, propondo as seguintes modalidades: Art. 15. São modalidades de transação para os fins desta Lei: I - transação em processo judicial; II - transação em insolvência civil, recuperação judicial e falência; III - transação por recuperação tributária; IV - transação administrativa por adesão (BRASIL, 2011-G). R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.217-255, jan./dez. 2011

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Ora, não obstante a ilustre dicção de parcela tão significativa da doutrina, não nos parece adequado entender que somente cabe transação tributária se houver “litígio judicial”, uma vez que não há menção expressa da natureza judicial do litígio nos artigos do Código Tributário Nacional que regulamentam o instituto (artigos 156, inciso III, e 171) e, ainda, não seria razoável exigir que o litígio administrativo naturalmente decorrido do não pagamento do tributo tivesse de ser judicializado para, só depois, ser objeto de transação tributária, uma vez que tal entendimento seria contrário ao direito fundamental à celeridade processual administrativa (artigo 5º, inciso LXXVIII, da Constituição da República). Sobremais, mais polêmica ainda é a previsão contida no PLC nº 469/2009, que inova de forma a permitir que a utilização da transação vá além da hipótese de litígio já instaurado (na esfera administrativa ou judicial), permitindo-a também na composição de conflitos, o que implica admitir a transação em modalidade “preventiva”. Tal projeto pretende alterar o art. 171 do CTN dispondo sua nova redação da seguinte forma: Artigo 171 - A lei, geral ou específica, pode facultar, nas condições que estabeleça, aos sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária celebrar transação que importe em composição de conflito ou de litígio, visando à extinção de crédito tributário. Parágrafo único. A lei indicará a autoridade competente para autorizar a transação em cada caso, podendo prever hipóteses de delegação (BRASIL, 2011 – H).

Embora os defensores do projeto de lei ordinária que trata da transação afirmem que ela apenas regulamenta a previsão já contida no CTN, tramita com ele um projeto de Lei Complementar que visa a alterar o dispositivo 171 do CTN para tratar da transação de forma mais ampla, não apenas com a finalidade de extinguir litígios mas também de evitá-los, o que importa em ampliar a finalidade deste instituto, incluindo também a solução de controvérsias em âmbito administrativo47. Ao comentar a proposta de redação do art. 171 do CTN, Arnaldo Godoy48 explana: Estruturalmente, cotejando-se a redação proposta com a redação atual, ambas do art. 171 do CTN, verifica-se que: a) ter-se-á doravante lei geral ou específica, que facultarão a transação; b) não mais se exige o implemento de concessões mútuas; c) substitui-se o objetivo de se alcançar determinação de litígio em composição de conflito ou litígio (grifado na origem).

Tal projeto admitiria, portanto, a modalidade “preventiva” da transação o que grande parte da doutrina considera incompatível com o próprio conceito “vinculado” de tributo adotado pelo CTN. Nestes moldes, Luiz Felipe Silveira Difini49 ensina que: 234

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Por derradeiro, em direito civil, as partes podem celebrar transações para previnir ou terminar litígios. Em direito tributário, nos termos do art. 170, caput, do CTN, a lei ordinária só pode autorizá-las para terminar litígios: não há lugar para transação preventiva (para previnir litígios), que realmente parece incompatível com o caráter vinculado dos atos administrativos de exigência de tributo (grifado na origem).

Sob esse aspecto, entendemos que há razão na parcela da doutrina que entende ser impossível a transação “preventiva” em matéria tributária; com efeito, para haver transação fiscal é necessário que exista o objeto exacional a ser objeto da negociação; em outras palavras, somente seria possível a transação tributária se esta fosse dirimente de conflito já instaurado, com objeto próprio. Qualquer outro raciocínio levaria à inadequada conclusão de ser possível fazer um acordo a respeito de um possível e futuro “fato gerador presumido”, o qual, não obstante mencionado no artigo 150, § 7º, da Constituição da República, jamais poderia ser utilizado no caso da transação “preventiva”, pois a norma constitucional acima mencionada exige que a “lei” estabeleça a obrigação tributária futura – comumente usada na metodologia da substituição tributária – e o projeto de lei complementar permitiria à Administração Tributária decidir sobre “obrigações tributárias futuras”, antes da subsunção do fato gerador à norma-matriz de incidência, algo que, inevitavelmente, malferirá o próprio princípio da legalidade tributária. Alfim, entendemos que o instituto da transação não deve ser trazido de forma acrítica do direito privado ao direito tributário, até mesmo porque os artigos 109 e 110 do Código Tributário Nacional permitem a concessão de efeitos fiscais próprios aos institutos do direito civil utilizados no direito fiscal, e tal mecanismo nos parece inteiramente adequado no caso da vedação da transação “preventiva”, a qual daria à Administração Tributária um poder sobre o futuro econômico do contribuinte, algo que nem o legislador ousou realizar, pois o tributo somente pode ser cobrado “depois” da incidência normativa no fato subsumido à hipótese de incidência. Outra mudança advinda com a redação do PLC 469/2009 diz respeito à possibilidade de cada Ente Federativo regular a transação por intermédio de lei geral, o que acabaria por facilitar sua implementação e o seu uso no cotidiano fiscal. Nesse sentido, há parcela da doutrina que se opõe a esta metodologia de permitir aos Entes Federativos realizar transação com lei genérica; com efeito, embora o projeto tenha como foco a redução de ocorrências de litígios na aplicação da norma tributária, veiculada por meio de uma nova forma de interação entre sujeito ativo e sujeito passivo consistente na possibilidade de composição de conflitos, a proposta deve ser minuciosamente analisada, isso porque, sendo a transação uma forma alternativa de resolução de conflitos deve ser regulamentada por meio de lei específica e não por meio de uma lei geral5051.

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Deveras, o projeto de lei complementar em epígrafe estipula a possibilidade da transação ser regulamantada de forma genérica em relação aos tributos de competência de cada ente federativo, e o epigrafado projeto de lei ordinária foi confeccionado sob o pálio dessa nova perspectiva. Sobre este tópico, entendemos que o projeto de lei complementar nada produz de inadequado ao permitir ao legislador ordinário decidir pelo uso de norma geral ou específica a respeito da transação, mas, por evidente, é necessário aprovar tal modificação legislativa no artigo 171 do Código Tributário Nacional antes de aprovar qualquer lei ordinária geral sobre transação. Ainda, é necessário ressaltar que a lei geral sobre a transação deve ser cuidadosamente pontuada e produzida no sentido de estipular os critérios objetivos para a realização da transação pela Administração Tributária, sob pena de permitir demasiada e inconstitucional discricionariedade aos agentes fiscais, conforme se aventará no tópico adiante. Com efeito, a evidente ampliação do instituto da transação dentro do direito tributário enfatiza a necessidade de se proceder a análise acerca dos limites e necessidades que os princípios jurídicos impõem na utilização desse instituto, e ao final traçar um raciocínio acerca da (in)viabilidade de sua ampliação como forma de extinção do crédito tributário. 3.4 Os limites principiológicos inerentes à Administração Tributária e as novas proposições normativas sobre a transação fiscal Conforme anteriormente citado, os limites constitucionais impostos à Administração Pública, na forma de princípios são os mesmos que devem ser observados pelos agentes fiscais incumbidos de desempenhar atividades de cunho administrativo na fiscalização, gestão e arrecadação de tributos. Desta feita, os princípios elencados no art. 37 da CRFB, em especial a legalidade e a eficiência, bem como, e principalmente, o primado da Supremacia e Indisponibilidade, devem ser observados pelo agente da administração tributária quando do desempenho de suas funções. Embora exista a previsão de transacionar, expressa no Código Tributário Nacional, não raras vezes ocorre dúvida e, inclusive certa resistência quando da utilização desse instituto em matéria tributária. Essa resistência ocorre em virtude de tratar-se de um instituto de direito privado a ser aplicado em direito público, como bem assevera Flávio Romero de Oliveira Castro Lessa52: A finalidade aqui é apenas instigar o debate, com um equacionamento da problemática para, ao final, ser possível se lançar de forma racional um posicionamento deste articulista acerca da (in) viabilidade da utilização do instituto da transação no direito tributário, considerando se tratar de um instituto de gênese nitidamente privatista, que pressupõe um exercício da autonomia da vontade e o manejo de direitos e bens disponíveis; 236

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sem olvidar, entretanto, que o direito tributário (ambiente aonde se pretende investigar a possibilidade de haver transação) é ramo do direito público, que, sabidamente, pressupõe a existência de direitos indisponíveis.

O conceito de transação, admitido pacificamente na doutrina, pressupõe como elemento essencial para sua caracterização, a ocorrência de concessões de “ambas as partes” para que venha a ocorrer a transigência e a consequente extinção do crédito tributário. Desse modo, a dificuldade de utilização da transação é observada a partir da análise dos princípios norteadores da atividade pública em virtude de que, especialmente o princípio da impessoalidade, se contrapõe aos termos de um instituto de natureza privatista, já que sempre residirá um ponto de subjetividade a respeito do que é interessante transacionar e se está em consonância com o interesse público53 Nestes moldes, é essencial proceder ao estudo dos limites que os princípios anteriormente estudados impõem ao uso desse instituto, de gênese nitidamente privatista, numa esfera do direito público, que, por natureza, pressupõe a existência de direitos indisponíveis, motivo pelo qual se deve ter enorme cuidado para evitar que a discricionariedade se transforme em arbitrariedade indesejável. 3.4.1 A transação e os princípios norteadores da Administração Tributária A possibilidade de extinção do crédito tributário por meio de um instituto como a transação confere margem para contradições ao passo que infere a obrigatoriedade da cobrança do tributo e a possibilidade de um acordo para resolver a pretensão resistida pelo sujeito que tem o dever legal de efetuar esse pagamento. O princípio da legalidade nos termos já estudados emana da necessidade de limitar o poder estatal, impondo a estrita observância da lei como requisito de validade da atividade administrativa. Roque Antônio Carrazza54 elucida: O Estado de Direito limita os poderes públicos, isto é, concretiza-se numa proibição de agir em desfavor das pessoas. Por isso, nele, para a melhor defesa dos direitos individuais, sociais, coletivos e difusos, a Constituição vincula não só o administrador e o juiz, mas o próprio legislador. De fato, tais direitos são protegidos também diante da lei, que deve se ajustar aos preceitos constitucionais. A garantia disso está no controle da constitucionalidade, que, na maioria dos ordenamentos jurídicos, é levado a efeito pelo Poder Judiciário.

Nesta seara, os juízos de conveniência e oportunidade bem como os excessos e as arbitrariedades não são permitidos. A obrigação tributária é uma obrigação de direito público e, dessa forma, a autoridade administrativa não está autorizada a fazer concessões, pois, ao contrário do que ocorre no direito privado R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.217-255, jan./dez. 2011

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em que a vontade das partes é lei, no campo do direito público o lícito e o jurídico não se negociam.55

No anteprojeto da Lei Ordinária Federal cujo objeto é a Transação Tributária “geral”, há dispositivos que albergam prerrogativas de alta discricionariedade, como é o caso do § único do seu art. 1º, in verbis: Art. 1: Parágrafo único. Em qualquer das modalidades de transação de que trata esta Lei, a Fazenda Nacional poderá, em juízo de conveniência e oportunidade, obedecidos os dispositivos desta Lei, celebrar transação, sempre que motivadamente entender que atende ao interesse público (BRASIL, 2011-G).

Do mesmo modo pode depreender-se do § 4 do artigo 19, que propõe a seguinte redação: Art. 19: A autoridade administrativa competente pode admitir ou recusar a proposta de transação, bem como aceitar ou não as concessões apresentadas pelo sujeito passivo, em decisão cuja motivação poderá ser na forma do § 1º do art. 50 da Lei no 9.784, de 1999 (BRASIL, 2011-G).

Comentando tais dispositivos Tatiana Abranches56 assevera que o princípio da legalidade bem como a vinculação do ato administrativo de que resulta o tributo devem regulamentar a transação de forma a estabelecer que a obrigação tributária decorra diretamente da lei, sem qualquer ligação com a vontade da Administração Pública ou mesmo do contribuinte. Assim, o princípio da legalidade vincula a autoridade administrativa, não permitindo àquela negociar com o sujeito passivo os termos de dispensa ou redução de tributo5758. De outro norte, Tiago Severini 59 expõe que a utilização da transação é bastante relevante e conveniente já que atenuaria a sobrecarga do Judiciário, operando-se como algo interessante para o contribuinte em virtude das divergências interpretativas acerca da legislação tributária, de uma parte ou de outra. A controvérsia albergada por esses dispositivos reside na possibilidade de o agente fazendário exercer “juízo de conveniência e oportunidade” bem como de “aceitar ou não” a transação nos termos dos artigos acima propostos, sob o argumento de conferir discricionariedade demasiada àquele, o que acarretaria a malferição do princípio constitucional da impessoalidade. A atividade administrativa tributária plenamente vinculada está prevista no próprio CTN (arts. 3º e 142) e, portanto, é noção incompatível com qualquer discricionariedade que advenha de apreciações de conveniência ou oportunidade por parte do agente responsável pelo seu cumprimento. Ademais, tal discricionariedade é contrária ao próprio conceito de tributo, nos termos em que é definido pelo CTN, no que a concessão de margem à autoridade administrativa para emitir juízos de conveniência e oportunidade na cobrança do tributo acabaria por fazer 238

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deste um instrumento útil para a consecução de ajustes políticos.60 Conforme salienta Tatiana Abranches61 “A discricionariedade da autoridade administrativa, além de ferir o princípio da plena vinculação à lei, deixa margem ao tratamento desigual dos contribuintes.” De outro norte, Cidinei Chatt62 (2011) explica que não se evidencia nenhuma malferição ao princípio da legalidade ao passo que o agente administrativo apenas estaria cumprindo uma prerrogativa atribuída pela lei, o que apenas viabiliza o que já está previsto no CTN. Os doutrinadores compartilham o entendimento de que o ponto principal que deve ser observado e considerado ao realizar a transação é o atendimento ao Princípio da Supremacia e Indisponibilidade do Interesse Público, ao passo que a possibilidade da inobservância desse princípio é o principal argumento dos juristas contrários à aplicação da transação. Godoy63 defende a transação como meio hábil para conferir celeridade ao procedimento de arrecadação dos tributos devidos ao Estado, uma vez que a previsão contida no Projeto de Lei 5.082/2009 diz respeito à negociação de multa, juros de mora e encargos sucumbênciais e não especificamente ao montante do tributo devido. Tatiana Abranches64 enuncia que o Estado está adstrito ao cumprimento de uma série de princípios constitucionais, dentre eles a indisponibilidade dos bens públicos. Desse modo, para que o Estado, enquanto sujeito ativo da obrigação tributária, possa adentrar ao regime de concessões mútuas deve haver norma autorizativa. No entanto, pode-se ressaltar que o art. 171 do CTN já menciona a possibilidade de existirem concessões mútuas. Em virtude disso, os interesses antagônicos que norteiam a aprovação do projeto de lei são regidos, de um lado, pela implementação do Princípio da Eficiência em virtude de que o procedimento elencado pelo Projeto de Lei 5.082/2009 tornaria mais célere e eficaz a arrecadação, de outro pelo Princípio da Supremacia do Interesse Público. O propósito da análise dos Princípios da Supremacia do Interesse Público sobre o Privado e o da Eficiência, é que, para transigir, a Indisponibilidade do Interesse Público contrapõe-se à Eficiência, motivo pelo qual deve haver uma adequação entre tais valores. Por oportuno, ressalta-se que eficiência econômica não é unívoca de eficiência administrativa. Assim, Marçal Justen Filho65 esclarece: Quando se afirma que a atividade estatal é norteada pelo princípio da eficiência, não se impõe a subordinação da atividade administrativa à racionalidade econômica, norteada pela busca do lucro e da acumulação da riqueza. [...] A atividade da Administração pública é norteada por uma pluralidade de princípios, todos os quais devem ser realizados de modo conjunto e com a maior intensidade possível. Veda-se o desperdício econômico R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.217-255, jan./dez. 2011

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precisamente porque a otimização dos recursos propicia realização mais rápida e mais ampla dos encargos estatais. Quando houver incompatibilidade entre a eficiência econômica e certos valores fundamentais, deverá adotar-se a solução que preserve ao máximo todos os valores em conflito, mesmo que tal signifique uma redução da eficiência econômica.

Das lições do autor se pode depreender que a eficiência objetivada pela Administração Pública pressupõe sua ponderação com valores como o interesse público, o que deve prevalecer mesmo em situações que possam acarretar menor montante de arrecadação. O exposto remete para o que destaca Ingo Sarlet66 sobre a vinculação da Administração Pública aos direitos fundamentais: O que importa, neste contexto, é frisar a necessidade de os órgãos públicos observarem nas suas decisões os parâmetros contidos na ordem de valores da Constituição, especialmente dos direitos fundamentais, o que assume especial relevo na esfera da aplicação e interpretação de conceitos abertos e cláusulas gerais, assim como no exercício da atividade discricionária.

Por sua vez, Hugo de Brito Machado67 é favorável à realização da transação, nos moldes em que é aplicada atualmente: Para aceitarmos a transação no Direito Tributário, realmente, basta entendermos que o tributo, como os bens públicos em geral, é patrimônio do Estado. Indisponível na atividade administrativa, no sentido de que na prática ordinária dos atos administrativos a autoridade dele não dispõe. Disponível, porém, para o Estado, no sentido de que este, titular do patrimônio, dele pode normalmente dispor, desde que atuando pelos meios adequados para a proteção do interesse público, vale dizer, atuando pela via legislativa, e para a realização dos fins públicos. Em algumas situações é mais conveniente para o interesse público transigir e extinguir o litígio do que levar este até a última instância, com a possibilidade de restar a Fazenda Pública a final vencida. Daí a possibilidade de transação. Em casos estabelecidos na lei, naturalmente, e realizada pela autoridade à qual a lei atribuiu especial competência para esse fim.

No entanto, ao comentar os projetos de lei em exame, o mesmo autor descreve que a discricionariedade conferida à Administração Tributária, por meio deles, além de malferir o princípio da legalidade, acaba por viabilizar práticas corruptas, o que evidencia contrariedade ao interesse público. Em termos, o tributo poderá ser utilizado como meio de se obter vantagens e favores políticos o que é incompatível com o conceito de impessoalidade. Quanto ao argumento que infere a transação como instrumento mais adequado e célere do que uma decisão judicial, verifica-se que as relações desse cunho devem estar permeadas pelo princípio da legalidade, sem margem de discricionariedade, sob pena de acometimento de abusos.68 240

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Rebatendo a tese contra a utilização da transação Tiago Severini69 defende a relativização de certos conceitos, passando a admitir a disponibilidade do poder de tributar para o agente administrativo que o fará nos estritos limites previstos pela lei e não de forma discricionária, asseverando que este deverá realizar a transação quando esta revelar-se mais interessante ao alcance do interesse público. A morosidade na resolução dos litígios tributários deve ser minimizada por outros meios, até porque os litígios são inevitáveis. Dizer-se que a possibilidade de transação resolve este problema é um verdadeiro sofisma, pois “as sociedades empresárias que honram pontualmente suas obrigações fiscais” provavelmente dela não necessitarão, e aquelas que “protraem no tempo o pagamento dos tributos, por meio de discussões administrativas e judiciais meramente protelatórias”, certamente continuarão a agir dessa mesma forma. Por outro lado, se o problema é a demora na solução dos litígios, a solução para esse problema já existe, e está claramente posta no art. 171 do Código Tributário Nacional. Basta a transação para terminar o litígio (grifado na origem)70.

Em suma, é necessário encontrar uma solução harmoniosa entre os princípios da impessoalidade e da supremacia do interesse público, de um flanco, e o da eficiência administrativa, de outro, a se encontrar critério objetivo que permita a eficiência buscada pelos projetos de lei no aperfeiçoamento e na regulamentação da transação e a consistência dos demais princípios constitucionais que regem a relação tributária e a própria atuação da Administração Tributária. Com efeito, os projetos de lei já prescrevem expressamente que o agente fazendário deve observar e considerar o Princípio da Indisponibilidade do Interesse Público quando da realização da transação. No entanto, não há como ignorar totalmente o argumento contrário de que não há como transigir com o que pertence a todos os cidadãos, o que se constitui como óbice ao desfecho da transação fiscal71. Desde que a lei estipule os critérios objetivos quanto: aos valores mínimos e máximos da transação; às hipóteses em que a transação seria expressamente vedada (como em situações em que existam indícios de sonegação, simulação, dolo ou fraude contra o Fisco); às conjunturas em que o Agente Fiscal poderia motivadamente recusar a proposta de transação administrativa, mesmo quando inexistentes hipóteses de vedação da transação; aos demais critérios objetivos a serem seguidos pela Administração Tributária para orientar a feitura da transação fiscal; desde que esses cuidados mínimos com o interesse público fossem expressamente mencionados pelo legislador, nada haveria oponível ao uso deste relevante instituto, o qual, no entanto, não pode ser simplesmente liberado à discricionariedade e ao juízo de “oportunidade e conveniência” do agente fiscal, pois a ordem vigente, a doutrina e a jurisprudência, como já vimos, são uníssonas em ressoar a inexistência de R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.217-255, jan./dez. 2011

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faculdade tributária no âmbito do gestor administrativo, até por imposição do princípio da boa-fé e da lealdade da Administração Pública. Ademais, há um outro problema nos projetos de lei que deve ser devidamente aperfeiçoado: a ausência da presença obrigatória do advogado do contribuinte o coloca em situação de não isonomia com os agentes do Fisco, os quais estarão acompanhados dos Procuradores Fiscais, os quais, na condição de representantes da Fazenda Pública, não têm qualquer dever jurídico de defender os interesses dos contribuintes, o que poderia levar a hipóteses absurdas, tais como transações sobre valores já decaídos ou prescritos, remissão a legislação não vigente e, até mesmo, cobranças tributárias inteiramente ilegais e descabidas, aproximando a transação do perfeito arbítrio fiscal, ainda mais diante da legislação tributária brasileira, cujo caos e emaranho é conhecido, deixando o contribuinte, diante do agente fiscal, na transação, em situação de total abandono e hipossuficência informativa e não isonômica, levando à necessidade de prever a presença compulsória do advogado privado, ou do defensor público, ou de um defensor dativo, para dar validade à transação tributária, sem que se retire do contribuinte a decisão final sobre fazer ou não a transação, garantindo-se, no entanto, a potencial defesa de seus interesses patrimoniais. Em síntese, podemos assertar que é necessário aperfeiçoar os projetos de lei em pelo menos três pontos cruciais: a) a exclusão da transação “preventiva”, pois importaria em malferição ao princípio da legalidade tributária e ao artigo 150, § 7º, da CRFB, o qual exige “lei” e não “ato da Administração Tributária” para criar obrigação tributária futura para o contribuinte; b) o aperfeiçoamento da transação “administrativa” e “geral” prevista nos projetos, estipulando-se expressamente a necessidade da cominação de critérios objetivos para o legislador autorizar a realização da transação, em respeito aos princípios da supremacia e da indisponibilidade do interesse e do patrimônio público, da impessoalidade, da lealdade/boa-fé, da razoabilidade e da legalidade tributária e administrativa; c) o aperfeiçoamento da transação “administrativa” e “geral” prevista nos projetos, tornando obrigatória a presença de um advogado no âmbito da esfera do contribuinte, na defesa de seus interesses, e em reverência à isonomia e ao devido processo legal. A realização de tais evoluções na redação do projeto propiciaria obter os resultados que se intentam nos projetos de leis, descritos nas respectivas exposições de motivos, ao mesmo passo em que se manteria incólume o plexo de limites jurídicos à Administração Tributária, que servem de proteção ao contribuinte.

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir desta breve pesquisa, pela análise e síntese de idéias da doutrina e da jurisprudência que tratam do tema, foi possível inferir algumas questões, conforme se explica na sequência. Ainda que o CTN albergue em seu art. 171 a possibilidade de se extinguir o litígio por meio da transação, a utilização desse instituto requer atenção especial quando de sua regulamentação no Direito Tributário, já que esse ramo de direito público pressupõe a existência de direitos indisponíveis. Os projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional preconizam uma significativa mudança no entendimento que se tem atualmente acerca de tal instituto. Não obstante a justificativa que o PL 5.082/2009 apenas viabiliza o que já é previsto pelo CTN resta claro que ele somente poderá ser aprovado com o PLC 469/2009 que evidencia a mudança, isso ocorre porque, se apenas regulamentasse a previsão já contida no art. 171 do CTN somente seria possível a transação por meio de Lei Específica e não de Lei Geral, à semelhança do projeto de lei ordinária em relevo. Feita tal observação, cumpre ressaltar que o estágio atual de arrecadação no Brasil requer mecanismos que possam, de alguma forma, conferir celeridade ao procedimento de arrecadação bem como promovam o desafogo do Poder Judiciário que se depara com o número crescente de processos de Execução Fiscal. É nesse ponto que a transação ganha relevância. Do mesmo modo, a transação, da forma como é tratada no PL 5.082/2009, infere dúvidas porque o tributo em seu conceito, admitido pelo CTN à justificativa de não conferir margem para discricionariedades ou interpretações doutrinárias diversas, prevê a atividade administrativa vinculada quando de sua cobrança, inadmitindo que sejam emitidos juízos de conveniência ou valor pelo agente incumbido de fazê-lo, sob pena de malferir os princípios que regem a Administração Tributária e, como consequência, incompatibilizar-se com objetivo precípuo daquela. Ponto a ser aperfeiçoado consiste na previsão de transação preventiva de litígio, contida no PLC 469/2009, pois, da maneira como foi feita, há malferição aos princípios da legalidade tributária e da reserva legal do fato gerador presumido (art. 150, § 7º, da CRFB), tornando inconstitucionais futura norma no mesmo sentido. Ainda, no que diz respeito a esse dispositivo, seria mais coerente apenas regulamentar o que já está previsto no CTN, já que a transação é uma forma alternativa de extinção do crédito tributário, e da forma como é tratada, poderia tornar-se mais atrativa, no futuro, do que o próprio pagamento, que é a principal forma de extinção do crédito dessa natureza, estimulando-se a inadimplência fiscal pela “certeza” de um bom acordo posterior, o que seria frontalmente contrário ao interesse público. R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.217-255, jan./dez. 2011

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Também, entende-se como aspecto a ser aperfeiçoado a ausência de isonomia entre as partes transacionantes, uma vez que não se previu a presença compulsória do defensor do contribuinte, a quem se garantiria a decisão final sobre fazer ou não a transação, uma vez esclarecidos juridicamente os aspectos de seu interesse patrimonial. Alfim, ao passo que a transação se traduz como uma necessidade, ela deve, sim, ser inserida como meio efetivo de resolução de conflitos que vise à extinção do crédito tributário. No entanto, como tratada nos Projetos de Lei em exame, merece censura e aperfeiçoamento, já que os dispositivos, que são embasados com vistas a elucidar e, por consequência, tornar o procedimento de arrecadação mais célere, poderão vir a postergar ainda mais o adimplemento voluntário dos tributos, em virtude de constar ao contribuinte uma possibilidade futura de obter a concessão de um valor mais vantajoso por intermédio de transação cujos critérios atuais, por elasticamente discricionários, propiciaria favorecimentos políticos ilegais e outros comportamentos deviantes. A saída mais razoável para a composição dos interesses públicos em jogo seria o aperfeiçoamento do projeto no âmbito legislativo, com a criação de critérios objetivos que orientem as decisões da autoridade fiscal sobre a oportunidade e a abrangência dos possíveis acordos administrativos ou judiciais referentes à transação, mantendo íntegro o princípio da legalidade tributária e a certeza do contribuinte de que os parâmetros decisórios não terão caráter pessoal, mas natureza institucional, orgânica e apolítica, bem como a adoção dos demais aperfeiçoamentos preteritamente debuxados. Assim, a lei que facultar a transação deve estabelecer os exatos limites de crédito e as situações nas quais poderá ser realizada, com isso garantir-se-á o exercício administrativo das prerrogativas do Fisco dentro do ambiente limitado a que a ordem jurídica atual sujeita a Administração Tributária, com respeito aos princípios constitucionais, tributários e administrativos e com a garantia de preservação dos direitos fundamentais dos contribuintes. REFERÊNCIAS ABRANCHES, Tatiana Machado Dunshee de. Projeto de Lei nº 5.082/2009: Anteprojeto da Lei Geral de Transação em Matéria Tributária. Portal do Comércio. Disponível em: <http://www.portaldocomercio.org.br/media/TT.DJ6. pdf>. Acesso em: 14 set. 2011. ALVES, Tiago Carneiro; COSTA, Tiago Durante da. In: Análise dos dispositivos constitucionais da nova administração tributária: pareceres. Brasília: Fenafisco, 2008. AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. 244

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1 ALVES, Tiago Carneiro; COSTA, Tiago Durante da. In: Análise dos dispositivos constitucionais da nova administração tributária: pareceres. Brasília: Fenafisco, 2008, p. 24-26. 2 HARADA, Kiyoshi. Direito Financeiro e Tributário. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 477. 3 AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 507. 4 Artigo 37, inciso XXII, da Constituição da República: “Art. 37: (...) XXII - as administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, atividades essenciais ao funcionamento do Estado, exercidas por servidores de carreiras específicas, terão recursos prioritários para a realização de suas atividades e atuarão de forma integrada, inclusive com o compartilhamento de cadastros e de informações fiscais, na forma da lei ou convênio. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)” 5 Vide artigo 37, inciso XVIII, da Constituição da República. 6 Nesse sentido, Hugo de brito Machado explicita a imbricação entre a competência tributária e a atividade administrativa de fiscalização tributária, in literris: “a atribuição constitucional da competência tributária implica atribuição do poder de fiscalizar. Mas isso não é o bastante. O poder de fiscalizar é atribuído à entidade de direito público interno, vale dizer, à União, ao Estado, e ao Município. Há necessidade de norma definindo o órgão de cada uma dessas entidades, ao qual fica reservado o exercício do poder de fiscalizar. E ainda, há necessidade de norma definindo, em cada órgão competente para o exercício do poder de fiscalizar, a competência da autoridade para o desempenho dos atos de fiscalização. Tal como a capacidade é indispensável para a validade dos atos jurídicos em geral, a competência é requisito necessário para a validade dos atos administrativos, entre os quais os atos da Administração Tributária e, mais especificamente, os atos da fiscalização tributária” (MACHADO, Hugo de Brito. Comentários ao Código Tributário Nacional. São Paulo: Atlas, 2005, v. III, p. 744). 7 O artigo 2º da Lei Ordinária Federal nº 11.457/2007, a qual criou a Secretaria da Receita Federal do Brasil, estipula que lhe compete, além das atribuições já previstas em lei, “planejar, executar, acompanhar e avaliar as atividades relativas à tributação, fiscalização, arrecadação, cobrança e recolhimento das contribuições sociais previstas nas alíneas a, b e c do parágrafo único do art. 11 da Lei no 8.212, de 24 de julho de 1991, e das contribuições instituídas a título de substituição”. 8 Vide artigo 153, § 4º, inciso III, da Constituição da República. 9 Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal já decidiu pela exclusividade de atribuição de cobrança da dívida ativa da União por meio da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (vide julgamento do Recurso Extraordinário/RE nº 180144/RJ-RIO DE JANEIRO; Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO; Julgamento: 17/04/1998; Órgão Julgador: Segunda Turma), concomitante à decisão de que, embora juridicamente vedado criar “procuradoria geral ou especial

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da fazenda estadual”, a atribuição relativa à cobrança judicial da dívida ativa já inscrita é privativa da Procuradoria Geral do Estado (vide julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade/ADI nº 1679 MC/GO – GOIÁS; MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE; Relator: Min. NÉRI DA SILVEIRA; Julgamento: 01/10/1997 Órgão Julgador: Tribunal Pleno). 10 Na esfera do Distrito Federal, o artigo 111 da sua Lei Orgânica não menciona como atribuição da Procuradoria-Geral do Distrito Federal a apuração da liquidez e certeza e a feitura da inscrição da dívida ativa, mas, opostamente, menciona expressamente tão-somente a representação judicial para a cobrança da dívida em que o Distrito Federal seja o credor, motivo pelo qual a Secretaria da Fazenda acumula as atribuições de cobrança administrativa do lançamento fiscal e realização da inscrição na dívida ativa. 11 Segundo entendimento do Supremo Tribunal Federal, embora as leis sobre a criação de tributos não sejam privativas do Poder Executivo, as leis de criação de órgãos e cargos públicos da Administração Tributária se submetem às exigências dos artigos 61, § 1º, inciso II, alínea “e” e 84, inciso II, da Constituição da República, motivo por que são leis de iniciativa privativa do poder executivo federal, estadual, distrital ou municipal [vide julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2405 MC/RS - item “III” da ementa, in verbis: “... III - Independência e Separação dos Poderes: processo legislativo: iniciativa das leis: competência privativa do Chefe do Executivo. Plausibilidade da alegação de inconstitucionalidade de expressões e dispositivos da lei estadual questionada, de iniciativa parlamentar, que dispõem sobre criação, estruturação e atribuições de órgãos específicos da Administração Pública, criação de cargos e funções públicos e estabelecimento de rotinas e procedimentos administrativos, que são de iniciativa reservada ao Chefe do Poder Executivo (CF, art. 61, § 1º, II, e), bem como dos que invadem competência privativa do Chefe do Executivo (CF, art. 84, II). Conseqüente deferimento da suspensão cautelar da eficácia de expressões e dispositivos da lei questionada”]. 12 HARADA, op. cit., p. 478. 13 CAMPOS, Dejalma de. Direito Processual Tributário. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 19. 14 Importante frisar que o Superior Tribunal de Justiça entende ser lícito às entidades federativas criar obrigações acessórias até mesmo para pessoas físicas ou jurídicas que não estejam adstritas ao cumprimento das obrigações principais, desde que observados os princípios da razoabilidade e proporcionalidade: “Ementa: 1. O ente federado legiferante pode instituir dever instrumental a ser observado pelas pessoas físicas ou jurídicas, a fim de viabilizar o exercício do poder-dever fiscalizador da Administração Tributária, ainda que o sujeito passivo da aludida “obrigação acessória” não seja contribuinte do tributo ou que inexistente, em tese, hipótese de incidência tributária, desde que observados os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade ínsitos no ordenamento jurídico (...) (REsp 1116792/PB, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 24/11/2010, DJe 14/12/2010. Disponível em: www.stj.gov.br. Acesso em 20 de outubro de 2011 15 É relevante mencionar que, eventualmente, o prazo prescricional tributário, o qual é em regra de cinco anos, contados da data de sua constituição definitiva, pode sofrer modificações em sua contagem casuística em decorrência das hipóteses de suspensão da exigibilidade do crédito tributário (previstas no artigo 151 do Código Tributário Nacional) ou das situações legalmente previstas de interrupção da própria prescrição tributária (nos termos do artigo 174, parágrafo único, do Código Tributário Nacional). Nessas circunstâncias, o dever de conservação também irá ser estendido até o átimo em que efetivamente ocorra a prescrição. 16 Por expressa previsão legal do artigo 197, parágrafo único, do Código Tributário Nacional, tal prerrogativa não abrange informações submetidas a dever legal de sigilo profissional, como existe em relação aos ministros confessionais, aos advogados, aos médicos e às instituições financeiras. 17 Segundo o artigo 202 do Códex Fiscal, sob pena de nulidade da inscrição, estas devem ser as informações obrigatórias a constarem na inscrição inscrição da dívida ativa, no seu termo e certidão: I - o nome do devedor e, sendo caso, o dos corresponsáveis (os quais somente poderão ser executados fiscalmente se constarem originariamente da inscrição, não tnedo de ser necessaiamente sócios da empresa – vide julgamento do HC 86.309-MS, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 8/2/2011), bem como, sempre que possível, o domicílio ou a residência de um e de outros; II - a quantia devida e a maneira de calcular os juros de mora acrescidos; III - a origem e natureza do crédito tributário (crédito tributário originário de tributo ou de multa tributária), mencionada especificamente a disposição da lei federal, estadual, distrital ou municipal em que seja fundado; IV - a data em que foi inscrita; V - sendo caso, o número do processo administrativo de que se originar o crédito;

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VI – inscrição em livro próprio e em folha de inscrição específica, a qual deverá ser expressamente indicada na Certidão da Dídiva Ativa, a qual será utilizada como título executivo extrajudicial para fins de interposição da ação de execução fiscal. Interpretando o artigo supra citado, colhe-se trecho da obra de MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 270: O crédito tributário é levado à inscrição como dívida depois de definitivamente constituído. A inscrição não é ato de constituição do crédito tributário. Pressupõe, isto sim, que este se encontre regular e definitivamente constituído e, ainda, que se tenha esgotado o prazo fixado para seu pagamento. A constituição em dívida ativa ocorre depois de esgotado o prazo fixado para o adimplemento do crédito de natureza tributária, por inércia do sujeito passivo. É visto como um ato de controle de legalidade, já que os profissionais legitimados podem, neste momento, impedir que créditos, já constituídos, eivados de vícios prossigam sem a devida revisão (CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 577). Paulo de Barros Carvalho (2008, p. 578) assevera que “a inscrição em dívida ativa tem por escopo a constituição unilateral do título executivo que servirá de base para a cobrança judicial dos créditos não pagos à Fazenda Pública.” Ao ser inscrito em dívida ativa o débito tem por base o valor do tributo que deixou de ser pago, mas continuará a ter seu valor corrigido. Deste modo ao valor inscrito inicialmente serão sobrepostos os juros de mora (KFOURI JR, Anis. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 285). Conforme se pode depreender dos ensinamentos alhures mencionados a constituição do crédito como dívida ativa da Fazenda Pública, atividade incumbida à Administração Tributária, representa um momento crucial uma vez que o crédito regularmente constituído e não adimplido pelo sujeito passivo transforma-se em título executivo extrajudicial, o que possibilita sua cobrança em via judicial por meio de especial processo jurisdicional de execução forçada, denominado como “execução fiscal”, nos termos da Lei Ordinária Federal nº 6.830/80. 18 O Superior Tribunal de Justiça acolhe o entendimento de que este preceptivo do CTN instituiu a figura do princípio da imutabilidade do lançamento tributário, o qual, “insculpido no artigo 145, do CTN, prenuncia que o poder-dever de autotutela da Administração Tributária, consubstanciado na possibilidade de revisão do ato administrativo constitutivo do crédito tributário, somente pode ser exercido nas hipóteses elencadas no artigo 149, do Codex Tributário, e desde que não ultimada a extinção do crédito pelo decurso do prazo decadencial qüinqüenal, em homenagem ao princípio da proteção à confiança do contribuinte (encartado no artigo 146) e no respeito ao ato jurídico perfeito” (REsp 1115501/SP, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 10/11/2010, DJe 30/11/2010). 19 Sobre o lançamento por arbitramento, o Superior Tribunal de Justiça já assentou a respeito do artigo 33, § 6º, da Lei Ordinária Federal nº 8.212/91, o qual regulamanta o arbitramento no âmbito das contribuições sociais para a seguridade social, in verbis: “Ementa: (...) 29. Outrossim, a Administração Tributária pode proceder à aferição indireta ou arbitramento da base imponível do tributo, nas hipóteses enumeradas no artigo 148, do CTN, verbis: ‘Art. 148. Quando o cálculo do tributo tenha por base, ou tome em consideração, o valor ou o preço de bens, direitos, serviços ou atos jurídicos, a autoridade lançadora, mediante processo regular, arbitrará aquele valor ou preço, sempre que sejam omissos ou não mereçam fé as declarações ou os esclarecimentos prestados, ou os documentos expedidos pelo sujeito passivo ou pelo terceiro legalmente obrigado, ressalvada, em caso de contestação, avaliação contraditória, administrativa ou judicial.’ 30. O artigo 33, § 6º, da Lei 8.212/91, determina que, ‘se, no exame da escrituração contábil e de qualquer outro documento da empresa, a fiscalização constatar que a contabilidade não registra o movimento real de remuneração dos segurados a seu serviço, do faturamento e do lucro, serão apuradas, por aferição indireta, as contribuições efetivamente devidas, cabendo à empresa o ônus da prova em contrário’. 31. Destarte, a ausência de documentação que reflita, de maneira idônea, a realidade dos fatos, autoriza a autoridade fiscal a proceder à aferição indireta das contribuições sociais devidas, desde que observados os princípios da finalidade da lei, da razoabilidade, da proporcionalidade e da capacidade contribuinte, sendo certo, ainda, que a expedição de Ordens de Serviço a fim de regular o procedimento de arbitramento da base de cálculo, autorizada pela lei ordinária, não caracteriza ofensa ao princípio da legalidade tributária estrita (...).” (REsp 719.350/SC, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 16/12/2010, DJe 21/02/2011). 20 Nesse sentido, a doutrina abalizada de Luiz Felipe Silveira Difini afirma, categórico:

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“Em face da supremacia do interesse público, consubstanciado na realização do crédito tributário, a lei concede a este especiais garantias e privilégios, mais extensos do que desfrutam os créditos dos particulares. Garantias são os meios jurídicos que cercam o direito do Estado receber os créditos tributários (por exemplo, a inoponibilidade a este dos ônus reais) e privilégios, a posição de superioridade do crédito tributário em relação aos demais (por exemplo, sua posição privilegiada na falência)” (DIFINI, 2005, p. 324). 21 O Superior Tribunal de Justiça tem entendimento no sentido de que a natureza do lançamento é realmente de constituição do crédito tributário, de tal modo que se cria uma “norma individual e concreta constitutiva do crédito tributário (lançamento tributário ou ato de formalização do próprio contribuinte)” (REsp 796.064/RJ, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 22/10/2008, DJe 10/11/2008. No mesmo sentido: AgRg nos EDcl no REsp 871152/SP; AgRg nos EDcl no REsp 901797/SP; EDcl nos EDcl no AgRg no REsp 760100/SP; EDcl no AgRg nos EDcl no REsp 871152/SP. Ver também: REsp 855.917/RS, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 18/11/2008, DJe 15/12/2008: o lançamento tributário é “veículo introdutor de norma individual e concreta constitutiva do crédito tributário”. Outrossim, ver: (AgRg no Ag 1070751/RS, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 23/04/2009, DJe 03/06/2009: o lançamento é “compulsório” e a “única declaração unilateral constitutiva ipso jure do crédito tributário”. Também, neste último julgado epigrafado, o STJ entendeu que o autolançamento, efetuado pelo próprio contribuinte, inclusive, quando faz confissão de dívida por meio de declaração administrativa de rendimentos, também é hipótese de constituição válida em potencial do crédito tributário, motivo pelo qual se conta o prazo prescricional para a exigibilidade judicial dos valores confessados pelo contribuinte a partir da data em que este “autoconstituiu” o crédito tributário: “1. Lavrada a declaração de reconhecimento do débito, via Declaração de Rendimentos, constituindo o crédito tributário, remanesce ao Fisco o prazo qüinqüenal para a propositura da ação de exigibilidade da exação reconhecida. (...) 6. Relativamente ao valor declarado, a própria declaração de débito efetivada pelo contribuinte constitui o crédito tributário, prescindindo de ato de lançamento. Assim, podendo desde logo ser objeto de execução fiscal, tem-se que, nesta hipótese, não há que se falar em decadência, porquanto já constituído o crédito, mas tão-somente em prescrição para o ajuizamento da ação executiva. 7. A ausência da notificação revela que o fisco, “em potência” está analisando o quantum indicado pelo contribuinte, cujo montante resta incontroverso com a homologação tácita. “Diversa é a situação do contribuinte que paga e o fisco notifica aceitando o valor declarado, iniciando-se, a fortiori, desse termo, a prescrição da ação” (AgRg no Ag 1070751/RS, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 23/04/2009, DJe 03/06/2009). Disponíveis em: www.stj.jus.br. Acesso em 20 de outubro de 2011. 22 O Supremo Tribunal Federal denomina de “estatuto do contribuinte” o conjunto de normas constitucionais que servem de proteção ao contribuinte dos potenciais arbítrios do Poder de Tributar, senão vejamos, in literris: “Ementa. (...) O ordenamento constitucional brasileiro, ao definir o estatuto dos contribuintes, instituiu, em favor dos sujeitos passivos que sofrem a ação fiscal dos entes estatais, expressiva garantia de ordem jurídica que limita, de modo significativo, o poder de tributar de que o Estado se acha investido (...)”. ADI 2551 MC-QO/MG - MINAS GERAIS. Disponível em: www.stj.gov.br. Acesso em 20 de outubro de 2011. 23 Consubstanciam proteções integrantes do Estatuto do Contribuinte, dentre outras garantias expressas ou tácitas à ordem constitucional ao contribuinte, a regras, princípios e imunidades tributárias que estão previstas nuclearmente – porém, não-exclusivamente – nos artigos 150, 151 e 152 da Constituição da República. 24 Podemos mencionar, dentre outros, como princípios constitucionais gerais que devem ser observados pela Administração Tributária, seja na normatização ou na operacionalização dos seus poderes: a dignidade da pessoa humana; o pluralismo; a cidadania; a livre iniciativa e o valor social do trabalho; a separação dos poderes; a soberania popular; a razoabilidade; a construção de uma sociedade justa livre e fraterna/ solidária; e o Estado Democrático de Direito. Obviamente, não há falar em Administração Tributária atuando de forma válida e sem a observância desses princípios constitucionais gerais. Por menos curial que seja, é mais do que comum e freqüente a atuação do Fisco em total desacordo com um ou mais de tais princípios constitucionais gerais, tornando inválidas normas, atos administrativos e

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iniciativas governamentais contrárias a tais postulados. Em face da restrição focal deste artigo, abrimos mão de tecer, neste átimo, maiores considerações a respeito do assunto. 25 Os princípios da legalidade administrativa, da supremacia do interesse público, da indisponibilidade do patrimônio e do interesse público, da leladade ou da boa-fé administrativa, da impessoalidade, da moralidade, da probidade e da publicidade, dentre outros. 26 Vide artigo 108, inciso III, do Código Tributário Nacional. 27 CARVALHO, op. cit., p. 64-65. 28 ALVES; COSTA, op. cit., p. 35. 29 MESSA, op. cit., p. 37-43. 30 Nesse diapasão, ver os seguintes trechos da seara das “ transcrições” do Informativo STF 584), in verbis: “Administração Tributária - Submissão ao Regime das Liberdades Individuais - Prova Ilícita - Ilicitude por Derivação (Transcrições) HC 103325-MC/RJ* RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO DECISÃO: (...) “ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA – FISCALIZAÇÃO – PODERES – NECESSÁRIO RESPEITO AOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS DOS CONTRIBUINTES E DE TERCEIROS. - Não são absolutos os poderes de que se acham investidos os órgãos e agentes da administração tributária, pois o Estado, em tema de tributação, inclusive em matéria de fiscalização tributária, está sujeito à observância de um complexo de direitos e prerrogativas que assistem, constitucionalmente, aos contribuintes e aos cidadãos em geral. Na realidade, os poderes do Estado encontram, nos direitos e garantias individuais, limites intransponíveis, cujo desrespeito pode caracterizar ilícito constitucional. - A administração tributária, por isso mesmo, embora podendo muito, não pode tudo. É que, ao Estado, é somente lícito atuar, ‘respeitados os direitos individuais e nos termos da lei’ (CF, art. 145, § 1º), consideradas, sobretudo, e para esse específico efeito, as limitações jurídicas decorrentes do próprio sistema instituído pela Lei Fundamental, cuja eficácia – que prepondera sobre todos os órgãos e agentes fazendários – restringe-lhes o alcance do poder de que se acham investidos, especialmente quando exercido em face do contribuinte e dos cidadãos da República, que são titulares de garantias impregnadas de estatura constitucional e que, por tal razão, não podem ser transgredidas por aqueles que exercem a autoridade em nome do Estado. A GARANTIA DA INVIOLABILIDADE DOMICILIAR COMO LIMITAÇÃO CONSTITUCIONAL AO PODER DO ESTADO EM TEMA DE FISCALIZAÇÃO TRIBUTÁRIA – CONCEITO DE ‘CASA’ PARA EFEITO DE PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL – AMPLITUDE DESSA NOÇÃO CONCEITUAL, QUE TAMBÉM COMPREENDE OS ESPAÇOS PRIVADOS NÃO ABERTOS AO PÚBLICO, ONDE ALGUÉM EXERCE ATIVIDADE PROFISSIONAL: NECESSIDADE, EM TAL HIPÓTESE, DE MANDADO JUDICIAL (CF, ART. 5º, XI). - Para os fins da proteção jurídica a que se refere o art. 5º, XI, da Constituição da República, o conceito normativo de ‘casa’ revela-se abrangente e, por estender-se a qualquer compartimento privado não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade (CP, art. 150, § 4º, III), compreende, observada essa específica limitação espacial (área interna não acessível ao público), os escritórios profissionais, inclusive os de contabilidade, ‘embora sem conexão com a casa de moradia propriamente dita’ (NELSON HUNGRIA). Doutrina. Precedentes. - Sem que ocorra qualquer das situações excepcionais taxativamente previstas no texto constitucional (art. 5º, XI), nenhum agente público, ainda que vinculado à administração tributária do Estado, poderá, contra a vontade de quem de direito (‘invito domino’), ingressar, durante o dia, sem mandado judicial, em espaço privado não aberto ao público, onde alguém exerce sua atividade profissional, sob pena de a prova resultante da diligência de busca e apreensão assim executada reputar-se inadmissível, porque impregnada de ilicitude material. Doutrina. Precedentes específicos, em tema de fiscalização tributária, a propósito de escritórios de contabilidade (STF). - O atributo da auto-executoriedade dos atos administrativos, que traduz expressão concretizadora do ‘privilège du preálable’, não prevalece sobre a garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar, ainda que se cuide de atividade exercida pelo Poder Público em sede de fiscalização tributária. (...) Publique-se. Brasília, 30 de março de 2010. Ministro CELSO DE MELLO Relator”.

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Ainda, no julgamento do Habeas Corpus HC - 97567 (vide seção de “transcrições” do Informativo STF nº 574), entendeu-se que seria ilícito o Estado determinar escuta ambiental de escritório de advocacia, pois tal situação levaria ao descumprimento do direito fundamental à inviolabilidade domiciliar. 31 Vide decisão judicial no Informativo do Supremo Tribunal Federal nº 613: “Quebra de sigilo bancário pela Receita Federal - 1 O Plenário, por maioria, proveu recurso extraordinário para afastar a possibilidade de a Receita Federal ter acesso direto a dados bancários da empresa recorrente. Na espécie, questionavam-se disposições legais que autorizariam a requisição e a utilização de informações bancárias pela referida entidade, diretamente às instituições financeiras, para instauração e instrução de processo administrativo fiscal (LC 105/2001, regulamentada pelo Decreto 3.724/2001). Inicialmente, salientou-se que a República Federativa do Brasil teria como fundamento a dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III) e que a vida gregária pressuporia a segurança e a estabilidade, mas não a surpresa. Enfatizou-se, também, figurar no rol das garantias constitucionais a inviolabilidade do sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas (art. 5º, XII), bem como o acesso ao Poder Judiciário visando a afastar lesão ou ameaça de lesão a direito (art. 5º, XXXV). Aduziu-se, em seguida, que a regra seria assegurar a privacidade das correspondências, das comunicações telegráficas, de dados e telefônicas, sendo possível a mitigação por ordem judicial, para fins de investigação criminal ou de instrução processual penal. Observou-se que o motivo seria o de resguardar o cidadão de atos extravagantes que pudessem, de alguma forma, alcançá-lo na dignidade, de modo que o afastamento do sigilo apenas seria permitido mediante ato de órgão eqüidistante (Estado-juiz). Assinalou-se que idêntica premissa poderia ser assentada relativamente às comissões parlamentares de inquérito, consoante já afirmado pela jurisprudência do STF. RE 389808/PR, rel. Min. Marco Aurélio, 15.12.2010. (RE-389808) Quebra de sigilo bancário pela Receita Federal - 2 Asseverou-se que, na situação em apreço, estariam envolvidas questões referentes: 1) à supremacia da Constituição, tendo em conta que ato normativo abstrato autônomo haveria de respeitar o que nela se contém; 2) ao primado do Judiciário, porquanto não se poderia transferir a sua atuação, reservada com exclusividade por cláusula constitucional, a outros órgãos, sejam da Administração federal, estadual ou municipal e 3) à prerrogativa de foro, haja vista que seu detentor somente poderia ter o sigilo afastado ante a atuação fundamentada do órgão judiciário competente. Destacou-se, ademais, que a decretação da quebra do sigilo bancário não poderia converter-se em instrumento de indiscriminada e ordinária devassa da vida financeira das pessoas em geral e que inexistiria embaraço resultante do controle judicial prévio de tais pedidos. Reputou-se, assim, que os dispositivos legais atinentes ao sigilo de dados bancários mereceriam sempre interpretação harmônica com a Constituição. O Min. Marco Aurélio, relator, conferiu à legislação de regência interpretação conforme à Constituição, tendo como conflitante com esta a que implique afastamento do sigilo bancário do cidadão, pessoa natural ou jurídica, sem ordem emanada do Judiciário.(...)” RE 389808/PR, rel. Min. Marco Aurélio, 15.12.2010. (RE-389808) 32 Vide: julgamento do Recurso Extraordinário nº 207946/MG. rel. orig. Min. Menezes Direito, rel. p/ o acórdão Min. Marco Aurélio, 20.5.2008. 33 Vide: julgamento da ADI 173/DF, rel. Min. Joaquim Barbosa, 25.9.2008. (ADI-173). 34 Vide (Informativo/STF nº 6050: julgamento da ADI 3952/DF, rel. Min. Joaquim Barbosa, 20 e 21.10.2010. (ADI-3952). “Considerou que a função extrafiscal da tributação não poderia afastar a efetividade da jurisdição, intimamente ligada ao direito fundamental ao devido processo legal de controle da validade das exações. De igual forma, rejeitou as assertivas segundo as quais o art. 2º, II, do Decreto-lei seria inconstitucional em qualquer de suas interpretações possíveis. Destacou, no ponto, que a proibição da sanção política não conferiria imunidade absoluta e imponderada, pois não serviria como uma espécie de salvo-conduto geral aos contribuintes que fazem da frívola impugnação de lançamentos tributários uma ferramenta de vantagem competitiva. Ter-se-ia, de um lado, o direito fundamental à livre atividade econômica lícita e o de acesso à jurisdição e, de outro, o direito à livre concorrência e o dever fundamental de pagar tributos. ADI 3952/DF, rel. Min. Joaquim Barbosa, 20 e 21.10.2010. (ADI-3952). 35 Em face das dimensões reduzidas deste labor, não se fará ao seu final a transcrição integral dos dois projetos de lei e das respectivas exposições oficiais de motivos que os justificam; mas, por outro lado, se remete à bibliografia final na qual consta o sítio eletrônico de onde tais informações poderão ser obtidas e aferidas. 36 Hugo de Brito Machado e Hugo de Brito Machado Segundo (2011, p. 11) 37 SEVERINI, Tiago. Transação em matéria tributária no direito brasileiro?. Revista tributária e de finanças públicas. São Paulo, v. 17, n. 88, p. 235-268, set./out. 2009, p. 241.

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Maurício Muriack de Fernandes e Peixoto  Caroline Mello Boaroli

38 CASSONE, Vittorio. Direito Tributário: fundamentos constitucionais da tributação, classificação dos tributos, interpretação da legislação tributária, doutrina, prática e jurisprudência, atual. de acordo com as EC nº. 32, de 11/9/2001, e nº 33, de 11/12/2001. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 199 39 MORAES, Bernardo Ribeiro de. Compêndio de Direito Tributário. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 457. 40 Recurso Especial nº 1244347-MS (2011/0050368-5). Recorrente: Estado do Mato Grosso do Sul. Recorrido: Comaves Indústria e Comercio de Alimentos Ltda. Relator: Min. Mauro Campbell Marques. Julgado em 14/04/2011. Disponível em www.stj.jus.br. Acesso em 14. set. 2011-F. 41 PAULSEN, Leandro. Direito Tributário: Constituição e Código Tributário à luz da doutrina e da jurisprudência. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 118-119. 42 Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça entende que o parcelamento é espécie de moratória do débito fiscal, suspendendo a exigibilidade do crédito tributário (vide julgamento do AgRg no REsp 996837/SP), bem como que o parcelamento é causa suspensiva do crédito tributário insuscetível de ser confundida com o instituto da transação, a qual é causa “extintiva” (e não “suspensiva”) do crédito tributário (vide julgamento do REsp 706011/PR). Por este motivo, o STJ adota entendimento no diapasão de que o parcelamento não é transação e, por este motivo, não se aplica ao parcelamento a previsão do artigo 26, § 2º, do Código de Processo Civil que determina a exclusão de condenação em honorários advocatícios se houver “transação” entre o credor e o devedor, in verbis: “EXECUÇÃO FISCAL. ADESÃO AO PROGRAMA DE PARCELAMENTO. RECONHECIMENTO DO DÉBITO. EXTINÇÃO DOS EMBARGOS DO DEVEDOR. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. CABIMENTO. 1. O pagamento de honorários advocatícios na Execução Fiscal não exclui a condenação na verba honorária devida nos Embargos do Devedor, que constitui ação autônoma. Precedentes do STJ. 2. A adesão a programa especial de parcelamento representa confissão do débito. Nesses casos, a extinção dos Embargos do Devedor, decorrente do pagamento dentro do programa, implica condenação em honorários advocatícios. Precedentes do STJ. 3. Hipótese em que a empresa aderiu ao Refis estadual e pagou o débito em cobrança na Execução Fiscal, acrescido dos honorários devidos naquela ação. Os Embargos foram extintos em decorrência do pagamento do débito, com a condenação em honorários. 4. O Tribunal a quo julgou que a adesão ao Refis configura transação e atrai a aplicação do art. 26, § 2º, do CPC, afastando a verba honorária. Entendimento que destoa da jurisprudência do STJ e, portanto, merece reforma. Precedentes do STJ. 5. Agravo Regimental não provido. (AgRg no Ag 1292805/MS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 08/06/2010, DJe 01/07/2010). Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em 02 de novembro de 2011. 43 CARVALHO, op. cit., p. 497. 44 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 739. 45 CARVALHO, op. cit., 497-498. 46 MORAES, 2002, op. cit., p. 457. 47 MACHADO; MACHADO SEGUNDO, op. cit., p. 14. 48 GODOY, op. cit. 49 DIFINI, Luiz Felipe Silveira. Manual de direito tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 302. 50 ABRANCHES, op. cit. 51 É relevante sublinhar que as opiniões desta autora contra a “transação geral” foram envidadas mediante a análise dos dispositivos do PL 5.082/2009 em detrimento do atual art. 171 do CTN, sem levar em conta a previsão do PLC 469/2009 que passa a admitir que a transação seja veiculada também por meio de lei geral. 52 LESSA, op. cit. 53 ABRANCHES, op. cit. 54 CARRAZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 22. ed. São Paulo: Malheiros: 2008, p. 240. 55 ABRANCHES, op. cit. 56 Ibid. 57 MACHADO; MACHADO SEGUNDO, op. cit., p. 5. 58 Nesse sentido, no julgamento do Recurso Especial nº 413668/RS, o Superior Tribunal de Justiça sublinhou lição óbvia de que o Direito Tributário está “preso ao princípio da legalidade e da tipicidade”. Por outro prisma, no julgamento do AgRg no REsp 727212/RN, o STJ entendeu que o princípio da tipicidade e da

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A Transação Como Forma de Extinção do Crédito Tributário: Uma Análise das Alterações Preconizadas Pelos Projetos de Lei Nº 5.082/2009 e 469/2009, Sob a Égide dos Princípios da Administração Tributária

legalidade tributária vedam a “criação” de tributo sem previsão legal. E a fortiori, se é negada a “criação” do tributo sem lei, é possível presumir que a “extinção” também depende de lei específica. Por fim, é relevante mencionar que no julgamento do AgRg nos EDcl no RMS 20097/SC, o STJ expressou literalmente que não existe discricionariedade possível para a autoridade fiscal, em face do caráter vinculante da lei tributária: “Ementa. (...) 4. As normas do Direito Tributário impõem ao administrador, como atividade vinculada, a cobrança da exação. Não há discricionariedade ou possível alegação por parte do sujeito passivo da obrigação tributária de desconhecimento do tributo. A obrigação é veiculada por lei, o que impossibilita a alegação de que se deixou de recolher o tributo de boa-fé”. Por fim, é válido mencionar que no julgamento do REsp 1239472/RS, o STJ entendeu que a discricionariedade em matéria fiscal é do legislador que institui a política tributária vigente em cada tempo. Disponíveis em: www.stj.gov.br. Acesso em 02 de novembro de 2011. 59 SEVERINI, op. cit., p. 261. 60 MACHADO; MACHADO SEGUNDO, op. cit., p. 05-06. 61 ABRANCHES, op. cit. 62 CHAT, Cidinei. A Transação como Forma Alternativa de Solução de Conflito em Matéria Tributária. Clubjus. Disponível em: <http://www.clubjus.com.br/?artigos&ver=2.32058>. 63 GODOY, op. cit. 64 ABRANCHES, op. cit. 65 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 7. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2011, p. 86-87. 66 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria Editora do Advogado, 2004, p. 357. 67 MACHADO, 2005, op. cit., p. 517. 68 MACHADO; MACHADO SEGUNDO, op. cit., p. 13. 69 SEVERINI, op. cit., p. 257. 70 MACHADO; MACHADO SEGUNDO, op. cit., p. 13. 71 Diga-se, ainda, que cabe ao legislador adotar ou não outras medidas; com efeito, a busca por uma atuação mais transparente e célere, diga-se eficiente da Administração Tributária, poderia ser atingida, mas por outro meio: o do fortalecimento e aparelhamento da fiscalização, o que não implicaria em renúncia aos interesses pelos quais deve primar (ABRANCHES, op. cit).

TRANSACTION AS A MEANS OF EXTINCTION OF TAX CREDIT: AN ANALYSIS OF CHANGES IN PROJECTS AS COMPRISED BY LAWS 5.082/2009 AND 469/2009, UNDER THE REALM OF THE PRINCIPLES OF TAX ADMINISTRATION ABSTRACT This paper analyzes the propositions of ordinary and complementary bills that alter and extend the use of the institution of transaction regarding taxation, as viewed by constitutional, tax and administrative principles that rule tax administration. Thus, it is suggested that improvements in the original text initially sent by the Federal Government to be deliberated by the National Congress be implemented. Keywords: Analysis of bills. Tax transaction. Principles and limits of the Internal revenue service. R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.217-255, jan./dez. 2011

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A Ideologia do Atraso a Partir das Análises Weberianas no Brasil e a (Re)Construção da(s) Identidade(s) Nacional(is) Rogério Monteiro Barbosa* Davi Niemann Ottoni** Introdução. 1 Desenvolvimento. 2 A Importância de Max Weber. 3 Comentários Sobre Weber. 4 A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. 5 O Pensamento de Raymundo Faoro. 6 O Homem Cordial de Sérgio Buarque de Holanda. 7 Weber e o Brasil. 8 A Questão Histórica. 9 A Questão da Identidade. Conclusão. Referência.

RESUMO No presente artigo, trabalha-se essencialmente a tematização da identidade nacional, a partir da historiografia, que nos possibilitou compreender como é possível contar a história sob múltiplos olhares. Em outras palavras, pode-se recontar a história, já que esta não se encontra fixa no tempo, imutável e acabada. Mesmo um fato distante pode ganhar um novo significado, ainda que com os limites que lhe são intrínsecos. Buscou-se, também, enfatizar o pensamento político tradicional, considerado como aquele formado, especialmente, pelos autores dos anos 1930. Nesses, foi possível apontar a influência do pensamento weberiano. Posteriormente, apresentam-se as críticas dos autores contemporâneos que proporcionaram uma revisão do modo como o brasileiro sempre se compreendeu. Enfim, este artigo almejou contribuir para a questão democrática, já que, dependendo do modo como o povo conta sua história, influencia, decisivamente, na assunção de responsabilidade quanto a seu destino público. Palavras chaves: Identidade. Patrionialismo. Democracia. Brasil. INTRODUÇÃO No Brasil, desde que começou o processo de exploração e colonização, há um abismo entre o fático e o normativo. Quando o português se instalou nas terras * Mestre em Teoria do Direito e doutorando em Direito Privado pela PUC Minas. Professor na Faculdade Mineira de Direito/PUC Minas e na Faculdade Novos Horizontes. E-mail: rogeriomonteiro22@hotmail.com ** Mestrando em Direito Público pela PUC Minas. Professor na Faculdade Mineira de Direito/ PUC Minas.

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dos índios, fosse com a pretensão apenas de explorar os recursos daquela terra ainda incólume, fosse no período que começou com uma atitude de colonização, iniciou um processo de implementação de regras que jamais recebeu uma eficaz acolhida por parte de seus destinatários. Muitos fatores contribuíram para que isso ocorresse. Um deles foi a dureza de tais mandamentos, já que os mesmos visavam, tão somente, otimizar a forma da metrópole obter benefícios em sua colônia. O outro, também fundamental, é que, à medida que ia se constituindo a “gente brasileira”, por um lado, por outro, o da metrópole normatizadora, uma indiferença e até mesmo uma cegueira quanto às especificidades daquelas nascentes formas de vida, que eram tão diferentes das europeias, tomava conta de nossos descobridores/exploradores / colonizadores. Um último fator foi a ausência de colaboração brasileira na elaboração de tais leis. Dessa forma, fazer que o “povo brasileiro” tivesse consciência jurídica, tornando as leis eficazes, era exigir demais de uma gente que, das leis, recebia apenas o rigor das cobranças de impostos e a truculência do autoritarismo metropolitano. Ora, essa percepção do Estado como algo que apenas explora e pune fez que surgisse, gradualmente, naquela incipiente sociedade, uma forte descrença quanto ao mesmo, fazendo que a vida pública fosse sinal de um certo terror para a maioria das pessoas. Digo maioria porque, para a minoria, a situação era outra. Para aqueles que possuíam alguma relação com o Poder, as leis não eram tão rigorosas. Aliás, é curioso e lastimável estudar a história do Brasil e perceber que está na formação de nossa sociedade um desejo incomensurável, por parte de uma camada social, de participar da vida pública. Com o óbvio interesse de receber do Estado todos os benefícios e privilégios possíveis e não para contribuir para o desenvolvimento do País. Todos esses fatores, o abismo entre o fático e o normativo e a espúria apropriação privada dos cargos públicos somados ao fato de que houve uma delicada transferência de terras da Coroa portuguesa para as mãos de particulares, com grandes repercussões, fez que a separação público/privado nunca ocorresse de forma cabal em nosso país. Daí advieram consequências que são facilmente notadas por qualquer brasileiro e em qualquer época que tenha vivido: do Poder Público pode se esperar muito pouco (ou, ao contrário, muito para alguns), uma vez que, de certa forma, ele tem servido principalmente aos interesses privados daqueles que têm o privilégio de ser, nas palavras de FAORO, “os donos do Poder” (2001), situação que faz nascer uma relação promíscua entre os interessados, ou seja, uma rede de favores, de corrupção e de relações inescrupulosas começa a se instalar entre aqueles que detêm ou que pretendem deter o poder. Os que estão fora do jogo, ficam cada vez mais submetidos ao autoritarismo desse poder privado que se instalou no âmbito público. Essa preliminar abordagem evidencia-nos a problemática relação público/ privado nas origens do Brasil. Mas há mais dificuldades para rechear esta complicada situação: o que os sociólogos e antropólogos chamam de dramas sociais do cotidiano. Em nosso caso, o famigerado “você sabe com quem está falando?” e o peculiaríssimo jeitinho brasileiro. Um, autoritário, presunçoso e arrogante. O outro, cordial, suave e até simpático. Ambos, rompendo as barreiras que separam a vida pública da vida privada. R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.256-274, jan./dez. 2011

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Enfim, no Brasil, de ontem e de hoje, os modelos de democracia que temos importado esbarram em características tão nossas que acabam dificultando a implementação dos modernos projetos de democracia trazidos da Europa e dos Estados Unidos, regiões em que as sociedades se formaram de maneira tão díspares da nossa, o que, inclusive, talvez nos permita compreender o motivo de tais democracias terem sido mais bem sucedidas. É exatamente nesse ponto que se avulta a importância desse artigo, pois, podemos perguntar-nos: será possível “vingar” entre nós modelos que pressuponham que não haja um entrelaçamento entre o público e o privado como o que há por aqui? Um outro ponto que mostra a pertinácia desse artigo: todos os trabalhos que estudaram esta nossa peculiaridade (o entrelaçamento entre o público e o privado), fizeram-no de forma muito bem elaborada e precisa. Entretanto, ainda não há um estudo que enfatize o lado jurídico do problema. Também pretendemos possibilitar a compreensão do alcance da palavra Justiça e da expressão Estado Democrático de Direito, não apenas olhando para os países europeus ou para os Estados Unidos com suas sociedades tão diferentes da nossa, mas, pelo contrário, olhando, principalmente, para mais perto, para nós mesmos. Quem sabe consigamos, assim, explicitar um entendimento tão comum e consensual entre os alunos dos cursos de Direito no Brasil: “quase nada do que se aprende aqui (na faculdade), usa-se na prática”. Fizemos questão de mencionar apenas os alunos porque parece que os profissionais, pelo menos boa parte deles, rapidamente se adaptam aos novos matizes da prática, nem tão jurídica como gostaríamos que fosse. 1 DESENVOLVIMENTO No Brasil, há um certo discurso de que, por aqui, “as coisas não dão certo”. Seja no meio acadêmico, nas ruas, na imprensa ou mesmo entre os próprios políticos, uma visão negativista é direcionada ao País e a seu povo. Costuma-se falar que o Brasil é o país da corrupção, do clientelismo, do levar vantagem em tudo, das leis que não pegam, dos famigerados “jeitinho” e do “você sabe com quem está falando?”, (como mencionado anteriormente) do atraso, ou, quando, melhor, do futuro. Enfim, há, em grande parte do povo brasileiro, da elite à popular, uma compreensão pessimista acerca do Brasil. Uma perspectiva que constitui uma imagem negativa acerca de quem somos nós. Presente este discurso, podemos tematizar algumas questões que lhe são subjacentes: primeira, a questão do referencial, já que, de um modo geral, há, por traz desse discurso, um certo cotejo (com a obra de Weber); segunda, a análise da constituição ou da manutenção de aspectos de nossa realidade social em razão da maneira como essa realidade (histórica) é contada e descrita; por fim, a questão da constituição de nossa identidade, ou, o que parece melhor, de nossas identidades.

