Feminicídio no Acre - Uma realidade que se enfrenta

Kátia Rejane de Araújo Rodrigues Procuradora-Geral de Justiça do Acre Celso Jerônimo de Souza Corregedor-Geral Rodrigo Curti Secretário-Geral Gilcely Evangelista de Araújo Souza Procuradora-Geral Adjunta para Assuntos Administrativos e Institucionais Sammy Barbosa Lopes Procurador-Geral Adjunto para Assuntos Jurídicos Álvaro Luiz Araújo Pereira Subcorregedor-Geral Leandro Portela Steffen Ouvidor-Geral Colégio de Procuradores: Kátia Rejane de Araújo Rodrigues (Presidente) Giselle Mubarac Detoni Ubirajara Braga de Albuquerque Patrícia de Amorim Rêgo Cosmo Lima de Souza Oswaldo D’Albuquerque Lima Neto Flávio Augusto Siqueira de Oliveira Sammy Barbosa Lopes Carlos Roberto da Silva Maia Álvaro Luiz Araújo Pereira Gilcely Evangelista de Araújo Souza Celso Jerônimo de Souza Rita de Cássia Nogueira Lima Danilo Lovisaro do Nascimento Produção Patrícia de Amorim Rêgo Coordenadora do Centro de Atendimento à Vítima (CAV) Marcela Cristina Ozório Coordenadora do Núcleo de Apoio Técnico Especializado (NAT) Kelly Souza Diretora de Comunicação Textos Antonia Tavares Jaidesson Peres Ilustrações Beatriz Bentes Coleta e análise de dados Aldo Colombo Júnior Colaboração Carlos Pescador Jacob Júnior Capa e Diagramação Ulisses Lima Ministério Público do Estado do Acre www.mpac.mp.br Procuradoria Geral de Justiça Rua Marechal Deodoro, 472, Centro| Rio Branco-Acre |CEP: 69.900-333 |(68)3212-2000

Feminicídio no Acre -Uma realidade que se enfrenta

' Sumario Prefácio.........................................................................................................08 Apresentação ...............................................................................................11 Saudação ......................................................................................................13 Parte I - Escuta feminina Antes de tudo, ela é uma mulher...............................................................14 Mulheridades da amazônia brasileira ......................................................16 O Triunfo do Patriarcado............................................................................19 A proteção da mulher..................................................................................22 O lugar da mulher na hierarquia de gênero.............................................23 Mulheres Negras.........................................................................................26 Parte II - Gênero e Violência A violência nas feições femininas ..............................................................31 Por ser mulher .............................................................................................37 Parte III - Feminicídios no Acre (2018-2020) Uma leitura da realidade............................................................................39 Primeira história: Ela era a mãe e ele era o filho....................................41 Segunda história: Vida se paga com vida.................................................45 Pobres e do lar..............................................................................................47 Terceira história: Um novo indivíduo .....................................................51 Em idade reprodutiva.................................................................................54 Quarta história: Filhos como testemunhas ............................................57 Pretas e baixa escolaridade........................................................................59 Quinta história: Atrás do caminhão ........................................................62 Sexta história: Esperando o ônibus para ir à escola...............................65 Quem são os companheiros?.....................................................................67 Sétima história: Confidências ...................................................................71 Oitava história: Eles eram mais e mais fortes .......................................75 A hora do medo...........................................................................................78 Nona história:'Gracias'...............................................................................82 Local do crime..............................................................................................86 Décima história: Símbolo..........................................................................89 Ciúmes, armas e munições.........................................................................91 Décima primeira história: Vozes.............................................................98

Parte IV - Crime organizado Guerra entre facções criminosas................................................................103 Décima segunda história: Terror compartilhado...................................106 Décima terceira história: Todas elas..........................................................109 Décima quarta história: Através do espelho............................................112 Parte V - A Justiça Nas mãos da justiça ......................................................................................114 O julgamento..................................................................................................117 Décima quinta história: A culpa é do verão .............................................119 Décima sexta história: Uma verdade........................................................123 O amor............................................................................................................127 Parte VI - Escuta da rede Azeitar a engrenagem....................................................................................129 Polícia civil .......................................................................................................130 Ministério Público ...........................................................................................132 Poder Judiciário ..............................................................................................136 Defensoria Pública do Acre ............................................................................139 Parte VII - Serviços especializados Coordenadoria estadual das mulheres em situação de violência doméstica e familiar do tribunal de justiça .................................................140 Centro de Atendimento à Vítima (CAV) do Ministério Público do Estado do Acre..............................................................................................143 Parte VIII - Orgulho de Ser..................................................................147 Anexo...........................................................................................................149

esmaga com 'odio uma flor ''Quem é capaz de qualquer horror. ''

Prefácio

E

sta publicação é para mulheres e homens em geral. Trata-se do refinamento de dados para ir mais a fundo na realidade dos 37 casos de feminicídio ocorridos no Acre no período de 2018 a 2020 (ver Nota Técnica a seguir), quando o Acre registrou a maior taxa (proporcional ao tamanho da população feminina) de feminicídios do Brasil. O que representa para um estado como o Acre, geográfica e economicamente tão singular em relação a outros estados brasileiros, essa liderança? Quem é a mulher que morre e o homem que mata? Em quais circunstâncias os crimes acontecem? Em que tempo o sistema de Justiça pune os culpados?

São crimes isolados ou guardam alguma similaridade de fatos precedentes pela condição da mulher ou posição dominante dos homens na sociedade capitalista?

O estudo ora apresentado não aborda todos os aspectos que sintetizam um feminicídio, contudo a história é testemunha .

O feminicídio ocorre com frequência no mundo inteiro e as páginas que se seguem refletem a realidade do Acre nas suas peculiaridades, as quais podem diferir da realidade de outros lugares do Brasil.

A liderança que o Acre ocupou nesse período para esse tipo de crime nos entristece e nos remete à reflexão e à ação para mudar a estrutura que converteu, na mesma medida, mulheres e máquinas em força de trabalho a serviço do sistema econômico: tanto útil quanto descartável.

As palavras que vestem as páginas seguintes são o resultado analítico das informações contidas nas peças processuais dos feminicídios, as quais foram sistematizadas em uma matriz específica elaborada pelo Observatório Criminal do Núcleo de Apoio Técnico Especializado (NAT) do Parquet, contendo variáveis das vítimas, autores, fatos e tempo transcorrido do processo penal; todavia, muitos desses campos de variação do modelo não foram preenchidos pela ausência e/ou insuficiência de dados.

A equipe utilizou ainda dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública; “Estatísticas de Gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil”, publicado pelo IBGE no ano de 2020; o Manual de Atuação das Promotoras e Promotores de Justiça em caso de feminicídio (2019), do Conselho Nacional do Ministério Público; “Diretrizes Nacionais Feminicídio: investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres” (2016), do Governo Federal; além de recorrer à literatura feminina que aborda a questão de gênero como elemento central do processo de desenvolvimento global em curso.

É bom destacar que, pela ausência de dados, nos perfis ainda restaram sombras a respeito de escolaridade, faixa de renda, antecedentes de violência doméstica, idade dos filhos menores (quando os tiver), se praticante de alguma religião, por exemplo. Do lado dos autores, além da in-

suficiência de dados do perfil social, há ausências de características físicas, do estado em que se encontrava quando o crime ocorreu, se embriagado ou sob efeito de entorpecentes, características do relacionamento entre a vítima e o autor. Há necessidade de outros estudos sobre a mesma matéria e, se possível, comparação dos dados com os de outros estados brasileiros, no sentido de suprir algumas lacunas, cujas perguntas ainda ficaram sem respostas, como, por exemplo: qual a situação atual dos filhos menores das vítimas e agressores? Há histórico de violência familiar pela parte dos pais dos envolvidos? De que forma as penas para feminicídios são efetivamente cumpridas? As vítimas de feminicídios no Acre realizaram queixas nas delegacias antes de morrerem? Em que medida as políticas públicas são efetivas para combater os feminicídios?

“Realidades” ouviu mulheres das entidades acadêmicas, dos movimentos sociais de mulheres, direitos humanos e de igualdade racial, além de profissionais da Polícia Civil, Defensoria Pública, Ministério Público e Tribunal de Justiça que atuam no âmbito do processo penal.

Além dos números, expostos em gráficos e tabelas, ousamos narrar, em forma de histórias, alguns casos de feminicídio, para mostrar como o fenômeno de fato acontece, tirando da abstração das representações numéricas aquilo que extrapola as cifras. Todas as circunstâncias dos fatos que engendram as histórias foram extraí-

das dos depoimentos, laudos, relatórios e outros elementos de provas. Em alguns momentos, foi preciso acionar os recursos de suposições e hipóteses tão usados pelas ciências para costurar as pontas soltas do experimento da realidade única. É preciso melhorar o preenchimento das fichas descritivas das ocorrências na origem, para que se complete uma análise.

Para evitar que uma história se descolasse, em essência, da outra, e se resumisse a um acontecimento pontual, denominamos as mulheres das histórias de Maria, simplesmente; enquanto os agressores foram chamados de José. Não se trata de tornar os personagens anônimos, e por isso no final da publicação está disposto em tabela o número de cada processo, caso haja interesse em conhecer a história na forma pura da lei.

Que possamos refletir sobre os temas que a publicação “Realidades” está trazendo na sua primeira edição. Que possamos não só fazer, mas criar, pensar, repensar e formular mudanças, porque tudo muda. Por mais que não queiramos, a mudança está acontecendo. Por mais que nos esforcemos para manter as coisas como estão, nada permanecerá como está. A sociedade muda, então por que não haveriam de mudar, também, as suas estruturas? Que possamos edificar novas realidades para homens e mulheres viverem em paz.

Boa leitura.

Apresentação

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com imensa satisfação e consciência da nossa missão constitucional de defender a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis, que compartilhamos com os parceiros institucionais e com a sociedade civil a primeira edição da publicação 'Realidades'. O documento é um dos mecanismos para tornar transparentes informações de interesse público que venham a contribuir com a mudança da realidade social, digo, reverter desigualdades, discriminações, preconceitos e violências.

Por se tratar de uma publicação inovadora na nossa instituição, pois, além do estudo, são demonstrados casos reais, tomamos a decisão de demonstrar a realidade da violência contra as mulheres no Acre por meio da análise de dados dos últimos três anos em que o estado tomou posição dianteira no número de feminicídios proporcionais à quantidade da população feminina no País.

A condução desse primeiro trabalho ora apresentado foi do Centro de Atendimento à Vítima (CAV), com a colaboração do Gabinete da Procuradoria-Geral, juntamente com a Diretoria de Comunicação e o Núcleo de Apoio Técnico Especializado (NAT).

Em respeito às vítimas e às suas famílias, procuramos com essa temática jogar luz sobre o problema, buscando alertar a sociedade e contribuir para evitar novas ocorrências. Procuramos, ainda, adotar uma linguagem acessível à diversidade de leitoras e leitores, com foco na mulher.

Por isso estamos apresentando, em forma de histórias, acontecimentos que provavelmente não foram vistos e que estão por trás dos números, os quais foram exaustivamente explorados. Além disso, contamos com a experiência de analistas criminais e jurídicos e das profissionais da área psicossocial do Ministério Público do Acre.

Essa publicação é, sobretudo, resultado de um compromisso firmado no âmbito interno, por meio da opção estratégica contida no Plano Geral de Atuação (PGA 2020-2021), alinhada ao Mapa Estratégico Nacional (2020-2029), cujo objetivo é 'Aprimorar a efetividade da persecução civil e penal, assegurando direitos e garantias de vítimas e acusados', e tem como iniciativa 'Construir ações integradas de enfrentamento ao feminicídio'. Além disso, o Ministério Público do Acre assinou Termo de Adesão ao Projeto 'Respeito e Diversidade', junto ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), em que se sugere que as unidades ministeriais adotem a perspectiva de gênero, no sentido de fomentar uma atuação mais ampla, no que diz respeito tanto à atuação na repressão quanto à fiscalização e impulso de políticas públicas de respeito às questões da diversidade.

Faço um agradecimento especial às colaboradoras e colaboradores de outras instituições que se fizeram presentes neste trabalho ora apresentado. Esperamos que a mensagem contida nas páginas desta publicação possa contribuir para criar outras realidades em novos marcos civilizatórios.

Kátia Rejane de Araújo Rodrigues Procuradora-Geral de Justiça

Saudação

O

“Mas é preciso ter força É preciso ter raça É preciso ter gana sempre Quem traz no corpo a marca Maria, Maria Mistura a dor e a alegria” (Milton Nascimento e Fernando Brant)

Centro de Atendimento à Vítima (CAV) coordenou o estudo sobre feminicídios ocorridos no Acre no período de 2018-2020, o qual resultou na sistematização de dados que estão demonstrados nessa primeira edição da publicação 'Realidades', idealizado pela Procuradora-Geral de Justiça, Kátia Rejane de Araújo Rodrigues, visando a despertar-nos para a realidade social por meio de uma compreensão de gênero. Usamos um jeito nada convencional a uma instituição jurídica ao singularizar o tempo na palavra “realidades”, para apresentar uma realidade mundial de mulheres e meninas que vem de muito longe. No Acre, considerando nosso estudo, ocorreu em 37 lares, em 03 anos, a média de 01 feminicídio por mês— a maior taxa por pessoas do sexo feminino nos estados do Brasil. Dito de outra forma, o Acre é o estado brasileiro mais perigoso para uma mulher viver, visto que foi recordista nesse tipo de crime por três anos consecutivos.

Mas essa é uma marca que não se comemora, ao contrário, se combate, se enfrenta, se informa, se educa e se protege.

Como missão constitucional de origem, o Ministério Público também é plural na sua singularidade, e essa revista é dedica-

da às mulheres: primeiramente à memória das vítimas e, depois, a todas as mulheres que, de uma forma ou de outra, vão se defendendo das atitudes machistas, racistas, misóginas e transfóbicas; às mulheres que acreditam no poder da transformação e que estão diariamente nos movimentos sociais denunciando e combatendo a violência contra as mulheres; àquelas das instituições públicas e privadas comprometidas com a efetivação de direitos; a todos os homens e mulheres cis, trans e travestis. Um poeta disse que “ter bondade é ter coragem”, outro disse “ter coragem é ter fé” e uma poeta se manifestou dizendo: “mas, fé em quê? na própria fé”.

As mulheres vêm resistindo e resistem, outras morreram e ainda morrem (hoje mesmo ocorreu um feminicídio na capital – 09/07/2021). O que pode ser feito para combater esse ódio? Resistir. Digo: resistir é ter coragem, mas coragem em quê?

Coragem na fé. A realidade de mulheres e homens precisa mudar, e só vamos conseguir um estado de paz quando mudarmos as pequenas realidades que batem nas portas das nossas instituições públicas: educação de qualidade, acesso ao trabalho e ao lazer, boa saúde e um meio ambiente saudável para as atuais e futuras gerações.

Patrícia de Amorim Rêgo Procuradora de Justiça

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE ENFRENTA

Antes de tudo, ela é uma mulher

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ulheres são barbaramente assassinadas todos os dias por seus companheiros, ex-companheiros, namorados, ex-namorados, amantes e ex-amantes dentro de suas próprias casas. É uma das principais causas de morte intencional de mulheres no país, e isso não é caso isolado.

Todo dia é um funeral abafado em que apenas mães e filhos copiosos choram diante do túmulo; no entanto, não se trata de um luto coletivo, já que o arrepio lúgubre não trespassa o limite do tolerável de boa parcela da sociedade que acredita na impossibilidade de se evitar um feminicídio, justamente por ser assunto de foro íntimo, sem dia e hora marcados sem, no entanto, deixar de ser uma probabilidade.

Enquanto isso, pesquisadores e estudiosos no assunto vão mais além e demonstram pormenorizadamente que a violência letal contra as mulheres pelo fato de serem mulheres é decorrente de fenômeno social global antigo, cujas raízes são nutridas pela

ordem patriarcal que inferioriza e subordina as mulheres aos homens.

Muitos dos que olham para um corpo de fêmea ferido não conseguem ver que, por trás da cena repudiável, existe uma série de correspondências do imprevisível com as circunstâncias em que o crime contra a mulher, por razões de gênero, acontece, ainda que estejam frente a frente com a realidade refeita em números, sequenciando um padrão em suas múltiplas formas, mas que não passam de subjetivações do invisível e, assim, vai-se naturalizando aquilo que humanamente é inaceitável.

As pessoas não associam os efeitos à causa de um corpo feminino amortalhado ao chão, sobre uma poça de sangue escorrido da garganta, depois de uma desobediência fatal até mesmo a respeito da roupa que usava, cujo parceiro, enciumado, inconformado com o término do relacionamento, tira-lhe a vida.

A omissão do Estado na garantia de condições para a segurança das mulheres na comunidade, em casa e em outros espaços da vida social, é

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A Lei do Feminicídio, instituiu o tipo penal qualificador do homicídio em razão de a vítima ser do gênero feminino e incluiu o crime no rol dos crimes hediondos. fator causal de feminicídios, diz a antropóloga mexicana Marcela Lagarde (2004), à luz de uma concepção política da violência de gênero no planeta.

Mais recentemente, sobretudo com as discussões fortemente levantadas pelos movimentos feministas, as autoridades passaram a dar mais atenção à exclusão social, às desigualdades e à violência contra as mulheres.

Foram criados mecanismos legais para inibir, prevenir, investigar, punir e erradicar as injustiças na forma de perseguição, ameaça, intimidação e coisas muito piores. Em caso de crimes, a vítima tem o direito de ser restituída, reparada e compensada justa e eficazmente, visando a enfrentar as desigualdades de gênero. É o caso da Lei Maria da Penha no Brasil.

A Lei Maria da Penha é considerada uma conquista para a afirmação dos direitos humanos das mulheres. A partir dela, que inclui casais homoafetivos, o estado brasileiro passou a ter a obrigação de enfrentar sistematicamente a violência doméstica e familiar, tanto de forma preventiva, com ações

educativas, quanto de forma repressiva, com punição aos agressores que pratiquem algum tipo de violência.

Inclusive, vários estudos demonstram que a Lei Maria da Penha vem evitando muitos casos de violência doméstica e familiar, e a explosão da taxa de mortes de mulheres. Dentre os mecanismos previstos na Lei, há as medidas protetivas destinadas a dar proteção às mulheres em situação de risco. A efetividade da lei esbarra, porém, na dificuldade para a institucionalização dos serviços de apoio às vítimas nas diferentes regiões do país.

Ante a necessidade de se tratar o feminicídio como delito específico, surgiu depois a Lei do Feminicídio, que instituiu o tipo penal qualificador do homicídio em razão de a vítima ser do gênero feminino e incluiu o crime no rol dos crimes hediondos. Além de proteger a vida da mulher, sua edição foi importante para que o poder público dispusesse de dados necessários à construção de políticas públicas de combate à violência contra a mulher.

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Escuta feminina

Mulheridades da amazônia brasileira "A violência contra a mulher é estrutural, e por isso, requer ações de envergadura para combatê-la."

Concita Maia Pedagoga

“

O papel do movimento feminista é de resistência, resiliência e luta contra as diversas violências”, diz Concita Maia em entrevista ao Ministério Público do Acre. Pioneira no movimento feminista do Acre, pedagoga e ex-secretária de Estado de Políticas Públicas para as Mulheres, ressalta que o propósito de

luta é o mesmo, mas cada lugar tem a sua singularidade, e a da Amazônia é a riqueza da pluralidade, cuja marca é indelével.

“Ser mulher na Amazônia é ser plural na unicidade: indígenas e não indígenas, negras e não negras, quilombolas e afroamazônidas. São várias mulheridades dentro do mes-

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mo território: trans, lésbicas, cis, bissexuais, travestis, com deficiência, meninas; extrativistas, camponesas, agricultoras, quebradoras de coco babaçu (no Maranhão), marisqueiras, pescadoras, parteiras, benzedeiras; da cidade, do campo, das águas, das florestas”, conta a feminista.

“O fim da violência contra as mulheres passa por um processo de desconstrução de mentalidades e de mudança de paradigma da sociedade patriarcal, machista e capitalista que oprime e nos reduz. Como educadora paulofreireana, acredito na educação para uma nova mentalidade baseada em princípios como o respeito, a igualdade e a equidade de gênero”.

Esse ideal de sociedade desejada pelas mulheres levará algum tempo, mas é possível e “é por isso que ainda estou nas trincheiras de luta, porque trago essa esperança de no futuro se dizer com saboroso espanto: nossa! antigamente homem batia em mulher, antigamente mulheres morriam só pelo fato de serem mulheres.

Talvez eu não esteja mais viva quando esse tempo chegar, mas eu acredito que a luta de hoje é semente que as gerações futuras irão colher: um mundo de paz”.

A violência contra a mulher é estrutural, e por isso, requer ações de envergadura para combatê-la.

“Vivemos num sistema que coisifica as mulheres como se fossem objetos e propriedades. Chega de matança de mulheres, chega de se apropriarem de nossos corpos”, diz a feminista. É preciso que juntemos a sociedade civil, as instituições, e façamos um grande le-

vante... é o que estamos [movimento feminista] fazendo agora em todo o País e que já reuniu mais de 200 mil assinaturas em seu manifesto pedindo o fim da morte das mulheres desde que foi lançado em nível nacional no dia 25 de março deste ano”.

Concita Maia coordena a campanha no Acre, por meio do Instituto de Mulheres da Amazônia – IMA. Diz: o slogan da campanha é “Nem pense em me matar. ‘Quem mata uma mulher mata a humanidade’.

“Nós temos um manifesto e o objetivo é fortalecer a luta feminista contra tudo o que nos oprime, tudo o que nos massacra, nos violenta, nos mata. [...] mas é preciso um trabalho efetivo de rede. Não adianta o movimento social ir para um lado, as instituições nos seus casulos, porque quando uma mulher sofre uma violência sexual, para onde vai? Para o Instituto Médico Legal. Quanto ao papel do movimento social, é denunciar, propor, monitorar, cobrar políticas públicas, só que no momento o País vive o impossível.

“Tivemos momentos mais esperançosos, mais otimistas, com resultados mais concretos. Tivemos o lançamento do Plano Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher, nós tínhamos no governo federal a Secretaria Extraordinária de Políticas para as Mulheres. E isso respingava também pelos estados, como nós já tivemos no Acre uma Secretaria de Estado de Políticas para as Mulheres, que hoje está reduzida a uma diretoria. Isso dificulta o trabalho, porque a violência contra a mulher não é pri-

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"É um apelo: escutem a nossa voz, escutem as nossas pautas de lutas e as nossas demandas."

Concita Maia

oridade das políticas governamentais. Nesse atual governo a gente vê estímulo à violência contra a mulher, estimula inclusive o próprio feminicídio, pois ser a favor da liberação de armas... isso significa mais mulheres mortas. A gente vive num contexto em que o estímulo à violência contra a mulher é institucionalizado.

“No movimento é luta todo dia.

Temos muitas mulheres ameaçadas de morte, o que chamo de feminicídio anunciado, umas conseguiram ir para o exílio. Nossas lideranças indígenas estão sendo mortas. Precisamos estreitar ainda mais as parcerias com os poderes e o Ministério Público. No Acre temos um Plano Estadual de Políticas para as Mulheres que foi elaborado escutando mais de 5 mil mulheres dos 22 municípios. Esse plano precisa ser reconhecido pela atual gestão e colocado em prática porque é um instrumento legítimo, lançado pelo Executivo e apreciado pelo Legislativo. É um instrumento importante para o sucesso das políticas em suas transversalidades - na saúde, na edu-

cação, na geração de emprego e renda, na agricultura.

“O Acre há três anos é campeão no ranking de violência contra a mulher, é o estado que mais mata mulheres e é o que oferece as piores condições para as mulheres viverem. Uma das maiores dificuldades da mulher é a invisibilidade das nossas realidades e do nosso protagonismo que são muitos e múltiplos.

“É um apelo: escutem a nossa voz, escutem as nossas pautas de lutas e as nossas demandas. Eu venho do movimento social, a minha militância é o que me move, embora eu seja professora, pós-graduada, mas é onde [movimento social] eu sinto que estou cumprindo minha missão na mudança dessa sociedade tão adoecida pela ganância do capitalismo, pelas mazelas do patriarcado, pela perversidade e exclusão do machismo, da misoginia, do racismo. Então, é onde faço minha incidência feminista. Então, é preciso agir para que possamos ter uma sociedade onde o amor possa triunfar”.

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Escuta feminina

O Triunfo do Patriarcado "Há vários níveis de violência e o mais intenso é o feminicídio."

Madge Porto Cruz Professora e Pesquisadora da UFAC

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feminicídio é fruto de uma sociedade cujas referências são patriarcais, sobretudo em relações íntimas de afeto, nas quais deveria haver confiança, e a mulher que passa por isso já vinha enfrentando histórico de violência.

“Embora a mulher tenha adquirido direitos efetivos, há ainda no imaginário da população ideias, que permeiam a sociedade, de que as mulheres são para servir aos homens na realização dos seus desejos. Quando elas não correspondem a esses desejos, o homem se sente na condição de

puni-las. Há vários níveis de violência e o mais intenso é o feminicídio. Uma mulher que foi assassinada por um homem já passou vários anos vivendo violências, estudos mostram que de cinco a 10 anos”, alertou a psicóloga Madge Porto Cruz, professora, pesquisadora do tema e vinculada ao curso de psicologia da Universidade Federal do Acre (Ufac).

O Brasil ocupa a quinta posição no ranking de 83 nações em números de feminicídios, informa a ONU Mulheres/Mapa da Violência 2015. Estudos sobre esse tipo de violência são indispensáveis para compreender a vi-

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olência de gênero como uma esfera do modelo patriarcal e autoritário, cujas raízes estão fincadas no paradigma do capitalismo.

Há uma perspectiva racional, histórica e simbólica do patriarcado que remonta à Idade Média na Europa (séculos XVI e XVII), sob a forma de discriminação do trabalho da mulher no berço do capitalismo, a qual é explorada pela professora, escritora e militante feminista Silvia Federici em sua obra “Calibã e a Bruxa - mulheres, corpo e acumulação primitiva”. Numa tentativa de síntese, apresentaremos a seguir algumas nuances dessa história e seus reflexos nos dias de hoje, quando se fala de violências e crimes contra as mulheres.

Na nascente sociedade capitalista, o corpo feminino foi reduzido a máquina natural de criação e transformado em instrumento para a reprodução e expansão da força de trabalho, funcionando em ritmo fora do controle das mulheres. O corpo da mulher feudal foi dessacralizado e objetificado para servir à força criadora do capital primitivo. Do mesmo modo que se colonizavam terras, se colonizavam corpos femininos e, com maior veemência, os corpos pretos. Seus úteros foram controlados pelos homens e pelo Estado: a procriação foi colocada a serviço da acumulação capitalista.

Havia uma crescente diferenciação entre o trabalho feminino e masculino, à medida que as tarefas realizadas por mulheres e homens se tornavam mais diversificadas e, sobretudo, passavam a sustentar relações sociais diferentes.

A suposição de que as mulheres não deviam trabalhar fora de casa, e de que tinham apenas de participar da produção para ajudar seus maridos, ganhava cada vez mais espaço.

Dizia-se até mesmo que qualquer trabalho feito por mulheres em casa era “não trabalho”, não possuía valor, mesmo quando voltado para o mercado. Se uma mulher costurava algumas roupas, tratava-se de “trabalho doméstico” ou “tarefa de dona de casa”, mesmo se as roupas não eram para a família, enquanto o homem fazia o mesmo trabalho e se considerava como “produtivo”.

A desvalorização do trabalho feminino era tanta que os governos ordenavam que se ignorasse o produto do trabalho das mulheres feito em casas. A discriminação sofrida pelas mulheres como mão de obra remunerada esteve diretamente relacionada à sua função como trabalhadora não assalariada do lar.

As mulheres não tinham direito ao estudo, não acessavam o mundo intelectual e era como se o mundo também não lhes pertencesse ou que elas não foram feitas para habitá-lo como deveriam.

Tal política, que impossibilita às mulheres terem seu próprio dinheiro, criou condições materiais para a sujeição das mulheres aos homens.

Esse tipo de exploração, Federici denominou de patriarcado do salário. A nova ordem patriarcal que tornava as mulheres servas da força de trabalho masculina foi de fundamental importância para o desenvolvimento do capitalismo.

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"As mulheres não tinham direito ao estudo, não acessavam o mundo intelectual e era como se o mundo também não lhes pertencesse."

Madge Porto Cruz

Professora e Pesquisadora da UFAC

A caça às bruxas serviu para privar as mulheres de suas práticas médicas, forçou-as a se submeterem ao controle patriarcal da família nuclear e destruiu um conceito holístico de natureza que, até a Renascença, impunha limites à exploração do corpo feminino.

O casamento passou a ser visto como a verdadeira carreira para uma mulher. A família surgiu como a instituição mais importante para a apropriação e ocultamento do trabalho das mulheres.

Embora a esposa trabalhasse junto ao marido, produzindo também para o mercado, era o marido que recebia o salário da mulher, vez que tinha direito legal sobre o rendimento da esposa. As mulheres independentes demais, que não obedeciam a seus maridos, eram criaturas do demônio. A vida das mulheres estava nas mãos dos homens, que podiam exercer sobre elas um poder de vida e morte.

Realidade semelhante foi reproduzida no processo de colonização do Acre, quando da internacionalização do Capital e do fornecimento da borracha como matéria prima para a indústria europeia e dos Estados Unidos que se expandiam, sobretudo a de automóveis.

A mulher era objeto de luxo nos seringais, quem tinha uma fêmea tinha tudo.

Elas eram compradas e vendidas nos barrancos dos rios e barracões como mercadoria do mesmo sistema capitalista dos produtos de exportação. A opressão das mulheres está associada ao modelo de exploração e uso da terra na Amazônia contemporânea. No entanto, merece um estudo específico sobre a história das mulheres nesse período, o que sabemos é que as mulheres nos seringais eram raras naquela época e muitas das que aqui chegaram, eram encomendas mercantis dos patrões.

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Escuta feminina

A proteção da mulher

"A prevenção, proteção, como reabilitação dos autores de violência, são igualmente necessários para uma cultura de paz."

E

Isnailda Gondim

Diretora de Políticas para Mulheres da Secretaria de Estado de Assistência Social

m levantamento do IBGE do ano de 2018 indicou que apenas 2,7% dos municípios brasileiros haviam instalado casa-abrigo de gestão municipal voltadas às mulheres, 20,9% dispunham de serviços especializados de enfrentamento à violência contra mulheres e 9,7% ofereciam serviços especializados de atendimento à violência sexual. Em 2019, 7,5% dos municípios contavam com delegacia especializada no atendimento à mulher.

A violência contra a mulher está andando por aí, à espreita. A cada dois minutos, cinco mulheres são espancadas no Brasil. A cada 11 minutos, uma mulher é estuprada no Brasil. A cada duas horas, uma mulher é assassinada do Brasil. Às vezes, para enxergar melhor, é preciso fechar lentamente os olhos.

Quantos órfãos estarão de luto nesse instante? Impossível pensar quando dentro bate um coração de mãe.

Isnailda Gondim, atual diretora de Políticas para Mulheres da Secretaria de Estado de Assistência Social, dos

Direitos Humanos e de Políticas para Mulheres (SEASDHM) chama a atenção para o clima de medo e tensão dentro dos lares. Segundo ela, muitas mulheres ainda desconhecem seus direitos, sentem medo de denunciar os abusos sofridos e são dependentes emocionalmente e financeiramente de seu agressor.

Na opinião da diretora, o isolamento geográfico de alguns municípios acreanos dificulta a efetivação de políticas para mulheres em situação de vulnerabilidade, além da ausência de serviços especializados e humanizados voltados às moradoras da zona rural. Para enfrentar a violência de gênero, segundo ela, é necessário integrar as instituições públicas, com participação da sociedade, e promover a transversalidade das políticas de gênero.

“[Precisamos] entender que a violência doméstica não se resume à persecução criminal do autor. A prevenção, proteção, como reabilitação dos autores de violência, são igualmente necessários para uma cultura de paz,” defendeu a diretora.

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O lugar da mulher na hierarquia de gênero

A

partir de agora, com base em estudos “Estatística de Gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil”, do IBGE/2020, será apresentado um rápido panorama social à luz da perspectiva de gênero e para além da participação no mercado, onde a força de trabalho da mulher é desmonetizada.

É preciso ter olhos para outros espaços de poder na vida comunitária, pois em todos os lugares elas são inferiorizadas: nos templos religiosos, são escravizadas e abusadas; na política, elegeu-se apenas uma governadora no Brasil no último pleito; nos 5.570 municípios brasileiros, apenas 12% elegeram prefeitas e a marca de vereadoras eleitas atingiu a 16%. No Acre, das 24 cadeiras da Assembleia Legislativa, apenas quatro são ocupadas por mulheres, e das 231 vagas nas Câmaras Municipais,

apenas 48 assentos são delas, atestando a baixa representatividade da mulher na política acreana.

Pelo estudo, a proporção de mulheres acreanas era quase igual a de homens, num universo de 900 mil pessoas. O que isso efetivamente quer dizer? que metade da população compartilha o mundo com a outra metade, seja em forma de trabalho ou outras formas de construção da civilização, sobretudo na preservação da memória coletiva que tece os elos entre gerações e o tempo.

Qual o significado dos números se não há registros delas como protagonistas da criação e da história?

O IBGE atestou que as mulheres possuíam a jornada de trabalho superior aos homens em pelo menos nove horas, numa carga horária que ultrapassava 20 horas semanais. Mesmo sendo as mais escolarizadas, a participação delas nos cargos de gerência era inferior aos

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FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE ENFRENTA

homens: 54% dos cargos no setor privado e público eram ocupados por homens e 46% por mulheres. Nas instituições de ensino superior, 41% dos docentes eram mulheres e nas polícias Militar e Civil elas representavam 14% dos 3.111 profissionais efetivos. No plano nacional, 54,5% das mulheres com 15 anos ou mais compunham a força de trabalho em 2019, enquanto os homens representavam 73,7%.

‘Qualquer análise, ou mesmo observação seca, que se faça sobre o processo civilizatório não exclui em hipótese alguma a educação formal como parte da aliança humana ao desenvolvimento das nações. Em geral, a escolaridade no Brasil é baixa e o índice de pessoas analfabetas continua rígido por mais de uma década. Em 2019, apenas 15,1% dos homens com 25 anos ou mais de idade haviam cursado ensino superior e 19,4% das mulheres, no entanto, elas eram a minoria nas áreas ligadas às ciências – apenas 13,3% dos cursos de Computação e Tecnologia da Informação, e Comunicação (TIC) – e a maioria (88,3%) nos cursos de Serviço Social.

A balança de mercado pesa na hora de atribuir valor à remuneração e a mulher sempre ficou no plano inferior da cadeia hierárquica da renda.

As mulheres acreanas recebiam 77% dos rendimentos dos homens; ocupavam 37% dos cargos de gerência (que podemos chamar, grosso modo, de chefia) e recebiam apenas 61,9% dos valores pagos aos homens que ocupavam os mesmos cargos. Nos grupos de profissionais das ciências, o rendimento auferido às mulheres chegava a 63,6% do rendimento dos homens.

Em nível nacional, o Instituto aferiu que o rendimento das mulheres era 22,3% inferior ao de homens exercendo as mesmas funções, tendo elas maior grau de estudos. De um lado, as mulheres pretas ou pardas com crianças de até três anos apresentavam os menores níveis de ocupação, e, de outro, 40% das famílias em geral eram chefiadas exclusivamente por mulheres, sobretudo negras.

As mulheres pretas e pardas são as que mais têm dificuldade de inserção no mercado de trabalho. Apenas 50%

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FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE ENFRENTA

As mulheres pretas e pardas são as que mais têm dificuldade de inserção no mercado de trabalho.

Apenas 50% daquelas com 15 anos e mais ocuparam alguma atividade no mercado formal em 2019. daquelas com 15 anos e mais ocuparam alguma atividade no mercado formal em 2019, enquanto entre mulheres brancas o percentual foi de 62,6%. São, igualmente as pretas e pardas que mais se ocupavam dos afazeres domésticos e cuidando de pessoas. Enquanto as pretas e pardas dedicaram 21,3 horas, as brancas dedicaram 19,2 horas.

O racismo e machismo estruturais juntos promovem ideias como a de que a mulher deve se dedicar totalmente ao ambiente doméstico e à família. São responsáveis por práticas como disparidades salariais, assédios sexuais no trabalho, além da trágica posição subalterna do negro e da negra na estrutura social. Por isso, geralmente

as vítimas de feminicídio são mulheres pobres, comprometidas com os cuidados do lar e filhos, e encontram dificuldades para entrar no mercado de trabalho, ou seja, são dependentes economicamente de seus agressores.

Ressalte-se que cerca de 70% da população acreana se declara negra, conforme o IBGE. Assim como acontece em todo o Brasil, esse grupo social é o mais suscetível às vulnerabilidades produzidas pelo racismo estrutural. No caso das mulheres negras, o racismo e o machismo estruturais, juntos, ampliaram ainda mais as desigualdades e as violências contra elas, tanto que constituíram 92% das vítimas de feminicídio no Acre nos últimos três anos.

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FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE ENFRENTA

Entrevista

Mulheres Negras "Historicamente, mulheres negras são mais vulneráveis a todos os tipos de violência do que mulheres brancas."

Jaycelene Maria da Silva Brasil

Socióloga - pesquisadora das questões raciais

P

esquisadora das questões raciais, a socióloga Jaycelene Maria da Silva Brasil toca em um assunto crucial: a situação de vulnerabilidade das mulheres negras que as torna as vítimas mais frequentes da violência de gênero. Para ela, elementos presentes fortemente na construção histórica do Brasil, como o racismo, machismo e o conservadorismo repercutem negativamente no percurso do desenvolvimento social, econômico e político das mulheres, sobretudo das negras.

No Acre, segundo o Censo de 2010, cerca de 70% da população se autodeclara parda/preta, e o estudo do

Observatório de Análise Criminal e do Centro de Atendimento à Vítima (CAV) indica que quase a totalidade das vítimas de feminicídio no estado são mulheres negras.

Nesta entrevista, a socióloga avalia as ações de combate à violência contra as mulheres no Acre, critica o imaginário social que alimenta imagens estereotipadas da mulher negra, defende atenção à pluralidade quando se pensa em políticas públicas de direitos humanos e faz alerta para os retrocessos e ataques a direitos fundamentais conquistados.

Acreana, Jaycelene Maria da Silva Brasil é ainda militante de direitos humanos e educadora popular.

REALIDADES 26

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE ENFRENTA

A que se deve, na sua opinião, o expressivo número de feminicídios no Acre?

É impossível não falar na intensidade da presença do racismo, do conservadorismo e do machismo, que se apresentam como um tripé fortemente estruturado, que está presente nas instituições e na sociedade brasileira, o peso da colonialidade, resultado de quase quatro séculos de escravidão no Brasil.

Esse tripé impacta e traz consequências drásticas para a vida dos corpos negros, sobretudo para as mulheres negras.

Você tem imagens subjetivas historicamente construídas dessas mulheres, como sendo seres humanos inferiores, não capazes, indignas de cuidados, atenção e violentamente estereotipadas, como aquela pessoa boa somente para os serviços domésticos e hipersexualizada. Aí a gente tem a potencialização das violências: física, doméstica e sexual naturalizadas, como um estado de normose, ou seja, não há uma visão e um questionamento da sociedade crítica sobre tudo isso (Segundo o Atlas da Violência – 2018, no Brasil 68% das mulheres assassinadas são negras). Temos conquistas de políticas públicas voltadas ao enfrentamento à violência (e não podemos permitir o apagão delas) principalmente, as que combatem a violência doméstica, no nosso estado. A presença da violência colonial e da estrutura patriarcal dita aqui como sistema norteador remete ao “controle” – pose sobre esses corpos e, não diferente de outras regiões do Brasil, essa forma cultural de pensar está também presente na nossa região, na nossa cidade, porque violência infelizmente se universaliza. A gente tem

73% da população do estado que se autodeclara como preta/parda, segundo o Censo de 2010, compondo assim, a população negra acreana. Temos milhões de mulheres negras no Brasil (mais de 50 milhões) e quando se observa os espaços de poder, você constata a ausência exatamente dessas mulheres. As imagens na TV, por exemplo, você pode contar, não há um quantitativo que se equipare ao de mulheres brancas que é o perfil que estamos “acostumados e acostumadas a normalizar como modelos legais, “agradáveis” aos olhos.

Por que as mulheres negras no estado são as mais atingidas pelo feminicídio?

É exatamente isso. O estado enquanto um propositor de ações que atendam as demandas da sociedade, ou seja, das políticas públicas não tem uma dinâmica, um planejamento que atenda de maneira digna e plural, como deveria ser os seguimentos mais vulneráveis; entre esses está a população negra. Chega em um percentual bem pequeno aos homens [negros] e não chega às mulheres [negras], porque essas mulheres têm maior dificuldade para acessar estudo básico, consequentemente o nível superior, saúde, lazer e as pesquisas mostram que o que é ofertado são trabalhos subalternizados e, quando se tem. A corrida para acessar direitos constitucionais tem muitas barreiras históricas. Isso acarreta muitos prejuízos que se materializam em desigualdades sociais gigantescas. Você tem aí um fosso, um buraco, justamente porque temos a presença do racismo estrutural e institucional, enquanto muros que segregam essas pessoas e não lhes

REALIDADES 27

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE ENFRENTA

permitem que acessem de igual para igual direitos básicos. Não é à toa que a maioria das empregadas domésticas nesses país (no Acre) são mulheres negras. E por que isso acontece? Como já dito anteriormente, a perpetuação desse Apartheid social é fruto da intensidade e presença dentro e fora das instituições, aliás em todos os lugares do sistema de desigualdade que implica em cor/raça, do patriarcado que opera a violência de gênero, impedindo a categoria mulheres de estarem e disputarem de igual para igual as oportunidades na pirâmide social e econômica.

Como você avalia as ações de combate à violência contra a mulher?

Consciência aumenta a responsabilidade. Compreender e as pessoas se esforçarem para ter uma visão crítica sobre essa questão e não acrítica ajudam bastante, principalmente para quem pensa a gestão pública, refletir sobre as suas dificuldades de raciocinar com responsabilidade sobre a violência é fundamental. Chegar a esse entendimento aumenta a responsabilidade com o tipo de leitura que você faz da realidade. Você tem que estar muito desprovido de moralismo, do racismo, da misoginia, dos teus preconceitos, das suas convicções do é assim mesmo, porque esses elementos quando reverberados intensamente geram inúmeros prejuízos psicológicos, muitas vezes irreparáveis na vida das pessoas. Você julga pela aparência, pela condição social. E essa atitude é normalizada e faz você, enquanto gestor (a) (nesse caso) multiplicar e ser um péssimo exemplo de perpetuar práticas desumanas, racistas, misóginas, lgbtfóbi-

cas, transfóbicas. Naturalmente, esse arcabouço de ações vão colaborar para um ambiente insalubre socialmente e adoecedor, sobretudo, atingindo as mulheres que já carregam outras cargas de responsabilidade para além do trabalho formal. Daí a importância de se ter políticas que combatam a violência de gênero, todavia, é vital que quem as comande tenha a compreensão da razão de existir das mesmas e implemente-as com seriedade e responsabilidade. Dessa forma um grande passo na gestão pública será dado. Entendendo como possibilidades mais humanizadas de convivência que naturalmente gera um movimento de dentro para fora de reflexão e ProvocAÇÃO. Isso sem sombra de dúvidas gera um protagonismo, ideias criativas para a revolução e evolução das pessoas e para as pessoas, nesse caso para as mulheres que, conforme os dados, sustentam com sua força de trabalho economicamente o mundo. Outra coisa é que a luta antirracista só pode ser revolucionária e provocar mudanças de verdade nas estruturas de poder por exemplo, se as pessoas brancas compreenderem o que significa a violência e os estragos que o racismo causa. Quando uma mulher que sofre uma violência, e essa mulher é uma mulher negra, por exemplo, ela vai registrar um B.O na delegacia; chega humilde, assustada e não pertencente àquele lugar. Certamente vai passar ( caso a gestão não trabalhe o racismo institucional) por muito mais dificuldades de ser ouvida , de expor seu sofrimento e, naturalmente, — por conta do imaginário social do qual já falei , da colonialidade, de como o cérebro registra quem “merece mais atenção “en-

REALIDADES 28

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE ENFRENTA

quanto perfil de corpos aceitáveis socialmente” — essa pessoa não vai ser bem recebida nesse ambiente, porque essa instituição já tem muros, consequência do racismo estrutural; aí ela julga, inferioriza, criminaliza duplamente e não a acolhe como deveria, entende? Então, quando reflito acerca da violência no estado do Acre , apesar de alguns avanços em relação a políticas de gênero , não estruturou, do ponto de vista pedagógico, educacional, enquanto política pública interseccional, essa reflexão sobre o que significa historicamente a violência contra a mulher, não preparou as instituições para serem portas de acesso à Justiça com uma educação institucional educacional antirracista e antimachista, lembrando que isso é parte principal de uma política de Direito Humano.