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2 A IMPORTÂNCIA DE MAX WEBER Weber é um autor fundamental para se compreender o ocidente. Suas análises sobre o direito formal burguês, a formação do Estado moderno, o surgimento do capitalismo e a racionalidade instrumental, todos típicos da modernidade, são importantíssimas para quem pretende estudar e analisar o mundo ocidental. A influência de sua obra é enorme. Em artigo que procura analisar o reconhecimento e a repercussão de algumas obras para as ciências sociais brasileiras nos século XX, Schwartzman1 menciona que Economia e Sociedade, de Weber, foi considerada a mais importante obra sociológica do século, de acordo com pesquisa realizada pela International Sociological Association. No Brasil, sua influência não é menor. Max Weber é, sem sombra de dúvida, uma das referências fundamentais das ciências sociais no Brasil. Ele não é apenas um dos autores mais citados nas nossas dissertações de mestrado e teses de doutorado, como é, neste particular, e também juntamente com Marx, a principal fonte de inspiração para a própria autocompreensão do Brasil. 2

E como tem sido um constante marco teórico nas pesquisas sobre o País, tornou-se a pedra de toque para se considerar o atraso e as características sócio-políticas brasileiras. Atraso que acaba sendo refletido não apenas por especialistas como também, de um modo geral, pela população, pois, como nos ensina Viana, “o Weber da versão hoje hegemônica nas ciências sociais e na opinião pública sobre a interpretação do Brasil, tem sido aquele dos que apontam o nosso atraso como resultante de um vício de origem”.3 A partir dessas considerações, pretendemos, antes de analisar alguns autores brasileiros e a conexão de suas obras com a teoria weberiana, comentar alguns conceitos da sociologia de Weber que serão fundamentais para se compreender a análise que é feita sobre o Brasil. 3 COMENTÁRIOS SOBRE WEBER Obviamente, analisar o pensamento de Weber é tarefa assaz complicada, dada a abrangência e profundidade de sua obra. O que faremos a seguir são pequenas considerações que serão pertinentes para o propósito de construir, parcialmente, algo como um estudo das ideias acerca do Brasil. Sendo assim, o que abordaremos do pensamento de Weber são aqueles conceitos principais que estão presentes no pensamento dos autores brasileiros que comentaremos posteriormente. Weber preocupa-se em analisar a sociedade a partir da ação de sujeitos individuais. Ou seja, para ele, não são as interpretações coletivistas que melhor explicam o mundo social, mas sim aquelas que levam em conta a prioridade e primazia do indivíduo que liga sua ação à ação de outros:“o termo ação social será reservado à ação cuja intenção fomentada pelos indivíduos envolvidos se refere à conduta de outros, orientando-se de acordo com ela”4. Definição que R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.256-274, jan./dez. 2011

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ensejou críticas de alguns autores31. Crítica que é refutada por Argüello5 que nega a tese da “racionalidade instrumental”, e pelo próprio Weber: De qualquer modo, é um tremendo mal-entendido supor que uma metodologia individualista pressupõe também um sistema individualístico de valores. Uma opinião tão errada quanto confundir a tendência relativamente inevitável dos conceitos sociais adquirir um caráter racional, baseando-se na crença de que motivos racionais ou que o racionalismo pode ser positivamente avaliado.6

Em outras palavras, precisamos entender que a análise de Weber não é uma defesa nem, sequer, um reducionismo individualista da ação, mas, principalmente, uma metodologia. Outro aspecto metodológico valiosíssimo em Weber e que será muito utilizado por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil é o conceito de tipo ideal. Para Weber, podemos atribuir sentido a uma ação história, situada no tempo e no espaço, assim como podemos trabalhar metodologicamente com o tipo ideal, “conceitual, de sentido subjetivo, atribuído a um ator hipotético num dado tipo de conduta.”7 O conceito do tipo ideal permitirá que essa metodologia seja utilizada por autores em quaisquer sociedades, pois, ela não leva em conta as características locais, como uma espécie de padrão normativo fixo que pode ser exportado irrestritamente. Quando estabelecemos uma conexão entre os dois conceitos citados, temos que “a construção de uma ação rigorosamente racional, de acordo a fins, por causa da sua clara inteligibilidade e falta de ambiguidade racional, serve à sociologia como um tipo ideal”. 8 Na introdução de seu famoso livro A ética protestante e o espírito do capitalismo, Weber nos mostra que “somente na civilização ocidental, haverem aparecido fenômenos culturais dotados (como queremos crer) de um desenvolvimento universal em seu valor e significado.”9 Assim foi com o desenvolvimento da ciência, do capitalismo, do Estado moderno, do direito formal burguês. Para Weber, não há como separarmos o advento dos Estados modernos do surgimento do capitalismo e do direito formal. Ao discorrer sobre as origens do capitalismo, diz o autor que [...] entre os fatores de importância incontestável, encontra-se as estruturas racionais do direito e da administração. Isto porque o moderno capitalismo racional baseia-se, não só nos meios técnicos de produção, como num determinado sistema legal e numa administração orientada por regras formais. Sem esta, seriam viáveis o capitalismo mercantil aventuroso e especulativo, e ainda toda espécie de capitalismo politicamente determinados, mas não o seria empresa racional alguma sob iniciativa particular, com capital fixo e baseada num cálculo seguro.10 1 Esta é a posição de Habermas (HABERMAS, 1997, p. 369 e ss.) Segundo ele, Weber identificou apenas um aspecto da ação social que se caracteriza, principalmente, pela ação comunicativa.

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Características que, segundo o autor, são exclusivas do ocidente. Para compreendermos a racionalização do Direito, dois aspectos devem ser considerados. Primeiro, “a racionalização foi possível somente a partir de um distanciamento do pensamento mágico e, por conseguinte, de uma racionalização ética da imagem do mundo”.11 Além disso, [...] para o direito, o aparecimento das religiões de redenção possibilitou a separação definitiva entre preceitos jurídicos e normas religiosas...outrossim, a racionalização do direito torna-se possível quando se processa um distanciamento total dos preceitos religiosos ou éticos. Moral e direito assinalam complexos de racionalidade distintos.12

Em segundo lugar, também segundo Argüello, todo o processo de racionalização da economia e do Direito levam a sociedade para uma grande valorização da eficiência e uma possível desumanização da sociedade.13 Por fim, [...] o elo condutor de sua sociologia jurídica, exposto em Economia e Sociedade, é exatamente a relação entre capitalismo moderno e direito racional. O desenvolvimento do mercado exige, ao lado da liberdade contratual, a garantia jurídica oferecida pelo Estado.14

Uma das interpretações do possível atraso brasileiro é a de que o País se caracteriza por um forte patrimonialismo2 que seria um dos entraves ao desenvolvimento do capitalismo e do Estado brasileiro. Análise que é feita a partir de uma apropriação e interpretação da sociologia weberiana: [...] o Weber da versão hoje hegemônica nas ciências sociais e na opinião pública sobre a interpretação do Brasil, tem sido aquele dos que apontam o nosso atraso como resultante de um vício de origem, em razão do tipo de colonização a que fomos submetidos - a herança do patrimonialismo ibérico... Desse legado, continuamente reiterado ao longo do tempo, adviria a marca de uma certa forma de Estado duramente autônomo em relação à sociedade civil, que ao abafar o mundo dos interesses privados e inibir a livre iniciativa, teria comprometido a história das instituições com concepções organicistas da vida social, e levado à afirmação da racionalidade burocrática em detrimento da racionalidade legal... Ainda segundo essa versão, a ausência do feudalismo na experiência ibérica, inclusive no Brasil, aproximaria a forma patrimonial do nosso Estado à tradição política do oriente, onde não se observariam fronteiras nítidas a demarcar as atividades das esferas pública e privada.15

Esse aspecto, o entrelaçamento entre o público e o privado, constituir-se-á em um dos pontos mais analisados por vários autores brasileiros das mais diferentes áreas, sendo, segundo eles, o ponto nevrálgico dos 2 Tema que será desenvolvido adiante. R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.256-274, jan./dez. 2011

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dilemas nacionais. 4 A ÉTICA PROTESTANTE E O ESPÍRITO DO CAPITALISMO A última consideração que pretendemos fazer antes de analisar algumas obras que procuraram interpretar o Brasil a partir de uma matriz weberiana é acerca do surgimento do capitalismo. Antes de explicar com profundidade os motivos que levaram o capitalismo a se desenvolver entre os protestantes, Weber menciona dados que são estatísticos e intuitivos ao mesmo tempo: grande parte da fortuna do mundo está nas mãos de protestantes assim como a maioria dos países mais avançados economicamente serem também de maioria religiosa protestante16. Para entender o motivo de isso ser assim, devemos entender que o racionalismo econômico é uma característica intrínseca aos protestantes, sendo, desnecessário e equivocado buscar na história ou em outros fatores explicações de tal racionalidade17. Para Weber, foi o calvinismo, dentre as religiões reformadas, a que mais promoveu o desenvolvimento do espírito do capitalismo.18 Uma importante mudança operada pela Reforma foi a valorização do trabalho secular a partir do sentido atribuído à palavra vocação, dado por Lutero. Diferentemente do que era para os católicos, [...] nesse conceito de vocação que se manifestou o dogma central de todos os ramos do Protestantismo, descartado pela divisão católica dos preceitos éticos em praecepta e consilia, e segundo a qual a única maneira de viver aceitável para Deus na superação da moralidade secular pela ascese monástica, mas sim no cumprimento das tarefas do século, imposta ao indivíduo por sua posição no mundo. Nisso é que está sua vocação. 19

Essa valorização religiosa do trabalho propiciou, obviamente, não só um alívio para a culpa de se envolver com tarefas mundanas, como foi, também, um incentivo moral para ela. Todavia, não foi Lutero quem elevou ao máximo a influência religiosa no desenvolvimento do “espírito do capitalismo” e sim Calvino e sua doutrina, para a qual, a predestinação era um elemento essencial. Ser escolhido por Deus era algo que só dependia Dele, não tendo o homem como intervir nesse processo. Outrossim, saber quem seria um escolhido era impossível. Entretanto, diante do mistério e do medo que aflige a maioria dos homens, persistia a vontade de se obter tal resposta. E a recomendação para os crentes era manter-se autoconfiante por meio de uma intensa atividade profissional.20 Esse tipo de conduta que servia, de acordo com Calvino, para aumentar a glória de Deus, propiciava a certeza da graça. “Na prática, isto significa que Deus ajuda quem se ajuda”21. Percebe-se então, quão ligadas ficaram as atividades seculares com a questão religiosa, já que à certeza da segunda dependia a realização da primeira. Mas o mais importante é que o trabalho constitui, antes de mais 262

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nada, a própria finalidade da vida. A expressão paulina “Quem não trabalha não deve comer” é incondicionalmente válida para todos. A falta de vontade de trabalhar é um sintoma da ausência do estado de graça. 22

O trabalho e uma recusa em desfrutar a vida passam a ser características de um ascetismo que foi decisivo no surgimento do capitalismo. Havia um incentivo ao trabalho e a se buscar o lucro, mas uma condenação ao usufruir das riquezas. Uma combinação de fatores que foi fundamental para o desenvolvimento do capitalismo. A avaliação religiosa do infatigável, constante e sistemático labor vocacional secular, como o mais alto instrumento de ascese, e, ao mesmo tempo, como o mais seguro meio de preservação da redenção da fé e do homem, deve ter sido presumivelmente a mais poderosa alavanca da expressão dessa concepção de vida, que aqui apontamos como “espírito” do capitalismo.23

5 O PENSAMENTO DE RAYMUNDO FAORO Como visto anteriormente, o Brasil padeceria de um vício de origem. Nossos problemas seriam o resultado da nossa herança ibérica. Um dos principais representantes dessa interpretação é Raymundo Faoro com sua monumental obra OS DONOS DO PODER. Passamos, a seguir, a reconstruir alguns aspectos dessa obra, cuja influência Weberiana é facilmente perceptível. No Brasil, a colonização foi obra do Estado, com as capitanias representando uma delegação pública de poderes por meio das capitanias hereditárias, o que já significava uma transferência de bens públicos para as mãos de particulares. Predominava um entendimento de que a América deveria ser moldada e não um mundo a ser criado, levando em consideração as características locais. Sendo assim, desde as capitanias, havia um dualismo de força entre o Estado e a sociedade civil. Como exemplo, a criação dos municípios antecedeu o povoamento, o que era, obviamente, uma forma de dominação. A política sempre foi organizada antes da organização social. No Brasil, desde que começou o processo de exploração e colonização, houve um abismo entre o fático e o normativo. O Estado, sempre sobreposto à sociedade, não encontrava nela, nenhuma resistência. Nesta sociedade que só via o Estado como um monstro que arrecada impostos e impõe a violência, o cargo público era acentuadamente desejado, o que acabava gerando um quadro de funcionalismo: todos querendo entrar para o Estado, mesmo sem haver função a ser exercida. Juntamente com a vontade de se afidalgar, a burguesia, sequiosa por participar dos negócios públicos, literalmente comprava cargos públicos. “A primeira consequência, a mais visível, da ordem burocrática, aristocratizada no ápice, será a inquieta, ardente, apaixonada caça ao emprego público”.24 Com esse voraz interesse pelo poder público, surge uma característica importantíssima que é o patronato. R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.256-274, jan./dez. 2011

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O patronato não é, na realidade, a aristocracia, o estamento superior, mas o aparelhamento, o instrumento em que aquela se expande e se sustenta. Uma circulação de seiva interna, fechada, percorre o organismo, ilhado da sociedade, superior e alheio a ela, indiferente à sua miséria. O que está fora do estamento será a cera mole para o domínio, enquanto esta, calada e medrosa, vê no Estado uma potência inabordável, longínqua e rígida.25

Assim, com essa espúria apropriação privada dos cargos públicos, a separação público/privado nunca ocorreu de forma cabal em nosso país. Em outras palavras, “por toda parte, em todas as atividades, as ordenanças administrativas, dissimuladas em leis, decretos, avisos, ordenam a vida do país e das províncias, confundindo o setor privado ao público”.26 Um outro problema brasileiro diz respeito à nossa recepção ao Liberalismo. Importado sem exame e sem problematização, essa ideologia deparou-se com peculiaridades de nossa política e de nossa sociedade levando seus representantes a uma duplicidade, já que, ao chegarem ao poder, tornavam-se conservadores. Acerca do capitalismo, Faoro nos diz que um capitalismo politicamente orientado, aventureiro sobreviveu e influenciou o capitalismo moderno, de índole industrial. Como consequência, a comunidade política conduzia os negócios, como negócios privados seus, na origem, como negócios públicos depois. “Dessa realidade se projeta, em florescimento natural, a forma de poder, institucionalizada num tipo de domínio: o patrimonialismo, cuja legitimidade assenta no tradicionalismo – assim é porque sempre foi”.27 A percepção de Faoro é que o capitalismo não foi capaz de promover, para além das técnicas industriais uma transformação de mentalidades, já que devido à “persistência secular da estrutura patrimonial”28, certas características na economia e do Estado moderno não nos alcançaram. Assim se como vimos acima, para Weber, capitalismo, Estado moderno e direito formal burguês são fenômenos cooriginários e interdependentes, na formação do Brasil, tais fenômenos ficariam comprometidos desde o início, em virtude do privatismo, da apropriação privada do espaço público. Num estágio inicial, o domínio patrimonial, desta forma constituído pelo estamento, apropria as formas econômicas de desfrute dos bens, das concessões, dos cargos, numa confusão entre o setor público e o privado, que com o aperfeiçoamento da estrutura, se extrema em competências fixas, com divisão de poderes, separando-se o setor fiscal do setor pessoal. O caminho burocrático do estamento, em passos entremeados de compromissos e transações, não desfigura a realidade fundamental, impenetrável às mudanças. O patrimonialismo pessoal se converte em patrimonialismo estatal, que adota o mercantilismo como técnica de operação da economia. Daí se arma o capitalismo político, ou o capitalismo orientado. 29

Para Faoro, aquilo que foi anteriormente analisado, não constituem 264

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momentos isolados de nossa história, pois se repetem e se perpetuam. “A pressão da ideologia liberal e democrática não quebrou, nem diluiu, nem desfez o patronato político sobre a nação, impenetrável ao poder majoritário, mesmo na transação aristocrático-plebeia do elitismo moderno”30 Por fim, o “poder – a soberania nominalmente popular – tem donos, que não emanam da nação, da sociedade, da plebe ignara e pobre. O chefe não é um delegado, mas um gestor de negócios, e não um mandatário.31 6 O HOMEM CORDIAL DE SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA Vimos com Faoro como se deu a constituição da política, com relação à sociedade e ao capitalismo. Agora, passaremos a analisar a formação intrínseca da “gente” brasileira, segundo a obra de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil. Nesta obra, Holanda desenvolve o conceito de homem cordial que terá, no Brasil, grandes repercussões na teorização e na constituição da identidade nacional. Trataremos apenas desse aspecto da obra, para compará-lo, posteriormente, com o protestante ascético que ensejou o surgimento do capitalismo. No Brasil, país em que o Estado e a família são pontos contrapostos e que a estrutura patriarcal desta é decisiva e prejudicial para o desenvolvimento da cidadania e da urbanização, torna-se difícil para os detentores das posições públicas [...] compreenderem a distinção fundamental entre os domínios do privado e do público. Assim, eles se caracterizam justamente pelo que separa o funcionário “patrimonial” do puro burocrata conforme a definição de Max Weber. Para o funcionário “patrimonial”, a própria gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse particular.(HOLANDA, 2005, p. 145-146)

Assim, o critério de avaliação para se escolherem os homens que irão exercer função pública, baseia-se em uma “confiança pessoal que mereçam os candidatos, e muito menos em suas capacidades próprias. Falta tudo desde a ordenação impessoal que caracteriza a vida no Estado burocrático.”32 A principal razão de isso ser assim é que a família, núcleo social em que predominam as relações afetivas e os laços de sangue, sempre foi o modelo para todas as nossas composições sociais, inclusive para aquelas em que deveria prevalecer a impessoalidade e a abstração, como é o Estado. O “tipo ideal” característico dessa sociedade é o homem cordial, cujos atributos, “a lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade...são virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam”. 33 Entretanto, há, aqui, um complicador: essas virtudes não representam boas maneiras e civilidade. “São, antes de tudo, expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante”.34. Ou seja, nossa cordialidade R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.256-274, jan./dez. 2011

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não é uma expressão madura de respeito e reconhecimento do outro. Antes, uma imaturidade, uma dificuldade de sermos racionais no convívio social. Uma de suas características é o pavor ao formalismo e um apego total à intimidade. “o horror às distâncias que parece constituir, ao menos até agora, o traço mais específico do espírito brasileiro.” 35 7 WEBER E O BRASIL O trabalho feito até agora teve o intuito de desvelar, nas obras de importantes autores nacionais, quais são os pontos de convergência de suas teorias com o pensamento de Weber. E isso se faz importante porque nos permite considerar até que ponto, ao se contar nossa história com base em teorias estrangeiras, não corremos o risco de construir uma história, já desde o início, pessimista e perdedora. Faremos, agora, algumas correlações entre Faoro e Weber e Holanda e Weber. Nas análises de Faoro, as categorias weberianas revelam-se presentes e fundamentais. Conceitos e ideias estudados por Weber, como capitalismo racional, tipo de dominação patrimonial, Estado de direito burguês, relação entre capitalismo e formação do Estado são suportes teoréticos em “Os Donos Do Poder.”3 Como foi visto, segundo o autor brasileiro, entre nós, “não há sociedade civil independente, pensamento liberal ou capitalismo racional – signos pressupostos de modernidade – mas dominação patrimonial, estamental e burocrática”.36 Um tipo de análise que revela a influência de Max Weber. Por conseguinte, por tomar um modelo que nos é estranho, esse tipo de análise acaba nos revelando como atrasados, como impossíveis: [...] assim transposta para a história brasileira, a teoria dos tipos weberianos de dominação produz o retrato de uma “ausência”, de uma impossibilidade, retrato que diz de um outro, desejado talvez, mas que não houve e que não há. Não é à toa, a tese melhor se formula pela negação: o patrimonialismo estamental e burocrático inviabilizou, no Brasil, a modernidade da economia racional e da legalidade do Estado de direito.37

Com esse tipo de interpretação, expõe-se um Brasil do atraso e das dificuldades de se modernizar, tudo visto do ponto de vista de um Estado que, contraposto à sociedade, não é capaz de ser imparcial e agir na estrita legalidade, além de evidenciar os empecilhos ao desenvolvimento do moderno capitalismo brasileiro, pois o próprio Liberalismo nunca vingou entre nós4. 3 “Temos uma tradição que, sem descuidar dos estímulos socioculturais ao comportamento prático, enfatiza o aspecto mais propriamente institucional da análise. Raimundo Faoro e Simon Scwartzman são bons exemplos dessa tradição “institucionalista”(SOUZA, 1999, p. 38). 4 Para Schwarz, o Liberalismo no Brasil, tendo em vista as contradições entre teoria e prática, além de ter se submetido às características locais, sempre foi uma “idéia fora do lugar”(SCHWARZ, 2003)

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No livro de Holanda, uma interessantíssima contraposição é feita. Dois tipos ideais nos são revelados: se por um lado, no desenvolvimento do capitalismo, a figura do protestante ascético foi fundamental, por outro, o nosso, temos o homem cordial, quase uma antítese daquele. Enquanto entre os protestantes nórdicos predomina uma racionalidade5 adequada ao universalismo e à abstração, [...] nossa tradição cultural seria “individualista-amoral”, incapaz de superar o imediatismo emocional que caracteriza as relações sociais dos grupos primários como a família. Uma vez que as instituições modernas mais importantes como o Estado e o mercado, teriam como pressuposto a superação do horizonte da solidariedade familiar, aí estaria a causa do nosso descompasso político e econômico.38

Enquanto o protestante ascético encarna a personalidade típica da modernidade, racional e igualitário, confiante nas relações formais asseguradas pelo Direito, o homem cordial, por sua vez, é, avesso às relações formais, age movido por emoções e não é afeito à civilidade, que tem como pressuposto a igualdade, o que nos mostra quão distante um tipo (ideal) é do outro: [...] uma leitura atenta da caracteriologia do homem cordial permite deduzir que, ele sim, é, na verdade, o inverso perfeito do protestante ascético como definido por Max Weber. O homem cordial é a ausência de personalidade por excelência, no sentido de que o contraponto implícito na cabeça de Sérgio Buarque, leitor da obra weberiana primeira hora, é a personalidade por excelência para Weber: o protestante ascético39

Embora o próprio Buarque de Holanda tenha feito reconsiderações sobre o que é o brasileiro6, a partir das mudanças que ele via sendo operadas no país que, finalmente, começava a se modernizar, foi, no entanto sua visão essencialista do brasileiro, por meio do homem cordial a que se perpetuou na vida acadêmica e, de um modo geral, em nosso inconsciente coletivo. 8 A QUESTÃO HISTÓRICA Não há dúvida de que é preciso valorizar nossa história. Não começamos nossa história, nem pessoal nem social, a partir do nada. Entretanto, o que se nos coloca é o seguinte: Mas que história? Contada por quem? Imutável? E será inocente qualquer forma de contar a história? Há, aí, também, questões que merecem reflexão? Entendo que existimos no tempo: “os homens e as sociedades humanas, por serem temporais, não permitem um conhecimento imediato, total, absoluto e definitivo. A reescrita da história torna-se, então, 5 Aqui é importante lembrar que, “racionalismo para Weber é um conceito supranacional. Trata-se de um conceito abrangente que engloba peculiaridades das formações nacionais em favor da explicitação de traços mais básicos e heuristicamente mais significativos do que fronteiras nacionais. Racionalismo é, portanto, um tipo ideal. (SOUZA, 1999, p. 32) 6 Em sua carta a Cassiano Ricardo, Sérgio Buarque de Holanda diz que o homem cordial está fadado a desaparecer, em face das transformações que ocorreram no Brasil. (HOLANDA, 1963) R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.256-274, jan./dez. 2011

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uma necessidade”.40 A vivência no presente, com suas mudanças, aprendizado e ressignificações de fatos ocorridos, modifica a percepção que se tem do passado, que é constantemente reelaborada pelo presente: O presente muda e, nesta sua mudança, o passado e o futuro são constantemente rearticulado, obrigando à reescrita da história... As mudanças no processo histórico alteram as interpretações da história. Toda interpretação, que é uma atribuição de sentido ao vivido, se assenta sobre um “mirante temporal”, um ponto de vista, em um presente – vê-se a partir de um lugar social e um tempo específicos.41

Sendo assim, ao querer estabelecer, a partir do passado, bases de uma concepção política partilhada por todos, na verdade o que se estará fazendo é escolher, a partir do presente, fatos que podem ser significados e direcionados para fundamentar tal concepção. “Cada presente seleciona o passado que deseja e lhe interessa conhecer. A história é necessariamente escrita e reescrita a partir das posições do presente, lugar da problemática da pesquisa e do sujeito que a realiza”.42 E há uma outra consideração importantíssima. Buscar descobrir uma única versão da história, algo como o apanágio ontológico de uma nação é fechar os olhos e não querer ver que isso é, além de epistemologicamente impossível, uma atitude altamente excludente: Ora, como observou Homi Bhabha, uma nação é antes de mais nada um problema de narração...Narrar a nação sempre produz discursos que, apesar de prometerem uma inclusão total, são determinados sobretudo por exclusões....Ademais, como toda narrativa necessita apoiar-se numa seleção inicial de elementos, não pode pretender ser uma representação totalizante. Em conseqüência, revela-se tanto sua arbitrariedade quanto os interesses a ela subjacentes.43

Além disso, como foi falado acima acerca do “narrar nações” e da “escolha que se faz do passado”, pode-se perceber uma perspectiva que expõe, a todo instante, o discurso histórico à crítica. Não se trata, portanto, de uma determinada visão da história, mas, antes de tudo, de uma visão das visões que se fazem da história. Em outras palavras, uma questão de historiografia: A historiografia quer oferecer-se para dirigir os olhares ao já visto, encarecendo-lhes: “olhem novamente”...Talvez, por tudo isso, a historiografia esteja fadada a ser sempre uma parte da história das idéias (e vice-versa) uma vez que sua ocupação com o registro está impregnada das impressões (fantasmagóricas ou não) do “não registrado” 44

9 A QUESTÃO DA IDENTIDADE Aqui, os problemas não são menores. Além de se poderem acumular as dificuldades já mencionadas, falar em identidade nacional, no singular, após os 268

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problemas já enfrentados, é praticamente impossível. Querer delinear uma única identidade nacional é aceitar uma imobilidade social, uma história fixa, uma narrativa totalizante. O certo é que não se pode falar em caráter nacional, em características únicas de uma nação. Toda intenção unificadora, nesse campo, engessa, reduz e aprisiona. O mais adequado é renunciar à pretensão de se encontrar uma identidade comum a todos as pessoas de uma determinada sociedade. É preferível pensar em pluralidade de identidades. Toda sociedade é composta por pessoas diferentes, por contradições, por conflitos e divergências. O importante é [...] provar que deve haver, em todo processo identitário, seja ele de natureza étnica, nacional, cultural ou religiosa, uma salutar dose de ambigüidade, de ambivalência, de aceitação da diversidade constitutiva de qualquer estado de sociedade. Assim, a(s) identidade(s) – é sempre melhor usar a palavra no plural!45

Ademais, ainda com relação à identidade, há um importante debate teórico, muito relevante para a presente discussão: o debate entre essencialistas e não essencialistas. [...] a formulação essencialista do problema é do ponto de vista da continuidade: de onde viemos: Quem somos? E seremos? E fomos? Quem é o nosso outro absoluto? Qual é o núcleo autêntico e estável do nosso eu e grupo? O que constitui a nossa unidade acima de toda mudança e vicissitude? E constroem uma ontologia, uma metafísica do ser como ser...A formulação não – essencialista é do ponto de vista da descontinuidade: como temos nos representado? Como essas representações nos afetam? Quem podemos nos tornar? O que desejamos ser? Os não essencialistas vem a identidade construída historicamente pelo discurso e em relações práticas e múltiplas, a vêem como um processo nunca completado e sempre transformado, como um avanço em direção a um processo nunca completado e sempre transformado, como um avanço em direção ao um eu desconhecido.46

Os essencialistas podem até conseguir algum discurso contundente. Mas pode ser que a vida seja muito complexa e dinâmica para se fazer coro a esse entendimento. Pode ser que o movimento que as minorias (de direito) têm feito na luta por reconhecimento de seus direitos47 nos leve a desacreditar em conceitos fixos de identidade, sendo, inclusive, preferível a expressão “processo de identificação”48 Na visão não-essencialista, temos “identidades”, que lutam por reconhecimentos locais, pontuais. Não há “falhas”, “traições”, mas outras “posições”. Ninguém deve ser fiel a uma identidade que signifique exclusão, abandono , pobreza e sofrimento. Deve-se buscar com flexibilidade uma posição favorável à vida.49

Falar em essências identitárias é menosprezar todo o movimento histórico em que as identidades são construídas e, o que talvez seja pior, é levar os atores sociais a uma imobilidade, a uma inação e a não assumir uma responsabilidade R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.256-274, jan./dez. 2011

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que lhe é intransferível e inevitável, já que a tarefa de construir sua própria história e a de lutar por ela seria quase que desnecessária, cabendo-lhes, tão somente, descobrir quais são as identidades que lhes teriam sido reservadas e transmitidas. Por outro lado, se pensarmos a existência humana no gerúndio, como um fluxo contínuo, o sujeito passa da inação à ação, já que [...] as identidades são construídas em práticas discursivas, que levam um indivíduo ou grupo a assumir uma “posição de sujeito”. O sujeito é chamado a ocupar o seu lugar e a agir. O sujeito nunca já está constituído. Ele se constitui e se reconstruí e uma prática discursiva.50

Deste modo, entendo não ser possível endossar o pensamento dos essencialistas, segundo o qual, o conceito de identidade (no singular) poderia, inclusive, ser o suporte de um patriotismo. CONCLUSÃO O presente trabalho pretendeu fazer uma conexão entre alguns conceitos do pensamento de Weber e a análise que é feita sobre o Brasil. Ainda que se possa discordar dos rumos que tais análises tiveram, é inegável, entretanto, sua importância para nos ajudar a nos compreendermos. E o instrumental teórico weberiano foi fundamental nessa empreitada. Mas ele precisa ser relativizado. Procuramos, também, demonstrar que devemos ficar atentos ao modo que contamos nossa história e pensamos nossa identidade. Obviamente, no Brasil, há muitos problemas que são percebidos ao longo de sua história. O entrelaçamento entre o público e o privado, o autoritarismo, a corrupção, a acentuada desigualdade social, a criminalidade, a impunidade, uma cidadania deficitária. Enfim, mazelas que qualquer olhar, erudito ou não, lançado sobre o país, capta uma realidade complexa e complicada. Dificilmente discordaríamos das análises que são feitas pelos teóricos já citados ao estudarem nossa brasilidade. De um modo geral, até mesmo de forma intuitiva, encontramos respaldo fático para as análises que desvelam nossas dificuldades. O dia a dia de qualquer brasileiro é rico em exemplos de como nossas instituições precisam melhorar. O Direito e a política estão plenos dessas situações. Entretanto, parece ser relevante o modo como contamos esta história. Corremos sempre o risco de o tiro sair pela culatra. Da denúncia e da indignação podemos cair no desânimo e no conformismo, já que “é assim que sempre funciona, não tem jeito mesmo”. Temos que ficar atentos com relação ao discurso que adotarmos quanto a nós mesmos. Não problematizar este assunto pode acabar sendo uma forma corrosiva por dentro, pois o modo como falamos é também constitutivo do modo que nos tornamos. “Para mim, como para Hall, falar de si mesmo, construir discursos sobre a própria identidade, é freudianamente fundamental para a construção de sentidos que nos ofereçam uma posição de sujeito”51 Se é especialmente importante falar de nós mesmos, necessário se faz 270

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assumirmos a responsabilidade de tal prática. Não é possível viver sem riscos. Não adianta buscarmos certezas onde o que se vê são possibilidades de construção de caminhos. Além disso, não podemos mais ser ingênuos em relação à nossa história. Temos que assumir essa história, que é nossa, e que não pode ser privatizada por ninguém que pretenda adotar um ponto de observação privilegiado em relação à ela. Qual história nós queremos assumir? Qual é o passado que nós pretendemos escolher e resgatar, por um lado, e descartar por outro, na construção do futuro?52

A partir do que foi falado, discordamos dos teóricos que tentam encontrar identidades comuns para ser o suporte, o fundamento para o patriotismo. Entretanto, não é nossa intensão, de forma nenhuma, descartar todo tipo de patriotismo, mas apenas aquele que exige uma unidade de identidade e que desconsidera o atual pluralismo societal. Sendo assim, concordamos com Habermas quando ele diz que [...] a existência de sociedades multiculturais, tais como a Suíça e os Estados Unidos, revela que uma cultura política, construídas sobre princípios constitucionais, não depende necessariamente de uma origem étnica, lingüística e cultura comum a todos os cidadãos. Uma cultura política liberal forma apenas o denominador comum de um patriotismo constitucional capaz de agudizar, não somente o sentido para a variedade, como também a integridade das diferentes e coexistentes formas de vida de uma sociedade multicultural.53

Ou seja, em razão de nossa complexidade, precisamos levar a sério a ideia de um patriotismo constitucional7. REFERÊNCIAS ARGÜELLO, Katie. O mundo perfeito: nem possível, nem desejável. In: SOUZA, Jessé de (org). O malandro e o protestante: a tese weberiana e a singularidade cultural brasileira. Brasília: UNB, 1999. CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Poder Constituinte e Patriotismo Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2006. FAORO, Raymundo. Os donos do poder: Formação do patronato político brasileiro. 3. ed. São Paulo: Globo, 2001. FREITAS, Marcos César de. Para uma história da historiografia brasileira. In: FREITAS, Marcos César de (org.). Historiografia Brasileira em Perspectiva. 7 Não pretendi abordar o assunto com alguma profundidade, o que deixarei para outras ocasiões. Acerca do patriotismo constitucional e sua relação com a história, a identidade e o pluralismo, ver CATTONI DE OLIVEIRA (2005) R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.256-274, jan./dez. 2011

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A Ideologia do Atraso a Partir das Análises Weberianas no Brasil e a (Re)Construção da(s) Identidade(s) Nacional(is)

_______. In: Q. F. M. Irene de; Szmrescsány, Tamás J. M. K. I (Trad.). A ética protestante e o espírito do capitalismo. 11 ed. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1996. 1 SCHWARTZMAN, Simon. As ciências sociais brasileiras no século XX. In: ROCHA, João César de Castro (Org.). Nenhum Brasil existe: Pequena Enciclopédia. Rio de Janeiro: UniverCidade Editora, 2003, p. 253. 2 SOUZA, Jessé de. A ética protestante e a ideologia do atraso brasileiro. In: SOUZA, Jessé de (Org). O malandro e o protestante: a tese weberiana e a singularidade cultural brasileira. Brasília: UNB, 1999, p. 17. 3 (VIANNA, Luiz Weneck. Weber e a interpretação do Brasil. In: SOUZA, Jessé de (org). O malandro e o protestante: a tese weberiana e a singularidade cultural brasileira. Brasília: UNB, 1999, p.175. 4 WEBER, Max. In: DELAUNAY, Gerard Georges; FRIAS, Rubens Eduardo Ferreira Frias (Trad.). Conceitos básicos de Sociologia. São Paulo: Editora Moraes, 1989, p. 9. 5 ARGÜELLO, Katie. O mundo perfeito: nem possível, nem desejável. In: SOUZA, Jessé de (org). O malandro E O PROTESTANTE: a tese weberiana e a singularidade cultural brasileira. Brasília: UNB, 1999, p 338-339. 6 WEBER, 1989, op. cit., p.29. 7 Ibid., p. 9-10. 8 Ibid., p. 12. 9 WEBER, Max. In: Q. F. M. Irene de; Szmrescsány, Tamás J. M. K. I (Trad.). A ética protestante e o espírito do capitalismo. 11 ed. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1996, p. 1. 10 Ibid., p. 10. 11 ARGÜELO, op. cit., p. 160. 12 Ibid., p. 160. 13 Ibid., p. 161 14 Ibid., p. 161. 15 VIANA, op. cit., p.175. 16 WEBER, 1996, op. cit., p. 19-21. 17 Ibid., p. 23. 18 Ibid., p.26. 19 Ibid., 1996, 53. 20 Ibid., p.76-77. 21 Ibid., p. 80. 22 Ibid., p. 113. 23 Ibid., p. 123. 24 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: Formação do patronato político brasileiro. 3. ed. São Paulo: Globo, 2001, p. 448. 25 Ibid., p.448-449. 26 Ibid., p. 452. 27 Ibid., p. 819. 28 Ibid., p. 822. 29 Ibid., p. 823. 30 Ibid., p. 837. 31 Ibid., p. 837. 32 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 146. 33 Ibid., p.146. 34 Ibid., p. 147. 35 Ibid., p. 149. 36 JASMIN, Marcelo. A viagem redonda de Raymundo Faoro em os donos do poder. In: ROCHA, João César de Castro (Org.). Nenhum Brasil existe: Pequena Enciclopédia. Rio de Janeiro: UniverCidade Editora, 2003, p. 361. 37 Ibid., p. 361.

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Rogério Monteiro Barbosa  Davi Niemann Ottoni

38 SOUZA, op. cit., p. 33. 39 Ibid., p. 34-35 40 REIS, José Carlos. As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. 8. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006a, p. 7. 41 Ibid., p. 9. 42 Ibid., p. 9. 43 ROCHA, op. cit., p. 21. 44 FREITAS, op. cit., p. 8-9. 45 BERND, 2003, op. cit., p.27. 46 REIS, José Carlos, As Identidades do BRASIL 2: De Calmon a Bomfim. A favor do Brasil: direita ou esquerda?. Rio de Janeiro: FGV, 2006b, p. 11. 47 HABERMAS, Jürgen. A luta por reconhecimento no Estado Democrático de Direito. In: SPERBE, George; SOETHE, Paulo Astor (Trad.). A inclusão do outro: estudos de teoria política. São Paulo: Loyola, 2002. 48 BERND, 2003, op. cit., p. 21. 49 REIS, 2006b, op. cit., p. 13. 50 Ibid., p. 13. 51 Ibid., p. 22. 52 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Poder Constituinte e Patriotismo Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2006, p. 87. 53 HABERMAS. Cidadania e identidade nacional. In: SIEBENEICHLER, Flávio Beno (Trad.). Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, v. 2, p. 289.

THE IDEOLOGY OF DELAY ACCORDING TO THE WERBERIAN ANALYSIS IN BRAZIL AND THE (RE) CONSTRUCTION OF NATIONAL IDENTITIES ABSTRACT This article focuses essentially on the theme of national identity, based on historiography, which enabled us to understand how History can be told from multiple perspectives. In other words, History can be retold, since it is not fixed in time, unchangeable and finished. Even a fact from the distant past can get a new meaning, even if under certain intrinsic limits. The article emphasizes traditional political thinking, especially that expressed by the authors of the 1930s. Through those authors it was possible to identify the influence of the Werberian thought. Moreover, the criticisms of contemporary authors who have provided a review of the way Brazilians have always seen themselves are provided. Finally, this paper attempts to contribute to the Democratic issue, since the way a people regards its History, it will influence decisively in undertaking responsibility regarding their common fate. Keywords: Identity. Patriotism. Democracy. Brazil. 274

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O Direito Tributário como Instrumento para Adoção de Políticas Públicas Afirmativas Ambientais: O Estudo das Lâmpadas Fluorescentes Tábata Mineiro Bezerra8 Tagore Trajano De Almeida Silva9 1 Introdução. 2 Tributação Ambiental. 2.1 Natureza do tributo ambiental: fiscal ou extrafiscal. 2.2 Princípios, poderes e limites impostos ao Estado. 3 As Lâmpadas Fluorescentes e Sua Legislação. 3.1 o mercúrio, elemento químico e a poluição ambiental. 3.2 Lei de resíduos: projeto e legislação esparsa 4 A Adoção de Políticas Públicas Ambientais no Brasil. 4.1 A tributação como fomento à reciclagem. 4.2 Direito tributário como solução para o fomento industrial. 4.3 Da logística reversa. 5 Conclusão. Referências.

RESUMO O presente trabalho tem por fim identificar meios aptos a aparelhar o Estado a efetivar políticas de proteção e preservação ambientais, de forma sustentável. Utiliza-se do Direito Tributário como mais uma “ferramenta” para impulsionar a reciclagem de lâmpadas fluorescentes, por meio da instituição e cobrança de taxas pertinentes decorrentes do serviço, bem como contribuição de intervenção no domínio econômico, tendo esta última por meta o custeio financeiro para a criação de indústrias de reciclagem. PALAVRAS-CHAVE: Tributação Ambiental. Fiscal e Extrafiscal. Lei de Resíduos. Lâmpadas Fluorescentes. Políticas Públicas. Logistica Reversa. 1 INTRODUÇÃO A partir da Convenção de Estocolmo, em 1972, o direito ao meio ambiente equilibrado transmudou-se de uma “garantia de falácia”, até então 8 Advogada. Bacharela em Direito pelo Centro Universitário Jorge Amado. E-mail: tabata.leiloeira@gmail.com 9 Professor de Direito Ambiental e Constitucional do Centro Universitário Jorge Amado/Unijorge. Mestre e Doutorando em Direito Público da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Visiting Scholar da Michigan State University (MSU/USA). Pesquisador Visitante da University of Science and Technology of China (USTC/China). Membro-fundador da Asociación Latinoamericana de Derecho Ambiental. Pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em Direito Ambiental e Direito Animal – NIPEDA/UFBA: www.nipeda.direito. ufba.br. Presidente do Instituto Abolicionista Animal – IAA: www.abolicionismoanimal.org. br. Coordenador da Revista Brasileira de Direito Animal E-mail: tagore@ufba.br. R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.275-298, jan./dez. 2011

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com base jusnaturalística, passando a fazer parte da seara dos direitos humanos, para, no Brasil, com a Constituição de 1988, ter um Capitulo Específico, obtendo um status de direito fundamental. Além de impor responsabilidades ao Poder Público para a criação de mecanismos de preservação ambientais, incumbiu não só ao Estado, mas também à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Parte-se do princípio de que a positivização do direito ambiental criou direitos, deveres e garantias, até então inexistentes, abrindo-se possibilidade para as ações que visam à sua proteção, prevenção e até mesmo punição aos que causem danos ao meio ambiente. Caberá ao Estado e aos demais atores sociais, neles compreendidos: os produtores, importadores, exportadores, comerciantes, cooperativas de catadores de materiais recicláveis, e por fim, aos próprios consumidores, desenvolverem ações compartilhadas, com vistas a otimizar o fluxo contínuo dos materiais nocivos ao meio ambiente, (mais especificamente o mercúrio - Hg) o que atende pelo nome de logística reversa. Naturalmente, para estruturar tais ações serão necessários recursos vultosos, os quais deverão ser buscados junto à coletividade, razão pela qual é fundamental a instituição de tributos, para o que há que se valer do Direito Tributário, seus institutos, princípios e normas O presente trabalho faz, por conseguinte, uma análise com atenção voltada para o Direito Tributário como instrumento de estimulo às políticas públicas ambientais afirmativas, a partir do momento em que viabiliza o fomento da reciclagem de lâmpadas fluorescentes, as quais, ao mesmo tempo em que contribuem para o desenvolvimento estratégico de qualquer nação, com a grande economia de energia, podem trazer consequências irreversíveis ao ser humano, pois contêm mercúrio, substancia tóxica, altamente perigosa, que lançada sem controle no meio ambiente pode contaminar a fauna e a flora. Pontuado o tema, segue-se analisando a atuação do Estado face a ele, constatando-se inicialmente uma escassez de arcabouço federal legal acerca do descarte das lâmpadas fluorescentes, razão pela qual busca-se oferecer mecanismos para amenizar o problema, sempre tendo por base a solidariedade inerente aos direitos de terceira geração. Há que se exigir contrapartidas financeiras objetivando estruturar e dinamizar o descarte responsável das lâmpadas fluorescentes em desuso. Destarte, enfoca-se a adoção dos institutos do Direito Tributário, não como sancionador, mas como fomentador das referidas políticas públicas. Seja por meio da instituição de taxas a serem cobradas pelos serviços prestados ou potencialmente postos à disposição dos contribuintes, ou mesmo com a criação de contribuições de intervenção no domínio econômico, a cargo da União, tendo a contributividade fator instrumental decisivo para amenizar os efeitos dos agentes poluentes mencionados. 276

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2 TRIBUTAÇÃO AMBIENTAL A Lei Maior, ao prever em seu art. 225, que todos têm direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, “bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações” (CF, 1988), criou imposições explícitas ao Poder Público e à coletividade do dever de defendê-lo e preservá-lo e uma obrigação implícita de não degradá-lo. Resta conferido, portanto, às normas protetivas ambientais um plus, que é o supedâneo constitucional, transmudadando-se em um direito fundamental. Com isso, sua proteção e preservação, bem como a punição de práticas degradatórias ganham maior reforço, posto que agora estão amparadas no sustentáculo de todo o ordenamento jurídico pátrio, conferindo às normas infraconstitucionais sustento e validade. Este avanço foi alcançado devido a amplas discussões, sobretudo, após a Conferência de Estocolmo de 1972, que significou o primeiro passo de caráter mundial para solução dos problemas ambientais. J. J. Canotilho e Vital Moreira, por tal razão, afirmam categoricamente que o direito ao ambiente é reputado como sendo um dos “novos direitos fundamentais” (1991,p.37). Conforme bem descreve o Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Antonio Benjamin: Não são poucas, nem insignificantes, as conseqüências da concessão de status de direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Antes de mais nada, o direito fundamental leva à formulação de um princípio da primariedade do ambiente, no sentido de que a nenhum agente, público ou privado, é lícito tratá-lo como valor subsidiário, acessório, menor ou desprezível. Além disso, como direito fundamental, estamos diante de “direito de aplicação directa”, em “sentido preceptivo e não apenas programático; vale por si mesmo, sem dependência da lei. A ulterior regulamentação ou desenvolvimento pelo legislador ordinário ajudará somente a densificar a sua exeqüibilidade. E vincula, desde logo, todas as entidades públicas e privadas1

Ao tecer comentários acerca da Declaração dos Direitos do Homem de 1948, Bobbio o faz tendo como maior enfoque a importância de sua universalidade e positivação, fruto de um distanciamento do jusnaturalismo. Com a declaração de 1948, tem início uma terceira e última fase, na qual a afirmação dos direitos é, ao mesmo tempo, universal e positiva: universal no sentido de que os destinatários dos princípios nela contidos não são mais apenas os cidadãos desse ou daquele Estado, mas todos os homens; positiva no sentido de que põe em movimento um processo em cujo final os direitos do homem deverão ser não mais apenas proclamados ou apenas idealmente reconhecidos, porém efetivamente protegidos até mesmo contra o próprio Estado que os tenha violado.2

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Quanto à dita evolução dos direitos, costuma-se fazer referência a direitos de primeira, segunda e terceira geração. Há, inclusive, os que se reportam a direitos de quarta geração. Em síntese, temos que os direitos e liberdades individuais estariam compreendidos nos direitos de primeira geração (direito à vida, à propriedade, etc.).Os de segunda geração albergariam os conhecidos direitos sociais (educação, saúde, etc.). Os direitos de terceira geração, nascidos sob a ótica de um Estado Democrático de Direito, cujos titulares são indeterminados, justamente por ser o seu objeto indivisível (enquadrando-se aqui o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, cujo titular não pode ser determinado, senão de forma difusa em toda a sociedade). Os denominados direitos de quarta geração, têm sido vistos como aqueles frutos da necessidade de regular e organizar os avanços sociais em face à derrubada das fronteiras internacionais. Partindo da primeira para a segunda geração dos direitos, já se percebe um afastamento estatal de uma postura meramente liberal, não mais deixando a atividade econômica ao largo de sua intervenção. No que concerne aos efeitos de tal política pretérita, ela acabava, por assim dizer, “reduzindo o Estado à acanhada tarefa de estruturar e perenizar, com asséptica eficiência social, as atividades do mercado”,3 Segue o desafio do presente texto que é identificar meios que aparelhem o Estado a efetivar políticas de proteção e preservação ambientais, de forma sustentável. Assim, quando do estudo acerca da passagem do Estado da função de meramente garantista para dirigista, o que consistiria, por assim denominar de “função promocional”, Norberto Bobbio conceituou que: A “função promocional” do Estado consiste na ação que o Dirieto desenvolve pelo instrumento das “sanções positivas”, isto é, por mecanismos genericamente compreendidos pelo nome de incentivos, os quais visam não a impedir atos socialmente indesejáveis, fim precípuo das penas, multas, indenizações, reparações, restituições, ressarcimentos etc, mas, sim, a promover a realização de atos socialmente desejáveis4

Naturalmente há que se valer o Estado de meios hábeis para enfrentar as variáveis demandas que lhe são impostas, mas é claro que há de se exigir uma contrapartida financeira para tal, posto que para todo gasto público há necessariamente de haver uma respectiva fonte de custeio. A fim de obter as receitas necessárias para a consecução de tal desiderato, o Estado, dentre outras fontes, vale-se do Tributo, instituto que tem sua conceituação definida no Codigo Tributário Brasileiro, em seu artigo 3°, in verbis: O tributo é toda prestação pecuniária compulsória , em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída por lei e cobrada, mediante atividade 278

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admistrativa plenamente vinculada (CTN, LEI Nº. 5.172, 1966).

Com especial atenção à tributação ambiental, há necessariamente que se definir o seu fato gerador, bem como a sua natureza jurídica. Para isso, valem os ensinamentos do Professor Heron Gordilho: Os tributos ambientais podem ter como fato gerador o exercício do poder de polícia ou a utilização efetiva ou potencial de serviço público de administração ambiental, específico e divisível, prestado ao contribuite ou posto à sua disposição.5

Entender o Tributo Ambiental, é ir além da relação Estado versus contribuinte. É, antes de tudo, voltar os olhos para a atividade do homem moderno, pois a degradação desenfreada e sem responsabilidade do meio ambiente, e isto é inegável, tem sido feita para atender de forma imediata, embora descontrolada, às exigências sociais. Em outras palavras as exigências sociais têm um peso direto no quadro que se apresenta. Seria, portanto, inconsistente e superficial, buscar por meio desse trabalho criticar a relação, da qual não se pode abrir mão, existente entre meio ambiente e sua exploração econômica. É de fundamental importância a busca por um desenvolvimento econômico sustentável. O Estado não pode fechar os olhos para isso, devendo atuar com a sua longa manus. Para tanto, há que se valer do Poder de Polícia Estatal, muito bem referido pelo Professor Heron Gordilho. [...] na falha do mercado, o Estado deve intervir, quer seja instituindo tributos ambientais com vista a financiar os danos decorrentes de determinada atividade degradante, quer concedendo subvenções, incentivos ou graduando diferenciadamente as alíquotas dos impostos existentes....prevenção, que exige que o poder público evite a ocorrência dos danos ao meio ambiente , de modo que as atividades potencialmente poluentes devam ser consideradas antecipadamente, para que seja possível a redução ou a eliminação de suas causas6

A preocupação com o meio ambiente sustentável tem ganhado força. Isso vem sendo comprovado pelo interesse de estudiosos, tais como doutrinadores, economistas, legisladores enfim, todos almejando o equilíbrio entre desenvolvimento econômico e a preservação dos valores naturais. Desse modo, o Estado deve desenvolver mecanismos de proteção ao meio ambiente, com a finalidade de torná-lo sadio e íntegro, mesmo quando as transformações e a modernização econômica exijam seu sacrifício. 2.1 Natureza do tributo ambiental: fiscal ou extrafiscal Ao precisar o objetivo da Ciência das Finanças, o professor Aliomar Baleeiro secundou em definir a natureza fiscal do tributo:

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O objeto precípuo e clássico da Ciência das Finanças é o estudo da atividade fiscal, vale dizer –– aquela desempenhada pelos poderes públicos com o propósito de obter e aplicar recursos para o custeio da rede de serviços públicos.7

O tributo, sob a perspectiva fiscal, tem, portanto, a finalidade de arrecadar recursos junto à coletividade, na busca da contrapartida necessária ao custeio dos serviços públicos. Quanto à extrafiscalidade, consoante Aliomar Baleeiro: Costuma-se denominar extrafiscal aquele tributo que não almeja, prioritariamente, prover o Estado dos meios financeiros adequados a seu custeio, mas antes visa a ordenar a propriedade de acordo com a sua função social ou intervir em dados conjunturais (injetando ou absorvendo a moeda em circulação) ou estruturais da economia.8

O Ministro Eros Grau na seara do estudo da extrafiscalidade se reporta a uma de suas variáveis, como exemplo, as normas de intervenção por indução: Também há norma de intervenção por indução quando o Estado, v.g., onera por imposto elevado o exercício de determinado comportamento, tal como no caso de importação de bens. A indução é negativa. A norma não proíbe a importação desses bens, mas a onera de tal sorte que ela se torna economicamente proibitiva. 9

O tributo, sob o enfoque extrafiscal, caracteriza-se como a intervenção do Estado na economia, não necessariamente voltada para a coleta de recursos financeiros; sua função precípua consiste em ser um controlador político-econômico e até mesmo social. Ainda no estudo da extrafiscalidade, Carvalho (1993), afirma que consiste no emprego de fórmulas jurídico-constitucionais para a consecução de objetivos que superam a simples finalidade arrecadatória de recursos financeiros, cujo regime que há de orientar tal prática não poderia diferir daquele próprio das exações tributárias. Em outros termos, tem por fim último o estímulo de determinadas atividades em prejuízo de outras reputadas indesejáveis, que são naturalmente desestimuladas. A título de curiosidade, ressalta-se que a utilização de impostos extrafiscais no Brasil é quase nenhuma. Alguns poucos exemplos existem na realidade brasileira, como a Lei 5.106/66 que traz em seu artigo 1°: As importâncias empregadas em florestamento e reflorestamento poderão ser abatidas ou descontadas nas declarações de rendimento das pessoas físicas e jurídicas, residentes ou domiciliados no Brasil, atendidas as condições estabelecidas na presente lei (Lei N 5.106,1966).

Há, ainda, a característica parafiscal do tributo, que se dá por derivação finalística, tem por fim último a obtenção de recursos voltados para o custeio 280

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de atividades que o Estado desenvolve por meio de determinadas entidades, tais como SESI, SESC e SENAI, que são conhecidos colaboradores estatais. Em virtude do quanto exposto, outra conclusão não se pode ter, senão a de que a Tributação Ambiental situa-se em um terreno fronteiriço entre a extrafiscalidade e a exação fiscal. Não se pode afirmar de forma genérica sua natureza jurídica, senão no caso concreto. Ora sua natureza jurídica pode ser fiscal, ora extrafiscal, como bem ressalta o professor Heron Gordilho (2009). É que, em sua visão, o tributo ambiental teria essencialmente dupla finalidade: a arrecadação de receitas e o direcionamento da atividade econômica para certos fins desejados para o Estado. Isso se deve também ao fato de que a questão meio ambiente posta em face ao desenvolvimento econômico, tem imensa complexidade, demandando uma série de atividades e posturas estatais, de modo que para se desincumbir de tal função, o Estado tem que lançar mão de todos os meios em direito permitidos, devendo, para tanto, contar com o apoio incondicional da sociedade como um todo. Daí que bem se pode conceituar Tributo Ambiental como sendo aquele, de natureza variável, fiscal ou extrafiscal, criado por lei, destinado a amenizar os danos ambientais, sem por de lado a atividade econômica, visando o desenvolvimento sustentável. 2.2 Princípios, poderes e limites impostos ao Estado Segundo Aliomar Baleeiro, “o sistema tributário movimenta-se sob complexa aparelhagem de freios e amortecedores, que limitam os excessos acaso detrimentosos à economia e à preservação do regime e dos direitos individuais.”10 Assim, é necessário analisar as medidas a serem adotadas pelo Estado diante das exigências para a preservação do meio ambiente, sopesando os seus poderes, sem perder de vista os limites constitucionais que lhe são impostos. Seabra Fagundes, apud Sacha Calmon traceja: Pela função legislativa, o Estado edita o direito positivo posterior à Constituição ou, em termos precisos, estabelece normas gerais, abstratas e obrigatórias, destinadas a reger a vida coletiva”. O seu exercício constitui, cronologicamente, a primeira manifestação de vitalidade do organismo político estatal11

E prossegue: A lei, como preceituação geral que é, tem em vistas situações abstratamente consideradas, fazendo-se preciso acomodá-ls às situações particulares compreendidas na generalidade de seu enunciado. Esses fenômenos que lhe sucedem, tendendo a concretizar a vontade nela expressa, são normalmente e primariamente o objeto da função administrativa. Atendendo à natureza e à repercussão de tais atos na ordem jurídica pode-se definir essa função como R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.275-298, jan./dez. 2011

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aquela pela qual o Estado determina situações jurídicas individuais, concorre para a sua formação, e pratica atos materiais12

Aos agentes administrativos são conferidos poderes e deveres. Em verdade, os poderes são meros instrumentos do fim último colimado que é o cumprimento integral dos deveres, com a prestação eficiente dos serviços públicos. José dos Santos Carvalho Filho ao se debruçar sobre os poderes administrativos ensina que: [...] deles emanam duas ordens de consequência: 1) São eles irrenunciáveis; e 2) Devem ser obrigatoriamente exercidos pelos titulares. Desse modo, as prerrogativas públicas, ao mesmo tempo em que constituem poderes para o administrador público, impõe-lhe o seu exercício e lhe vedam a inércia, porque o reflexo desta atinge, em última instância, a coletividade, esta a real destinatária de tais poderes.13

Hely Lopes Meirelles aduz: Na Administração Pública não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo o que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza. A lei para o particular significa “pode fazer assim”; para o administrador público significa “deve fazer assim.14

Quando da utilização, por exemplo, do Poder de Polícia, utilizam-se técnicas de contenção, para evitar que ocorram ingerências indevidas na esfera dos direitos individuais. Neste sentido, Celso Antônio Bandeira de Mello leciona que: O Estado, mediante lei, condiciona, limita, o exercício da liberdade dos administrados, a fim de compatibilizá-las com o bem-estar social. Daí que a Administração fica imcumbida de desenvolver certa atividade destinada a assegurar que a atuação dos particulares mantenha-se consonante com as exigências legais, o que pressupõe a prática de atos, ora preventivos, ora fiscalizadores e ora repressivos[...].15

O Conceito de Poder de Polícia está bem definido no próprio Código Tributário, em seu artigo 78, como se exara: Considera-se poder de polícia a atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do poder público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos (CTN, LEI Nº. 5.172, 1966).

A Administração tem o poder e o dever, pois, de atuar na questão am282

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biental, por assim reclamar o interesse público. Nos termos delineados na Magna Carta de 1988, in verbis: Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante o tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação (CF, 1988).

Há diversos mecanismos de ordem administrativa, penal e civil, destinados a sancionar e punir as infrações ambientais. A priori, é necessário analisar o respaldo legal para a adoção de qualquer medida administrativa. A lei limita os poderes administrativos; sendo assim, o ato administrativo que contraria norma legal é inválido. O Ministro Gilmar Ferreira Mendes assim se manifesta: O princípio da reserva legal exige que qualquer intervenção na esfera individual (restrições ao direito de liberdade ou ao direito de propriedade) seja autorizada por lei. Os postulados do Estado de Direito e da democracia (art. 1º), assim como o princípio da reserva legal (art. 5º, III), impõem que as decisões normativas fundamentais sejam tomadas diretamente pelo legislador16

Contudo, quaisquer tipos de atuações estatais devem estar atreladas aos princípios ambientais: do desenvolvimento sustentável, da precaução e da prevenção. 3 AS LÂMPADAS FLUORESCENTES E SUA LEGISLAÇÃO Após a campanha nacional contra o “apagão”, houve um aumento considerável do consumo das lâmpadas fluorescentes no Brasil, ante o inegável benefício gerado em virtude do baixo consumo de energia aliado a sua longevidade, sem que, para tanto, restasse comprometida sua eficiência no quesito luminosidade. As lâmpadas fluorescentes, compactas ou tubulares, tratam-se de tubos selados de vidro, preenchidos com gás argônio á baixa pressão e vapor de mercúrio, também a baixa pressão parcial. O interior do tubo é revestido com uma poeira fosforosa composta de vários elementos tais como: alumínio - Al, chumbo- Pb, manganês- Mg, antimônioAm, cobre- Cu, mercúrio- Hg, níquel -Ni e outros. A concentração de mercúrio na poeira fosforosa é de 4.700 mg/kg. Uma lâmpada padrão de 40 watts possui cerca de 4 a 6 gramas de poeira fosforosa17 R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.275-298, jan./dez. 2011

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Tais lâmpadas estão substituindo de forma progressiva as lâmpadas incandescentes, estas frutos da genialidade do inventor Thomas Edison, cuja tecnologia, no entanto, já se encontra ultrapassada, remontando sua invenção aos idos de 1879, gerando potencialmente, todavia, problemas ambientais, os quais demandam especial atenção, como se mostrará. 3.1 O mercúrio, elemento químico e a poluição ambiental As lâmpadas fluorescentes diferentemente das incandescentes, funcionam por meio de uma série de reações químicas, tendo como fator preponderante para o seu desempenho a presença do mercúrio (Hg) em sua composição, e também de fósforo (P). [...] as lâmpadas que contêm mercúrio têm eficiência luminosa de 3 a 6 vezes superior, têm vida útil de 4 a 15 vezes mais longa e 80% de redução de consumo de energia. Dessa forma, elas geram menos resíduos e reduzem o consumo de recursos naturais para a iluminação, diminuindo dependência da termeletricidade.18

Este material, ao mesmo tempo em que é sinônimo de eficiência e economia atinge diretamente a saúde pública uma vez que seu descarte de maneira inconsequente gera danos ao meio ambiente, contaminando a flora e a fauna. O ser humano pode se contaminar de forma direta, tendo contato com o produto in natura, ou indireta, por meio do ciclo da cadeia alimentar. Pesquisas comprovam que: [....] geralmente quem foi intoxicado dessa maneira pode apresentar sintomas como dor de estomago, diarreia, tremores,depressão, ansiedade, gosto de metal na boca, dentes moles com inflamação e sangramento nas gengivas, insônia, falhas de memória e fraqueza muscular, nervosismo, mudanças de humor, agressividade, dificuldade de prestar atenção e até demência. Mas a contaminação por mercúrio pode também acontecer por ingestão. No sistema nervoso, o produto tem efeitos desastrosos, podendo dar causa a lesões leves e até à vida vegetativa ou à morte, conforme a concentração.19

A forma primária de poluição ambiental pelo mercúrio, resultam das ações humanas que por meio das atividades industriais utilizam tal elemento químico de forma descontrolada, causando enormes transtornos ao meio ambiente. Enquanto intacta, a lâmpada não oferece risco. Entretanto ao ser rompida liberará vapor de mercúrio que será aspirado por quem a manuseia. A contaminação do organismo se dá principalmente através dos pulmões. Quando se rompe uma lâmpada fluorescente o mercúrio existente em seu interior (da ordem de 20mg) se libera sob a forma de vapor, por um período de tempo variável em função da temperatura e que pode se estender por várias semanas. Além das lâmpadas fluorescentes, também contêm mercúrio as 284

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lâmpadas de vapor de mercúrio propriamente ditas, as de vapor de sódio e as de luz mista.20

Definido o problema, cabe o estudo visando ao oferecimento de meios para atenuar tão grave situação. Na busca por tais medidas saneadoras, deverão logicamente estar envolvidos todos os atores sociais que, direta ou indiretamente, façam parte do ciclo de tais produtos, desde sua produção, passando pelos comerciantes, até o seu descarte final pelos consumidores. Para tanto, é necessário estar atento aos trabalhos desenvolvidos por toda a comunidade intelectual, com especial atenção às legislações esparsas, aos trabalhos doutrinários bem como ao Direito Comparado. 3.2 Lei de resíduos: projeto e legislação esparsa O Brasil é desprovido de uma lei em sentido formal que estabeleça diretrizes nacionais acerca dos resíduos sólidos, tais como as lâmpadas fluorescentes. No entanto, existem resoluções que são estabelecidas pelo CONAMA-Conselho Nacional de Meio Ambiente, que tratam de forma esparsa acerca do controle, da fiscalização e da destinação daqueles resíduos. É necessário visualizar como o Brasil aborda atualmente a produção, importação e comercialização do mercúrio. O Brasil não produz mercúrio. A sua importação e comercialização são controladas pelo IBAMA por meio da Portaria nº 32 de 12/05/95 e Decreto nº 97.634/89, que estabelecem a obrigatoriedade do cadastramento no IBAMA das pessoas físicas e jurídicas que “importem, produzam ou comercializem a substância mercúrio metálico”. O uso do mercúrio metálico na extração do ouro é também regulamentado. O Decreto nº 97.507/89 proíbe o uso de mercúrio na atividade de extração de ouro, “exceto em atividades licenciadas pelo órgão ambiental competente”. Por outro lado, a obrigatoriedade de recuperação das áreas degradadas pela atividade garimpeira é igualmente regulamentada pelo Decreto nº 97.632/89. 21

As consequências geradas pelo descarte irresponsável dos resíduos sólidos têm sido objeto de acirradas discussões, principalmente pelo Poder Legislativo. Atualmente, a Câmara Federal aprovou o Projeto de Lei nº 203/91 cujo relator é o Deputado Nechar (PP-SP). Este projeto, entre idas e vindas, já tramita há mais de 19 anos entre as casas do Senado e da Câmara, possuindo como ponto crucial a responsabilidade compartilhada entre os empresários, governo e cidadãos quanto ao gerenciamento e a responsabilidade dos artigos recicláveis: O substitutivo prioriza a responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos. Os fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes terão de investir para colocar no mercado artigos recicláveis e que gerem a menor quantidade possível de resíduos sólidos. O mesmo se aplica às embalagens. O processo de recolhimento desses materiais, sua desmontagem R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.275-298, jan./dez. 2011

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(se for o caso), reciclagem e destinação ambientalmente correta é conhecido como logística reversa. Para realizar essa logística, os empresários poderão recorrer à compra de produtos ou embalagens usados, atuar em parceria com cooperativas de catadores e criar postos de coleta. Se a empresa de limpeza urbana, por meio de acordo com algum setor produtivo, realizar essa logística reversa, o Poder Público deverá ser remunerado, segundo acordo entre as partes (Projeto de Lei nº 203,1991).