Você vê, durante a pandemia, queda dos registros dos boletins de ocorrência, em geral que exigem a presença das mulheres, e elas não conseguem estar lá [na delegacia].

Por conta das suas condições também de desigualdade, que impactam na questão financeira, o registro de agressões físicas acaba diminuindo. E aí o que acontece? Quando você não registra, não tem números, é como se a violência não estivesse ocorrendo, mas a gente sabe que está [ocorrendo].

Para que medidas protetivas sejam acionadas, um boletim de ocorrência é ponta de lança para as futuras tratativas jurídicas de proteção dessa mulher. É o que Paulo Freire fala: a gente tem que anunciar as coisas denunciando, mas, para anunciar e denunciar, a gente tem que estar fortalecida (o), encorajada (o), e a gente tem que ter

instituições humanizadas, civilizadas e as pessoas que estão à frente desses lugares têm o dever de estar preparadas para acolher com cuidado e zelo essas denúncias, e não as banalizar.

Quais iniciativas considera importantes a serem realizadas por parte do estado no que diz respeito à proteção e promoção da igualdade de gênero?

Não dá para discutir, falar, pensar sobre a questão de equidade de gênero - igualdade entre homens e mulheres, se a gente não tiver um olhar específico para a diversidade de corpos de mulheres. Não somos um corpo único, existem mulheres brancas, trans, indígenas, lésbicas, negras, mulheres deficientes – é preciso interseccionar o olhar urgente! Atentar para que as diferenças não sejam motivos para discriminações.

O Estado reconhecer que não somos iguais, acho que é o primeiro passo. E tem que ter muito cuidado para que a gente não perca o pouco que conquistamos de direitos em lei para a pauta de gênero e promoção da igualdade racial. Tudo o que conquistamos até hoje foi com muita luta e o movimento de mulheres, o movimento negro a raiz base disso tudo.

Muitas e muitos tombaram no caminho! Temos que honrar a memória dessas pessoas. É fundamental o exercício diário de olhar pra si e se perguntar: onde é que guardo meu racismo, meu machismo, minha homofobia, minha transfobia? A gente precisa se inquietar com esse cenário nada cordial conosco.

O estado brasileiro precisa reconhecer todos os privilégios — principalmente quando se fala em feminismo negro — que a branquitude tem uma dívida

REALIDADES 29

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE ENFRENTA

Não dá para discutir, falar, pensar sobre a questão de equidade de gênero - igualdade entre homens e mulheres, se a gente não tiver um olhar específico para a diversidade de corpos de mulheres.

Jaycelene Maria da Silva Brasil

Socióloga - pesquisadora das questões raciais

histórica conosco. Branquitude aqui falada enquanto um conceito que implica em pessoas que, socialmente ocupam espaços de poder e estão com a caneta do “poder” nas mãos e dentro da macro política decidem quem vive e quem morre no Brasil. Que se perguntem todos os dias: como faço para colaborar com e na luta antirracista? Importante contratar pessoas para que deem formação sobre questões de gênero e sobre a luta antirracista no seu ambiente de trabalho. Quantas pessoas negras, por exemplo, um promotor (a) tem ao seu lado trabalhando como assessor (a)? É só a senhorinha negra que serve o café no meu ambiente de trabalho? É somente o rapaz que fica na portaria?

Qual é a cor das pessoas que transitam nos corredores? Existe esse informe em dados no planejamento? Quantas promotoras negras, psicólogas, assistentes sociais, da administração, do planejamento, do setor de informática, existem produzindo conhecimento, atuando, decidindo, pensando na instituição que trabalho? É preciso fazer o teste do pescoço. Olhar, ver e enxergar essas pessoas com respeito dando oportunidades para estarem de igual para igual. Institucionalmente há políticas/ ações educacionais antirracistas que

combatem o machismo, o patriarcado, no meu ambiente de trabalho? Será que eu, enquanto pessoa branca que ocupo cargos importantes, reflito sobre essas ausências considerando o quesito raça/cor? Qual a cultura que eu consumo? É uma cultura que reverbera práticas racistas, machistas, misóginas? Enfim, a gente tem que estar atentos e atentas a esses “detalhes”, o estado brasileiro precisa mergulhar na raiz desse grande problema que é a tríade da violência de gênero, raça e classe. Então, quando se percebe isso, daremos um agigantado passo à frente para fazer valer todas as conquistas em leis que conquistamos até o momento, sobretudo, em relação à pauta de gênero e à promoção da igualdade racial.

E por fim, tomando emprestada as palavras da filósofa Djamila Ribeiro, do seu Livro Quem Tem Medo do Feminismo Negro?

“Ao perder o medo do feminismo negro, as pessoas privilegiadas perceberão que nossa luta é essencial e urgente, pois enquanto nós, mulheres negras, seguirmos sendo alvo de constantes ataques, a humanidade toda corre perigo”.

REALIDADES 30

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE ENFRENTA

Gênero e Violência

A violência nas feições femininas

A

violação de direitos desemboca na violência de fato. A mesma geografia de exclusão é percebida no universo dos crimes letais e intencionais contra a vida da mulher.

Alguns irão perguntar: mas, como dizer que é uma relação desigual se mais homens são assassinados? Outros responderão com outra pergunta: são assassinados por que são homens? O que se mede com grau de importância nessa guerra dos sexos? A opressão, o preconceito, a discriminação, a inferiorização, a exploração e os maus tratos.

A violência cria feições femininas na impossibilidade da autodefesa, do motivo torpe e fútil, na “defesa da honra” e da propriedade (marcas do capitalismo), na objetificação e dessacralização do corpo feminino, no ódio a pessoas LGBT, no racismo, no assédio e estupro de meninas e nas incômodas fricções por parte dos homens nos corpos das mulheres nos lotados transportes coletivos todos os dias.

A fonte de dados do panorama que será demonstrado a seguir é do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020, publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

O estado do Acre ocupou a primeira colocação no ranking brasileiro de feminicídios em três anos consecutivos (2018, 2019 e 2020). Em 2018, a taxa do Acre alcançou 3,2 ocorrências por 100 mil mulheres, quanto a taxa nacional foi 1,2. Em 2019, a taxa do Acre caiu, no entanto, não foi suficiente para sair da primeira colocação no ranking nacional: 2,5 e 1,3, respectivamente. Já em 2020, a taxa do Acre foi 2,7, enquanto a nacional foi 1,2 feminicídios por 100 mil mulheres.

A realidade do primeiro semestre de 2021 é bem diferente da realidade do ano anterior. Até junho de 2020, nove mulheres haviam sido vítimas de feminicídios no Acre. Em 2021, foram registrados dois feminicídios, uma redução de 78%. Ocorre que esse tipo de crime revela estados graves

REALIDADES 31

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE ENFRENTA

GRÁFICO 01

da violência letal contra as mulheres, cujas raízes causais estão submersas em outras violências e violações de direitos que precisam ser observados e dadas as atenções devidas para que a

performance decrescente dos números se sustente no tempo. É como se fosse uma ferida cicatrizada apenas na superfície da pele, sujeita à exposição da carne por qualquer tropeço da vida.

Gráfico 1 - Ranking nacional da taxa de feminicídios por grupo de 100 mil mulheres - 2018 Acre

3,2

Mato Grosso do Sul

3,1

Mato Grosso

2,5

Rio Grande do Sul

2,0

Distrito Federal

1,7

Espírito Santo

1,7

Paraíba

1,6

Pará

1,6

Piauí

1,6

Rio Grande do Norte

1,6

Roraima

1,5

Pernambuco

1,5

Minas Gerais

1,5

Sergipe

1,4

Maranhão

1,3

Alagoas

1,2

Paraná

1,2

Santa Catarina

1,2

Brasil

1,2

Goiás

1,1

Rondônia

1,0

Bahia

1,0

Rio de Janeiro

0,8

Tocantins

0,8

Amapá

0,7

Ceará

0,6

São Paulo

0,6

Fonte de dados: Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020 (FBSP) Observação: A taxa referete ao Acre foi corrigida a partir da população real do IBGE

REALIDADES 32

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE ENFRENTA

GRÁFICO 02 Gráfico 2 - Ranking nacional da taxa de feminicídios por grupo de 100 mil mulheres - 2019

Acre

2,5

Alagoas

2,5

Mato Grosso do Sul

2,5

Mato Grosso

2,3

Roraima

2,3

Distrito Federal

2,0

Paraíba

1,8

Sergipe

1,8

Piauí

1,7

Espírito Santo

1,7

Amapá

1,7

Rio Grande do Sul

1,7

Santa Catarina

1,6

Paraná

1,5

Maranhão

1,4

Minas Gerais

1,3

Bahia

1,3

Brasil

1,2

Rio Grande do Norte

1,2

Goiás

1,2

Pernambuco

1,2

Pará

1,1

Rio de Janeiro

1,0

São Paulo

0,8

Rondônia

0,8

Ceará

0,7

Tocantins

0,6

Amazonas

0,6

de dados: Anuário Brasileiro de Segurança PúblicaPública 2020 (FBSP) FonteFonte de dados: Anuário Brasileiro de Segurança 2020 (FBSP) Observação: A taxareferete referete ao foifoi corrigida a par�ra da população real do IBGEreal do IBGE Observação: A taxa aoAcre Acre corrigida partir da população

Porto Acre

REALIDADES 33

16

GRÁFICO 03 FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE ENFRENTA Gráfico 3: Ranking nacional da taxa de feminicídios por grupo de 100 mil mulheres - 2020 3,56476927 Mato Grosso GRÁFICO 04 3,037615571 Mato Grosso do Sul 2,953860696 Roraima 2,6836632 Acre 2,091666105 Amapá 2,005934126 Alagoas 1,832107988 Piauí 1,79648828 Maranhão 1,722212814 Paraíba Taxa Homicídios dolosos de mulheres UF's Taxa Homicídios dolosos de mulheres BRASIL (3,5) 1,576060097 Rondônia Taxa feminicídios UF's Taxa feminicídios BRASIL (1,2) 1,559769121 Santa Catarina 8,7 9,0 1,522809611 Pará 1,499757639 Pernambuco 8,0 1,472058953 Bahia 7,0 7,0 1,369161578 Minas Gerais 1,364139468 6,0 Rio Grande do Sul 5,4 5,1 5,0 1,260033013 Espírito Santo 4,9 4,8 4,6 5,0 4,5 4,4 4,4 4,2 1,247366636 Brasil 4,0 3,9 3,8 4,0 3,6 3,6 3,5 3,5 3,5 Paraná 3,5 3,5 3,5 3,5 3,5 3,5 3,5 3,5 1,24243857 3,5 3,5 3,5 3,5 3,5 3,5 3,5 3,5 3,5 3,5 3,5 3,5 3,5 3,3 3,1 2,9 1,198348731 Goiás 2,8 2,7 3,0 2,6 2,5 2,5 2,5 2,3 2,3 1,166870869 Sergipe 2,0 1,8 1,7 1,7 1,7 1,7 1,6 2,0 1,5 1,4 1,139588153 Tocan�ns 1,3 1,3 1,2 1,2 1,2 1,2 1,2 1,2 1,2 1,2 1,2 1,2 1,2 1,2 1,2 1,2 1,2 1,2 1,2 1,2 1,2 1,2 1,2 1,2 1,2 1,2 1,2 1,1 1,0 0,8 0,7 1,07203373 Distrito Federal 1,0 0,6 0,860934944 Rio de Janeiro 0,0 0,763509586 Amazonas 0,754732701 São Paulo 0,717657918 Rio Grande do Norte Fonte: 14º Anuário Brasileiro Pública do FBSP Ceará de Segurança0,570676848

3,9 3,5

3,5

3,5 2,8

1,9

1,2 0,8

1,8

1,2

1,2 0,6

Observação: As taxas do Acre foram corrigidas, pois o cálculo do FBSP levou em consideração a projeção populacional do IBGE 0 1 Criminal do NAT/MPAC 2 3 a projeção populacional 4 de 200 a 2030, enquanto o Observatório de Análise considera de 2010 a 2060.

Fonte: 15ª ed Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública - FBSP

GRÁFICOpor05grupo de 100 mil mulheres - 2018 e 2019 Gráfico 4: Ranking da Região Norte da taxa de feminicídios Acre

2,5

Roraima

2,3

2019

Amapá

1,7

Pará

1,1

Região Norte

1,0

Rondônia

0,8

Tocantins

0,6

Amazonas

0,6

Acre

3,2

Pará

1,6

2018

Roraima

1,5

Região Norte

1,2

Rondônia

1,0

Tocantins

0,8

Amapá Amazonas

0,7 0,2

Fonte de dados: Brasileiro de Segurança Pública 2020 (FBSP)Observação: A taxa referete ao Acre foi corrigida a par�r da população real do IBGE

REALIDADES 34

GRÁFICO 04 FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE ENFRENTA Gráfico 5: Taxa de homicídios de mulheres e de feminicídios por grupo de 100 mil mulheres em 2019 - por estado e comparado à taxa nacional.

Taxa Homicídios dolosos de mulheres UF's

Taxa Homicídios dolosos de mulheres BRASIL (3,5)

Taxa feminicídios UF's

Taxa feminicídios BRASIL (1,2) 8,7

9,0 8,0 7,0

7,0 6,0

5,4 5,1

5,0

5,0 4,0 3,0

4,8 4,4

4,0 3,5

2,5

3,5

2,5

3,5

3,5

3,5

3,5

1,2

1,0

1,2

3,5

3,5

3,5

3,5

2,7

2,3

1,2

3,5

3,5

3,5

4,4

3,5 3,3

3,8 3,5

3,9 3,5

2,0

1,2 0,6

1,3 1,2

1,2

1,2

1,2

1,4 1,2

1,2

1,2

2,6

1,3 1,2

3,5

3,5

3,5

3,5

3,5

3,6 3,5

3,5

3,5

3,5 2,8

2,8 2,3 1,8

1,7

1,2

2,5

3,9 3,5

3,1

2,9

1,7

2,0

3,6 3,5

4,9

4,6

4,5

4,2

1,2 1,1

1,2

0,7

1,5 1,2

1,7 1,2 1,2

1,2

1,7

1,2 1,0

1,2

1,2

1,6

1,2 0,8

1,2

1,2

1,9

1,2 0,8

1,8

1,2

1,2 0,6

0,0

Fonte: 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública do FBSP

Fonte: 14° Anuário Brasileiro de Segurança Pública do FBSPObservação: As taxas do Acre foram corrigidas, pois o cálculo do FBSP Observação: As taxas do Acre foram corrigidas, pois o cálculo do FBSP levou em consideração a projeção populacional do IBGE levou em consideração a projeção populacional do IBGE de 2000 a 2030, enquanto o Observatório de Análise Criminal do NAT/MPAC de 200 a 2030, enquanto o Observatório de Análise Criminal do NAT/MPAC considera a projeção populacional de 2010 a 2060. considera a projeção populacional de 2010 a 2060.

2018

2019

Fato curioso é que, mesmo sido GRÁFICO 05três. Os estados do Pará e do Mato ocupando o topo do ranking de femi- Grosso registraram, respectivamente, Acre desde 2016, um ano 2,5 nicídios, o Acre variação de 81% e 68,4%.

Roraima em vigor a Lei do depois de entrar

A taxa de 2,3 homicídios dolosos Feminicídio,Amapá ou vem diminuindo seus por grupo de 100 mil mulheres, nos 1,7 índices ou mantendo-se estável, com quais se incluem os feminicídios, tamPará 1,1 exceção de 2018. Em 2016 marcou taxa bém ficou acima da média brasileira, a Região Norte 1,0 de 3,3; em 2017 caiu para 3,0; subiu qual foi de 4,1 em 2018, e 3,5 em 2019.

Rondônia 0,8 para 3,2 em 2018. Em 2019 a taxa foi O Acre deteve mais do que o dobro de 2,5 e emTocantins 2020 a taxa foi de0,62,7.

(8,4) em 2018, ficando só atrás de RoAmazonas 0,6

Em 2018, dos estados com raima (10,4) e Ceará (9,7). Em 2019 foi maior taxa para cada 100 mil mul- o dobro (7,0), perdendo apenas para heres, o AcreAcredespontou na frente Roraima (8,7).

3,2 (3,4), seguido Pará por Mato Grosso do Sul Cruzando os achados do Anuário 1,6 (2,6) e Mato Grosso (2,5). Em 2019, o Brasileiro de Segurança Pública e outRoraima 1,5 estado seguiu no topo: 2,6, seguido por ras fontes com o estudo do Ministério Região Norte Alagoas e Mato Grosso do Sul, ambos1,2 Público do Acre, nota-se que há maior Rondônia 1,0 com 2,5. Destaque-se que o Acre teve incidência da violência letal entre as Tocantins 0,8 aumento expressivo de feminicídios mulheres negras, tanto no Acre como na pandemia, com variação de 166,7%. no restante do Brasil. Esse grupo tem Amapá 0,7 Foram oitoAmazonas feminicídios, enquanto no vivido em contextos de alta vulnera0,2 primeiro semestre de 2019 tinham bilidade socioeconômica em razão de Fonte de dados: Brasileiro de Segurança Pública 2020 (FBSP)Observação: A taxa referete ao Acre foi corrigida a par�r da população real do IBGE

REALIDADES 35

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE ENFRENTA

um processo histórico de exclusão, exploração e racismo que remonta ao período colonial.

O Brasil está entre os países que mais registram casos de mortes violentas por causa do gênero, conforme o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Comissão Econômica para a Améri-

ca Latina e o Caribe (Cepal), todos ligados às Nações Unidas. Em levantamento do primeiro, o País ocupava a quinta posição no ranking mundial do feminicídio, perdendo somente para El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia. Em comparação com países desenvolvidos, o Brasil mata 48 vezes mais mulheres que o Reino Unido, 24 vezes mais que a Dinamarca e 16 vezes mais que o Japão ou Escócia.

ESTUPRO

Em 2018, foram registrados 66.041 casos de violência sexual, com aumento de 4,1% em relação a 2017. Isso equivale a 180 estupros por dia. Desse total, 81,8% das vítimas eram do sexo feminino e 53,8% tinham até 13 anos.

Contabilizaram-se ainda 263.067 casos de lesão corporal dolosa contra mulheres, o que significa um registro a cada 2 minutos no Brasil.

Em 2019, houve 266.310 registros de lesão corporal contra mulheres, um crescimento de 5,2%, o que representa uma agressão a cada dois minutos. Também houve 66.123 ocorrências de estupro e estupro de vulnerável — um estupro a cada oito minutos. Nesse universo, 57,9% das vítimas tinham até 13 anos e 85,7% eram do sexo feminino.

REALIDADES 36

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE ENFRENTA

Por ser mulher

N

ão por ser naturalmente mulher, mas por sua representação social, porque o feminicídio não é um evento isolado como muitas pessoas costumam supor. A mulher ocupa um lugar no espaço e tem direito a um teto. As vozes dominantes abafam o choro e o grito com os tapas e os pontapés à noite e de madrugada nos finais de semana. Alguns embriagados, outros sóbrios com uma arma nas mãos.

A maioria das 37 mulheres vítimas de feminicídio no Acre no período de 2018 a 2020 sofria abusos físicos constantemente. Em 32% dos casos, os autores possuíam registro de antecedentes criminais e do total desses que possuíam antecedentes criminais, 62% representam as motivações torpes, fútil, ciúmes, sem motivo aparente e não aceitava o fim do relacionamento.

Para essas 37 mulheres, o feminicídio íntimo é o nome que se dá para o fim trágico do ciclo de vi-

A maioria dos crimes praticados por companheiros e ex-companheiros ocorreram na casa das vítimas no período da noite e madrugada.

Uma das vítimas morreu porque estava grávida, outras duas por causa do celular.

REALIDADES 37

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE ENFRENTA

olência familiar. Os companheiros e ex-companheiros são os algozes. Motivo maior para os crimes? Ciúmes, fútil, torpe; sem motivo, apenas.

Mas seria amor? É sempre bom lembrar que o feminicídio é um crime de ódio, cujas raízes são profundamente entranhadas no que se chama cultura patriarcal.

São 37 vítimas com idade entre 14 e 51 anos de idade e autores com idades entre 15 e 66 anos de idade.

Pretos e pardos com baixa escolaridade predominam para homens e mulheres, embora haja uma ausência de dados sobre isso; todavia, olhando para as especificidades das ocupações produtivas, deduz-se uma colocação inferior dos homens no mercado de trabalho, e das mulheres ocupando como profissão o lar. Mulheres férteis, mães de filhos menores, na maioria das vezes filhos do agressor e expectadores do ato final da genitora. Seria por amor? Em dois casos, as mães estavam com seus filhos no colo e foram esfaqueadas.

Na maioria dos casos de feminicídio com uso de arma branca, as vítimas tiveram cortes profundos no pescoço, perfurações na região do tórax (na altura dos seios), rosto, pés e mãos como defesa.

Os crimes com arma de fogo ocorreram predominantemente no período da manhã; aqueles cometidos em via pública ocorreram geralmente sábado, perto das 22 horas, a hora do perigo para a mulher.

A maioria dos crimes praticados por companheiros e ex-compan-

heiros ocorreram na casa das vítimas no período da noite e madrugada.

Uma das vítimas morreu porque estava grávida, outras duas por causa do celular, outras cinco em razão de ciúmes e não aceitação do fim do relacionamento.