Toda a estratégia situada pelo projeto de lei estabelece metas que consistem tanto em medidas de proteção quanto corretivas aos danos ambientais. Caberá aos sujeitos do projeto, (União, Estados, Municípios, Distrito Federal, inclusive suas autarquias, fundações, sociedades de economia mista e empresas públicas, as demais pessoas jurídicas de Direito Privado, responsáveis direta ou indiretamente pelos resíduos sólidos mesmo que seja somente para o consumo) por meio de ações cooperadas e integradas seguir as diretrizes, elaborar seu plano de resíduos sólidos e adequá-los à sua realidade, mesmo que necessitem dos recursos federais para o andamento dos mesmos. De forma esparsa, encontram-se éditos legais, buscando conferir um tratamento específico a ser destinado às lâmpadas fluorescentes, na tentativa de encontrar soluções para o problema. Traz-se como exemplo as iniciativas de alguns Estados e Municípios brasileiros que editaram leis que regulam a circulação das lâmpadas supracitadas. Assim, a Lei da Política Estadual de Resíduos Sólidos do Estado de São Paulo (Lei nº 12.300, de 16 de março 2006), recentemente regulamentada pelo Decreto nº 54.645, de 5 de agosto de 2009, responsabiliza o fabricante, distribuidor e importador do produto, que geram resíduos de significativo impacto ambiental mesmo pós-consumo, da eliminação, recolhimento, tratamento e disposição final dos mesmos. Na mesma linha, a Lei Estadual Paulista nº 10.888, de 20 de setembro de 2001, dispõe que o fabricante é responsável pela descontaminação e pela destinação final das lâmpadas fluorescentes. No Paraná, onde também existe legislação específica sobre o tema, empresas já foram multadas e as quatro maiores fabricantes de lâmpadas do país - Philips, GE, Osram (Siemens) e Sylvania acumulam dívidas de quase R$ 4 milhões cada uma por não darem a destinação correta a seus produtos. Em Brasília, a Lei 4154/08 proíbe o descarte de lâmpadas fluorescentes em lixo doméstico e comercial e ainda prevê a destinação específica, proibindo a disposição em depósitos públicos de resíduos sólidos e sua incineração. Assim, o gerador não pode doar lâmpadas, não pode vender lâmpadas e, ainda, não pode simplesmente repassar a empresas ou cooperativas de coleta, sem 286

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exigir o Certificado de Destinação Final do resíduo.22

Em sede de Direito Comparado, citamos como exemplo o Decreto-Lei nº 20/2002 do Direito Lusitano, o qual trata da destinação a ser dada aos resíduos eletroeletrônicos, dentre eles o mercúrio, sobre o qual nos debruçaremos mais adiante. No Brasil, foi editada a Lei nº. 9.976/2000 disciplinando a produção de cloro no país, não cuidando da reciclagem, mas sim na substituição do mercúrio e do amianto por materiais não tóxicos. Como visto, malgrado não haja uma norma federal estabelecendo diretrizes nacionais quanto à produção, distribuição, comercialização e destinação final dos resíduos sólidos, é “competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas” (CF 1988), bem como estabelecer a competência para legislar acerca da proteção ao meio ambiente e ao controle da poluição é concorrente entre União, Estados e Distrito Federal e que inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena até que a lei federal o faça, oportunidade em que restarão suspensas as disposições estaduais, no que lhe for contrário. A própria Constituição Federal oferece, portanto, mecanismos para a proteção do meio ambiente e controle da poluição, de forma esparsa, razão pela qual as leis estaduais supra referidas têm pressuposto de validade e existência, não havendo que se falar em vícios formais ou materiais Há necessidade, no entanto, de uma maior atuação da sociedade como um todo, inclusive como instrumento de pressão junto aos nossos parlamentares, posto que embora a matéria realmente albergue amplas discussões, não se justifica que, passado tanto tempo, ainda não tenha sido votada e encaminhada para sanção presidencial. Como prova do alegado, basta verificar a quantidade de normas esparsas de Leis de Resíduos nos Estados, que muito bem o fizeram ao buscar uma solução para suas peculiaridades. 4 A ADOÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS AMBIENTAIS NO BRASIL Apenas um ínfimo percentual equivalente a 2% (dois por cento) de todo o lixo produzido no País tem sua coleta feita de forma seletiva. Não mais que 6% (seis pontos percentuais) das residências nacionais têm a prestação de serviços públicos de coleta seletiva, os quais somente são disponibilizados em tão somente 8,2% (oito, vírgula dois por cento)dos municípios brasileiros (IBGE 2004). Na tentativa de solucionar os problemas dos danos ambientais trazidos pelo descarte na natureza das lâmpadas fluorescentes, há que se instituir políticas públicas afirmativas ambientais. Urge a necessidade de adoção de políticas públicas afirmativas ambientais por parte do Estado, podendo se valer da criação de tributos específicos, atendidas a legalidade e a anterioridade, com edição paralela de normas instrumentais aptas a dar dinamismo à coleta seletiva das lâmpadas citadas. R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.275-298, jan./dez. 2011

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Entende-se por Políticas Públicas “o conjunto de ações coletivas voltadas para a garantia dos direitos sociais, configurando um compromisso público que visa dar conta de determinada demanda, em diversas áreas. Expressa a transformação daquilo que é do âmbito privado em ações coletivas no espaço público23

Assim, é necessária a “integração” entre o Poder Público e a sociedade civil a fim de se estreitarem essas relações objetivando encontrar meios e dividir responsabilidades para a redução dos impactos ambientais. Dada a sua importância, tal integração está prevista expressamente no corpo do referido Projeto de Lei 203/91, como princípios da Política Nacional de Resíduos Sólidos, em seu artigo 6º: VI – a cooperação entre as diferentes esferas do Poder Público, o setor empresarial e demais segmentos da sociedade; [...] VIII – o reconhecimento do resíduo sólido reutilizável e reciclável como um bem econômico e de valor social, gerador de trabalho e renda e promotor de cidadania. (PL 203, 1991)

Busca-se, com isso, dar sustentabilidade às ações cooperadas e integradas dos setores da sociedade. 4.1 A tributação como fomento à reciclagem

Dentre os tributos existentes no ordenamento jurídico, dar-se-á enfoque ao estudo da taxa como uma das formas de viabilizar a contraprestração do ente estatal quando da efetiva proteção ao meio ambiente. Segundo o artigo 77, do Codigo Tributário Nacional, in verbis: As taxas cobradas pela União, pelos Estados e Municípios, no âmbito de suas respectivas artribuições, tem como fato gerador o exercício regular do poder de polícia, ou a utilização efetiva pou potencial, de serviço público específico e divisivel, prestado ao contribuite ou posto à sua disposição(CTN, LEI Nº. 5.172, 1966).

O fato gerador da taxa, segundo Hugo de Brito Machado (1996) é sempre uma atividade estatal, relativa, ao contribuinte, ou o exercício do poder de polícia, ou à prestação efetiva ou potencial de serviço público. A Lei Maior admite duas espécies de taxas: taxas em razão do poder de polícia e taxas pela utilização efetiva ou potencial de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos à sua disposição. Aliomar Baleeiro (1999) retrata a taxa como tributo cobrado por aquele que se vale de serviço público especial e divisível, seja ele administrativo ou jurisdicional, ou tem o respectivo serviço à sua disposição, e ainda quando provoca em seu benefício, ou por ato seu, despesa especial oriunda dos cofres públicos. 288

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É de bom tom relembrar que não tão somente da fiscalidade pode se valer o Estado para tal desiderato, é o que nos ensina Heron Gordilho: Além da tributação ambiental propriamente dita, o Estado pode ainda se utilizar do sentido seletivo dos tributos tradicionais, que podem ser graduados de modo a incentivar atividades, processos produtivos e consumo de bens e serviços sustentáveis e, ao mesmo tempo, desestimular o emprego de tecnologias defasadas e a produção de serviços nefastos à preservação ambiental.24

De qualquer sorte, a tributação sob o ponto de vista fiscal pode ser um grande instituto posto à disposição do Estado a ser utilizado como meio de fomento e custeio das despesas especiais a serem suportadas pelos cofres públicos e sua importância não pode ser menosprezada, outrossim, deve ser manejada de forma conjunta, de modo a se atingir o fim almejado, que é a obtenção de um desenvolvimento econômico sustentável. A taxa tem caráter sinalagmático. Sua base de cálculo está atrelada a uma atividade Estatal. Em tese pode o legislador escolher qualquer uma das grandezas ínsitas ao fato jurídico, o metro, o peso, etc., exceção feita àqueles sistemas jurídicos, como o do Brasil que elegem a capacidade econômica domo princípio fundamental. É que uma terceira função da base de cálculo deve ser deduzida: a de permitir determinar a capacidade contributiva. No caso das taxas, a base de cálculo deve mensurar o custo da atividade estatal, ou seja, a sua intensidade em relação ao contribuinte, refletindo o caráter sinalagmático, que lhe é inerente. A graduação nas taxas não se opera, tecnicamente, de acordo com os rendimentos do contribuinte, seu patrimônio, ou capacidade financeira em geral, elementos estranhos. Tecnicamente as taxas devem ser graduadas segundo a intensidade da utilização do serviço pelo contribuinte ou dos gastos provocados.25

O sujeito ativo da obrigação tributária há que ser aquele que presta o serviço, aquele que lança mão do Poder de Polícia. O sujeito passivo será ou o usuário do serviço, ou aquele que sofre a atuação estatal, quando este efetivamete atua com seu Poder de Polícia. No Direito Lusitano, com a edição do Decreto-Lei nº 20/2002, buscou-se uma concepção amplíssima dos sujeitos passivos, ou seja, todos os produtores serão responsáveis pela prestação das contrapartidas financeiras, destinadas a suportar os custos com o recolhimento seletivo de Resíduos Elétrico Eletrônicos, o que encontra reflexo no direito pátrio, nos artigos 225 da CF, e 3º do CDC Lei nº 8.078/90. Os consumidores, a princípio, não deveriam ser taxados pela coleta, devendo todavia contribuir, triando e levando as lâmpadas usadas aos postos de coleta nos bairros ou nas lojas fornecedoras. Devendo ser conscientizados, recebendo descontos quando da troca das lâmpadas inservíveis por novas, o que se coaduna com a política ainda a ser analisada R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.275-298, jan./dez. 2011

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do depósito-retorno. É cediço que inexistam empresas de reciclagem suficientes a processar tamanha quantidade de produtos tóxicos. São necessárias, portanto, normas e condutas proativas do Estado aptas a tornar realidade o ciclo completo da cadeia de reciclagem. A solução não é simples, passa logicamente por um crivo de Políticas Públicas, mas notadamente ela se impõe. A responsabilidade deve ser diluída especialmente com aqueles que assumem o risco de atividades poluentes. Amolda-se, mutatis mutandi, tal raciocínio ao quanto disposto nos parágrafos 2º e 3º, do art. 225, da Constituição Federal que cuidam do princípio do poluidor-pagador e art. 3º, do CDC. 4.2 Direito tributário como solução para o fomento industrial A criação de indústrias de reciclagem demanda elevados custos. Ao menos no Brasil, não tem despertado maiores interesses por parte do empresariado, devendo o Estado adotar políticas de incentivo à sua criação. Repetimos que, para tanto, há que se buscar a respectiva fonte de custeio. A título de proposta, com o fim de se criar um fundo que será destinado a fomentar tal objetivo, e valendo-se outra vez dos institutos do Direito Tributário, opina-se pela criação de um adicional à produção industrial potencialmente poluidora, que é uma contribuição de intervenção no domínio econômico, para cuja instituição a União detém exclusividade, nos moldes do Adicional ao Frete para Renovação da Marinha Mercante, AFRMM, que tem por finalidade arrecadar recursos para o desenvolvimento da Marinha Mercante Brasileira. Consoante a doutrina pátria, “entre os instrumentos de intervenção da atividade econômica para a proteção do meio ambiente podemos destacar: a) tributos ambientais: impostos, taxas, contribuições de melhoria e contribuições de intervenção no domínio econômico” (GORDILHO, 2009, p. 104, grifo nosso) No particular, o Ministério do Meio Ambiente ofereceu propostas para a alteração do texto constitucional referentes à reforma do sistema tributário nacional, visando à inclusão de uma tributação ambiental na PEC nº. 175/95 O Relator da PEC n°.175/95, Deputado Mussa Demes, acatou a proposta, a qual foi aprovada pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados, cujo texto último resultou na forma que se demonstra: Art. 149. Compete exclusivamente à União instituir contribuições sociais, de intervenção ambiental, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas, observado o dispositivo nos arts. 146, III e 150, I e III. 290

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[...] §2° As contribuições de intervenção estatal ambiental poderão ter fatos geradores, alíquotas e bases de cálculo diferenciadas em razão do grau de utilização dos recursos ambientais ou da capacidade de assimilação do meio ambiente( PEC n°.175,1995).

Em todo o caso, deixadas de lado as eventuais discussões a respeito da instituição de tais contribuições ambientais, antes de aprovada a Proposta de Emenda Constitucional referida, afirma-se que, no particular, a proposta tem por fim a criação de indústrias de reciclagem, tratando-se de intervenção direta no domínio econômico e de especial interesse das categorias profissionais ou econômicas, não havendo que se reputar indevida sua criação. Os produtores (poluidores) em sua acepção amplíssima, devem assumir os riscos e encargos corolários de sua atividade, conforme se dessume da Magna Carta em seu art. 225 § 3º, ”As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados” (CF , 1988). Argumentos há no sentido de que as lâmpadas compactas fluorescentes são importadas, gerando dificuldades para responsabilizar-se empresas estrangeiras, sem incorrer em uma vã e inútil invasão de soberania. No Brasil, todavia, o Código de Defesa do Consumidor, lex legum, em seu aritigo 3º, dilui tal responsabilidade, com a criação da figura do fornecedor, não procedendo o argumento, in verbis: Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços (Lei 8.078, 1990).

Como exemplo, podem ser destacadas as medidas de atuação adotadas em Portugal, que editou o Decreto-Lei nº 20/2002, de 30 de Janeiro. Com ele, as empresas são obrigadas a suportar os custos da recolha e reciclagem dos resíduos eletroeletrônicos, dentre eles, o mercúrio, consoante se examina em seu preâmbulo, in verbis: O presente decreto-lei vem, assim, estabelecer um conjunto de regras de gestão que visam a criação de circuitos de recolha selectiva de resíduos de equipamentos eléctricos e electrónicos, o seu correcto armazenamento e pré-tratamento, nomeadamente no que diz respeito à separação das substâncias perigosas neles contidas, e o posterior envio para reutilização ou reciclagem, desencorajando a sua eliminação por via da simples deposição em aterro. A prossecução destes objectivos passa, inevitavelmente, pela responsabilização dos produtores pela correcta gestão dos equiR. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.275-298, jan./dez. 2011

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pamentos eléctricos e electrónicos (EEE) quando estes chegam ao final do ciclo de vida útil, sem prejuízo das responsabilidades de outros intervenientes no circuito de gestão de REEE, nomeadamente consumidores, detentores, distribuidores, municípios e empresas de recolha, armazenamento e tratamento [...] (Decreto-Lei nº 20, 2002).

Cria-se, por assim dizer, a figura da corresponsabilidade ambiental, então, por força do citado decreto-lei, os municípios, ou eventualmente as concessionárias de serviço público, quando efetivamente recolherem os resíduos, terão direito à percepção de contrapartidas pecuniárias, o que contribuirá para aparelhá-los na coleta seletiva dos resíduos eletroeletrônicos. Os produtores, na acepção amplíssima da palavra, são os responsáveis pela prestação das contrapartidas financeiras devidas, destinadas a suportar os custos com a recolha seletiva. 4.3 Da logística reversa Outro viés, porém, de natureza eminentemente extrafiscal, que pode ser utilizado para minimizar os impactos ambientais originados do descarte das lâmpadas fluorescentes, é a adoção das técnicas de logística reversa. Pretende-se apontar mais uma forma de combater os impactos ambientais produzidos pelo mercúrio, por meio da prática da logística reversa, que é uma técnica que já vem sendo utilizada por alguns setores, viabilizando a coleta e a restituição dos resíduos sólidos de pilhas e baterias, por exemplo, ao setor empresarial, para reaproveitamento, seja em seu próprio ciclo ou em ciclo de produção distinto, ou mesmo dando a tais produtos destinação distinta, visando conferir-lhe o melhor aproveitamento possível. Tais medidas têm supedâneo no artigo 11, da Resolução CONAMA nº 257/2009, que bem que poderiam ser estendidas às lâmpadas fluorescentes: Os fabricantes, os importadores, a rede autorizada de assistência técnica e os comerciantes de pilhas e baterias descritas no art. 1º ficam obrigados a, no prazo de doze meses, contados a partir da vigência desta resolução, implantar os mecanismos operacionais para a coleta, transporte e armazenamento.

O prisma de tal logística parte do princípio de que, quanto maior a nocividade do produto, maiores deverão ser-lhe dirigidos os especiais cuidados, visando ao seu reaproveitamento e contínuo fluxo. A logística inversa, conhecida também por reversível, reversa ou verde, é a área da logística que trata, genericamente, do fluxo físico de produtos, embalagens ou outros materiais, desde o ponto de consumo até ao local de origem.26

Na busca de uma logística reversa ideal, naturalmente deverão ser oportu292

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nizados ao consumidor estímulos para que se dinamize o ciclo de tais produtos. É o conhecido depósito-retorno; “através deste instrumento, parte do preço de mercadorias descartáveis (lâminas de barbear, baterias, vasilhames plásticos) é restituída ao consumidor, que pode vendê-las no pós-consumo” (GORDILHO, 2009, p. 105) Vale ressaltar que a adoção desta prática é bastante recomendável, configurando mesmo vantagens tanto ao meio ambiente quanto ao setor econômico do País, haja vista que com isso, ameniza-se o problema da escassez de matéria prima. Em resumo, a logística inversa tem como objetivos planejar, implementar e controlar de um modo eficiente e eficaz: o retorno ou a recuperação de produtos; a redução do consumo de matérias-primas; a reciclagem, a substituição e a reutilização de materiais; a deposição de resíduos; a reparação e refabricação de produtos; Desta forma, o circuito da cadeia de abastecimento é fechado de uma forma completa, sendo o ciclo logístico completo.27

A logística reversa, segundo o Projeto de Lei nº 203/91 é um: [...] instrumento de desenvolvimento econômico e social, caracterizado por um conjunto de ações, procedimentos e meios destinados a viabilizar a coleta e a restituição dos resíduos sólidos ao setor empresarial, para reaproveitamento, em seu ciclo ou em outros ciclos produtivos, ou outra destinação final ambientalmente adequada; (PL 203,1991).

A busca pelo fluxo das matérias primas é uma tendência mundial, ganhando cada dia mais força e relevância. No Brasil, existe um Comitê Interministerial de Inclusão Social de Catadores de Materiais Recicláveis criado por Decreto Federal em 11/09/2003, o qual é coordenado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e Ministério das Cidades. Dentre seus objetivos, destacamos o de auxiliar o processo de estruturação da logística, de armazenamento e transporte de resíduos sólidos. Conforme dito alhures, todos os atores sociais têm que estar envolvidos no processo da logística-reversa. Sejam os produtores, sejam os exportadores, os importadores, os distribuidores, os comerciantes, os consumidores, e com posição de merecido destaque, para os trabalhos desenvolvidos pelas cooperativas de catadores de materiais recicláveis, que tanto têm contribuído com seus esforços para um contínuo fluxo de matérias primas, o que, sem dúvida, é de grande valia para o meio ambiente e para o desenvolvimento econômico sustentável.

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5 CONCLUSÃO Diante de todas as explanações até agora apresentadas é possível chegar às seguintes conclusões: 1 A partir da Convenção de Estocolmo de 1972 inicia-se o processo de positivização do direito ambiental, afastando-se da concepção puramente jusnaturalista. Fruto da evolução dos direitos, com a passagem do Estado Liberal para um Estado mais intervencionista, com o reconhecimento e proteção dos direitos ditos difusos, reputados como aqueles de objeto indivisível, cuja titularidade não se pode determinar, a Constituição Federal de 1988 dedicou um capitulo especial ao meio ambiente incumbindo a todos a sua proteção e preservação, conferindo-lhe um satus de Direito Fundamental. Com isso, restou definido que tanto os poderes públicos como toda a sociedade civil tem o dever de contribuir para a questão ambiental. 2 Dúvida não resta, de que as lâmpadas fluorescentes têm importância estratégica para o setor energético de qualquer país; todavia, elas apresentam em sua composição a substância química mercúrio, elemento altamente tóxico que pode provocar danos irreversíveis ao ser humano. 3 Notou-se, ademais, a ausência de normatização federal, necessária a disciplinar a questão dos resíduos sólidos decorrentes da atividadde produtiva, especialmente aqueles resíduos nocivos, de forma a amenizar os profundos impactos ambientais por ele causados quando do seu descarte no ecossistema, de modo a oferecer mecanismos que viabilizem o seu fluxo no moldes da moderna concepção da logística-reversa. Impõe-se tal regramento. 4 O Estado tem o poder-dever de atuar na questão ambiental por assim reclamar o interesse público; assim, e mesmo em atenção ao princípio da solidariedade para subsidiar e fomentar tal atividade, há necessariamente de haver uma respectiva fonte de custeio. Para tanto, o Estado deve se valer do Direito Tributário. 5 A contributividade mostrou-se como fator decisivo para amenizar os efeitos da poluição causada pela ausência de reciclagem de lâmpadas compactas fluorescentes, como desdobramento do princípio constitucional do poluidor-pagador. 6 Por se tratar de serviços públicos prestados ao contribuinte ou potencialmente postos à sua disposição, decorrendo tal atividade do exercício do poder de polícia, as taxas mostraram-se um caminho natural para contraprestação de tais serviços. 7 Verificou-se a necessidade de um estruturação industrial adequada a atender à demanda de reciclagem, que vem crescendo em escala geométrica, ao mesmo tempo em que se notou a ausência das referidas indústrias suficientes a operacionalizar o fluxo dos resíduos sólidos, chegando-se à conclusão pela necessidade da instituição de contribuições de intervenção no domínio econômico, a cargo da União, para a constituição de um fundo a ser destinado ao financiamento de tais imprescindíveis e vultosos empreendimentos. 8 Constatou-se, outrossim, que as exações extrafiscais, ao lado das exações 294

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de índoles fiscais, também podem contribuir para tal desiderato, como forma de estímulo àqueles que participam de todo o ciclo do produto, neles compreendidos os importadores, exportadores, produtores, comerciantes, consumidores e, com enfoque especial, às cooperativas de catadores de matérias recicláveis, que tanto têm contribuído com seus esforços para um contínuo fluxo dos resíduos sólidos, o que, sem dúvida, é de grande valia para o meio ambiente e para o desenvolvimento econômico sustentável. Citamos, como exemplo, o instituto do depósito-retorno, já largamente utilizado em relação às baterias veiculares, mostrando-se positivo, pois estimula o consumidor que ganha descontos quando da aquisição de novos produtos. Todos devem contribuir para reduzir ao máximo a quantidade de resíduos sólidos oriundos da atividade econômica, na busca de um fluxo no ciclo de tais produtos. 9 Seja por meio de contribuições fiscais, seja por meio de contribuições extrafiscais, a finalidade maior a ser perseguida é a salvaguarda do meio ambiente, preservando-o para as presentes e futuras gerações, visando obter um desenvolvimento econômico sustentável, para o que a logística-reversa tem se mostrado um verdadeiro instrumento viabilizador de tal fim. REFERÊNCIAS ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE INDÚSTRIA DA ILUMINAÇÃO. Saber Compartilhar. Jornal Abilux. 01 mar. 2009. Disponível em: <http://www.abilux. com.br>. Acesso em: 17 mar. 2009. BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996. _______. Limitações ao Poder de Tributar. 7. ed. Rio de Janeiro, Forense, 2006. BARBOSA, Antonio Carneiro; SOUZA, Jurandir Rodrigues. Contaminação por mercúrio e o caso da amazônia. Revista Química, Nova na Escola n. 12, 2000. Disponível em: <qnesc.sbq.org.br/online/qnesc12/v12a01.pdf>. Acesso em: 15 abr. 2010. BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcelos e. O Meio Ambiente na Constituição Federal de 1988. Revista dos Tribunais. São Paulo. Disponível em: <http://bdjur.stj.gov.br/xmlui/bitstream/handle/2011/8643/O_Meio_Ambiente_na_Constitui%C3%A7%C3%A3o.pdf?>. Acesso em: 17 mar. 2009. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. _______.Da Estrutura à Função: Novos Estudos de Teoria do Direito. São Paulo: Manole, 2007. BRASIL. Constituição 1988.Constituição da República Federativa do Brasil:promulgada em 5 de outubro de 1988. 30. ed. São Paulo: Saraiva,2009. R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.275-298, jan./dez. 2011

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4 BOBBIO, Norberto. Da Estrutura à Função: Novos Estudos de Teoria do Direito. São Paulo: Manole, p.12 5 GORDILHO, Heron Santana. Direito Ambiental Pós Moderno. [s.d.]: Juruá, 2009, p. 107. 6 Ibid., p. 100-101. 7 BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 14. ed. Rio de Janeiro:

Forense, 1996, p. 7.

8 Ibid., p. 576. 9 GRAU, Eros

Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2007 ,p.149.

10 BALEEIRO, Aliomar. Limitações ao Poder de Tributar. 7. ed. Rio de Janeiro, Forense, 2006 ,p.2. 11 MENDES,Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires, GONET, Paulo Gustavo

, Curso de Direito Constitucional, 2. ed. Saraiva, 2008, p.41.

12 Ibid., p. 41. 13 CARVALHO, José Crespo de; DIAS, Eurico Brilhante. Estratégias logísticas: como

servir o cliente a baixo custo. Lisboa: Edições Sílabo, 2004, p. 38.

14 MEIRELLES, Hely Lopes., Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 88. 15 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo:

Malheiros Editores, 2007, p. 645-646.

16 MENDES, op. cit., p.831. 17 CENEPI, 2001. 18 ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA

DE INDÚSTRIA DA ILUMINAÇÃO. Saber Compartilhar. Jornal Abilux. 01 mar. 2009. Disponível em: <http://www.abilux. com.br>. Acesso em: 17 mar. 2009. 19 SOUZA; BARBOSA, 2000, p. 4-7. 20 CENEPI, op. cit., p.1. 21 SOUZA; BARBOSA, op. cit. p.4-7. 22 OLIVEIRA, Rafael Azeredo. Responsabilidade pelo descarte indevido de lâmpadas

fluorescentes. Observatório Eco. Direito Ambiental. 27 fev 2010. Disponível em: <http://www.observatorioeco.com.br/index.php/responsabilidade-pelo-descarte-indevido-de-lampadas-fluorescentes/>. Acesso em: 03 mar. 2010, p. 1 23 GUARESCHI, Neuza; COMUNELLO, NARDI, Luciele; NARDINI, Milena; HOENISCH, Júlio César. Problematizando as práticas psicológicas no modo de entender R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.275-298, jan./dez. 2011

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a violência. In: MARLENE N, Strey; RUWERA, Mariana P.; JAEGER, Fernanda Pires (Orgs.). Violência, gênero e Políticas Públicas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 180. GORDILHO, op. cit., p.110. BALEEIRO, 1996, op. cit., p.552. DIAS, op. cit., p. 205. Ibid., p. 206.

TAX LAW AS A TOOL FOR THE ADOPTION OF AFFIRMATIVE ENVIRONMENTAL PUBLIC POLICIES: THE STUDY OF FLUORESCENT LAMPS ABSTRACT This paper aims at identifying means to enable the State to enforce policies for the protection and preservation of the environment as a sustainable practice. We propose using Tax Law as an additional “tool” to encourage the recycling of fluorescent lamps, with the institution and collection of fees for the service, as well as contributions of intervention in the economic domain, the latter being a means for bearing the expenses of the creation of recycling industries. KEYWORDS: Taxation. Environmental. Fiscal and nonfiscal. Law on residues. Fluorescent lamps. Public policies. Reverse logistics.

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A Inclusão de Crianças Autistas Taís Nader Marta* Telma Aparecida Rostelato** 1 Introdução. 2 As Pessoas Com Deficiência: Ponderações Genéricas. 2.1 O Autismo Constitui-se Espécie de Deficiência? 3 Inclusão Social: A Significância Jurídica, Para o Século XXI. 4 A Análise da Salvaguarda das Pessoas com Deficiência e a Inclusão Social, Sob um Viés Histórico Mundial. 5 O Direito à Felicidade como Desdobramento do Princípio da Dignidade Humana. 6 O Cuidado e a Vulnerabilidade como Valores Jurídicos. 7 A Proposta do Filme, A Ser Empregada como Método de Inclusão Social. 8 Considerações Finais, Referências.

RESUMO O presente artigo busca realizar uma análise sobre a relevância do cuidado e da vulnerabilidade, como valores jurídicos, a serem considerados na decisão dos juízes, com o fito de efetivar direitos de pessoas com deficiência, atendo-se à análise pormenorizada das pessoas autistas, que compõem um dos grupos vulneráveis, pertencentes àquela novel conceituação jurídica das pessoas com deficiência. O tema nos leva a uma importante reflexão jurídica, pois não se trata apenas do reconhecimento de mais alguns direitos no sistema jurídico (aliás, mostra-se insuficiente a mera declaração de direitos, ainda que em âmbito internacional, sob o espeque de Direitos Humanos), mas da necessidade de, no caso concreto, existir um julgamento alicerçado na realidade social, preocupado com a vulnerabilidade dos membros dessa relação, bem como o cuidado em atender as necessidades desses seres humanos marginalizados por inócuos pré-conceitos da minoria. Pautadas no desiderato constitucional, do atingimento à felicidade, como desdobramento dos aludidos princípios constitucionais implícitos da vulnerabilidade e do cuidado, são apontados os ensinamentos demonstrados no filme: “Uma Família Especial”, que devem ser empregados como métodos de inclusão social de pessoas autistas, como meio consagrador de respeito à dignidade humana, esta, vista por um viés diferenciado, posto que sob um enfoque juridicamente atualizado dos Direitos Fundamentais, sugerindo assim, que a vida imite a arte. Palavras-Chave: Pessoas com Deficiência. Autismo. Inclusão Social. Princípios Constitucionais. Cuidado. Vulnerabilidade. * Mestre em Direito Constitucional. Especialista em Direito Processual e em Direito Constitucional. Professora universitária e de cursos de Pós-Graduação. Advogada. E-mail: taismarta@hotmail.com. ** Mestre em Direito Constitucional. Especialista em Direito Constitucional. Professora universitária. Procuradora Jurídica Municipal. E-mail: telma.rostelato@ig.com.br. R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.299-321, jan./dez. 2011

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1 INTRODUÇÃO A sociedade contemporânea vem demonstrando ter sido alvo de importantes transformações com relação aos direitos de grupos vulneráveis. A vulnerabilidade está intrinsecamente presente nos seres humanos, pois todos estão sujeitos a serem feridos, atacados em sua complexa estrutura física e mental, porém, nem todos serão atingidos com a mesma intensidade, em razão de cada indivíduo se encontrar em estados de suscetibilidade distintos. No campo dos Direitos Fundamentais, o cuidado e a vulnerabilidade vêm ganhando importância a cada dia, tendo em vista que a dignidade é o locus sagrado do ser humano, pois, para que um Estado Democrático de Direito disponha de uma sociedade equilibrada, é indispensável a valorização jurídica do cuidado e da vulnerabilidade no sistema jurídico. Esses novos valores jurídicos vêm sinalizando ao Direito a importância do reconhecimento de princípios específicos, os quais fundamentam o Estado a dirimir conflitos, muitas vezes até lacunosos na legislação, sendo viabilizada aludida interpretação, diante dos propósitos sagrados, presentes no sistema jurídico nacional (por meio dos nominados Direitos Fundamentais) e internacional (por meio dos nominados Direitos Humanos). A inclusão é um direito constitucional, o qual é um desdobramento do princípio da dignidade humana, que também assegura cuidado, por ser inerente à vulnerabilidade no ser humano, e essencial à garantia da felicidade como valor jurídico. Embasadas nestas premissas, as autoras pretendem inferir que os ideais inclusivistas nunca devem exaurir-se e esgotar-se, em razão de os seres humanos serem inacabados, devendo buscar sempre novas experiências, que terão como corolário, novos valores a serem interpretados pelos operadores do direito e garantidos pelo Estado. Mas de que forma se deve disseminar e assentar esta inclusão social? Para responder a esta indagação, as autoras propõem-se primeiramente a elucidar, através da situação vivenciada por pessoas com deficiência, especificamente as pessoas pertencentes ao grupo vulnerável dos autistas, a fim de, após tecidas as ponderações imprescindíveis à conceituação e ao enquadramento da temática, que as técnicas empregadas no filme: “Uma Família Especial” constituem-se aptas e eficazes ao atingimento da efetivação ampla e irrestrita deste desiderato constitucional para essas pessoas autistas. Nesta senda, anseiam despertar reflexões voltadas para o fato de que o desenvolvimento de métodos inclusivistas, fincados nos propósitos constitucionais da eliminação do preconceito e da segregação, devem se enveredar para o cumprimento dos princípios do cuidado e vulnerabilidade, considerada a abrangente significância de ambas, que acabam por desaguar na salvaguarda 300

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do direito à felicidade, esta interpretada sob a nuance atualmente concebida aos Direitos Fundamentais. 2 AS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA: PONDERAÇÕES GENÉRICAS Todo estudo jurídico deve vincular-se a uma definição, com o fito de demonstrar-se a abrangência, a significância e suas espécies, e foi por esta razão que prima facie estar-se-á buscando definir as pessoas com deficiência, pois, embora seja reconhecida a celeuma travada pela doutrina e legislação pátria, para efetuar a delimitação daqueles que se enquadram como pessoas com deficiência, sob o âmbito jurídico, buscou-se recorrer a demais ramos da ciência (dada a interdisciplinaridade do direito), com o fito de chegar o mais próximo possível do conceito considerado como o adequado, hodiernamente. Desta minuciosa pesquisa, pôde-se constatar que, nos dicionários de língua portuguesa, o termo pessoa com deficiência não é encontrado, não obstante, ansiando aprofundar e centrar a pesquisa à qual nos propusemos, buscou-se pelo vocábulo deficiente, face à proximidade com aquele, encontrando-se como definição aquilo que carece de algo, que é falho, incompleto. Exatamente nesta senda, é que Francisco Fernandes define, veja: “Deficiente – sin. imperfeito, falho, incompleto, insuficiente [...]”,1cujos sinônimos compõem ainda a obra elaborada em conjunto com os autores Celso Pedro Luft e F. Marques Guimarães.2 De maneira idêntica, Aurélio Buarque de Holanda Ferreira3 conceitua, acrescendo-lhes os termos: falto e carente, sendo da mesma forma definido aquele termo por Maria Tereza Biderman,4 Francisco da Silveira Bueno5 e Caldas Aulete,6 ora excetuando-se um ou outro sinônimo. José Ferrater Mora, ao conceituar filosoficamente, expõe o vocábulo a seguinte significância: “Deficiente. Uma entidade é deficiente quando se acha privada de algo que lhe pertence; nesse sentido, a deficiência é equiparável à privação [...]”. Os escolásticos usaram os termos defectivus, deficiens e defectibilis referindo-se a certas causas ou a certos efeitos. Santo Tomás (S. Theol. I, XLIX, 01 ob. 03 ad. 03) fala da causa defectiva sive deficiens sive defectibilis (causa deficiente); “um efeito deficiente, como o mal, só pode proceder de semelhante causa. O deficiente é o mal, e a causa do mal é o próprio mal [...]”.7 Como não poderia deixar de ser, recorreu-se, finalmente, à definição jurídica, e, ao consultar o dicionário de Jônatas Milhomens e Geraldo Magela Alves,8 no qual é encontrado o termo deficiente físico, para o qual não consta definição, somente sendo relacionado a generalidades, à competência dos entes federativos para a salvaguarda dos vários direitos destas pessoas, exemplificativamente aos casos de reserva de vagas para cargos e empregos públicos; a de assistência social para habilitação, reabilitação e integração à vida comunitária, bem como ao da garantia de um salário mínimo de beneR. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.299-321, jan./dez. 2011

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fício mensal e ao caso da promoção de criação de programas de prevenção e atendimento especializado. É possível aferir-se, assim, que não fora encontrada definição precisa e acabada, acerca da nomenclatura, nem no dicionário da Língua Portuguesa nem no de Filosofia, e sequer, no Jurídico. Sem desistir do intento, recorreu-se à história, que vem nos mostrar que diversas discussões houve a respeito do tema, resultando todas elas, invariavelmente, no enfoque da falha, retratando a indicação de imperfeição das pessoas. Outros estudos dessa natureza trazem o apontamento restritivo a certas espécies de deficiências, como a deficiência física, a mental e a sensorial, e somente estas é que estariam enquadradas na conceituação das pessoas com deficiência. Por oportuno, cabe salientar, que, outras duas formas de pensar a deficiência nos são trazidas. Uma delas baseia-se no modelo médico (mais antiga), e a outra, baseia-se no modelo social (tendência atual). Elucidativamente, a principal característica do modelo médico centra-se na descontextualização da deficiência, enfocando-a como sendo a ocorrência de um incidente isolado; infelizmente, há tempos esse modelo tem influenciado documentos legais e ações protetivas no mundo inteiro. Segundo Claudia Werneck, esse modelo médico tem relação com a homogeneidade, porque trata a deficiência como um problema do indivíduo (e, no máximo, de sua família) que deve se esforçar para se “normalizar” perante os olhos da sociedade9. Sob uma outra nuance, o modelo social da deficiência valoriza a diversidade e surgiu por iniciativa de pessoas com deficiência, reunidas no Social Disability Movement, na década de 60, este movimento provou que a maior parte das dificuldades enfrentadas por pessoas com deficiência resultavam da forma com que a sociedade lidava com as limitações de cada indivíduo. Importante colacionar, nesta oportunidade, a posição trazida no Manual de Desenvolvimento Inclusivo, por Claudia Werneck10, que segue: “De acordo com o modelo social, a deficiência é a soma de duas condições inseparáveis: as seqüelas existentes no corpo e as barreiras físicas, econômicas e sociais impostas pelo ambiente ao indivíduo que tem essas seqüelas”. E arremata: “Sob esta ótica, é possível entender a deficiência como uma construção coletiva entre indivíduos (com ou sem deficiência) e a sociedade”. grifo nosso É de se ver que o modelo social é o mais adequado, porque analisa o “todo”, valorizando a importância do ambiente na vida das pessoas. Portanto, mister que se propague a ótica desse modelo, para que se tenha um perfeito entendimento acerca da abrangência deste conceito: deficiência. 302

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Observa-se do ora declinado que não há um conceito perfeito e acabado, o que se faz frequentemente, vislumbrando alcançar-se os fins traçados pela inclusão social das minorias,11 é adotar uma conceituação que possa ampliar as hipóteses de inclusão, infere-se daí, independentemente da conceituação que se adote, o fato é que estas pessoas, mesmo com prática de singelos atos diários, acabam necessitando de auxílio, e este auxílio não pode ser compreendido como sinônimo de beneficência, de caridade, mas sim de atuação do Estado, da sociedade, da comunidade e da família, para conceder-lhes meios concretos de inclusão social, sob todos os aspectos.
Por tudo isso, é insuficiente a classificação das deficiências, restringindo-as, como sendo: físicas, sensoriais ou mentais, já que a definição de pessoa com deficiência, traçada por Luiz Alberto David Araújo, contempla outras categorias de deficiências, como se depreende do trecho adiante transcrito: “[...] o que define a pessoa portadora de deficiência não é a falta de um membro nem a visão ou audição reduzidas. O que caracteriza a pessoa portadora de deficiência é a dificuldade de se relacionar, de se integrar na sociedade”.12 Considera-se mais adequada, por ser a mais abrangente, a conceituação acima, por estar a viabilizar a inserção de demais naturezas de deficiência. Além disso: a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ratificada pelo Estado brasileiro com o seu Protocolo Facultativo, em 9 de julho de 2008, faz alusão em seu Artigo 1, nominado Propósito, em seu segundo parágrafo, à nomenclatura que estamos abordando: Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de natureza física, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas. Evidencia-se que o preceito dá azo à compreensão do tema, em conformidade com o que vínhamos expondo linhas acima, e é nesta conjectura de pensamento que se viabiliza o entendimento, restando-o consolidado, face o disposto na alínea ‘e’ do Preâmbulo da aludida Convenção, que estatui,‘in verbis’: “(...) e. Reconhecendo que a deficiência é um conceito em evolução e que a deficiência resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras atitudinais e ambientais que impedem sua plena e efetiva participação na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas”. Com o intuito de alcançar a inclusão social, conclui-se, em suma, que a categoria de minorias: pessoas com deficiência, pode ser compreendida como aquela, em que se enfatiza a dificuldade do convívio social, o sofrimento enfrentado para a prática de atos corriqueiros, o que seria atividade absolutamente trivial para os considerados “normais”, de molde que, ao adotar essa conceituação, está-se subsumindo a ampliação dos desígnios traçados pela inclusão social, repercutindo, destarte, na ampliação do rol de beneficiários dos diversos direitos assegurados pela legislação vigente, em atenção aos R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.299-321, jan./dez. 2011

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desideratos constitucionais. 2.1 O autismo constitui-se espécie de deficiência? O autismo é conceituado como: “uma desordem na qual uma criança jovem não pode desenvolver relações sociais normais, se comporta de modo compulsivo e ritualista, e geralmente não desenvolve inteligência normal”.13 Assim, compreende restrição no relacionamento social trivial das pessoas que têm esta patologia, a qual difere do retardo mental ou da lesão cerebral, não obstante algumas crianças com autismo também apresentem, em seu quadro clínico, referidas doenças. Ora, como dito alhures, as pessoas com deficiência são aquelas que se deparam com dificuldades para praticar seus intentos diários, para incluir-se na sociedade, e uma vez delineado que o substrato do autismo centra-se no desencadeamento de condições desfavoráveis aos autistas, para o desenvolvimento de seus singelos atos, é possível lançarmos a ilação de que aludido grupo de pessoas, os autistas, enquadram-se na conceituação das pessoas com deficiência, segundo a hodierna concepção jurídica, alinhavada no capítulo anterior. Tal assertiva é viabilizada pelo fato de que as pessoas autistas deparam-se com imensas dificuldades para a prática de seus intentos diários, ou seja, para incluir-se na sociedade. Diante desse panorama conclusivo, justifica-se a intenção da presente averiguação, ou seja, a investigação acerca do enquadramento ou não, ao conceito de pessoas com deficiência, que se constitui espécie de grupos vulneráveis (ladeando tantos outros, como os idosos, os negros, os indígenas e os pobres), pelo fato de que, uma vez possibilitado esse enquadramento, podem os representantes desse grupo recorrer às vias judiciais, com o objetivo de sacramentar o amplo rol dos direitos que são expressamente salvaguardados às pessoas com deficiência, no texto constitucional e em esparsas legislações infraconstitucionais. Enfim, o anseio da descoberta, por meio desta pesquisa, é esclarecido, para poder-se fundamentar o pleito judicial, que, desditosamente, se torna frequentemente necessário, já que esse grupo de pessoas não alcança o atingimento de sua inclusão na sociedade, de forma ampla, irrestrita e incondicionada, por uma travessia espontânea. 3 INCLUSÃO SOCIAL: A SIGNIFICÂNCIA JURÍDICA, PARA O SÉCULO XXI Primeiramente se faz necessária a elucidação do conceito. O que vem a ser a inclusão social? Pode-se responder que a inclusão social compreende a inserção social, pois a inclusão é um processo, segundo a concepção de Claudia Werneck: “(...) normalizar uma pessoa não significa 304

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torná-las normal. Significa dar a ela o direito de ser diferente e ter suas necessidades reconhecidas e atendidas pela sociedade”.14 A inclusão tem como definição a remissão às desigualdades sociais, no dizer de Eugênia Augusta Gonzaga Fávero15. Nesta senda, é possível conceber, ainda, que a República Federativa do Brasil estabelece como objetivo fundamental, além de garantir o direito à igualdade e à não discriminação, a não exclusão. Em suma, é garantido o direito à felicidade16 e o desígnio clamado pela República Federativa do Brasil, consagrado expressamente na Constituição Federal, cujos anseios de inclusão social, para tanto esmiuçados os seus propósitos, revela-se por meio do rechaçamento a qualquer espécie de discriminação e tratamento preconceituosos, elevando uma incondicional observância ao princípio da igualdade. Além disso, o tratamento a ser dispensado às pessoas com deficiência, tem uma abrangência muito maior, se efetuada uma aprofundada análise de sua conceituação, como se fez no capítulo anterior deste estudo, pois é a vida delas que está sob destaque, ou melhor, a maneira de viver dessas pessoas, e, quando lhes é dispensado trato desrespeitoso, por eivado de desprezo e preconceito, a sociedade está contribuindo para o seu real processo de exclusão social. A temática da inclusão social vem sendo constantemente discutida, alicerçando-se na Constituição de 1988, e o que nos permite tecer esta assertiva advém da interpretação de alguns de seus dispositivos que pugnam, como dito alhures, pelo rechaçamento às desigualdades, tais como: (art. 3º, I, III e IV; art. 4º, V; art. 5º, “caput”, I, XLI e XLII; art. 7º, XXX, XXXI, XXXII e XXXIV; art. 19, III; art. 37, VIII; art. 150, III). A preocupação acentuada com a proteção igualitária de todas as pessoas e a minoração ou supressão das desigualdades – ou seja, a necessidade de se promover a inclusão social –, assenta-se nos dispositivos que aludem aos objetivos fundamentais do Estado brasileiro, para construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I, da CF), bem como para erradicação da pobreza e da marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III, da CF), além do que dispõe acerca da concessão do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV, da CF). O princípio constitucional da igualdade, está, da mesma forma, presente em várias passagens da Constituição Federal brasileira, repetido nas mais diversas searas (art. 4º, V; art. 5º, “caput”, I, XLI e XLII; art. 7º, XXX, XXXI, XXXII e XXXIV; art. 19, III; art. 37, VIII; art. 150, III.), vindo demonstrar uma real preocupação do legislador constituinte em deixar explícita a vigência desse princípio e seu inarredável cumprimento pelos jurisdicionados. A sociedade demanda do Estado, e mesmo da iniciativa privada, o compromisso do resgate das minorias e dos grupos vulneráveis (neste incluídas as pessoas com deficiência), compostos por aqueles que sofreram e sofrem R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.299-321, jan./dez. 2011

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discriminações e dificuldades que os afastam do acesso a direitos, que lhes são declarados. E a essas pessoas deve-se garantir que tenham uma vida tão igual quanto possível à das demais pessoas consideradas incluídas. As pessoas com deficiência ocupam posição num grupo vulnerável, e somente algumas dessas pessoas conseguem alcançar o pleno exercício da cidadania, e, justamente em apreço aos desideratos constitucionais de inclusão social, está, em nossas mãos, a transformação desse caminho e a construção de uma nova realidade, pois ainda falta muito para que essa concretização se efetive. Mas é necessário partir-se de algum lugar, fazer-se algo! Começa-se, então, a se construir o discurso da necessidade de viabilizar condições de vida digna para essa parcela da população que é camuflada nessa ideia. Porém, pode-se perceber o viés funcionalista e economicista que sempre esteve atrelado ao atendimento institucional das pessoas com deficiência. Isto porque, num primeiro momento, pode parecer mais confortável (e menos trabalhoso) simplesmente considerá-las como improdutivas e onerosas, tanto para o Estado, como para a sociedade. Esse retrato está distante de refletir a verdade; aliás, as pessoas com deficiência não precisam ser tratadas com piedade. Ao revés, devem ter oportunidade para continuar vivendo dignamente, perpassando pelo respeito à sua igualdade, perante os demais membros da sociedade, que não têm deficiência, até mesmo para que esses nominados “normais” tenham a oportunidade de conviver com essas pessoas, tornando-se mais sensíveis às dificuldades alheias, contribuindo para o rechaçamento da discriminação, sedimentando-se os conclamados objetivos da República Federativa do Brasil. Entretanto, esta atuação não deve ser imbuída apenas aos familiares e à sociedade, mas ao Estado, que tem o dever de promover a inclusão social. Com isso, haverá, finalmente, a concessão de tratamento digno e igualitário às pessoas com deficiência, que representam hoje aproximadamente 24 milhões e meio de brasileiros (conforme dados do IBGE, intermediado pelo CENSO), desaguando-se na observância do clamor do Estado Democrático de Direito, que se alicerça, dentre outros objetivos da República Federativa do Brasil, na promoção do bem de todos, sem preconceitos de qualquer natureza. A inclusão social, embora apresente louváveis avanços que demonstram efetivação da extirpação da segregação de categorias que pertencem às minorias, como as pessoas com deficiência, rumo aos anseios inclusivistas disseminados, tal efetivação, ainda, demonstra-se ineficaz, em pleno século XXI, porque não são raros os casos em que se detecta o seu inalcance. De idêntica forma, as pessoas autistas, que se enquadram ao conceito de pessoas com deficiência, encontram-se subjugadas a essas situações de 306

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desrespeito, menosprezo e descaso estatal, posto ser insuficiente declarar a existência de direitos, se não são desenvolvidos métodos e implementadas medidas eficientes que possam dar-lhes efetiva consecução, que denote eficácia na atuação estatal. 4 A ANÁLISE DA SALVAGUARDA DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA E A INCLUSÃO SOCIAL, SOB UM VIÉS HISTÓRICO MUNDIAL É certo que são grandiosas as dificuldades com que se deparam as pessoas com deficiência, para integrarem-se ao convívio social, isso é perceptível, por todo o mundo, figurando-se, desde logo, a proteção a esta categoria de pessoas e à conjuntura internacional, e se esta dificuldade é universal, também é desta natureza a salvaguarda que lhes foi conferida. Adiante discorrer-se-á pela investigação histórica protetiva, alusiva à matéria, posto que as pessoas com deficiência, ao enquadrarem-se aos nominados grupos vulneráveis, desde há muito, têm seus direitos resguardados como humanos, podendo estes serem compreendidos como sendo um “plus” dos direitos fundamentais, haja vista que esses são reconhecidos nos lindes de proteção de determinado País, enquanto aqueles têm a proteção reconhecida, transpondo os limites territoriais de uma Nação. Desde 1948, as pessoas com deficiência estão amparadas pelos direitos humanos, pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, vez que, ao se efetuar interpretação acerca dos propósitos traçados por aquela Declaração, conclui-se que, dentre seus propósitos, é feita remissão genérica a essa categoria de pessoas, além de ter sido explicado o que seriam esses ditos direitos humanos. É notório que, mesmo antes dessa data, é possível constatar-se, no panorama histórico mundial, que a salvaguarda da prefalada categoria dessas pessoas já havia sido objeto de abordagem, o que se detecta em diversos documentos, tais como a Carta de São Francisco (tratado internacional que criou a Organização das Nações Unidas, em 1945), e a este respeito, assevera André de Carvalho Ramos, como segue: “[...] ora, a justificação dos direitos humanos está na vontade da lei e a vontade da lei é que fundamenta a preservação dos direitos humanos. Tal evidente tautologia enfraquece a proteção dos direitos humanos, quando a lei for omissa ou mesmo contrária à dignidade humana”.17 A história confirma que a Carta de São Francisco fora o primeiro tratado de alcance universal, reconhecedor dos direitos fundamentais de todos os seres humanos, como preconiza André de Carvalho Ramos18, e nesta abrangente definição a que nos reportamos: “todos os seres humanos”, podemos fazer inserir realmente todos, logo as pessoas com deficiência aqui se fazem presentes. Na sequência, a Carta Internacional dos Direitos Humanos, que adveio do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (entrou em vigor em 23 de março de 1966, incluindo o Brasil, nos 148 Estados signatários), do Pacto R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.299-321, jan./dez. 2011

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Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (que entrou em vigor em 3 de janeiro de 1976, incluindo o Brasil, nos 145 Estados signatários) e da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Nos dias atuais, disponibiliza-se, mundialmente, de mais de 140 tratados e protocolos adicionais que impõem obrigações jurídicas aos Estados, no que se refere a tratados de direitos humanos, que se subdividem em: tratados gerais (por abordarem vários direitos humanos, tendo alcance universal); os específicos (por abordarem questões específicas); os que protegem certas categorias de pessoas (nestes estariam incluídos as pessoas com deficiência) e os que dispõem contra as discriminações em geral (incluídas, uma vez mais, as pessoas com deficiência). A essa proteção de direitos, deve-se salientar que a evolução social ocupou-se de empregar-lhes um enfoque transmutado, como pondera Norberto Bobbio: “[...] O elenco dos direitos do homem se modificou, e continua a se modificar, com a mudança das condições históricas [...] direitos que as declarações do século XVIII nem sequer mencionavam, como os direitos sociais, são agora proclamados com grande ostentação nas recentes declarações [...]”.19 Não é diferente o que diz respeito aos direitos das pessoas com deficiência, já que certos direitos, antes proclamados, hoje tiveram a sua ênfase modificada, de modo que as mencionadas transmutações fundamentam-se na óptica diversificada que foi sendo atribuída à significação das dimensões dos direitos fundamentais20. No decorrer da evolução dos tempos, é certo que a dignidade da pessoa humana passou, então, a ser contemplada sob um prisma diferenciado, igualmente, vinculando-se à liberdade de autonomia, proteção da vida e outros bens fundamentais contra ingerências estatais.21 Inserto neste anseio de resguardo à dignidade da pessoa humana, visualiza-se, historicamente, que as pessoas com deficiência vem ocupar este painel de salvaguarda. O âmbito de proteção não se dá apenas no Brasil, sob a análise do texto constitucional, mas contempla, ainda, preocupação de todos os países, que são signatários da Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência22, cuja aprovação se deu em dezembro de 2006, pela ONU. O Brasil, que figura como Estado parte da aludida Convenção, ratificou-a, com o protocolo facultativo, por meio do Congresso Nacional, em 9 de julho de 2008 (Decreto Legislativo nº 186/2008). Frise-se porém, que se percorreu um longo caminho para atingir esse marco de proteção, consolidada à nível de Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, com aplicação em âmbito internacional. Vejamos: Indica-se, primeiramente, a Declaração de Direitos do Deficiente Mental (proclamada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em 20 de dezembro de 1971) e a Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes (Resolução aprovada pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas, em 308

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9 de dezembro de 1975), por engendrarem o século XX, não obstante tenha-se verificado na história resquícios de proteção, em data anterior. Desde os textos históricos, os primeiros ordenamentos jurídicos já traziam notícias de proteção à pessoa com deficiência e, em linhas gerais, apontamos alguns deles: 1- pode-se verificar nas Cartas de Hammurabi, em que é trazido o caso de um surdo que havia sido roubado e que, então, se determinou a convocação do ladrão para que desse a restituição ao surdo; 2- na Índia, o seu primeiro legislador, na Estância 394, do Livro VIII, veio determinar, em suma, a isenção de impostos às pessoas com certas deficiências e, 3- na Lei das Doze Tábuas, foi preceituado que, se uma doença ou velhice impedisse o citado em juízo de andar, aquele que havia originado a sua citação deveria fornecer-lhe um cavalo, e se não o aceitasse, devia ser-lhe fornecido um carro. Da Bíblia, pode-se identificar o tema abordado em Levítico 19:14, em que se assevera que não será amaldiçoado o surdo nem será posto tropeço diante do cego, mas temerá a teu Deus. É expressada, ainda, a salvaguarda de direitos das pessoas com deficiência, em demais documentos, de âmbito internacional, como a Declaração dos Direitos da Criança, que, em seu quinto princípio, estabelece proteção à criança incapacitada, física, mental, moral ou socialmente. Porém, a prefalada Declaração dos Direitos do Deficiente Mental, de 1971, foi o primeiro instrumento específico a tratar das pessoas com deficiência, o qual elenca princípios gerais a serem observados, como o tratamento isonômico, o direito à educação e à capacitação profissional, ao atendimento médico especializado, à reabilitação, a exercer uma atividade produtiva, a viver em família, a ser protegida contra explorações, abusos ou tratamentos degradantes, bem como a serem assistidas em processos judiciais. Outra demonstração de preocupação histórica com os direitos dessas pessoas está presente na Convenção da OIT, sob nº 159/83 a qual determina que cada país, que dela seja membro, formule e aplique uma Política Nacional sobre reabilitação profissional e emprego de pessoas com deficiência, objetivando fazer que estas consigam se empregar, serem mantidas em seus empregos e sintam-se bem nestes empregos, no desempenho de suas funções. No que pertine ao direito de acesso e permanência nas escolas, que foi assegurado às pessoas com deficiência, de maneira ampla, em junho de 1994, quando representantes de 88 países, incluindo o Brasil, reuniram-se em assembleia para a Conferência Mundial de Educação Especial, tendo, naquela ocasião, aprovado a denominada Declaração de Salamanca sobre Princípios, Política e Prática em Educação Especial. Tal como no Brasil, na Comunidade Europeia, um em cada dez cidadãos sofre certa deficiência, seja física, mental, sensorial seja psíquica; o Estudo censitário denominado: O Portador de Deficiência no Brasil – 1991, realizado pela Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (CORDE), em parceria com o Programa das Nações Unidas para o DesenvolR. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.299-321, jan./dez. 2011

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vimento (PNUD) e com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), indica um percentual de 1,14% de pessoas com deficiência no Brasil. Deve-se enfatizar, entretanto, que esse índice distancia-se bastante da estimativa da ONU, posto que, segundo esta, cerca de 10% da população mundial sofre de algum tipo de deficiência. Com o fito de implementar igualdade de oportunidades a estas pessoas com deficiência, incluindo-as no seio da sociedade, por meio da Comunicação da Comissão, em 30 de julho de 1996 e a Resolução do Conselho e dos Representantes dos Governos dos Estados-Membros, reunidos no Conselho, em 20 de dezembro de 1996, foi reiterado o empenho na busca da igualdade de oportunidades das pessoas com deficiência e no princípio que consiste em evitar ou suprimir todos os tipos de discriminação negativa, baseada numa única deficiência. E, ainda, foi por meio da citada resolução que restaram convidados os Estados-Membros a verificar se suas políticas haviam percebido a importância e a necessidade da inclusão social das pessoas com deficiência e, para tanto, criado meios de participação daquelas pessoas em políticas e ações relevantes. Pelo demonstrado, infere-se que aquele retrógrado panorama, que consistia no tratamento dispensado pelos países da União Europeia às pessoas com deficiência, o qual se restringia a tratamento beneficente e de prestação de serviços de assistência especializada, fora do contexto da sociedade, que veio gerar discriminação, acabou sendo transformado, transmutado. Isso porque fora evidenciado o longo caminho percorrido para que a salvaguarda dos direitos das pessoas com deficiência se elevasse à seara de proteção internacional, assim como se encontram hoje, sob a guarida dos direitos humanos, reconhecidos sob o catálogo de uma Convenção. Por oportuno, há que se salientar que os países signatários desta Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência (sendo o Brasil um deles) têm o dever de observar os preceitos nela consubstanciados, sob pena de responderem pela infringência e serem-lhes aplicadas penalidades, sendo idêntica a situação, para o caso da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é igualmente signatário e, em seu bojo, conclama a proteção das pessoas com deficiência. Significa, então, que a responsabilidade pela disponibilização de meios destinados à concretização dos direitos desta categoria de pessoas recai sobre o Estado brasileiro, signatário que é da aludida Convenção, portanto deve promover mecanismos eficazes à observância deles, tal qual as políticas públicas, por exemplo, sendo assim, o dever de afastar as obstaculizações, com as quais se deparam as pessoas com deficiência, para praticar seus intentos diários, é incumbido igualmente ao Estado, além da família daquelas, bem como à própria sociedade. Por isso, mister se faz analisar quais as penalizações que recaem sobre o Brasil, em sendo constatadas violações aos direitos desta categoria de minorias. 310

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Apesar de o rigor punitivo não se adequar como sendo garantia de segurança dos direitos fundamentais e/ou humanos, por afrontarem diversos princípios constitucionais, quer sejam explícitos quer implícitos, o meio repressivo veio consubstanciar-se como mecanismo hábil à efetivação dos direitos das pessoas com deficiência. E com o objetivo de proteger essa categoria de pessoas, deve-se utilizar o recurso de defesa dos direitos fundamentais, fincando a fundamentação, na afronta a esse direito, reconhecido no âmbito interno, nominado como direito fundamental (por estar contido no princípio da dignidade humana), o qual fora erigido ao reconhecimento internacional, como direito humano. A assertiva é viabilizada com fundamento em legislação de aplicabilidade internacional. A todas as pessoas com deficiência (sob todas as espécies), é assegurado o direito à usufruição de meios, disponibilizados pelo Estado, para o gozo de seus direitos, incluindo-se a prevenção, que em muitas circunstâncias, repercute diretamente na preservação do direito à vida, que, deve ser internacionalmente protegido, de forma prioritária, como preconizam os arts. 4º., 5º. e ainda, denota-se o alicerçado resguardo ao princípio da igualdade a esta categoria de pessoas, estabelecido no art. 24 daquela Convenção 24 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, adiante transcritos: Artigo 4º - Direito à vida 1. Toda pessoa tem direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente. 2. Nos países que não houverem abolido a pena de morte, esta só poderá ser imposta pelos delitos mais graves, em cumprimento de sentença final de tribunal competente e em conformidade com lei que estabeleça tal pena, promulgada antes de haver o delito sido cometido. Tampouco se estenderá sua aplicação a delitos aos quais não se aplique atualmente. 3. Não se pode restabelecer a pena de morte nos Estados que a hajam abolido. 4. Em nenhum caso pode a pena de morte ser aplicada por delitos políticos nem por delitos comuns conexos com delitos políticos. 5. Não se deve impor a pena de morte a pessoa que, no momento da perpetração do delito, for menor de dezoito anos, ou maior de setenta, nem aplicá-la a mulher em estado de gravidez. 6. Toda pessoa condenada à morte tem direito a solicitar anistia, indulto ou comutação da pena, os quais podem ser concedidos em todos os casos. Não se pode executar a pena de morte enquanto o pedido estiver pendente de decisão ante a autoridade competente. Artigo 5º - Direito à integridade pessoal

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1. Toda pessoa tem direito de que se respeite sua integridade física, psíquica e moral. 2. Ninguém deve ser submetido a torturas nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com respeito devido à dignidade inerente ao ser humano. 3. A pena não pode passar da pessoa do delinqüente. 4. Os processados devem ficar separados dos condenados, salvo em circunstâncias excepcionais, e ser submetidos a tratamento adequado à sua condição de pessoas não condenadas. 5. Os menores, quando puderem ser processados, devem ser separados dos adultos e conduzidos a tribunal especializado, com a maior rapidez possível, para seu tratamento. 6. As penas privativas da liberdade devem ter por finalidade essencial a reforma e a readaptação social dos condenados. Artigo 24º - Igualdade perante a lei Todas as pessoas são iguais perante a lei. Por conseguinte, têm direito, sem discriminação, a igual proteção da lei.

Ora, se o Estado brasileiro envidasse desmesurados esforços para a busca da efetivação da inclusão social, poder-se-ia deduzir que seriam imiscuidos esses repulsivos quadros que retratam grandiosas afrontas aos direitos das pessoas com deficiência, os quais as deixam à margem do tratamento social preconceituoso, reduzindo-os a um sentimento de inferioridade e ínfima incapacidade, o que é irreal, porque são imensamente capazes e iguais, tal qual o conceito trazido alhures para elucidar o princípio da igualdade. Com isso, necessário se faz indicar, segundo os preciosos ensinamentos de Américo Bedê Freire Júnior23, a definição de políticas públicas, o qual, em suma, assevera que a expressão pretende significar um conjunto ou uma medida isolada praticada pelo Estado com o desiderato de dar efetividade aos direitos fundamentais ou ao Estado Democrático de Direito. Portanto, conclui-se que, por meio da implantação de eficazes políticas públicas, seria viabilizada a observância ao princípio constitucional da dignidade humana das pessoas com deficiência. Sendo assim, no caso sob apreço, em que nos debruçamos sobre a análise da necessária inclusão social dessa categoria de pessoas, sobressai a recente manifestação de preocupação, por parte do Estado, para com a temática reproduzida pela mencionada Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência. Não obstante, o Estado brasileiro, que já comprovou sua preocupação para com a matéria, necessita avançar um pouco mais, mediante compromissadas e sérias intervenções. Desta feita, rumo à efetivação desse imenso rol de direitos, que consagrou a estas pessoas, em esparsados e diversos preceitos legais, bem como previu expressamente na sua Lei Maior e, inclusive, declarou-se expressamente solidário à temática, ao assinar Tratados Internacionais, é notório, 312

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desditosamente, que meras declarações, apesar de robustecerem um avanço, são insatisfatórias ao atingimento do clamor inclusivista. Ainda permanecem as pessoas com deficiência, e aí englobadas aquelas que têm autismo, ainda são marginalizadas no seio da sociedade, apesar do imenso rol de direitos contemplados. Por tudo isso, é inolvidável que não basta proclamar aos quatro cantos que o Brasil, por meio de seus dirigentes, preocupa-se com a temática e já aderiu aos projetos de inclusão social, em âmbito internacional, se continuar sendo admitidas as constantes violações a dignidade destes... 5 O DIREITO À FELICIDADE COMO DESDOBRAMENTO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA O direito à felicidade é um desdobramento do princípio da dignidade humana. Os dizeres de Maria Berenice Dias expressam, com clareza, o que o ser humano espera de seu Estado, “o maior dever do Estado é o de cuidar e proteger seus cidadãos, pois todos têm o direito constitucional a felicidade, que só pode ser alcançada quando assegurado o direito de amar”.24 A afirmação da jurista encontra respaldo constitucional, pois o preâmbulo de nossa Carta Maior não deixa dúvida de que o Brasil assegura o direito à felicidade aos seus cidadãos. Tal direito decorre de uma interpretação sociológica. A discussão é complexa, pois o conceito de felicidade é subjetivo e, muitas vezes, atrelado a valores morais. No entanto, a felicidade tem seu critério objetivo, sendo este previsto e garantido em nosso ordenamento jurídico constitucional. O Estado, que constantemente busca assegurar, através de normas ou princípios os direitos fundamentais aos seus cidadãos, oferece terreno fértil para a busca da felicidade. Acreditamos que logo o direito à felicidade deixará de ser um princípio implícito na Constituição Federal de 1988, pois já há manifestações para essa inclusão explícita. Em outubro de 2010, o Movimento Mais Feliz protocolou uma proposta de emenda constitucional, nominada “PROJETO DE EMENDA CONSTITUCIONAL DA FELICIDADE”, na Câmara dos Deputados, a qual foi assinada por 192 deputados e recebida pelo presidente da Câmara, deputado Michel Temer (PMDB-SP). Experiências iguais a essa já ocorrem nas Constituições dos Estados Unidos, da Coréia do Sul, do Japão e da África do Sul. Isso apenas vem demonstrar que esse direito não é utopia ou delírio de juristas idealistas. Ao contrário, pois nossa Corte Suprema recentemente afirmou ser a felicidade um direito, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132. As ações foram ajuizadas na Corte, respectivamente, pela Procuradoria-Geral da República e pelo governador R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.299-321, jan./dez. 2011

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do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, reconhecendo a união estável entre casais do mesmo sexo, como decorrência do direito à felicidade. 6 O CUIDADO E A VULNERABILIDADE COMO VALORES JURÍDICOS O estudo sobre vulnerabilidade no Brasil, na seara jurídica, iniciou-se com o Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 4º, inciso I, ao reconhecer a vulnerabilidade do consumidor, em suas relações, no mercado de consumo. Partiu-se do pressuposto de que o consumidor é sujeito vulnerável frente à complexidade do mercado consumista, bem como vítima de uma sociedade capitalista que dispõe de meios altamente eficazes para atrair a atenção do consumidor. No entanto, a vulnerabilidade não se limitou a tal ramo do direito, ganhando contorno e notoriedade em outras áreas jurídicas, pois vulnerável é o ser humano em si, haja vista que todos, na condição de pessoas que são, estão suscetíveis a serem feridos ou mesmo atacados. No contexto deste trabalho, vulnerabilidade é a iminente suscetibilidade em que vive o ser humano, em decorrência dos parâmetros ditados pela sociedade e respeitados pelo Estado, levando-se em consideração a circunstância vivida pelo ser humano. O Estado deve, a todo instante, analisar a situação de seus membros que, por diversas razões, originam grupos vulneráveis, os quais necessitam de tutelas específicas para estarem em pé de igualdade na convivência social. A criação de normas reguladoras, para tutelar a proteção de grupos vulneráveis, encontra fundamento na Teoria Tridimensional de Miguel Reale: FATO + VALOR = NORMA. O fato (acontecimento) é vivenciado pelos membros da sociedade, valorizado por ela e normatizado pelo Estado. Portanto, independentemente de uma legislação vigente, o fato sempre existiu, devendo este ser cuidado pelo Estado, pois o art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, faz-se clara ao dispor que, na falta de previsão legal, deve o operador do direito fazer uso da analogia, dos costumes e dos princípios gerais do direito. Tal dispositivo confirma que nem todos os acontecimentos estarão previstos no sistema jurídico. Nessa esteira, passa-se a valorizar juridicamente o cuidado, em razão de ter o indivíduo, não só o direito mas também a aplicação de normas específicas em seus conflitos, ou seja, muito mais que isso, tem direito à atenção do Estado e da sociedade, na observância e na prevenção dos princípios e das garantias fundamentais. Portanto, o magistrado, em sua função jurisdicional, deve solucionar os conflitos, observando o cuidado como valor jurídico, em cada caso concreto, pois o legislador cria leis, mas lei não é Justiça, em razão de ser geral e impessoal, 314

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enquanto o Direito sim é pessoal. O cuidado e a vulnerabilidade como valores jurídicos, portanto, se complementam na solução dos conflitos, pois o primeiro trata de analisar a aplicação da lei, com o objetivo de atender ao bem comum; já o segundo, caracteriza o estágio em que se encontra o indivíduo, sujeito da relação jurídica. A vulnerabilidade dos autistas se vislumbra no preconceito vivido por eles, no esquecimento do Estado e no descaso do Judiciário, o qual, até então, violava de forma maquiada os direitos fundamentais desses indivíduos. O operador do Direito deve não só se pautar na legislação vigente, mas, simultaneamente, nos princípios pelos quais ela foi criada, bem como no cuidado e na vulnerabilidade, ao solucionar o conflito, sem se olvidar do valor jurídico dos dois últimos requisitos, para, assim, alcançar-se o fim do Direito: A Justiça! A lei existe para regrar o comportamento humano. No entanto, ao aplicá-la, não pode o Judiciário deixar de considerar as circunstâncias do caso concreto e, principalmente, de ponderar e atentar-se, verificando se a solução que se chegou atende o bem comum. 7 A PROPOSTA DO FILME A SER EMPREGADA COMO MÉTODO DE INCLUSÃO SOCIAL Em um antigo filme de nome: “Uma Família Especial”, curta metragem de Anna Barczewska, que retrata a história verídica do drama de vida, de Jackie Jackson, podemos visualizar diversificadas formas de inclusão, aplicadas por Maggi, que é mãe de sete filhos, dentre eles, quatro homens são autistas, e empregando-se divertidas técnicas de inserção ao “mundo” dos irmãos, que não são autistas, o desenvolvimento intelectual das crianças é perceptível, e tal vitória só pôde ser alcançada, graças à renitente persistência da mãe, que não desiste de manter a família unida, a qual é comandada somente por ela. Não é deixada de lado, entretanto, a demonstração das difíceis situações, que se faz necessário a mãe encarar para poder incluir os seus filhos na sociedade, o que é feito por meio de uma incansável luta, repleta de momentos mágicos, alegres e tristes, para ajudar seus filhos especiais a ter uma vida feliz, sobretudo porque o autismo dos filhos apresenta-se em maior ou menor grau (desde o autismo mais severo até a Síndrome de Asperger), o que denota ainda a dificuldade para a dedicação diferenciada, rumo ao atingimento do mundo psíquico de cada um dos filhos, cada qual ao seu modo. A convivência é respeitada. A mãe insiste em manter todas as crianças juntas, o que demonstra ser bastante proveitoso para todas, porque aprendem a conviver com as diferenças que os outros irmãos apresentam, e, com isso, colaboram para que possam praticar todas as atividades juntos, porque é mostrado o dia a dia da família, as rotinas e as dificuldades comportamentais R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.299-321, jan./dez. 2011

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e sociais com que se deparam, além das dificuldades das outras três irmãs, a que têm que se adaptar. É narrado, de forma magistral, a doação da mãe aos filhos, e as épocas do ano, focando as rotinas e as dificuldades que elas geram na vida dos filhos. Auxiliada pelo zelador da escola das crianças (Bruno Lastra), Maggi conclui que seus filhos têm inúmeros potenciais, e que, como mãe, não pode estar com eles o tempo todo, mas, apesar disso, deve tentar deixá-los caminhar um pouco com os próprios pés, deixar que se arrisquem um pouco dentro das suas limitações. As reflexões que o público é induzido a fazer, face às mensagens transmitidas pelo filme, expõe um método real de inclusão social, consubstanciado no amor e na dedicação da mãe, que não poupa esforços para ver seus filhos felizes, mesmo nas atividades mais singelas do dia a dia. Aquelas mensagens levaram-nos a lançar a exposição do tema, com o fito de asseverar que a vida deveria imitar a arte, sempre! A sociedade, os familiares e o Estado devem espelhar suas atuações naqueles mesmos ensinamentos, que nos foram transmitidos, para que se torne viável ousar falar-se em efetiva inclusão social das pessoas autistas, no Brasil, posto tratar-se de propósito ainda inalcançado, neste século XXI, apesar do imenso rol de legislações e instrumentos normativos mundialmente consagrados há décadas, reconhecedores dos direitos das pessoas com deficiência. 8 CONSIDERAÇÕES FINAIS O objetivo de um Estado Democrático de Direito é a realização do bem comum, por meio da criação de uma sociedade livre, justa e solidária, sem distinção de qualquer natureza, portanto qualquer forma de discriminação não poderá ser aceita pelo povo brasileiro. A proteção de pessoas com deficiência, cuja conceituação engloba as pessoas autistas, exige do Magistrado, reflexões acuradas no momento da defesa dos interesses desse grupo, sempre considerando o estágio vulnerável que essas pessoas se encontram, em razão da discriminação que sofrem. A vulnerabilidade e o cuidado se apresentam como valores jurídicos a serem apreciados na defesa de direitos, impedindo a existência de obstáculos colocados para a não efetivação de um direito fundamental do ser humano. Assim, no presente estudo, o cuidado e a vulnerabilidade foram analisados como valores jurídicos a serem considerados pelo Magistrado no momento de suas decisões, afinal, o que é o cuidado, senão a expressão da aplicação dos direitos fundamentais, para a realização da dignidade humana? A prefalada dignidade humana vem desaguar numa conceituação abrangente, que se destina à ampla, à incondicionada e à irrestrita inclusão social dos grupos vulneráveis (presentes as pessoas com deficiência, como espécie destes), cuja salvaguarda transcende a órbita do ordenamento jurídico brasileiro, 316

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encontrando-se erigido sob a seara do Direito Internacional, nominados direitos humanos, portanto a conscientização acerca da necessidade de concessão de meios e técnicas voltadas à proteção dessas pessoas é fator incontroverso, apesar de ainda inatingido efetivamente. Em decorrência, objetiva-se lançar o ensinamento no sentido de que devem ser incutidas reflexões advindas dos desmesurados esforços que Maggi, a mãe de sete filhos, entre os quais, quatro têm autismo, em grau maior ou menor, no filme Uma Família Especial, para trazê-los ao mundo real, fazendo-os interagir com os irmãos e a sociedade, de modo que se possa acreditar no potencial das pessoas com deficiência, grupo vulnerável, que carece do cuidado, a fim de que possa ser-lhes dadas oportunidade de convivência, inclusive para que as pessoas que não são deficientes, tenham igual oportunidade de conviver com as diferenças e criem métodos para suplantar eventuais dificuldades, sacramentando os valores jurídicos do cuidado e da vulnerabilidade. Doar-se ao semelhante, para facilitar o convívio destes, em sociedade, viabilizando a sua efetiva inclusão subsume alcançar uma posição na sociedade e uma atuação, como ser humano, que seja apta a acolher o outro, vulnerável que é, respeitando as suas dificuldades e as suas diferenças e, apesar disso, dar-lhe um voto de confiança, oportunizando meios de vida social, feliz, que é um desdobramento do princípio da dignidade humana, interpretação hodiernamente concebida pelo instituto dos Direitos Fundamentais. REFERÊNCIAS ALARCÓN, Pietro de Jesús Lora. Processo, igualdade e justiça. Revista Brasileira de Direito Constitucional, São Paulo: Método, n. 02, p.165-198, 2003. ARAUJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional das pessoas portadoras de deficiência. 3. ed. Brasília: CORDE, 2003. ASSIS, Olney Queiroz; POZZOLI, Lafayette. Pessoa portadora de deficiência: direitos e garantias. 2. ed. São Paulo: Damásio de Jesus, 2005. BIDERMAN, Maria Tereza. Dicionário contemporâneo de português. Petrópolis: Vozes, 1992. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 11ª ed. 14ª tirag. Rio de Janeiro: Campus, 1992. BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. In: VARRIALE, Carmem C. (Trad.). Dicionário de política. 12. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 2002. BOLONHINI JÚNIOR, Roberto. O Estado: desconhecimento ou descaso? Portadores de necessidades especiais – as principais prerrogativas dos portadores de necessidades especiais e a legislação brasileira. São Paulo: R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.299-321, jan./dez. 2011

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4 BIDERMAN, Maria Tereza. Dicionário contemporâneo de português. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 267. 5 BUENO, Francisco da Silveira. Grande dicionário etimológico-prosódico da língua

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portuguesa: vocábulos, expressões da língua geral e científica – sinônimos – contribuições do tupi-guarani. São Paulo: Saraiva, 1968, v. 2, p. 884. CALDAS, Aulete. Dicionário contemporâneo da língua portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Delta, 1967, v. 2, p. 1070.

7 MORA, José Ferrater. Dicionário de filosofia (A-D). São Paulo: Loyola, 2000, t. I, p. 651. 8 ALVES, Geraldo Magela; MILHOMENS, Jônatas. Vocabulário prático de Direito: doutrina, legislação, jurisprudência, formulário. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 335. 9 WERNECK, Claudia. Ninguém mais vai ser bonzinho na sociedade inclusiva. 2. ed., Rio de Janeiro: WVA, 2000, p. 33. 10 Ibidem, p. 27. 11 Terminologia questionada por SÉGUIN, Elida. Minorias e grupos vulneráveis: uma

abordagem jurídica. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 09, vez que conceituar minorias é complexo, já que não condiz com um contingente numericamente inferior, como grupos de indivíduos, destacados por uma característica que os distingue dos outros habitantes do país, estando em quantidade menor, em relação à população deste, devendo ser sopesada a realidade jurídica ante as conquistas modernas. 12 ARAUJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional das pessoas portadoras de deficiência. 3. ed. Brasília: CORDE, 2003, p. 23-24. 13 ABC da Saúde. Disponível em: <http://www.abcdasaude.com.br/artigo.php?44>. Acesso em: 16 set. 2011. 14 WERNECK, op. cit., p. 52. 15 FÁVERO, Eugênia Augusta Gonzaga. Direitos das Pessoas com Deficiência: garantia de igualdade na diversidade. Rio de Janeiro: WVA, 2004, p. 37-38. 16 RULLI NETO, Antonio. Direitos do portador de necessidades especiais. São Paulo: Fiuza, 2002, p. 68. 17 RAMOS, André de Carvalho. Teoria geral dos direitos humanos na ordem interna-

cional. Prefácio de Fábio Konder Comparato. São Paulo: Renovar, 2005, p. 42.

18 Ibidem, p. 51. 19 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 11. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 18. 20 Direitos fundamentais são os direitos, destinados ao ser humano, reconhecidos e positivados por cada Estado.

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21 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 53. 22 A matéria é elevada ainda, à categoria de Emenda Constitucional, por força do disposto no art. 5º, §2º da CF, segundo entendimento de Flávia Piovesan. 23 FREIRE JÚNIOR, Américo Bedê. O controle judicial de políticas públicas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 47. 24 OLIVEIRA, Guilherme de. PEREIRA, Tânia da Silva. Cuidado & Vulnerabilidade. São Paulo: Atlas, 2009, p. 310.

THE INCLUSION OF CHILDREN WITH AUTISM ABSTRACT This article attempts to perform an analysis on the relevance of care and vulnerability, as legal values, to be taken into account in the decision of judges, with the aim of bringing about the rights of persons with disabilities, focusing on detailed analysis of autistic persons, who make up one of the vulnerable groups that belongs to the recent juridical concept of persons with disabilities. This theme leads us to an important legal consideration, because it is not only a matter of recognizing additional rights in the legal system (In fact, merely declaring rights is not enough, even in the international sphere, concerning Human Rights) but in the need to, in an actual case, ensure the judgment be based on social reality, with concern to the vulnerability of the persons involved, as well as the commitment to meet the needs of those marginalized people by innocuous human preconceptions on minorities. Based on the constitutional desideratum of attaining happiness, as a consequence of the aforementioned implicit constitutional principles of vulnerability and care, we point out the teachings of the movie “Magnificent 7” as ideas that must be used as social inclusion methods for autistic people, as well as committed practice of respecting human dignity, through a special point of view, under an updated juridical approach of Fundamental Rights, thus suggesting that life imitate art. Keywords: Persons with Disabilities. Autism. Social Inclusion. Constitutional Principles. Care. Vulnerability.

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A Responsabilidade do Estado Pelos Danos Causados às Pessoas Atingidas Pelos Desastres Ambientais Associados às Mudanças Climáticas: Uma Análise à Luz dos Deveres de Proteção Ambiental do Estado e da Proibição de Insuficiência na Tutela do Direito Fundamental ao Ambiente Tiago Fensterseifer* Introdução: As Mudanças Climáticas como Resultado das Pegadas Humanas Sobre a Terra. 1 A Dimensão Socioambiental dos Danos Ocasionados por Desastres Ambientais Decorrentes dos Efeitos Negativos das Mudanças Climáticas e a Questão da Justiça Ambiental. 2 A Responsabilidade do Estado Pelos Danos Causados às Pessoas Atingidas Pelos Desastres Ambientais Associados às Mudanças Climáticas. 2.1 Breves notas sobre os “deveres de proteção” ambiental atribuídos ao Estado brasileiro pela Lei Fundamental de 1988 e o reconhecimento da tutela do ambiente como direito fundamental. 2.2. A responsabilidade do Estado pelos danos causados às pessoas atingidas pelos desastres ambientais associados às mudanças climáticas (responsabilidade estatal, deveres de proteção ambiental e proporcionalidade). 3 O Dever do Estado de Garantir as Prestações Materiais Mínimas (Mínimo Existencial Socioambiental) Necessárias ao Bem-Estar e à Dignidade das Pessoas Atingidas pelos Desastres Ambientais Relacionados às Mudanças Climáticas (independentemente da sua responsabilização pelos danos causados). 4 Conclusões Articuladas. Bibliografia.

RESUMO O presente estudo analisa a responsabilidade (objetiva) do Estado por danos causados a indivíduos e grupos sociais em razão de eventos climáticos extremos resultantes do fenômeno das * Mestre em Direito Público pela PUC/RS (Bolsista do CNPq). Membro do NEDF – Núcleo de Estudos e Pesquisa de Direitos Fundamentais da PUC/RS. Associado do Instituto O Direito por um Planeta Verde, da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil (APRODAB) e do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública (IBAP). Professor-convidado da Especialização em Direito Constitucional da PUC/SP e da Especialização em Direito Ambiental da PUC/RJ. Autor da obra Direitos fundamentais e proteção do ambiente. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008; co-autor, juntamente com Ingo Wolfgang Sarlet, da obra Direito constitucional ambiental: estudos sobre a Constituição, os direitos fundamentais e a proteção do ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011 (no prelo); e co-organizador da obra coletiva A dignidade da vida e os direitos fundamentais para além dos humanos. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2008. Membro-colaborador do Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Defensor Público (SP). E-mail: tfensterseifer@defensoria.sp.cog.br

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mudanças climáticas, considerando os aspectos socioeconômicos que lhe são correlatos e a atuação omissiva ou insuficiente do ente estatal em face dos deveres de proteção do ambiente que lhe são impostos pela Lei Fundamental brasileira de 1988. Com base em tal entendimento, aborda-se também o dever do Estado brasileiro de assegurar a tais pessoas, inclusive em termos prestacionais, condições materiais mínimas de bem-estar (individual, social e ecológico), o que se dá independentemente da sua responsabilização pelos danos causados. Palavras-chave: Mudanças climáticas. Responsabilidade objetiva do Estado. Deveres de proteção ambiental do Estado. INTRODUÇÃO: AS MUDANÇAS CLIMÁTICAS COMO RESULTADO DAS PEGADAS HUMANAS SOBRE A TERRA O tema que mais ressoa hoje no cenário político ambiental (local, regional e mundial), conforme pronunciado ao redor do mundo por AL GORE1, diz respeito ao aquecimento global (global warming).2 Em um de suas últimas obras (A vingança de Gaia), o destacado biólogo britânico JAMES LOVELOCK revela a “situação limite” a que chegamos ou que talvez até mesmo já tenhamos ultrapassado em termos de mudança climática, desencadeada especialmente pela emissão desenfreada de gases geradores do efeito estufa (greenhouse effect), como o dióxido de carbono e o metano, liberados na atmosfera especialmente pela queima de combustíveis fósseis e pela destruição de florestas tropicais3. No último caso, como ocorre hoje na Amazônia especialmente por conta do avanço descontrolado das fronteiras agrícola e pecuária sobre a área da floresta, vale registrar que tal situação já foi denunciada mundialmente pela voz de CHICO MENDES na década de 80. Os efeitos do aquecimento global são cumulativos e podem ser visualizados, por exemplo, através do desaparecimento de gelo do Ártico e de diversos outros lugares do Planeta, como o topo dos picos mais altos do mundo, e de um desregramento climático cada vez maior e imprevisível, com lugares ao redor do mundo batendo constantemente recordes de temperaturas altas, secas, tempestades tropicais cada vez mais intensas4 (com enchentes, deslizamentos de terra, etc.), acompanhado ainda de um aumento do nível dos oceanos e do nível médio de temperatura do globo terrestre. A tais efeitos, soma-se ainda a perda da biodiversidade global5. Sensível a tal “estado da arte” da questão ambiental ocasionada pelo aquecimento global e das implicações sociais correlatas, o Relatório de Desenvolvimento Humano 2007/2008 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, intitulado Combatendo a mudança climática: solidariedade humana num mundo dividido, revela um quadro preocupante e injusto no horizonte humano, com um mundo cada vez mais dividido entre nações ricas altamente poluidoras e países pobres. Segundo o Relatório, não obstante os países pobres contribuírem de forma pouco significativa para o aquecimenR. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.322-354, jan./dez. 2011

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to global, são eles que mais sofrerão os resultados imediatos das mudanças climáticas. O mesmo raciocínio, trazido para o âmbito interno dos Estados nacionais, permite concluir que tal quadro de desigualdade e injustiça – de cunho social e ambiental – também registra-se entre pessoas pobres e ricas que integram determinada comunidade estatal. No caso do Brasil, que registra um dos maiores índices de concentração de renda do mundo, de modo a reproduzir um quadro de profunda desigualdade e miséria social, o fato de algumas pessoas disporem de alto padrão de consumo – e, portanto, serem grandes poluidoras -, ao passo que outras tantas muito pouco ou nada consomem, também deve ser considerado para aferir sobre quem deve recair o ônus social e ambiental dos danos ocasionados pelas mudanças climáticas. O fenômeno das mudanças climáticas - agora já oficial e mundialmente reconhecido pela comunidade científica por intermédio do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC) da Organização das Nações Unidas – inclui, entre os seus efeitos, a maior intensidade e a frequência de episódios climáticos extremos, a alteração nos regimes de chuvas, como ocorre na hipótese de chuvas intensas em um curto espaço de tempo, entre outros eventos naturais.6 Tal situação foi constatada recentemente de forma trágica nos Estados brasileiros de Santa Catarina, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro entre o final de 2008 e o início de 2009. No caso de Santa Catarina, o volume de chuva previsto para todo o mês de dezembro de 2008 foi verificado em apenas um dia, causando enchentes e desastres ambientais de proporções catastróficas.7 Diante de tais situações, nas quais inúmeras pessoas (na condição até mesmo de refugiados ambientais, já que, muitas vezes, vêem-se obrigadas a se deslocarem e reconstituírem suas vidas em outras áreas) sofrem os mais diversos danos (patrimoniais e extrapatrimoniais) - muitas delas encontrando-se hoje em condições de total desamparo em termos de bem-estar e dignidade, já que perderam suas casas, bens materiais, etc. -, é possível responsabilizar o Estado por tais danos? As pessoas mais vulneráveis aos efeitos imediatos dos episódios climáticos extremos provocados pelo aquecimento global serão, na grande maioria das vezes, aquelas mais pobres, as quais já possuem uma condição de vida precária em termos de bem-estar, desprovidas do acesso aos seus direitos sociais básicos (moradia adequada e segura, saúde básica, saneamento básico e água potável, educação, alimentação adequada, etc.).8 A sujeição de tais indivíduos e grupos sociais aos efeitos negativos das mudanças climáticas irá agravar ainda mais a vulnerabilidade das suas condições existenciais, submetendo-as a um quadro de ainda maior indignidade. O enfrentamento do aquecimento global, de tal sorte, também deve englobar a garantia de acesso aos direitos sociais básicos das pessoas carentes, rumando para o horizonte normativo imposto pelo princípio constitucional do desenvolvimento sustentável9. Nessa perspectiva, por exemplo, o fato de o Estado não garantir uma moradia simples e segura àquelas pessoas que não podem provê-la por escassez de recursos próprios, ocupando geralmente áreas de preservação permanente ou outras áreas de risco ambiental, faz com que o ente estatal concorra, com a sua omissão, na 324

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responsabilidade pelos danos causados a tais pessoas em um episódio climático extremo decorrente das mudanças climáticas que tenha ocasionado o deslizamento de terra e enchentes no local das suas moradias. Tal questão se coloca em razão de que, muitas vezes, verifica-se a omissão estatal em implementar políticas públicas que atendam de modo adequado e suficiente à tutela do ambiente, especialmente no tocante à questão climática, o que ocorre no caso de o ente estatal não fiscalizar e coibir o desmatamento de florestas e a emissão dos gases responsáveis pelo aquecimento global, reprimindo civil, administrativa e criminalmente tais condutas de modo efetivo e satisfatório. A mesma conduta omissiva do Estado – no caso do Poder Legislativo – ocorre quando ele não atua no sentido de estabelecer um marco regulatório adequado ao combate do aquecimento global e das suas conseqüências10, de modo a adequar as atividades produtivas a padrões ecologicamente sustentáveis, inclusive sob a ótica dos princípios da prevenção e da precaução. O Estado brasileiro tem por missão e dever constitucional atender ao comando normativo emanado do art. 225 da nossa Lei Fundamental, sob pena de, não o fazendo, tanto sob a ótica da sua ação quanto da sua omissão, incorrer em práticas inconstitucionais ou antijurídicas autorizadoras da sua responsabilização por danos causados a terceiros - além do dano causado ao meio ambiente em si. Com a colapso ambiental11 que se avizinha em decorrência das mudanças climáticas, o Estado não pode silenciar, uma vez que o seu silêncio e a sua inércia, do ponto de vista jurídico, resultam em omissão inconstitucional para com os seus deveres imperativos de proteção da qualidade ambiental e dos direitos fundamentais das pessoas que habitam o seu território, inclusive sob a perspectiva das futuras gerações. E tais omissões ganham maior intensidade normativa, sob a perspectiva da sua inconstitucionalidade e da necessidade de reparação por parte do Estado, quanto maior o grau de exposição existencial dos indivíduos e dos grupos sociais atingidos. O presente ensaio, com base nas considerações até aqui firmadas, tem como propósito analisar como e em que medida o Estado pode ser responsabilizado pelos danos patrimoniais e extrapatrimoniais causados às pessoas atingidas por desastres ambientais atrelados aos efeitos negativos das mudanças climáticas, como enchentes, deslizamentos de terra, secas, etc. Além disso, objetiva-se também verificar, para além da perspectiva da responsabilização do Estado, a possibilidade de reivindicar judicialmente prestações socioambientais (moradia, saúde, alimentação, renda mínima, assistência social, qualidade ambiental, etc.) em face do Estado por parte das pessoas atingidas por tais episódios climáticos extremos, dada a vulnerabilidade existencial e jurídica em que se encontram muitas vezes, tendo em vista o dever do Estado de tutelar os seus direitos fundamentais e assegurar a elas nada menos do que uma vida digna, sob a perspectiva, inclusive, do direito fundamental ao mínimo existencial socioambiental ou ecológico. 325

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1 A DIMENSÃO SOCIOAMBIENTAL DOS DANOS OCASIONADOS POR DESASTRES AMBIENTAIS DECORRENTES DOS EFEITOS NEGATIVOS DAS MUDANÇAS CLIMÁTICAS E A QUESTÃO DA JUSTIÇA AMBIENTAL Não obstante a correção parcial da afirmativa do sociólogo alemão ULRICH BECK de que a degradação ou poluição ambiental possui uma dimensão democrática, no sentido de que afeta todas as pessoas indistintamente, independente da classe social que integram, há sim indivíduos e grupos sociais mais vulneráveis aos efeitos negativos da degradação ambiental. O próprio BECK reconhece tal questão e refere que determinados grupos sociais, em razão do seu baixo poder aquisitivo, encontram-se mais vulneráveis a certos aspectos da degradação ambiental, de tal sorte que os riscos se acumulam abaixo, na medida em que as riquezas se acumulam acima12. Como exemplo de tal injustiça ambiental, basta voltar o olhar para a realidade dos grandes centros urbanos brasileiros, onde as populações mais carentes são comprimidas a viverem próximas às áreas mais degradadas do ambiente urbano (conseqüentemente, menos disputadas pela especulação imobiliária), geralmente próximas a lixões, recursos hídricos contaminados, áreas sujeitas a desabamento, áreas industriais, áreas de proteção ambiental, etc. Para compreender tal contexto de maior vulnerabilidade de determinados indivíduos e grupos sociais em face da degradação ambiental, é importante destacar a relação elementar entre o acesso aos direitos sociais básicos (como saúde, saneamento básico, moradia, alimentação, etc.) e a degradação ambiental, uma vez que os indivíduos e os grupos sociais mais pobres e com menor acesso aos bens sociais são, na absoluta maioria das vezes, também os mais expostos aos efeitos negativos da degradação ambiental. Enquanto os lucros são privatizados, os riscos ambientais e sociais gerados como externalidades do processo produtivo são socializados a custa de todos (usufruidores ou não dos bens de consumo), causando um quadro existencial indigno para a grande maioria das comunidades humanas, especialmente as situadas (ou sitiadas!) no Hemisfério Sul. Há um “débito ambiental” (assim como há também um “débito social”) existente na relação entre os países industrializados (grandes responsáveis, por exemplo, pelas emissões dos gases responsáveis pelo aquecimento global) e os países em desenvolvimento, que estão sujeitos aos mesmos riscos ambientais ocasionados pelas mudanças climáticas, independentemente de não terem contribuído com parcela significativa das emissões de poluentes e de não serem beneficiados na mesma medida com as riquezas geradas pela produção industrial dos países desenvolvidos. De certa forma, o mesmo processo de “coletivização” ou “socialização” dos danos e da degradação ambiental também pode ser identificado na relação entre pobres e ricos no plano interno dos Estados nacionais, onde, como ocorre no Brasil, poucos têm acesso e são beneficiários dos bens de consumo extraídos do processo produtivo, não obstante recair sobre eles o ônus da degradação do ambiente dele resultante. A justiça ambiental, de tal sorte, implica um acesso igualitário aos recursos naturais e à qualidade ambiental. 326

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A Responsabilidade do Estado Pelos Danos Causados às Pessoas Atingidas pelos Desastres Ambientais Associados às Mudanças Climáticas: Uma Análise à Luz dos Deveres de Proteção Ambiental do Estado e da Proibição de Insuficiência na Tutela do Direito Fundamental ao Ambiente

O marco normativo da justiça ambiental objetiva reforçar a relação entre direitos e deveres ambientais, objetivando uma redistribuição de bens sociais e ambientais que possa rumar para uma equalização de direitos entre ricos e pobres – e entre os países do Norte e países do Sul na ordem internacional -, sendo que todos são, em maior ou menor medida, reféns das condições ambientais. O direito fundamental ao ambiente carrega consigo, portanto, uma dimensão democrática e redistributiva. A consagração do ambiente como um bem comum a todos (caput do art. 225 da Lei Fundamental brasileira) estabelece, de certa forma, o acesso de todos de forma igualitária ao desfrute de uma qualidade de vida compatível com o pleno desenvolvimento da sua personalidade e dignidade, considerando ainda que tal determinação constitucional também alcança os interesses das futuras gerações humanas. A Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento das Nações Unidas, em seu relatório Nosso Futuro Comum (Our common future), no ano de 1987, cunhou o conceito de desenvolvimento sustentável, que seria “aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem a suas próprias necessidades. Ele contém dois conceitos-chave: o conceito de ‘necessidades’, sobretudo as necessidades essenciais dos pobres do mundo, que devem receber a máxima prioridade; a noção das limitações que o estágio da tecnologia e da organização social impõe ao meio ambiente, impedindo-o de atender às necessidades presentes e futuras”.13 No conceito de desenvolvimento sustentável elaborado pela Comissão Brundtland, verifica-se a dimensão socioambiental de tal compreensão, na medida em que há uma preocupação em atender às necessidades vitais das gerações humanas presentes e futuras. Na explicitação dos seus conceitos-chave, fica evidenciada a vinculação entre a qualidade ambiental e a concretização das necessidades humanas mais elementares (ou seja, do acesso aos seus direitos fundamentais sociais), bem como a referência ao atual estágio de desenvolvimento tecnológico (com o esgotamento e contaminação dos recursos naturais) como um elemento limitativo e impeditivo para a satisfação das necessidades humanas fundamentais.14 Cada vez mais se reconhece a feição socioambiental das relações sociais contemporâneas, marcadamente pela conexão entre a proteção do ambiente e os direitos sociais à luz do princípio constitucional do desenvolvimento sustentável (art. 170, VI, da CF). A adoção do marco jurídico-constitucional socioambiental resulta da convergência necessária da tutela dos direitos sociais e os direitos ambientais em um mesmo projeto jurídico-político para o desenvolvimento humano. O enfrentamento dos problemas ambientais e a opção por um desenvolvimento sustentável passam necessariamente pela correção do quadro alarmante de desigualdade social e da falta de acesso aos direitos sociais básicos, o que, diga-se de passagem, também é causa potencializadora da degradação ambiental. Também a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992), no seu Princípio 5, refere que “todos os Estados e todos os indivíduos, como requisito indispensável para o desenvolvimento sustentável, irão cooperar R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.322-354, jan./dez. 2011

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na tarefa essencial de erradicar a pobreza, a fim de reduzir as disparidades de padrões de vida e melhor atender às necessidades da maioria da população do mundo”. Além de traçar o objetivo (também constitucional, vide art. 3º, I e III, da Lei Fundamental brasileira) de erradicar a pobreza, reduzir as desigualdades sociais e atender às necessidades (pode-se dizer, direitos sociais) da maioria da população mundial e colocar nas mãos conjuntamente da sociedade e do Estado tal missão, o diploma internacional, ao abordar o ideal de desenvolvimento sustentável, também evidencia a relação direta entre os direitos sociais e a proteção do ambiente (ou a qualidade ambiental), sendo um objetivo necessariamente comum, enquanto projeto político-jurídico para a humanidade. Outro aspecto que está consubstanciado no marco normativo do desenvolvimento sustentável é a questão da distribuição de riquezas (ou da justiça distributiva), o que passa necessariamente pela garantia dos direitos sociais e um nível de vida minimamente digna (e, portanto, com qualidade ambiental) para todos os membros da comunidade estatal (e também mundial). Em sintonia com tal entendimento, a Lei da Política Nacional sobre Mudança do Clima (Lei 12.187/09), no seu art. 4º, parágrafo único, dispõe que “os objetivos da Política Nacional sobre Mudança do Clima deverão estar em consonância com o desenvolvimento sustentável a fim de buscar o crescimento econômico, a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais”. O fortalecimento da luta por justiça ambiental no Brasil15 transporta justamente essa mensagem, ou seja, de que, assim como os custos sociais do desenvolvimento recaem de modo desproporcional sobre a população carente, também os custos ambientais desse mesmo processo oneram de forma injusta a vida das pessoas mais pobres. A idéia de justiça ambiental16, nesse cenário, é fundamental para justificar a responsabilidade do Estado de indenizar e atender aos direitos fundamentais das pessoas atingidas pelos desastres ambientais decorrentes dos efeitos das mudanças climáticas, já que, na maioria das vezes, as pessoas mais expostas a tais fenômenos climáticos (enchentes, desabamentos de terra, secas, etc.) serão aquelas integrantes do grupo mais pobre e marginalizado da população, as quais, após a ocorrência do episódio climático, terão perdido o pouco que possuíam (casa, bens materiais indispensáveis à sobrevivência, etc.) e não terão condições econômicas de acessar os bens sociais necessários a uma vida digna. Tais indivíduos e grupos sociais ocupam, em geral, áreas de risco ambiental e altamente vulneráveis aos episódios climáticos extremos, como, por exemplo, topos de morros sujeitos a desabamentos de terra, áreas próximas a rios assoreados e sem cobertura vegetal nas suas margens, mangues, áreas de preservação permanentes em geral, entre outros locais. Com o olhar voltado para questão das mudanças climáticas, CAVEDON, VIEIRA e DIEHL afirmam que esta tem reflexos na questão da justiça ambiental, uma vez que “seus custos e riscos são distribuídos de forma desproporcional, conforme o nível de vulnerabilidade de regiões, grupos e comunidades, não guardando relação com a participação na geração do problema”17. A “injustiça ambiental”, conforme já anunciado anteriormente, afeta de forma 328

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mais intensa os cidadãos menos favorecidos economicamente, os quais possuem um acesso mais restrito aos serviços públicos essenciais (água, saneamento básico, educação, saúde, etc.), bem como dispõem de um acesso muito mais limitado à informação de natureza ambiental, o que acaba por comprimir a sua autonomia e liberdade de escolha, impedindo que evitem determinados riscos ambientais por absoluta (ou mesmo parcial) falta de informação e conhecimento. Diante de tal quadro de injustiça socioambiental, reforça-se o dever do Estado de tutelar os direitos fundamentais e a dignidade de tais pessoas, inclusive sob perspectiva da sua responsabilização por condutas omissivas em face do seu dever de proteção ambiental quando guardem alguma relação causal, mesmo que indireta, com os danos patrimoniais e extrapatrimoniais sofridos por tais pessoas. Entre os deveres de proteção ambiental conferidos ao Estado, pode-se elencar, de forma apenas exemplificativa, a fiscalização e proibição de queimadas e desmatamentos ilegais, a recuperação de áreas degradadas (ex. assoreamento de rios), a fiscalização e proibição de emissão ilegal de gases responsáveis pelo aquecimento global, a criação de órgão público especializado para socorrer as vítimas de eventos climáticos extremos, etc. Outro aspecto importante relacionado às mudanças climáticas e à questão da justiça ambiental diz respeito ao surgimento dos refugiados ambientais. Os episódios climáticos relatados acima, muitas vezes, em decorrência da sua intensidade e dos danos pessoais e materiais gerados, alteram o cotidiano de vida de inúmeras pessoas e grupos sociais, ocasionando, muitas vezes, o seu deslocamento para outras regiões, de modo a “fugirem” de tais desastres ecológicos e resguardarem as suas vidas. Conforme apontado pelo Diretor do Instituto para o Meio Ambiente e Segurança Humana da Universidade das Nações Unidas, JANOS BOGARDI, até 2010, existirão, ao redor do mundo, pelo menos cinquenta milhões de refugiados ambientais, sendo que os países mais pobres serão os mais afetados, em especial em suas áreas rurais, tendo como principal causa a degradação da terra e a desertificação, decorrentes do mau uso da terra somado às mudanças climáticas e amplificado pelo crescimento populacional.18 De tal sorte, a figura dos refugiados ambientais guarda relação direta com a questão climática e, por consequência, o cenário socioambiental que lhe está subjacente, uma vez que o deslocamento de tais pessoas dos seus locais originários será motivado, na maioria das vezes, pela busca de condições de vida que atendam a um padrão de bem-estar mínimo, tanto em termos sociais quanto ambientais. Ignorar a feição socioambiental que se incorpora hoje aos problemas ecológicos potencializa ainda mais a exclusão e marginalização social (tão alarmantes no nosso contexto social), já que o desfrute de uma vida saudável e ecologicamente equilibrada constitui-se de premissa ao exercício dos demais direitos fundamentais, sejam eles de matriz liberal, sejam eles de natureza social. 2 A RESPONSABILIDADE DO ESTADO PELOS DANOS CAUSADOS ÀS PESSOAS ATINGIDAS PELOS DESASTRES AMBIENTAIS ASSOCIADOS ÀS MUDANÇAS CLIMÁTICAS

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2.1 Breves notas sobre os “deveres de proteção” ambiental atribuídos ao Estado brasileiro pela Lei Fundamental de 1988 e o reconhecimento da tutela do ambiente como direito fundamental. “No País da malária, da seca, da miséria absoluta, dos menores de rua, do drama fundiário, dos sem-terra, há, por certo, espaço para mais uma preocupação moderna: a degradação ambiental.”19 A Constituição Federal de 1988, alinhada com a evolução no âmbito do direito constitucional comparado registrada na última quadra do Século XX20, especialmente por força da influência do ordenamento internacional, em que surgiu todo um conjunto de convenções e declarações em matéria de proteção ambiental21, mas também em função da emergência da cultura ambientalista e dos valores ecológicos no espaço político-comunitário contemporâneo, consagrou, em capítulo próprio, o direito ao ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental da pessoa humana. A partir de tal inovação normativa, estabeleceu-se todo um conjunto de princípios e regras em matéria de tutela ambiental, reconhecendo o caráter vital da qualidade ambiental para o desenvolvimento humano em níveis compatíveis com a sua dignidade, no sentido da garantia e promoção de um completo bem-estar existencial. Assim, além de “constitucionalizar” a proteção ambiental no ordenamento jurídico brasileiro em capítulo próprio, inserido no Título da Ordem Social da Constituição, a nossa atual Lei Fundamental conta com diversos outros dispositivos em matéria de proteção ambiental, relacionando a tutela ecológica com inúmeros outros temas constitucionais de alta relevância.22 A Constituição brasileira (art. 225, caput, e art. 5º, § 2º) atribuiu ao direito ao ambiente o status de direito fundamental do indivíduo e da coletividade, bem como consagrou a proteção ambiental como um dos objetivos ou tarefas fundamentais do Estado – Socioambiental23 - de Direito brasileiro. Há, portanto, o reconhecimento, pela ordem constitucional, da dupla funcionalidade da proteção ambiental no ordenamento jurídico brasileiro, a qual toma a forma simultaneamente de um objetivo e tarefa do Estado e de um direito (e dever) fundamental do indivíduo e da coletividade, implicando todo um complexo de direitos e deveres fundamentais de cunho ecológico. A razão suprema de ser do Estado reside justamente no respeito, na proteção e na promoção da dignidade dos seus cidadãos, individual e coletivamente considerados, devendo, portanto, tal objetivo ser continuamente promovido e concretizado pelo Poder Público e pela própria sociedade. Os deveres de proteção do Estado contemporâneo estão alicerçados no compromisso constitucional assumido pelo ente estatal, por meio do pacto constitucional, no sentido de tutelar e garantir nada menos do que uma vida digna aos seus cidadãos, o que passa pela tarefa de promover a realização dos direitos fundamentais, retirando possíveis óbices colocados à sua efetivação. De acordo com tal premissa, a implantação das liberdades e garantias fundamentais (direito à vida, livre desenvolvimento da personalidade, etc.) pressupõe uma ação positiva (e não 330

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apenas negativa) dos poderes públicos, no sentido de remover os “obstáculos” de ordem econômica, social e cultural que impeçam o pleno desenvolvimento da pessoa humana.24 Nesse sentido, uma vez que a proteção do ambiente é alçada ao status constitucional de direito fundamental (além de tarefa e dever do Estado e da sociedade) e o desfrute da qualidade ambiental passa a ser identificado como elemento indispensável ao pleno desenvolvimento da pessoa humana, qualquer “óbice” que interfira na concretização do direito em questão deve ser afastado pelo Estado (Legislador, Administrador e Judicial), venha tal conduta (ou omissão) de particulares, seja ela oriunda do próprio Poder Público. Sob a perspectiva da tutela da ambiente, CANOTILHO afirma que, ao lado do “direito ao ambiente”, situa-se um “direito à proteção do ambiente”, que toma forma de deveres de proteção (Schutzpflichten) do Estado, expressando-se nos deveres atribuídos ao ente estatal de: a) combater os perigos (concretos) incidentes sobre o ambiente, a fim de garantir e proteger outros direitos fundamentais imbricados com o ambiente (direito à vida, à integridade física, à saúde, etc.); b) proteger os cidadãos (particulares) de agressões ao ambiente e qualidade de vida perpetradas por outros cidadãos (particulares).25 Na mesma perspectiva, FERREIRA MENDES destaca que o dever de proteção do Estado toma a forma de dever de evitar riscos (Risikopflicht), autorizando o Poder Público a atuar em defesa do cidadão mediante a adoção de medidas de proteção ou de prevenção, especialmente em relação ao desenvolvimento técnico ou tecnológico26, o que é de fundamental importância na tutela do ambiente, já que algumas das maiores ameaças ao ambiente provêm do uso de determinadas técnicas com elevado poder destrutivo ou de contaminação do ambiente (vide o exemplo do aquecimento global). CANÇADO TRINDADE, por sua vez, aponta para o dever e a obrigação do Estado de evitar riscos ambientais sérios à vida, inclusive com a adoção de “sistemas de monitoramento e alerta imediato” para detectar tais riscos ambientais sérios e “sistemas de ação urgente” para lidar com tais ameaças.27 A ideia formulada por CANÇADO TRINDADE é adequada à tutela do ambiente atrelada às questões climáticas, pois tais sistemas estatais de “monitoramento e alerta imediato” e de “ação urgente” permitiriam uma atuação mais efetiva em casos de eventos climáticos extremos (enchentes, desabamentos de terra, etc.), de modo a antecipar os desastres naturais e tutelar, de forma preventiva, os direitos fundamentais das pessoas expostas a tais situações. A consagração constitucional da proteção ambiental como tarefa estatal, de acordo com o entendimento de GARCIA, traduz a imposição de deveres de proteção ao Estado que lhe retiram a sua “capacidade de decidir sobre a oportunidade do agir”, obrigando-o também a uma adequação permanente das medidas às situações que carecem de proteção, bem como a uma especial responsabilidade de coerência na autorregulação social.28 Em outras palavras, pode-se dizer que os deveres de proteção ambiental conferidos ao Estado vinculam os poderes estatais ao ponto de limitar a sua liberdade de conformação na adoção de medidas atinentes à tutela do ambiente. No caso especialmente do Poder Executivo, há uma clara limitação ao seu poder-dever29 de discricionarieR. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.322-354, jan./dez. 2011

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dade, de modo a restringir a sua margem de liberdade na escolha nas medidas protetivas do ambiente, sempre no intuito de garantir a maior eficácia possível do direito fundamental em questão. Na mesma vereda, BENJAMIN identifica a redução da discricionariedade da Administração Pública como benefício da “constitucionalização” da tutela ambiental, pois as normas constitucionais impõem e, portanto, vinculam a atuação administrativa no sentido de um permanente dever de levar em conta o meio ambiente e de, direta e positivamente, protegê-lo, bem como exigir o seu respeito pelos demais membros da comunidade estatal.30 Em outras palavras, pode-se dizer que não há “margem” para o Estado “não atuar” ou mesmo “atuar de forma insuficiente” (à luz do princípio da proporcionalidade) na proteção do ambiente, pois tal atitude estatal resultaria em prática inconstitucional. A Constituição Federal traz de forma expressa nos incisos do § 1º do art. 225 uma série de medidas protetivas do ambiente a serem levadas a efeito pelo Estado, consubstanciando projeções de um dever geral de proteção do Estado31 para com direito fundamental ao ambiente inscrito no caput do art. 225. Entre as medidas de tutela ambiental atribuídas ao Estado, encontram-se: I) preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; II) preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético; III) definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente por meio de lei vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; IV) exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade; V) controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substanciais que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; VI) promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente; e VII) proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade. Por fim, deve-se destacar que o rol dos deveres de proteção ambiental do Estado traçado pelo §1º do art. 225 é apenas exemplificativo32, estando aberto a outros deveres necessários a uma tutela abrangente e integral do ambiente, especialmente em razão do surgimento permanente de novos riscos e ameaças à Natureza provocadas pelo avanço da técnica, como é o caso, por exemplo, do aquecimento global. O atual perfil constitucional do Estado (Socioambiental) de Direito brasileiro, delineado pela Lei Fundamental de 1988, dá forma a um Estado “guardião e amigo” dos direitos fundamentais33, estando, portanto, todos os poderes e órgãos estatais vinculados à concretização dos direitos fundamentais, especialmente no que guardam uma direta relação com a dignidade da pessoa humana. Tal perspectiva coloca para o Estado brasileiro, além da proibição de 332

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interferir no âmbito de proteção de determinado direito fundamental a ponto de violá-lo, também a missão constitucional de promover e garantir em termos prestacionais o desfrute do direito, quando tal se fizer necessário. Assim, em maior ou menor medida, todos os poderes, representados pelo Executivo, pelo Legislativo e pelo Judiciário, estão constitucionalmente obrigados, na forma de deveres de proteção e promoção ambiental, a atuar, no âmbito da sua esfera constitucional de competências, sempre no sentido de obter a maior eficácia e efetividade possível do direito fundamental ao ambiente. Nessa perspectiva, quando se volta a atenção para a questão das mudanças climáticas, tendo em vista os riscos sociais e ambientais a ela correlatos e já em curso, submerge uma série de deveres estatais a serem adotados no sentido do enfrentamento das suas causas. A não-adoção de tais medidas protetivas por parte do Estado resulta em prática inconstitucional, passível, inclusive de correção judicial, quando, tal situação resultar, por exemplo, de omissão dos Poderes Legislativo e Executivo. 2.2. A responsabilidade do Estado pelos danos causados às pessoas atingidas pelos desastres ambientais associados às mudanças climáticas (responsabilidade estatal, deveres de proteção ambiental e proporcionalidade) A partir do dever de proteção ambiental conferido constitucionalmente ao Estado brasileiro, submerge a responsabilidade estatal em face de danos ambientais ocorridos, tanto em razão da sua ação quanto de sua omissão.34 Conforme se pode apreender das linhas traçadas no tópico anterior, o Estado foi alçado pela norma constitucional como um dos principais protagonistas, juntamente com a sociedade civil, da tutela do ambiente. E tal protagonismo constitucional implica deveres e responsabilidades que devem ser assumidas pelo Estado, sob pena de eivar as suas práticas (ações e omissões) de inconstitucionalidade. Nessa perspectiva, é oportuna a lição de JUAREZ FREITAS que, ao revisitar a temática da responsabilidade extracontratual do Estado com base no princípio da proporcionalidade, afirma a necessidade de reequacioná-la no sentido de incentivar o cumprimento das tarefas estatais defensivas e positivas e reparar danos juridicamente injustos35, especialmente quando tal questão esteja vinculada à tutela e promoção de direitos fundamentais. Com isso, deve-se ter sempre em mente, na análise da matéria relacionada à responsabilidade do Estado, os deveres constitucionais impostos ao Estado brasileiro, especialmente quando tais deveres tiverem relação com o exercício de direitos fundamentais, tendo sempre em conta a função de “guardião” dos direitos fundamentais conferida ao ente estatal (nas esferas municipal, estadual e federal). Em termos gerais, particularmente no tocante à responsabilidade civil ambiental, o ordenamento jurídico brasileiro atribuiu natureza objetiva a tal responsabilidade, ou seja, a sua apuração dispensa a verificação de culpa do agente causador do dano, conforme se pode apreender do conteúdo da norma inscrita no art. 14, § 1º, da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81) e no art. 225, § 3º, da Constituição Federal. Há apenas a necessidade de verificação R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.322-354, jan./dez. 2011

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da ação ou omissão do agente poluidor, do nexo causal e do dano ambiental causado para a configuração da responsabilidade e o seu respectivo dever de reparação. No tocante à amplitude do dano ambiental, adota-se a classificação lançada por BENJAMIN no sentido de que o mesmo pode abarcar não somente o dano ecológico propriamente dito (ou “dano ecológico puro”), mas também o dano pessoal (individual, individual homogêneo, coletivo em sentido estrito ou mesmo difuso), podendo ter natureza tanto patrimonial (material) quanto moral (imaterial).36 Há, nesse sentido, quem também denomine os danos de cunho pessoal atrelados ao dano ecológico – que, por exemplo, afete a saúde e o patrimônio de indivíduos - como responsabilidade civil indireta par ricochet37, já que seriam resultado indireto da lesão ao patrimônio ecológico. O art. 3º, IV, da Lei 6.938/81, já voltando o olhar para a questão da responsabilidade do Estado, afasta qualquer dúvida quanto à possibilidade de responsabilização do ente estatal, na medida em que enquadra na condição de agente poluidor “a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental”38. É importante reiterar que não é apenas a ação poluidora do ente estatal capaz de ensejar a sua responsabilidade, como ocorre quando o próprio Estado empreende atividades lesivas ou potencialmente lesivas ao ambiente sem o devido estudo de impacto ambiental (construção de estradas, usinas hidrelétricas, etc.), mas também, como refere MILARÉ, quando “se omite no dever constitucional de proteger o meio ambiente (falta de fiscalização, inobservância das regras informadoras dos processos de licenciamento, inércia quanto à instalação de sistemas de disposição de lixo e tratamento de esgotos, p. ex.)”.39 A omissão do Estado em fiscalizar e impedir a ocorrência do dano ambiental é ainda mais grave, do ponto de vista constitucional, em razão da imposição e força normativa dos princípios da prevenção e da precaução (art. 225, § 1º, IV, da Constituição Federal, e art. 1º, caput, da Lei de Biossegurança – Lei 11.105/05), os quais modulam a atuação do Estado, impondo cautela e prevenção ao seu agir, de modo a antecipar e evitar que o dano ambiental ocorra.40 De acordo com tal entendimento, FREITAS refere que, com base no princípio da prevenção, “quando o mal for conhecido, devem-se tomar as medidas aptas a evitá-lo, sob pena de omissão objetivamente causadora (não mera condição) de dano injusto, à vista da inoperância estatal (insuficiência do agir exigível)”41. Com base no princípio da proporcionalidade42, cabe ao Estado, no que tange aos seus deveres de proteção ambiental, atuar na margem normativa que se estabelece entre a proibição de excesso e a proibição de insuficiência, ou seja, se, por um lado, o ente estatal não pode atuar de modo excessivo a ponto de violar o núcleo essencial do direito fundamental em questão, na outra face do princípio, também não pode omitir-se ou atuar de forma insuficiente na promoção do direito fundamental, sob pena de sua ação – no primeiro caso - ou omissão - no segundo caso - acarretar em prática antijurídica e inconstitucional. Se tomarmos a questão do aquecimento ambiental como exemplo, considerando os deveres de 334

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proteção ambiental delineados na nossa Constituição, a não-atuação (quando lhe é imposto juridicamente agir) ou a atuação insuficiente (de modo a não proteger o direito fundamental de modo adequado e suficiente, por meio da adoção de medidas voltadas ao combate das causas geradoras e agravadoras do aquecimento global) pode ensejar a responsabilidade do Estado, inclusive no sentido de reparar os danos causados a indivíduos e grupos sociais afetados pelos efeitos negativos das mudanças climáticas (por exemplo, enchentes, desabamentos de terra, secas, etc.). Quanto às excludentes de ilicitude caracterizadas pela força maior, caso fortuito, ou fato de terceiro, a tendência doutrinária prevalecente é de não aceitá-las para a exclusão da responsabilidade quando estiver em pauta a tutela de interesses difusos, como é o caso do direito ao ambiente, já que, como destaca MORATO LEITE, tais direitos “fogem da concepção clássica de direito intersubjetivo”.43 Trata-se, em verdade, da aplicação da teoria do risco integral à responsabilidade civil por dano ambiental, o que ocasiona a inaplicabilidade das excludentes arroladas acima.44 Como assevera BENJAMIN, defensor da adoção da teoria do risco integral no âmbito do direito ambiental, por força da aplicação dos princípios do poluidor-pagador, da precaução e da reparabilidade integral do dano ambiental, “são vedadas todas as formas de exclusão, modificação ou limitação da reparação ambiental, que deve ser sempre integral, assegurando proteção efetiva ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”.45 Nesse sentido, em raciocínio que também é pertinente para afastar as excludentes da responsabilidade estatal, ainda mais em um contexto político em que “privado” comumente se apropria do “público”, como no caso brasileiro, MANCUSO é enfático ao afirmar que “se nos afastarmos da responsabilidade objetiva, ou se permitirmos brechas nesse sistema, os interesses relevantíssimos pertinentes à ecologia e ao patrimônio cultural correrão alto risco de não restarem tutelados ou reparados, porque a força e a malícia dos grandes grupos financeiros, cujas atividades atentam contra aqueles interesses, logo encontrarão maneiras de safar-se à responsabilidade”.46 Especificamente no tocante à excludente da força maior, já que diz respeito mais diretamente ao tema central do presente estudo, pois os fatos da Natureza que a caracterizam podem ser decorrentes das mudanças climáticas, a análise do caso concreto pode levar a diferentes entendimentos. Por exemplo, no tocante a danos ambientais decorrentes de um abalo sísmico, ocasionado pelo deslocamento de placas tectônicas, o mais provável é que tal fato da Natureza não tenha qualquer relação com a ação ou omissão humana e, portanto, tampouco com relação à ação ou omissão do Estado. Agora, por outro lado, caso verificado que determinado fato da Natureza (por mais difícil que talvez isso seja na prática) – como, por exemplo, enchentes e desabamentos em certa localidade decorrentes de determinado episódio climático extremo – pode estar (mesmo que indiretamente) atrelado à ação ou à omissão estatal, tem-se uma situação diversa, já que, por exemplo, sabe-se que os altos índices de desmatamento na região amazônica e a queima de combustíveis fósseis no sudeste brasileiro contribuem, significativamente, para a ocorrência de episódios climáticos extremos relacionados às mudanças climáticas. Se, em tal contexto, o Estado brasileiro (nas suas esferas federal, estadual e municipal), sabendo das consequências nefastas das mudanças climáticas (já R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.322-354, jan./dez. 2011

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objeto de inúmeros documentos internacionais dos quais o país é signatário) e das medidas necessárias para minimizar e prevenir os seus efeitos, silencia e não atua no sentido de adotar tais medidas protetivas, a sua omissão, por estar eivada de ilicitude e inconstitucionalidade, pode sim ensejar responsabilização em face daquelas pessoas atingidas por determinados desastres ambientais relacionados às mudanças climáticas. Os níveis alarmantes de desmatamento nas regiões da Floresta Amazônica e do Pantanal Mato-Grossense – ambos tidos como patrimônio nacional pelo art. 225, § 4º, da nossa Lei Fundamental –, com queimadas constantes e o avanço desenfreado das fronteiras agrícola e pecuária sobre o seus territórios, bem como aumento galopante da frota de veículos automotores (grandes emissores de gases responsáveis pelo aquecimento global), especialmente na Região Sudeste do país, sem que meios alternativos (e limpos) de transporte coletivo (por exemplo, sistema ferroviário) sejam criados de modo significativo pelo Estado, dão indícios fortes da omissão estatal no tocante ao seu dever constitucional de tutelar o ambiente, contribuindo, mesmo que indiretamente, com o aquecimento global e o aumento de ocorrência de episódios climáticos extremos. Soma-se a isso tudo a flagrante omissão em termos de políticas públicas – federais, estaduais e municipais – voltadas ao combate efetivo das causas do aquecimento global, sendo certo que, conforme dispõe a própria norma constitucional, trata-se de competência material comum a todos os entes federativos “proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas” (art. 23, VI), e, portanto, a responsabilidade deve ser solidária entre eles diante da ocorrência de dano ambiental atrelado às mudanças climáticas. A relação causal, mesmo que indireta – ocasionada pela omissão estatal –, atua no sentido de afastar a excludente da força maior, de modo a caracterizar a responsabilidade do Estado no tocante à indenização das vítimas de desastres ambientais relacionados aos efeitos das mudanças climáticas, especialmente quando os danos sofridos por tais pessoas agridam os seus direitos fundamentais e dignidade. Talvez seja mais fácil de visualizar a relação causal na hipótese de desaparecimento de uma ilha como decorrência do aumento do nível do mar atrelado aos efeitos do aquecimento global. No entanto, na medida em que se avança, do ponto de vista científico, na identificação das causas e consequências do aquecimento global, com maior precisão se poderá identificar uma possível relação entre tal fenômeno climático global e determinados desastres naturais. O que já não é mais permitido é classificar todos os episódios climáticos extremos como meros “acasos naturais”, quando já se sabe que o seu agravamento é fruto sim da intervenção humana na Natureza, implicando um risco existencial de proporções catastróficas para a nossa existência caso não alterado o quadro atual de degradação do ambiente. E o Direito é o instrumento de regulação das relações sociais capaz de ajustar a conduta não só dos atores privados, mas também do Estado a padrões ecologicamente sustentáveis e adequados à mitigação e adaptação às mudanças climáticas. 336

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Nesse ponto, ganha relevância a questão do nexo causal na configuração da responsabilidade extracontratual do Estado. Quanto estiver em causa a obtenção do nexo causal para a verificação da responsabilidade civil em questões envolvendo as mudanças climáticas, conforme apontado por STEIGLEDER, tem-se como suficiente “uma mera conexão entre os riscos representados pela emissão de gases do efeito estufa e as mudanças climáticas, a partir de juízos de probabilidade. Trata-se de responsabilidade pelo contato social: ‘a introdução, na sociedade, de externalidades ambientais negativas gera responsabilidade social pelo simples perigo a que a sociedade é exposta, e as fontes geradoras das situações de risco, numa perspectiva solidária, têm o dever de suprimir o fator de risco do contexto social’. Não se requer um dano concretizado ou provocado a partir de juízos de certeza e, muito menos, um nexo causal adequado”.47 No tocante especificamente à responsabilidade civil do ente estatal pelos danos associados às mudanças climáticas, é preciso, para a sua compreensão, abandonar a leitura do nexo causal com os olhos contaminados pela teoria liberal-individualista do Direito, mas interpretá-lo à luz do Direito contemporâneo e, acima de tudo, do modelo de Estado (Socioambiental) de Direito arquitetado pela nossa Lei Fundamental, em que é assumido pelo Estado brasileiro o papel de “guardião” dos direitos fundamentais, o que coloca para o ente estatal inúmeros deveres, tanto de natureza defensiva quanto prestacional, no tocante à proteção de tais direitos. A partir da “teoria das probabilidades”48, pode-se associar a emissão dos gases do efeito estufa às mudanças climáticas e, consequentemente, a atuação omissiva do Estado na implementação de políticas públicas (por exemplo, de enfrentamento ao desmatamento na Amazônia) adequadas e eficientes ao combate da emissão dos gases do efeito estufa ao agravamento dos efeitos negativos do aquecimento global. Em outras palavras, pode-se dizer que o Estado, quando se omite ou atua de modo insuficiente, ao não combater o poluidor ambiental (público ou privado), concorre com este na perpetuação da degradação ambiental e passa a responder, de forma solidária, pelos danos causados. Com base em tal perspectiva, FREITAS, afirma que o Estado brasileiro precisa ser responsável pela eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais, de modo que será proporcionalmente responsável, tanto por suas ações como por omissões, admitindo-se a inversão do ônus da prova da inexistência do nexo causal a favor da suposta vítima49. A inversão do ônus da prova em favor da vítima do dano resultante da ação ou omissão estatal proporciona, de um modo geral, uma equiparação de armas, tendo em vista a “verticalidade” da relação jurídica existente entre o indivíduo e o Estado. E, nesse sentido, no caso de responsabilidade extracontratual do Estado por danos causados a vítimas de desastres naturais ocasionados ou agravados pelo aquecimento global, para afastar o nexo causal, deverá o ente estatal demonstrar que cumpriu com os seus deveres de proteção ambiental de modo adequado e suficiente à tutela do direito fundamental em questão, não tendo, portanto, de forma omissiva ou comissiva, contribuído para a ocorrência do evento danoso. Tal R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.322-354, jan./dez. 2011

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pode ser demonstrado com a comprovação, pelo ente estatal, de que adota políticas públicas ambientais adequadas ao combate das causas do aquecimento global, como, por exemplo, por intermédio da fiscalização e repressão ao desmatamento em áreas ecológicas protegidas (Mata Atlântica, Amazônia, Cerrado, Pantanal, etc.), do estímulo estatal a fontes energéticas não-poluentes, da criação de órgãos estatais com a função de atuar em situações emergenciais decorrentes de episódios climáticos extremos, da criação de órgãos e políticas públicas voltadas ao combate da emissão de gases poluentes geradores do aquecimento global, promoção de campanhas públicas de conscientização sobre a questão das mudanças climáticas, etc. Mas é importante deixar claro que, muitas vezes, a exposição de determinados indivíduos e grupos sociais aos efeitos negativos das mudanças climáticas é potencializada não apenas pela omissão do ente estatal em adotar políticas públicas suficientes ao enfrentamento das causas do aquecimento global, mas porque, em um momento anterior, também o Estado foi omisso em garantir o acesso aos direitos sociais básico da população carente, aumentando o grau de vulnerabilidade de tais pessoas aos episódios climáticos. Nesse sentido, a falta de acesso a uma moradia simples e segura pode fazer com que determinados indivíduos e grupos sociais venham a ocupar áreas de risco ambiental por absoluta falta de opção, já que não dispõem de recursos financeiros para se instalarem em outra localidade, sendo, em decorrência disso, vitimados por enchentes e desabamentos de terra. Em outras palavras, o problema social que antecede a questão climática configura-se como fator determinante para a vulnerabilidade existencial e jurídica de tais pessoas em situações de desastre natural. A “dupla omissão” do Estado verificada no exemplo em questão resulta da sua conduta omissiva ou insuficiente em assegurar a tais pessoas tanto o acesso às prestações sociais básicas indispensáveis a uma vida digna quanto à qualidade (e segurança) do ambiente. O Estado, no caso, omitiu-se não apenas em relação aos seus deveres de proteção para com os direitos fundamentais sociais, mas também em relação ao direito fundamental de tais pessoas a viverem em um ambiente sadio, equilibrado e seguro. Outro aspecto importante atinente à matéria em pauta diz respeito à responsabilidade solidária do Estado por fato provocado por terceiro, uma vez que, conforme se pode apreender do seu dever constitucional de proteção ambiental desenvolvido em tópico antecedente, tal terá por fundamento a sua omissão em fiscalizar e adotar políticas públicas ambientais satisfatórias no controle de atividades poluidoras. De tal sorte, a omissão do ente estatal em atender à norma constitucional e impedir a perpetuação de determinada prática poluidora levada a cabo por terceiro poderá ensejar sua responsabilidade solidária pelo dano ambiental.50 Em que pese o argumento contrário à responsabilidade civil do Estado levantado pela doutrina e jurisprudência para a hipótese de responsabilidade solidária entre o ente estatal e atores privados, uma vez que “quem” arcará com o ônus de eventual responsabilização estatal será a própria sociedade, parece-nos que, apesar de tal afirmativa ser correta de certa maneira, a responsabilização do Estado, especialmente quando tal implicar a reparação de área degradada ou a adoção de medidas protetivas do ambiente, terá uma feição de ajustar a conduta do 338

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ente estatal ao rol de prioridades constitucionais, o que será sempre benéfico para o conjunto da sociedade. E, além do mais, sempre haverá a possibilidade de ação regressiva em face do agente privado poluidor. No entanto, para não fazer recair o ônus da reparação injustamente sobre a própria “vítima” do dano ambiental, qual seja, a sociedade, é pertinente o acionamento de modo apenas subsidiário do ente estatal em tais situações, ou seja, apenas quando não for possível o acionamento direto do agente privado causador do dano ambiental. A responsabilidade estatal em questão pode ser acionada tanto pela sociedade civil, por meio de organizações não-governamentais de proteção ambiental e do próprio indivíduo, quanto pelas instituições estatais encarregadas de tutelar o ambiente e os interesses das pessoas atingidas pelos desastres ambientais, como é o caso do Ministério Público e da Defensoria Pública. Nesse contexto, não obstante a qualidade do ar que respiramos transcender interesses de classes sociais e indivíduos, a atribuição de legitimidade à Defensoria Pública (e também ao Ministério Público51) para a tutela do ambiente se faz imperiosa, pois, na maioria das vezes, quem sofrerá de forma mais prejudicial os efeitos da degradação ambiental será a população pobre, desprovida que é de recursos para amenizar tais efeitos, bem como de informação para evitá-los ou minimizá-los. E ninguém melhor para representar os seus interesses do que a instituição pública eleita constitucionalmente para tutelar diretamente os seus direitos fundamentais e dignidade. A Defensoria Pública, diante de tal contexto, deve atuar na defesa de tais cidadãos, fazendo com que seja garantida a eles nada menos que uma vida digna, em um contexto de bem-estar individual, social e ecológico.52 Por vezes, o acesso à justiça (social e ambiental) proporcionado pela Defensoria Pública servirá de porta de ingresso da população carente ao espaço comunitário-estatal, permitindo a sua inclusão no pacto socioambiental estabelecido pela nossa Lei Fundamental. 3 O DEVER DO ESTADO DE GARANTIR AS PRESTAÇÕES MATERIAIS MÍNIMAS (MÍNIMO EXISTENCIAL SOCIOAMBIENTAL53) NECESSÁRIAS AO BEM-ESTAR E À DIGNIDADE DAS PESSOAS ATINGIDAS PELOS DESASTRES AMBIENTAIS RELACIONADOS ÀS MUDANÇAS CLIMÁTICAS (INDEPENDENTEMENTE DA SUA RESPONSABILIZAÇÃO PELOS DANOS CAUSADOS) O Estado brasileiro, independentemente da sua responsabilização pelos danos causados às vítimas de desastres naturais relacionados às mudanças climáticas, diante do seu papel constitucional de guardião dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana, tem o dever de assegurar a todas pessoas condições mínimas de bem-estar (individual, social e ecológico). E tal obrigação ganha um significado jurídico ainda maior quando a situação de vulnerabilidade existencial é resultante da omissão estatal em prevenir danos resultantes de desastres ambientais decorrentes das mudanças climáticas. Com efeito, para HÄBERLE, assim como o Estado de Direito se desenvolveu, a serviço da dignidade humana, na forma de Estado Social de Direito, é possível R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.322-354, jan./dez. 2011