Dois, dos três crimes que foram atravessados pelas guerras das facções criminosas, eram classificados como feminicídio não íntimos, ou seja, não havia nenhum relacionamento amoroso entre o autor e a vítima. A autoridade policial descarta de imediato qualquer relação com facção criminosa (expressão máxima da violência) pela análise minuciosa do modus operandis.

A ciência forense, associada a outras tecnologias, é assertiva na reunião das provas materiais, ela consegue trazer à superfície marcas apagadas, manchas diluídas, restos de pó.

A equipe de investigação cumpre um papel sigiloso e responsável, enquanto a perícia da autoridade policial faz a diferença na sensação de justiça.

Importante destacar o poder da testemunha, a sustentação das teses do Ministério Público, a condução do martelo da Justiça nos tribunais, além da sociedade representada no banco do júri soberano. Esses atores foram responsáveis pela prisão de 66% dos acusados dos 37 feminicídios.

No emaranhado clima violento e fatal, 05 autores cometeram suicídio e 02 foram mortos pela polícia em situação de confronto. Não é propriamente uma guerra, mas envolve partes, perdas e paz.

REALIDADES 38

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Feminicídios no Acre (2018-2020)

Uma leitura da realidade

N

o Acre, nos últimos três anos, 37 corpos femininos foram apagados. Crimes de feminicídio (Art. 121, VI do Código Penal): contra a mulher por razões da condição de sexo feminino - na forma de violência doméstica e familiar, menosprezo ou discriminação à condição de mulher. A violência doméstica e familiar contra a mulher é qualquer ação ou omissão baseada no gênero (independentemente de sua orientação sexual) que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial (Art. 5º da Lei 11.340/2006).

Gerda Lerner, autora de “A criação do patriarcado: história da opressão das mulheres pelos homens”, informa que os atributos sexuais são fatos biológicos, mas gênero é produto de processo histórico. O fato de as mulheres terem filhos ocorre em razão do sexo; o fato de mulheres cuidarem dos filhos ocorre em razão do gênero, uma construção social. É o gênero que vem determinando o lugar das mulheres na sociedade”.

A autora revela com simplicidade os papéis sociais de homens e

mulheres, como se fosse numa peça de teatro em que homens e mulheres desempenham papéis distintos, se faltar um dos dois a peça não pode prosseguir. Mas o cenário é concebido e pensado pelos homens, assim como a direção do espetáculo e os papéis principais de heróis são destinados a eles, deixando para as mulheres os papéis de coadjuvantes e completa dizendo que “a desigualdade básica entre homens e mulheres se encontra dentro dessa estrutura”, e que para superá-la é preciso destruí-la.

GRÁFICO 06 Grafico 6: Modalidades de Feminicídio

Não Íntimo 3; 8%;

REALIDADES

Não Íntimo 3;39 8%;

Familiar 1; 3%;

Íntimo 33; 89%;

Familiar 1; 3% Familiar 1; 3% Não Íntimo 3; 8%;

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Ela era a mãe e ele era o filho

E

m apenas 03 (três) dos 37 (trinta e sete) feminicídios ocorridos no Acre entre 2018 e 2020, as vítimas não tinham vínculos íntimos com os assassinos. Maria, 51 anos, é uma das exceções. Ela foi assassinada pelo próprio filho de criação com um tiro no pescoço dentro da casa de farinha em sua colônia nas primeiras horas da última segunda-feira do ano de 2018.

Não consta nos autos quantos filhos teria Maria, se de sangue ou de afeto, mas todos provavelmente de amor. Na colônia se desperta com o frescor do nascer do dia, os arames das cercas ainda plumosos do sereno da

madrugada e o galo enfeitando o vento com seu canto estridente. Quando o filho chegou na casa da mãe, talvez as galinhas ainda estivessem ciscando a terra socada sobre a fina camada de areia branca cintilante dos primeiros raios do sol, depois de alimentadas pela agricultora.

No verão, Maria iniciava ainda mais cedo os trabalhos na casa de farinha, era de lá que tirava o sustento da família como a maioria dos agricultores e agricultoras do vale do Juruá, região de águas escuras, frias e tão misteriosamente silenciosas que até os rios assoviam lentamente com o gosto do eterno.

A casa de farinha é quase sem-

REALIDADES 41

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pre um santuário, é lá que homens, mulheres, crianças e até mesmo os animais de estimação se reúnem em torno do beneficiamento da mandioca, cada qual com sua função específica dentro da cadeia de produção da farinha e outros derivados da matéria-prima arrancada do chão.

Como serão as próximas safras sem Maria na produção?

Ao receber o filho, deu-se a cativá-lo com conselhos maternos para ele abandonar o mundo do crime, entregar a camisa da facção a que pertencia e voltar para casa limpo da maldade que assola o coração do homem.

A gente fica imaginando o que a pessoa pensa instantes antes de morrer, nessas horas já não se fala mais de medo, há o temor inevitável enovelado em prece de salvação. Quem tem poder sobre a vida? A morte não é uma escolha, ela apaga tudo e Maria fora calada com um tiro na garganta. É impensável o filho matar a mãe; todavia, mata.

Matara por ódio, morrera por amor?

Era véspera de ano novo. Maria

não teria como saber o que iria acontecer ou teria? Era mais certo ter pensado: “O dia começou favorável”. Em virada de ano só se deseja que o mal se perca no ano que passou e roga-se por um futuro de vida melhor, é como o estado de porvir da colheita depois de plantada a semente em solo arado. Esse tipo de intuição deve pesar sobre a cabeça da mulher que já tirou de si os seus próprios frutos e sabe que a vida nunca se acaba depois do filho, não importa de qual ventre a cria tenha vindo ao mundo.

Na mais extrema repressão à mãe, no modo derradeiro de silenciar aquelas palavras impossíveis e fazêla sumir para sempre, de súbito atirou contra a matriarca, com um único disparo na região do pescoço, estava dada a sentença. Pelo estado de rigidez do corpo, estimou-se que a morte ocorrera menos de duas horas antes dos primeiros exames periciais ainda no local do crime.

Maria caiu em decúbito ventral no chão seco e escuro do pé do forno

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de barro, com as pernas levemente flexionadas e a mão direita voltada para cima, quase em posição de correr, mas estava morta. Vestia uma camisa azul índigo pintada com as palavras “More Love”.

Depois do crime, José tocou terror na comunidade a ponto de uma parcela da população do ramal Arco Íris se recolher com medo em uma casa e pedir urgência de socorro à polícia pela imediata captura do assassino, isso porque, além da mãe, José, de 32 anos, também matou - igualmente com um tiro no pescoço e com a mesma espingarda calibre 28 – a vizinha, e conhecida Maria, de 50 anos, que tinha 07 filhos para criar.

A vizinha estava na porta da cozinha de casa quando fora alvejada.

Com um tiro, tombou de punho cerrado ao lado dos pratos sujos da pequena ceia do dia anterior que estavam no jirau da cozinha. Caiu feito um pássaro ferido em pleno voo.

No rastro do assassino, a polícia encontrou um cachorro morto à bala,

sinal de que o filho de Maria estava por perto. A polícia continuou incessantemente a busca.

Disseram que o fugitivo da Justiça estava acuado pela facção a que pertencia e pela facção rival. Disseram que ele estava com medo de ser preso pela polícia depois que rompera a tornozeleira.

No dia anterior, andou comentando pelas redondezas que iria matar toda a família, só livraria as crianças.

Em reação ao cerco da polícia, José disparou contra os policiais, acertando a coxa de um deles. No tiroteio, José foi alvejado e morreu no local, entre os capins rasteiros do campo degradado. Nas suas vestes encontraram uma bíblia e 2 porções de entorpecentes.

Sem autor e vítima, o Inquérito Policial dos três cadáveres foi arquivado. A arma do crime fora apreendida. E houve uma noite de terror. Rodrigues Alves atravessou o ano nas manchetes dos jornais com uma das mais tristes histórias de feliz ano novo. Ela era a mãe e ele era o filho.

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Vida se paga com vida

E

ssa frase foi repetidamente pronunciada em julgamento, quase como uma vírgula entre um pensamento e outro dos réus. É um tipo de nascer ao contrário das vítimas, é gíria comum entre integrante de facção criminosa para expressar juramento à ordem maior de comando da irmandade.

Ela tinha terminado um relacionamento e andava muito triste, declarou a mãe em depoimento, mas que não tinha medo dos homens com quem se relacionara, um estava preso e os outros não eram ofensivos para ela; mas estava triste, uma espécie de sofrimento sem dor, aquela sensação angustiante de decepção ou perda de alguma coisa muito importante, depois de uma alegria intensa e que só é vencida na compaixão. Compaixão?

Depende das circunstâncias.

Maria, de 28 anos, retornava do supermercado na companhia da prima quando tudo aconteceu bem próximo de sua casa. Dois homens passavam numa motocicleta, enquanto dois homens andavam a pé na mesma rua, na mesma calçada e no mesmo instante em que as primas foram atravessadas pelo destino dos quatro homens.

Coincidências acontecem a toda hora, poucos são os milagres, embora vez ou outra milagres aconteçam, mas não no caso de Maria. A vida é o milagre em si.

O poder da vida não é a vida propriamente dita, é algo muito maior, que de súbito, a morte explica, ou não?

Maria não era diretamente o alvo do conflito e não “colava” em nenhuma facção. Na hora do tiroteio, um dos homens que andava a pé agarrou Maria para se proteger dos disparos, fazendo-a de escudo e proteção contra o fogo louco do revólver.

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O homem da moto, mesmo vendo que Maria fora forçadamente colocada na mira da arma, efetuou o disparo a curta distância, como se diz no popular: “a queima roupa”, acertando-a fatalmente na região do pulmão esquerdo, causando ferimento transfixiante na área cardíaca.

Atingida, Maria correu para se salvar na casa da tia Boneca, onde tivera momentos de alegria nos “piseiros” que a tia realizava; no entanto, não teve tempo de ser socorrida, caiu morta no vazio doloroso da sala, de braços abertos e mãos cerradas apertando o vento nos dedos. O mundo todo ao seu rodar estava vivo, enquanto o sangue da vítima escorria no piso branco da casa.

Maria trajava uma camisa azul e no bolso do short jeans tinha vinte e dois reais, provavelmente troco da compra que não chegou a usar, o que tivera comprado?

Uma das testemunhas declarou que na confusão do tiroteio ouviu alguém dizer: “Alvo” e amotinou.

Até a presente data, o caso estava em fase de diligência; não obstante, com os recursos tecnológicos e o empenho da polícia, o criminoso será brevemente encontrado.

O que se sabe é que cinco dias após o assassinato de Maria, ocorreu uma chacina na mesma região que resultou em quatro vítimas, sendo três vítimas fatais. Haveria relação de causalidade entre os fatos? Quem pagou “o que” “para quem” com a vida de Maria? Quanto vale a vida de uma pessoa? Maria virou número e barro.

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Pobres e do lar

D

as 37 vítimas de feminicídios ocorridos no Acre nos anos de 2018, 2019 e 2020, 38% (14) foram identificadas com a profissão “do lar”. Havia ainda 05 estudantes, 02 agricultoras, 01 artista de rua, 01 assistente legislativo, 01 atendente, 01 autônoma, 01 corretora, 01 doméstica, 01 vendedora, 01 sem ocupação na data do crime e uma garota de programa. Cumpre destacar que a artista de rua aqui mencionada fora identificada no Boletim de Ocorrência e, posteriormente, no Inquérito Policial como moradora de rua e ambulante. A qualidade do processo começa na origem, no momento da informação

primária colhida na fonte. Esse não é um erro grave, no entanto desvia o olhar quando se é objeto de estudos.

O nível econômico é um reflexo do tipo de ocupação produtiva das mulheres. As 02 mulheres que estão apontadas no gráfico como classe média tiveram como assassinos homens com profissões mais estáveis, como funcionários públicos, por exemplo.

Ambos os gráficos ainda estão vagos, mesmo já nos apresentando um retrato da vítima. Das 37 vítimas, 16% não foram identificadas com qualquer atividade produtiva ou profissional e em 41% dos casos não foi citada qualquer informação sobre o nível econômico da vítima.

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GRÁFICO 07 FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE ENFRENTA GRÁFICO 7 - Modalidade de Feminicídios ocorridos no Acre (2018-2020) Vendedora

Agricultora Artista de rua 5%

3%

2%

Não Identificado

Assistente Legislativo

3%

16%

Atendente

3%

Autônoma

3%

Corretora

3%

Sem ocupação

Garota de Programa

3%

5%

Estudante

13%

Do lar

Doméstica

38%

13%

Fonte de dados: Observatório de Análise Criminal do Ministério Público do Acre

GRÁFICO 08 Gráfico 8: Nível econômico das vítimas de feminicídio no Acre 2018-2020 Classe média

5%

Classe baixa Não Identificado

54%

41%

Fonte de dados: Observatório de Análise Criminal do Ministério Público do Acre

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GRÁFICO 09QUE ENFRENTA FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE Gráfico 9: Tipo de ocupação econômica das vítimas de feminicídio no Acre por nível econômico (2018-2020)

Vendedora

1 2

Não Identificado Garota de Programa

1

Estudante

1

Doméstica

1

4

4

10

Do lar Desocupada

1

Corretora

1

Autônoma

1

Atendente

1

Assistente Legislativo

1

Artista de rua

1

Agricultora

4

2

classe baixa

classe media

NI

Fonte de dados: Observatório de Análise Criminal do Ministério Público do Acre

Obs: Onde se lê "NÃO IDENTIFICADO", leia-se "NÃO INFORMADO"

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FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE NÃO SE COMEMORA

Um novo indivíduo

V

ocê está lendo essas palavras porque alguém do outro lado sussurra com os dedos em seus ouvidos.

Esse alguém sou eu tateando a sensação da palavra nas flores imaginárias de Mrs Dalloway, enquanto me deparo com palavras impossíveis de falar em público sobre a vida íntima de uma mulher.

Há um certo pudor em falar de sexualidade e dos desejos reprimidos.

Silvia Federici (2017) dá contornos à história da sexualidade feminina através do seu estudo acerca da caça às bruxas. Diz que, na Europa da idade média, a sexualidade se transformou em tema de confissão nas igrejas. Os diferentes aspectos do sexo foram divididos no pensamento, na palavra, na intenção e na vontade involuntária. O matrimônio foi declarado sacramento, cujos votos não podiam ser dissolvidos por nenhum poder temporal e o homem (então) se tornou o proprietário do corpo da esposa. O homem se tornou o dono da mulher.

Nessa época medieval, os homossexuais e o sexo não procriador foram combatidos e condenados com leis severas e a sexualidade foi totalmente politizada, passando a ser tratada como uma questão de Estado.

Em determinado momento na França, o estupro de mulheres de classe

baixa foi praticamente descriminalizado. Era comum, depois da legalização do estupro, a prática de estupros coletivos de mulheres proletárias. Isso criou um clima intensamente misógino que degradou todas as mulheres, qualquer que fosse a classe. Também insensibilizou a população frente à violência contra as mulheres.

Outra política sexual institucionalizada foi a prostituição: foram implantados bordéis municipais que logo proliferaram em toda a Europa colonizadora, inclusive nas Américas.

O estupro e a prostituição, essa última gerida pelo Estado como disse anteriormente, serviram para conter a turbulência da juventude proletária para não se revoltar contra o sistema. Tempos depois, a prostituição passou a ser punida ou castigada. O corpo da mulher fora degradado pelo sistema econômico, cujo combustível é o explosivo patriarcado. A batalha contra o corpo, segundo Max Weber, foi uma tentativa de a burguesia formar um novo tipo de indivíduo. Mas qual?

Há quem enfeite a mesa com flores de plástico. Essa frase me veio à cabeça quando lia o inquérito policial referente ao fulano de tal, um tal integrante de facção criminosa reconhecida pelas duas letras maiúsculas pintadas num pano por um homem para despistar a polícia das investigações de um feminicídio que será contado mais adiante.

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FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE NÃO SE COMEMORA

Maria não “colava” em nenhuma facção, mas declarou ao novo namorado o amor que sentia pelo marido preso há 2 anos por tráfico de drogas e por integrar organização criminosa. Revelou também ao namorado que iria voltar para os braços do marido depois que ele saísse da cadeia.

Na facção as regras são claras e as ordens são cumpridas, do contrário, há punição.

Os recém-separados não podem aceitar outro relacionamento amoroso antes de completar o sexto mês após a separação, seja homem ou mulher a punição é a mesma. Maria já havia cumprido o seu tempo de ex-esposa de integrante de facção criminosa e estava livre.

O namorado, segundo a amiga, era um cliente que Maria levou para casa. A amiga sentia mau presságio todas as vezes que Maria lhe dizia que o namorado esperava no cômodo ao lado, enquanto ela atendia os clientes em seu quarto. Como amiga muito próxima, antecipou-lhe suas sensações instintivas de agouro que dão arrepio só de imaginar, era como se a morte rondasse os caminhos da amiga. Em resposta, Maria lhe dissera que não vivia às custas do namorado e, portanto, não haveria razão que lhe exigisse outro meio dela ganhar dinheiro. Sim, tudo por dinheiro.

Na mente do namorado se formava um desfecho para toda aquela situação, guardava em si duas questões a serem resolvidas no relacionamento com Maria: a primeira era fazer a namorada apagar os sentimentos que nutria pelo marido preso e, a segunda, livrá-la da profissão para salvá-la como mulher e, assim, ela seria inteiramente sua. Alguém pode possuir a alma de outra pessoa sem que jamais a tenha tocado?

No princípio houve especulações de que o assassinato da moça teria ligação com a guerra entre facções

criminosas, mas eis que alguém gritou: “Na facção não aceitam garota de programa”.

Dizem que a prostituição é profissão das mais antigas no mundo. Na mitologia selvagem de Clarissa Pinkola Estés existe um aspecto da sexualidade feminina de tempos remotos que era chamado de obsceno sagrado, não na concepção que empregamos hoje em dia ao termo, mas com o significado da sabedoria sexual, de uma certa forma bem-humorada; nas culturas matriarcais, a sexualidade das chamadas deusas-sujas era irreverente por sua lascívia astuta, porém inocente.

Maria era garota de programa, além de vendedora de joias e perfumes, era uma mulher “virada na vida”, não era de contar com facilidades batendo à sua porta, ia à luta para sobreviver e seus produtos, considerados competitivos no mercado, eram objetos de sedução para pessoas de todos os sexos. Sim, tudo por dinheiro.

O namorado de Maria estava desempregado quando tudo aconteceu.

Além disso, sob suas costas pesavam as denúncias de homicídio tentado e roubo majorado, cujo pedido de prisão preventiva fora negado.

Às vésperas do equinócio de primavera no hemisfério sul, quando o brilho do sol é mais intenso, Maria foi assassinada numa manhã de domingo em sua própria casa, pelo próprio namorado. Com uma toalha fora sufocada e com um fio fora estrangulada, provavelmente ela estava dormindo de costas para assassino, constatou a perícia.

Quando o corpo foi encontrado, com os seios nus, já estava se decompondo, a língua maior do que a boca denunciava o estrangulamento no rosto redondo, escuro e deformado. Perdera a beleza, não o encantamento.

Dias antes, Maria havia combina-

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FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE NÃO SE COMEMORA

do de se encontrar com a mãe, mas não compareceu ao encontro no dia marcado. A mãe, desesperada com o desaparecimento da filha, resolveu procurá-la.

Começou pela casa de Maria, talvez acreditando que fosse encontrar pistas sobre o paradeiro da filha. Deu falta de alguns pertences pessoais, inclusive a TV, porém não havia sinais de arrombamento na casa. O celular da vítima estava em poder de alguém que se passava por membro de facção para transmitir mensagens falsas sobre Maria aos familiares e a amiga.

Na área externa da casa, a mãe sentiu o inexprimível odor pútrido de cadáver. O cheiro forte se elevava preenchendo o ar ao redor de si, impregnando a área inteira. Talvez o tempo tenha escurecido nos olhos da mãe; talvez a mãe tenha sentido aquela fisgada no peito, perto do estômago, aquele tremor gelado que sobe queimando a espinha, causando arrepio da cabeça aos pés; talvez a mãe tenha fechado os olhos, sem querer acreditar na maldade fria e intensa como o cheiro de éter esperando o funeral, mas aquela voz interior lhe dizia que não estava sonhando; talvez tenha procurado em si esperança contra a desgraça que estaria por vir ou algum significado para tudo aquilo naquele instante e no entanto, convencida de que o único significado da vida é que não há significado algum, é tanta barbaridade que até parece que o mundo não foi feito, também, para a mulher; talvez tenha tido aquele instante de cegueira total, aquele choque de horror sem choro, lágrimas ajudariam?; talvez o rosto da filha tenha lhe sorrido em lembranças antigas dos carnavais; talvez tenha tremido, frágil, sem o controle das mãos e das pernas. É raro uma pessoa tocar tão de perto com a mão aquilo que é invisível ao olho hu-

mano, porque não é de se negar que até mesmo na primavera, flores murcham.

Maria fora interrompida. O que viria depois do sofrimento terrível daquela mãe vendo a filha daquele jeito, meu Deus?

Não há o que se dizer quando a mãe quer beijar o rosto da filha morta. Tudo que nasce tem de fluir, é assim que é a vida.

No lugar em que a mãe estava naquele instante só havia um poço e Maria estava rija dependurada de ponta-cabeça dentro dele. O que fazer com o corpo naquele estado de putrefação? Tem certas decisões que são terrivelmente difíceis.

Fora a última vez que a mãe viu o corpo da filha. A alma do barro se uniu a flor.

O namorado queria libertá-la, mas de quê? Da profissão? Da vida? Do ato de autonomia da mulher, como em Virgínia Woolf, em que “iria ela mesma comprar as flores”? O namorado queria tê-la para si, prendê-la em seus desejos possessivos e fazê-la esquecer o pai de sua filha, seria esse o plano? Não, ele preferiu a morte e a ocultação do cadáver, como se a mulher nunca estivesse existido, embora ela estivesse lá.

Até o final dos nossos estudos o autor se encontrava foragido e no inquérito policial constava status de diligência.

Há muitas mitologias que foram contadas sobre a sexualidade feminina.