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afirmar que a expressão cultural do Estado constitucional contemporâneo, também fundamentado na dignidade humana, projeta uma medida de proteção ambiental mínima.54 No mundo contemporâneo, a pessoa encontra-se exposta a riscos existenciais provocados pela degradação ambiental (vide o caso do aquecimento global), com relação aos quais a ordem jurídica deve estar aberta, disponibilizando mecanismos normativos capazes de salvaguardar a vida e a dignidade humana das pessoas de tais ameaças existenciais. Nessa perspectiva, MOLINARO afirma que o “contrato político” formulado pela Lei Fundamental brasileira elege como “foco central” o direito fundamental à vida e a manutenção das bases materiais que a sustentam, o que só pode se dar no gozo de um ambiente equilibrado e saudável. Tal entendimento, como formula o autor, conduz à ideia de um “mínimo de bem-estar ecológico” como premissa à concretização de uma vida digna. 55 Assim como há a imprescindibilidade de determinadas condições materiais em termos sociais (saúde, educação, alimentação, moradia, etc.), sem as quais o pleno desenvolvimento da personalidade humana e mesmo a inserção política do indivíduo em determinada comunidade estatal resultam inviabilizados, também na seara ecológica há um conjunto mínimo de condições materiais em termos de qualidade ambiental, sem o qual o desenvolvimento da vida humana (e mesmo a integridade física do indivíduo em alguns casos) também se encontra fulminado, em descompasso com o comando constitucional que impõe ao Estado o dever de tutelar a vida (art. 5º, caput) e a dignidade humana (art. 1º, III) contra quaisquer ameaças existenciais. Infelizmente, o “retrato” de degradação ambiental é recorrente nos grandes centros urbanos, onde uma massa expressiva da população carente é comprimida a viver próxima a áreas poluídas e degradadas (ex. lixões, pólos industriais, rios e córregos assoreados e poluídos, encostas de morros sujeitas a desabamentos, etc.), dando conta de realçar o abissal descompasso entre a norma constitucional e a realidade social. O respeito e a proteção à dignidade humana, como acentua HÄBERLE, necessitam do engajamento material do Estado, na medida em que a garantia da dignidade humana pressupõe uma pretensão jurídica prestacional do indivíduo ao mínimo existencial material.56 Pode-se dizer, inclusive, que tais condições materiais elementares constituem-se de premissas ao próprio exercício dos demais direitos (fundamentais ou não), resultando, em razão da sua essencialidade ao quadro existencial humano, em um “direito a ter e exercer os demais direitos”.57 Sem o acesso a tais condições existenciais mínimas, não há que se falar em liberdade real ou fática, quanto menos em um padrão de vida compatível com a dignidade humana. A garantia do mínimo existencial (social e ecológico) constitui-se, em verdade, de uma premissa ao próprio exercício dos demais direitos fundamentais, sejam eles direitos de liberdade, direitos sociais ou mesmo direitos de solidariedade, como é o caso do direito ao ambiente. Por trás da garantia constitucional do mínimo existencial, subjaz a idéia de respeito e consideração, por parte da sociedade e do Estado, pela vida de cada indivíduo que, desde o imperativo categórico de KANT, deve ser sempre tomada como 340

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um fim em si mesmo, em sintonia com a dignidade inerente a cada ser humano. A dignidade da pessoa humana somente estará assegurada – em termos de condições básicas a serem garantidas pelo Estado e pela sociedade – em que a todos e a qualquer um estiver assegurada nem mais nem menos do que uma vida saudável58, o que passa necessariamente pela qualidade, segurança e equilíbrio do ambiente onde a vida humana está sediada. O conteúdo conceitual e normativo do princípio da dignidade da pessoa humana está intrinsecamente relacionado à qualidade e à segurança do ambiente. A vida e a saúde humanas59 (ou como refere o caput do artigo 225 da Constituição Federal, conjugando tais valores, a sadia qualidade de vida) só são possíveis, a partir dos padrões exigidos constitucionalmente para o desenvolvimento pleno da existência humana, em um ambiente natural com qualidade, equilíbrio, salubridade e segurança. Nesse ponto, é oportuno referir a previsão normativa da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81), que, no seu art. 2º, estabelece o objetivo de preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, com o intuito de assegurar a proteção da dignidade da pessoa humana. A consagração do direito ao ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental acarreta, como referem BIRNIE e BOYLE, no reconhecimento do “caráter vital do ambiente como condição básica para a vida, indispensável à promoção da dignidade e do bem-estar humanos, e para a concretização do conteúdo de outros direitos humanos”.60 A articulação entre os direitos fundamentais sociais e o direito fundamental ao ambiente é um dos objetivos centrais do conceito de desenvolvimento sustentável no horizonte constituído pelo Estado Socioambiental de Direito, na medida em que, de forma conjunta com a idéia de proteção do ambiente, também se encontra presente no seu objetivo central o atendimento às necessidades básicas dos pobres do mundo e a distribuição equânime dos recursos naturais (por exemplo, acesso à água61, à alimentos, à terra, à moradia, etc.). Há, inclusive, quem denomine tais direitos de DESCA, ou seja, direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais, de modo a evidenciar o elo elementar existente entre tais direitos para assegurar um quadro de bem-estar e dignidade ao indivíduo. À luz do conceito de desenvolvimento sustentável, SILVA afirma que esse tem como seu requisito indispensável um crescimento econômico que envolva equitativa redistribuição dos resultados do processo produtivo e a erradicação da pobreza, de forma a reduzir as disparidades nos padrões de vida da população. O constitucionalista afirma ainda que se o desenvolvimento não elimina a pobreza absoluta, não propicia um nível de vida que satisfaça as necessidades essenciais da população em geral, conseqüentemente, não pode ser qualificado de sustentável.62 Tais prestações materiais indispensáveis a uma vida digna (mínimo existencial social e ecológico) tomam a forma normativa de um direito fundamental originário (definitivo), identificável à luz do caso concreto e passível de ser postulado perante o Poder Judiciário, independentemente de intermediação legislativa da norma constitucional e da viabilidade orçamentária, a confirmar a força normativa da Constituição e dos direitos fundamentais. Tal formulação R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.322-354, jan./dez. 2011

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está alicerçada justamente na caracterização do direito fundamental ao mínimo existencial como uma regra jurídico-constitucional extraída do princípio da dignidade humana a partir de um processo de ponderação com os demais princípios que lhe fazem frente. De acordo com o modelo de ALEXY, que toma por base a ponderação dos princípios em colisão, o indivíduo tem um direito definitivo à prestação quando o princípio da liberdade fática tenha um peso maior do que os princípios formais e materiais tomados em seu conjunto (em especial, o princípio democrático e o princípio da separação de poderes), o que ocorre no caso dos direitos sociais mínimos (ou seja, do mínimo existencial)63, tornando o direito exigível ou “justiciável” em face do Estado. No caso do mínimo existencial ecológico, opera a mesma argumentação, já que por trás de ambos está a tutela da dignidade humana fazendo peso na balança. Assim, o mínimo existencial ecológico dá forma a posições jurídicas originárias, detentoras de jusfundamentalidade e sindicalidade, não dependendo de intermediação do legislador infraconstitucional para se tornarem exigíveis. Com relação à suposta “invasão” do Poder Judiciário64 no âmbito das funções constitucionais conferidas ao Poder Legislativo e ao Poder Executivo, em desrespeito ao princípio da separação dos poderes, é importante destacar que a atuação jurisdicional só deve se dar de maneira excepcional e subsidiária, já que cabe, precipuamente, ao legislador o mapeamento legislativo de políticas públicas e, posteriormente, ao administrador a execução dessas, tanto na seara social como na seara ecológica, ou mesmo em ambas integradas, como ocorre no caso do saneamento básico.65 Agora, diante da omissão e descaso do órgão legiferante ou do órgão administrativo em cumprir com o seu mister constitucional, há espaço legitimado constitucionalmente para a atuação do Poder Judiciário no intuito de coibir, à luz do caso concreto, violações àqueles direitos integrantes do conteúdo do mínimo existencial (social ou ecológico), já que haverá, no caso, o dever estatal de proteção do valor maior de todo o sistema constitucional, expresso na dignidade da pessoa humana. A reforçar tal entendimento, SARLET acentua que, na esteira da doutrina dominante, ao menos na esfera das condições existenciais mínimas encontramos um claro limite à liberdade de conformação do legislador.66 Para além dos direitos liberais e sociais já clássicos, é chegado o momento histórico de tomarmos a sério também os direitos ambientais, reforçando o seu tratamento normativo, inclusive com a consagração do direito fundamental ao mínimo existencial socioambiental. É justamente a dignidade humana que assume o papel de delimitador da fronteira do patamar mínimo na esfera dos direitos sociais67, o que, à luz dos novos contornos constitucionais conferidos ao âmbito de proteção da dignidade humana e do reconhecimento da sua dimensão ecológica, especialmente em face das ameaças existenciais impostos pela degradação ambiental, determina a ampliação da fronteira do conteúdo da garantia do mínimo existencial para abarcar também a qualidade ambiental no seu núcleo normativo. E, nesse sentido, encontrando-se determinados indivíduos ou mesmo grupos sociais desprovidos de tais condições materiais 342

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indispensáveis ao desfrute de uma vida minimamente digna, justamente terem sido vitimados por episódios climáticos, poderão os mesmos pleitear em face do Estado a adoção de medidas prestacionais no sentido de suprir tais necessidades. E, diante da omissão estatal em garantir tal patamar mínimo de bem-estar, poderão servir-se da via judicial para corrigir eventuais omissões provindas dos Poderes Executivo e Legislativo68, já que, em última instância, é a dignidade de tais pessoas que estará em jogo. 4 CONCLUSÕES ARTICULADAS O marco normativo da justiça ambiental (e também social) serve de fundamento à responsabilidade do Estado de indenizar e atender aos direitos fundamentais das pessoas atingidas pelos desastres ambientais decorrentes dos efeitos das mudanças climáticas, já que, na maioria das vezes, os indivíduos e grupos sociais mais expostos a tais fenômenos climáticos (enchentes, desabamentos, secas, etc.) serão justamente aqueles integrantes da parcela mais pobre e marginalizada da população, os quais, após a ocorrência do fenômeno climático, terão perdido o pouco que possuíam (casa, bens móveis, etc.) e não terão condições econômicas de acessar os bens sociais necessários a uma vida digna. Tais pessoas dispõem de um acesso muito mais limitado à informação de natureza ambiental, o que acaba por comprimir a sua autonomia e liberdade de escolha, impedindo que evitem determinados riscos ambientais por absoluta (ou mesmo parcial) falta de informação e conhecimento. A ordem constitucional brasileira reconhece dupla funcionalidade da proteção ambiental, a qual toma a forma simultaneamente de um objetivo e tarefa do Estado e de um direito (e dever) fundamental do indivíduo e da coletividade, implicando todo um complexo de direitos e deveres fundamentais de cunho ecológico. A Constituição Federal, nesse sentido, traz de forma expressa nos incisos do § 1º do art. 225 uma série de medidas protetivas do ambiente a serem levadas a efeito pelo Estado, consubstanciando projeções de um dever geral de proteção ambiental do Estado. E, quando se volta a atenção para a questão das mudanças climáticas, tendo em vista os riscos sociais e ambientais a ela correlatos e já em curso, submerge uma série de deveres estatais a serem adotados no sentido do enfrentamento das suas causas, inclusive sob a ótica da prevenção e da precaução. A não-adoção de tais medidas protetivas por parte do Estado resulta em prática inconstitucional, passível, inclusive, de correção judicial quando tal situação resultar, por exemplo, de ação ou omissão do Poder Executivo ou do Poder Legislativo. Com base no princípio da proporcionalidade, cabe ao Estado, no que tange aos seus deveres de proteção ambiental, atuar na margem normativa que se estabelece entre a proibição de excesso e a proibição de insuficiência, ou seja, se, por um lado, o ente estatal não pode atuar de modo excessivo a ponto de violar o núcleo essencial do direito fundamental em questão, na outra face do princípio, também não pode omitir-se ou atuar de forma insuficiente na promoção de tal R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.322-354, jan./dez. 2011

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direito, sob pena de sua ação – no primeiro caso - ou omissão - no segundo caso - acarretar em prática antijurídica e inconstitucional. Se tomarmos a questão do aquecimento ambiental como exemplo, considerando os deveres de proteção ambiental delineados na nossa Constituição, a não-atuação (quando lhe é imposta juridicamente a atuação) ou a atuação insuficiente (de modo a não proteger o direito fundamental de modo adequado e suficiente), no tocante a medidas voltadas ao combate às causas geradoras e agravadoras do aquecimento global, pode ensejar a responsabilidade do Estado, inclusive no sentido de reparar os danos causados a indivíduos e grupos sociais afetados pelos efeitos negativos das mudanças climáticas (por exemplo, enchentes, desabamentos de terra, secas, etc.). A inversão do ônus da prova no tocante ao nexo causal em favor da vítima do dano resultante da ação ou omissão estatal proporciona, de um modo geral, uma equiparação de armas, tendo em vista a “verticalidade” da relação jurídica existente, na maioria das vezes, entre indivíduo e Estado. E, nesse sentido, no caso de responsabilidade extracontratual do Estado por danos causados a vítimas de desastres naturais ocasionados ou agravados pelo aquecimento global, para afastar o nexo causal, deverá o ente estatal demonstrar que cumpriu com os seus deveres de proteção ambiental de modo suficiente, não tendo, portanto, de forma omissiva ou comissiva, contribuído para a ocorrência do evento danoso. Tal poderá ser demonstrado com a comprovação, pelo Estado, de que adota políticas públicas ambientais adequadas ao combate das causas do aquecimento global. O Estado brasileiro, independentemente da sua responsabilização pelos danos causados às vítimas de desastres naturais relacionados às mudanças climáticas, diante do seu papel constitucional de guardião dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana, tem o dever de assegurar a tais pessoas, inclusive em termos prestacionais, condições mínimas de bem-estar (individual, social e ecológico). E tal obrigação ganha um significado jurídico ainda maior quando a situação de vulnerabilidade existencial é resultante da omissão estatal em prevenir danos resultantes de desastres ambientais decorrentes das mudanças climáticas. E, com base em tal perspectiva, encontrando-se determinados indivíduos ou mesmo grupos sociais desprovidos de tais condições materiais indispensáveis ao desfrute de uma vida minimamente digna, justamente terem sido vitimados por episódios climáticos, poderão os mesmos pleitear em face do Estado a adoção de medidas prestacionais no sentido de suprir tais necessidades. E, diante da omissão estatal, poderão servir-se da via judicial para corrigir eventuais omissões provindas dos Poderes Executivo e Legislativo em lhes prestar o devido auxílio material. BIBLIOGRAFIA ACSELRAD, Henri; HERCULANO, Selene; PÁDUA, José Augusto (Orgs.). Justiça ambiental e cidadania. 2. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004. ALEXY, Robert. In: VALDÉS, Ernesto Garzón (Trad.). Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos e Constitucionales, 2001. 344

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2 No início de fevereiro de 2007, foi divulgado o relatório de avaliação da saúde da atmosfera (AR4) feito pelo quadro de cientistas da ONU do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC), onde resultou comprovado que o aquecimento global é causado por atividades humanas, bem como que as temperaturas subirão de 1,8ºC a 4ºC até o final deste século. Jornal Folha de São Paulo, 03.02.2007. Reportagem de Marcelo Leite. Caderno Especial sobre Clima. 3 LOVELOCK, James. A vingança de Gaia. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2006, p. 24. 4 Nesse cenário de episódios climáticos extremos, deve-se registrar que, em 2004, as populações da região sul do Estado de Santa Catarina e da região nordeste do Estado do Rio Grande do Sul testemunharam o primeiro furacão – denominado de Catarina - registrado historicamente no Atlântico Sul. Os cientistas que participaram de encontro promovido pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais para debater o fenômeno natural em questão chegaram ao consenso no sentido de que o mesmo se tratava de um furacão na sua fase final – Categoria 2, de acordo com a escala Saffir-Simpson -, com rajadas de ventos de até 180 hm/h. O prejuízo causado pelo episódio climático foi estimado em 250 milhões de reais. 5 Sobre a perda da biodiversidade acarretada pelo aquecimento global, v. WILSON, Edward O. A criação: como salvar a vida na Terra. Tradução de Isa Mara Lando. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 134. 6 O Relatório de Desenvolvimento Humano 2007/2008 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento descreve que a atividade mais intensa das tempestades tropicais é uma das certezas resultantes das alterações climáticas, de modo que o aquecimento dos oceanos irá impulsionar eventos climáticos cada vez mais intensos (p. 101). Relatório de Desenvolvimento Humano 2007/2008 do Programa das Nações Unidas. PNUD. Disponível em: <http://www.pnud.org.br/rdh/>. Acesso em: 13 mar. 2009. 7 No Estado de Santa Catarina, onde as catástrofes ambientais alcançaram maiores proporções, registraram-se, em decorrência das chuvas ocorridas em dezembro de 2008, 135 mortes e 78 mil pessoas desabrigadas. “Reportagem sobre chuvas em Santa Catarina”. In: Folha Online. Disponível em: http://www1.folha.uol. com.br/folha/especial/2008/chuvaemsantacatarina/. Acesso em: 13 de março de 2009. 8 Alicerçado em tal premissa socioambiental, o Relatório de Desenvolvimento Humano 2007/2008 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento refere que “vivendo em habitações improvisadas situadas em encostas vulneráveis a inundações e deslizamentos de terra, os habitantes das zonas degradadas estão altamente expostos e vulneráveis aos impactos das alterações climáticas” (p. 102). E, mais adiante, destaca ainda, já com o olhar voltado à atuação estatal, que “as políticas públicas podem melhorar a resiliência em muitas zonas, desde o controlo de inundações à protecção infraestrutural contra os deslizamentos de terra e à provisão de direitos formais de habitação aos habitantes de áreas urbanas degradadas” (p. 102). Relatório de Desenvolvimento Humano 2007/2008 do Programa das Nações Unidas. PNUD. Disponível em: <http://www.pnud.org.br/rdh/>. Acesso em: 13 mar. 2009. 9 A corroborar tal entendimento, WINTER destaca os três pilares - econômico, social e ecológico - de sustentação do conceito de desenvolvimento sustentável. WINTER, Gerd. Desenvolvimento sustentável, OGM e responsabilidade civil na União Européia. Campinas: Millennium Editora, 2009, p. 2 e ss. 10 Nessa perspectiva, merece registro a recente elaboração, no âmbito dos três entes federativos, de legislação voltada especificamente à questão das mudanças climáticas, sendo a mais significativa delas a Lei que instituiu a Política Nacional sobre Mudança do Clima (Lei 12.187, de 29 de dezembro de 2009). Também se destacam as seguintes legislações estaduais e municipais: Política Estadual de Mudanças Climáticas do Estado de São Paulo (Lei 13.798, de 09 de novembro de 2009), Lei sobre Mudanças Climáticas, Conservação Ambiental e Desenvolvimento Sustentável do Estado do Amazonas (Lei 3.135, de 05 de junho de 2007), Política Estadual sobre Mudanças Climáticas e Desenvolvimento Sustentável do Estado de Santa Catarina (Lei 14.829, de 11 de agosto de 2009), Política Estadual sobre Mudanças Climáticas do Estado de Goiás (Lei 16.497, de 10 de fevereiro de 2009), Política Estadual sobre Mudanças Climáticas, Conservação Ambiental e Desenvolvimento Sustentável do Estado de Tocantins (Lei 1.917, de 17 de abril de 2008), Política de Mudança do Clima do Município de São Paulo (Lei nº 14.933, de 05 de junho de 2009). 11 Vide a obra de DIAMOND, Jared. Collapse: how societies choose to fail or succeed. New York: Penguin Books, 2005. 12 BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad. Barcelona: Paidós, 2001, p. 40-41. 13 Nosso Futuro Comum/Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. 2.ed. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1991, p. 43. 14 À luz da mesma perspectiva, a Lei 6.938/81 (Arts. 1º a 4º) coloca como o principal objetivo da Política Nacional do Meio Ambiente “a compatibilização do desenvolvimento econômico-social com a preserva-

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ção da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico”, o que estabelece o necessário respeito à preservação ambiental para a composição do desenvolvimento econômico e social. 15 Conforme apontam ACSELRAD, HERCULANO e PÁDUA, o tema da justiça ambiental que indica a necessidade de trabalhar a questão do ambiente não apenas em termos de preservação, mas também de distribuição e justiça representa o marco conceitual necessário para aproximar em uma mesma dinâmica as lutas populares pelos direitos sociais e humanos e pela qualidade coletiva de vida e sustentabilidade ambiental”. ACSELRAD, Henri; HERCULANO, Selene; PÁDUA, José Augusto (Orgs.). Justiça ambiental e cidadania. 2.ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004, p. 16. 16 Também sobre a idéia de justiça ambiental e de um Estado de Justiça Ambiental, conferir a obra de MORATO LEITE, José Rubens; AYALA, Patryck de Araújo. Direito ambiental na sociedade de risco. São Paulo: Forense Universitária, 2002, p. 28-39. 17 CAVEDON, Fernanda de Salles; VIEIRA, Ricardo Stanziola; DIEHL, Francelise Pantoja. “As mudanças climáticas como uma questão de justiça ambiental: contribuições do direito da sustentabilidade para uma justiça climática”. In: BENJAMIN, Antonio Herman; LECEY, Eladio; CAPPELLI, Sílvia (Orgs.). Anais do 12º Congresso Internacional de Direito Ambiental. São Paulo: Imprensa Oficial, 2008, p. 756. 18 BOGARDI, Janos. “A era dos refugiados ambientais”. In: O Globo. Noticiário de 31 de dezembro de 2006. Publicação: 12/10/2005. Disponível em: <http://www.gabeira.com.br/noticias/noticias.asp?id=1958>. Acesso em: 09 mar. 2009. 19 BARROSO, Luís Roberto. Proteção do Meio Ambiente na Constituição Brasileira. Revista Trimestral de Direito Público, n. 2. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 59. 20 Como é o caso, por exemplo, das Constituições Portuguesa (1976) e Espanhola (1978). 21 Cfr., especialmente, a Declaração de Estocolmo das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano (1972), a Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992), a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (1992), a Convenção sobre Diversidade Biológica (1992) e a Declaração e Programa de Ação de Viena, promulgada na 2ª Conferência Mundial sobre Direitos Humanos (1993). 22 Quanto aos dispositivos constitucionais que relacionam a temática ambiental com outros temas e direitos fundamentais, pode-se destacar, de forma exemplificativa: arts. 7º, XXII, e 200, VIII, (direito do trabalho); art. 170, VI (ordem econômica e livre iniciativa); art. 186, II (direito de propriedade); art. 200, VIII (direito à saúde); art. 216, V (direitos culturais); art. 220 § 3º, II (comunicação social); art. 225, § 1º, VI (direito à educação); e art. 231, § 1º (direitos indígenas). 23 Registra-se que há inúmeras denominações para o “novo” modelo de Estado de

Direito, de feição também ecológica. Nesse sentido: Estado Constitucional Ecológico (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. “Estado Constitucional Ecológico e democracia sustentada”. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Direitos fundamentais sociais: estudos de direito constitucional, internacional e comparado. Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar, 2003, p. 493-508); Estado Pós-social (SARMENTO, Daniel. “Os direitos fundamentais nos paradigmas Liberal, Social e Pós-Social (Pós-modernidade constitucional?)”. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.). Crise e desafios da Constituição: perspectivas críticas da teoria e das práticas constitucionais brasileiras. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 375-414; e PEREIRA DA SILVA, Vasco. Verde Cor de Direito: lições de Direito do Ambiente. Coimbra: Almedina, 2002, p. 24); Estado de Bem-Estar Ambiental (PORTANOVA, Rogério. “Direitos humanos e meio ambiente: uma revolução de paradigma para o Século XXI”. In: BENJAMIN, Antônio Herman (Org.). Anais do 6º Congresso Internacional de Direito Ambiental - 10 anos da ECO-92: o Direito e o desenvolvimento sustentável. São Paulo: Instituto O Direito por um Planeta Verde/Imprensa Oficial, 2002, p. 681-694); Estado Ambiental de Direito (NUNES JUNIOR, Amandino Teixeira. “Estado ambiental de Direito”. In: Jus Navigandi, n. 589, fevereiro/2005. Disponível em: http://www1. jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=6340. Acesso em: 22 de fevereiro de 2005); Estado do Ambiente (HÄBERLE, Peter. “A dignidade humana como fundamento da

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comunidade estatal”. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Dimensões da dignidade: ensaios de filosofia do direito e direito constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 128); Estado de Direito Ambiental (MORATO LEITE, José Rubens. “Estado de Direito do Ambiente: uma difícil tarefa”. In: MORATO LEITE, José Rubens (Org.). Inovações em direito ambiental. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2000, p. 13-40); e Estado Socioambiental (FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do ambiente: a dimensão ecológica da dignidade humana no marco jurídico-constitucional do Estado Socioambiental de Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008).

24 PEREZ LUÑO, Antonio E. Los derechos fundamentales. 8.ed. Madrid: Editorial Tecnos, 2005, p. 214. 25 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. “O direito ao ambiente como direito subjetivo”. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estudos sobre direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 188. 26 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 12. 27 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Direitos humanos e meio ambiente: paralelo dos sistemas de proteção internacional. Porto Alegre: SAFE, 1993, p. 75. 28 GARCIA, Maria da Glória F. P. D. O lugar do direito na proteção do ambiente. Coimbra: Almedina, 2007, p. 481. 29 Sobre a idéia de dever discricionário (e não poder discricionário!) como “eixo metodológico” do Direito Público, é lapidar a lição de BANDEIRA DE MELLO: “é o dever que comanda toda a lógica do Direito Público. Assim, o dever assinalado pela lei, a finalidade nela estampada, propõe-se, para qualquer agente público, como um imã, como uma força atrativa inexorável do ponto de vista jurídico”. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 15. 30 BENJAMIN, Antônio Herman. Constitucionalização do ambiente e ecologização da Constituição brasileira. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MORATO LEITE, José Rubens (Orgs.). Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 75. 31 MILARÉ também destaca a idéia em torno de um “dever estatal geral de defesa e preservação do meio ambiente”, o qual seria fragmentado nos deveres específicos elencados no art. 225, §1º, da Constituição. MILARÉ, Edis. Direito do ambiente. 4.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 189 e ss. 32 Também no sentido de conferir ao dispositivo do art. 225, § 1º, natureza meramente exemplificativa, e não numerus clausus, v. BARROSO, “Proteção do meio ambiente...”, p. 68. 33 A respeito da consagração do modelo de Estado de Direito contemporâneo como um

Estado “guardião ou amigo” dos direitos fundamentais, v. VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. 2.ed. Coimbra: Almedina, 2001, p. 143.

34 É oportuno destacar que há divergência doutrinária a respeito da natureza da responsabilidade civil do Estado no tocante a condutas omissivas, defendendo alguns autores que tal responsabilidade seria subjetiva e outros no sentido de que tal seria objetiva. Diante de tal cenário, nos filiamos ao entendimento de FREITAS, o qual defende ter a responsabilidade estatal por omissão natureza objetiva. Para o autor, “a consagração, entre nós, da aplicabilidade direta e imediata dos direitos fundamentais (CF, art. 5º, § 1º) é um dos argumentos mais robustos contra a teoria segundo a qual não poderia o Estado ser objetivamente responsabilizado por omissões”. FREITAS, Juarez. “O Estado, a responsabilidade extracontratual e o princípio da proporcionalidade”. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Jurisdição e direitos fundamentais. Vol. I. Porto Alegre: Livraria do Advogado/AJURIS, 2005, p. 187. 35 FREITAS, “O Estado, a responsabilidade...”, p. 179. 36 BENJAMIN, Antonio Herman. Responsabilidade civil pelo dano ambiental. In: Revista de Direito Ambiental, n. 9. São Paulo: Revista dos Tribunais, Jan-Mar, 1998, p. 51. 37 Ibid., p. 39. 38 No sentido de reforçar tal compreensão, o art. 37, § 6º, da Constituição Federal, disciplina a matéria no sentido de que “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”. R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.322-354, jan./dez. 2011

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39 MILARÉ, op. cit., p. 909. 40 Conforme a lição de LEME MACHADO, “o Direito Ambiental engloba as duas funções da responsabilidade objetiva: a função preventiva – procurando, por meios eficazes, evitar o dano – e a função reparadora – tentando reconstituir e/ou indenizar os prejuízos ocorridos. Não é social e ecologicamente adequado deixar-se de valorizar a responsabilidade preventiva, mesmo porque há danos ambientais irreversíveis”. LEME MACHADO, Paulo Afonso. Direito ambiental brasileiro. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 351. 41 FREITAS, op. cit., p. 193. 42 A respeito da importância do princípio da proporcionalidade nesta dupla via de proibição de exceções e de proibição de proteção insuficiente ou deficiente, v., no Brasil, especialmente SARLET, Ingo Wolfgang. “Constituição e proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre proibição de excesso e proibição de insuficiência”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 47, mar./abr. 2004, p. 60-122; e STRECK, Lênio Luiz. A dupla face do princípio da proporcionalidade e o cabimento de mandado de segurança em matéria criminal: superando o ideário liberal-individualista-clássico. Revista do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, n. 53, mai./set. 2004, p. 223-251. No campo do direito ambiental, ver FREITAS, Juarez. “Princípio da precaução: vedação de excesso e de inoperância”. In: Separata Especial de Direito Ambiental da Revista Interesse Público, n. 35, 2006, p. 33-48. 43 MORATO LEITE, José Rubens. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 207. 44 De acordo com tal entendimento, v. MILARÉ, “Direito do ambiente...”, p. 906. STEIGLEDER, por sua vez, adota entendimento intermediário entre a teoria do risco integral – que não admite as excludentes - e a teoria do risco criado – que admite as excludentes -, no sentido de admitir a força maior e o fato de terceiro como causas excludentes da responsabilidade, já que, como destaca, consistiriam em fatos externos, imprevisíveis e irresistíveis, nada tendo a ver com os riscos intrínsecos ao estabelecimento ou atividade. STEIGLEDER, Annelise Monteiro. Responsabilidade civil ambiental: as dimensões do dano ambiental no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 212. O mesmo entendimento é compartilhado por MORATO LEITE, o qual conclui que a responsabilidade somente será exonerada quando: a) o risco não foi criado; b) o dano não existiu; c) o dano não guarda relação de causalidade com aquele que criou o risco. MORATO LEITE, “Dano ambiental...”, p. 208-209. 45 BENJAMIN, Antonio Herman. Responsabilidade civil pelo dano ambiental. Revista de Direito Ambiental, n. 9. São Paulo: Revista dos Tribunais, jan./mar. 1998, p. 19. 46 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 176. 47 STEIGLEDER, Annelise Monteiro. A imputação da responsabilidade civil por danos ambientais associados às mudanças climáticas. Planeta Verde. Disponível em: <http://www.planetaverde.org/mudancasclimaticas/index.php?ling=por&cont=artigos>. Acesso em: 04 abr. 2010. 48 Conforme pontuam MORATO LEITE e CARVALHO a respeito da teoria das probabilidades, “a partir da tensão entre os enfoques científico e jurídico, a causalidade deve restar comprovada quando os elementos apresentados levam a ‘um grau suficiente de probabilidade’, a uma ‘alta probabilidade’, ou, ainda, quando levam a uma probabilidade ‘próxima da certeza’. Sensível à complexidade e às incertezas científicas, esta teoria estabelece que o legitimado ativo não estará obrigado a demonstrar essa relação de causa e conseqüência com exatidão científica. A configuração do nexo causal se dará sempre que o juiz obter a convicção de que existe uma ‘probabilidade determinante’ ou ‘considerável”. MORATO LEITE, José Rubens; CARVALHO, Délton Winter de. Nexo de causalidade na responsabilidade civil por danos ambientais. Revista de Direito Ambiental, São Paulo, Revista dos Tribunais, n. 47, jul./set. 2007, p. 89. 49 FREITAS, op. cit., p. 180. 50 Em sintonia com tal entendimento, MILARÉ assevera que “afastando-se da imposição legal de agir, ou agindo deficientemente, deve o Estado responder por sua incúria, negligência ou deficiência, que traduzem ilícito ensejador do dano não evitado que, por direito, deveria sê-lo”. MILARÉ, “Direito do ambiente...”, p. 909. 51 Sobre a atuação do Ministério Público no enfrentamento às mudanças climáticas, v. CAPPELLI, Sílvia. Reflexões sobre o papel do Ministério Público frente à mudança climática: considerações sobre a recuperação das áreas de preservação permanente e de reserva legal. Planeta Verde. Disponível em: <http:// www.planetaverde.org/mudancasclimaticas/index.php?ling=por&cont=artigos>. Acesso em: 04 abr. 2010. 52 Como exemplo de atuação da Defensoria Pública na tutela do ambiente, registra-se a recente ação civil pública interposta contra a expansão da monocultura de eucaliptos no Município de São Luiz do Paraitinga, no Vale do Paraíba. Em Agravo de Instrumento (Proc. 759.170.5/3-00), foi proferida decisão pelo Des. Samuel Júnior, da 1ª Câmara de Direito Ambiental, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo,

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que suspendeu novos plantios e replantios de eucalipto na área do referido Município até que fossem realizados estudo de impacto ambiental e relatório de impacto ambiental. 53 Sobre o conceito de mínimo existencial ecológico ou socioambiental, v. SARLET, Ingo W.; FENSTERSEIFER, Tiago. Estado Socioambiental e mínimo existencial (ecológico?): algumas aproximações. In: SARLET, Ingo W. (Org.). Estado Socioambiental e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 11-38. 54 HÄBERLE, Peter. A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Dimensões da dignidade: ensaios de filosofia do direito e direito constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 130. 55 MOLINARO, Carlos Alberto. Direito ambiental: proibição de retrocesso. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 113. Sobre o tema do mínimo existencial ecológico, v. o último tópico da obra FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do ambiente: a dimensão ecológica da dignidade humana no merco jurídico-constitucional do Estado Socioambiental de Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. 56 HÄBERLE, op. cit., p. 138. 57 A corroborar com tal idéia, a comparação feita por TORRES entre a garantia constitucional do mínimo existencial e o estado de necessidade, tanto conceitualmente quanto em face das suas conseqüências jurídicas, uma vez que a própria sobrevivência do indivíduo, por vezes, estará em jogo em tais situações. TORRES, Ricardo Lobo Torres. Tratado de direito constitucional, financeiro e tributário, v. 2, Valores e princípios constitucionais tributários. Rio de Janeiro/São Paulo/Recife, 2005., p. 144 e ss. 58 SARLET, Ingo Wolfgang. “Direitos fundamentais sociais, ‘mínimo existencial’ e direito privado: breves notas sobre alguns aspectos da possível eficácia dos direitos sociais nas relações entre particulares”. In: GALDINO, Flávio; SARMENTO, Daniel (Orgs.). Direitos fundamentais: estudos em homenagem a Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 572. 59 A Organização Mundial da Saúde estabelece como parâmetro para determinar uma vida saudável “um completo bem-estar físico, mental e social” (apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 5.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007., p. 62, nota 129), o que coloca indiretamente a qualidade ambiental como elemento fundamental para o “completo bem-estar” caracterizador de uma vida saudável. Seguindo tal orientação, a Lei n. 8.080/90, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes, regulamentando o dispositivo constitucional, dispõe sobre o direito à saúde através da garantia a condições de bem-estar físico, mental e social (art. 3º, § Único), bem como registra o meio ambiente como fator determinante e condicionante à saúde (art. 3º, caput). 60 BIRNIE, Patrícia; BOYLE, Alan. International law and the environment. 2.ed. Oxford/New York: Oxford University Press, p. 255. 61 Com efeito, PETRELLA registra que a saúde humana está intimamente ligada ao “acesso básico e seguro à água”, tendo em conta o fato de que os problemas relacionados com a quantidade ou a qualidade da água à base de 85% das doenças humanas nos países pobres. PETRELLA, Ricardo. O Manifesto da Água: argumentos para um contrato mundial. Petrópolis/RJ: Vozes, 2002, p. 88. 62 SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. 4.ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 26-27. 63 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos e Constitucionales, 2001, p. 499. 64 O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul aponta com clareza solar para a configuração de um núcleo protetivo mínimo comum entre os direitos sociais (no caso em questão, mais especificamente o direito à saúde) e a proteção do ambiente, em vista, é claro, como registra o julgado, da tutela da dignidade humana. Mesmo sem que o julgador tenha apontado formalmente para o conceito de mínimo existencial ecológico, materialmente ele está consubstanciado na decisão. E, em vista de tal situação, há a obrigatoriedade de tutela por parte do Estado, afastando tal situação violadora de direitos fundamentais, contra o que a cláusula da reserva do possível, em vista de previsão orçamentária e condições financeiras do ente público, não pode fazer frente. “DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LOTEAMENTO IRREGULAR. PARQUE PINHEIRO MACHADO. REDE DE ESGOTO. RESPONSABILIDADE. O dever de garantir infra-estrutura digna aos moradores do loteamento Parque Pinheiro Machado é do Município de Santa Maria, pois deixou de providenciar a rede de esgoto cloacal no local, circunstância que afetou o meio ambiente, comprometeu a saúde pública e violou a dignidade da pessoa humana. Implantação da rede de esgoto e recuperação ambiental corretamente impostas ao apelante, que teve prazo razoável – dois anos – para a execução da obra. Questões orçamentárias que R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.322-354, jan./dez. 2011

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não podem servir para eximir o Município de tarefa tão essencial à dignidade de seus habitantes. Prazo para conclusão da obra e fixação de multa bem dimensionados na origem. Precedentes desta Corte. Apelação improvida” (TJRS, Ap. Cível 70011759842, 3ª Câm. Cível. Rel. Des. Nelson Antônio Monteiro Pacheco, julgado em 01.12.2005). Sobre o tema, segue decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: “Ação civil pública. Rede de esgoto local a lançar efluentes em cursos d’água sem prévio tratamento. Ofensa ao direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (Constituição Federal, artigo 225, ‘caput’). Infração ao disposto na Constituição Estadual (artigo 208). Alegada ofensa à discricionariedade da Administração sem força para afastar a intervenção do Poder Judiciário, uma vez provocado (Constituição Federal, artigo 5º, n. XXXV). Condenação do Município a providenciar estação de tratamento mantida. Prazo considerado razoável, sobretudo ante desprezo da Administração para com longo tempo com que busca se subtrair ao cumprimento de um dever. Apelação não acolhida” (TJSP, Apel. Cível 363.851.5/0, Seção de Direito Público, Câmara Especial de Mio Ambiente, Rel. Des. José Geraldo de Jacobina Rabello, julgado em 12.07.2007). 65 Nesse ponto, merece registro a “denúncia” feita por KRELL ao tratar do controle judicial de omissões administrativas na área do saneamento ambiental, no sentido de que, “especialmente na área do saneamento básico, o desempenho do Poder Público tem sido insuficiente, o que se deve aos altos custos das obras e a sua baixa visibilidade política”. KRELL, Andréas J. Discricionariedade administrativa e proteção ambiental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 81. 66 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 371. 67 SARLET, op. cit., p. 372. 68 Sobre a atuação do Poder Judiciário em sede de tutela do ambiente, cfr. SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. O papel do Poder Judiciário brasileiro na tutela e efetivação dos direitos e deveres socioambientais. Revista de Direito Ambiental, São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 52, out./dez. 2008, p. 73-100.

STATE RESPONSIBILITY FOR DAMAGE TO PERSONS AFFECTED BY ENVIRONMENTAL DISASTERS DUE TO CLIMATE CHANGE: A N A N A LY S I S O F S TAT E S ’ D U T I E S O F ENVIRONMENTAL PROTECTION AND THE PROHIBITION OF FAILING TO PROTECT THE FUNDAMENTAL RIGHT TO THE ENVIRONMENT ABSTRACT The present study analyzes the (objective) liability of the State for damages caused to individuals and social groups due to extreme weather events resulting from climate change, considering the related socio-economic aspects and the negligent or insufficient action of State authorities regarding the duties of environmental protection that are imposed by the Constitution of 1988. Therefore, it is demonstrated that the duty of the Brazilian State is to ensure to said individuals all necessary care and material assistance, including fundamental material conditions of well-being (individual, social and ecological), which must be granted regardless of the State having been held responsible for the damage. Keywords: Climate Change. Strict liability of the State. Duties of States on environmental protection. 354

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Pesca Artesanal e Gênero: Políticas Públicas para o Reconhecimento Jurídico do Trabalho da Mulher Pescadora no Litoral de Santa Catarina – Brasil Vera Lúcia da Silva1 Olga Maria Boschi de Aguiar2 Introdução. 1 Pesca Artesanal: Uma Leitura Política de um Conceito Jurídico. 2 A Mulher na Pesca Artesanal Desenvolvida no Litoral de Santa Catarina: Importância Como Força de Trabalho e Possibilidade de Reprodução Cultural. 3 O Reconhecimento Jurídico do Trabalho da Mulher No Brasil E O Atraso Em Relação Ao Trabalho Da Pescadora. 4 Políticas Públicas Sobre O Setor Pesqueiro Adotadas No Brasil: Considerações Finais Sobre A Condição Da Mulher Pescadora. Referências.

RESUMO Santa Catarina localiza-se na região Sul do Brasil, tendo fronteira ao Leste com o Oceano Atlântico. Nessa região litorânea, uma das principais fontes de rendimentos da população é vinculada à atividade pesqueira, realizada por meio de pequenas embarcações e em sistema de economia familiar. Apesar da relevância do trabalho da mulher na pesca artesanal, esta não é considerada profissional da pesca. Isso porque tal modalidade de pesca é uma atividade econômica tradicional, caracterizada pela desigualdade entre gêneros. O reconhecimento da mulher como profissional da pesca assegurará o acesso a benefícios trabalhistas e previdenciários, realizando preceitos constitucionais e de Direitos Humanos. Palavras-chave: Pesca artesanal. Gênero. Trabalho. *

Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e Mestre em Filosofia e Teoria do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professora de Sociologia do Direito na Universidade Federal de Santa Catarina. Membro do Grupo de Pesquisa “Direitos Sociais e Sistemas de Justiça” do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Endereço eletrônico: veralms@hotmail.com ** Doutora em Direito Social pela Universidad Nacional Autonoma de Mexico. Professora Associada da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Diretora do Centro de Ciências Jurídicas da UFSC. Coordenadora do Grupo de Pesquisa “Direitos Sociais e Sistemas de Justiça” do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Tem experiência na área de Direito do Trabalho, com ênfase em Direitos Sociais. Endereço eletrônico: olga@ccj.ufsc.br R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.355-385, jan./dez. 2011

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INTRODUÇÃO O objeto do presente trabalho é expor e investigar o reconhecimento jurídico de uma atividade laboral humana específica, fonte de condições objetivas e subjetivas de existência. Trata-se da pesca conhecida como artesanal. É caracterizada pelo trabalho pouco mecanizado, empregando como meio de realização apenas motores de pouca potência em pequenas embarcações (quando não apenas com remos e velas), contando, no mais, com a força e o empenho do corpo humano. Embora a indústria pesqueira tenha desenvolvido um arsenal tecnológico1, subsiste e afirma-se a pesca artesanal. Isso porque é atividade fonte geradora de renda de muitas famílias (mais de 600 mil pessoas, segundo dados do Ministério da Pesca e Aquicultura)2 e possibilita o desenvolvimento econômico autônomo, distante de um mercado de trabalho formal e urbano. Além desse caráter imediato de fonte de recursos econômicos, não é possível deixar de lado um outro motivo para a subsistência da pesca artesanal: a continuidade de uma atividade tradicional, que garante a identidade de muitas comunidades litorâneas e ribeirinhas. É também a pesca artesanal, então, além de fonte de renda, uma maneira de manutenção de vínculos humanos. É preciso ainda situar que a modalidade de pesca artesanal, objeto do presente trabalho, é a pesca marítima, realizada nas regiões litorâneas do Estado de Santa Catarina. Esse recorte é somente um cuidado provisório para a delimitação dos estudos, excluída liminarmente a análise de comunidades pesqueiras ribeirinhas. Faz-se necessário tal recorte do campo de trabalho por um motivo fundamental. A pesca artesanal é desenvolvida com características diversas a depender do local de sua realização. Isso porque o arsenal técnico é diferenciado para a pesca em rios e em mares. Dentre a pesca marítima há também diferentes técnicas, com o uso de diversas modalidades de equipamentos, ante a diversidade geográfica do extenso litoral brasileiro (aproximadamente 8.000 km). Portanto, o recorte geográfico faz-se necessário unicamente por razões pragmáticas. Entretanto, mesmo perante o recorte da pesca artesanal marítima, ainda é necessário especificar a análise. Isso porque, como se trata de uma atividade tradicional, em que o desenvolvimento técnico da realização do trabalho está intimamente vinculado com as características do meio ambiente, há grande variedade de técnicas utilizadas. Pretende-se, aqui, somente abordar as técnicas características do Estado de Santa Catarina. Estudar a realidade catarinense foi uma escolha, pois o desenvolvimento do presente trabalho ocorre na Capital do Estado (Florianópolis), onde está situada a Universidade Federal de Santa Catarina. Nesse momento da pesquisa, fez-se necessária a delimitação espacial da abordagem, privilegiando o estudo dos temas locais. Por outro lado, o recorte geográfico também fundamentou-se no fato de ser a pesca artesanal em Santa Catarina, relevante em termos de produção estadual de pescado. Conforme dados apresentados a seguir, verifica-se que 30% do pescado produzido no 356

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Estado provém da atividade artesanal (EPAGRI/2004). Por esses dois motivos elementares, a realidade abordada na presente pesquisa foi a da pesca artesanal no Estado de Santa Catarina. Este é localizado na região Sul do Brasil, com fronteiras com o Estado do Paraná (ao norte) e o Rio Grande do Sul (ao sul), o oceano Atlântico (ao leste) e a Argentina (a oeste). A costa oceânica tem cerca de 450 km, cuja colonização foi predominantemente efetuada por portugueses açorianos, que se situaram por toda a faixa litorânea no século XVIII. O objetivo em compreender a organização e o reconhecimento jurídico da pesca artesanal no Brasil e sua importância no Estado de Santa Catarina é compreender, ao fim, qual a posição da mulher no trabalho pesqueiro. Compreender essa estrutura auxilia a perceber as razões pelas quais as mulheres são envolvidas diretamente com a atividade pesqueira, mas não lhes é garantido o reconhecimento como profissional da pesca artesanal. O detalhe é que, de fato, as mulheres acabam participando do processo produtivo, desde a coleta do pescado no mar (mulheres embarcadas, como ocorre na região da Baía de Babitonga, em São Francisco do Sul) até o processamento do pescado, mediante a esviceração e retirada de escamas. Além desse papel, ainda as mulheres são envolvidas na fabricação e no conserto dos petrechos e os instrumentos de pesca (rendas, anzóis, espinhéis), viabilizando meios para a realização da pesca artesanal. Apesar da importância do trabalho da mulher no setor, esta não é reconhecida juridicamente na condição de profissional. Isso porque a legislação brasileira não tratou da própria condição de pescador artesanal. A regulamentação da atividade da pesca artesanal, que ocorreu em 2009, admitiu sua realização pelo sistema de economia familiar. Entretanto, não há previsão específica em relação às mulheres que já desempenharam até os dias atuais trabalhos pesqueiros. Além disso, a situação da mulher não foi diretamente considerada, vez que ainda depende, para o reconhecimento de sua condição profissional como pescadora, da condição profissional familiar (marido e pai). Assim, o problema da falta de reconhecimento do trabalho da mulher pescadora persiste, pois à mulher não é conferido o status de pescadora, mas de auxiliar do homem na atividade pesqueira. O problema é que, diante da falta de reconhecimento do trabalho da mulher na pesca artesanal, muitos direitos conquistados pelas mulheres em outras atividades laborais lhes são negados. Um claro exemplo é a concessão de auxílio doença e licença maternidade por parte da Previdência Social. Outro problema é a contagem do tempo para aposentadoria especial (da qual faz jus o pescador artesanal). Além disso, o seguro desemprego é um direito garantido a todos trabalhadores, mas que, pela condição auxiliar da mulher, ainda também não são estendidos à pescadora. Com a finalidade de esclarecer a problemática da mulher pescadora, o R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.355-385, jan./dez. 2011

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presente trabalho estruturou-se em três seções. A primeira delas traz o problema da definição legal de pesca artesanal no Brasil. Promove-se, portanto, a diferenciação da pesca artesanal em relação à pesca industrial e apresenta-se a motivação pela qual somente em 2009 houve uma incipiente regulamentação da atividade. Definida a pesca artesanal, promove-se a análise do desenvolvimento e realização dessa modalidade pesqueira em comunidades litorâneas de Santa Catarina. A descrição do cotidiano dessas comunidades destaca o papel do trabalho da mulher na realização e na perpetuação da prática laboral tradicional. Verificada a importância do trabalho da mulher, encerra-se com a perplexa conclusão de que ainda é negada à mulher a condição de profissional da pesca artesanal. Tal assombro diante da situação da mulher pescadora aumenta ao considerar-se que as conquistas de reconhecimento jurídico e de direitos por parte das mulheres no mercado de trabalho não atingiram a situação da pescadora. Como conclusão, o trabalho pugna pela implementação de políticas públicas de reconhecimento jurídico-legal da mulher profissional da pesca. A partir disso é que se pode garantir acesso a direitos sociais negados por uma discriminação de gênero. A abordagem promovida neste trabalho fundamentou-se em dados estatísticos publicados pelo Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA/BR) e em trabalhos acadêmicos recentemente produzidos em Universidades brasileiras. Deve-se a escassez de fontes bibliográficas sobre o tema do reconhecimento jurídico da pesca artesanal ao hiato legislativo de muitos anos. Por décadas, a legislação social – trabalhista e previdenciária – simplesmente ignorou a função da pesca artesanal. Trabalhos acadêmicos na área de economia e ciências sociais foram encontrados, voltados à pesca artesanal. São trabalhos recentes, cujo foco está na dimensão sócioeconômica da atividade pesqueira em determinadas comunidades. Entretanto, o enfoque jurídico sobre a matéria é ainda ausente. A regulamentação somente em 2009 da atividade pesqueira artesanal talvez seja um dos motivos para a ausência de estudos jurídicos sobre a matéria. Apesar de ser reconhecido pelo Governo Federal que, aproximadamente, 60% (sessenta por cento) do pescado nacional seja proveniente da atividade da pesca artesanal (Ministério da Pesca e Aquicultura – 2010), e portanto, da importância econômica da atividade, sua regulamentação é ainda incipente. Especialmente, se considerada a garantia social aos trabalhadores dessa tão importante quanto desgastante profissão. 1 PESCA ARTESANAL: UMA LEITURA POLÍTICA DE UM CONCEITO JURÍDICO 358

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A pesca artesanal por muito tempo permaneceu sem definição jurídica. Atualmente, a definição jurídica ainda não é precisa3. Isso porque é uma atividade desenvolvida em todo o litoral brasileiro, na sua extensão aproximada de 8.000 quilômetros. Além dos limites costeiros, a pesca dita artesanal também ocorre em águas lacustres e fluviais. Pela variedade de formas de pesca artesanal desenvolvida, o esforço de uma definição geral e detalhada parece ser tão complexa quanto inviável. Como a pesca artesanal é determinada pela relação do ser humano com o meio ambiente, há uma grande variabilidade de técnicas para execução da tarefa pesqueira. Em algumas regiões, a pesca é realizada somente por meio de pequenos botes movidos à vela ou por remos. Em outras regiões, percebe-se o convívio dos pequenos botes com embarcações movidas a motores de pequena potência (de 5 a 10 HP), comportando até dois pescadores (modalidade desenvolvida nas praias de Florianópolis4 e de Bombinhas5). Há locais em que a pesca artesanal pode envolver embarcações com motores de até 18HP, contando com o trabalho de até quatro homens (basicamente encontra-se tal modalidade de pescaria na Lagoa dos Patos, no Estado do Rio Grande do Sul6). Nessa última modalidade, o proprietário da embarcação divide a produção e a chefia dos trabalhos com os demais. Fica, então, descaracterizada qualquer relação de emprego formal, pois nenhum dos tripulantes é assalariado ou comandado por outro. Ocorre, sim, uma série de acordos locais no momento da pescaria, quando se determinam quem coordenará a ação pesqueira. Ainda há localidades em que a pesca artesanal ocorre em manguezais, sem nem mesmo a estrutura de embarcações (localidades como Itapissuma7, no Nordeste brasileiro). Por meio dessa simples e brevíssima análise, é possível constatar a dificuldade na definição da modalidade pesca artesanal. Sabe-se, entretanto, que é uma atividade profissional de caráter tradicional, em que o conhecimento técnico é desenvolvido pelo contato do pescador com o meio ambiente.8 E mais ainda, tal conhecimento é repassado entre gerações de uma mesma família, pela oralidade9. Por isso, a dificuldade na definição jurídica unívoca da categoria pesca artesanal. Além da dificuldade conceitual em virtude das diversas maneiras de realização da pesca artesanal e da prática ser fundamentalmente tradicional, é necessário considerar que também é variável o limite marítimo em relação à distância da costa litorânea em que é realizada a pesca artesanal. Alguns trabalhos na área referenciam como limite a “plataforma continental rasa”,10 o que não explica muito em distância marítima. No mais, a própria definição jurídica que se tem desde 2009 da pesca artesanal é bastante dúbia. Isso porque esta é definida como atividade desenvolvida por meio de embarcações de pequeno porte. Inicialmente, cumpre lembrar que nem toda forma de pesca artesanal utiliza embarcações. E mesmo que a base essencial da pesca fosse a embarcação, ainda assim há que se considerar que não há um consenso a respeito do limite entre embarcações de pequeno e médio porte. R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.355-385, jan./dez. 2011

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Talvez a ausência de definição técnica e jurídica sobre o que seja a pesca artesanal deva-se à sua inexpressividade em termos produtivos. Esse argumento poderia ser refinado, constatando-se os poucos estudos realizados no Brasil a respeito da prática da pesca artesanal. Entretanto, tal conclusão é completamente falsa. E seu erro verifica-se em dois níveis, ao menos. O primeiro deles é um equívoco quanto à importância econômica da pesca artesanal. Além de seu produto ser voltado para a alimentação imediata da família do pescador, serve também como fonte importante de meios econômicos para toda a comunidade envolvida. Ao lado da importância local de sustento das comunidades, dados oficiais da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (EPAGRI) asseveram que, em 2004, o número de pescadores artesanais era de aproximadamente 25.000 (vinte e cinco mil) pessoas no Estado de Santa Catarina. A atividade desse grupo representava a produção de 30% (trinta por cento) da produção de pescado no mesmo Estado.11 Outro nível de falsidade da conclusão sobre a inexpressividade da pesca artesanal verifica-se pela importância da continuidade de uma atividade tradicional, característica de certas comunidades que se identificam como pesqueiras. É a pesca artesanal, além de fonte de condições obejtivas de subsistência, uma maneira de manutenção de vínculos humanos. É através do conhecimento do mar, passado geração a geração, que grupos familiares ganham identidade e afinidade – os pescadores. Portanto, a pesca artesanal oferece para as comunidades litorâneas brasileiras mais que condições objetivas de vida. Dada pela interação do homem com o meio ambiente natural, surge também uma subjetividade, variável regionalmente.12 Apesar da importância econômico-social da atividade, a pesca artesanal não foi regulamentada juridicamente. A regulamentação jurídica da atividade pesqueira, válida até 2009 foi o Código de Pesca , de 1967. Tal Código trazia simplesmente definições genéricas quanto à figura do pescador. A pesca artesanal simplesmente foi definida como ramo da pesca profissional. O Código de Pesca de 196713 definia a atividade de pesca conforme o agente que a realizava. Havia três grandes grupos de agentes: o pescador profissional, o pescador amador e o cientista. Ao amador somente era autorizada a utilização de embarcações para recreio, para a prática de pescaria recreativa14, sem qualquer finalidade comercial. Aos cientistas15, igualmente a pesca não comercial é autorizada. A única categoria autorizada legalmente à pesca com intuito comercial é a do pescador profissional. Entre os pescadores profissionais, o Código de Pesca de 1967 não apresentava qualquer categorização. Apresentava unicamente a definição “pescador profissional”, como sendo “aquele que faz da pesca sua profissão e seu meio principal de vida”16. Isso porque a distinção entre as categorias de pescadores não constituía o principal foco do Código de Pesca. Essa afirmação é perceptível 360

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pelo próprio teor dos demais artigos do Código, cuja preocupação era a definição da atividade pesqueira para a concessão de benefícios às empresas pesqueiras, tal como isenção de impostos17. No mais, o Código de Pesca previa a necessidade da matrícula do pescador profissional em órgãos competentes. Essa matrícula distingue pescador profissional industrial e artesanal. Isso porque a inscrição do pescador industrial era efetivada perante a Capitania dos Portos18, mediante cursos de aprendizagem e realização de provas para a comprovação dos conhecimentos técnicos necessários. Entre pescadores profissionais industriais há divisão do trabalho: a tripulação é, em regra, composta por um mestre, um condutor, um contra-mestre, um cozinheiro e demais tripulantes. Tal subdivisão acarreta diferentes responsabilidades e níveis de remuneração. Para ocupar a posição de mestre pesqueiro e condutor é necessário, além da inscrição como pescador profissional, o assento comprovando a realização de cursos específicos junto à Capitania dos Portos. Ao exercício da função de pescador em embarcações pesqueiras de médio e grande porte, é necessário portar a Carteira de Inscrição e Registro (CIR), conferida pela Capitania dos Portos e reconhecida pela Diretoria de Portos e Costa (DPC) do Ministério da Marinha do Brasil. Portanto, o pescador profissional industrial, para exercer sua profissão, deve contar com a carteira profissional especial. A fiscalização do exercício regular da pesca, à época do Código de Pesca era realizada concomitantemente pela Capitania dos Portos e pela Superintendência do Desenvolvimento da Pesca (SUDEPE). Esta Superintendência foi criada em 1962 para gerenciar e estimular o desenvolvimento da atividade pesqueira no Brasil19. À SUDEPE competia a imposição de multas para empresas e trabalhadores que exerçam atividades pesqueiras em desconformidade com as determinações legais, mediante a ausência dos registros necessários. Ao pescador profissional dedicado à pesca industrial, alguns direitos são garantidos, como receber remuneração durante o período de vedação legal à pesca de determinadas espécies (conhecido como “defeso”)20, além da contagem do tempo para a aposentadoria obedecer a regras especiais21. Tais regras para aposentadoria especial são previstas não no Código de Pesca, mas no artigo 31 da Lei nº. 3.807, de 1960, abrangendo todos os trabalhadores em condições penosas e/ou insalubres22. Quanto ao recebimento de verbas durante o defeso, o pescador industrial obteve, a partir da Constituição de 1988, o direito a receber remuneração (salário-base da categoria) por parte da empresa empregadora, embora o pescador não estivesse trabalhando. Já o pescador comercial artesanal não tem o registro na mesma instituição, ou seja, sua matrícula não é conferida pelos órgãos do Ministério da Marinha. Isso porque o desenvolvimento de sua atividade não tem requisito de cursos técnicos. Ademais, a pesca realizada artesanalmente é característica de comunidades tradicionais, por meio de pequenas embarcações, sem autonomia para transitar em águas profundas. O registro dessas embarcações, bem como R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.355-385, jan./dez. 2011

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dos pescadores artesanais era, e ainda nos dias atuais é realizado por sessões denominadas Colônias de Pescadores23. Mas o registro do pescador artesanal não era obrigatório. Recentemente, as referidas Colônias foram reconhecidas como órgãos de classe, por meio da Lei federal n. 11.699, de 13 de junho de 2008. São de livre instituição pelos pescadores artesanais, por meio de assembléias para a confecção de seus estatutos, posteriormente registrados. A descentralização do registro das matrículas de pescador foi suplantada pela criação da Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca (SEAP) em 200324. O objetivo desta Secretaria é a organização da atividade pesqueira em território nacional. Entre suas atividades, promoveu a unificação das matrículas de embarcações e pescadores profissionais (industriais ou artesanais), por meio da concessão do Registro Geral de Pesca – agora obrigatório para qualquer modalidade de pescador. Por meio desse Registro é possível ao pescador comercial, tanto industrial como artesanal, comprovar atividade pesqueira e usufruir dos benefícios assegurados à sofrida categoria profissional – entre eles a aposentadoria em menor tempo de contribuição25 para a Previdência Social, seguro-desemprego26 nos períodos de defeso e benefício de auxílio doença e por acidente de trabalho27. Recentemente, o Congresso Nacional Brasileiro regulamentou por lei um conceito operacional e jurídico de pesca artesanal, objetivando o reconhecimento legal dessa atividade. Assim foi viabilizada a concessão de benefícios previdenciários como os anteriormente referenciados e descritos. A pesca artesanal foi inserida como modalidade de pesca comercial, “praticada por pescador profissional, de forma autônoma ou em regime de economia familiar”28. O pescador é a pessoa física, brasileira ou estrangeira, residente no Brasil, que conta com licenciamento de órgão público para a execução da atividade pesqueira. Portanto, para a realização da pesca artesanal, é necessário registro do pescador junto ao órgão competente – que, no caso, são as Colônias de Pescadores. Recentemente, todos os registros de pesca passaram a ser centralizados pela Secretaria Especial da Pesca e Aqüicultura – SEAP. Mas, de toda a forma, o atestado das Colônias de Pescadores comprovando a realização de atividade pesqueira é um dos requisitos para a concessão do referido Registro Geral de Pesca (embora também seja possível substituir a declaração referida por um atestado assinado por dois pescadores que já detenham Registro Geral de Pesca)29. Mesmo assim, está guardada a importância da declaração e da filiação do pescador à Colônia de Pescadores. As referidas Colônias são organizações de pescadores que surgiram desde 1808, quando foi criada a primeira Colônia de Pescadores na região nordeste do Brasil30. Eram entidades que regulavam o exercício da pesca em suas circunscrições. A regulação era exercida através do registro de pescadores e de embarcações. Surgiam da livre iniciativa dos pescadores, que se reuniam em 362

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Colônias para assegurar coletivamente os interesses da classe trabalhadora da pesca. Ocorre que, à época do Código de Pesca de 1967, as Colônias foram todas reorganizadas e algumas, inclusive, instaladas pelo Poder Executivo da União31. Tal medida representou forte intervenção estatal sobre o órgão de classe da categoria dos pescadores artesanais. Significa, portanto, que o governo brasileiro instalado durante o Regime Militar tomou a frente das organizações de classe dos pescadores. Assim, reivindicações da categoria eram contidas no próprio órgão representativo. Então há uma explicação política para o esquecimento da previsão de direitos sociais aos trabalhadores da pesca artesanal. E mais do que isso, percebe-se que não se tratou de mero esquecimento a falta de previsão legal da atividade pesqueira artesanal. Para finalizar a análise da definição jurídica de pesca artesanal, cabe ressaltar sua importância em três níveis. No primeiro, sendo a atividade regulamentada, há possibilidade de alçá-la à condição de profissão. Com isso, o trabalhador passa a ser reconhecido como profissional de pesca. E sendo assim, resguarda para si todos os direitos decorrentes das atividades laborais, essencialmente em relação aos benefícios previdenciários. Noutro nível, o reconhecimento jurídico da pesca artesanal é também importante para que os seus produtores aproveitem benefícios fiscais e creditícios, como ocorreu no setor industrial. E, por último e não menos importante, como maneira de afirmar políticas públicas de acesso democrático aos direitos sociais, refutados pelos governos autoritários do Regime Militar brasileiro. É nesse sentido a construção do novo regramento do setor pesqueiro no Brasil. A recente lei 11.959, de 2009, revoga o Código de Pesca de 1967. A nova lei justamente afirma a pesca artesanal como atividade pesqueira comercial, desenvolvida em regime de economia familiar32. Esse regime caracteriza-se pelo desenvolvimento de atividade de subsistência, autonomamente desenvolvida ou pelo grupo familiar, sem intervenção de mão-de-obra assalariada33. Equiparou-se à atividade pesqueira, “os trabalhos de confecção e de reparos de artes e petrechos de pesca, os reparos realizados em embarcações de pequeno porte e o processamento do produto da pesca artesanal.34”. Por essa previsão, a definição jurídica da pesca artesanal buscou considerar como pescador tanto o sujeito embarcado, como o produtor de petrechos de pesca (equipamentos manufaturados como redes e espinhéis35, por exemplo). Mas o próprio texto legal determina que tal equiparação somente é considerada para os “efeitos” da própria lei. Então, o alcance da equiparação dessas atividades à pesca artesanal não atinge a legislação previdenciária e trabalhista. Ora, a grande questão passa a ser que, pela lei, os trabalhos de produção de petrechos e processamento de pescado somente serão considerados pesca artesanal para as definições da própria lei – como para a concessão de crédito rural e financiamentos (benefícios que anteriormente não eram estendidos à pesca artesanal). Quanto à garantia e extensão dos direitos sociais dos pescadores artesanais aos “pescadores equiparados”, a problemática de ausência de tutela jurídica persiste. R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.355-385, jan./dez. 2011

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Com a definição jurídica de pesca artesanal, há um avanço na profissionalização dos pescadores. Entretanto, restam ainda dúvidas quanto ao reconhecimento jurídico das atividades pesqueiras desenvolvidas pelas mulheres – nas atividades ditas equiparadas somente para os fins da Lei n. 11.959, de 2009. Isso porque a legislação de pesca atual não esclareceu, novamente, o âmbito dos direitos sociais dos pescadores – e muito menos se as mulheres podem ser consideradas pescadoras profissionais para fins previdenciários e trabalhistas. 2 A MULHER NA PESCA ARTESANAL DESENVOLVIDA NO LITORAL DE SANTA CATARINA: IMPORTÂNCIA COMO FORÇA DE TRABALHO E POSSIBILIDADE DE REPRODUÇÃO CULTURAL. Segundo a definição legal da pesca artesanal, vigente desde 2009 no Brasil, a atividade pesqueira nesta modalidade pode ser realizada autonomamente ou pelo grupo familiar. Foi excluída da pesca artesanal qualquer possibilidade de vínculo empregatício. O que a lei previu foram situações em que um grupo familiar é voltado para o desenvolvimento conjunto da atividade pesqueira, a fim de estender-lhes incentivos financeiros para a continuidade de suas práticas laborais. Embora a definição jurídica vigente de pesca artesanal seja de 2009, anteriormente, em 2003, a lei que regulamentou o benefício do seguro desemprego em épocas de defeso, já definia a pesca artesanal – lei n. 10.779, de 25 de novembro de 2003. E a definia da mesma forma que em 2009. Isso ignifica que, em 2003, passou-se a deter um conceito de pesca artesanal com validade jurídica. Sua aplicação imediata era para garantir aos pescadores que realizassem suas atividades em regime de economia familiar ou em parceria com outros o benefício seguro-desemprego. Assim, o enfoque da legislação de 2003 servia à garantia de um dos direitos previdenciários do trabalhador. Já a legislação posterior, embora não tenha revogado a de 2003, nada garante em termos de direitos sociais. A descrição das atividades consideradas como pesca artesanal é oferecida somente na lei de 2009. São consideradas atividade pesqueira todos os processos de pesca, exploração, explotação, cultivo e conservação, processamento, transporte, comercialização e pesquisa. Além dessas, são equiparadas à pesca artesanal a confecção e reparo de redes e petrechos de pesca, reparos em pequenas embarcações e o processamento do produto dessa modalidade pesqueira36. Entretanto, o alcance desse conceito está adstrito aos fins da lei, que justamente são de estímulo econômico para o desenvolvimento da pesca artesanal. Entre os estímulos oferecidos, está a concessão do crédito rural ao pescador artesanal. O crédito rural consiste na oferta de crédito, por meio de projetos registrados junto ao Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) do governo 364