Clarissa Pinkolas Estés, autora da conhecida obra “Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem”, aponta que “o cio da mulher não é um estado de excitação sexual, mas um estado de intensa consciência sensorial que inclui a sexualidade, sem se limitar a ela”. Os mitos são metáforas que nos auxiliam na compreensão do grande mistério que é o enigma da nossa vida. O mito nos auxilia a procurar a resposta para a grande pergunta: Por qual causa você sacrificaria a sua vida?

REALIDADES 53

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE ENFRENTA

Em idade reprodutiva

O

feminicídio é observado com 14 anos de idade. As vítimas com as em todas as faixas etárias, maiores idades, 50 e 51 anos, respectivaa partir de 14 anos de mente, foram classificadas como feminicíidade mas é significativa- dio não íntimo, uma era mãe de criação e mente maior entre mul- a outra era vizinha do mesmo autor, duas heres em idade reprodutiva: em 2018, ocorrências registradas em Rodrigues 28,2% das vítimas tinham entre 20 e 29 Alves nos dias 31/12/2018 e 01/01/2019, anos, 29,8% tinham entre 30 e 39 anos e regional do Juruá, ambas na área rural, 18,5% tinham entre 40 e 49 anos quando por arma de fogo, sem possibilidade de foram mortas. Já em 2019, 56,2% das mul- reação das vítimas aos ataques. A vitima heres tinham entre 20 e 39 anos de idade. de 50 anos possuia 07 filhos e era “do lar”.

Quanto à idade, entre as 37 vítimas Presente em todas as idades, de feminicidio no Acre nos últimosGRÁFICO três o 10 feminicídio, apresenta prevalência anos, as três vítimas mais jovens estavam entre mulheres em idade reprodutiva.

Gráfico 10: Faixa etária das vítimas de feminicídio no Acre 2018-2020 50 A 54 ANOS 2; 5%

14 ANOS 3; 8%

15 A 19 ANOS

45 A 49 ANOS

2; 5%

4; 11%

40 A 44 ANOS 1; 3%

20 A 24 ANOS

8; 22%

35 A 39 ANOS 4; 11%

30 A 34 ANOS 7; 19%

25 A 29 ANOS

6; 16%

Fonte de dados: Observatório de Análise Criminal do Ministério Público do Acre

REALIDADES 54

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE ENFRENTA

De acordo com o Anuário Brasileiro de saberem se eram ou não menores. No Segurança Pública, no Brasil, em 2019, total, 21 mulheres tinham filhos, total56,2% das vítimas tinham entre 20 izando 47 órfãos de mãe e, em alguns e 39 anos. No Acre, 68% das vítimas casos, órfãos de pai também. Em quaestavam nesse grupo etário e, do total tro casos, não foi registrado se a mulde mulheres, 59% eram mães; não foi her possuía filhos. Onze mulheres não possível coletar a idade dos filhos, para possuíam filhos.

GRÁFICO 11 Gráfico 11: Quantidade de Filhos das Vítimas de feminicídios no Acre (2018-2020) Não Identificado 4; 11%

7 filhos 1; 3%

4 filhos

Nenhum filho

2; 5% 2

12; 32%

3 filhos

3; 8%

8

2 filhos

7; 19%

1 filho

8; 22%

GRÁFICO 12

Gráfico 12: Vítimas de feminicído com filhos por faixa etária (Acre, 2018-2020) 50 A 54 1

1

1

1

45 A 49 1

1

40A 44 1 35 A 39 3

1

30 A 34 3

3

1

25 A 29 1

2

2

1

20 A 24 3

2

1

1

1

15 A 19 1

1

14 2

Nenhum

1 Filho

1

2 Filho

3 Filho

REALIDADES 55

4 Filho

7 Filho

NI

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE NÃO SE COMEMORA

Filhos como testemunhas

O

s policiais chegaram ao local de difícil acesso de quadriciclo. A mulher já estava morta depois de 20 ferimentos provocados por disparo da espingarda do ex-marido.

Maria, 48 anos, estava separado há dois meses do pai de seus quatro filhos, não morava mais com José, pousava na cada do vizinho distante 2km da colônia que dividira com o companheiro em matrimônio. Ele era trabalhador rural e sem antecedentes criminais, embora sempre fora um homem violento com a esposa.

No dia 16 de março de 2019, José mandou o filho mais jovem, de 16 anos, ir dizer à ex-esposa que viesse conversar com ele no dia seguinte, pois iriam resolver tudo sobre a separação. Era o que Maria mais esperava: um gesto de receptividade ao seu pedido de partilha dos bens, quando fora embora de casa sem levar nada, além das poucas peças de roupa.

Maria pedira outras vezes para que marido vendesse a propriedade e dividisse o dinheiro com ela, lhe dando o que era de direito. Esperançosa, Maria disse sim ao chamado do ex-marido e foi ao sem enREALIDADES 57

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE NÃO SE COMEMORA

contro no dia e hora marcados, tinha pressa. Como correr quando a situação pede calma? A urgência muda a direção do voo? O que muda, quando muda um pensamento? Se se pensar diferente o que acontece com o mundo? A separação de bens é o cúmulo do divórcio para um homem violento e mesquinho?

Era por volta das 8h quando chegaram (mãe, filho e um vizinho) na casa que agora era somente do pai dos seus filhos. Como desconfiar do homem com que viveu tantos anos e que corria nas veias o mesmo sangue dos filhos?

Com a mulher em casa - e por se tratar de assunto grave - o pai pediu ao filho mais velho que saisse, os deixassem a sós e, em seguida, ordenou ao filho mais novo que fosse à taberba comprar uma galinha para o almoço, era por volta das 12h.

Quando os filhos retornaram a mãe já estava caída próximo a uma bicicleta na lateral da casa. No momento em que o pai recarregava a espingarda em fúria, o filho mais velho entrou em luta corporal com ele tentanto detê-lo, ao tempo em que perguntava o por quê daquela tragédia em suas vidas, eis que o pais responde: “eu não tive escolha, estava fora de si”.

O que significa estar fora de si em tão pouco tempo? Só deu tempo do filho ir à taberna comprar a galinha para o almoço e a mãe já estava morta? O ódio estivera guardado por quanto tempo no cano da espingarda? Em verdade, a mulher morta daquele jeito era a medida do ódio do ex-marido. Quais palavras foram ditas pelo assassino antes do primeiro disparo?

Depois de matar a mulher, o homem conseguiu fugir, mas fora capturado pela polícia depois que os filhos denunciaram o crime e voltaram para casa com o corpo morto da mãe e um papel que dizia que ela estava morta.

REALIDADES 58

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE ENFRENTA

Pretas e baixa escolaridade

N

o Brasil, o perfil de escolarização das mulheres vítimas de raça/cor das vítimas feminicídios, no entanto, sabe-se que revela maior vulnera- a maioria foi identificada como “do bilidade das mulheres lar”. Uma das vítimas foi identificada negras ao feminicídio: com o ensino fundamental completo, em 2018 elas são 61% das vítimas, con- enquanto três delas foram declaradas tra 38,5% brancas e 0,3% indígenas (1 com ensino fundamental incompleto. mulher indígena de 21 anos de idade). Duas mulheres apareceram na cateEm 2019, 66,6% das mulheres vítimas goria “não alfabetizadas” e, em trinta eram negras. casos, não houve declaração de escoGRÁFICO 13

Há uma invisibilidade quanto à laridade da mulher vítima.

Gráfico 13: Cor/Etnia das vítimas de feminicídios no Acre (2018-2020)

Branca 3; 8%;

Parda 33; 89%; REALIDADES 59

Indígena 1; 3%;

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE ENFRENTA

Gráfico 14: Escolaridade das Vítimas de Feminicídio no Acre (2028-2020)

GRÁFICO 14

Ensino Fundamental Completo 1; 3%; Ensino Fundamental Incompleto 3; 8%; Não alfabetizada 2; 5%;

Não Identificado 31; 84%;

REALIDADES 60

GRÁFICO 15

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE ENFRENTA

Gráfico 15: Tipo de Ocupação Produtiva das Vítimas de Feminicídio no Acre por Escolaridade (2028-2020)

Desocupada 1

Vendedora 1

Não Identificado 6

Garota de Programa 1

Estudante 1

2

2

Doméstica 1

Do lar 1

1

13

Corretora 1

Autônoma 1

Atendente 1

Assistente Legislativo 1

Artista de rua 1

Agricultora 1

EFC

EFI

Não alfabetizada

REALIDADES 61

NI

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE NÃO SE COMEMORA

Atrás do caminhão

E

ntre as vítimas, há predominância da população negra, todavia há de se destacar a presença de uma mulher indígena de sobrenome Kaxinawá.

Esta é a história de Maria, 21 anos de idade, não alfabetizada na língua dos parentes brancos.

Aconteceu numa noite de verão de 2018 no interior do Acre. Ela corria a passos largos, apressada, junto com a irmã e a filha de 1 ano e 8 meses nos braços. Queria a proteção da família; queria chegar logo ao batelão do pai que vinha da Aldeia. Se adiantou, as sandálias estalavam nos calcanhares, estava perto do porto da cidade, dava até para ouvir o barulho do motor. O batelão fazia a manobra para encostar, disse a irmã em depoimento. Faltou tão pouco para Maria se salvar.

Era segunda-feira e se aproximava das 22h quando a esposa fugia do marido que tinha o mesmo sobrenome da mulher. Fora atacada com dois golpes de faca no pescoço em local escuro da rua, bem atrás de um caminhão.

O marido cortou a voz da mulher enquanto ela pedia para não morrer. Mas, antes (...) primeiro ele brutalmente pediu que ela lhe entregasse a filha, o que ela recusou; depois puxou-a pelos cabelos e em seguida o ato final, os golpes de facão no corpo; em seguida, atirou a arma aos pés da esposa em seus últimos suspiros.

O feminicida fugiu para a mata e no dia seguinte foi preso na residência da irmã. O casal possuía 03 filhos de um casamento de 04 anos.

Ele suspeitava que estava sendo traído pela esposa.

REALIDADES 63

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE NÃO SE COMEMORA

Esperando o ônibus para ir à escola

M

aria, 26 anos, também era “do lar”, mas também era estudante do ensino médio aos 31

ação por parte do agressor?

Maria tinha vontade de terminar os estudos, sonhava em ir mais longe, viver mais, se conhecer mais, conhecer mais as coisas através dos anos de idade. estudos, da escola, dos livros, da

Era meio-dia de inverno aprendizagem cotidiana da vida. amazônico e ela estava indo para a Antes do fato ocorrer, ela fora escola quando foi surpreendida pelo apanhar suas coisas pessoais na ex-companheiro, no dia 29 de julho. casa em que morava com o marido.

Maria rompera o relaciona- Naquela ocasião, ele tentara contra a mento amoroso de 5 anos. Tivera 2 vida dela com uma faca. Depois, refilhos, de 04 e 07 anos de idade. O tornara a fazenda na companhia da mãe pai das crianças era peão de fazenda e, finalmente, pegou seus pertences. e não chegara a completar o ensino Pensando em não faltar às aufundamental, ex-detento do com- las e terminar os estudos na comuniplexo prisional e sempre morou com dade Acuraua, pois em breve entrara esposa nos locais em que trabalhava. ia em férias, foi com a filha passar

Maria era agredia violenta e uma semana na casa da comadre que constantemente, disse a mãe e isso morava em Acuraua, perto da escola. motivou a separação do casal; que Estava tudo bem, estava transua filha não aguentava mais viver e quila. Mas, no dia seguinte, tudo conviver com o agressor; que o mari- mudou. A filha de 04 anos assistiu os do havia tentado matar a filha duas instantes finais de vida da mãe e convezes asfixiada; que o homem não tou a avó que “ele estava cortando a aceitava a separação. Quando há ris- barriga da mãe”. co de vida, existem motivos de aceit- Uma mulher com uma criança

REALIDADES 65

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE NÃO SE COMEMORA

no colo tentou ajudar Maria, que apanhava no meio da estrada, mas o homem tomado pelo ódio mortal da mulher, mandou que ela se afastasse senão iria matá-la também.

O ex-companheiro já havia antecipado tudo, dissera que iria pegá-la. Ela não queria denunciá-lo pela ameaça, esperaria uns dois meses e, caso ele não pagasse a pensão dos filhos, iria proceder à denúncia. Maria, naquele instante, talvez não tenha se dado conta do perigo de morte.

Naquele dia, Maria não estava no ponto de parada, o motorista do ônibus escolar estranhou a ausência da aluna, embora ela fosse de faltar, mas naquela semana, não.

Cerca de 300 metros depois da parada, o motorista avistou um homem arrastando uma mulher no asfalto, pois era a aluna Maria e o ex-marido.

Chegando bem perto, freou o veículo e desceu para acudir a mulher, em vão.

Um homem parado na estrada já havia tentado cessar as agressões anteriormente e eis que o feminicida encostou a faca no pescoço da vítima dizendo que se alguém se aproximasse ele a rolaria.

Com medo, o homem se afastou, sem reação.

Nisso, a vítima fora arrastada para um campo ao lado da estrada. Para desferir as 20 facadas no corpo inteiro da mulher, desde o tórax até as coxas, braços e mãos, o agressor pisou em uma das pernas e com uma das mãos segurou o joelho da outra perna da mulher, deixando-a sem defesa.

“Ela ainda estava de olhos abertos, toquei nela, chamei-a pelo nome, mas ela não respondeu”, disse o motorista. O que acontece depois que a vida inesperadamente termina?

Depois que matou a ex-esposa, o homem foi para um curral e tentou suicídio, mas desistiu de morrer, tivera escolha. Depois, pediu para entregar os filhos à mãe da mulher. O feminicida foi preso. Ao ser interrogado, preferiu guardar silêncio, um direito seu que foi respeitado e atendido. Às vezes o silêncio fala verdades que nenhuma palavra seria capaz de dizer.

REALIDADES 66

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE ENFRENTA

Quem são os

companheiros?

A

média de idade dos autores dos 37 feminicídios no Acre no período de 2018 a 2020 é um pouco superior à idade das vítimas. A maior proporção (49%) de idade está na faixa etária entre 30 e 49 anos de idade.

Um dos autores tinha a idade de 15 anos quando colocou fim na vida da ex-namorada, não se sabe ao certo por que, tudo ocorreu no silêncio do início de uma tarde de sexta-feira. O casal tinha pouco tempo de relacionamento e haviam se separado. Maria foi à casa do namorado para tentar reatar o namoro, mas não houve entendimento. O ex-namorado desferiu 18 golpes de faca, só parou quando percebeu que a vítima já estava sem vida. Confirmada a materialidade do fato e a autoria, o menor foi submetido a medidas socioeducativas.

Cumpre destacar que 24% dos autores não tiveram suas profissões descritas nos inquéritos policiais. A maioria dos homens com profissão identificada (cerca de 16%) tinha relação com o trabalho na terra, seja como trabalhador rural, peão de fazenda, agricultor, extrativista (seringueiro e pescador); 14% se enquadraram em profissões tipica-

mente urbanas, tais como mecânico, pedreiro, lavador de carro e pintor; 13% estavam desempregados na data em que cometeram o crime; 11% eram diaristas ou trabalhadores autônomos e 8% profissionais que tiveram ligação com o sistema de segurança pública, sendo 01 policial militar aposentado, 01 ex-agente penitenciário e 01 agente penitenciário da ativa.

Quanto à escolaridade dos autores de feminicídio no Acre no período de 2018 a 2020, fica evidente que essa informação não é tão relevante para a apuração dos fatos; no entanto, é uma variável relevante para os estudos desse tipo de fenômeno social. Nota-se que 49% dos autores não tiveram essa informação registrada em nenhum parte dos relatos contidos no inquérito policial, porém 27% tinham cursado o ensino fundamental incompleto; 8% atingiram o ensino médio completo, percentual bem superior ao das vítimas. Um dos feminicidas possuía ensino superior completo em filosofia.

Constatou-se que 10 autores de feminicídios eram pais de 22 filhos; 02 autores não possuem filhos na época das ocorrências e em 25 casos não foi registrado se o autor possuía ou não filhos com a vítima.

REALIDADES 67

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE ENFRENTA

GRÁFICO 16

Gráfico 16: Faixa etária dos autores de feminicídio no Acre (2018-2020)

Não Identificado 1; 3%; 50 A 64 6; 16%;

15 A 29 12; 32%;

GRÁFICO 17

Gráfico 17: Cor dos autores de feminicídio ocorridos no Acre (2018-2020)

Parda 6; 16%;

30 A 49 18; 49%;

GRÁFICO 18

Gráfico 18: Faixa etária dos autores de feminicídio no Acre (2018-2020) Alfabetizado Analfabeto 1; 3%; 2; 5%; Ensino Fundamental Completo 2; 5%;

Ensino Fundamental Incompleto 10; 27%;

Não Identificado 18; 49%;

Ensino Superior Completo 1; 3%;

Ensino Médio Completo 3; 8%;

REALIDADES 68

Não Identificado 31; 84%;

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE ENFRENTA

GRÁFICO 19

Gráfico 19: Profissão dos Autores de feminicídio no Acre (2018-2020)

Trabalhador Rural/ Agricultor/ Seringueiro/ Pescador

Vigilante

2; 5%;

Agente e ex-agente penitenciário/Policial Militar

3; 8%;

Cabelereiro

1; 3%;

6; 16%; Desempregado

5; 13%;

Diarista/Autônomo

4; 11%; Não Identificado 9; 24%;

Filósofo Gari Mecânico/Pedreiro /Lavador de carro/Pintor

1; 3%;

1; 3%;

5; 14%;

GRÁFICO 20 Gráfico 20: Autores de feminicídio no Acre com filhos (2018-2020)

Nenhum

2; 5%;

Com filhos

10; 27%;

Não Identificado 25; 68%;

REALIDADES 69

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE NÃO SE COMEMORA

Confidências

J

osé e Maria se conheceram no trabalho, quando ele exercera função de chefe. Se casaram e tiveram uma criança que atingira 04 anos de idade no ano em que o pai matou a mãe e depois cometeu suicídio por não aceitar a separação de um relacionamento de pouco mais de 10 anos.

José era filósofo de formação e já andara se queixando ao vizinho de depressão, dificuldade financeira, depois que perdeu o cargo que ocupava, que continuava fazendo o tratamento fora de domicílio e não conseguia mais reatar o casamento depois que o pai da ex-esposa morrera.

O sogro era um pastor hábil com as palavras próprias para obter a harmonia do matrimônio. Sempre que

o casal se deparava com algum desentendimento conjugal, o pai fazia uma conversa com a filha e os dois voltavam às boas; agora, porém, não haveria mais reconciliação, não haveria mais conversas, o pai estava morto e ela estava sob a proteção da Lei Maria da Penha.

Nisso, confidenciara ao vizinho que iria matar a ex-esposa e depois se mataria. É de se perguntar: o que fazer quando uma pessoa confidencia a intenção de cometer um crime e depois se matar? Como identificar uma ideação feminicida? O que passa pela cabeça de um ser que escolhe para si uma barbaridade dessa, meu Deus!

A Doutora em Psicologia Clarissa Pinkolas Estés reconta a história do “Barba Zul” sob a perspectiva do arquétipo de mulher selvagem e declara

REALIDADES 71

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE NÃO SE COMEMORA

que existe um predador natural. Como reconhecer nos traços do homem as feições do assassino? Clarissa esclarece que todas as criaturas precisam aprender que existem predadores. Sem esse conhecimento, a mulher é incapaz de se movimentar dentro de sua própria floresta sem ser devorada. Compreender o predador significa tornar-se um animal maduro pouco vulnerável à ingenuidade, inexperiência e insensatez.

Depressão não é tristeza, é coisa bem diferente. Mas veja, há um abismo entre uma doença emocional e a intenção de matar. Há uma mitologia que se conta que homem não chora, mas depressão é outra coisa e, no entanto, se chora. Quem assume numa situação dessas o papel da própria morte? Ela queria viver e, em súplica, pediu a Deus em palavras derradeiras. A morte apaga a tristeza de uma pessoa quando o desespero da outra começa? E o filho de 04 anos, agora órfão de pais?

José preparou tudo para aquele dia, escreveu até uma carta pedindo para ser sepultado sem ser velado para

não expor a mãe aos riscos de contaminação do vírus mortal que fazia as suas vítimas na pandemia. Ao final, escreveu o nome completo de cada um, seguido de data de nascimento e morte.

A morte da mulher fora marcada com antecedência para que coincidisse com o mesmo dia em que nascera, ou seja, 13 de abril. Ainda aproveitou para pedir desculpas às irmãs e aos amigos por tudo. No teor da carta praticamente culpa a sogra pelos percalços do casamento. Culpada dos percalços da vida? Todo mundo é um pouco.

Foi numa segunda-feira, por volta de 7h, o filósofo aguardava a ex-esposa no estacionamento do hospital. Em 2019, Maria pediu medidas protetivas, um direito previsto na Lei Maria da Penha às mulheres que sofrem violências e ameaças, no que foi atendida. Estava sob a proteção do Estado por determinação da Justiça.

Um homem escondido no carro ao lado testemunhou o crime, disse que o assassino arrastou a mulher de dentro do carro pelos cabelos, braço e blusa. No alvoroço do súbito ataque, a

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FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE NÃO SE COMEMORA

bolsa caiu no chão e ela, na tentativa de se salvar, se desequilibrou e caiu junto com o objeto. Sempre que o equilíbrio falha, a vida se coloca em risco.

O feminicida efetuou o primeiro disparo de cima para baixo. Ela gritou em desamparado apelo: “Por Deus, não me mate!”. O que passara pela cabeça do homem violento entre o primeiro e o último disparo na ex-esposa? Estava sóbrio e determinado, tinha um objetivo: matar a mulher e depois se matar, confessou na carta.

No derradeiro tiro, talvez a mulher tenha ouvido o ribombo da explosão dentro do corpo. Por trás do estopim, o silêncio penumbroso, provavelmente; talvez tenha sentido o fisgo fino do fogo queimando dentro do peito. (...) Silêncio (...)

A morte é uma escuridão serena. O grito pálido da vítima não ecoou.

O homem do carro ao lado viu tudo, ouviu-a pedindo à Deus, mas ele atirou sem piedade, queria matar algo dentro de si e

esse algo era primeiramente a mulher.