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federal. A inscrição de projetos deve estar dentro das linhas oferecidas pelo programa de crédito rural. Nas várias linhas de financiamento, poderão ser liberados até R$ 120.000,00 (cento e vinte mil reais) pelo governo federal, a serem pagos pelo devedor no período de cinco anos, com juros muito abaixo dos valores de mercado. Tem por objetivo munir financeiramente famílias que tenham renda bruta familiar até R$ 6.000,00 (seis mil reais), sendo que 70% (setenta por cento) dos rendimentos provenham da agricultura ou da pesca realizada por meio familiar.37 A definição jurídica não detém qualquer sentido se não for compreendido o desenvolvimento da atividade pesqueira em regime familiar. E, para tanto, é necessário descrever a atividade diária das comunidades pesqueiras. Como o objeto do presente trabalho fixou-se unicamente em uma determinada região do extenso litoral brasileiro (litoral do Estado de Santa Catarina) a descrição ora promovida estará adstrita às formas de organização e de realização da pesca artesanal ali encontrada. A sistemática dos trabalhos pesqueiros desenvolvidos artesanalmente engloba corriqueiramente, nas regiões litorâneas catarinenses, o manejo de pequenas embarcações pesqueiras. A depender da região, essas embarcações são conduzidas e tripuladas por homens. E somente homens. Isso porque a construção social de certas comunidades passa pelo adágio popular de que mulher no barco é mau-agouro. Assim, o local da mulher não é na embarcação. Por isso, o papel da mulher acaba sendo construído dentro das casas e não na atividade de captura do pescado. Negando os maus presságios, na localidade conhecida como Baía de Babitonga, na costa interior da Ilha de São Francisco do Sul38, as mulheres encontram espaço para trabalhar inclusive na condução dos barcos pesqueiros. Além da condução dos barcos, as mulheres, independentemente da participação de seus maridos, promoviam a colocação e a retirada das redes de pesca. 39 Na referida localidade, tal prática pesqueira pelas mulheres foi determinada pela própria condição geográfica da região. A baía, com águas tranqüilas, permitiria o acesso das mulheres ao mar, sem grandes riscos. É o que se depreende dos próprios relatos das mulheres pescadoras da região40. Ocorre que, da década de 1980 em diante, tal forma de execução da pesca não vem se reproduzindo. Isso porque houve o desenvolvimento urbano do município de São Francisco do Sul, por intermédio da exploração turística. Dessa forma, muitas das mulheres não seguiram a pesca como forma de obtenção de rendimentos, mas sim a atividade vinculada à empresa turística41. Mesmo assim ainda são encontradas, embora em número muito menor, mulheres pescadoras. E fundamentalmente, entre as mulheres mais antigas da comunidade é possível encontrar relatos da atividade pesqueira por elas desenvolvida. 42

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Além da atividade de captura do pescado, as mulheres, em maior número, promovem o beneficiamento inicial do pescado nas praias. Quando o barco chega à beira a praia, é efetuada a descarga dos peixes. Muitas vezes, são utilizadas estruturas de vime ou bambu, chamadas samburá. Esses recipientes profundos são o meio pelo qual o pescador leva o pescado à praia. Já na praia, as mulheres aguardam a descarga do pescado. Ali, as mãos femininas, realizam a separação das espécies de pescado e a pesagem. Após esse procedimento, as mulheres são incumbidas da limpeza dos peixes, que engloba a retirada das escamas e a esvisceração. No caso da pesca do camarão, as mulheres passam-no para um tanque e iniciam a retirada de sua carapaça (ou, simplesmente, casca). Então, as mulheres são responsáveis por tornar o pescado livre de suas partes inutilizáveis ao consumo humano. E, dessa forma, acabam por agregar valor ao pescado, posto que o processamento aumenta o valor deste. Essa atividade ainda é extremamente comum entre as mulheres. Não apenas na Baía de Babitonga, mas também na Enseada de Porto Belo, nas praias de Bombinhas, nas praias de Governador Celso Ramos, nas praias do município de Florianópolis, em Palhoça (Praia da Pinheira) e nas praias de Garopaba43. Essas são as principais regiões pesqueiras identificadas no Estado de Santa Catarina, onde, aproximadamente, 25 mil pessoas têm ainda como atividade profissional e principal fonte de rendimentos a pesca artesanal. Além do beneficiamento inicial do pescado, às mulheres também compete, no mais das vezes, o reparo e a confecção de redes de pesca. As malhas, hoje tecidas em fios de nylon, são elaboradas de forma a prender o pescado dentro da rede, podendo, portanto, variar conforme a espécie de pescado a ser capturado. Esse trabalho é tradicionalmente do campo feminino na pesca – e tornaram-se famosas as mulheres “rendeiras”. Tanto assim é que inclusive a localidade da Lagoa da Conceição, em Florianópolis, teve por nome de “Rendeiras” sua principal via de acesso44. Todas as atividades desenvolvidas pelas mulheres agregam valor econômico, e, portanto, são relevantes fontes de sustento para suas famílias. Há o reconhecimento, nas localidades referidas, da importância do trabalho das mulheres, tanto por seus familiares como por parte das próprias mulheres.45 Além da importância imediata do trabalho realizado pela mulher na agregação de valor econômico, não se pode ignorar que essas mulheres são a base do sustento cultural da atividade pesqueira. Não só porque ensinam seus filhos e filhas a atividade pesqueira, preservando formas de trabalho tradicional, mas também porque lutam pela própria perpetuação da comunidade. Realizam-se como sujeitos políticos quando se envolvem na luta por melhores condições de vida e na resistência contra processos especulativos sobre as terras onde vivem.46 Apesar do importante papel que desempenham em suas comunidades, as mulheres pescadoras têm seu trabalho como extensão natural dos afazeres domésticos. Isso porque não são consideradas profissionais autônomas da pesca 366

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artesanal. Muitas delas não detêm qualquer registro do desenvolvimento de suas atividades. Não têm carteira de trabalho, não são aceitas como pescadoras. Por isso, são ignoradas pela previdência social e mesmo pela legislação de acidentes de trabalho. Tal situação impossibilita o acesso a serviços como creches ou a benefícios trabalhistas como licença maternidade. Essas mulheres não têm qualquer estímulo a permanecerem na atividade pesqueira, preferindo atividades como empregadas domésticas e faxineiras.47 O completo esquecimento do trabalho da mulher pescadora leva à desagregação de toda a pesca artesanal. Ora, a relação da mulher com o ambiente da pesca artesanal é também repassar os conhecimentos tradicionais às novas gerações. Com o desaparecimento da figura da mulher pescadora, o que se perde é mais do que força de trabalho: perde-se a identidade cultural das comunidades pesqueiras e, ocorre, a dissolução das próprias comunidades. Entretanto, tal tendência é oposta às tentativas governamentais de estímulo à atividade pesqueira artesanal. O que ocorre é que, para a manutenção de comunidades pesqueiras, mais que incentivos econômicos, são necessárias políticas para a reprodução social do conhecimento típico à atividade pesqueira. A questão é que para a permanência da pesca artesanal nas comunidades onde esta ainda persiste como modo de produção, é preciso o repasse do conhecimento tradicional. Esta forma de conhecimento é adquirida pela relação das gerações anteriores com o meio ambiente. A mulher representa a fonte dessas informações para as novas gerações. Repassa-as por meio das lendas, do folclore, dos ensinamentos sobre o tempo e o mar e no desempenho das próprias tarefas do cotidiano48. Com seu afastamento do setor pesqueiro, ocorre o distanciamento das gerações em relação à atividade pesqueira, com a opção dos subempregos nas cidades. Assim, o que se antevê é justamente a falência da pesca artesanal, apesar de todos os incentivos econômicos por intermédio de empréstimos a baixas taxas de juros por parte do governo federal. O silêncio do poder público em relação ao direito das pescadoras é mais que uma injustiça. Determina a própria extinção de um modo de vida e de uma das atividades artesanais mais representativas em termos de produtividade. São aproximadamente 25 mil pessoas somente no litoral catarinense envolvidas diretamente com a pesca artesanal, produzindo, anualmente cerca de 30% do pescado consumido no Estado, como já visto anteriormente. O desaparecimento das comunidades pescadoras acarreta não apenas a migração de grande contingente para as cidades, a ocuparem subempregos. Tem também por consequência o afastamento do pescador do mar. Com isso, o ganho é necessariamente de ramos da especulação imobiliária, que pretendem a aquisição das terras próximas ao mar para a construção de grandes empreendimentos. Tal situação já é realidade em muitas localidades da cidade de Florianópolis, como as praias de Jurerê e Brava. Então, a falta de reconhecimento jurídico do trabalho da mulher apresenta R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.355-385, jan./dez. 2011

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consequências gravíssimas em três níveis. O primeiro é o tratamento oferecido à mulher pescadora, completamente ignorada pela legislação brasileira e, portanto, sem quaisquer garantias trabalhistas e previdenciárias. A desigualdade ocorre tanto em relação ao homens dedicados à pesca artesanal, como em relação às próprias mulheres inseridas no mercado de trabalho urbano. O segundo nível de consequências é justamente a gradativa diminuição da mão-de-obra pesqueira, até que tal atividade passe a ser somente um atrativo turístico e não mais uma profissão autônoma. E, por último, a expulsão de comunidades pescadoras para as cidades, com perda da qualidade de vida, de identidade de grupo e com a ocupação exploratória das praias com empreendimentos turísticos. 3 O RECONHECIMENTO JURÍDICO DO TRABALHO DA MULHER NO BRASIL E O ATRASO EM RELAÇÃO AO TRABALHO DA PESCADORA. Embora a história de submissão da mulher seja ainda possível de ser recontada por maneiras diversas, aqui será priorizado o enfoque jurídico. E, no campo das instituições jurídicas, mesmo com o advento da República, em 15 de novembro 1989, a posição da mulher era ainda a mesma desde a época da colonização do Brasil, iniciada em 1530. Isso porque mesmo o republicanismo representou a continuidade de um valor cultural colonial – da inferioridade da mulher. A mulher desse período ainda é propriedade do pai e, posteriormente, do marido. No caso de mulheres solteiras e independentes, a essas não era atribuída capacidade para gerenciar sua própria vida – necessitavam de curadores para realizarem negócios por si. A situação continua inalterada em 1916, ano da promulgação do Código Civil49. Tal código tem por finalidade regular a capacidade para a realização dos atos e dos negócios jurídicos. Pelo texto do referido código, as mulheres casadas eram consideradas relativamente incapazes para os atos da vida civil. Isso significa que, para a realização de qualquer forma de contrato, para qualquer disposição patrimonial, a mulher dependia da assistência de seu marido50. Quanto à mulher solteira, esta ainda era sujeita ao pátrio poder. Ou seja, quem geria o patrimônio dos filhos, enquanto solteiros, era o pai. Ocorre que as mulheres, por convenção social, as núpcias eram impostas cedo (por volta dos 15 anos de idade). Dessa maneira, a mulher passava diretamente do pátrio poder ao poder marital. Incomum era a situação de uma jovem solteira até completar seus 21 anos de idade, quando era considerada maior e capaz para a lei civil. Por isso, a mulher não tinha ainda conquistado sua autonomia. E mais, juridicamente, só lhe seria possível a autonomia se conseguisse suportar a pressão social e familiar, mantendo-se solteira até completar os 21 anos. Como o casamento, à época, era união indissolúvel, só rompida com a morte de um dos cônjuges (pois ainda não havia a previsão de separação ou divórcio na legislação) significa que a maioria 368

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das mulheres era condenada à relativa incapacidade pelo restante de suas vidas. Tal situação de total dependência da mulher em relação ao homem começa a ser rompida socialmente, no momento em que mulheres operárias oferecem sua força de trabalho nas cidades. Nas indústrias, a crescente necessidade de mão-de-obra faz incorporar nos postos de trabalho as mulheres. O movimento de industrialização e urbanização brasileiro ocorre fundamentalmente na década de 1920, em centros já urbanos como era a Capital da República, o Rio de Janeiro. Partindo para a análise legislativa, as mulheres brasileiras começam a conquistar a cidadania em 1932, oportunidade em que o Código Eleitoral provisório brasileiro previu a possibilidade do voto da mulher. Entretanto, o voto feminino era unicamente forma de manobra política. Isso porque somente as mulheres casadas, com a permissão do marido, viúvas e solteiras com renda própria poderiam votar. Com a renovação do Código do Eleitor, em 1934, as restrições deixaram de existir e somente em 1946, o voto passou a ser obrigatório para homens e mulheres. Para muitos, essa possibilidade do voto, oferecida sem restrições às mulheres em 1934, foi um marco para as conquistas sociais femininas no país. Entretanto, a possibilidade do voto não garantia às mulheres a autonomia na contratação, nem a liberdade para poder participar do mercado de trabalho. Essa liberdade só era conferida às operárias das fábricas51. Eis aí o nicho em que a mulher conquista seu espaço, muito mais pelo interesse de desenvolvimento econômico da indústria que por motivos de igualdade jurídica. Sobre igualdade jurídica, deve-se ainda asseverar que não havia qualquer segurança específica ao trabalho da mulher. As jornadas extenuantes de trabalho eram comuns a homens e mulheres. Entretanto, a remuneração do contingente feminino era bastante inferior. O grande argumento era a pouca especialização do trabalho da mulher. Excetuando-se, portanto, os salários, o tratamento dispensado à mulher era o mesmo em relação ao operário homem. A única regulamentação nacional de que se tem notícia à época foi o Decreto nº 21.364, de 1932, que limitou as jornadas de trabalho a 8 (oito) horas diárias. A primeira norma federal que tratou do trabalho da mulher foi o Regulamento do Departamento de Saúde Pública, estabelecido pelo decreto n. 16.300, de 21 de dezembro de 1926. Tratava da licença maternidade para a mulher operária. Era facultado à trabalhadora da indústria e do comércio afastar-se do serviço um mês antes e outros trinta dias após o parto. Era facultado também à trabalhadora o tempo para amamentação, muito embora o intervalo de tempo não fosse determinado legalmente. Previa também a construção de creches e salas de amamentação próximas ao local de trabalho.52 Mesmo assim, a desigualdade no mercado de trabalho persistia. Legalmente, para exercer atividade profissional, a mulher era ainda incapaz, dependendo da anuência de seu marido. Outro fator é que diante das normas protetivas, os empregadores começaram a evitar a mão-de-obra feminina. Como o gozo da licença maternidade e do R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.355-385, jan./dez. 2011

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período de amamentação eram facultativos, prática comum era comprometer a mulher, pelo próprio contrato de trabalho, a não gozar o tempo da licença. Com a criação da Organização Internacional do Trabalho (OIT) em 1919, o trabalho da mulher começou a ser tratado de forma a diminuir as desigualdades no mercado de trabalho. A convenção n.3 da OIT, de 1919, entrou em vigor em 1921. Determinava o período da licença maternidade: seis semanas anteriores e posteriores ao parto. Foram estipulados dois intervalos de trinta minutos dentro da jornada diária de trabalho para a amamentação. Garantia ainda que, durante o afastamento, a mãe receberia verba do poder público para seu sustento e de seu filho. A dispensa arbitrária durante o período de afastamento foi vedada. O Brasil ratificou a referida convenção em 1934, promulgando-a em 193553 (CALIL, 2007, p.19). Por sua vez, as trabalhadoras agrícolas só tiveram a garantia da licença maternidade no Brasil em 1956, quando foi ratificada a convenção n. 12 da OIT. A convenção n. 4 da OIT foi ratificada pelo Brasil em 1937 e promulgada no país. Proibia o trabalho noturno à mulher. Foi posteriormente denunciada54. Em 1932 por meio de decreto, foi reconhecida a igualdade jurídica do trabalho da mulher na indústria e no comércio em relação ao trabalho masculino, sendo vedada a diferença de remuneração para as mesmas atividades, em razão unicamente de gênero. O mesmo decreto proibiu o trabalho da mulher em subsolos, na mineração, em construções públicas, em atividades perigosas e insalubres. Regulamentou o direito à licença-maternidade 4 semanas antes e depois do parto e intervalos para a amamentação por seis meses após o parto. Quanto à trabalhadora rural, as garantias referidas não foram estendidas. Isso porque estavam, no mais das vezes, em uma relação não de emprego, mas de colonato. O proprietário rural contratava anualmente a família para cuidados com certas áreas de terra. Nesse contrato é que se inseria o trabalho da mulher no campo, que acaba por acumular tarefas domésticas com a lida no campo. Como as mulheres não eram contratadas diretamente, somente eram seus esposos, não lhes era reconhecido o trabalho no campo como atividade profissional. Era mero prolongamento do trabalho doméstico.55 Em 1934, com a nova Constituição brasileira, finalmente a disparidade salarial em razão de gênero foi proibida56. Entretanto, cabe destacar que tal vedação atingiu unicamente o trabalho da mulher nas cidades, ignorando a problemática do campo. Não se pode ignorar, porém, que foi a primeira Constituição brasileira a inserir a previsão do direito do trabalho57. A Constituição brasileira de 1937 ampliou o rol dos direitos trabalhistas, determinando maior intervenção do Estado na economia, fixando as bases do direito do trabalho. Fixou também a proteção ao trabalho da mulher como diretriz legislativa. O custo social das reformas foi que os sindicatos e organizações trabalhistas passaram a ser instrumentos do Estado, e as greves58 foram consideradas “recursos antissociais, nocivos ao trabalho e ao capital e incompatíveis com os interesses da produção nacional.”.59 As diretrizes constitucionais do direito do trabalho passaram a ser re370

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gulamentadas pelo Decreto Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, conhecido como Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Ainda vigente a referida Consolidação nos dias atuais, estabelece os parâmetros para relações individuais e coletivas de trabalho. Consiste na compilação de leis trabalhistas vigentes à época, estendendo sua validade para todas as relações de trabalho realizadas em território nacional60. Apesar da pretensão da CLT em regulamentar as relações de trabalho, é de se considerar que há outras leis posteriores a estabelecer diretrizes específicas para cada setor, como a lei nº. 5.859, de 1972, alterada em 2006, sobre o trabalho doméstico. Quanto ao trabalho da mulher, a CLT estabelece que serão aplicados os mesmos preceitos do trabalho masculino, com as exceções estabelecidas pela própria Consolidação61. E as exceções tratavam, justamente, de normas protetivas em relação ao trabalho da mulher. Compõem todo um capítulo da CLT. Era vedado, na redação original, o trabalho noturno à mulher, dispositivo somente revogado pela Lei nº 7.855, de 24.10.1989. Havia também a vedação à dispensa por justa causa em razão da gravidez. A licença maternidade era também prevista (seis semanas antes do parto até seis semanas depois). A previsão do estabelecimento de creches em vilas operárias, nas proximidades do local de trabalho da mulher também passou a constar da CLT. Posteriormente, com a Constituição de 1946, o direito de greve voltou a figurar entre os direitos do trabalhador. No mais, a proteção ao trabalho da mulher é praticamente repetida nos termos da Constituição de 1937. Com a Constituição de 1967, a situação permanece igual no tocante aos direitos trabalhistas da mulher. Até então, vê-se presente a ideologia protetiva do trabalho da mulher na legislação brasileira. A conotação de normas protetivas acarretava a discriminação da mulher no mercado de trabalho. Significa afirmar que a mulher não era considerada em igual patamar aos homens. As normas, por exemplo, que vedavam o trabalho noturno às mulheres foram vigentes até 1989. Igualmente, foram as normas que vedavam o trabalho além da jornada (ou horas-extras) pelas mulheres. Assim, ao invés de proteção à mulher, tem-se a desigualdade injustificada entre trabalhadores em razão do gênero. Por essas normas protetivas, por exemplo, continuavam as mulheres a não acessarem determinados cargos de emprego, pela exigência de horas-extras. Portanto, o que se pretendia proteger não era necessariamente a condição da mulher trabalhadora, mas uma estrutura patriarcal de sociedade62. Com a Constituição de 1988, o trabalho feminino passou a ser considerado não mais objeto de proteção, mas sim de promoção63. Normas que distinguiam o trabalho feminino do masculino, sem qualquer justificativa senão moral64, foram abolidas, como a vedação das horas-extras por mulheres e do trabalho noturno. A mudança de paradigma instaurada pela Constituição Federal de 1988 teve por base a determinação constitucional da igualdade entre homens e R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.355-385, jan./dez. 2011

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mulheres em deveres e direitos65. Se são considerados igualmente homens e mulheres, não é possível estabelecer normas que os diferencie, sem uma justificação pública e política (não moral). Uma justificação razoável é a ampliação do prazo da licença maternidade para 120 dias66. Assegurar esse período à mulher em razão do parto é algo razoável, posta a possibilidade de a mulher ter filhos. É algo que, ao menos legalmente, é uma escolha da mulher67 em ser mãe. E se assim for, é importante assegurar garantias mínimas à saudável gestação e ao sadio desenvolvimento da criança. Tratar igualmente homens e mulheres consiste não na igualdade formal, mas em perceber as diferenças entre os gêneros e tratá-los diferentemente naquilo em que efetivamente são distintos. Eis o caso da maternidade. Outras normas promocionais são encontradas na Constituição Federal de 1988. Entre elas, o destaque para o menor tempo de contribuição das mulheres em relação aos homens para a aposentadoria. Ocorre que, mais uma vez, há uma situação determinada que diferencia materialmente homens e mulheres: mais uma vez, a maternidade. Considera a norma o fato de que as mulheres, em virtude do afastamento necessário após a maternidade, têm uma vida produtiva não inferior, mas mais breve do que a do trabalhador. É nesse sentido que a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 201, assegura às mulheres 30 anos de contribuição, contra os 35 anos necessários aos homens. Mais ainda. É preciso destacar que o rol de direitos mínimos dos trabalhadores (homens e mulheres) alcança tanto as relações urbanas como rurais. A partir de 1988, a tentativa é justamente de unificar os trabalhadores, quaisquer que sejam seus trabalhos, em torno de direitos mínimos. Ocorre que, anteriormente, o trabalho rural era diferentemente considerado. Deve-se tal distinção à histórica organização do trabalho rural no Brasil, a partir de contratos de colonato e de parceria. Por muito tempo, o trabalhador rural não era considerado empregado do proprietário da terra. Isso porque recebia um valor anual, ou por safra, para cuidar de um lote de terras, plantar e realizar a colheita. Em troca do serviço, além do valor anual, o trabalhador colono tinha o direito de habitar a terra com sua família, e de cultivar uma área determinada para si (tanto para consumo próprio como para venda de excedentes). A situação dos “colonos” muda a partir do momento em que se reconhecem no campo novas formas de produção, advindas da nova configuração do setor agrícola. A idéia de fixar no Brasil patamares de produção agropecuária para exportação conduz à alteração das técnicas de exploração do campo. É nesse contexto que o Estado oferece subsídios à formação da agroindústria brasileira. Para gerir uma maior produtividade do setor agrícola, a forma colonato tornou-se imprópria. Isso porque muitas das terras eram destinadas à produção para subsistência, com pequenas lavouras de culturas variadas (arroz, feijão, pequenas criações de aves e porcos). A produtividade dessas lavouras era bastante pequena, tanto pelo seu objetivo, como pela ausência de recursos técnicos que 372

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elevassem os patamares de produção. Assim, a forma da relação de trabalho do campo (colonato) tornou-se imprópria para os objetivos políticos brasileiros. Tornou-se necessário, então, reconhecer a possibilidade de relações trabalhistas assalariadas no campo tal como na cidade. A grande questão é que o trabalho rural desenvolve-se de maneira diferenciada em relação ao trabalho urbano. Somente como exemplo, pode-se referenciar a situação da hora-extra. No trabalho urbano, a hora-extra é contabilizada a partir do momento em que seja superado o limite determinado pela lei como jornada de trabalho diária (no caso do Brasil, a Constituição Federal determina 8 horas diárias). Entre essas oito horas previstas, é necessário um intervalo mínimo para repouso e refeição de uma hora, não podendo exceder a duas horas. Entre as jornadas de trabalho, estabelece a CLT, que é necessário um intervalo de 11 horas para descanso. No campo, entretanto, é muito comum ultrapassar essas 8 horas diárias, ou mais ainda, o trabalho sem o respeito aos intervalos intra e entre-jornadas. Isso porque trabalha-se, muitas vezes, em virtude safras, o que obriga o trabalhador a horários e condições de trabalho distintas em relação ao trabalho urbano. Por isso, a legislação de 1943 (CLT) previu direitos distintos entre trabalhadores urbanos e rurais. Tanto assim é que, em 1973 surgiu nova regulamentação específica para o trabalhador rural. Nessa legislação, por exemplo, está prevista a dispensa quando o empregador remunerar as horas extras, por meio de acordo coletivo, em que os trabalhadores aceitem a compensação de horas68. Entretanto, todos os trabalhadores foram igualados pela Constituição Federal de 1988. Portanto, a medida de compensação de horas-extras não é mais admitida no ambiente rural. Em relação à Previdência e ao direito à aposentadoria, o trabalhador rural foi admitido, em 1991, como segurado especial. Tal significa que suas condições para a aposentadoria são diferentes dos trabalhadores urbanos (tempo de contribuição previdenciária menor), em virtude de suas condições especiais de trabalho. Outra séria questão é que, como tradicionalmente o contratado para o trabalho no campo é o homem, a mulher, foi e é considerada simples agregada ou auxiliar do homem e não profissional. Apesar de efetivamente lidar com os afazeres do campo, além das rotinas domésticas. Não são consideradas agricultoras. O reconhecimento da mulher campesina passa também pela sua equiparação não somente ao homem (como profissional), mas também ao reconhecimento dos mesmos direitos das trabalhadoras urbanas (como a licença maternidade, por exemplo). A questão problemática passou a ser a seguinte: se a Constituição Federal de 1988 igualou em direitos os trabalhadores urbanos e rurais, significa que a mulher trabalhadora rural tem direito também à licença maternidade. O grande problema é que a mulher raras vezes é contratada como trabalhadora rural. O contratado é seu marido, a quem “auxilia” nos trabalhos R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.355-385, jan./dez. 2011

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rurais. E assim, a dificuldade está em comprovar a situação da trabalhadora rural. Por esse motivo, o trabalho rural das mulheres não é reconhecido. Seguindo igual fundamento legal e igual dificuldade, estão as mulheres pescadoras. Os pescadores artesanais foram considerados, pela legislação previdenciária de 1991, equiparados aos trabalhadores rurais na condição de segurados especiais da Previdência Social69. O problema está dado em dois níveis. O primeiro, a falta de regulamentação específica que atenda à comunidades rurais e pesqueiras, a ponto de tornar possível o efetivo exercício dos direitos trabalhistas assegurados aos trabalhadores urbanos e demais direitos necessários ao desenvolvimento de sua atividade (como seguro-desemprego entre safras, por exemplo). O segundo nível problemático está justamente na questão feminina. A questão aqui é reconhecer as mulheres diretamente como profissionais de seus ramos de atividades, e não somente a seus maridos. Ou seja, o que se pretende é a previsão legal da mulher nos trabalhos rurais, e, neste trabalho, especificamente, a previsão jurídica da mulher pescadora. Causa espanto que tal medida ainda não tenha sido concretizada. Isso porque muitos foram os avanços da legislação trabalhista e previdenciária nos últimos anos no país, a fim de incrementar a conquista de direitos da mulher. Ou, melhor, na tentativa de tornar a legislação trabalhista adequada aos preceitos constitucionais, especialmente para a efetivação do conteúdo do caput do artigo 7º. da Constituição Federal de 1988. Ou seja, para garantir a igualdade entre os trabalhadores urbanos e rurais, sem quaisquer formas de discriminação. Um dos avanços recentemente verificados foi a alteração da Lei que regulamenta os empregados domésticos. Estes (incluídas as mulheres) são trabalhadores que prestam serviços de natureza contínua (não eventual, como a conhecida figura da diarista), de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial. É regido pela Lei n. 5.859/1972, regulamentada pelo Decreto 71885/1973, tendo seus direitos previstos na Constituição Federal de 1988, no parágrafo único do artigo 7º, bem como sua integração à Previdência Social. Recentemente, em 2006, nova Lei regulamentou e ampliou o rol de direitos dos trabalhadores domésticos. Isso porque a legislação de 1972 não garantia aos domésticos a condição de segurado obrigatório pela Previdência Social. Com isso, nem sempre os empregados nessa categoria faziam jus aos benefícios previdenciários como aposentadoria e benefícios de auxílio-doença ou reclusão. Somente em 1991 é que os domésticos ganham a condição de segurados obrigatórios. Com a Constituição Federal de 1988 é que os empregados domésticos tiveram assegurado direito a receber a gratificação natalina70, e as empregadas direito à licença maternidade, por 120 dias. A remuneração, durante a licença maternidade, fica ao encargo da Previdência Social, cabendo ao empregador apenas o recolhimento, em favor da Previdência Social, a alíquota de 12% sobre o salário da empregada, como forma de custeio. Outro direito assegurado apenas com a Constituição Federal de 1988 foi o aviso prévio de 30 dias e não apenas de 8, como na legislação 374

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anterior. Somente em 200671 pacificou-se o direito a gozar 30 dias corridos de férias a cada período aquisitivo de 12 meses, com o acréscimo salarial de 1/3, tal como o trabalhador urbano72. Outro direito assegurado às trabalhadoras domésticas foi a estabilidade da gestante. A empregada doméstica, estando grávida, poderia ser dispensada até mesmo sem justa causa pelo empregador. Com a alteração implementada em 2006, a empregada doméstica tem estabilidade no emprego desde a confirmação da gravidez até 5 meses depois do parto. Além disso, outra novidade recente do campo do trabalho doméstico foi a conquista do descanso em feriados civis e religiosos, até então inexistente essa previsão para os empregados domésticos. Com tanto avanço social em relação aos empregados domésticos, no caminho de unificar seus direitos aos dos trabalhadores urbanos, pouco se produziu em termos de reconhecimento jurídico do trabalho da mulher nos ambientes distantes das cidades. Nenhuma lei regulamentou a situação da mulher pescadora e seus direitos. Sabe-se unicamente que não serão admitidas discriminações entre trabalhadores. Entretanto, não há como assegurar o efetivo exercício dos direitos consagrados na Constituição Federal de 1988 sem a regulamentação desses direitos. Não há efetiva igualdade enquanto houver diferenças injustificadas entre mulheres e homens, e entre trabalhadoras rurais e urbanas. 4 POLÍTICAS PÚBLICAS SOBRE O SETOR PESQUEIRO ADOTADAS NO BRASIL: CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE A CONDIÇÃO DA MULHER PESCADORA. A legislação de pesca atualmente em vigor no Brasil – Lei n. 11.959, de 29 de junho de 2009, embora traga em seu texto a definição de pesca artesanal, não assegura direitos sociais aos pescadores. E muito menos direitos às mulheres envolvidas na pesca artesanal. Isso porque a definição de pesca artesanal serve exclusivamente aos fins da mesma lei. Ocorre que a referida lei trata somente de estímulos creditícios ao desenvolvimento da atividade pesqueira e, mais uma vez, ignora as necessidades do desenvolvimento de uma legislação social para o setor. A ausência de legislação que regulamente os direitos sociais dos pescadores, e que garanta o reconhecimento da mulher como pescadora (e não como auxiliar da família) leva à desigualdade entre o trabalho das mulheres. Com isso, ocorre desigual consideração do trabalho entre mulheres. Assim, tem-se que a ausência da legislação social sobre a atividade feminina na pesca artesanal leva a duas categorias de trabalhadoras: as que detêm direitos conferidos pela Constituição Federal e outras que simplesmente são ignoradas. Dentre estas, as mulheres pescadoras marcam presença. As pescadoras não são simplesmente mulheres de pescadores. São profissionais que executam tarefas diretamente relacionadas com a captura e com o beneficiamento do pescado. Sua atividade agrega valor econômico ao produto da R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.355-385, jan./dez. 2011

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pesca e contribui significativamente para a constituição do rendimento familiar. Além desse aspecto, as pescadoras são responsáveis pelo resguardo e transmissão das tradições relacionadas à pesca artesanal. O método de exploração dos mares, a condição ambiental, tudo isso é repassado às novas gerações por meio do conhecimento agregado pela mulher pescadora. A falta de reconhecimento e de garantia de direitos faz com que essas mulheres não mais executem as tarefas da pesca. Além disso, essas mulheres não mais repassam a forma tradicional de pesca às novas gerações, em virtude da ausência de garantias de direitos. O que ocorre é que as comunidades pesqueiras estão perdendo sua relevância cultural para os mais jovens, que passam a se enquadrar nos subempregos urbanos. Por mais estímulo creditício que receba a pesca artesanal, sem o reconhecimento jurídico dos direitos da mulher pescadora, a atividade certamente encontrará limites de reprodução social. Tal acarretará a dissolução da identidade social do pescador, além de promover o abandono das regiões litorâneas pelos pescadores, cedendo às pressões da especulação imobiliária. Percebe-se não somente a importância econômica da atividade pesqueira artesanal, mas também da relevância cultural e ambiental. É, portanto, de se garantir a continuidade da pesca artesanal. Para tanto, faz-se imprescindível o reconhecimento social e jurídico dos trabalhadores e trabalhadoras envolvidos nessa atividade tradicional. O reconhecimento dos homens faz-se por meio da equiparação legal a segurado especial da Previdência Social. As alterações promovidas na Lei da Previdência (n.8.212/91) incluíram a possibilidade do pescador artesanal ser considerado segurado especial. Nessa condição, o pescador tem direito à contagem especial de tempo para a aposentadoria, tem a garantia dos benefícios previdenciários como auxílio doença, por exemplo. Como as mulheres não são reconhecidas como pescadoras, o que fazem, no máximo é recolher para a Previdência Social na qualidade de trabalhador autônomo. Por isso, não gozam do tempo especial para a aposentadoria. Não usufruem também da licença maternidade, ficando completamente desassistidas quando do parto, mesmo filiadas à Previdência Social, pois a qualidade de autônoma não lhe garante tal benefício. Por outro lado, muitas das mulheres nem filiadas à Previdência Social são. Não gozam sequer da expectativa de qualquer aposentadoria ou qualquer benefício relacionado ao desenvolvimento de doenças ou acidentes de trabalho. Assim, trabalham cotidianamente, sem qualquer expectativa de reconhecimento jurídico. Muito embora a luta pelo reconhecimento do trabalho da mulher seja antiga no Brasil, as conquistas são recentes. Datam, basicamente, da Constituição Federal de 1988, que reconheceu a igualdade em direitos e deveres entre homens e mulheres. Entretanto, mesmo diante da conquista de vários setores (como o das empregadas domésticas), as mulheres pescadoras são ainda completamente ignoradas pela legislação. Para cumprir os preceitos constitucionais, garantir a 376

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dignidade das mulheres e resguardar a preservação da pesca artesanal, faz-se imprescindível a elaboração de leis para o setor com previsões sociais. Uma legislação social para a mulher pescadora é medida urgente. REFERÊNCIAS BORGONHA, Mirtes Cristina; BORGONHA, Maíra. Mulher-pescadora e mulher de pescador: a presença da mulher na pesca artesanal na Ilha de São Francisco do Sul, Santa Catarina. UFSC. Disponível em: <http://www.fazendogenero8.ufsc.br/sts/ST64/Borgonha-Borgonha_64.pdf>. Acesso em: 17 jul. 2010. CABRAL, Maria das Mercês C.; STADTLER, Hulda; TAVARES, Lyvia. Mulheres pescadoras: gênero e identidade, saber e geração. UFP: João Pessoa, 2009. Disponível em: <http://itaporanga.net/genero/gt5/7.pdf>. Acesso em: 17 jul. 2010. CALIL, Léa Elisa S. Direito do Trabalho da mulher: A questão da igualdade jurídica ante a desigualdade fática. São Paulo: LTr, 2007. CHAVES, Paulo de Tarso; ROBERT, Maurício de Castro. Embarcações, artes e procedimentos da pesca artesanal no litoral sul do Estado do Paraná, Brasil. Atlântica, Rio Grande, 25(1): 53-59, 2003. Disponível em: <http://www.lei. furg.br/atlantica/vol25/ob08.pdf>. Acesso em: 07 jul. 2010. KUHNEN, Ariane. Lagoa da Conceição: meio ambiente e modos de vida em transformação. Florianópolis: Cidade Futura, 2002. LOPES, Cristiane Maria S. Direito do trabalho da mulher: da proteção à promoção. In Cadernos Pagu. V. 26. janeiro/junho de 2006. p. 405–430. Disponível em: <www.scielo.br/pdf/cpa/n26/30398.pdf>. Acesso em: 17 jul. 2010. MANESKY, Maria Cristina. Da casa ao mar: papéis das mulheres na construção da pesca responsável. Revista Proposta; Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional, Rio de janeiro. N. 84-85. mar./ago. 2000. Disponível em: <http://www.fase.org.br/projetos/vitrine/admin/Upload/1/File/Maria_cristina. PDF>. Acesso em: 17 jul. 2010. MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2001. MELO, Maria de Fátima Massena de. Políticas públicas entre pescadoras artesanais: invisibilidade do trabalho produtivo e reprodutivo. Anais. VIII Congresso Fazendo Gênero. Universidade Federal de Santa Catarina. Agosto de 2008. Em <http://www.fazendogenero8.ufsc.br/sts/ST15/Maria_de_Fatima_Massena_de_Melo_15.pdf>. Acesso em: 06 jul. 2010. NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho: história e teoria geral do direito / relações individuais e coletivas de trabalho. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.355-385, jan./dez. 2011

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PASQUOTTO, Vinicius Frizzo. Pesca artesanal no Rio Grande do Sul: os pescadores de São Lourenço do Sul e suas estratégias de reprodução social. Porto Alegre, 2005. Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. LUME. Disponível em: <http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/7029/000538698.pdf?sequence=1>. Acesso em: 07 jul. 2010. SEVERO, Christiane Marques. Pesca artesanal em Santa Catarina: evolução e diferenciação dos pescadores da Praia da Pinheira. Porto Alegre, 2008. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Disponível em: <http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/15012/000674207.pdf?sequence=1>.Acesso em 07 jul. 2010. WEBER, Max. In: BARBOSA, Regis; BARBOSA, Karel Elsabe (Trad.). Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. 4. ed. Brasília: UnB, 2009. 1 Entre os instrumentos desenvolvidos para a pesca em escala industrial figuram modernas embarcações, equipadas com aparelhos de alta tecnologia (radares, GPS e computadores de bordo com piloto automático) e com grande capacidade para estocagem do pescado. Além disso, motores potentes aliam-se aos equipamentos para conferir grande autonomia de navegação às embarcações. 2 Fonte: sítio do Ministério da Pesca e Aquicultura. www.mpa.gov.br. Acesso em 13 de julho de 2010. 3 Definição prevista na Lei n. 11.959, de 29 de junho de 2009, que dispõe sobre a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura e da Pesca, regula as atividades pesqueiras, em substituição ao Código de Pesca de 1967. A definição legal não traz o conceito de pescador, mas sim de pesca. A pesca artesanal é parte da pesca comercial, realizada diretamente pelo pescador, autonomamente ou com auxílio do grupo familiar, em embarcações de pequeno porte. A definição de embarcações de pequeno porte não é trazida pela lei. É bastante variável a modalidade de embarcações consideradas de pequeno porte, desde botes sem motores até pequenas embarcações de metal ou madeira com motores de variadas potências, comumente chamadas de baleeiras. Assim, a pesca artesanal passou a ser definida somente em 2009, através da referenciada lei, nos seguintes termos: “Art. 8º. Pesca, para os efeitos desta Lei, classifica-se como: I – comercial: a) artesanal: quando praticada diretamente por pescador profissional, de forma autônoma ou em regime de economia familiar, com meios de produção próprios ou mediante contrato de parceria, desembarcado, podendo utilizar embarcações de pequeno porte.” Em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20072010/2009/Lei/L11959.htm, acesso em 07 de julho de 2010. 4 Capital do Estado de Santa Catarina, situado na região Sul do Brasil. Localiza-se no centro-leste do Estado de Santa Catarina e é banhada pelo Oceano Atlântico. Grande parte de Florianópolis (97,23%) está situada na Ilha de Santa Catarina, possuindo cerca de 100 praias, consideradas também as continentais. 5 Bombinhas é um município brasileiro situado no Estado de Santa Catarina. Localiza-se a uma latitude 27º07’54” sul e a uma longitude 48º31’40” oeste, estando a uma altitude de 32 metros (IBGE). A economia do município é fundada na exploração da atividade turística durante os meses de verão e no inverno sobrevive por meio da pesca (industrial e artesanal). A pesca artesanal desenvolve-se fundamentalmente em todas as 12 praias que compõem o município. É o menor município de Santa Catarina, com uma área de 34,5 km², cuja população é constituída fundamentalmente de descendentes de portugueses e açorianos. 6 Lagoa dos Patos é a maior laguna do Brasil e a segunda da América Latina, situa-se no estado brasileiro do Rio Grande do Sul. Tem 265 quilômetros de comprimento e uma superfície de 10.144 km², estendendo-se na direção nor-nordeste-sul-sudoeste, paralelamente ao Oceano Atlântico. 7 É um município brasileiro do estado de Pernambuco. É constituído pelo distrito sede. Lá as mulheres

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fazem coleta de moluscos (marisco, ostra, sururu) caranguejo e siri, no Canal de Santa Cruz e nos estuários. Geralmente a coleta é feita a pé e com utilização de técnica manual e instrumentos como a foice, o estilete, o espeto de madeira e a mão. (MELO, Maria de Fátima Massena de. Políticas públicas entre pescadoras artesanais: invisibilidade do trabalho produtivo e reprodutivo. Anais. VIII Congresso Fazendo Gênero. Universidade Federal de Santa Catarina. Agosto de 2008. Em <http://www.fazendogenero8. ufsc.br/sts/ST15/Maria_de_Fatima_Massena_de_Melo_15.pdf>. Acesso em: 06 jul. 2010.) 8 SEVERO, Christiane Marques. Pesca artesanal em Santa Catarina: evolução e diferenciação dos pescadores da Praia da Pinheira. Porto Alegre, 2008. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Disponível em: <http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/15012/000674207. pdf?sequence=1>.Acesso em 07 jul. 2010, p.15. 9 Trata-se da dificuldade em tornar racionais ações sociais tradicionais. Tais ações escapam ao limite de definição geral e burocrática. (WEBER, Max. In: BARBOSA, Regis; BARBOSA, Karel Elsabe (Trad.). Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. 4. ed. Brasília: UnB, 2009, p.15) Dependem em demasia dos estudos empíricos e da realidade local abordada. Há características próprias em cada lugar de realização da atividade pesqueira artesanal. Alguns trabalhos acadêmicos referenciados no presente trabalho adotam uma perspectiva sistêmica de abordagem, justamente para evitar desconsiderar a variabilidade das comunidades pesqueiras. Essa variabilidade envolve tanto os instrumentos utilizados quanto a organização dos sujeitos envolvidos. Isso porque em cada região pesqueira há o desenvolvimento da pesca em relação ao local e ao pescado coletado. E mais ainda, há localidades e situações em que é comum a combinação de diversos sistemas de pesca (um pescador que trabalha na pesca industrial, por exemplo, pode vir a trabalhar na pesca artesanal em certas épocas do ano, ou ainda, um pescador artesanal que trabalhe com sua própria embarcação e em embarcações alheias). (PASQUOTTO, Vinicius Frizzo. Pesca artesanal no Rio Grande do Sul: os pescadores de São Lourenço do Sul e suas estratégias de reprodução social. Porto Alegre, 2005. Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Disponível em: <http://www. lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/7029/000538698.pdf?sequence=1>. Acesso em: 07 de julho de 2010, p. 10). 10 CHAVES, Paulo de Tarso; ROBERT, Maurício de Castro. Embarcações, artes e procedimentos da pesca artesanal no litoral sul do Estado do Paraná, Brasil. Atlântica, Rio Grande, 25(1): 53-59, 2003. Disponível em: <http://www.lei.furg.br/atlantica/vol25/ob08.pdf>. Acesso em: 07 jul. 2010. 11 SEVERO, op. cit., p.14. 12 PASQUOTTO, Vinicius Frizzo. Pesca artesanal no Rio Grande do Sul: os pescadores de São Lourenço do Sul e suas estratégias de reprodução social. Porto Alegre, 2005. Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. LUME. Disponível em: <http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/7029/000538698. pdf?sequence=1>. Acesso em: 07 jul. 2010, p. 8. 13 Decreto-lei n. 221, de 28 de fevereiro de 1967. Dispõe sobre a proteção e estímulos à pesca e dá outras providências. Revogou o Decreto-lei n. 794, de 19 de outubro de 1938, que até então regulava a pesca no Brasil. Cabe salientar que a competência para regulamentar a atividade pesqueira no Brasil era, e permanece ainda pela Constituição da República Federativa do Brasil vigente nos dias atuais (de 05 de outuro de 1988), da União. (Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho.) (sem grifo no original) 14 O pescador amador necessitava, como ainda necessita, de registro de pesca, fornecido pelo Ministério da Marinha, através das sessões da Capitania dos Portos. Para a concessão do referido registro, é necessário que o pescador realize provas teóricas de conhecimentos básicos em navegação. Com a aprovação nas provas, consegue-se a habilitação para as seguintes modalidades: Capitão-Amador - apto para conduzir embarcações entre portos nacionais e estrangeiros, sem limite de afastamento da costa. Mestre-Amador - apto para conduzir embarcações entre portos nacionais e estrangeiros nos limites da navegação costeira. Arrais-Amador - apto para conduzir embarcações nos limites da navegação interior. Motonauta - apto para conduzir JET-SKI nos limites da navegação interior. Veleiro - apto para conduzir embarcações a vela sem propulsão a motor, nos limites da navegação interior. R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.355-385, jan./dez. 2011

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Fonte: sítio da Capitania dos Portos do Rio de Janeiro. https://www.mar.mil.br/cprj/habama.html#. Acesso em 06 de julho de 2010. 15 Também é o Ministério da Marinha, por meio das Capitanias dos Portos, que detém a atribuição para conceder registro de embarcações e de pesquisadores para a realização de pesca com intuito de pesquisa científica. Aos pescadores nessa categoria, é exigido o registro da embarcação unicamente com finalidade de pesquisa e que seja vinculada a instituições brasileiras de pesquisa que detenham por Lei a atribuição de coletar material biológico para fins científicos (artigo 32, Código de Pesca de 1967). 16 Decreto-lei n. 221, de 28 de fevereiro de 1967. Artigo 26 – Pescador Profissional é aquele que, matriculado na repartição competente segundo as leis e regulamentos em vigor, faz da pesca a sua profissão ou meio principal de vida. Segundo o artigo 28, no seu parágrafo primeiro, a matrícula será emitida pela Capitania dos Portos e Ministério da Marinha. 17 Cumpre relembrar que o Código de Pesca foi publicado na época do Regime Militar Brasileiro, instaurado após o Golpe Militar de 1964, quando foi deposto o presidente João Goulart. Seguia-se, `a época, a ideologia de estímulo ao desenvolvimento nacional (ou perseguia-se a idéia de Milagre Econômico Brasileiro), cuja meta era promover desenvolviemento de cinquenta anos em cinco. Pode-se observar o próprio Código de Pesca de 1967 tem por objetivo o estímulo ao desenvolvimento nacional, através da industrialização do setor pesqueiro. Com vistas ao referido desenvolvimento, a preocupação com as condições de vida e trabalho, ou mesmo as preocupações sociais em relação aos trabalhadores da pesca eram tímidas (senão nulas). Por essa razão, o Código de Pesca de 1967 não dedica-se à definição de pescador. A preocupação maior era justamente em oferecer estímulo à industrialização do setor produtivo pesqueiro. Tanto assim é que, a partir do Código de Pesca, pessoas jurídicas nacionais tiveram isenção sobre imposto de importação sobre produtos industrializados (embarcações, maquinários e petrechos de pesca) até 1982 (artigo 73), bem como isenção de Imposto de Renda incidente sobre os resultados financeiros obtidos até o ano de 1989 (artigo 80). Vê-se, portanto, a grande preocupação com o estímulo ao desenvolvimento do setor pesqueiro, e poucas preocupações sociais com o pescador. 18 As Capitanias dos Portos são órgãos administrativos vinculados ao Ministério da Marinha, junto aos Portos brasileiros, cujas atribuições principais são a fiscalização e a ordenação da atividade portuária e pesqueira. Consulta ao sítio da Marinha no Brasil: https://www.dpc.mar.mil.br/CDA/mapa_capitanias. htm, em 05 de julho de 2010. 19 A SUDEPE (Superintendência de Desenvolvimento da Pesca) foi criada pela Lei Delegada n. 10, de 11 de outubro de 1962, durante o governo do Presidente João Goulart. Esse período político brasileiro caracterizou-se pela reestruturação de uma economia marcada por altas taxas inflacionárias. Para enfrentar o problema da inflação e promover a estabilidade econômica brasileira, o governo planejou e realizou as chamadas reformas de base, que eram medidas econômicas e sociais de caráter nacionalista que previam uma maior intervenção do Estado na economia. 20 Defeso: período legal, determinado pelo órgão de tutela ambiental (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente - IBAMA), em que é proibida a pesca e captura de certas espécies de pescados. Algumas espécies de animais aquáticos precisam de proteção em certas épocas do ano, quando ocorre a sua reprodução. A pesca realizada no momento de reprodução de espécies marinhas, como o camarão, acarreta a diminuição sensível dos cardumes. Para evitar o comprometimento e a extinção das espécies, há regulamentação governamental na proibição da pesca de determinadas espécies por algum período anual (como o caso do camarão e da anchova). Algumas vezes, ocorrem vedações momentâneas e extraordinárias, quando da diminuição drástica de determinadas espécies. Esse período de proibição da pesca é chamado “defeso”, e pode variar de duração conforme a espécie pesqueira e o grau de comprometimento da espécie. 21 Para aposentadoria, em virtude das condições de trabalho do pescador, é necessário contar o período de 20 anos de exercício profissional, com respectivo recolhimento de contribuição previdenciária. Entretanto, cada ano profissional completo corresponde à 250 (duzentos e cinquenta) dias e não 365 (trezentos e sessenta e cinco) dias como o calendário convencional. Por conta disso, é possível ao pescador aposentar com menor tempo de contribuição à Previdência Social se comparado aos trabalhadores não embarcados. 22 «Artigo 31. A aposentadoria especial será concedida ao segurado que, contando no mínimo 50 (cinqüenta) anos de idade e 15 (quinze) anos de contribuições tenha trabalhado durante 15 (quinze), 20 (vinte) ou 25 (vinte e cinco) anos pelo menos, conforme a atividade profissional, em serviços, que, para êsse efeito, forem considerados penosos, insalubres ou perigosos, por Decreto do Poder Executivo.” (sic). Ou seja, a previsão de direitos sociais (como a aposentadoria especial) dos pescadores não advém do Código de Pesca. Foram determinados em 1960 e mantidos na legislação previdenciária sucessiva (de 1968 e de 1991 – atualmente em vigor no Brasil).

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23 As Colônias de Pescadores foram introduzidas no Brasil no período imperial (data de 1808 a Primeira Colônia de Pescadores do Brasil, situada em Recife, capital do Estado de Pernambuco, no nordeste brasileiro). Servem como verdadeiros Sindicatos dos Pescadores Artesanais, realizando registros de embarcações e organizando trabalhadores artesanais em suas demandas por reconhecimento jurídico. Durante a confecção deste trabalho, não foi possível precisar a quantidade de Colônias reconhecidas juridicamente no Brasil. Entretanto sabe-se que, ao menos, em cada entreposto pesqueiro há uma Colônia de pescadores. 24 Criada pelo Governo Federal, por meio da Medida Provisória nº 103, de 1º de janeiro de 2003, em seu art. 1º, § 3 , IV a Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca da Presidência da República– SEAP/PR, que teve por objetivo estruturar políticas públicas para o setor pesqueiro nacional. 25 A Previdência Social brasileira estabelece, pela Lei n. 8.213, de 1991, a necessidade de combinar-se o critério etário com o tempo de contribuição à Prev idência Social, para o segurado-trabalhador fazer jus à aposentadoria integral (pelo Regime Geral da Previdência Social). É necessário, para aposentar-se com proventos integrais relativos ao valor de contribuição, até o teto (em torno de três mil e quinhentos reais atualmente), deter homens 35 anos de contribuição e mulheres 30 anos. O critério etário, concomitante ao critério contributivo era considerado como mínimo de 60 anos para mulheres e 65 anos para homens. Art. 201 - Parágrafo 7º É assegurada aposentadoria no regime geral de previdência social, nos termos da lei, obedecidas as seguintes condições: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998) I - trinta e cinco anos de contribuição, se homem, e trinta anos de contribuição, se mulher; (Incluído dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998). II - sessenta e cinco anos de idade, se homem, e sessenta anos de idade, se mulher, reduzido em cinco anos o limite para os trabalhadores rurais de ambos os sexos e para os que exerçam suas atividades em regime de economia familiar, nestes incluídos o produtor rural, o garimpeiro e o pescador artesanal (incluído dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998). Na redução etária é que se verifica a presença do pescador artesanal. Para aposentar, o pescador deve, então, contar com o mínimo de sessenta anos de idade, se homem, e cinquenta e cinco, se mulher. A contribuição dos que eercem atividade laboral perigosa ou insalubre, a aposentadoria deve combinar a idade com o tempo de 180 meses (15 anos) de contribuição. Entretanto, esse critério etário estabelecido no inciso II do parágrafo 7º do artigo 201 da Constituição da República Federativa do Brasil, pela Emenda Constitucional n. 20, de 16 de dezembro de 1998, era antes inexistente na legislação brasileira. Bastava o trabalhador contar com o tempo de contribuição. Ocorre que há intenso debate sobre a matéria. Em 2008, as Turmas de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais previdenciários, competentes pela matéria, derrubaram o requisito etário, por ter gerado uma série de incongruências na concessão dos benefícios previdenciários. Ação judicial oriunda do Estado do Rio de Janeiro, processo n. 2004.51.51.023555-7. Entretanto, é a combinação do critério contributivo com o etário que legalmente assegura a aposentadoria no Brasil pelo Regime Geral de Previdência Social, a despeito do julgado acima referenciado. 26 O Seguro-Desemprego é um benefício integrante da seguridade social, garantido pelo art. 7º dos Direitos Sociais da Constituição Federal, e tem por finalidade promover a assistência financeira temporária ao trabalhador desempregado, em virtude da dispensa sem justa causa. Consiste no pagamento de 3 (três) a 5(cinco) parcelas, de valores variáveis até o teto aproximado de R$ 800,00 (oitocentos reais). Fonte: Ministério do Trabalho e Emprego. Sítio http://www.mte.gov.br/seg_desemp/default.asp, acesso em 13 de julho de 2010. 27 É prevista a «cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte, incluídos os resultantes de acidentes do trabalho, velhice e reclusão” (grifo nosso) pela Previdência Social. Tal é o disposto no artigo 201, inciso I da Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. A lei n. 8213, de 1991 definiu, no seu artigo 19, o que é acidente de trabalho. Foi definido também que a Previdência Social concederá benefício durante o período em que for considerado o trabalhador inapto para suas funções habituais pela perícia médica da própria Previdência. Tal medida não afasta a responsabilidade civil do empregador quando da inobservância de regras de segurança no desenvolvimento da atividade da empresa. 28 Conforme o que se depreende do artigo 19 da Lei n. 11.959, de 2009. 29 Informação da própria Secretaria Especial da Pesca e Aquicultura, encontrada no sítio www.mpa.gov.br. 30 Surgiu no Sul do Estado da Bahia. Corresponde à Primeira Zona Pesqueira registrada do país. Por isso, é conhecida como Colônia Z-1, localidade de Rio Vermelho no município de Santa Cruz Cabrália, a 22 quilômetros de Porto Seguro. Fonte Jornal do Sol, Porto Seguro. http://www.jornaldosol.com.br/?/, acesso em 13 de julho de 2010. 31 É o que determinou os artigos 91 e 94 do Código de Pesca de 1967.

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32 In verbis Lei n. 11959, de 29 de junho de 2009. Artigo 8o Pesca, para os efeitos desta Lei, classifica-se como: I - comercial: a) artesanal: quando praticada diretamente por pescador profissional, de forma autônoma ou em regime de economia familiar, com meios de produção próprios ou mediante contrato de parceria, desembarcado, podendo utilizar embarcações de pequeno porte; 33 Conforme o artigo 11, VII, da Lei nº 8.213/91, § 1º, que dispõe, in verbis: “Entende-se como regime de economia familiar a atividade em que o trabalho dos membros da família é indispensável à própria subsistência e é exercido em condições de mútua dependência e colaboração, sem a utilização de empregados.” 34 Recorte do texto do parágrafo único do artigo 4º, Lei n. 11959, de 29 de junho de 2009. 35 Redes de pesca são aparelhos para pescar flexíveis, geralmente de fibras relativamente delgadas e com malhas de tamanho inferior que a menor dimensão dos peixes ou mariscos que se pretendem capturar com elas. Já os espinhéis são estruturas dotadas de uma linha central firme, de onde partem linhas secundárias, dotadas de anzóis nas pontas. 36 Extraído do artigo 4º, caput e parágrafo único, da Lei n. 11.959, de 29 de junho de 2009. 37 Dados Ministério do Desenvolvimento Agrário: http://portal.mda.gov.br/portal/saf/programas/pronaf/2258903, acesso em 17 de julho de 2010. 38 São Francisco do Sul é a terceira localidade mais antiga do Brasil. Sua ocupação remonta a época dos descobrimentos. Foi descoberta em 1504 por franceses, mais especificamente pela Expedição de Binot Paulmier de Gonneville. Localiza-se no litoral norte catarinense, a uma latitude 26º14’36” Leste/ Sul e a uma longitude 48º38’17” Oeste, com divisas com o Oceano Atlântico ao leste. Sua população estimada em 2008 era de 39.341 habitantes. Possui uma área de 493 km². A sede do município está localizada no extremo norte da ilha de São Francisco do Sul, na entrada da Baía Babitonga. Engloba, em sua extensão, pequenas ilhas dentro da própria Baía, além de compreender uma porção territorial no continente. Dados – Instituto Brasileiro de Geografia (IBGE). www.ibge.gov.br. Acesso em 17 de julho de 2010. 39 BORGONHA; BORGONHA, op. cit. 40 Especialmente refere-se às localidades Ponta da Caieira, na Ilha de São Francisco do Sul, e em duas pequenas Ilhas que compõem o Município – Ilha Grande e Ilhas Claras. (BORGONHA, Mirtes Cristina; BORGONHA, Maíra. Mulher-pescadora e mulher de pescador: a presença da mulher na pesca artesanal na Ilha de São Francisco do Sul, Santa Catarina. UFSC. Disponível em: <http://www.fazendogenero8. ufsc.br/sts/ST64/Borgonha-Borgonha_64.pdf>. Acesso em: 17 jul. 2010.) 41 Entenda-se aqui atividades vinculadas à empresa do turismo, tais como cozinheiras, camareiras, comerciárias e garçonetes. Dessa maneira, a comunidade local tornou-se mão-de-obra pouco especializada para o desenvolvimento da exploração turística das praias. Embora os níveis salariais não sejam atraentes, tais atividades suplantaram a realização da pesca. Fundamentalmente, o fenômeno deve-se aos riscos e ao desgaste físico das próprias condições de realização da pesca artesanal. 42 BORGONHA; BORGONHA, op. cit. 43 Todas as localidades aqui referenciadas são municípios litorâneos do Estado de Santa Catarina. Entre tais municípios são comuns a prática da pesca artesanal, inserida pela população originária e predominantemente de ascendência açoriana. 44 As Rendeiras, patrimônio cultural local, são mulheres que ainda trabalham em pequenos “ateliêrs”, ao longo de toda a avenida central da região conhecida como Lagoa da Conceição, no município de Florianópolis. Essas mulheres são referências turísticas da região – muitos adquirem peças confeccionadas ainda à maneira tradicional. Atualmente a produção das rendeiras está voltada para a produção de trabalhos manuais artísticos voltados ao vestuário e peças decorativas, por meio de finas linhas e do bilro. Antes da valorização turística e cultural da atividade, era comum essas mulheres, a fim de garantirem os rendimentos familiares, trabalharem com a confecção e reparo de redes utilizadas para a pesca. (KUHNEN, Ariane. Lagoa da Conceição: meio ambiente e modos de vida em transformação. Florianópolis: Cidade Futura, 2002.) 45 BORGONHA; BORGONHA, op. cit. 46 MANESKY, Maria Cristina. Da casa ao mar: papéis das mulheres na construção da pesca responsável. Revista Proposta; Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional, Rio de janeiro. N. 84-85. mar./ago. 2000. Disponível em: <http://www.fase.org.br/projetos/vitrine/admin/Upload/1/File/Maria_cristina.PDF>. Acesso em: 17 jul. 2010, p.86. 47 CABRAL, Maria das Mercês C.; STADTLER, Hulda; TAVARES, Lyvia. Mulheres pescadoras: gênero e identidade, saber e geração. UFP: João Pessoa, 2009. Disponível em: <http://itaporanga.net/genero/

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gt5/7.pdf>. Acesso em: 17 jul. 2010. 48 Lendas como a da sereia, da moréia, hábitos de higiene após o manejo com o pescado, formas de conservação e preparo, além do próprio reconhecimento dos ventos e da umidade do ar, fazem com que as mulheres detenham conhecimentos necessarios à prática pesqueira. Tais saberes dificilmente encontrariam outra forma de repasse que não a oralidade por meio do ambiente familiar ou doméstico, fundamentalmente. 49 Lei n. 3071, de 1º de janeiro de 1916. Revogado recentemente pela Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. 50 É o que se depreende da leitura do texto original: Art. 6. São incapazes, relativamente a certos atos (art. 147, n. 1), ou à maneira de os exercer: I. Os maiores de dezesseis e menores de vinte e um anos (arts. 154 a 156). II. As mulheres casadas, enquanto subsistir a sociedade conjugal. (sem grifo no original) 51 É importante destacar que o setor industrial em que a mão-de-obra feminina era empregada foi justamente o da indústria pouco mecanizada, característica das tecelagens e alfaiatarias. Muitas das vezes, as mulheres realizavam suas atividades em casa, como as bordadeiras e as costureiras. Isso justificava os menores salários em relação aos homens, tendo em vista que estes eram a força de trabalho das indústrias mecanizadas, com ganhos muito maiores (metalúrgia, por exemplo). (CALIL, Léa Elisa S. Direito do Trabalho da mulher: A questão da igualdade jurídica ante a desigualdade fática. São Paulo: LTr, 2007, p.16) 52 CALIL, op. cit., p. 17. 53 Por meio do Decreto n. 423, de 12 de novembro de 1935. 54 Um tratado internacional consiste em um acordo de vontades entre dois sujeitos de direito internacional (sejam Estados ou Organizações). As convenções são acordos mutilaterais, com muitos sujeitos envolvidos. A denúncia é o ato unilateral pelo qual uma Parte Contratante (Estado ou Organização) manifesta a sua vontade de deixar de ser Parte no tratado. 55 CALIL, op. cit. 56 Artigo 121. - A lei promoverá o amparo da produção e estabelecerá as condições do trabalho, na cidade e nos campos, tendo em vista a proteção social do trabalhador e os interesses econômicos do País. § 1º - A legislação do trabalho observará os seguintes preceitos, além de outros que colimem melhorar as condições do trabalhador: a) proibição de diferença de salário para um mesmo trabalho, por motivo de idade, sexo, nacionalidade ou estado civil; (Sem grifo no original) 57 MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2001, p.19. 58 Greve – “O conceito jurídico de greve não oferece dificuldade, uma vez que é incontroverso que se configura como tal a paralisação combinada do trabalho para o fim de postular uma pretensão perante o empregador; não é greve, ensinam os juristas, a paralisação de um só trabalhador, de modo que a sua caracterização pressupõe um grupo que tem um interesse comum.” (NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho: história e teoria geral do direito / relações individuais e coletivas de trabalho. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.) 59 MARTINS, op. cit., p. 139. 60 NASCIMENTO, op. cit., p. 76. 61 “Art. 372. Os preconceitos que regulam o trabalho masculino são aplicáveis ao trabalho feminino, naquilo em que não colidirem com a proteção especial instituída por este capítulo.” CLT, 1943. 62 LOPES, Cristiane Maria S. Direito do trabalho da mulher: da proteção à promoção. In Cadernos Pagu. V. 26. janeiro/junho de 2006. p. 405–430. Disponível em: <www.scielo.br/pdf/cpa/n26/30398.pdf>. Acesso em: 17 jul. 2010, p. 411. 63 Ibid. 64 A grande questão é que, com as linitações legais ao trabalho da mulher, justificava-se menores salários e menor nível de empregabilidade entre as mulheres. No mais, o grande argumento para essas normas “protetivas” era justamente a possibilidade de conciliação da atividade da trabalhadora com suas atividades domésticas. O pressuposto papel exclusivo da mulher nas atividades domésticas é que fazia com que fosse necessária a vedação da hora-extra ou do trabalho noturno. Portanto, a preocupação não era voltada sobre a pessoa da mulher, mas sim sobre a manutenção de seu papel como “a rainha do lar”. Percebe-se, com esse discurso protetivo, o locus determinado para a mulher na sociedade – não como profissional, mas como a única responsável pela manutenção da ordem no lar, como a única responsável pela educação dos filhos. Esse papel começa a ser repensado, inclusive em termos da legislação, quando se insere a cláusula fundamental da Constituição que afirma a igualdade entre homens e mulheres, em deveres e direitos. A

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partir desse momento, é que se verifica o início do processo de desconstrução do papel social “natural” da mulher como “do lar” pela construção de um papel profissional da mulher. 65 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; (sem grifo no original) 66 Art. 7º. Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (...) XVIII - licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias; (...) 67 Deve-se levar em conta aqui que a dita escolha passa por influências ainda do papel histórico da mulher no papel reprodutivo. Essa escolha ainda não é tão livre quanto se pretende, em termos de sociedade brasileiro. ªisso porque a dinâmica social no Brasil não é tão desapegada das tradições do século XX. Outro elemento que corrobora a tese da escolha determinada da mulher em relação à maternidade pode-se obter através das teses biológicas quanto à importância da maternidade, como se fosse um elemento necessário à afirmação do gênero feminino. De outro lado, por meio da legislação brasileira, pode-se ainda perceber o papel reprodutivo da mulher quando da vedação legal do aborto. A prática de interrupção da gravidez, em qualquer estágio de desenvolvimento do feto (mesmo ainda nos primeiros dias de gestação) é ainda considerada crime pelo Código Penal brasileiro, acarretando penas à mulher que o pratica e à equipe (médicos, enfermeiros ou parteiras) que a auxilia. Portanto, a maternidade no Brasil ainda não é um espaço de livre deliberação feminina. 68 Cada hora-extra, trabalhada além da jornada de trabalho de oito horas diárias, deverá ser remunerada no mínimo 50% da hora normal. Com a dispensa acordada entre trabalhadores e empregadores, significa que o produtor pode deixar de pagar o adicional, simplesmente dispensando os empregados horas antes em outro dia. Tal prerrogativa de compensação de horas é completamente proibida ao trabalhador urbano. Tal era a situação de desigualdade entre o trabalhador urbano e rural, antes da Constituição Federal de 1988. 69 Lei n. 8212, de 24 de julho de 1991. Art. 12. São segurados obrigatórios da Previdência Social as seguintes pessoas físicas: (...) VII - como segurado especial: o produtor, o parceiro, o meeiro e o arrendatário rurais, o pescador artesanal e o assemelhado, que exerçam essas atividades individualmente ou em regime de economia familiar, ainda que com auxílio eventual de terceiros, bem como seus respectivos cônjuges ou companheiros e filhos maiores de 14 anos ou a eles equiparados, desde que trabalhem, comprovadamente, com o grupo familiar respectivo. (Redação dada pela Lei n° 8.398, de 7.1.92) (sem grifo no original). Ressalta-se sua alteração pela Lei n. 11.718, de 20 de junho e 2008. Essa lei permite outras formas de comprovação do tempo de serviço em condição especial, como notas fiscais e declarações de imposto de renda, visando facilitar a contagem de tempo para a aposentadoria especial. 70 Conhecido vulgarmente como 13º. salário, pois corresponde a referida gratificação a um mês de remuneração do trabalhador a ser pago até o dia 20 de dezembro. É calculado proporcionalmente aos meses de serviço, sendo que contando com 12 meses, tem-se direito à remuneração integral de um mês de serviço. As despesas referentes à gratificação natalina correm por conta do empregador. 71 Previsão da Lei n. 11.324, de 2006. 72 Aviso Prévio é o nome que se dá no Brasil à comunicação antecipada e obrigatória (Legislação Trabalhista/ CLT) que uma parte deve fazer à outra de que deseja rescindir o contrato de trabalho sem justa causa. No caso dos trabalhadores domésticos, previa a legislação que o aviso deveria ser dado pelo empregador com antecedência mínima de 8 dias. Ocorre que a Constituição Federal de 1988 determina aviso prévio de 30 dias para todos os trabalhadores. Portanto, 30 dias antes da dispensa do empregado, o empregador precisa comunicá-lo de sua dispensa. Nessa ocasião, poderá o aviso prévio ser trabalhado (o trabalhador permanece em suas funções por mais trinta dias, com redução de carga horária para que possa buscar novo emprego) ou indenizado (o trabalhador não mais comparece ao emprego, recebendo a verba salarial de forma antecipada). Fonte: Ministério do Trabalho e Emprego. www.mte.gov.br.