Depois do tiro certeiro, a vida da mulher foi-se lhe sumindo pela boca com gosto de sangue. A vida acontece dentro do corpo quente e o dela começava a esfriar, assim são as coisas. Os primeiros socorros foram realizados no lugar dos disparos, mas a vítima não resistiu aos ferimentos.

Morrera de boca e olhos abertos para o nada como as outras vítimas? Em seguida, José foi para casa finalizar a obra. No quarto, na cama, cometeu suicídio com a mesma arma que disparara contra Maria.

O caso foi arquivado, não haveria julgamento, tampouco punição ao culpado. Talvez os familiares chorassem unidos pelo mesmo motivo.

O que fica da carne esvaída, além da memória afetiva no coração das pessoas? Mas no coração de quem?

As memórias vão se apagando aos poucos e as pessoas vão deixando de existir com o tempo, porque o que existe de verdade são as coisas escondidas atrás do grito.

REALIDADES 73

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE NÃO SE COMEMORA

Eles eram mais e mais fortes

T

inham mais poder, mais armas e munições. Os jovens queriam conhecer seus ídolos sertanejos, porque era tempo de Expoacre. Os acusados pela morte dos jovens foram presos e condenados a mais de 89 anos de reclusão, sendo esse o maior tempo de pena dos feminicídios ora estudados e que foram a julgamento.

Maria não foi a única vítima dos assassinos, no entanto foi a vítima de feminicídio entre os três corpos torturados e barbaramente assassinados.

Maria foi abusada sexualmente, humilhada e exposta na sua dignidade

humana. Depois de morta, seu corpo foi jogado num terreno e encontrado após 15 dias do fato.

Tudo começou na Expoacre, no dia 05 de agosto de 2018. Naquela noite, Maria saiu alegre de casa para se divertir com os dois amigos. A exposição agropecuária é uma grande festa que atrai gente do estado inteiro. A programação é feita de rodeios e shows com artistas de renome nacional e até internacional. A cidade se entorpece de luzes e sons. É um frenesi festivo em todos os lugares, o sol em seu esplendor aquece a terra e faz tudo fluir nesse período conhecido como “verão”

REALIDADES 75

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE NÃO SE COMEMORA

amazônico, mas é a estação do inverno no Brasil em que os dias são mais curtos e as noites mais demoradas.

Naquela noite, era dia dos jovens sertanejos famosos e em alta no Brasil: Zé Neto e Cristiano. Aquela noite teria o sabor da eternidade para os três adolescentes. Aproveitaram a festa, mas no retorno para casa, tudo esmaeceu. Os três jovens foram rendidos, levados para uma casa desconhecida por homens faccionados. O garoto foi torturado, esfaqueado e pendurado dentro de um poço até o afogamento.

A garota, menor de 14 anos, foi golpeada com cerca de 16 facadas. Um dos acusados tinha interesse em Maria e não aceitava que ela ficasse com outra pessoa. Matá-la foi uma forma de exercitar o gosto do machismo.

Maria sofreu todo tipo de abuso enquanto o sangue ainda corria quente nas veias. Foi estuprada na frente de outros homens, sofreu todas as humilhações típicas de feminicídio, sem defesa: pela força física, sentimento de propriedade e sobreposição masculina de poder, superioridade de força, de armas e numérica. Eis a cena do crime.

Naquelas condições desiguais não haveria escolha individual para a menina, o lugar em que fora violentada era território de domínio dos homens e ela estava rendida, contida nas suas histórias de mulher, que morre todo dia no mundo inteiro por sua condição natural de mulher. Motivo da morte?

Torpeza, menosprezo à condição feminina, emprego de meios cruéis e ocul-

tação de cadáver.

Da forma reduzida em que se coloca os termos da violência, pode parecer distante e superficial demais da realidade conhecida, pode parecer que não tem nada “a ver” com tudo que acontece no dia a dia: uma piadinha insossa sobre a roupa que se usa, o jeito que se anda, a casa desprovida de tudo em que se mora, enfim, tudo isso é violência.

“Vida se paga com vida”, pois a mulher não é vida? Ela, de uma beleza vivaz, fora desejada por um homem perigoso, comprometido com o crime; ela, inferior física e emocionalmente naquela madrugada, sozinha numa residência desconhecida e isolada, sem nenhum ruído que pudesse penetrar os ouvidos da vizinhança, pois não havia vizinhos. Foi humilhada e ferida na sua dignidade sexual até o agonizante fim.

Arrependimento é um tipo de aviso que chega tarde demais. Se, naquele instante fatal, Maria tivesse, por medo, se arrependido de ter ido à Expoacre com os amigos? Se ela não estivesse na companhia dos dois colegas, eles teriam morrido daquele jeito? Se tivesse voltado mais cedo pra casa? Se não fosse o dia de Zé Neto e Cristiano? Se não estivesse vestida com aquela roupa e se não estivesse usado aquele batom? Se tivesse dito sim? Não, ela não teve escolha, a vida de uma adolescente é um carrossel de “ses”. E se Maria não tivesse morrido?

E se nenhuma mulher fosse assassinada por ódio à mulher? Se os pais dos

REALIDADES 76

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE NÃO SE COMEMORA

adolescentes mortos pudessem viver em paz depois de tudo? E se tudo não passasse de um sonho? E se tudo mudasse depois de tudo?

Em geral nos recusamos a admitir que exista uma força impulsionadora destrutiva dentro da criatura humana que pede mais vingança do que justiça. Costumamos enfeitar pratos vazios com flores, reinterpretamos a realidade imaginando que a pobreza é culpa do pobre e, no entanto, não nos damos ao trabalho de saber por quê? Nos tornamos insensíveis para as situações de atrocidades e sem nos envolver com elas, mas elas não acabam e, por si mesmas, acabam nos envolvendo.

Naqueles dias em que os jovens estavam desaparecidos, os pais saíram em desesperada procura pelos filhos e de súbito foram se vendo, pouco a pouco, nas pontas do emaranhado fio da teia de comando do crime organizado que tomava conta do bairro onde moravam.

Depois das investigações, as provas dos crimes se mostraram contundentes, ante o silêncio dos acusados que engoliram a verdade diante do Tribunal quando todos perguntavam por quê? Cada negação revelava a própria conduta ofensiva de quem dizia não, não sei. Houve quebra de sigilo telefônico e exames forense em veículos e outros objetos usados no crime. A ciência colocou em alto relevo tudo aquilo que parecia invisível, escondido ou negado. No tribunal não existe uma maneira perfeita de mentir, dizer “Doutor isso, Doutor aquilo”, quando as coisas são racionalmente pesadas na balança da verdade, nada mais do que a verdade.

Maria, 14 anos de idade, estudante. A vida passou tão rapidamente para ela. Que descanse em paz.

REALIDADES 77

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE ENFRENTA

A hora do medo

D

os 37 feminicídios ocorridos no Acre, 54% ocorreram na casa da vítima, a maior parte nas residências que ainda acomodavam os casais, sejam companheiros ou ex-companheiros; 11% ocorreram na casa do autor, onde foram registradas residências do ex-companheiro, namorado e ex-namorado; 19% ocorreram em via pública, estrada, beco ou avenida urbana. Em dois casos, o corpo das vítimas foi encontrado em terreno de propriedade particular. O corpo de uma vítima foi localizado no seu local de trabalho, outro na casa do vizinho e outro em um bar. O único caso que ocorreu na casa do vizinho foi na zona rural de um município do interior do estado, por ciúmes. O companheiro, com quem convivia há 6 anos, sob o efeito de álcool e/ou outras drogas, atingiu a namorada no seio do lado esquerdo, numa noite de sábado, com uma faca. O casal tinha dois filhos menores de idade.

O período do dia em que ocorreu o maior número de casos foi a noite, com 15 ocorrências, representando 41% do total dos crimes, seguido do período da manhã (24%) e do período da madrugada (19%). A maioria dos casos que ocorreram em via pública foi no sábado à noite. A hora da manhã com o maior número de crimes foi às 8h (04 ocorrências); no período da tarde foi às 13h (duas ocorrências); no período da noite foi às 21h (quatro ocorrências) e na madrugada foi às 2h (duas ocorrências).

Os feminicídios ocorridos na casa das vítimas apresentaram a menor frequência no período da tarde; em contrapartida, todas as ocorrências na madrugada foram no interior das residências.

Já os corpos encontrados em terrenos atestam que os crimes foram praticados à noite. Em um dos casos de feminicídio não foi possível atestar o horário em que o crime foi praticado, no entanto, ocorreu no dia de sábado em uma área rural, em que a vítima foi uma adolescente de 14 anos de idade.

REALIDADES 78

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE ENFRENTA TABELA 1 - Local por período do dia que ocorreram os feminicídios no Acre (2010-2020) Local do crime

Madrugada

Manhã

Tarde

Noite

Bar Casa da Vítima

6

6

2

Casa de Vizinho Casa do autor

1

1

Mata

%

1

1

3%

6

20

54%

1

1

3%

4

11%

1

3%

2

5%

1

3%

7

19% 100%

1

1 2

Trabalho

1

Via Pública

%

Total

1

Terreno

Total

NI

1

1

5

7

9

5

15

1

37

19%

24%

14%

41%

3%

100%

Fonte de dados: Observatório de Análise Criminal do Ministério Público do Acre

Os finais de semana e o período da noite acumularam a maior quantidade de registros. No caso dos dias de semana, é possível perceber que o aumento dos crimes ocorreu a partir da noite de sexta feira, seguida de sábado à noite, sem deixar, no entanto, de ocorrer o crime nos out-

ros períodos do dia de sábado, passando para a madrugada e a manhã de domingo.

Em seguida, saltou para a noite de domingo e a manhã de segunda-feira. Nos demais dias da semana, os crimes ocorreram em dias e horas espaçados, mas com predominância do turno da noite.

TABELA 2 - Período do dia por dia da semana que ocorreram os feminicídios no Acre (2018-2020).

Dias da Semana

Madrugada

Manhã

Domingo

3

2

Segunda-feira

1

4

Terça-feira

1

1

Total

%

2

7

19%

1

1

7

19%

1

2

5

14%

1

2

3

8%

1

3

8%

1

2

4

11%

1

1

5

1

8

22%

7

9

5

15

1

37

100%

19%

24%

14%

41%

3%

100%

Quarta-feira Quinta-feira

1

Sexta-feira

1

Sábado Total %

Tarde

1

Fonte de dados: Observatório de Análise Criminal do Ministério Público do Acre

REALIDADES 79

Noite

NI

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE ENFRENTA

Os meses em que mais ocorreram feminicídios no Acre foram dezembro e janeiro, sendo que, no ano de 2020, não foi registrada ocorrência no mês de janeiro, nem dezembro. Os dias do mês

que ocorreram a maior quantidade de ocorrência foram dia 01, dia 14 e dia 31, sendo que 58% das ocorrências se deram na primeira quinzena do mês e 42% na segunda quinzena do mês.

TABELA 3 - Ocorrências de feminicídos no Acre por meses do ano (2018-2020) Mês

Ano de ocorrência dos feminicídios no Acre 2018-2020 2018

2019

Janeiro

3

2

Fevereiro

1

Março

2020

1

Abril

2

Maio Junho

2

Julho

1

Agosto

1

Setembro

1

1

Outubro

1

1

Novembro

Total

%

5

14%

2

3

8%

2

3

8%

2

4

11%

2

2

5%

1

3

8%

3

8%

1

3%

4

11%

2

5%

2

5%

5

14% 100%

2 2

1

1

Dezembro

2

3

Total

14

11

12

37

38%

30%

32%

100%

%

Fonte de dados: Observatório de Análise Criminal do Ministério Público do Acre

GRÁFICO 21

Gráfico 21: Local em que ocorreram os crimes ou onde os corpos das vítimas de feminicídio foram encontrados. (2018-2020)

Casa de Vizinho 1; 3%; Trabalhador 1; 3%; Terreno 2; 5%;

Bar

20; 54%;

Via pública 7; 19%;

Casa da Vítima

Mata 1; 3%;

20; 54%;

Casa do autor 4; 11%;

REALIDADES 80

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE ENFRENTA GRÁFICO 22

Gráfico 22: Período do dia das ocorrência de feminicídios no Acre (2018-2020) Tarde 5; 13%

Madrugada 6; 17%

GRÁFICO 23

Gráfico 23: Dias da semana que ocorreram GRÁFICO 23 os feminicídios no Acre (2018-2020)

Manhã Domingo 9; 24% 6; 17%

Sábado 8; 22%

Domingo 6; 17%

Sábado 8; 22%

Noite 15; 41%

Sexta-feira 4; 11%

Não informado 1;3%

Quinta-feira 3; 8% Quarta-feira 3; 8%

Segunda 7; 20%

Segunda 7; 20%

Sexta-feira 4; 11%

Terça-feira 5; 14%

Quinta-feira 3; 8%

Gráfico 24: Mês de ocorrência dos GRÁFICO 24 feminicídios no Acre (2018-2020)

Quarta-feira 3; 8%

Janeiro 5; 14%

Dezembro 5; 14%

novembro 2; 5%

Terça-feira 5; 14%

GRÁFICO 24

Fevereiro 3; 8%

Janeiro 5; 14%

Dezembro 5; 14%

Outubro 2; 5% Março 3; 8%

GRÁFICO 25

novembro 2; 5%

Setembro 4; 11%

Abril 4; 11%Outubro

Agosto 1; 3%

2; 5%

Julho 3; 8%

Junho 3; 8%

Maio 2; 5%

Fevereiro 3; 8%

Gráfico 25: Ano de ocorrência dos feminicídios no Acre (2018-2020)

Março 3; 8%

2020

12; 32% Setembro 4; 11%

2018 14; 38%

Abril 4; 11%

Agosto 1; 3% Julho 3; 8%

2019 11; 30%

REALIDADES 81

Junho 3; 8%

Maio 2; 5%

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE NÃO SE COMEMORA

'Gracias'

A

jovem Maria, 22 anos, foi assassinada em via pública numa noite de sábado, por volta das 22h, em lugar ermo do segundo distrito de Rio Branco. Era estrangeira, artista de rua e viajava o mundo com seu violão e malabares como companhias.

José, 47 anos, lavador de carros, cortejava a moça com comida, enganando-a com galanteios. Algumas vezes fizeram refeição juntos na Gameleira, dividindo marmitex. Se conheceram cerca de 10 dias antes do crime. Uma borboleta muda um destino humano.

Era primeiro de fevereiro de 2020 e depois do café da manhã que tomaram juntos, Maria pediu ao amigo para lavar roupas em sua casa. Tomaram um táxi e cumpriram o pequeno trajeto do mercado até o quarteirão.

O gosto pela refeição era a única coisa que os dois tinham em comum.

Depois do almoço descansaram um pouco: ele na rede e ela na cama; antes, trocaram algumas carícias, mas nem de longe chegaram ao ato sexual. A moça talvez deva ter dito para si em silêncio: opa! Era mais um sinal vermelho que pedia para parar.

Ao cair da tarde, ela retirou a roupa seca do varal, organizou a mochila com os seus poucos pertences, já que se-

guiria estrada afora ainda naquela noite.

Lavar a roupa suja era um rito de despedida. Pegou sua barraca de camping, espelho, uma moeda boliviana, batom, piercing, serra amarela de lixar unhas, caderno de anotações, meias, gorros e seu livro de J.R.R. Tolkien que carregava consigo desde a tenra infância.

O livro conta a jornada de Bilbo na companhia de treze anões, um hobbit respeitável que, em momentos de perigo, lamentava o conforto e a boa comida que deixava para trás. É uma história fantástica, cheia de anões, elfos, dragões, terras selvagens, montanhas sagradas, portas secretas, castelos, mapas, ladrões, exércitos, batalhas, enigmas, tesouros e muitos segredos. A jornada é mitológica, quase religiosa, no sentido da palavra sânscrita, em que se diz a verdade através de expressões simbólicas. O personagem empreende a viagem arquetípica do herói, desde a coragem de atender ao chamado até alcançar ao que Buda denominou iluminação: dos momentos de grandes vitórias ao silêncio do próprio desespero. O viajante é, nas palavras de Nietzsche, aquele que “vive como se o dia tivesse chegado”.

Por volta das 19 horas, Maria e José seguiram juntos para a Rodoviária.

Próxima parada da moça: Rondônia.

Mesmo sabendo que a estrada sempre

REALIDADES 83

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE NÃO SE COMEMORA

fora o próximo destino, a estrada nunca para e o que é da estrada fica na estrada, nunca vai embora com o viajante.

No trajeto, o homem insistia para ela não viajar. Discutira, feroz, zangado. Segurou-a pelo braço e ela reagiu acotovelando-o. Tem gente que considera provocação qualquer discordância. Então, o gesto da moça foi suficiente para a violenta reação do homem ofendido pela perda da posição de superioridade. Furioso, desferiu 24 golpes de faca por todo o corpo da moça.

Fúria não é desejo e talvez a primeira facada tenha sido covardemente pelas costas, atesta o laudo assinado pelo legista. Mãos e pés foram perfurados na tentativa de defesa da vítima. A fúria cruzou o tempo, a maldade pesou mais do que qualquer comiseração. Discordar é uma negativa proibida para uma mulher aos ditames do homem numa cena fortuita como essa.

Esfaqueada covardemente, ela correu em busca de auxílio, ao passo em que sua existência ia ficando cada vez mais tênue, fina, calada. Extenuada, caiu na beirada da estrada e foi encontrada por populares, esvaída em agonia fatal. Entre o socorro prestado pelo SAMU e o fim absoluto, demorou cerca de 1 hora e 35 minutos. O que é o tempo quando a trombeta da morte soa em regressiva contagem? Os médi-

cos do Pronto Socorro ajudaram Maria a morrer sem dor. Nenhuma máquina a faria viver, não tinha mais volta, um dia se morre. “A vida é esse instante incontável, maior que o acontecimento em si, mas não é de se brincar porque em pleno dia se morre” (Clarice Lispector).

Depois do crime, o assassino foi para a Gameleira, lá retirou a faca da cintura e jogou-a no rio, lavou as mãos sujas de sangue, ajeitou a roupa que também fora manchada do mesmo néctar da vida e perambulou até o amanhecer do dia seguinte, quando retornou ao local e apanhou os pertences de Maria, quebrou seu violão em mil pedaços e jogou os malabares no mato.

Um taxista atento aos clamores do dia ouviu a história do bárbaro assassinato da estrangeira e recordou que havia feito uma corrida no dia anterior do mercado municipal até o “quarteirão do Djavan” e a moça, ao desembarcar do veículo, gentilmente lhe agradeceu com uma palavra engraçada: “gracias”.

As pessoas estranham a doçura de uma moça livre, ainda mais de língua diferente. Aquela palavra ficou gravada na cabeça do taxista e foi isso que ajudou a polícia a desvendar a autoria do crime. Às vezes a palavra bate viva no coração das pessoas, a gratidão da mulher ganhara registro na memória afetiva do motorista.

REALIDADES 84

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE NÃO SE COMEMORA

A polícia saiu em busca do assassino, mas não o encontrou em casa, tentara fugir e foi denunciado pela segunda vez. Denúncia salva. Não se pode temer a dúvida quando o assunto é justiça e a sociedade inteira pede paz.

Ele trajava uma camisa do Ceará Futebol Club quando foi abordado por policiais num táxi branco, já no município de Sena Madureira, seu destino seria Feijó, onde se encontraria com esposa e filhos.

Quando abordado, respondeu que “sim” à pergunta “se o objeto no bagageiro lhe pertencia?”. Quando o policial retirou as coisas da parte de cima do carro, viu no dorso da mochila azul uma frase escrita à mão, quase transparente: “Tu vida Tu felicidad”.

O livro da artista fora entregue ao cônsul do Chile no Brasil.

É comum ler esse tipo de história como se nada fosse real, de tão indizível, mas é; é tudo verdade, aconteceu. “O indivíduo é a realidade única” (J.Jung).

A realidade é que provavelmente agora, neste exato instante, outras mulheres estão sendo assassinadas pelos mesmos motivos, nas mesmas circunstâncias de impossível defesa, com os mesmos instrumentos, por um homem que se diz louco, perdidamente apaixonado, delirante. Estaria ela no lugar errado, na hora errada ou o homem possesso não

aprendera a dominar-se?

A autoridade policial concluiu que José estava apaixonado/obcecado e ficou revoltado quando soube que Maria iria embora, seguiria a sua própria jornada, era assim que vivia, está escrita no inquérito a sua forma de vida “...vivia mochilando”, como se fosse uma adjetivação da vítima.

A ênfase na paixão acaba escamoteando o aspecto essencial do conflito entre os sexos, o sentimento está conectado às convicções individuais do assassino. Diante da negativa da moça, tanto de ficar quanto de aceitar a companhia de José na viagem, “o agressor não se conteve e passou a perfurá-la com uma faca, provocando 24 golpes”. Os crimes de feminicídio não são passionais, não se trata de ato isolado.

José já havia sido preso por tráfico de drogas e denunciado por violência doméstica em 2014, em Cruzeiro do Sul. O réu foi condenado a 23 anos e 11 meses de reclusão. O corpo de Maria foi cremado e entregue à família pelo cônsul de sua terra natal.

O caso de Maria causou comoção. O Movimento de Mulheres realizou ato em defesa da paz e pela vida das mulheres. Denunciaram a conivência da própria sociedade com esse tipo de morte e realizaram denúncias de violência contra a população negra e LGBT.

REALIDADES 85

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE ENFRENTA

Local do crime

R

io Branco, capital do estado, com uma população estimada de 413.418 pessoas em 2020 (IBGE/cidades), registou 16 feminicídios entre os anos de 2018 e 2020, representando 43% do total.

Em 2018, Rio Branco registrou cinco ocorrências, caindo para quatro ocorrências em 2019 e, em 2020, aumenta para sete casos, superando os anos anteriores. Cumpre destacar que a capital registrou apenas um feminicídio na área rural, no ano de 2019;

nos demais anos, todas as ocorrências foram 100% urbanas. Chama a atenção a quantidade de feminicídios ocorridos na regional Tarauacá/Envira, que representa 19% das ocorrências do estado, sendo dois casos registrados em Feijó: um na área rural, no ano de 2020, e um na área urbana, em 2018; já em Tarauacá foram registradas quaGRÁFICO 26 tro ocorrências, sendo três urbanas e uma rural, em 2018. Na regional Alto Acre, ocorreu um caso de feminicídio na zona urbana de Epitaciolândia.