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ARTISANAL FISHING AND GENDER: PUBLIC POLICIES FOR THE LEGAL RECOGNITION OF THE FISHING WORK OF WOMEN ON THE COAST OF SANTA CATARINA – BRAZIL ABSTRACT The State of Santa Catarina is located in Southern Brazil, bordering, on the East, the Atlantic Ocean. In this coastal region, one of the major income sources of the population is related to the fishing activity with the use of small boats in a system of household economy. Despite the relevance of women’s work in artisanal fishing, they are not considered professional fishers. This occurs because artisanal fishing is a traditional economic activity characterized by gender inequality. The recognition of women as professional fishing workers will ensure the access to labor and social security benefits, according to constitutional precepts and Human Rights. Keywords: Artisanal fishing; gender; work.

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Heloísa Oliveira* 1 Introdução. 2 Tutela dos Bens Ambientais: Eficácia e Adequação do Direito Sancionatório. 2.1 A centralidade do Direito Administrativo no Direito do Ambiente. 2.2 Prevenção, Direito Penal e Direito Administrativo Sancionatório. 2.2.1 Princípio da prevenção. 2.2.2 Prevenção e Direito Penal: os fins das penas, o Direito Penal de Risco e a antecipação da tutela penal. 2.2.3 Prevenção e Direito Administrativo Sancionatório: a sanção pelo facto ex ante. 2.3 Em especial, a eficácia processual e procedimental. 2.3.1. Da inflexibilidade garantística do processo penal, da (suposta) flexibilidade do procedimento admin istrativo sancionatório e da fuga às garantias do processo penal. 2.3.2 Em especial, o Princípio da Oportunidade. 2.3.2.1. Colocação do problema: legalidade vs. oportunidade. 2.3.2.2. Oportunidade e processo penal 2.3.2.3. Oportunidade e procedimento administrativo sancionatório. Bibliografia.

RESUMO O artigo investiga quais os meios mais adequados à tutela dos bens ambientais: a via do Judiciário, em face do Direito Penal; e/ou a via administrativa, mediante o Direito Administrativo Sancionatório. O estudo conclui que a intervenção penal deve ser evitada sempre que houver outro meio menos repressivo, que seja apto a garantir eficazmente a tutela ambiental. Palavras-chave: Bens ambientais. Tutela sancionatória. Eficácia. Adequação. 1 INTRODUÇÃO A preservação do ambiente é um valor essencial no Estado de Direito moderno. Talvez por isso, o ambiente tem sido uma das áreas em que o Estado mais tem assumido as suas vestes de regulador, impondo à Administração Pública, aos Tribunais e aos particulares complexas tarefas hermenêuticas para cumprir e fazer cumprir as normas ambientais. Mas nenhuma norma é relevante se não for efectiva, se a sua vigência não for garantida pelo Estado, em último caso por meio do Direito Sancionatório. Poucos são os diplomas em matéria ambiental que não estão munidos de um arsenal de sanções administrativas em caso de infracção. Paralelamente, vão sendo criados 1 O presente texto corresponde, com algumas alterações, ao Relatório do Seminário de Direito Penal e Contra-ordenacional do Ambiente (Mestrado em Ciências Jurídico-Ambientais, Ano Lectivo 2008/2009). Foi elaborado sob orientação do Professor Doutor Paulo de Sousa Mendes. * Monitora e Doutoranda da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; Advogada. E-mail: heloisaoliveira@fd.ulisboa.pt

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nos diversos ordenamentos crimes ambientais com as mais diversas estruturas e objectos e até o Direito Comunitário parece apontar para a tutela penal1. Mas a realidade demonstra que essa protecção tem vindo a ser efectivada não pelos Tribunais e pelo Direito Penal, mas sim pela própria Administração por meio do Direito Administrativo Sancionatório2, o que implica o surgimento de todos os problemas associados a um Direito Penal simbólico. Também o Direito Administrativo Sancionatório vai sofrendo transformações e padece de problemas identitários, uma vez que as sanções aplicadas são de uma gravidade quasi penal e, apesar de ser um ramo do direito autónomo, o seu regime tem sido decalcado do Direito Penal e Processual Penal, ameaçando a sua tendencial celeridade e eficácia. Apesar disso, não encontramos no procedimento administrativo sancionatório os direitos de defesa do processo penal, colocando em crise as garantias dos cidadãos face ao poder repressivo do Estado. Nesse cenário, urge questionar qual a via mais adequada e eficaz para tutela dos bens ambientais: o Direito Penal e os Tribunais ou o Direito Administrativo Sancionatório e a Administração? Ou, talvez, até que ponto o Direito Administrativo Sancionatório e a partir de que ponto o Direito Penal? Esta questão tem sido objecto de análise por relevante doutrina penalista e administrativista nacional; contudo, são aproximações de uma perspectiva unilateral que visa, unicamente, à justificação da tutela penal. A relevância da matéria justifica a procura da resposta nos fundamentos, características e natureza do Direito do Ambiente e destes dois ramos do Direito Sancionatório. Assumimos, desde já, que consideramos que o Direito Administrativo tem uma especial vocação para a tutela dos bens ambientais. Contudo, há que discutir os limites teóricos e práticos do Direito Penal e do Direito Administrativo Sancionatório, para tentar proceder a uma delimitação tendencial dos seus espaços de actuação. É ainda relevante fazer uma última ressalva: pretendemos fazer um estudo que, na medida do possível, não tenha especial ligação ao direito constituído. Assim, as referências legais serão feitas a título meramente ilustrativo. 2 TUTELA DOS BENS AMBIENTAIS: EFICÁCIA E ADEQUAÇÃO DO DIREITO SANCIONATÓRIO 2.1 A centralidade do Direito Administrativo no Direito do Ambiente Apesar de construir um Estado de Direito, democrático e ambiental não [ser uma] tarefa que possa ser suportada por um ramo autónomo de direito3, a verdade é que o Direito do Ambiente tem-se concretizado principalmente por intermédio do Direito Administrativo e da actuação da Administração Pública, tanto pela emissão de normas administrativas, como por actos administrativos R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.385-412, jan./dez. 2011

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e, até mesmo, da celebração de contratos. De facto, a aplicação de normas ambientais implica quase sempre a intervenção da Administração, o que leva a que o Direito Administrativo seja a ordem normativa (…) que se encontra mais próxima e mais estreitamente ligada aos agentes poluidores mais perigosos (…). O legislador administrativo, pela facilidade em emitir normas, pela sua proximidade com os processos e progressos tecnológicos e pela atenção que lhes é obrigado a prestar, possui uma mobilidade e uma plasticidade 4/5. Mas não são apenas essas as razões que conferem à Administração um papel central na aplicação do Direito do Ambiente. Por um lado, é a Administração que determina quais são os deveres ambientais dos operadores no mercado. De facto, apesar de as leis ambientais regularem os procedimentos e obrigações ambientais, por vezes até com um grau de pormenorização criticável, deparamo-nos, ainda assim, com algum grau de discricionariedade para a sua adaptação e aplicação pelas autoridades administrativas, tendo em vista a consideração do tipo e volume de actividade e outras condicionantes que se verificam nos casos concretos. Para demonstrar a justeza dessa afirmação, apresentamos dois exemplos reveladores desse papel da Administração. Os valores-limite de emissão de poluentes são identificados como áreas típicas de remissão do legislador para normas técnicas, de natureza estritamente administrativa6. Um outro exemplo claro é a protecção do solo e reparação de danos: a inexistência de normas de qualidade do solo clama pela intervenção da Administração na definição de medidas preventivas ou reparadoras de contaminações ocorridas7. Concretizando: o Direito do Ambiente ganha vida por meio da imposição de variadas obrigações aos operadores económicos perante a Administração – obrigações de obtenção de licenças, autorizações, de elaboração de relatórios, de monitorização de emissões, de realização de análises técnicas à qualidade da água, do solo, do volume de ruído. Para além do controlo administrativo do início da actividade, cabe ainda à Administração o acompanhamento da mesma até ao seu término. De facto, toda a actividade dos operadores económicos – em especial a dos que desenvolvem determinadas actividades com elevado risco ambiental – é acompanhada por diversas autoridades da Administração; esse controlo existe para o início, alteração ou encerramento da actividade, e após o decorrer do termo de determinados prazos. Ou, ainda, em qualquer momento em que as diversas entidades com competência fiscalizadora assim o determinem. É também a Administração que, para além do acompanhamento corrente, exerce as actividades de inspecção, tanto por meio de administração inspectiva em sentido próprio como por corpos especializados de polícia. Esta centralidade da actuação da Administração tem repercussões até em um ramo do direito caracterizado pela sua tendencial autonomia face aos demais: o Direito Penal8. Muito tem sido escrito a este propósito, uma vez que a utilização de técnicas de construção de tipos penais com recurso à acesso388

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riedade administrativa9 implica a criação de normas penais em branco10. Não será esta a sede própria para discussão destas questões, que, de resto, não se colocam apenas no ordenamento jurídico português. Sublinhemos apenas que essa centralidade do Direito Administrativo na concretização do Direito do Ambiente torna complexa (se não mesmo impossível11) a tarefa de construção de um tipo penal ambiental que não esteja, em maior ou menor grau, dependente de normas ou actos administrativos. Concluímos, portanto, que as infracções ambientais são de natureza essencialmente administrativa: trata-se de violação das obrigações de obtenção de licenças ou autorizações, da violação de condições impostas pela autoridade administrativa (nomeadamente das condições anexas a licenças e autorizações deferidas); e, mais raramente, violação de obrigações materiais impostas directamente pela lei. Ou seja, a vasta maioria das infracções ambientais resultam da violação de obrigações perante a Administração ou que foram por esta impostas. É ainda relevante compreender a estrutura dos procedimentos administrativos em matéria ambiental. Quase invariavelmente, o operador está sujeito a mais do que um procedimento administrativo autorizativo. Frequentemente, estes regimes prevêem mecanismos de articulação entre os diversos sub-procedimentos, criando um procedimento autorizativo global, e a decisão que permite a utilidade pretendida pelo operador (tipicamente, a exploração de uma unidade industrial) apenas será proferida depois de decorridos todos os subprocedimentos. Esta circunstância garante um nível de integração de informação favorável à efetivação do Direito do Ambiente e fiscalização do seu cumprimento. Parece-nos, portanto, que se revela especialmente adequado que seja também a Administração a detentora do poder sancionatório relativamente a obrigações que ela própria impôs e cujo cumprimento acompanhou e fiscalizou. Daqui resultam vantagens evidentes de eficácia e eficiência. É que por ser também ela a protagonista no procedimento administrativo sancionatório, encontra-se empiricamente mais próxima dos circuitos de actividade em causa. Pela existência de entidades que têm especificamente a seu cargo estas matérias, a intervenção jurídica pode ser mais célere, mais consequente e mais especializada do que a intervenção das autoridades judiciárias em matéria penal12. Por um lado, as várias fiscalizações e vistorias que decorrem durante os vários procedimentos são momentos de detecção de infracções ambientais e, sublinhe-se, as entidades fiscalizadoras não estão limitadas na sua apreciação aos elementos relevantes para o procedimento que motivou a vistoria. Assim, a Administração acompanha a actividade do operador – quase inevitavelmente, mesmo o operador mais negligente e incumpridor das suas obrigações irá cruzar-se a certo ponto com a Administração. Por outro lado, o Direito do Ambiente é um ramo de reconhecida complexidade técnico-científica, tratando-se, por isso, de uma área multidisciplinar dentro e fora da ciência jurídica13. Ao contrário do que frequentemente sucede R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.385-412, jan./dez. 2011

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com as autoridades judiciárias em matéria penal, a Administração Pública, por força da sua relevância na efectivação no Direito do Ambiente, tem vindo a criar autoridades administrativas especializadas em questões ambientais14, com o necessário conhecimento científico, permitindo a célere, eficaz e rigorosa detecção de infracções ambientais e desenrolamento dos procedimentos administrativos sancionatórios. Por isso mesmo e sem querer analisar aqui a perspectiva adjectiva, verifica-se frequentemente uma concentração do procedimento administrativo sancionatório numa única entidade, que detecta a infracção, realiza as diligências instrutórias e determina a aplicação da sanção. 2.2 Prevenção, Direito Penal e Direito Administrativo Sancionatório Parece ser de simples fundamentação a ideia de que a índole fundamentalmente preventiva do direito do ambiente só poderá ser eficazmente prosseguida através dos meios do direito administrativo15. De forma igualmente pacífica, tem-se afirmado que o reforço na implementação de uma acção preventiva (…) [tem de] passar por (…) reforçar os meios de actuação da Administração inspectiva e tornar efectiva a fiscalização e punição das infracções ambientais16. Contudo, há que perceber que conclusões podemos extrair destas ideias no que toca ao papel do Direito Penal. Neste ponto, torna-se necessário densificar o conceito de prevenção para o Direito do Ambiente, para depois perceber o que existe afinal no Direito Penal ou no Direito Administrativo Sancionatório que potencie a mesma finalidade. 2.2.1 Princípio da prevenção O princípio da prevenção ocupa posição central no Direito do Ambiente, a nível internacional, comunitário e interno. Numa perspectiva, o princípio da prevenção traduz a ideia de que não deverá ser admitida ou autorizada a actividade humana que irá lesar bens ambientais de forma grave e irreversível17. Tem como finalidade última evitar as lesões aos bens ambientais, antecipando a tutela ao não permitir a criação de determinados riscos. Assim, ocupam posição central no princípio da prevenção os conceitos de antecipação, perigo e risco. A secundarização da reparação dos danos é uma decorrência da centralidade do princípio da prevenção no Direito do Ambiente. Se é verdade que tem sido mais recentemente dedicada alguma atenção à reparação dos danos ecológicos, torna-se evidente que, no Direito do Ambiente, a tónica é posta na prevenção desses mesmos danos. É certo que existe um dever geral de cuidado e diligência relativamente a direitos e bens alheios em qualquer ramo do direito e que, da sua violação, podem advir consequências para o lesante. Contudo, parece ser seguro afirmar que, em nenhum ramo do direito, afirmou-se a prevenção da lesão com tanta amplitude.

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A prevenção da lesão dos bens ambientais deve ser identificada, essencialmente, com antecipação da tutela18. A antecipação da protecção significa que, mais do que não serem admitidas lesões aos bens ambientais, não é permitida a criação de risco de lesão dos bens ambientais. Consequentemente, a mera criação de risco passa a ser fundamento para indeferimento de pretensões ou mesmo de imposição de proibições, medidas preventivas ou de compensação aos operadores económicos. A densificação destas questões e a distinção entre risco e perigo em pouco serviriam a natureza deste trabalho: o que é relevante aqui dar como assente é que o princípio da prevenção terá um conteúdo tanto mais amplo quanto mais aceitarmos a antecipação da protecção. Há que concretizar em que termos o princípio da prevenção tem sido e pode ser operativo. A sua operatividade mais visível será certamente enquanto critério de actuação da Administração no caso concreto, servindo de fundamento para indeferimento de pretensões de particulares assim como de imposição de condições, medidas de minimização ou medidas de compensação. Mas não é apenas esta a operatividade do princípio. Para além de ser também relevante em termos de interpretação de normas, servirá também enquanto orientação político-legislativa. Nesse sentido, são corolários do princípio da prevenção19 a criação de inversões do ónus da prova20, a imposição de uma regra de indeferimento tácito nos procedimentos autorizativos ambientais21, o recurso à figura dos actos precários22, o reforço dos meios de actuação da administração inspectiva e a efectivação da fiscalização e punição das infracções ambientais. Chegados a este ponto, há que saber até que ponto existe no Direito Penal e do Direito Administrativo Sancionatório um princípio da prevenção ou mecanismos de aplicação com conteúdo coincidente com o que acabámos de explanar. 2.2.2 Prevenção e Direito Penal: os fins das penas, o Direito Penal de Risco e a antecipação da tutela penal O problema dos fins das penas está indissociavelmente ligado ao problema da função e legitimação do Direito Penal e, enquanto tal, é tão antiga como a dogmática penalista. Contudo, se é verdade que as finalidades da punição foram debatidas para legitimar a repressão penal e combater as penas cruéis e desumanas, constatamos que as consequências que dessas teorias se podem retirar tocam em vários outros problemas da dogmática penal, nomeadamente ao nível da estrutura da imputação jurídico-penal e dos critérios para determinação da medida da pena. As teorias dos fins das penas podem ser classificadas de diversas formas, mas, para o que aqui é relevante, reportamo-nos apenas às finalidades preventivas. O objectivo desta análise é claro e limitado: determinar se o princípio da prevenção tem um conteúdo que corresponda materialmente às finalidades preventivas das penas. R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.385-412, jan./dez. 2011

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As teorias relativas, apesar de aceitarem que a aplicação da pena significa a imposição de um mal, justificam essa imposição como uma finalidade preventiva, que poderá incidir sobre o próprio agente – prevenção especial, positiva (prevenção integradora) e negativa (intimidatória do agente) – ou sobre a sociedade – prevenção geral, positiva (reforço da validade da norma e da tutela de bens) e negativa (intimidatória da comunidade). Estes conceitos permitem-nos, rapidamente, concluir que, apesar de denominadas preventivas, as finalidades das penas não têm um conteúdo coincidente com o princípio da prevenção no Direito do Ambiente. É certo que estamos a falar de Direito Sancionatório, pelo que nunca o conteúdo do princípio da prevenção poderia ser rigorosamente transposto. De facto, o que está em causa quando falamos de prevenção é a adopção de medidas para evitar lesões, e o Direito Sancionatório é já a reacção a uma lesão. Por outro lado, a prevenção e repressão poderão servir a mesma finalidade, que é a protecção dos bens ambientais, sendo indubitável que o efeito dissuasor do Direito Penal desempenha uma função preventiva. Mas o que se pretende aqui saber não é se o Direito Penal ou o Direito Administrativo Sancionatório podem ter uma dimensão preventiva – fica assente que sim. A questão que se coloca é a de saber se o Direito Penal pode, pela sua natureza e estrutura próprias, antecipar o facto punível de forma a valorar negativamente e com a mesma relevância o dano causado e a criação do perigo, como faz o Direito Administrativo, ao abrigo do princípio da prevenção. Esta possibilidade revelaria a adequação da tutela penal dos bens ambientais, à luz do transversal princípio da prevenção. Assim, não serão tanto as finalidades das penas que nos podem ajudar nesta tarefa, mas mais o Direito Penal de risco e o problema da antecipação da tutela penal. O Direito Penal de risco traduz uma funcionalização do Direito Penal às necessidades da sociedade de risco. Implica uma colisão com pontos nevrálgicos do Direito Penal clássico, que tutelava os direitos fundamentais dos indivíduos e sancionava apenas as lesões desses bens. Para o que aqui releva, esta funcionalização implica uma antecipação decidida da tutela penal para estados prévios (e mesmo ainda muito distantes) da lesão de interesses socialmente relevantes23. A realidade do Direito Penal de risco tem demonstrado exigir, para além de uma mutação de um Direito Penal fragmentário para um Direito Penal expansivo24, uma alteração de diversos paradigmas do Direito Penal clássico25, para permitir a punição alargada de condutas omissivas ou negligentes, a responsabilização das pessoas colectivas, a construção de tipos aditivos ou cumulativos, a desmaterialização do bem jurídico26 e o aumento do número de tipificações de crimes de perigo27. Ora distinguem-se os crimes de perigo concreto e os crimes de perigo abstracto, consoante a criação de perigo seja ou não elemento do tipo, havendo quanto aos segundos uma presunção inilidível de perigo da conduta. Podemos 392

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afirmar desde já que se trata assim de uma antecipação da tutela semelhante à que é exigida pelo princípio da prevenção no Direito do Ambiente, em que existe um desvalor do perigo criado e não só do dano ambiental efectivamente causado. Compreende-se bem a utilização desta estrutura de tipo num Direito Penal do risco: dispensa-se a comprovação da lesão, deixando de ser necessária a demonstração de um nexo de causalidade de um facto em relação a um dano28. Assim, torna-se necessário demonstrar apenas a perigosidade da acção – nos crimes de perigo concreto – ou simplesmente provar os factos constitutivos do tipo – nos crimes de perigo abstracto. Contudo, os crimes de perigo (em especial, de perigo abstracto) debatem-se com problemas de conciliação com o princípio da culpa e princípio da legalidade com consagração constitucional, cabendo portanto questionar a admissibilidade do sacrifício de um princípio de Direito Penal constitucional em nome da protecção penal de bens jurídicos que não são individuais29. Ademais, à culpa costuma ser contraposta precisamente a ideia de perigosidade (individual), aquando da fundamentação das penas e das medidas de segurança30, o que pode causar ainda mais estranheza. E a responsabilidade penal por criação de meras situações de perigo, sem ter em consideração a lesividade efectiva da conduta do agente, rompe em absoluto com os postulados básicos do Direito Penal e aproxima-o do que é mais próprio do Direito Administrativo31. Assim, caberá questionar onde radica a legitimidade do Estado para punir meras situações de pôr-em-perigo ou ainda para punir não aquelas concretas situações de pôr-em-perigo, mas tão-somente a situação «potencial» de pôr-em-perigo32? É que, se parece ser clara a dignidade constitucional do ambiente (estando fundamentada, por isso, a sua dignidade penal), já não é isenta de dúvidas a legitimidade ou dignidade de delitos de perigo ambiental abstracto33. Não poderíamos aqui abordar esta problemática em toda a sua amplitude. Mas podemos sublinhar que, tendencialmente, será legítima a estruturação do tipo como de perigo abstracto quando a conduta típica for descrita de uma forma precisa e minuciosa34 e a conduta proibida vis[e] proteger, se bem que por meio da mais avançada das defesas jurídico-constitucionalmente permitidas, um concreto e determinado bem jurídico com dignidade constitucional35. Finalmente, caberá ainda neste ponto fazer referência aos crimes de perigo abstracto-concreto ou crimes de aptidão. Se formalmente continuamos a falar de crimes de perigo abstracto – isto é, em que o perigo não é elemento do tipo -, apenas são puníveis as condutas apropriadas ou aptas a desencadear o perigo proibido no caso36. Há assim quem defenda que, na medida do possível, os crimes de perigo abstracto devem ser convertidos em crimes de perigo abstracto-concreto, de forma a resolver os problemas que se colocam ao nível do princípio da culpa, naqueles casos em que o bem jurídico não foi posto em perigo. Esta construção dogmática é relevante para o nosso estudo na medida R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.385-412, jan./dez. 2011

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em que é ilustrativa dos problemas de legitimação dos crimes de perigo abstracto. Caberá agora tentar retirar algumas conclusões. Em primeiro lugar, voltamos a afirmar que a antecipação da tutela penal para estágios anteriores – por vezes muito distantes – da efectiva lesão do bem jurídico, em especial por crimes de perigo abstracto, é um mecanismo semelhante aos do princípio da prevenção no Direito Administrativo. Tanto assim é que os crimes de perigo parecem ser o modelo standard nas reformas penais mais recentes, não tendo os crimes ecológicos fugido à regra37. Nesse sentido, conseguimos encontrar no Direito Penal a consagração do princípio da prevenção. Contudo, a antecipação da tutela penal coloca problemas que deixam as maiores dúvidas relativamente à compatibilidade do Direito do Ambiente – preventivo e carente de uma sistemática tutela antecipada – com a própria natureza, postulados e princípios básicos de Direito Penal, entre os quais se destacam, desde logo, os princípios da subsidiariedade e da culpa. É especialmente elucidativo que, após a consagração (mais que) frequente de crimes de perigo abstracto, a doutrina continue a debater-se com a tentativa de legitimação e justificação desta estrutura, mesmo após uma manifesta flexibilização de paradigmas do Direito Penal clássico. É ainda notória a procura dogmática de alternativas cuja legitimação seja clara, mas que, contudo, afastarão necessariamente o Direito Penal do princípio da prevenção38. 2.2.3 Prevenção e Direito Administrativo Sancionatório: a sanção pelo facto ex ante É curioso verificar que inexiste na doutrina administrativista literatura jurídica com desenvolvimento paralelo ao da doutrina penalista quanto à estrutura da infracção. Perguntamo-nos, portanto, se devemos aproveitar algum do labor já desenvolvido nesta área pelos penalistas para uma dogmatização do Direito Administrativo Sancionatório. Em geral, não tem a doutrina administrativista ou penalista tido grande pudor quanto à aplicação dos princípios e teoria de Direito Penal ao Direito Administrativo Sancionatório, com algumas consequências nefastas, nomeadamente ao nível da assunção da função própria deste ramo do direito e do seu desenvolvimento doutrinário autónomo. Contudo, há que constatar que não é óbvia a necessidade de dogmatização da estrutura das infracções administrativas. É que os problemas relacionados com a antecipação da tutela penal (em especial, os relacionados com a tutela de bens jurídicos com dignidade penal) não se colocam no Direito Administrativo Sancionatório. Demonstração disso mesmo é a utilização (mais que) frequente – e nada censurada – de uma estrutura em tudo semelhante à dos crimes de perigo abstracto. De facto, o Direito Administrativo Sancionatório pode abarcar condu394

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tas axiológico-socialmente neutras, uma vez que, materialmente, é isso que o distingue do Direito Penal39. Com isto, não pretendemos afirmar que não existe ilicitude na conduta objecto da sanção administrativa. Contudo, não tem de incidir sobre esta conduta a censura ético-social (reflexo do princípio da culpa) exigível ao (­e limitadora do) Direito Penal40: a ilicitude no Direito Administrativo Sancionatório advém de uma proibição legal41. Em um exemplo extremo, não é necessária a invocação de uma norma que preveja directamente a proibição de matar, porquanto a ilicitude de matar resulta da censura axiológica que a mesma merece. Pelo contrário, a aplicação de uma sanção administrativa pressupõe sempre a invocação da norma violada (proibição legal) e da norma que prevê a sanção correspondente. Tudo isto serve para concluir que, se é verdade que parece ser possível a aplicação das teorias de construção dos tipos penais aos tipos de Direito Administrativo Sancionatório – infracções de dano ou de perigo –, a verdade é que tal não é particularmente relevante, na medida em que os problemas que lhe estão associados – e que tornam necessária a distinção – não se colocam. Diga-se desde já que encontramos necessariamente no Direito Administrativo Sancionatório o princípio da prevenção, no sentido de antecipação da tutela. Isso decorre de vários factores. Em primeiro lugar e como explicitado anteriormente, o Direito do Ambiente é essencialmente preventivo. Aliás, quase todo o Direito Administrativo assenta em juízos de prognose. Logo, um ramo do direito que visa especificamente sancionar violações de Direito Administrativo do Ambiente tem de seguir o mesmo paradigma; consequentemente, é difícil ao Direito Penal afastar-se de uma antecipação quase extremada da tutela enquanto se vir na sombra do Direito Administrativo. Por outro lado, o Direito Administrativo Sancionatório não se encontra espartilhado pela dogmática base quanto à legitimação da intervenção penal, associada aos princípios da culpa e da subsidiariedade. Assim, e em decorrência da conjugação destes dois primeiros pontos, a própria genética do Direito Administrativo Sancionatório impele-o para a antecipação da tutela, por força da natureza preventiva do Direito Administrativo e da sua vocação para sancionar os infracções de proibições legais. Por isso, a prevenção no Direito Administrativo Sancionatório não se dirige contra o resultado, mas sim contra a utilização dos meios adequados a produzir um resultado; não se trata somente de evitar a lesão, mas antes de prevenir a possibilidade de que esta se venha a produzir42. 2.3 Em especial, a eficácia processual e procedimental Serve esta parte do nosso estudo para dar conta das características próprias do processo penal e do procedimento administrativo sancionatório para daí retirar conclusões quanto à sua eficácia e adequação para tutela dos bens ambientais. Existe um conjunto de considerações gerais que devem ser tecidas nesta sede, mas que são aplicáveis a qualquer área jurídica. Contudo, R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.385-412, jan./dez. 2011

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e como demonstraremos infra, entendemos que existe uma questão que tem especial relevância quando falamos de tutela de bens ambientais: o princípio da oportunidade. 2.3.1. Da inflexibilidade garantística do processo penal, da (suposta) flexibilidade do procedimento administrativo sancionatório e da fuga às garantias do processo penal Dizer que o processo penal é formal e garantístico não é uma ideia nova. São conhecidas as normas constitucionais que consagram garantias e direitos de defesa dos cidadãos contra o ius puniendi. Por isso mesmo, o processo penal assume estruturas rígidas baseadas em princípios como o acusatório, inquisitório, contraditório, presunção de inocência, entre muitos outros. Da necessidade de garantir esses direitos de defesa surge uma regulação pormenorizada e unitária da estrutura do processo, o que parece imprimir ao processo penal outras características: morosidade e complexidade. É também evidente que o Direito do Ambiente é precisamente uma das áreas em que a investigação criminal se revela ineficiente e desadequada. Por isso, variados são os autores que se têm vindo a debruçar sobre o problema da flexibilização do processo penal, em especial considerando as novas necessidades da sociedade de risco, sendo as reformas do processo penal discutidas, em grande parte, em torno do binómio eficiência do processo/garantias do arguido43. O procedimento administrativo sancionatório apareceria, assim, como o oásis no meio do deserto da complexidade processual penal, que permitiria de forma eficaz e eficiente punir os infractores e assim contribuir para a protecção dos bens ambientais. Para além de os prazos serem mais reduzidos, as garantias de defesa serem menores e da possibilidade de reformatio in pejus, o dever de colaboração dos infractores com as autoridades administrativas permite a obtenção de meios de prova, o que é especialmente relevante se considerarmos a complexidade técnico-científica do Direito do Ambiente. Tudo isto parece evidenciar as vantagens de eficácia e eficiência do Direito Administrativo Sancionatório44. Contudo, a realidade é que, talvez por falta de desenvolvimentos dogmáticos próprios, os modelos e paradigmas do Direito Processual Penal têm vindo lentamente a ser transpostos para o Direito Administrativo Sancionatório45. É certo que este fenómeno tem também razão de ser: o alargamento das suas zonas de intervenção, o aumento da gravidade das sanções aplicáveis46 e a crescente complexidade do seu regime47 parecem justificar uma protecção acrescida dos direitos defesa do arguido. É que parece começar a criar-se um verdadeiro Direito Penal aplicado pelas autoridades administrativas e sem as garantias do Processo Penal48, o que evidencia uma cedência das garantias dos cidadãos face às necessidades de eficácia do sistema. Por outro lado, parece ser cada vez mais utópica a ideia de que é possível 396

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criar um sistema comum para todos os tipos de ilícitos administrativos. A expansão do Direito Administrativo Sancionatório levou a que o mesmo abarque áreas diversas e com necessidades muito variadas, desde infracções fiscais simples e violações do Código da Estrada, a infracções de enorme complexidade técnica e de investigação, como são as novas áreas de regulação do Estado (financeiro, económico, ambiental)49. Podemos assim concluir que se é verdade que tendencialmente o processo penal é mais inflexível e garantístico que o procedimento administrativo sancionatório, este último também não é isento de ineficiências procedimentais e de problematização dogmática. 2.3.2 Em especial, o Princípio da Oportunidade 2.3.2.1. Colocação do problema: legalidade vs. oportunidade Nesta parte do nosso estudo, reportamo-nos a dois princípios tipicamente associados ao regime da acção penal: o princípio da legalidade e o princípio da oportunidade. Se o princípio da legalidade impõe o exercício da acção penal quando estão verificadas as condições objectivas indispensáveis de ordem material e processual50, já o princípio da oportunidade acomete à entidade competente a elaboração um juízo discricionário de perseguição ou não do infractor51. Esta questão não é nova.52 Trata-se em rigor de uma tensão entre considerações de natureza principiológica e outras de ordem pragmática, e até mesmo de realização de justiça material: se, por um lado, ao abrigo do princípio da oficialidade e da igualdade, todos os cidadãos devem ser punidos pelo Estado de igual forma, estando verificados os pressupostos da norma formal, a verdade é que afigura-se utópica a ideia de perseguição de todas as infracções à lei formal. Ademais, haverá mesmo casos em que a não perseguição do infractor se revela mais conforme à justiça material que o cego exercício da acção penal. Apesar de sempre ter sido estudada, principalmente à luz do processo penal, esta tensão tem também relevância para o procedimento administrativo sancionatório: de facto, também aqui podemos colocar a questão de saber se os juízos de oportunidade podem ser relevantes na decisão de aplicação da respectiva sanção, quando estão verificados os pressupostos para a sua aplicação. A relevância da questão na economia deste trabalho resulta do facto de que a flexibilidade processual e procedimental, que decorre do princípio da oportunidade, traz uma maior eficácia na protecção dos bens ambientais, permitindo prevenir (agora no sentido comum do termo) lesões, conforme se concretizará. Por isso, o Direito Penal ou Administrativo Sancionatório serão tanto mais adequados para a tutela ambiental quanto maior for a possibilidade de recorrer a juízos de oportunidade. R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.385-412, jan./dez. 2011

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2.3.2.2. Oportunidade e processo penal53 A primeira abertura ao princípio da oportunidade pode surgir quanto às fases preliminares do processo penal (numa fase ainda não judicial). Em consonância com o princípio da legalidade, sempre que houvesse notícia de um crime teria de ser formalmente iniciado o correspondente processo penal54, sendo certo que não haverá abertura de inquérito quando a denúncia é manifestamente infundada ou não concretizada55. Pode ainda haver, ao longo de todo o processo penal, até ao seu término, a admissibilidade de juízos de oportunidade, antes ou depois da passagem para a fase judicial do processo penal. Trataremos estes casos unitariamente, embora a distinção pudesse ser útil em um estudo aprofundado sobre o assunto56. A consagração de mecanismos de oportunidade tem ocorrido desde logo ao nível constitucional, quando se admitem imunidades parlamentares e regimes especiais de exercício da acção penal quanto a órgãos de soberania57. Mas para além destas consagrações (com uma ratio diversa), podemos encontrar diversos mecanismos de oportunidade, como é o caso do arquivamento do processo58, a suspensão provisória do processo59 ou até mesmo formas processuais específicas em caso de consenso60. São apontadas diversas razões a favor de uma consagração do princípio da oportunidade no processo penal: o alívio dos tribunais de processos sem gravidade objectiva; os inconvenientes – até para a vítima - de uma audiência formal ou a prevenção da instrumentalização do processo penal para finalidades de ódio ou rancor pessoais. Ademais, haverá situações em que o diminuto grau de ilicitude, a quase justificação do facto ou a quase exclusão da culpa, a antiguidade dos factos, a idade do agente e a suficiência das sanções não penais justificariam o recurso ao princípio da oportunidade, assim como em casos de simples desnecessidade de punição, por inexistência, no caso concreto, de qualquer razão preventiva que a justifique.61 Contra o princípio da oportunidade, pode desde logo colocar-se a questão de saber se pode existir qualquer discricionariedade no exercício da acção penal, considerando que não estamos perante um processo de partes e que não existe disponibilidade do objecto. O maior obstáculo à sua consagração tem sido o princípio da igualdade, que obrigaria a que, verificados os pressupostos substantivos e adjectivos, fosse exercida a acção penal62. Apesar de todas as vantagens do princípio da oportunidade, torna-se claro que, nos sistemas com matriz legalista, as cedências feitas têm como finalidade a flexibilização dos processo penal tendo em vista o desentorpecimento dos tribunais, funcionando as outras razões supra identificadas – como o diminuto grau de culpa ou a quase justificação do facto – como limites negativos ao princípio da oportunidade e não propriamente como ratio da sua consagração. Por isso mesmo, as consagrações do princípio da oportunidade vêem a sua aplicação limitada a casos em que a quebra da solenidade e inflexibilidade garantística do processo penal é vista com menor gravidade: os casos de criminalidade de bagatela. 398

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Por outro lado, as cedências ao princípio da oportunidade passam pela consagração de mecanismos de oportunidade estritamente regulada em que o legislador impôs critérios rigorosamente delimitados. Neste cenário, é até duvidoso que haja sequer qualquer margem efectiva de apreciação, ou, se existe verdadeiramente consagração de um princípio de oportunidade, uma vez que as opções do Ministério Público são, em muitos casos, nulas, considerando os requisitos exigidos pela lei. Chegados a este ponto, há que compreender de que forma estes mecanismos podem servir a protecção dos bens ambientais de forma mais eficiente e/ ou adequada. Em primeiro lugar, veja-se que, como referido, as finalidades dos mecanismos processuais do princípio da oportunidade referidos parecem ser estritamente intraprocessuais, funcionando qualquer outra circunstância unicamente como limite. Há, certamente, vantagens de celeridade e economia processual, mas que não são específicas da tutela de bens ambientais. Diga-se, contudo, que esta falta de adaptação é previsível: sendo o o processo penal solene e inflexível, tem um regime unitário, isto é, tendencialmente inadaptável a determinadas áreas jurídicas. Por outro lado, a ausência de juízos de oportunidade quanto ao início do processo retira grande parte das vantagens que poderiam decorrer de um princípio da oportunidade no processo penal em geral. Concluímos, portanto, que a timidez do princípio da oportunidade no nosso sistema processual resulta de limitações de ordem constitucional, relacionadas, em geral, com a natureza inflexível e garantística do processo penal, que impedem uma adequação às necessidades específicas de tutela de bens ambientais. 2.3.2.3 Oportunidade e procedimento administrativo sancionatório Se o princípio da oportunidade tem sido um dos tópicos de maior discussão quanto ao moderno Direito Processual Penal, o mesmo já não pode ser dito quanto ao Direito Administrativo Sancionatório63. Classicamente, e tal como já tem vindo a ser dito ao longo deste estudo, há, inevitavelmente, dois postos de observação para quem estuda Direito Administrativo Sancionatório: o Direito Administrativo e o Direito Penal. Estes dois postos de observação levam a que haja uma transposição dos paradigmas de cada um destes dois ramos do direito para o Direito Administrativo Sancionatório. Parecem e xistir, portanto, duas opções: ou consideramos que, sendo aplicado por entidades administrativas, vigoram necessariamente os juízos de discricionariedade típicos do Direito Administrativo; ou defendemos uma vigência do princípio da legalidade, com as concessões ao princípio da oportunidade expressamente previstas na lei, uma vez que estamos perante Direito Sancionatório64. Parece-nos ser da maior utilidade para o estudo a que nos propusemos conseguir afastar tais tendências dualistas e tentar compreender o que mais se adequa à natureza do Direito Administrativo Sancionatório. R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.385-412, jan./dez. 2011

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O facto de estarmos ainda perante Direito Sancionatório leva a que seja invocado o princípio da legalidade, por indisponibilidade do objecto. Os argumentos invocados são essencialmente os mesmos da doutrina processual penalista: o princípio da igualdade, o reforço da vigência da norma e das finalidades preventivas da sanção, a corrupção, a criação de uma posição de submissão do particular face à Administração. Do outro lado da discussão, encontramos dois tipos de argumentos. Nos argumentos de ordem prática, é inevitável a constatação de que a Administração apenas pune uma percentagem ínfima das infracções que detecta65. Afirme-se, portanto, que ad impossibilia nemo tenetur (o Direito pára perante as portas do impossível)66. É certo que estamos apenas perante um argumento de ordem de prática mas há que questionar se o Direito irrealizável ainda é Direito… Mas é o facto de serem entidades administrativas as detentoras do poder administrativo sancionatório que mais dúvidas nos coloca quanto à plena vigência do princípio da legalidade. É que a ponderação de interesses conflituantes é, por natureza, função essencial da Administração, não podendo o mesmo ser afirmado quanto ao Ministério Público, que parece prosseguir um único objectivo: a punição (justa) dos infractores. A Administração Pública defende o interesse público; mas sob esse conceito, aparentemente unitário, subdividem-se vários interesses públicos, muitas vezes conflituantes. Por isso, repete-se, administrar passa sempre – e com grande centralidade – pela ponderação de interesses públicos conflituantes. Ora a aproximação do Direito Administrativo Sancionatório ao Direito Penal substantivo leva à tentação de transposição do modelo processual penal. Contudo, a formalização característica da actividade repressiva não pode sacrificar os fins últimos da instituição67. Adaptando uma expressão clássica da história do contencioso administrativo68, punir infracções administrativas é ainda administrar, uma vez que mesmo nas suas vestes sancionatórias estamos ainda a falar de Administração, que não exerce, a título principal, funções de Justiça, mas sim de polícia ou disciplina69; e não pode nesse exercício deixar de ponderar outros interesses pelos quais também vela, por imposição da lei. É que ao contrário do que parece ser uma assumpção generalizada, a punição das infracções ambientais nem sempre leva a uma superior protecção de bens ambientais. Serve este excurso para concluir que, se a aplicação da lei ao caso concreto pela Administração não passa por uma mera operação de subsunção, mas antes por operações de valoração de interesses e juízos de prognose, não pode senão vigorar um princípio de oportunidade (ou seja, discricionariedade) no procedimento administrativo sancionatório. Esta valoração aparece em todas as fases do procedimento administrativo, principalmente no seu início. Contudo, não concordamos que apenas possa vigorar um princípio de oportunidade para o início do procedimento administrativo sancionatório.70 400

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Não vemos razão para esta distinção: o princípio da oportunidade aplica-se quer à actividade informal da Administração quer ao procedimento em sentido formal. Não vemos óbice a que se decida pela não aplicação de uma sanção ou até pelo arquivamento durante o procedimento, uma vez que estamos perante uma invocação legítima da protecção de outros interesses relevantes e não de um acto camuflado ou clandestino da Administração. Esta preocupação parece estar associada à problemática da posição do denunciante, que será objecto de análise autónoma. Façamos agora a relação com os mecanismos do princípio da oportunidade no processo penal que, face ao que fica descrito, parecem agora ainda mais inflexíveis. Também encontramos no procedimento administrativo sancionatório mecanismos semelhantes aos do processo penal, descritos supra. Contudo, as autoridades administrativas, salvo expressa limitação legal, podem ainda utilizar outros parâmetros, critérios e ponderações de interesses que se encontram vedados aos Tribunais. No nosso entendimento, o princípio da oportunidade não parece ser mais do que a discricionariedade administrativa71 no direito adjectivo. Aproveitamos este ponto para recuperar uma questão já suscitada, mas não devidamente densificada. Grande parte dos obstáculos que a doutrina, levanta ao princípio da oportunidade está relacionada com o receio que se abra a porta à arbitrariedade, numa área sem juridicidade ou parâmetros de controlo. Sucede que há muito que as mesmas dúvidas foram discutidas pela doutrina administrativista, que concluiu pela vinculação da Administração a um bloco de juridicidade72, mesmo em áreas de actuação informal. O maior garante da juridicidade das decisões da Administração é o dever de fundamentação e o princípio da igualdade. Aliás, é nas decisões com maior margem discricionária (maior amplitude do princípio da oportunidade) que o princípio da igualdade ganha relevo autónomo, uma vez que é parâmetro para o caso concreto e não apenas ratio para uma norma que determina a solução no caso concreto. Não pretendemos com isto tudo significar que não há especificidades no Direito Administrativo Sancionatório face ao Direito Administrativo em geral. Em primeiro lugar porque, se é verdade que a função da Administração sancionatória não é de justiça, também não deixamos de reconhecer que existe uma proibição de prosseguir o interesse público de forma injusta73. Por isso mesmo, as decisões administrativas nesta matéria são objecto de recurso para os Tribunais que, tendencialmente, seguem formas de processo semelhantes às processuais penais e não as formas comuns de impugnação de actos administrativos. Uma questão paralela, mas de grande interesse para a compreensão do que aqui se defende, é a de saber qual deve ser, nestes casos, o limite de apreciação do tribunal, caso haja recurso, considerando o princípio da separação de poderes. Parece-nos que aqui se inverte a relação entre a Autoridade e o R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.385-412, jan./dez. 2011

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Tribunal, porque o Tribunal é que deve conformar-se com o juízo de polícia da Autoridade, recebendo-o como critério do caso, e não o contrário.74 Há que concluir que neste contexto a Administração tem de fundamentar a sua decisão (seja ela qual for) e o Tribunal pode decidir em contrário se entender que houve violação do princípio da igualdade (arbitrariedade), ainda que o acto tenha sido praticado no estrito cumprimento formal da lei. Note-se que a ponderação de interesses não pode ser uma fórmula vaga que aceite a ponderação de quaisquer interesses, nem mesmo de quaisquer interesses públicos. Repugna aceitar que a relevância de interesses de natureza socioeconómica impeça a aplicação de uma sanção administrativa75. É do nosso entendimento que os interesses em causa que podem ser considerados têm de estar relacionados directamente com os interesses protegidos pela norma violada – se se tratar de Direito do Ambiente, os interesses terão de ter natureza ambiental. É ainda necessário ponderar a introdução de limitações à vigência do princípio da oportunidade quando estamos perante infracções de especial gravidade ou com criação de elevado risco para os bens ambientais. Partindo do que já ficou dito, podemos descortinar que por trás desta limitação está a percepção de que quando a infracção é muito grave entramos num domínio predominantemente de justiça, pelo que fará sentido reduzir a amplitude com que temos vindo a aceitar o princípio da oportunidade76. Aceitamos que nestes casos estamos numa área em que o interesse público da paz social reivindica uma atenção especial, quando em confronto com outros interesses públicos. Não conseguimos contudo acompanhar a doutrina que entende daqui poder retirar uma regra geral de que apenas vigorará o princípio da oportunidade para infracções leves ou de pouca relevância. Em conclusão, entendemos que os juízos de oportunidade são indissociáveis do procedimento administrativo sancionatório, e que é ignorar esta natureza própria que abre a porta à arbitrariedade. Resulta do exposto que os interesses públicos de reposição da legalidade ambiental, a protecção dos bens ambientais e a punição do infractor nem sempre impõem a mesma decisão, e que os dois primeiros podem representar interesses públicos superiores a este último. Para ilustrar esta afirmação, recorremos a uma classificação de três tipos de infractores que justificarão reacções diferentes da Administração77: O calculista amoral: faz uma ponderação entre os custos do incumprimento e os custos do cumprimento, considerando a probabilidade de detecção. Frequentemente, os custos de incumprimento são considerados à partida como custos do processo produtivo. É evidente que nestes casos a finalidade de justiça e a punição têm de prevalecer sobre quaisquer outros interesses. A Administração tem actuar como entidade puramente sancionatória, com inflexível aplicação da lei78. 402

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O cidadão político e a entidade desorganizada/incompetente: ou seja, aquele que acata as normas de acordo com um juízo prévio quanto à sua razoabilidade e a entidade que não cumpre as normas ambientais por desconhecimento e desorganização interna. Quando a estes dois tipos infractores, o cumprimento futuro das normas ambientais depende da adopção pela Administração de funções de aconselhamento e esclarecimento, uma vez que a mera aplicação da sanção não será suficiente e, frequentemente, será contra-producente, considerando a complexidade jurídica da legislação ambiental e científica das técnicas impostas para monitorização e cumprimento da mesma. Tudo isto representa uma vantagem real do Direito Administrativo Sancionatório, em que a Administração acompanha o particular em direcção ao cumprimento das suas obrigações de natureza ambiental, uma vez que o interesse da justiça (implícito na punição do infractor) poderá não prevalecer sobre o interesse de protecção dos bens ambientais. 3 DOS LIMITES DO DIREITO PENAL E DO DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONATÓRIO Os limites do Direito Administrativo Sancionatório já foram brevemente explicitados e resultam do conceito material de ilícito administrativo enquanto infracção axiologicamente neutra79. Por outro lado, se a eficaz tutela sancionatória estiver dependente da aplicação de sanções graves, não poderá o Direito Administrativo delas ocupar-se uma vez que a tais sanções deverão corresponder as garantias e solenidades próprias do Direito Processual Penal80. A estes limites de natureza dogmática acrescerão limitações de ordem prática: há casos em que a complexidade da investigação criminal ultrapassa a complexidade técnico-científica do Direito do Ambiente. É o caso da criminalidade ambiental transnacional e criminalidade organizada81, para as quais o Direito Administrativo Sancionatório tem eficácia e meios de reacção muito reduzidos e quase inócuos. Por outro lado, também é difícil o controlo das actividades industriais absolutamente clandestinas e que operam à margem da lei e de qualquer contacto com a Administração. Relativamente ao Direito Penal, gostaríamos em especial de f­azer referência ao princípio da intervenção mínima ou necessidade da pena. Na sua origem, este princípio apenas legitimava a acção penal em caso de violação de liberdades e direitos fundamentais; contudo, é utilizado actualmente para exprimir a necessidade de subordinar a intervenção penal à realização de fins necessários à subsistência e desenvolvimento da sociedade82. Em suma: (i) o princípio da intervenção mínima impõe que apenas haja criminalização para protecção de bens jurídicos e valores essenciais do ordenamento, isto é, dignos de tutela penal83; (ii) não será legítima a intervenção penal para protecção de bens jurídicos que poderão ser suficientemente tutelados por outros meios; (iii) a sanção penal terá de ser apta e eficaz para a protecção dos bens jurídicos em causa. R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.385-412, jan./dez. 2011

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A discussão quanto à legitimidade da intervenção penal para protecção de bens ambientais tem-se limitado ao princípio da intervenção mínima, e, mesmo aqui, quase exclusivamente quanto à dignidade penal do bem jurídico protegido84. Tem sido dada resposta afirmativa à questão da dignidade jurídico-penal do bem ambiente e parece não haver grande razão para continuar a debater esta questão, estando assim confirmada a legitimidade negativa85. Mas há ainda muito por descortinar quanto à existência de meios de tutela menos repressivos que possam proteger esses bens86 e quanto à eficácia do Direito Penal na sua protecção87. Ou seja, falta demonstrar a legitimação positiva ou a verificação da carência da tutela penal88. Parece que o estudo feito até este momento permite-nos retirar desde já uma conclusão: salvo determinadas situações, a criminalização de agressões ao ambiente não tem sido feita com respeito pelo princípio da intervenção mínima. A repressão de muitas das condutas atentatórias dos bens ambientais deve ser feita pelo Direito Administrativo Sancionatório, pelas razões indicadas ao longo deste estudo, de ordem prática e dogmática, de eficácia e de adequação, substantivas e processuais. Fica assim em causa quanto a várias infracções o preenchimento de um pressuposto legitimador positivo da intervenção penal: a existência de outro meio menos repressivo que eficazmente proteja o bem jurídico em causa. Mas, para além disso, o Direito Penal não é adequado para a protecção do ambiente contra grande parte das agressões actualmente tipificadas na lei penal e, talvez por isso, não o tem vindo a fazer eficazmente, sendo no caso português (mas não só) irrelevante o número de condenações, apesar da abrangência dos tipos penais. Tudo isto leva à conclusão – não inovadora – de que o Direito Penal do Ambiente tem-se pautado por ser meramente simbólico89, o que constitui uma flagrante violação do princípio da intervenção mínima. Como é sabido, o lema de protecção do ambiente tornou-se agora numa bandeira política. Sucede que, para além de não proteger efectivamente o ambiente, o Direito Penal simbólico tem mesmo efeitos contra-producentes, uma vez que o défice de execução cria uma convicção de impunidade que, não só não protege o ambiente, como incentiva a violação das normas ambientais. BIBLIOGRAFIA ABBOT, Carolyn. The regulatory enforcement of pollution control laws: the australian experience. Journal of environmental law, v. 17, n. 2, p. 161-180, 2005. ANDRADE, Manuel da Costa. A dignidade penal e a carência de tutela penal como referências de uma doutrina teleológico-racional do crime. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 2, n. 2, abr./jun. 1992, p. 173-205. _______. Contributo para o conceito de contra-ordenação (a experiência alemã). Direito penal económico e europeu: textos doutrinários, Coimbra: Coimbra Editora, v. 1, p. 81-121, 1998. 404

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1 Directiva 2008/99/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de Novembro de 2008. 2 Palma, Maria Fernanda. Direito penal parte geral. Lisboa: AAFDL, 1994ª, p. 78. 3 Canotilho, J. J. Gomes, Juridicização da ecologia ou ecologização do direito. Revista Jurídica do Urbanismo e Ambiente, n. 4, dez. 1996, p. 76. 4 RODRIGUES, Anabela Miranda. Poluição. In: DIAS, Jorge de Figueiredo (Ed.). Comentário coninbricense do Código Penal. Parte Especial. Coimbra: Coimbra Editora, t.2, 1999, p. 952. 5 Neste mesmo sentido, veja-se (Comte&Krämer, 2004: 164), (Teixeira, 2001: 36) e (Rexach, 2005: 62). 6 Mendes, Paulo de Sousa. Vale a pena o Direito Penal do Ambiente?, Lisboa: AAFDL, 2000, p. 127. Sublinhe-se, contudo, que muitas vezes os regulamentos administrativos limitam-se a reproduzir o que foi fixado por organismos comunitários especializados (GOMES, Carla Amado. Risco e modificação do acto autorizativo concretizador de deveres de protecção do ambiente. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 461. 7 Esta remissão para normas técnicas tanto pode consubstanciar actos de emissão periódica e de conteúdo circunscrito, como é o caso da fixação dos valores limites de emissão por regulamentos administrativos, como actos destituídos de periodicidade pré-determinada e que têm um conteúdo mais abrangente (melhores técnicas disponíveis). 8 Neste sentido, repudiando a tese de que o Direito Penal dependeria de outros ramos do direito que criariam ilicitude, sendo o Direito Penal meramente sancionatório, vide (Dias, Jorge de Figueredo. Direito Penal. Parte Geral. Coimbra: Coimbra Editora, 2004a, p. 14. 9 Que pode ser entendida em dois sentidos: a impossibilidade de concretização dos elementos do tipo sem remissões/dependência de actos administrativos; e o Direito Penal enquanto mera forma de tutela ao serviço do Direito Administrativo (Mendes, op. cit., p. 148), (Pinto, 2000: 381), (Hassemer, 1996: 324) e (Silva, 2008: 274). 10 Catenacci, Mauro; Heine, Günter. La tensione tra Diritto Penale e Diritto Amministrativo nel sistema tedesco di tutela dell’ambiente. Rivista Trimestrale di diritto penale dell’economia, ano III, n. 4, out./ dez. 1990, p. 921-942, p. 923. 11 A acessoriedade administrativa apresent[a-se] neste domínio como absolutamente necessária, (…) [não havendo] no momento presente, alternativa viável (Dias, op. cit., p. 378). 12 Pinto, Frederico Lacerda da Costa. Sentido e limites da protecção penal do ambiente. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 10, n. 3, jul./set. 2000, p. 371-387, p. 383. 13 Garcia, Maria da Glória. O lugar do Direito na protecção do ambiente. Coimbra: Almedina, 2007, p. 57 e Antunes, Tiago. O ambiente entre o Direito e a técnica. Lisboa: AAFDL, 2003, p. 15. 14 Como por exemplo a Agência Portuguesa do Ambiente, Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade, Administrações das Regiões Hidrográficas, SEPNA – Serviço de Proteçcão da Natureza e do Ambiente, Inspecção-Geral do Ambiente e do Ordenamento do Território. 15 Rodrigues, op. cit., p. 953. 16 (GOMES. Carla Amado. Dar o duvidoso pelo (in)certo? Reflexões sobre o Princípio da Precaução. In Gomes, Carla Amado (ed.). Textos dispersos de direito do ambiente. Lisboa: AAFDL, p. 143-174, 2005, p. 141. 17 GOMES, 2000, op. cit., p. 22. 18 Poderíamos identificar outras dimensões do princípio da prevenção, identificando-o, em geral, com tudo o que possa prevenir a lesão de bens, nomeadamente através da dissuasão de potenciais lesantes. Mas a verdade é que no Direito do Ambiente prevenção significa antecipação, e é neste ponto que se diferencia dos outros ramos do Direito. 19 GOMES, 2005, op. cit., p. 171. 20 Ou seja, caberia ao particular no âmbito do procedimento administrativo ou processo ambiental a prova de que a sua actividade não irá lesar grave e irreversivelmente os bens ambientais, em vez de ter a Administração de o demonstrar positivamente na fundamentação de actos de indeferimento. 21 Apesar disto, a legislação ambiental tem vindo a adoptar uma regra de deferimento tácito. 22 GOMES, 2007, op. cit., p. 247. 23 (DIAS, op. cit., 132). O Direito Penal de risco é objecto das maiores querelas na dogmática jurídico-penal da actualidade, por haver quem sustente, em especial a Escola de Frankfurt, que o Direito Penal não pode servir para tutelar os riscos da sociedade pós-industrial, estando limitado à tutela dos direitos individuais. (DIAS, op. cit., p. 216). 24 Que coloca em causa ou, pelo menos, obriga a uma reformulação do princípio da subsidiariedade do direito penal (Prittwitz, 2004: 38), (Silva, 2005: 262). De facto, assiste-se à crescente utilização do Direito Penal como meio de condução e controlo de sectores da actividade social que surgiram por via da dinâmica da diferenciação social e se emanciparam relativamente à racionalidade prático-ética. É essa utilização

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que, como vimos já, promove a expansão e a consequente hipertrofia da matéria penal, a flexibilização e descaracterização das categorias e critérios de imputação tradicionais e a crescente desformalização do processo penal o que, tudo somado, contribui para o sacrifício injustificado de direitos fundamentais, para a perda da convicção de obrigatoriedade das leis penais e para a desvalorização da pena que se vê transformada num risco social (DIAS, 2009, op. cit., p. 31). 25 DIAS, O direito penal entre a “sociedade industrial” e a “sociedade de risco”. Estudos em homenagem ao Professor Doutor Rogério Soares, Coimbra: Coimbra Editora, p. 583-613, 2001b, p. 598 e Hassemer, Winfried. Rasgos y crisis del derecho penal moderno. Anuário de derecho penal e ciências penales, t. 45, n. 1, jan./abr. 1992, p. 235-249, p. 237. 26 DIAS, 2009, op. cit., p. 771. 27 Em geral, entende-se por crime de perigo aquele em que a realização do tipo incriminador não tem como consequência a lesão efectiva do bem jurídico, bastando-se antes com a mera colocação em perigo do bem jurídico protegido. 28 HASSEMER, 1992, op. cit., p. 242 e Moura, José Souto de. O crime de poluição. A propósito do art. 279.º do Projecto de Reforma do Código Penal. Revista do Ministério Público, ano 13, n. 50, abr./jun. 1992, pp. 15-38, p. 24. 29 MOURA, 1992, op. cit., p. 24. 30 DIAS, 2004a., op. cit., p. 83. 31 Buergo, Blanca Mendoza. Exigencias de la moderna política criminal y principios limitadores del derecho penal. Revista de Administración Pública, n. 121, p. 279-321, 1990, p. 298. 32 COSTA, 2000a, op. cit., p. 568. É também necessário saber quais os critérios para determinar a linha de probabilidade de concretização do risco a partir da qual há uma situação de perigo jurídico-penalmente relevante (Ibid., p. 578). 33 Dias, Jorge de Figueiredo. Sobre o papel do direito penal do ambiente na protecção do ambiente. Revista de Direito e Economia, ano IV, n. 1, jan./jun. 1978, p. 3-23, p. 17). Note-se, contudo, que o autor parece ter mudado a sua posição relativamente à admissibilidade constitucional de crimes de perigo abstracto em geral, conforme resulta de (Dias, 2004a: 293). Também (Costa, 2000a: 571) explicita que se nem todas as criminalizações de condutas violadoras de bens jurídicos são legítimas, forçoso é também aceitar, mesmo que só em termos lógico-argumentativos, que nem todos os meios – neste contexto, nem todas as técnicas de construção do tipo – merecem o juízo abonatório de incontestada legitimidade. 34 DIAS, 2004a, op. cit., p. 293. 35 Assim, a título de exemplo, (Costa, 2000a, op. cit., p. 646.) refere que não é legítima a norma que preveja que “aquele que andar com chapéu na cabeça será punido com pena de prisão de…”, uma vez que, apesar de os elementos do tipo estarem perfeitamente delimitados, não se consegue descortinar qual o bem jurídico-penal protegido. Por isso, autonomizamos um outro requisito para a legitimidade da incriminação mediante um crime de perigo abstracto: que seja possível identificar qual o bem jurídico tutelado (Dias, 2004ª, op. cit., p. 293). Há inúmeras outras construções relativas aos crimes de perigo abstracto: poderão ser vistos como casos de violação de deveres de cuidado sem consequências, havendo mesmo quem entenda que não estaremos perante protecção de bens jurídicos mas da validade da norma em si mesmo considerada como bem jurídico (Jakobs), ou garantia de segurança (Kindäuser, apud Roxin, Claus. In: PEÑA, Diego Manuel et al (Trad.). Derecho Penal. Parte General. Madrid: Civitas Ediciones, 1997, t. 1, p. 409). 36 DIAS, 2004a, op. cit., p. 294. 37 BUERGO, 1990, op. cit., p. 297. 38 Neste mesmo sentido, acrescentando que mesmo quando actua preventivamente o Direito Penal não consegue resultados satisfatórios, refere (HASSEMER, 1996, op. cit., p. 324) que o direito ambiental visa a prevenção, enquanto o direito penal, por seu turno, não só não actua preventivamente, por via de regra, como também, quando seja o caso de se querer fazê-lo actuar dessa forma, nada mais se consegue do que obter resultados sofríveis. 39 Conforme refere (Nieto, Alejandro. Derecho administrativo sancionador. 4. ed. [s/l]: Tecnos, 2005, p. 182) delito será el incendio de un inmueble; infracción administrativa, la edificación con materiales inflamables que pueden provocar fácilmente un incendio. 40 Carvalho, Américo Taipa de. Direito penal: parte geral. Questões fundamentais. Porto: Universidade Católica, 2003, p 64 e DIAS, 2004a, op. cit., p. 150. 41 Não falta quem questione a legitimidade da criminalização dos delicta mere prohibita, infracções a meros interesses funcionais e que não têm ligação com chamado mundo da vida e experiência prática, conceitos relacionados com o consenso social quanto aos valores fundamentais (Dias, 2004a: 113).