Tarauacá

4

Senador Guiomard

1

Sena Madureira

1

Rodrigues Alves

2

Rio Branco

Gráfico 26 - Municípios onde ocorreram os feminicídio no Acre (2018-2020)

16

Porto Acre

2

Plácido De Castro

1

Manoel Urbano

1

Mâncio Lima

1

Jordão

1

Feijó

2

Epitaciolândia

1

Cruzeiro Do Sul

2

Acrelândia

2 0

2

REALIDADES 86

4

6

8

10

12

14

16

18

GRÁFICO 27 FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE ENFRENTA Gráfico 27 - Regionais do Acre onde ocorreram os feminicídios (2018-2020)

Tarauacá/Envira

7

Purus

GRÁFICO 29

2

Juruá

5

Baixo Acre

22

Alto Acre

1

0

GRÁFICO 28 5

10

Gráfico 28 - Zona geográfica em que ocorreram os feminicídios no Acre (2018-2020)

15

20

25

Gráfico 29 - Mês de ocorrência dos feminicídios no Acre (2018-2020) dez

Rural; 11; 30%

5

nov

2

out

2

4

set

ago

Urbana 26; 70%

1

jul

3

jun

3

mai

2

abr

4

mar

3

fev

3

5

jan 0

REALIDADES 87

1

2

3

4

5

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE NÃO SE COMEMORA

Símbolo É fácil criar, com palavras e gestos, a imagem única de um ato humano cruel e repugnante praticado contra seu semelhante, por exemplo, degolar uma garota de 17 anos e depois ofertar a cabeça da vítima à própria mãe. Aconteceu com Maria na capital do estado, no dia 21 de fevereiro de 2020.

Era comum, desde os povos primitivos, cortar e carregar triunfantemente a cabeça do inimigo vencido em guerra, representava a força e o valor do guerreiro ante o adversário.

Na mitologia Celta, a morte só ocorria definitivamente quando as membranas do cérebro eram atingidas. Na Europa dos séculos XVI e XVII, a ordem patriarcal determinava os horrores dos castigos às mulheres desobedientes e heréticas. Centenas de milhares de mulheres foram julgadas, torturadas, queimadas vivas, enforcadas e degoladas. Silvia Federicci em sua obra “Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva”, alerta que um problema que se acrescenta a essa forma de repressão social às mulheres naquela época é que os registros não contavam com o ponto de vista das vítimas.

O feminicida confessou o crime depois de capturado pela polícia, em total estado de embriaguez e entorpecimento pelo uso de drogas: esganou, cortou a cabeça, desfilou com a cabeça nas mãos pelas ruas da vila. Chegou até a arremessá-la sobre o corpo de um conhecido da comunidade por nome de Rodrigo, depois a jogou fora, conforme relato de testemunha.

A cabeça fora encontrada por uma pessoa da família num quintal próximo à casa da mãe. A mãe reconheceu um hematoma do lado direito do rosto da filha. É possível que antes da morte da mulher o assassino tenha tentado estuprá-la, isso porque a outra parte do corpo estava despida, disse a mãe da vítima em depoimento. Disse ainda que não vira a outra parte do corpo da filha sobre a cama, disseram que seria insuportável para o coração de uma mãe.

Como era a realidade do casal antes do crime? Ele a surrava sem deixar marcas, não a deixava sair só, a ameaçava de morte e, semanas antes do assassinato, a prendeu em casa por cerca de 15 dias, conforme relato de testemunha.

O advogado de defesa do réu

REALIDADES 89

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE NÃO SE COMEMORA

pediu teste de sanidade mental para o seu cliente, no que foi atendido, como direito a ampla defesa. O promotor de Justiça questionou o pedido, visto que a loucura do homem só acontecia com a esposa, que, segundo a genitora, sua filha era magrinha, sofria de um grave problema no sangue. O argumento do promotor se baseou nas atitudes do feminicida antes de cometer o crime: ele a humilhava, a ameaçava, a espancava às escondidas, depois a prendia em casa, a levava para o trabalho, quando tinha um.

Maria era “do lar”, de baixa renda, e não havia identificação de escolaridade na caracterização dela como vítima, provavelmente não ia à escola, mesmo com pouca idade. O marido tinha 36 anos, era usuário de drogas e já havia sido preso anteriormente. O motivo do feminicídio? Torpe, apenas. Se fosse uma planta, Maria teria morrido antes mesmo de florir, sem alcançar o auge da experiência humana de uma mulher.

Então, o gesto impiedoso da cabeça como troféu vem de longe. O que um homem sente ao desfilar pelas ruas com uma cabeça de mulher pendurada nas mãos? Muita gente diz que existem pessoas que gostam de ver sangue; dos outros, naturalmente.

Houve um tempo em que o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) lançou a campanha “Conte até 10” para evitar os crimes por motivos fúteis, aqueles rompantes fora de hora.

A aposta da campanha era a contagem consciente antes do sujeito cometer qualquer ato violento. No entanto, esqueceram que esse tipo de contagem é feito com a respiração de corpo inteiro e que precisa ser ensinada e reaprendida, existe nisso tudo uma função pedagógica que liga o mundo real ao próprio mundo interior do indivíduo.

Em tese, a fatalidade inevitável seria interrompida na contagem dos 10 segundos entre a irritação e a raiva, bem antes do ódio explícito. Em tese, há um tipo de consciência que se estabeleceria na mente do indivíduo justamente nesse intervalo entre o 01 e o 10, entre o antes e o depois do gatilho psicológico, tempo suficiente para dominar o animus da criatura e retomar a mente à razão.

Há quem pense na simplicidade da campanha, relacionando-a com a sua pouca adesão e constância. Quem esmaga com ódio uma flor é capaz de cometer qualquer horror, mas isso é uma outra história.

REALIDADES 90

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE ENFRENTA

Ciúmes, armas e munições

D

e acordo com as Diretrizes Nacionais do Governo Federal para investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres, considera-se condições estruturais do feminicídio o sentimento de posse, o controle sobre o corpo e autonomia da mulher, limitação da emancipação profissional, econômica, social e intelectual da mulher, seu tratamento como objeto sexual e a manifestação de desprezo e ódio pela mulher.

Debruçando-se sobre a causa de tais delitos, verifica-se que o sentimento de posse do parceiro gera ciúmes extremos e a ideia de que a mulher é um objeto de propriedade dele, tolhendo sua liberdade e a autonomia sobre seu corpo.

Para chegar ao feminicídio, qualquer pretexto é válido. É o que se vê nas motivações dos feminicídios no Acre: 30% foram por ciúmes, 22% por motivo fútil e torpe.

Os feminicídios foram cometidos majoritariamente por companheiros das

vítimas, totalizando 46% dos autores, enquanto os ex-companheiros representaram 14%. Juntos, companheiros e ex-companheiros, totalizaram 59% dos acusados que possuíam relações íntimas afetivas mais sólidas com as vítimas, inclusive com filhos do casal.

Namoradas e ex-namoradas também somam nesse perfil de vítima, totalizando oito ocorrências, inclusive em um dos feminicídios, o ex-namorado era menor de idade e cumpre medidas socioeducativas na regional do Juruá. A vítima tinha um filho menor de idade.

Foram registradas duas vítimas que possuíam relações extraconjugais com os acusados, inclusive há um caso em que a amante foi assassinada porque estava grávida de quatro meses.

Além disso, quatro feminicídios foram praticados por homens conhecidos das vítimas, sem, no entanto, possuir qualquer relação íntima afetiva com a vítima, a exemplo do filho de criação que assassinou a mãe de criação e a vizinha, na área rural da regional Juruá.

REALIDADES 91

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE ENFRENTA

14

Conhecido

1

Ex-companheiro

2

%

1

1

2

5%

2

17

46%

2

4

11%

2

5

14%

2

5%

1

3%

6

16% 100%

1 1 1

Ex-namorado

1

Filho de criação

Total

Companheiro

Via Pública

Amantes

Trabalho

Terreno

Mata

Casa do autor

Casa de Vizinho

Bar

Tipo de relacionamento da vítima com o autor

Casa da Vítima

TABELA 4 - Tipo de relacionamento da vítima com o outor e local dos feminicídios ocorridos no Acre (2018-2020)

1

1

Namorado

1

2

1

1

1

Total

1

20

1

4

1

2

1

7

37

3%

54%

3%

11%

3%

5%

3%

19%

100%

%

Fonte de dados: Observatório de Análise Criminal do Ministério Público do Acre

Destacam-se os casos atravessados pela guerra entre as facções criminosas sem ter ligação com elas. A polícia judiciária comparou modus operandis e ficou claro a intenção de ódio contra

a mulher na prática do crime. Há os casos de agressões físicas constantes do homem contra a mulher, além de três motivações pelo fato de o homem não aceitar o fim do relacionamento.

TABELA 5 - Motivação por tipo de relacionamento da vítima com o autor de feminicídios no Acre (2018-2020) Motivação

Amantes

Companheiro e Conhe- Namorado e Filho de ex-companheiro cido Ex-namorado criação

Total

%

3

8%

Agressão física

3

Ciúmes

7

4

11

30%

Fútil

2

2

4

11%

1

3%

3

8%

Gravidez Guerra de facções/ Crime Organizado

1 1

2

REALIDADES 92

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE ENFRENTA Não aceitava o fim do relacionamento NI

3 1

4

Sem motivo aparente

3

8%

1

6

16%

1

1

3%

1

3%

1

4

11%

37

100%

Separação de bens

1

Torpe

1

2

2

22

4

8

1

5%

59%

11%

22%

3%

Total %

Fonte de dados: Observatório de Análise Criminal do Ministério Público do Acre

Os instrumentos usados na prática dos crimes foram, em sua maioria(59%), armas brancas, especificamente faca normal, faca de mesa e facão. Além disso, dez feminicídios foram praticados com arma de fogo.

Os outros instrumentos foram madei-

ra (pedaço de pau) e cordas usadas em enforcamentos. Companheiros, ex-companheiros, namorados e ex-namorados utilizaram majoritariamente arma branca, enquanto a maior parte dos conhecidos utilizou arma de fogo na prática do crime.

TABELA 6 - Tipo de relacionamento por insturmento utilizado nos feminicídios ocorridos no Acre (2018-2020) Tipo de relacionamento da vítima com o autor

Arma branca

Arma de fogo

Outros

Total

%

1

2

5%

Amantes

1

Companheiro

12

4

1

17

46%

Conhecido

1

2

1

4

11%

Ex-companheiro

3

2

Ex-namorado

2

Filho de criação

1

5

14%

2

5%

1

3%

Namorado

3

1

2

6

16%

Total

22

10

5

37

100%

59%

27%

14%

100%

%

Fonte de dados: Observatório de Análise Criminal do Ministério Público do Acre

Os feminicídios íntimos foram cometidos com mais frequência com o uso de arma branca, com mais frequência no período da noite e com iguais frequências à tarde e de madrugada. Já os crimes praticados com arma de fogo ocorrem mais no período da manhã.

Dos dias da semana, o com menor frequência de feminicídios na casa das vítimas foi quarta-feira, com uma ocorrência. Os dois crimes em que os corpos das vítimas foram localizados em terrenos ocorreram domingo.

Com relação ao estado dos au-

REALIDADES 93

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE ENFRENTA TABELA 7 - Período do dia por instrumento utilizado nos homicídios ocorridos no Acre (2018-2020) Período do dia

Arma branca

Arma de fogo

Madrugada

5

2

Manhã

2

5

Tarde

5

Noite

9

NI

1

Total %

Outros

Total

%

7

19%

9

24%

5

14%

15

41%

1

3% 100%

2

3

3

22

10

5

37

59%

27%

14%

100%

Fonte de dados: Observatório de Análise Criminal do Ministério Público do Acre

tores no momento da prática do crime, 27% se declararam sóbrios e 24% estavam alcoolizados e/ou sob o efeito de entorpecentes. Por outro lado, 49% dos autores não tiveram registrados o estado em que se encontravam quando praticaram os crimes.

Importante destacar que 19% dos acusados de feminicídios no Acre no período de 2018 a 2020 possuíam

antecedentes criminais e, em alguns casos, estavam monitorados por tornozeleira eletrônica ou foragidos da Justiça. Destaca-se, ainda, que 30% dos acusados possuíam antecedentes de violência doméstica e familiar contra a mulher; no entanto, não foi possível verificar se se tratava da mesma vítima de feminicídio.

TABELA 8 - Registro de ocorrêncnia de antecedentes criminais por motivação dos feminicídios ocorridos no Acre (2018-2020) Motivação

Registro de antecedentes criminais dos autores por motivação Sim

Não

Agressão física

1

2

Ciúmes

4

6

Fútil

2

Gravidez Guerra de facções/Crime Organizado

1

Não aceitava o fim do relacionamento NI

Total

%

3

8%

11

30%

2

4

11%

1

1

3%

3

8%

3

8%

6

16%

1

NI 1

1

3 1

3

2

Sem motivo aparente

1

1

3%

Separação de bens

1

1

3%

Torpe

2

2

4

11%

Total

11

22

4

37

100%

%

30%

59%

11%

100%

REALIDADES 94

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE ENFRENTA GRÁFICO 30

Gráfico 30 - Tipo de relacionamento entre as vítimas e autores de feminicídios no Acre (2018-2020) Não Informado; 1; 3%

Amantes; 2; 5%

Namorado; 5; 13%

Filho de criação; 1; 3% Ex-namorado; 1; 3%

Ex namorado; 4; 11%

Companheiro; 19; 51%

GRÁFICO 31 Conhecido; 4; 11% -

Gráfico 31 - Motivações dos Feminicídios ocorridos no Acre (2018-2020) Agressões físicas constantes; 3; 8%

Torpe; 4; 11% Separação de bens; 1; 3% Sem motivo aparente; 1; 3%

Não Identificado; 6; 16%

Ciúmes; 11; 30%

GRÁFICO 32 Não aceitava o fim do relacionamento; 3; 8% 8% Guerra de facções/ crime organizado; 3; 8%

Gráfico 32 -Tipo de instrumento utilizado nos feminicídios ocorridos no Acre (2018-2020) Outros; 14%

Arma de Fogo; 27%

Arma branca; 59%

REALIDADES 95

Fútil; 4; 11% Gravidez; 1; 2%

GRÁFICO 33

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE ENFRENTA Gráfico 33 - Estado dos autores quando cometeram os feminicidios no Acre (2018-2020) Embriagado e/ou drogado; 9;24%

Sóbrio; 10;27%

GRÁFICO 34 Fonte de dados: Observatório de Análise Criminal do NAT/MPAC Fonte do status dos casos: SAJ/TJAC Pesquisa do status dos casos: Centro de Atendimento a Vítima - CAV/MPAC. Não Identificado; 18;49%

Gráfico 34 -Antecedentes criminais dos autores de feminicídios ocorridos no Acre (2018-2020)

Ausentes; 12; 32%

Não Identificado; 18;49%

Fonte de dados: Observatório de Análise Criminal do NAT/MPAC Fonte do status dos casos: SAJ/TJAC Pesquisa do status dos casos: Centro de Atendimento a Vítima - CAV/MPAC.

GRÁFICO 35

Presentes; 7; 19%

Gráfico 35 -Antecedentes de violência doméstica e familiar contra a mulher dos autores de feminicídios no Acre (2018-2020)

Sim; 11; 30%

Não; 23; 62%

Fonte de dados: Observatório de Análise Criminal do NAT/MPAC Fonte do status dos casos: SAJ/TJAC Pesquisa do status dos casos: Centro de Atendimento a Vítima - CAV/MPAC.

Não Identificado; 3; 8%

REALIDADES 96

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE NÃO SE COMEMORA

Vozes

Q

uando José chegou à noite em casa ela estava de toalha no quarto. Pelo espanto do homem, era como se ela estivesse nua. Naquela noite eles não brigaram, mas ele cismou com os trajes da esposa, incerto de uma verdade que era só sua. Brandia em seus ouvidos o raio da destruição. “Ela estava me traindo”, disse ao delegado quando inquirido.

O homem não vira nada sobre a traição, mas seu ódio ouvia tudo. Alegou, em depoimento, que andavam dizendo por aí que ela o traía. Isso fez lembrar de Oscar Wilde em sua literatura: “Os que são fiéis só conhecem o lado comum do amor. Só a infidelidade sabe das tragédias do amor”. A traição é reimosa para a honra de um homem, que depende mais das virtudes da mulher do que de suas próprias qualidades humanas.

Antes dos dois se recolherem ao descanso noturno, provavelmente pensando na segunda-feira, aquele eterno dia em que se começa o impossível, ela disse ao marido: “É a última vez que me agride”. Qual o peso dessas palavras na boca de uma mulher acusada de traição pelo próprio marido? Como uma mulher diz não ao marido sem a culpa do erro humano que ele diz que ela é?

Deitou-se de costas, não para

o marido, mas para o resto do mundo, supostamente; talvez tenha fechado os olhos e era como se a tristeza ficasse ainda maior e mais gélida. De olhos fechados ela poderia ser ela mesma, quem sabe. Talvez naqueles instantes o caos dentro do corpo fosse se apaziguando aos poucos com o terror da noite escura.

Fechou os olhos. Sonhando seria feliz?

O tempo demora tanto quando se sofre.

Nesse estado, adiantaria choro? Estivera de alma vazia? Estivera com medo da fatalidade inevitável da morte ou da vida em si? O que desejaria naquele momento de repouso: tranquilidade ou alegria?

Pressentira que morreria naquela noite?

Pelo que vale a pena morrer? Pelo mesmo propósito que se vive, naturalmente.

O que acontece depois que se morre?

Para onde vai o que se chama de vida?

Antes da meia noite, o terror aconteceu ali mesmo na cama do casal.

A morte é uma realidade e não uma fatalidade quando a vítima não tem escolha. Há dentro de todo ser humano esse instinto de defesa que reage ao extermínio. Maria reagiu à morte naquela noite, mas seu fim foi inevitável.

O inquérito policial conta que Maria sofria constantes agressões físicas do marido. Em que momento uma mulher, mergulhada num mar de desconfianças, é feliz? Talvez ela quisesse

REALIDADES 98

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE NÃO SE COMEMORA

mais viver do que ser feliz. O que é felicidade para uma mulher que apanha ou é estuprada pelo próprio marido? A felicidade fora a causa da sua tragédia? É preciso primeiro dar-se a si mesma antes de se acompanhar com alguém, mas isso é necessário ser ensinado, porque não é comum se perguntar: quem sou eu? Em tudo isso ecoa na mente de uma mulher a sombra dos sentimentos do homem indizível na famosa frase machista da separação: “se não for minha não será de mais ninguém”.

José sentira ódio de Maria a ponto de exterminá-la. “Ódio é uma grande antipatia, um sentimento de aversão por algo ou alguém. Como consequência, ficamos esperando que algum coisa ruim aconteça com o objeto do nosso ódio” (Pereira, Cristina Nuñes, 2018, p.12).

Quanto tempo dura um ódio no coração de uma pessoa? O que mais ameaça a imagem de um homem, a injustiça ou o bem-estar da mulher livre?

Isabel Allende, escritora chilena, em uma de suas obras indica que a burca é uma forma repressiva dos homens se protegerem da sedução feminina e não para que as mulheres se protejam da luxúria dos homens. O ciúme é um pântano na mente de um assassino. Alguém poderá contestar e dizer que esse tipo de visão sobre um crime é coisa do

feminismo, pensando que existe polaridade entre o amor e a raiva, entre a fera e o homem; não, não, os livros dão conta de que feminismo é outra coisa, quem pensa assim é porque ainda não conheceu o verdadeiro amor, nem a fera, nem o homem. As coisas não são comparadas de trás para frente, mas lado a lado, na mesma métrica. A mulher quer se libertar, mas esse tipo de libertação deve ser tanto das mulheres quanto dos homens.

Sob o manto da violência machista do sistema, a liberdade de uma mulher é matéria perigosa.

José, com seus incômodos na cama, ouvia vozes perturbadoras dentro da sua mente, escutou até a voz da própria Maria lhe falando sobre o adultério com o vizinho. Dizem que é no cérebro que ocorrem as piores tragédias. Ouvira até a mulher falando e, no entanto, ela estava deitada ao seu lado, quieta, em silêncio, seminua, de costas, provavelmente dormindo, conforme consta em laudo pericial.

O relógio se aproximava da meia noite quando o marido se levantou da cama e foi até a cozinha. Retornou ao quarto com a faca do cabo de plástico branco em punho. Sóbrio, golpeou o corpo inteiro da mulher com 52 facadas. Outra Maria, que tinha síndrome de Down, morreu com uma facada no meio

REALIDADES 99

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE NÃO SE COMEMORA

de um abraço do namorado, ainda deu tempo dela lhe dizer: “oh, meu véi, você em acertou”.

Na delegacia o assassino que desferiu 52 facadas na esposa confessou que não saberia dizer com quantos golpes matou a mãe de sua filha. A primeira facada fora provavelmente nas costas, atestou o laudo, talvez ela tenha se encolhido toda do susto da lâmina fria nas costelas; talvez no segundo golpe ela tenha procurado proteção com mãos e pés para o alto; no décimo segundo rasgo entre os seios, teria ela gritado? Existiria a palavra certa para aquele momento, senão a espera muda do milagre? Na vigésima segunda facada, talvez o pensamento inevitável e derradeiro tenha tomado conta de sua mente num tenebroso silêncio? Para onde vai o pensamento quando tudo despenca no vácuo?

Sentira dor na trigésima segunda facada no corpo coberto de sangue? Qual parte da carne ainda não estivera ferida depois de 30 facadas? Um corpo tão magro agonizando na cama. Na quadragésima segunda perfuração, teria visto o brilho incandescente da lâmpada do quarto acesa ou atravessara a porta escura sem se despedir dos filhos? Na quinquagésima segunda e última facada, talvez já estivesse seca sobre o lençol molhado.

O corpo de Maria durou 52 facadas em um minuto ou um século até

que o agressor completasse a sua cólera?