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42 NIETO, op. cit., p. 182. 43 Teixeira, Carlos Adérito. Princípio da oportunidade: manifestações em sede processual penal e sua conformação jurídico-constitucional. Coimbra: Almedina, 2000, p. 75 e Beleza, Teresa Pizarro. A recepção de regras de oportunidade no direito penal português: resolução processual de problemas substantivos? Revista Jurídica, AAFDL, n. 21, jun. 1997, p. 9-15, p. 9. 44 Tiedemann, Klaus. In: ARÁN, Mercedes Garcia (Trad.). Lecciones de derecho penal económico. Barcelona: PPU, 1993, p. 230. 45 Esta transposição é surpreendente na medida em que o recurso generalizado ao Direito Administrativo Sancionatório surge com a conclusão que se estava a fazer uma utilização indiscriminada do Direito Penal para protecção de toda e qualquer espécie de fins ou interesses do Estado, num fenómeno de hipertrofia do Direito Penal. Surgiu, assim, um pouco por toda a Europa continental, um fenómeno de descriminalização, com recurso ao Direito Administrativo Sancionatório, tendo em vista a libertação em relação às categorias e aos corolários formais do Direito Processual Penal.. Sendo essa a ratio da expansão do Direito Administrativo Sancionatório, esperar-se-ia que o mesmo não viesse a padecer das mesmas limitações que o Direito Processual Penal. Para compreender esta evolução, vide (Correia, 1973: 257), (Pinto, 1998: 259) e (Lozano 1990: 393). 46 As sanções administrativas pecuniárias e acessórias aproximam-se frequentemente das sanções penais, sendo as sanções pecuniárias em muitas áreas – como no Direito do Ambiente – em montantes muito superiores aos das multas aplicáveis aos crimes ambientais. 47 PINTO, op. cit., p. 271. 48 Ibid., p. 209. Neste sentido, veja-se o Acórdão de 24 de Fevereiro de 1994 do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, no caso Bendenoun v. França (Processo n.º 12547/86). 49 Nesse sentido, reflecte (Veloso, José António. Aspectos inovadores do Projecto de Regulamento da Autoridade da Concorrência. In: ALBUQUERQUE, Ruy de; CORDEIRO, António Menezes (Ed.). Regulação e concorrência: perspectivas e limites da defesa da concorrência. Coimbra: Almedina, p. 29106, 2006, p. 59) que o Regime Geral das Contra-ordenações, aprovado pela Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro só tem sentido para pequenas infracções, facilmente investigadas, com implicações sociais limitadas, e sujeitas a penas ligeiras. 50 Correia, Eduardo. Processo criminal. Coimbra: Almedina, 1965, p. 218. 51 Referimo-nos ao princípio da oportunidade sem ser em sentido formal: tal como tem vindo a ser evidenciado por relevante doutrina, a imposição de juízos de legalidade estrita é algo que, na prática, sofre os maiores obstáculos. O juízo de oportunidade base pode ser feito, desde logo, pela vítima do crime; também os órgãos de polícia criminal não levantam sempre auto de notícia ou de denúncia, mesmo sendo obrigatório, relativamente a todos os crimes de que têm conhecimento. Contudo, tais circunstâncias não têm um substrato jurídico-formal, referindo-se tão-somente à inevitabilidade das coisas e, na sua maioria, a fases pré-processuais (Silva, 2000: 44). Por outro lado, o Ministério Público terá sempre uma margem de liberdade, nem que seja no juízo que faz quanto à existência de indícios suficientes para acusação do agente; também aqui não há juízos de oportunidade mas somente do exercício normal da sua competência, dando certos pressupostos como preenchidos ou não. Sem descurar a relevância prática da actuação informal, nesta sede importa apenas a oportunidade enquanto consenso ou disponibilidade do objecto, ou seja, enquanto discricionariedade: a existência de duas – ou mais – soluções juridicamente válidas perante um caso concreto e cuja escolha está dependente da valoração feita casuisticamente pela entidade competente. As manifestações de princípio da oportunidade no regime dos crimes particulares e semi-públicos (Teixeira, 2000: 33) revelam uma mera disponibilidade do processo pelos ofendidos e não por uma entidade pública, pelo que não são aqui relevantes. 52 Costa, 2000b. op. cit., p. 83 53 Centramos a nossa breve análise no regime jurídico português. 54 No nosso ordenamento jurídico, iniciar-se-ia a fase de inquérito; nos termos do artigo 262.º, n.º 2, do Código de Processo Penal português Ressalvadas as excepções previstas neste Código, a notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de inquérito. A ressalva aqui prevista tem em vista o regime próprio dos crimes públicos e semi-públicos (Gonçalves, Manuel Lopes Maia. Código de processo penal: anotado, 17. ed. Coimbra: Almedina, 2009, p. 553). 55 A menos que se tenha uma concepção amplíssima do processo penal, estaremos não perante o início de um inquérito mas simplesmente de uma investigação pré-processual (Silva, 2000, op. cit., p. 44). Uma vez mais, não nos parece que estejamos a falar aqui de oportunidade em sentido próprio. 56 Veja-se, neste ponto, (Dias, 2004b, op. cit., p. 127), que considera que o princípio da imutabilidade impõe uma indisponibilidade absoluta do objecto do processo a partir do momento em que o tribunal for chamado R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.385-412, jan./dez. 2011

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a pronunciar-se, ao contrário do que sucede em sistemas processuais marcadamente de oportunidade, como é o caso do norte-americano. 57 Por exemplo, na Constituição da República Portuguesa, encontramos mecanismos de oportunidade quanto a crimes praticados pelo Presidente da República (artigo 130.º, n.º 2) e por Deputado (artigo 157.º). 58 Referimo-nos a casos de arquivamento do processo não por falta de indícios que justifiquem a acusação ou por ter sido recolhida prova que demonstra que o arguido não praticou o crime, mas antes por entender que no caso não se justifica a aplicação de uma pena. No nosso ordenamento, a figura está consagrada no artigo 280.º do Código de Processo Penal. 59 Trata-se de uma suspensão do processo sob determinadas condições e que, se cumpridas e decorrido um prazo, culminam no arquivamento do processo. A suspensão provisória do processo está prevista no artigo 281.º do Código de Processo Penal. Sobre este assunto, veja-se (Palermo, Pablo Galain. Suspensão do processo e terceira via: avanços e retrocessos do sistema penal. In: MONTE, Mario J. Ferreira (Ed.). Que futuro para o direito processual penal?, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 613-643, p. 612). 60 Por exemplo, a adopção da forma de processo sumaríssimo, nos termos do artigo 392.º do Código de Processo Penal (SANTOS, 2005, op. cit., p. 137). Análises comparadas podem ser encontradas em TEIXEIRA, 2000, op. cit., p. 75) e (Deu, Teresa Armenta. Criminalidade de Bagatela y Principio de Oportunidad: Alemania y España, Barcelona: PPU, 1991, p. 43). 61 COSTA, 2000b, op. cit., p. 87. 62 COSTA, 2001, op. cit., p. 37 e TEIXEIRA, op. cit., p. 47. 63 Encontramos uma excepção em (Veiga, 2009: 139). 64 Apesar de haver dois postos de observação, não podemos identificar os administrativistas ou os penalistas com qualquer um deles. (Enterría, Garcia de; Fernández, Ramón. Curso de Derecho Administrativo. 8. ed. Madrid: Civitas, v. 2, 2002, p. 190) defendem que en modo alguno puede admitirse que abrir un expediente sancionatorio y sancionar dentro de él constituya una potestad discrecional de la Administración. Contudo, não avançam qualquer fundamentação para esta afirmação. 65 Sendo certo que una cosa es que la Administración no pueda controlar en todo momento la actuación de los ciudadanos y otra que, conocida la infracción, tenga la potestad discrecional de sancionar (TOMILLO, 2008, op. cit., p. 580, nota 5) esta impossibilidade não é apenas aplicável às infracções conhecidas mas também às infracções detectadas. 66 NIETO, 2005, op. cit., p.133 67 Veloso, 2006: 58) 68 Referimo-nos à expressão Julgar a administração é ainda administrar. 69 Veloso, José António. Aspectos inovadores do Projecto de Regulamento da Autoridade da Concorrência. In: ALBUQUERQUE, Ruy de; CORDEIRO, António Menezes (Ed.). Regulação e concorrência: perspectivas e limites da defesa da concorrência. Coimbra: Almedina, p. 29-106, 2006, p. 58. 70 TOMILLO, 2008, op. cit., p. 581, nota 6. Cutanda, Blanca Lozano. El principio de oficialidad de la acción sancionadora administrativa y las condiciones necesarias para garantizar su efectividad. Revista de Administración Pública, n. 161, p. 83-121, 2003, p. 91. Mendazona, E. Cobreros. El reconocimiento al denunciante de la condición de interesado en el procedimiento sancionador. In: WAGNER, Francisco Sosa (Ed.). El derecho administrativo en el umbral del siglo XXI: homenaje al Profesor Dr. Don Ramón Martín Mateo. Valência: Tirant lo Blanch, p. 1437-1468, t. 2. 2000, p. 1454. 71 Para uma conceptualização da discricionariedade administrativa, vide (Wolff, Hans J; Bachof, Otto; Stober, Rolf. In: SOUSA, António F. (Trad.). Direito Administrativo. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, v. 1, 2006, p. 461) e (Ayala, Bernardo Diniz de. O (défice de) controlo judicial da margem de livre decisão administrativa. Lisboa: Lex, 1995, p. 131). 72 Otero, Paulo. Legalidade e administração pública. O sentido da vinculação administrativa à juridicidade. Coimbra: Almedina, 2003, p. 181, 411 e 733. 73 VELOSO, op. cit., p. 58. 74 Ibid., p. 58. Também (NIETO, op. cit., p. 135) sublinha que en principio parece que corresponde a la Administración, y no al juez, valorar las circunstancias determinantes del ejercicio de la facultad sancionadora, decidiendo en consecuencia. Lo cual es cierto y, por ello, el juez no debe substituir el criterio administrativo por su proprio (…). En un contexto de tolerancia, la Administración tiene que justificar las razones que le impulsan a perseguir a un infractor y si el Tribunal revisor aprecia que a habido arbitrariedad deberá anular el acto sancionador aunque haya sido dictado en estricto cumplimiento de la norma y ello porque el vicio del acto se halla en la arbitrariedad manifestada en forma de desviación de poder. Sobre este assunto, veja-se ainda (TOMILLO, op. cit., p. 581, nota 6).

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75 CUTANDA, op. cit., p. 91. 76 (MENDAZONA, op. cit., p. 1454), aceitando o princípio de oportunidade no procedimento administrativo sancionatório, entende que podemos avanzar dos criterios (si bien con un inevitable grado de de vaguedad), a partir de los cuales no sea legítimo reconocer a la Administración competente margen alguno de discrecionalidad en el caso concreto de que se trate, como son: 1º) la gravedad del hecho constitutivo de la infracción; y 2º) las repercusiones de dicha acción o, más concretamente, la entidad del riesgo originado o del daño efectivamente producido. Já (VEIGA, 2009, op. cit., p. 144), tem uma posição diversa da restante doutrina. Resumidamente, entende que há juízo de oportunidade quando as autoridades administrativas agem na sua função de supervisão; já não será esse o caso quando exerce funções de fiscalização e punição. Numa tentativa de separação das duas áreas de actuação, o autor individualiza duas questões que evidenciariam essa divisão: as proibições de prova e as nulidades de actos processuais. Apesar de esta construção ser uma proposta nova e de maior abertura ao princípio da oportunidade, ela destaca-se por um formalismo e irrealismo que nos impede de a ela aderir. 77 Esta classificação foi proposta por R. A. Kagan e J. T. Scholz apud Abbot, Carolyn. The regulatory enforcement of pollution control laws: the australian experience. Journal of environmental law, v. 17, n. 2, pp. 161-180, 2005, p. 161. 78 Esta modalidade de infractores foi considerada aquando da elaboração do artigo 20.º, n.º 1, da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto, que prevê o benefício económico obtido pelo infractor como critério para determinação do montante da coima a aplicar. 79 ANDRADE, 1998, op. cit., p. 85 e DIAS, 1983, op. cit., p. 326. 80 PALMA, 2004, op. cit., p. 85 e LOZANO, op. cit., p. 412. 81 WATSON, 2005, op. cit., p. 207-213. 82 PALMA, 1994a, op. cit., p. 59 e ANDRADE, 1992, op. cit., p. 178. 83 ANDRADE, 1992, op. cit., p. 184. Contudo, ressalve-se o recente desenvolvimento nesta matéria, impulsionado por Günter Jackobs. 84 PALMA, 1995, op. cit., p. 199. 85 ANDRADE, 1992, op. cit., p. 185. 86 PALMA, 1994b, op. cit., p. 438. 87 PINTO, 2000, op. cit., p. 373 e FERRARI, 2003, op. cit., p. 1194. 88 ANDRADE, 1992, op. cit., p. 186. 89 Integrando, portanto, o Direito Penal simbólico (Hassemer,1996, op. cit., p. 327).

T H E E F F I C I E N C Y A N D A D E Q UAC Y O F PENALTY PROTECTION OF ENVIRONMENTAL RESOURCES ABSTRACT This paper aims at investigating what the most appropriate means to protect environmental resources are: through the Judiciary, via Criminal Law; and/ or administratively by means of Administrative Law penalties. This essay concludes that interventions through Criminal Law should be avoided whenever another less repressive procedure is available, which may be equally efficient in ensuring the protection of the environment. Keywords: Environmental assets. Penalty protection. Effectiveness. Adequacy. R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.385-412, jan./dez. 2011

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“Le statut international des personnes victimes de catástrofes naturelles: être ou ne pas être um réfugié?” Philippe Gamito «Seulement quand le dernier arbre aura été coupé, Quand le dernier fleuve aura été empoisonné, Quand le dernier poisson aura été attrapé, Alors seulement vous verrez Que l’argent ne peut pas être mangé.» RESUME L’article analyse les différents textes normatifs existents en Droit international et en Droit communautaire pour proposer un modèle juridique de protection aux victimes de catastrophes naturelles dont la permanence dans leurs locaux de résidence est devenue impossible. MOTS-CLÉS: Victimes environnementales. Refuge environnemental. Catastrophes naturelles. Protection internationale.

INTRODUCTION: LA NOTION DE REFUGE ECOLOGIQUE Le concept de «réfugié écologique» est apparu pour la première fois en 1985 dans un rapport du Programme des Nations-Unies pour l’Environnement (PNUE) en le définissant comme «ceux qui sont forcés de quitter leur lieu de vie temporairement ou de façon permanente à cause d’une rupture environnementale (d’origine naturelle ou humaine) qui a mis en péril leur existence ou sérieusement affecté leurs conditions de vie»2. C’est une définition qui fût directement comprise dans un sens large, étant entendu que la rupture environnementale inclut «les changements physiques, chimiques et/ou bactériologiques dans l’écosystème qui le rend temporairement ou en permanence inapte pour une habitation humaine»3. Cela fait manifestement déjà plus de 25 ans qu’une conscience internationale a émergé à propos des personnes victimes d’un départ forcé en raison d’un phénomène écologique naturel et/ou anthropique. Et, pourtant, c’est encore un phénomène peu « connu » et, surtout, peu pris en compte. Le droit actuel – international, communautaire 414

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ou national – semble encore bien timide et n’offre, a priori, aucun statut aux réfugiés de l’environnement. Peut-être est-ce, notamment, dû à la difficulté de réaliser une typologie des causes migratoires écologiques ?4 Ceci rend le travail de systématisation des motifs de départ très difficile. En effet, le « refuge écologique » peut-être temporaire, définitif, de longue durée, pendulaire, saisonnier, inter-étatique, inter-région, inter-village, etc.5 Face à un concept multiple, la protection juridique offerte par un éventuel statut doit pouvoir être globale et internationale. Cependant, l’arsenal juridique international et les principes généraux du droit international ne peuvent pas être oubliés. C’est pourquoi cette présente étude s’attachera à analyser les différents textes positifs en droit international et communautaire existants (I) afin d’ensuite tenter de proposer un modèle juridique de protection pour les réfugiés de l’environnement, en accord avec les principes généraux (II). I Le droit international et communautaire Nonobstant l’hyperinflation législative dans les domaines de l’environnement6, des réfugiés et des étrangers7, il n’en demeure pas moins que le « réfugié écologique » n’est aucunement mentionné expressis verbis dans les textes internationaux. Il convient néanmoins d’étudier ces textes afin de déterminer leur champ d’application et vérifier leur inapplicabilité dans le contexte des personnes réfugiées de l’environnement. 1 LES TEXTES INTERNATIONAUX 1.1 Les textes spécifiques aux réfugiés Selon l’article 1er A de la Convention de Genève8, le réfugié est celui qui craint « avec raison d’être persécuté du fait de sa race, de sa religion, de sa nationalité, de son appartenance à un groupe social ou de ses opinions politiques (…) ». Cette définition ne reprend pas la notion de réfugié de l’environnement (d’aucuns soutiennent que la fuite pour des motifs généraux et non définis doit être exclue9). L’approche générale de la Convention de Genève, basée sur une idée de « crainte » ou de « persécution » afin de conférer un statut de réfugié politique, ne permet pas d’étendre son champ d’application à un réfugié pour cause naturelle. Même s’il est ­– en toute hypothèse – possible de parler de « persécution écologique », notamment par les entreprises multinationales lorsqu’elles privent un village ou des milliers de personnes dans le besoin de ressources indispensables à leur survie10, encore faut-il que les Etats emboîtent le pas vers de telles interprétations (ce qui semble actuellement relever de la gageure). Par ailleurs, la Convention de Genève concerne le cas où la personne quitte le pays dans lequel elle avait sa « résidence habituelle » et où elle se sent « menacée ». Or, en cas de catastrophe naturelle, peut-être l’Etat arrive-t-il encore à assurer l’ordre public de façon à créer un climat de confiance pour les citoyens et sans qu’ipso facto une catastrophe naturelle R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.414-431, jan./dez. 2011

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implique danger public11. De plus, rien n’indique qu’il faille absolument sortir des frontières du pays lorsque survient un drame d’une ampleur même jamais vue jusqu’alors12. Enfin, la Convention de Genève privilégie une approche individualiste des motifs poussant la personne à demander un statut de réfugié politique. Or, dans le cadre d’une catastrophe naturelle de moyenne ampleur, une approche prima facie (et donc, collective) semble être bien plus pertinente13. Au niveau européen, le « réfugié écologique » ne trouve pas non plus de protection satisfaisante. La directive 2004/83 dite de « qualification »14 offre peu de potentialités permettant d’ouvrir son champ d’application à d’autres types de réfugiés que les réfugiés politiques. En effet, la protection subsidiaire offerte par la directive n’est pas possible pour les motifs d’ordre écologique15. Certains soulèvent l’intérêt de la directive 2001/5516 sur la protection temporaire de personnes en cas d’afflux massif de celles-ci comme pouvant être analysée à la lumière du refuge écologique. Il est entendu, par l’article 2 (d) de la directive, qu’un afflux massif est « l’arrivée dans la Communauté d’un nombre important de personnes déplacées, en provenance d’un pays ou d’une zone géographique déterminés, que leur arrivée dans la Communauté soit spontanée ou organisée, par exemple dans le cadre d’un programme d’évacuation ». L’afflux massif peut tout à fait correspondre à une situation provoquée par une catastrophe naturelle d’autant plus que cette catastrophe répond au critère « d’exceptionnalité » exigé par le § 13 du Préambule de la directive. Néanmoins, de sérieux doutes quant à l’applicabilité de cette directive dans le contexte des réfugiés écologiques sont à relever. Tout d’abord, la directive définit, à l’article 2 (e), le réfugié comme un « ressortissant d’un pays tiers ou apatride au sens de l’article 1 A de la Convention de Genève ». Ceci signifie qu’elle ne pourrait pas s’appliquer à des réfugiés de l’environnement provenant d’un des 27 Etats membres de l’Union européenne. De surcroît, la protection offerte par la directive — si elle devait s’appliquer à un réfugié de l’environnement, quod non — n’est que « temporaire ». Elle n’est, en règle, que d’une année17 (prorogeable par période de six mois pour une durée maximale d’un an voire, d’une autre année supplémentaire, soit 3 ans au maximum). Dans le cas où la catastrophe naturelle rend tout simplement impossible le retour au pays d’origine, le réfugié climatique perdrait sa protection par l’écoulement du temps. Or, dans le cas d’un tremblement de terre comme celui de la République d’Haïti du 12 janvier 2010, la reconstruction demande des années. Force est de constater la vacuité juridique actuelle au niveau européen pour répondre au problème des réfugiés environnementaux18. Au niveau africain, la Convention de l’OUA d’Addis-Abeba du 10 septembre 196919a été soucieuse d’élargir la définition de réfugié à toute personne qui a été victime « d’une agression, d’une occupation extérieure, d’une domination étrangère ou d’événements troublant particulièrement l’ordre public 416

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dans une partie ou une totalité de son pays d’origine ou du pays dont elle a la nationalité »20. L’innovation majeure de l’instrument juridique africain réside dans l’extension de l’effet protecteur du statut de réfugié aux victimes de totalitarismes, de guerres civiles, de conflits internationalisés21 et, dans une certaine mesure, aux réfugiés écologiques. En effet, pour une partie de la doctrine spécialiste en droit de l’environnement, il est possible de voir, dans la notion « d’ordre public », une forme d’extension profitable aux réfugiés écologiques. L’ordre public renvoyant aux notions de sécurité (troublée en cas de catastrophe grave), tranquillité et salubrité publiques (inondations, sécheresses, séismes, tornades, éruptions volcaniques, etc.). Nonobstant la rigueur et l’originalité d’un tel concept22, il sera très difficilement applicable à la Convention de l’OUA dans la mesure où celle-ci reste intimement liée à l’esprit de la Convention de Genève23 dans ses dimensions de persécution et d’exil interétatique24, réduisant très fortement les hypothétiques situations de refuge écologique. Enfin, peut-être est-il envisageable de trouver une protection pour les réfugiés de l’environnement avec le Haut Commissariat des Nations-Unies pour les réfugiés (HCR). La protection offerte par le HCR aux personnes déplacées a considérablement évoluée au fil des années (même si le statut de personne déplacée n’est pas reconnu en droit international positif). Néanmoins, le HCR, dont le financement repose essentiellement sur des contributions volontaires des Etats et qui se trouve en situation quasi-continuelle de cessation de paiement25, ne pourrait assurément pas prendre en charge un déplacement de plusieurs dizaines de millions de personnes (d’autant que son action est pratiquement qualifiée de casuistique). Ainsi, malgré le rapport du HCR sur la situation difficile des réfugiés écologiques présenté en 2002 afin d’alerter la Communauté internationale26, son action ponctuelle ne permettrait pas une prise en charge globale des réfugiés de l’environnement27. 1.2 Les droits de l’Homme Même si certains voient le droit international de l’environnement comme une branche parmi d’autres dans laquelle une incursion des droits de l’Homme est possible28, ce n’est pas l’avis de tout le monde29. Cependant, il est vrai que l’on cherche à protéger l’homme et non l’environnement en matière de « réfugiés de l’environnement ». Il s’agit, avant tout, de procurer des droits à des personnes déplacées. L’objet est certainement différent du droit international de l’environnement puisque l’on cherche, dans ce cas-ci, à agir en aval (l’environnement ayant déjà subi une atteinte). Pourtant, nous estimons qu’il faut rester prudent et considérer les droits de l’Homme comme un outil complémentaire30.

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La Déclaration Universelle des Droits de l’Homme31 est susceptible d’apporter des pistes intéressantes. En effet, elle prévoit à l’article 13 § 2 : « Toute personne a le droit de quitter tout pays, y compris le sien, et de revenir dans son pays ». On peut y ajouter l’article 12 § 4 du Pacte international relatif aux droits civils et politiques32 : « Nul ne peut être arbitrairement privé du droit d’entrer dans son propre pays ». La conséquence est évidemment importante puisqu’en cas d’application directe des articles de ces pactes et par une lecture connexe de ceux-ci, une personne privée de son pays d’origine (par exemple, comme des îles du Pacifique) n’aurait pas de territoire national où revenir de droit et pourrait donc invoquer la DUDH. Cependant, la bouteille n’est qu’à moitié remplie : il ne s’agit-là que d’une protection individuelle et non d’une réponse à une préoccupation collective de protection des droits de l’Homme33. En conclusion, force est de constater que les réfugiés écologiques forment un groupe non reconnu par le droit international et non assisté, étant donné qu’aucune organisation internationale ne dispose d’un mandat les concernant ni de fonds adéquats pour leur venir en aide34. Et, par ailleurs, après notre bref examen des textes internationaux, aucune disposition convaincante ne permet, à l’heure actuelle et à lumière du droit international, de protéger pleinement un réfugié climatique de façon durable et dans le respect des droits de l’Homme. 2 LES PRINCIPES DE DROIT INTERNATIONAL Les migrations liées aux catastrophes naturelles suscitent et susciteront très certainement des déplacements à l’intérieur et vers l’extérieur des Etats. Par conséquent, il faut imaginer une protection qui ait une dimension internationale. Cette nature internationale du statut des réfugiés de l’environnement semble incontournable, indissociable du caractère intrinsèquement international d’une catastrophe35. Pourtant, afin d’atteindre ce niveau de protection sans limitation ratione loci, il faudrait avoir un droit international et un droit des réfugiés plus adaptés. Nous l’avons relevé plus avant, l’application mutatis mutandis de la Convention de Genève de 1951 sur les réfugiés politiques aux cas des réfugiés climatiques s’avère impossible. Et ce, notamment, en raison du caractère résolument interétatique du droit international et du respect des souverainetés nationales. En effet, un Etat accorde sa protection internationale seulement aux personnes ayant quitté leur pays, c’est-à-dire uniquement les personnes pour lesquelles le lien juridique avec leur pays d’origine est rompu de manière irrémédiable. Or, dans le cas de réfugiés climatiques, le lien juridique avec le pays d’origine subsiste mais « est temporairement inopérant »36. Ceci est particulièrement important au regard du principe de non-ingérence dans les affaires d’un autre Etat et le respect de l’intégrité territoriale. Le corollaire de ces principes empêche un autre Etat d’apporter une protection effective à un réfugié-interne (la différence entre 418

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les réfugiés conventionnels et climatiques est donc importante)37. En effet, le principe de la souveraineté des Etats traduisant les principes de non-ingérence et d’intégrité territoriale empêchent théoriquement d’intervenir pour protéger des personnes victimes d’une catastrophe à l’intérieur d’un autre Etat (or, ceci irait à l’encontre d’un droit international de l’Homme à la vie, notamment). À l’heure actuelle, le droit international ne permet pas une telle ingérence d’autant plus que la souveraineté de l’Etat est un principe fondateur38. Néanmoins, depuis les années quatre-vingts, les ONG interviennent sur les lieux des catastrophes écologiques tout en proclamant une forme de « droit d’ingérence humanitaire ». Ayant suscité d’énormes débats, il aura néanmoins eu le mérite de donner l’impulsion à l’Assemblée générale des Nations-Unies afin d’adopter une première Résolution n° 43/131 du 8 décembre 1988 relative à l’assistance humanitaire aux victimes de catastrophes naturelles et situations d’urgence. Quelques temps après est adoptée la Résolution n° 45/100 du 14 décembre 1990 qui crée les « couloirs humanitaires » afin de permettre le libre acheminement de l’assistance à travers le territoire de l’Etat sinistré. Malgré les « avancées » que peuvent apporter ces résolutions, elles n’ont qu’un impact limité car elles ne sont pas assimilées à du véritable droit39 et elles n’offrent pas réellement une protection efficace. En effet, ces résolutions subordonnent toujours l’assistance et l’aide humanitaire au respect du principe de souveraineté. Jetons-y un œil : « Rappelant la souveraineté, l’intégrité territoriale et l’unité nationale des Etats et reconnaissant que c’est à chaque Etat qu’il incombe au premier chef de prendre soin des victimes de catastrophes naturelles et situations d’urgence du même ordre se produisant sur son territoire (…) » 40

Par conséquent, si un Etat décide de ne pas accepter l’aide humanitaire sur son territoire, rien ne le contraint à changer d’avis (hormis une éventuelle pression internationale). Sur le plan des principes, le principe de souveraineté implique qu’une population déterminée, victime d’une catastrophe naturelle, puisse ne pas être aidée, ni même secourue. Etant donné le fait qu’il n’existe aucune convention multilatérale ou bilatérale obligeant un Etat à accepter l’aide extérieure, on comprend d’emblée l’importance qu’un statut de réfugié écologique pourrait avoir41. Néanmoins, d’aucuns soutiennent qu’une situation « d’urgence » permettrait de palier à ce problème en se basant sur le principe 18 de la Convention de Rio de Janeiro de 199242 afin de mettre en place un « devoir d’assistance écologique » comme ersatz au principe de non-ingérence43. 3 UNE PROTECTION ACCORDEE « AU CAS PAR CAS » Selon une très pertinente étude de Daphné Bouteillet-Paquet44, seuls quelques pays européens offrent une protection subsidiaire dans leur législation pour les personnes fuyant une catastrophe écologique. Comme nous l’avons R. R.Opin. Opin.Jur., Jur.,Fortaleza, Fortaleza,ano ano9, 9 n. 13, p.423-440, p.414-431, jan./dez. 2011

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relevé45, l’état actuel du droit international permet une relative hétérogénéité dans l’accueil des réfugiés climatiques ou dans l’éventuelle assistance que l’on peut leur apporter. C’est ainsi que certains pays adoptent des législations « dans leur coin » sans que cela n’ait d’impact considérable. D’autant plus qu’il apparaît que ces quatre Etats – la Grèce, la Suède, la Finlande et l’Italie – n’ont que très peu fait usage de cette faculté d’octroi de protections aux personnes victimes de catastrophes naturelles (en raison même du fait qu’il n’y a aucune obligation internationale contraignante). Lors de la catastrophe de Tchernobyl en 1985, seul le Danemark aurait explicitement abordé le problème du « refuge écologique » mais les requérants n’ont obtenu aucun statut ni un quelconque titre juridique qui puisse leur faire valoir leurs droits46. Au niveau international, on peut citer l’exemple canadien. En effet, après le Tsunami du 26 décembre 2004 en Thaïlande, le Ministère de « la citoyenneté et immigration Canada » a précisé qu’il allait accélérer les demandes des étrangers membres de familles de ressortissants étrangers au Canada victimes du Tsunami47 (mais l’octroi s’est fait au cas par cas selon les dossiers et il fallait donc établir un lien avec une personne vivant au Canada, ce qui rend l’aide presque illusoire). En définitive et devant une telle disparité de « solutions », « la complexification de l’action collective internationale et la multiplication des flux des déplacés obligent à repenser sérieusement les fondements et la finalité du droit international des réfugiés »48 II La construction d’un statut pour le migrant climatique Le Rapport de l’UNU-EHS49 publié en 2005 a permis de lancer quelques initiatives à la fois populaires50 mais aussi étatiques afin d’établir un modèle juridique qui puisse offrir aux personnes victimes de catastrophes naturelles un statut protecteur. Relevons-en deux parmi la pléthore d’idées qui fleurissent au sein de la doctrine internationaliste. 1 L’EXTENSION DE LA DEFINITION DE REFUGIE ISSUE DE LA CONVENTION DE GENEVE DE 1951 D’aucuns estiment qu’il est possible d’amender la Convention de Genève de 1951 afin qu’elle devienne applicable aux réfugiés de l’environnement. Ceci est envisageable par la méthode des Protocoles additionnels afin que l’on tienne compte notamment de l’évolution de la prise en compte des droits humains à l’échelle internationale51. Qui plus est, la défense des droits humains semble être au cœur de l’émergence d’une nouvelle forme de justice environnementale52. En appui de cette affirmation, il ne faut pas perdre de vue que déjà, la Déclaration de Rio de Janeiro de 1992 précisait en son principe premier que les êtres humains sont « au centre des préoccupations relatives au développement durable. Ils ont droit à une vie saine et productive en harmonie avec la nature »53. 420

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Cependant, nous estimons que cette position est critiquable. En effet, nous avons relevé plus avant que l’esprit de la Convention de Genève est basé sur une toute autre conception que celle qui préoccupe les réfugiés liés à l’environnement54. De plus, même si un tel amendement à la Convention de Genève devait être pris, encore faudrait-il que l’Etat garantisse l’application d’une obligation internationale sur son territoire national. Autrement dit, l’obligation de garantir le statut de « réfugié » à une personne toujours sous l’égide de l’Etat duquel elle est originaire peut être particulièrement problématique, lorsque confusion et mauvaises interprétations viendraient à être réalisées entre « réfugiés politiques » et « réfugiés de l’environnement ».55 Dans pareil contexte, la reconnaissance du droit de refugié climatique paraît plus que comprise56. 2 CREATION D’UNE NOUVELLE CONVENTION INTERNATIONALE SUR LES REFUGIES CLIMATIQUES Le droit des réfugiés est manifestement inadapté (sous réserve d’une modification) aux futurs défis des réfugiés environnementaux. En conséquence, peut-être faudrait-il tout simplement appliquer les principes fondamentaux du droit international de l’environnement lui-même57. Ceci ayant l’avantage de ne pas opérer de confusion avec les réfugiés politiques tout en procédant à un recentrage vers le droit international de l’environnement58, de sorte à mieux sectoriser la problématique dans son cadre juridique propre. Ceci permettrait également d’éviter toute « surexposition » des droits de l’Homme dans le contexte des réfugiés environnementaux59. À ce propos, certains estiment que le point de départ serait le principe 21 de la Déclaration de Stockholm, qu’il convient de reproduire ici : « States have, in accordance with the Charter of the United Nations and the principles of international law, the sovereign right to exploit their own resources pursuant to their own environmental policies, and the responsibility to ensure that activities within their jurisdiction or control do not cause damage to the environment of other States or of areas beyond the limits of national jurisdiction. » 60 Ce principe constituerait une base juridique solide en vue de la création de règles coutumières61 voire de règles positives. De plus, ce principe est généralement accepté en tant que règle coutumière de droit international portant essentiellement sur l’obligation de prévenir la pollution transfrontalière62. Néanmoins, « il n’a pas été élargi en vue d’englober les conséquences de la pollution, dont les migrations forcées »63. C’est pourquoi, si l’on décortique cet article en quelques « sous-principes » 64, on pourrait éventuellement y déceler un début d’obligation de protéger les victimes d’une catastrophe naturelle avec une approche collective. Néanmoins, nous R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.414-431, jan./dez. 2011

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estimons cette interprétation bien trop extensive et peu convaincante. En effet, le principe 21 évoque expressément la notion de « sovereign right », ce qui peut déjà laisser penser que les Etats font ce que bon leur semble. De plus, s’il faut commencer à éplucher l’article en une série de sous-principes, cela donnerait lieu à de trop grandes interprétations. Par conséquent, nous estimons que la création d’une Convention internationale pour la protection des réfugiés environnementaux devrait être adoptée sur une nouvelle base mêlant à la fois comme double préoccupation celle de la protection de l’environnement comme objet principal et l’élaboration d’un statut international protecteur acquis instantanément à la suite d’une catastrophe naturelle. Il s’agirait d’agir en amont (protection de l’environnement par le biais du droit actuel, tant au niveau régional qu’international) et en aval, dans l’assistance et l’aide aux victimes. Analysons plus en détail ce modèle proposé. 3 PROPOSITION DE LEGE LATA SUR UN STATUT PROTECTEUR DES REFUGIES DE L’ENVIRONNEMENT Devant les chiffres qui prédisent le nombre de futurs réfugiés de l’environnement, avec une migration à un niveau national, soit avec une migration à un niveau interétatique, les enjeux sont considérables65, ce qui fera d’ailleurs de cet exil écologique un enjeu géopolitique majeur sur l’échiquier international66. Où vont aller ces personnes ? Qui devra assumer la responsabilité de les accueillir ? Ce sont des questions essentielles car elles devront, tôt ou tard, être résolues. 3.1 Une agence internationale et une convention internationale À un niveau matériel, nous estimons que la création d’une institution internationale pour les réfugiés de l’environnement, créée au niveau des Nations Unies, pourrait être une bonne première approche (en collaboration avec le PNUE et le GIEC67). Même si la création d’une telle institution pour les réfugiés politiques fût jadis un échec68, nous pensons qu’aujourd’hui cela serait possible, voire indispensable pour la gestion collective des futurs flux migratoires. Chaque pays membre de l’ONU aurait alors un bureau compétent pour la gestion nationale des catastrophes naturelles afin qu’une coopération et une centralisation de l’information puisse être opérée avec la maison « mère », au niveau international. Ainsi, en cas de catastrophe, une aide immédiate pourrait être apportée (logement, hygiène, alimentation, sécurité, etc.) et coordonnée par cette agence internationale69 pour les protections des victimes de catastrophes écologiques70. Par la dimension transnationale d’une catastrophe sur le plan idéologique (la terre étant « un bien commun de l’humanité »), l’Etat national perdrait son droit à une gestion individuelle de la catastrophe71 à moins que ses structures lui permettent 422

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d’apporter l’aide suffisante72. De plus, la Cour internationale de Justice serait compétente pour connaître de l’application de la Convention73. Mais comment, concrètement, procèderait-on sur le plan juridique ? Malgré le fait qu’il existe une pléthore de causes migratoires74, nous estimons qu’une définition large et à la fois suffisamment précise devrait être rédigée dans la Convention. Elle définirait le champ d’application de la Convention tant ratione materiae que ratione personae. Ainsi, le « migrant forcé »75 ou le « migrant environnemental »76pourrait être facilement identifié et protégé par la Convention pour autant qu’un lien soit établi entre sa situation actuelle et la catastrophe environnementale (autrement dit, que la qualité de sa situation soit inférieure à celle qu’il avait). Le migrant forcé acquerrait alors de plano jure un statut de droit. Il ne s’agirait pas d’un droit individuel mais bien collectif : une forme de droit de l’Homme, issu de la troisième génération des droits de l’Homme (les droits collectifs) car « l’homme ne peut plus se sauver lui-même, pas plus que la communauté à laquelle il appartient, sans une solidarité objective de tous les membres de la communauté internationale »77. Néanmoins, comme nous l’avons déjà relevé, il faut éviter une vision trop anthropocentrique qui négligerait tous les aspects liés à la biodiversité. Les droits de solidarité seraient complémentaires au statut conféré par la Convention. Ainsi, toutes les personnes identifiées comme ayant leur domicile ou identifiées comme vivant dans le périmètre géographique concerné par la catastrophe, acquerraient immédiatement le statut de migrant environnemental protégé par la Convention dès que l’agence internationale fixerait la catastrophe comme étant une catastrophe environnementale78. Dans pareil cas, soit le retour à la maison restera possible et la protection de la convention jouera jusqu’à ce que la situation soit rétablie, soit le retour s’avèrera impossible. C’est exactement cette dernière hypothèse qui est envisageable dans le cas d’une île qui serait engloutie par les eaux. L’on pense notamment aux îles Tuvalu ou même aux Maldives actuellement très actives sur le plan international79. En conséquence, une protection internationale ne peut pas être limitée ratione temporis ; elle doit être « casuistique » et dépendra du type et de l’ampleur de la catastrophe, selon les critères définis par la Convention. 3.2 Application du principe de la responsabilité commune mais différenciée Le rythme rapide du réchauffement climatique dans l’Arctique pose un énorme défi à la population des Inuits80. C’est pour cette raison qu’ils ont soumis une pétition à la Commission Interaméricaine des droits de l’homme81 afin de démontrer l’étroite corrélation entre le réchauffement climatique et les droits de l’Homme. Les changements dans leur vie ont déjà mis en péril le droit à la vie, à la protection physique, à la sécurité, à la santé, à la propriété, etc. R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.414-431, jan./dez. 2011

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Plus fondamentalement, l’intérêt de cette pétition82 est le fait qu’elle soit dirigée contre les Etats-Unis d’Amérique (décrété comme étant le second plus grand pollueur mondial avec une pollution atteignant les 19,9 % des gaz à effet de serre en 2007)83. L’intimé est ici particulièrement intéressant au regard du principe de responsabilité commune mais différenciée. En effet, on retrouve ce principe dans la Déclaration de Rio de Janeiro : « States shall cooperate in a spirit of global partnership to conserve, protect and restore the health and integrity of the Earth’s ecosystem. In view o the different contributions to global environment degradation, States have common but differentiated responsibilities (…) »84 En tant que premier pollueur mondial, les Etats-Unis serait donc dans une position plus délicate au regard du réchauffement climatique. Par une application mutatis mutandis du principe 7 de la Déclaration de Rio de Janeiro à la nouvelle Convention sur les migrants environnementaux, on pourrait imaginer que les Etats-Unis soient obligés d’accueillir un nombre déterminé de migrants forcés de manière proportionnelle à leur degré de pollution. Et ceci vaudrait pour tous les pays « responsables » du réchauffement climatique. Cependant, on imagine tout de suite les problèmes que cela susciterait sur le plan politique surtout qu’il est actuellement, à la lumière des recherches scientifiques, encore difficile de prouver la corrélation entre le réchauffement climatique et l’activité humaine. Et, même si telle preuve scientifique devrait être apportée — quod non —, encore faudrait-il faire avaler la pilule aux pays riches. C’est peut-être ici que les droits de l’Homme pourraient intervenir85 (en imaginant une condamnation des Etats-Unis par la Commission interaméricaine des droits de l’Homme pour « dommage écologique » où la réparation consisterait, notamment, en l’accueil de migrants forcés). Bien que cette solution soit encore elle-même très difficile. 3.3 Critiques du modèle proposé Le principal obstacle à la réalisation d’un modèle juridique propre aux migrants de l’environnement réside sans conteste dans la nature même du droit international public. En effet, nous avons pu relever que les principes de souveraineté, de l’intégrité territoriale et de non-ingérence dans les affaires intérieures d’un autre Etat forment un « axiome » difficile à remettre en question86. Il sera dès lors très compliqué qu’une convention internationale, dotée d’un système juridique propre, et restreignant considérablement la souveraineté des Etats (notamment en matière de politique interventionniste en cas de catastrophe), puisse voir le jour. D’autant que l’existence d’une autorité supranationale capable de coordonner l’action mondiale est subordonnée à la reconnaissance d’un droit international de l’environnement comme relevant du ius cogens87. Par ailleurs, sur un plan plus technique, l’ordonnancement juridique international en matière environnementale est déjà bien chargé. L’ajout d’un nouveau texte ne faciliterait ni la clarté ni l’efficacité du droit international de 424

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l’environnement. De plus, s’il faut mettre en place le principe d’une responsabilité commune mais différenciée, l’afflux massif de migrants environnementaux serait « ingérable » pour les Etats concernés. Précisons néanmoins que l’application de ce principe ne vaudrait que pour les catastrophes naturelles liées directement au comportement de la nature (et non une cause directement anthropique) comme un tremblement de terre ou un cyclone. CONCLUSION: UNE ÉVOLUTION NÉCESSAIRE À l’instar du principe du pollueur-payeur prôné par le Protocole de Kyoto, ne devrait-on pas penser à instaurer une « justice climatique »88 pour les migrants environnementaux ? Une sectorisation de la problématique est essentielle afin de ne pas se perdre dans des chemins politiques tendancieux. Ceci est d’autant plus urgent que l’année 2010 a été particulièrement riche en catastrophes naturelles de grande ampleur : séisme en Haïti en janvier, séisme au Chili et tempête Xynthia en Europe en février, sécheresse en Chine et glissements de terrain au Brésil en avril, éruption du volcan Eyjafjöll en Islande en avril-mai, inondations au Pakistan en juillet-août, inondations sans précédent en Australie récemment, etc.89 Malheureusement, rien n’indique que les choses iront en s’améliorant. C’est pourquoi il est essentiel que la communauté internationale s’attelle à apporter un statut de droit clair et défini pour les personnes touchées par ces catastrophes, qu’elles doivent se déplacer à l’intérieur ou à l’extérieur d’un Etat. De plus, il est important que les Etats développés prennent aussi conscience de leur part de responsabilité dans l’aggravement de l’environnement. Leur implication se fera par le biais d’un investissement important d’autant qu’il apparaît, selon un rapport de la Croix-Rouge et du HCR de 2005, que 97 % des 568 catastrophes survenus entre 1990 et 1998 ont eu lieu dans les pays en voie de développement90. L’asymétrie existante entre la dette de pollution du Nord et du Sud devrait effectivement mener à des responsabilités proportionnelles aux actes du passé. En conclusion, malgré l’instrumentalisation dont font l’objet les migrants environnementaux selon certains (servants d’outil de sensibilisation politique)91, nous pensons, au contraire, qu’il s’agit-là d’un réel enjeu. Le caractère complexe et multiforme des futures migrations ne laissera pas le monde comme il est aujourd’hui. Que ce soit par la création d’un statut international d’éco-réfugié ou par la reconnaissance d’un « asile écologique », force est de constater que le migrant écologique opère un changement de paradigme et bouleverse les principes communément admis en droit international. BIBLIOGRAPHIE ALLAND, D., et TEITGEN-COLLY, C., Traité du droit d’asile, P.U.F. collection droit fondamental, 2002, p. 398. R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.414-431, jan./dez. 2011

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des accidents industriels, etc.). 4 Pour une typologie des catastrophes naturelles: V. MAGNINY, Les réfugiés de l’environnement, Hypothèse juridique à propos d’une menace écologique, 1999, Paris (Sorbonne), Thèse, p. 25. ; Contra : J.J. GOUDET, « Réfugiés écologiques : un débat controversé », R.E.D.E., n°4/2006, p. 381 où l’auteur estime qu’il s’agit d’un ensemble de facteurs qui interagissent de façon complexe pour expliquer les migrations. 5 C. COURNIL, « Les réfugiés écologiques : quelle(s) protection(s), quel(s) statut(s) ?, R.D.P., 2006, n°4, p. 1040. 6 A. KISS ET J.-P. BEURRIER, Droit international de l’environnement, Pédone, 2004. 7 À ce propos : C. COURNIL, Le statut interne de l’étranger et les normes supranationales, éd. L’Harmattan, Logiques juridiques, 2005. 8 Convention de Genève relative au statut des réfugiés, adoptée le 28 juillet 1951 par une Conférence de plénipotentiaires sur le statut des réfugiés et des apatrides ; convoquée par l’Organisation des Nations-Unies en application de la résolution 429 (V) de l’Assemblée générale en date du 14 décembre 1950 (entrée en vigueur le 22 avril 1954, conformément aux dispositions de l’article 43). (C’est nous qui soulignons) 9 D. ALLAND et C. TEITGEN-COLLY, Traité du droit d’asile, P.U.F. collection droit fondamental, 2002, p. 398. 10 C. COURNIL, op. cit., p. 1042. 11 À titre exemplatif : « Port-au-Prince, ville en morceaux au temps du choléra », Le Figaro, 27 novembre 2010 (Haïti étant dans une situation de quasi-guerre civile après le grave tremblement de terre survenu le 12 janvier 2010). 12 Hormis le cas d’une île complètement sous-eau, le refuge écologique peut s’exercer intra muros comme c’est le cas actuellement en Australie (à ce sujet consulter l’adresse internet suivante : www.lemonde.fr article du 17 janvier 2011 : « Inondations : l’Australie s’attend à une facture record »). 13 C. COURNIL, « A la recherche d’une protection pour les ‘réfugiés environnementaux’ : actions, obstacles, enjeux et protections », Revue Asylon(s), N°6, novembre 2008 (disponible à l’adresse internet suivante : http://barthes.enssib.fr/Terra/article843.htlml#nh7 ; dernière consultation 09/02/11). 14 Directive 2004/83/CE du Conseil, du 29 avril 2004, concernant les normes minimales relatives aux conditions que doivent remplir les ressortissants des pays tiers ou les apatrides pour pouvoir prétendre au statut de réfugié ou les personnes qui pour d’autres raisons, ont besoin d’une protection internationale, et relative au contenu de ces statuts, J.O.U.E, 30 septembre 2004, L 304/12. 15 Les motifs sont les suivants : peine de mort ou exécution / torture ou traitements ou sanctions inhumains et dégradants infligés à un demandeur dans son pays d’origine / menaces graves et individuelles contre la vie ou la personne d’un civil en raison d’une violence aveugle et en cas de conflit armé interne ou international. 16 Directive 2001/55/CE du Conseil, du 20 juillet 2001, relative à des normes minimales pour l’octroi d’une protection temporaire en cas d’afflux massif de personnes déplacées et à des mesures tendant à assurer un équilibre entre les efforts consentis par les Etats membres pour accueillir ces personnes et supporter les conséquences de cet accueil, J.O.C.E., L 212/12, 7 août 2001, pp. 12 à 23. 17 Article 4, § 1. 18 En 2004, deux députés européens membres des partis écologistes ont déposé une déclaration pour un statut communautaire de réfugié écologique mais la déclaration n’a pas été adoptée, faute de consensus sur cette question (6 avril 2004, n°9/2004, 324 103). 19 Convention de l’OUA régissant les aspects propres aux problèmes de réfugiés en Afrique, 1001 UNTS, entrée en vigueur le 20 juin 1974. L’entièreté de cette Convention est disponible à l’adresse internet suivante : http://www.aidh.org/Biblio/Txt_Afr/instr_conv_69.htm 20 (C’est nous qui soulignons); Article 1er § 2, de la Convention de l’OUA. 21 R. DEGNI-SEGUI, « L’action des institutions africaines en matière de réfugiés », in Droit d’asile et des réfugiés, colloque de Caen SFDI, éd. Pédone, Paris, 1997, p. 232. 22 Pour une étude approfondie sur cette question: N. Belaidi, La lutte contre les atteintes globales à l’environnement : vers un ordre public écologique ?, Ed. Bruylant, Bruxelles, 2008. 23 Voir Supra., p. 4. 24 Paix et sécurité dans la CEEAC, Actes du colloque international Friedrich Ebert Stiftung, Presses universitaires d’Afrique, Yaoundé, 2007, p. 33. 25 F. TIBERGHIEN, « Réfugiés écologiques ou climatiques : de nombreuses questions juridiques en suspens », accueillir n°246, 17, p. 1 (disponible à l’adresse internet suivante : http://www.revues-plurielles. org /_uploads/pdf/47/246/deplaces_environnementaux.pdf). 26 HRC, « Environmental migrants and refugees », Refugees Magazine, Geneva, UNCHR, Issue 127, 2002, p. 12-13.

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27 Le HCR n’ayant fait qu’une première fois référence aux migrants climatiques en 1997. À ce sujet : P. Gonin et V. Lassailly-Jacob, « Les réfugiés de l’environnement, une nouvelle catégorie de migrants forcés ? », R.E.M.I., 2002, (18) 2, p. 139. 28 A. CHAMBOREDON, Du droit de l’environnement au droit à l’environnement, éd. L’Harmattan, Paris, 2007, p. 184. 29 C. AMADO GOMES, Elementos de apoio à disciplina de Direito Internacional do Ambiente, aafdl, Lisboa, 2008, pp. 367 et s. 30 Voir Infra., p. 13, (1). Nous estimons qu’il faut éviter toute « surexploitation » des droits de l’homme en matière environnementale. 31 D.U.D.H., 10 décembre 1948, A/810 (1948) (Même si, en droit belge, ses dispositions n’ont pas d’effet direct) 32 Pacte international relatif aux droits civils et politiques, adopté et ouvert à la signature, à la ratification et à l’adhésion par l’Assemblée générale dans sa résolution 2200 A (XXI) du 16 décembre 1966. 33 Les prévisions sont pour 2050 sont alarmantes : plus de 200.000 millions de personnes seraient des réfugiés climatiques. La protection doit impérativement être « collective ». À ce sujet : N. Myers, « Environmental Refugees », Population and Environment, vol. 19, n°2, 1997, p. 167. 34 P. GONIN et V. LASSAILLY-JACOB, op. cit., p. 143. 35 V. MAGNINY, op. cit., p. 491. 36 V. MAGNINY, op. cit., p. 462. 37 C. COURNIL et P. MAZZEGA, « Réflexions prospectives sur une protection juridique des réfugiés écologiques », REMI, n°1, 2007, p. 9. 38 P. DAILLER et A. PELLET, Droit international public, éd. LGDJ, 7e éd., Paris, 1999, p. 37. 39 O. CORTEN et P. KLEIN, « L’assistance humanitaire face à la souveraineté des Etats », R.T.D.H., n°11, juillet, 1992, pp. 343 et s. ; Les résolutions relèvent plutôt de la soft law et n’ont pas d’effet contraignant en droit pour les Etats des Nations-Unies. 40 Résolution 45/100 du 14 décembre 1990 (68e séance plénière), 3e paragraphe (C’est nous qui soulignons). 41 Voir Infra., p. 14 à propos du modèle juridique pour le statut de réfugié écologique. 42 « (…) La communauté internationale doit faire tout son possible pour aider les Etats sinistrés (…) ». 43 J.M. LA VIEILLE, « L’assistance écologique », R.E.D.E., n°4/2006, p. 404. 44 D. BOUTEILLET-PAQUET, La protection subsidiaire : progrès ou recul du droit d’asile en Europe ? Une analyse critique de la législation des Etats membres de l’Union européenne, in D. Bouteillet-Paquet Dir., La protection subsidiaire des réfugiés dans l’Union européenne : un complément à la Convention de Genève ?, Bruxelles, Bruylant, 2002, p. 181 et s. 45 Voir Supra., p. 4 et s. 46 Ibidem., p. 182 dans la note (88). 47 Cité par C. COURNIL, op. cit., p. 1052. 48 F. CRÉPEAU, Droit d’asile : de l’hospitalité aux contrôles migratoires, éd. Bruylant, Bruxelles, 1995, p. 318. (C’est nous qui soulignons) 49 United Nations University – UNU-EHS – Institute for Environment and Human security, 2005, « As Rank of Environmental Refugees Swell Worldwide, Calls Grow for Better Definition, Recognition, Support ». Ce Rapport est disponible à l’adresse internet suivante : http://www.ehs.unu.edu/file/get/3916 (dernière consultation : 08/02/2011). 50 À titre d’exemple, « L’Appel de Limoges sur les réfugiés écologiques » de 2005 qui prend la forme d’une résolution demandant aux Etats et autres acteurs de réfléchir notamment à l’élaboration d’un statut international des réfugiés écologiques. 51 P.-O. CHARLEBOIS et P. HALLEY, « Reconnaissance du statut juridique de réfugié environnemental à titre de mesure d’adaptation aux changements climatiques : édification d’une nouvelle responsabilité collective en vertu du droit international de l’environnement » in Différentes perspectives pour un même but : un meilleur environnement, 3e Colloque étudiant de l’IHQEDS, Université Laval, France, 2007, p. 95. 52 A. Michelot-Draft, « Enjeux de la reconnaissance du statut de réfugié écologique pour la construction d’une nouvelle responsabilité internationale », R.E.D.E., vol. 4/2006, p. 440. 53 Déclaration de Rio de Janeiro, 1992, No. E.73.II.A.14. 54 Voir. Supra., p. 4. 55 C. COURNIL, op. cit., p. 1060. L’auteur évoque la possibilité pour les Etats de mêler « réfugiés environnementaux » et « réfugiés politiques » de sorte qu’en prenant comme alibi les procédures d’asile, les Etats en profitent pour interpréter trop rigoureusement les motifs de la Convention de Genève. Toutefois, l’auteur dépasse ce problème en proposant la création d’une « instance internationale » chargée de protéger les

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réfugiés écologiques même si cela risque d’être difficile, admet l’auteur. 56 Par exemple, dans le cadre du droit à un environnement sain, ce droit doit être accompagné de procédures et d’institutions appropriées qui en assurent l’application. Si tel n’est pas le cas, le droit est vidé de son effectivité. Ce serait évidemment pareil pour le droit à un statut de réfugié écologique. À ce sujet : A. Kiss, « Définition et nature juridique d’un droit de l’homme à l’environnement » in Environnement et droit de l’homme, UNESCO, 1987, p. 15. 57 G.S. McCUE, « Environmental Refugees: Applying International Environmental Law to Involuntary Migration », The Georgetown International Environmental Law Review, vol. 6, p. 178. 58 P.-O. CHARLEBOIS et P. HALLEY, op. cit., p. 96. 59 En effet, la Convention de Genève est particulièrement inspirée par les droits de l’homme. La création d’une nouvelle convention permettrait de trouver une autre source principale d’inspiration que ce sont les principes fondamentaux du droit international de l’environnement. 60 Déclaration de Stockholm, 1972, No. E.73.II.A.14., principe 21 (C’est nous qui soulignons). 61 S. DOUMBÉ-BILLÉ, « Droit international et développement durable » in Les Hommes et l’Environnement – En Hommage à Alexandre Kiss, éd. Frison-Roche, Paris, 1998, p. 248. 62 E.B. WEISS, D.B. MAGRAW et P. SZASZ, « International environmental law: Basic Instruments and References », Transnational Publishers, 1992-1999, p. 22. 63 P.-O. CHARLEBOIS et P. HALLEY, op. cit., p. 96. 64 G.S. McCUE, op. cit., p. 180. L’auteur évoque les principes de prévention, le devoir de minimiser les dommages, la fourniture d’information et le devoir de compensation. 65 N. STERN, 2006, « Stern Review: The Economics of Climate Change », HM Treasury, p. 77 (et voir note 33). 66 N. MYERS, op. cit., p. 167. 67 Groupe d’Experts Intergouvernemental sur l’Evolution du Climat. 68 C. COURNIL, op. cit., p. 1060. 69 Dans le but d’éviter des dilutions de responsabilités des multiples acteurs sur le terrain, le flou du partage des compétences et la rivalité entre les organismes compétents. Voir : J.-H. ESCHENBÄCHER, Comment assurer un meilleur fonctionnement du système d’action concertée, R.M.F., décembre, 2005, p. 15. 70 Le financement viendrait du fonds central d’urgence humanitaire créé par l’Assemblée générale des Nations-Unies le 15 décembre 2005. 71 À propos de la possibilité de d’auto-réduire la souveraineté étatique: M. BACHELET, L’ingérence écologique, éd. Frison-Roche, p. 49. Selon l’auteur, il faudrait adopter des normes multisectorielles, des normes de solidarités internationales pour faire face aux risques que court la planète en passant par un abandon partiel de la souveraineté étatique. 72 Une liste des pays ayant montré, par divers indicateurs, leurs moyens de répondre à une catastrophe de grande ampleur serait dressée. Ceci va à l’encontre du principe de souveraineté étatique mais le changement des principes est nécessaire pour faire évoluer le droit international de l’environnement. Voir Supra., p. 10. 73 Sa compétence serait fixée par une forme de clause compromissoire obligatoire en cas de violation de la Convention. 74 Il y a : (1) les accidents naturels (2) les accidents industriels (3) les conflits armés. 75 Nous préférons parler de « migrants forcés » plutôt que « réfugiés environnementaux ». La sémantique porte ici tout le poids de son importance : le premier terme laisse penser qu’il y a une « force majeure » à la base du déplacement, le second laisse, en filigrane, penser que l’on assimile inconsciemment réfugiés politiques (ou économiques) et réfugiés environnementaux. 76 A. SUHRKE et A. VISENTIN, « The environmental Refugee : a new approach », Ecodecision, 1991, p. 73-74. 77 M. EL KOUHENE, Les garanties fondamentales de la personne en droit humanitaire et droits de l’homme, éd. Martinus Nijhoff Publishers, Dordrecht, Pays-Bas, 1986, p. 3. 78 Même dans le cadre d’un conflit armé car l’environnement peut-être utilisé comme arme de guerre (l’exemple le plus connu étant les victimes de “l’agent orange” à la guerre du Viêtnam). 79 Le 26 mars 2008, le Conseil des droits de l’homme a pris la résolution dite « Droits de l’homme et changements climatiques » dans laquelle il demande au HCR de consulter les Etats, ainsi que d’autres institutions internationales afin de conduire une étude détaillée sur les liens entre droits de l’homme et changement climatique. En effet, les Maldives estiment que les changements climatiques sont en train de violer les droits de l’homme. 80 Peuple autochtone des régions arctiques de Sibérie et d’Amérique du Nord.

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81 Le sommaire de la pétition est disponible à l’adresse internet suivante : http://www.inuitcircumpolar. com/files/uploads/icc-files/FINALPetitionSummary.pdf (dernière consultation 09/02/11). 82 Celle-ci a néanmoins été rejetée au motif qu’il n’était pas prouvé que ces faits violent des droits protégés par la Déclaration américaine des droits et devoirs de l’homme. 83 Rapport 2010 de l’agence internationale de l’énergie (AIE) disponible à l’adresse internet suivante : http://www.iea.org/co2highlights/co2highlights.pdf (dernière consultation : 09/02/11). 84 Déclaration de Rio de Janeiro de 1992, principe 7 (C’est nous qui soulignons). 85 G. COMETTI, Réchauffement climatique et migrations forcées, le cas de Tuvalu, The Graduate Institute Publications, Genève, n°5, 2010, p. 58. 86 Voir Supra., p. 9. 87 M. BACHELET, op. cit., p. 214. Peut-être cela passera-t-il par la jurisprudence la Cour internationale de Justice ou par la coutume internationale. 88 P.-O. CHARLEBOIS et P. HALLEY, op. cit., p. 96. 89 Pour une rétrospective des événements marquants de l’année 2010, l’adresse internet est la suivante : http:// aliensx.over-blog.com/article-2010-une-annee-de-catastrophes-naturelles-exceptionnelle-63666361. html (dernière consultation : 09/02/11). 90 Cité par C. COURNIL, op. cit., p. 1061, note (97). 91 P. GONIN et V. LASSAILLY-JACOB, op. cit., p. 157.

INTERNATIONAL ENVIRONMENTAL LAW “THE INTERNATIONAL STATUTE OF VICTIMS OF NATURAL DISASTERS: TO BE OR NOT TO BE A REFUGEE?” ABSTRACT This essay paper analyzes the different legal texts existing in International Law and in Community Law, in order to propose a model of legal protection for victims of natural disasters, whose gravity made it impossible to go on living in their original country area. Key words: Environmental Victims. Ecological Refuge. Natural disasters. International protection.

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Normas de Publicação

Normas de publicação 1 LINHAS DE PESQUISA Os temas poderão receber abordagens variadas, tanto de natureza mais dogmática, quanto teorética. São admissíveis leituras históricas, políticas, jurídicas, metodológicas e interdisciplinares. É facultado aos autores abordar apenas aspectos específicos no contexto maior da linha de pesquisa escolhida. São elas: Constituição, Estado e Sociedade Direitos Humanos e Fundamentais Teoria Política e do Direito Estado Democrático de Direito

2 ESTRUTURA GERAL DO ARTIGO CIENTÍFICO ( 15 A 30 PÁGINAS) Elementos pré-textuais: Título e subtítulo (se houver), separado por dois pontos; Nome do autor (e do co-autor, se houver), acompanhado de breve currículo que o qualifique na área de conhecimento do artigo, com a respectiva titulação acadêmica, endereço eletrônico e filiação institucional (em nota de rodapé);1 Resumo na língua do texto: sequência de frases concisas e objetivas, e não uma simples enumeração de tópicos, de 150 a 250 palavras, espacejamento entre linhas simples. Seguem-se as palavras-chave, representativas do conteúdo do trabalho, separadas por ponto e finalizadas por ponto (de 3 a 5 palavras).

1 A submissão do artigo, sem qualquer menção de autoria, para os pareceristas, ficará a cargo da Editora-responsável.

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Elementos textuais: Modelo A: 1 Introdução 2 Desenvolvimento 3 Conclusão Modelo B: 1 Introdução 2 Referencial Teórico 3 Metodologia da Pesquisa 4 Análise dos Resultados (deve conter a análise dos dados obtidos) 5 Conclusão Elementos pós-textuais: Agradecimento (não é obrigatório) Referências Notas de fim, após referências, em Times Nem Roman 10

3 FORMATAÇÃO DO ARTIGO O título deve estar centralizado, em negrito e em caixa alta, sendo escrito em tamanho 14. Logo abaixo do título do trabalho devem constar o(s) nome(s) completo(s) do autor, do(s) co-autor(es) recuados à direita, acompanhados de breve currículo que os qualifiquem na área de conhecimento do artigo, com a respectiva titulação acadêmica e endereço eletrônico (em nota de rodapé identificada com asterisco).

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Exemplo: TÍTULO DO ARTIGO João J. João2 Pedro P. Pedro3 Maria M. Maria4 O texto deve ser digitado com letra Times New Roman, tamanho 12, usando espaço entrelinhas 1,5 e espaçamento entre parágrafos de 0 pt antes e 06pt depois. O espaço da primeira linha dos parágrafos é de 1cm. As citações de mais de três linhas, as notas de rodapé, as referências e os resumos em vernáculo e em língua estrangeira devem ser digitados em espaço simples. O formato do papel a ser utilizado, tanto na versão eletrônica quanto na impressa, deve ter formato A4 (210 mm x 297 mm), com as seguintes margens: superior e esquerda - 3,0cm; inferior e direita - 2,0 cm. O trabalho deve estar obrigatoriamente digitalizado em Word.

4 REFERÊNCIAS As referências devem ser constituídas por todas as obras citadas no artigo e devem ser listadas de acordo com a norma ABNT-NBR-6023/2002, conforme exemplos abaixo: Livros ALVES, Roque de Brito. Ciência Criminal. Rio de Janeiro: Forense, 1995. BANDEIRA, Manuel (Org). Gonçalves Dias: poesia. 11. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1983. Artigos em periódicos MONTEIRO, Agostinho dos Reis. O pão do direito à educação... Educação & Sociedade, Campinas, SP, v. 24, n. 84, p. 763-789, set. 2003. O MELHOR de dois mundos. Após, São Paulo, ano 1, p. 24-25, fev. 2003.

2 Breve currículo 3 Breve currículo 4 Breve currículo

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Artigos em revistas, jornais etc. MONTEIRO NETO, Armando. Desoneração da folha salarial. Estado de Minas, Belo Horizonte, n. 22.368, p. 9, 26 mar. 2003. Sites CONY, Carlos Heitor. O frágil lenho. Folha online, São Paulo, 19 jan. 2004. Disponível em: <www.folha.uol.com.br/folha/pensata/ult505u135.shtml>. Acesso em: 19 jan. 2004. FREIRE, José Bessa. O patrimônio cultural indígena. In: WELFORT, Francisco; SOUZA, Márcio (Org.). Um olhar sobre a cultura brasileira. Brasília: Ministério da Cultura, 1998. Disponível em: <http: // www.minc.gov.br/textos/olhar/ patrimonioindigena>. Acesso em: 20 jan. 2004. 5 CITAÇÕES As citações deverão ser feitas da seguinte forma (NBR 10520): citações de até três linhas devem estar contidas entre aspas duplas; as citações de mais de três linhas devem ser destacadas com recuo de 4cm da margem esquerda, em Times New Roman 10, sem aspas. Para enfatizar trechos da citação, deve-se destacá-los indicando essa alteração com a expressão “grifo nosso” entre parênteses após a chamada da citação ou “grifo do autor”, caso o destaque já faça parte da obre consultada. texto.

A referência da citação será feita em nota de fim, após as referências do

6 ABSTRACT E KEYWORDS Após as referências, seguem-se as notas de fim; após as notas de fim, culminando todo o trabalho, deve-se fazer constar o título do artigo, o resumo e as palavras-chave em versão para o inglês, com recuo de 4cm, em espaço simples. 7 INSTRUÇÕES AOS AUTORES 7.1 AVALIAÇÃO POR PARES – MODUS OPERANDI Os artigos recebidos passam por uma análise prévia (fase inicial: desk review), envolvendo a equipe de Editores institucionais e/ou Editores-Associados (vinculados a outras Instituições, de outros Estados). Essa primeira fase funciona como um mecanismo de filtragem, quanto à adequação do artigo às linhas de pesquisa, adequação às normas de publicação; inteligibilidade, coerência e coesão do texto; avaliação preliminar da compatibilidade do artigo submetido com as R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 9, n. 13, p.432-437, jan./dez. 2011

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exigências atribuíveis a uma produção em nível de pós-graduação; relevância e adequação do aporte teórico; relevância da discussão enfrentada e potencial de contribuição do artigo para a comunidade acadêmica. Essas são diretrizes às quais a equipe de Editores (institucionais e associados) se atém, de modo geral. Superada essa fase preliminar, o artigo é submetido a, no mínimo, 2 pareceristas, que tenham titulação maior (preferencialmente) ou igual à titulação do co-autor mais bem titulado do trabalho em exame. Atenta-se, ainda, quando da escolha dos pareceristas responsáveis, a uma adequação entre as áreas de conhecimento dos avaliadores e a área da temática enfrentada no artigo, antes de submetê-lo à apreciação dos pares. Opera-se com o sistema double blind review, conforme orientação do Programa Qualis, procedendo-se à desidentificação dos artigos, a fim de que a avaliação por pares seja cega, garantindo-se a lisura do processo. Nessa etapa da avaliação, os pareceristas preenchem uma ficha de avaliação específica e padronizada, a qual é devolvida à equipe de Editores-Responsáveis, recomendando ou não a publicação dos artigos submetidos. Cada parecerista só pode avaliar, no máximo, dois artigos por número publicado. Procura-se, sempre que possível, escolher pareceristas que não pertençam ao mesmo Estado da Federação de onde se originou o artigo. Em caso de divergência de pareceres, ou, permanecendo quaisquer dúvidas, pode a equipe institucional ampliar o leque de avaliações para melhor subsidiar sua decisão. 7.2 IDIOMAS DE PUBLICAÇÃO A Opinião Jurídica aceita artigos escritos em português, espanhol, francês, italiano e inglês. Artigos em alemão serão aceitos apenas de autores previamente convidados. Todos os artigos, independentemente da língua em que estejam escritos, devem fazer constar título, resumo e palavras-chave em inglês – atendendo-se às exigências do Programa Qualis da Capes. 7.3 INEDITISMO A Opinião Jurídica visa à publicação e divulgação de trabalhos inéditos, devendo o autor fazer constar, sob as penas da lei, qualquer condição em contrário, por ocasião da submissão de seu trabalho. Em caso de existência de publicação prévia, deve o autor explicitar o veículo de publicação e o suporte utilizado (virtual ou impresso), a fim de que a equipe de Editores-Institucionais delibere, soberanamente, a respeito da conveniência de uma eventual republicação. 7.4 TRANSFERÊNCIA DE DIREITOS AUTORAIS A submissão de artigo à apreciação da Equipe Editorial da Revista Opinião Jurídica implica, por este mesmo ato, a cessão, por parte do(s) autor(ES), para o 436

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Centro Universitário Christus – UNICHRISTUS, da referida OBRA para fins de reprodução, divulgação, distribuição, impressão, publicação e disponibilização, a encargo da UNICHRISTUS, em qualquer forma ou meio que exista ou venha a existir, nos termos do art. 49 e os seguintes da Lei 9.610/98. Parágrafo Primeiro. A cessão, objeto deste Termo, é feita a título não exclusivo e gratuito, abrangendo a totalidade da OBRA. Parágrafo Segundo. A UNICHRISTUS poderá disponibilizar, para fins didáticos, a OBRA no todo ou em partes, vedada a alteração de seu conteúdo textual, ressalvadas correções e formatações que se fizerem necessárias. Parágrafo Terceiro. A cessão é válida em quaisquer países, em língua portuguesa ou tradução, a critério da UNICHRISTUS. 7.5 DAS RESPONSABILIDADES Ao submeter(em) artigo de sua lavra, o autor (e co-autores, se houver) assume(m), por este ato, a responsabilidade exclusiva pela integralidade do conteúdo da obra de sua autoria. Dessa forma, quaisquer medidas judiciais ou extrajudiciais concernentes ao seu conteúdo serão de sua inteira responsabilidade. Parágrafo único. Em caso de pluralidade de autores, considera-se solidária a responsabilidade, ressalvadas as provas em contrário.

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ISSN 1806-0420

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