E depois, a sua fúria acabara? Acabara a violência? Acabara a mulher? O fluxo da mulher fora rompido. Depois da última punhalada as cismas da traição cessaram?

O lençol branco da cama em madeira maciça envernizada ficou todo enrugado dos movimentos impossíveis da mulher teimando contra o animus brutal do marido. O pano ficou empapado, grosso de sangue. Quem retirou o lençol da cama depois do escândalo da morte?

O pano foi lavado ou jogado no lixo? Em que estado emocional seus filhos ficaram ao ver a mãe esfriando e enrijecendo dentro de casa?

Na fotografia do laudo cadavérico, o corpo de Maria parecia uma flor de fim de festa pisoteada no chão. Maria morreu de olhos, boca e braços abertos, numa posição que parecera pedir alguma coisa, talvez perdão aos filhos por ter morrido? A árvore do perdão tem raízes muito profundas. Talvez naquela hora da madrugada a primavera estivesse abrindo a sua última flor, enquanto as folhas das árvores caíam no quintal da casa. Triste cena, até mesmo na primavera flores murcham.

Era madrugada e as crianças de Maria choravam minguado na cama depois do ocorrido. Será que estou dando a ideia real do que foi aquele instante

REALIDADES 100

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE NÃO SE COMEMORA

pavoroso, de terrível espanto com a coisa impossível?

O vizinho do apartamento ao lado escutou choro de criança, abriu a porta, viu José saindo do apartamento de Maria, em seguida fechou a porta por cima dos gemidos infantis. No quarto, o menino de sete anos chamou pela mãe, inerte, com a cabeça pendida, pensou que estivesse desmaiada, chamou-a sem obter resposta.

Então, o menino correu gritando pela rua vazia pedindo para alguém acudir sua mãe. Correu para onde? Onde ele estará agora? Uma vizinha amparou as crianças até a chegada do SAMU, da Polícia, do IML. A rua ficara acesa naquele instante com a presença dos vizinhos. A morte fora constatada no local pelo médico da emergência. O que fazer quando não se pode fazer mais nada?

O SAMU sempre chega na hora, mas dessa vez não teria o que consertar.

Os olhos secos da mulher na fotografia cadavérica teriam chorado? A família, enlutada, chorou no túmulo o adeus.

Enquanto a polícia procurava vestígios e colhia depoimentos dos vizinhos para iniciar o procedimento policial, o assassino telefonou para a cunhada, que também estava no local do crime, ela o atendeu em viva-voz para a escuta da polícia, enquanto ele perguntava:

“Ela está bem?”

A irmã respondeu: “Como poderia estar bem depois do que você fez com ela?

“Fiz uma besteira, depois foi que ‘me toquei’ do que tinha feito. Ela está viva? Morreu ou está no hospital? É verdade que ela morreu? Eu fiz isso porque desconfiei que ela estaria me traindo”, disse ele à cunhada pelo telefone.

A suspeita do marido não foi confirmada. Além da faca, José subtraiu o aparelho celular da vítima e depois jogou fora. Revelou ao delegado que não encontrara nada no telefone da vítima que comprovasse as suspeitas da traição: (...) “até porque ela apagava tudo, Doutor”, disse o feminicida ao delegado.

Era certo que Ayrton Sena conhecia a natureza intangível do interior da sua máquina; enquanto o homem, nem se penetrasse no mais fundo da gruta de uma mulher, jamais chegaria a conhecer o seu mistério.

Ocorreram outros dois casos em que o celular fora o culpado. No primeiro feminicídio, a mulher sofreu 28 lesões de arma branca. Ele queria saber o que tinha no telefone dela e disse que na pandemia ela passou a ser a “cabeça da casa”, o que causava os desentendimentos entre o casal. Disse em depoimento que era ciumento e não suportava ver a mulher receber ligações telefônicas. Testemunhas disseram que ele agredia fisicamente a esposa, a estuprava. No dia do

REALIDADES 101

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crime ela disse que era a última vez que teriam relação sexual e depois ele iria embora, pela vontade dela. A que ponto chega uma mulher em apelo ao seu direito à liberdade? Pronunciara, assim como as outras, as palavras proibidas?

Eles não aceitam que a mulher vá embora por si mesma, em total liberdade?

No ato de violência, enquanto ela pedia para parar, enquanto ele dizia “agora é que o show vai começar”. Ele dizia para as pessoas: “você viu a vergonha que ela me fez passar?”. Afirmara também “que se ela fosse embora ele a mataria”. Ela tinha medo de denunciar. No segundo caso, o companheiro disse que queria pegar o celular da mulher para passar para sua playlist três hinos e ela o negou.

Ele disse que o aparelho foi ele quem lhe dera. Enciumado, teria pensado que a esposa ocultava uma vida secreta dentro daquela máquina? Quando o delegado lhe perguntou o motivo das cinco facadas que tirou a vida da sua esposa, ele respondeu: “a discussão foi sobre o celular mesmo”.

José assassinou Maria com 52 facadas porque não aceitou a promessa de separação que ela fizera, disse uma testemunha. Porém, o acusado se esqueceu que além da balança, a Justiça possui na outra mão uma espada erguida para o alto. As decisões para esse tipo de crime costumam ser inapeláveis.

Maria fora identificada como “do lar”, tinha 23 anos de idade, era parda, passava de um metro e meio de altura, magra e de cabelos encaracolados.

O laudo indicou que o assassino não a machucou com outro instrumento antes de feri-la com a faca da cozinha, até porque ela estava dormindo. As lesões nos membros superiores e inferiores foram compatíveis com tentativas de defesa da vítima. No final, o legista atestou que o assassino fez uso de meios cruéis para matar a mulher.

José tinha passagem pela polícia por furto em outra cidade. Se declarou abstêmio, não fazia uso de qualquer substância entorpecente, estava sóbrio quando praticou o crime, no entanto disse que fazia uso Cargamazepina, remédio indicado para tratamento de epilepsia, distúrbios afetivos bipolares e abstinência alcoólica. Em seu célebre romance, Dostoievski diz que “Todo criminoso, no momento em que pratica o seu crime, é sempre um doente”.

Depois de tudo, ele se hospedou no Hotel do Papai no centro da cidade, onde foi preso depois que a polícia recebeu uma denúncia anônima responsável. Denunciar a fuga de um assassino foragido da lei é a mais pura expressão da justiça.

Até a conclusão desse trabalho, o Tribunal aguardava o resultado do incidente de insanidade mental do acusado para prosseguir com a acusação e punir o culpado.

REALIDADES 102

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE ENFRENTA

O Crime Organizado

Guerra entre facções criminosas

U

ltimamente o Acre viu crescer de forma assustadora a violência urbana em razão dos conflitos entre organizações criminosas, pelo domínio territorial do tráfico de drogas. O estado se tornou rota importante para a entrada de drogas, nas fronteiras com Peru e Bolívia, dada a fragilidade na fiscalização e particularidades do espaço amazônico, como extensas áreas de floresta e rios nos quais o crime organizado pode camuflar suas atividades.

Por conta disso, o Acre estampa índices preocupantes de mortes violentas intencionais, nas quais estão: homicídio doloso, latrocínio, lesão corporal seguida de morte. As mortes de mulheres têm sido expressivas nesses contextos, cujo crescimento se deve a um fenômeno recente, que é o envolvimento delas no tráfico, seja em posição de coadjuvante, seja em posição de co-

mando, o que as torna também alvo da violência de grupos rivais.

Com relação aos homicídios dolosos contra mulheres, o Acre figura entre os estados com taxa que ultrapassa a média brasileira: em 2019 registrou taxa de 7,0 por 100 mil mulheres — o dobro da taxa nacional (3,5).

Os crimes dolosos são considerados aqueles em que o agente tem consciência do seu ato ou assume o risco de que algum crime ocorra.

Desse modo, pode-se considerar que, além da violência de gênero, há no estado os fatores decorrentes da dinâmica dos grupos criminosos que contribuem para o assassinato de mulheres. Segundo o promotor de Justiça Júlio César de Medeiros, membro do Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado (Gaeco), as características das mortes delas nesses casos não diferem do modo de execução de homens ligados ao crime.

REALIDADES 103

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE ENFRENTA

O promotor cita casos em que mulheres foram executadas de maneira cruel, após serem previamente julgadas pelo chamado “Tribunal do Crime”, no qual a sanção é a pena de morte, sem chance de defesa. Este é um modus operandi típico desses homicídios, perpetrados com emprego de violência extrema, como torturas, decapitações com cabeças expostas em público, esquartejamentos, corpos escondidos em covas rasas e corpos carbonizados. A crueldade é a forma de impor medo aos inimigos e exibir poder.

“Dentre as motivações para esses homicídios, destacam-se, principalmente: a guerra sangrenta entre facções criminosas, a intensa disputa de territórios e de poder, visando ao controle de pontos de venda de drogas, a cobrança de dívidas e a pretensa traição, a qual pode ser assim compreendida, pelos criminosos, devido à vítima ter passado a integrar uma facção rival ou a se relacionar com alguém que a integre”, explicou o promotor.

Para o coordenador adjunto do Gaeco, promotor de Justiça Bernardo Albano, a participação das mulheres nas organizações criminosas é cada vez maior, principalmente na atividade ilícita do mercado de entorpecentes, e o ingresso nesse mundo se dá pela busca do lucro fácil ou pela influência de algum companheiro, parente ou conhecido.

“Existe inclusive a diferenciação dentro da própria ‘linguagem criminosa’. Aquela mulher que é esposa de um faccionado é conhecida por ‘cunhada’ dentro da facção. A mulher que é mem-

bro da organização criminosa é conhecida como ‘irmã’”.

Sendo integrantes, essas mulheres estão sujeitas à disciplina da facção, que é aplicada nos casos de infidelidade ao grupo, bem como podem se tornar vítimas de uma execução praticada pela facção rival. “Existe, dentro da ética transviada, distorcida, da organização criminosa, uma preocupação com a fidelidade da mulher integrante, que, por exemplo, se tiver um relacionamento extraconjugal cometeria a falta chamada de ‘talaricagem’, que é uma falta que a organização pode punir inclusive com a morte”, explica o promotor.

Conforme Albano, o que se vem notando agora é que pessoas do sexo feminino estão exercendo papel de liderança no mundo do crime. “Num primeiro momento, a gente verificou de maneira geral que as mulheres tinham posição de coadjuvantes nessas organizações, mas hoje em dia percebemos que estão galgando a posições de liderança, através da organização do grupo de mulheres na facção e, em alguns casos, inclusive, chegando à posição de liderança de conselho, ou seja, de gestão superior da facção.”

No levantamento do Observatório de Análise Criminal e Centro de Atendimento à Vítima (CAV), Rio Branco assume a dianteira como a cidade acreana onde houve mais mortes violentas de mulheres. De 2018 a 2020, consumaram-se 56 homicídios contra pessoas desse gênero. Em seguida, aparece Feijó, com seis vítimas, e Tarauacá, com cinco.

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FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE NÃO SE COMEMORA

Terror compartilhado N

o início de 2018 corria vídeo que deixou os acreanos terrificados. Nele, uma jovem tatuada, de 19 anos, prostrada, recebia golpes de terçados e de facas dos carrascos encapuzados, enquanto soltava gritos lancinantes suplicando por misericórdia. Não adiantou. A sessão de tortura só acabou quando a cabeça dela foi arrancada. A propósito, a imagem perturbadora não vinha de grupos jihadistas. Era no Acre — em Rio Branco.

A cabeça é apresentada pelos algozes e o nome de uma facção criminosa é exaltado ao final. Este é um gesto desumanizador necessário para transmitir uma “mensagem” aos inimigos. Um deles acusa na cena a vítima de ter matado seus “irmãos”. Enquanto isso, a família a procurava depois de ela ter chamado um mototáxi e não ter dado mais notícias.

A procura findou com Maria achada morta na mata, perto de um igarapé. Havia corpo para velar, e a mãe, um caixão para chorar. A família dizia que ela se desligara de uma facção para cuidar do filho de quase dois anos e se reconciliara com Deus. Deus é clemente sim, mas os inimigos não esquecem o passado, e agem inexoravelmente. Ela teria participado de execuções, inclusive com filmagens semelhantes à que aconteceu com ela.

Quando tudo parecia crer que histórias de pessoas estraçalhadas com motosserra, por exemplo, já se esmaeciam com os jornais amarelados, eis que irrompe no Acre, fenômeno urbano cujo ingrediente capital é a violência extrema, o que faz lembrar a crueldade dos grupos de extermínio da década de 90. São momentos, atores e propósitos diferentes, certamente, mas ambos

REALIDADES 106

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE NÃO SE COMEMORA

têm em comum uma causa: a fraqueza ou omissão do poder estatal.

Quando o Estado falha, quando os jovens não têm esperança de futuro, quando as crianças deixam de ser prioridade das políticas públicas, quando as desigualdades sociais são estrondosas, o que se desvela é uma vista de guerra: rebeliões e fugas nos presídios, ônibus incendiados, atentados contra repartições públicas, ameaças a autoridades, assaltos violentos à luz do dia, desaparecimentos repentinos de pessoas e suas cabeças expostas nas ruas, territórios controlados por facções, “toques de recolher” ditados por traficantes.

Todo esse furacão faz parte da guerra sangrenta das facções que se espraiaram pelo Acre na intenção de obter hegemonia no tráfico de drogas e armas que as alimenta. O pequeno es-

tado da Amazônia Sul-Ocidental foi o destino de poderosas organizações criminosas, entranhadas em presídios, por ser pedaço estratégico na fronteira com os maiores países produtores de cocaína do mundo. Para peitá-las, foram-se levantando os grupos locais.

Agora vence quem atira e acerta mais, com armamento pesado, e não as antigas peixeiras das brigas de bar.

Os muros não portam só inscrições dos grafiteiros e propagandas de lojas, mas também marcas temíveis indicando que a área tem dono. Agora a palavra “irmandade” significa também parceria no crime. O troféu não é o do torneio das comunidades, mas segurar uma cabeça degolada nas mãos, impassivelmente, como a de Maria, depois de haver recibo um “salve” dos oponentes “decretando” sua morte.

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FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE NÃO SE COMEMORA

Todas elas

É

sempre assim, tudo acontece de véspera. Antes de existir qualquer coisa, existe o ontem e o antes de ontem (...) até tudo deixar de existir. Cada história é uma mulher e cada mulher com sua trajetória de vida que se confunde com a vida da outra. Conexões, fluxos, sincronicidades, histórias, alcance e profundidade.

As vítimas de feminicídio são frequentemente aquelas que sofrem violências dentro do lar, mas não só elas. É uma história dentro da história, como em sonhos, pois, na verdade, uma mulher representa todas elas nos seus desafios comuns: avós, mães, filhas e netas.

O sangue de uma está impregnado em todas elas quando se trata das barreiras raciais, étnicas, etária, econômicas, arranjos familiares, religião, entre outras.

As cenas dos ataques seguido de morte provavelmente ficarão nas lembranças dos filhos, indefesos pela pouca idade, sem forças para impedir. Quem cuidará dos filhos pequenos depois da família desmoronada? Na maioria das

vezes, as crianças são criadas pelas avós maternas, talvez em piores condições econômicas do que as das filhas. Seria salutar um estudo específico sobre essa questão da guarda dos filhos. O que ocorre com os filhos pequenos depois de assistir a morte da própria mãe? Seria possível criar um auxílio financeiro para os filhos pequenos das vítimas de feminicídios tentado e consumado, quando apresentarem situação de pobreza, independentemente de outro benefício social já concedido à família?

Digo essas coisas com delicado apelo, porque é muito espinhoso falar desse tipo de morte sem ter morrido, mas falo pensando no fenômeno para além dos fatos, pensando na causalidade das condições sociais que produzem, como efeito das desigualdades, vítimas de todos os tipos de violência. Penso também no futuro das crianças que igualmente foram vítimas da violência dentro de casa.

É fácil resumir a condição da mulher vítima de violência doméstica e familiar em algumas palavras, com suas

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FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE NÃO SE COMEMORA

raras exceções, obviamente: preta, jovem, mãe de menor, baixa escolaridade, pobre e do lar. Os homens em questão também apresentaram condições sociais desfavorecidos. No entanto, não se trata apenas da condição, mas de uma realidade sólida que precisa mudar, ou não?

Os motivos dos crimes também podem ser resumidos em poucas palavras: ciúmes, fútil e torpe. Alguém explica essas palavras?

Até recentemente a legítima defesa da honra do homem era argumento para justificar agressões e morte contra mulheres. A mulher assassinada seria desprovida de boa reputação ao ponto de justificar o seu próprio fim? Honra: ter ou não ter, eis a razão.

O Supremo Tribunal Federal, por votação unânime, reconheceu a inconstitucionalidade da tese da legítima defesa da honra. O ministro Dias Toffili deixou claro que a decisão buscou resgatar a dignidade da mulher à luz de uma releitura sobre a organização familiar e o direito legítimo da mulher de seguir a vida, sozinha ou em novo relacionamento.

Pode parecer simples a decisão do STF e até mesmo pouco pragmática, no entanto, livra do vocabulário técni-

co-jurídico as palavras que justificam em tese a morte de uma mulher. A palavra é a força viva da expressão humana. Sem a palavra não há um conceito, sem conceito não há representação real da palavra nas coisas que conhecemos. É com a palavra que as coisas começam a existir?

O que significa um sistema de símbolos, filosofias, ciências e leis em que a visão histórica das mulheres se difere da dos homens? Nossa estrutura de conceitos determina a estrutura de sociedade a que pertencemos e somos pertencidos.

Por trás do conceito de alguma coisa, existe a coisa em si que a palavra revela em imagens e movimentos na tecitura da história, bem antes da formação da propriedade privada e da sociedade de classe.

Sem a palavra, o conceito deixa de existir, deixa de existir a imagem, a metáfora, o símbolo e o movimento. Precisamos da palavra para existir. A realidade é a matriz de qualquer conceito.

Se o que está por traz dos ciúmes, das traições e dos impulsos de um homem violento sobre uma mulher insistirem em existir depois da extinção da palavra, independentemente de tese ou não, a violência ressurgirá em outra imagem e haverá outras formas, talvez mais eficaz-

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FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE NÃO SE COMEMORA

es, para combater esse tipo de crime do que as estratégias usadas até então.

Eliminar o conceito compensatório da tese foi como tirar a pedra que obstruía o rio. Nas palavras do ministro Toffili, a reprodução desse conceito se constitui em “argumentativo/retórico odioso, desumano e cruel utilizado pelas defesas de acusados de feminicídio ou agressões contra mulher para imputar às vítimas a causa de suas próprias mortes ou lesões, contribuindo imensamente para a naturalização e a perpetuação da cultura de violência contra as mulheres no Brasil”.

Toda história é feita de entrelinhas, mas é preciso se aproximar delas para vê-las a olho nu. Como você interpreta as histórias das Marias e dos Josés dentro da sua própria história?

Algum personagem poderia ser você, em outras circunstâncias? O que você poderia fazer agora para mudar essa realidade, nem que seja mudar um pensamento? O que se torna realidade, se não tudo aquilo que é possível? Mas, não pense em coisa mirabolante, vai parecer difícil demais. A mudança é para já.

O que faremos hoje é o único jeito de começar o amanhã. A mudança em si é incômoda, mas precisamos nos incomo-

dar. É preciso compromisso com a mudança, senão, por mais que façamos perguntas, nunca haverá resposta. A morte também é uma realidade.

Os índices aqui apresentados não se realizam sozinhos. Estudos são como bússolas, não desbravam mares sem o navio, o navio não se desloca sem comando e tripulação, a tripulação não sobrevive sem os meios. As ações concretas para impedir os feminicídios são urgentes, pois: •Quase 70% das mulheres morreram por motivos fúteis, torpes, ciúmes e sem motivos aparentes; •Quase 70% das mulheres foram assassinadas dentro de casa, seja a sua própria, do ex-companheiro ou de vizinho; •61% das mulheres vítimas de feminicídios eram mães; •Mais de 60% das mulheres feridas truculentamente com arma branca receberam várias perfurações na altura dos seios e pescoço e, os casos de arma de fogo, o alvo foi o rosto das vítimas; •05 homens cometeram suicídio e 02 foram mortos pela polícia.

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FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE NÃO SE COMEMORA

Através

do espelho

E

ra uma manhã de verão de segunda-feira, passava um pouco das oito horas na zona rural de um município do interior do estado quando Maria, 25 anos, do lar e mãe de uma menina, foi assassinada. Ele era agricultor e tinha 58 anos, suicidou-se depois que matou a mulher.

O casal passava pelo doloroso processo de separação. Ele tinha em casa uma pistola calibre 380, rifles e munições.

Naquela manhã, a Polícia Civil estava em diligência, averiguando um ramal, quando se antecipou à PM depois da chamada pelo 190. Às vezes acontece de sair para uma missão e encontrar no caminho situação muito pior àquela destinada à diligência, pois foi o que aconteceu naquele dia.

Os corpos foram encontrados no banheiro da residência das vítimas.

Os PMs, quando chegaram ao local do crime, ajudaram a recolher os corpos em sacos e embarcar no carro do IML.

Na noite anterior, o casal havia conversado sobre a separação e, de certo modo, na manhã seguinte tudo estaria resolvido. Em paz, no dia seguinte Maria estava se arrumando, provavelmente de frente para o espelho, quando a tragédia aconteceu. Talvez até tenha se dado conta do disparo através do reflexo em

sobreposição à sua imagem, como uma sombra ríspida e veloz.

Ver-se a si mesma é uma coisa extraordinária, nas palavras dos poetas.

Enfeitar-se no espelho é sempre um ritual grave de beleza para uma mulher. Mas, o que é ser uma mulher? Como saberia se o marido não a deixaria livre para viver em qualquer lugar depois do divórcio?

Maria morreu depois dos três disparos de arma de fogo ouvidos pelo sobrinho que estava no quarto ao lado.

A menina pequena do casal ainda tentou pegar a arma, na tentativa de unir-se aos pais. A polícia civil chegou a tempo de evitar a terceira tragédia no banheiro.

O primo escondeu a arma da garotinha que, em desespero, chamava pelos pais e pela própria morte.

José foi recolhido do chão onde caiu morto com o coldre pendurado no cinto da calça. Maria trajava calça jeans e uma camisa rubra que ficou ensopada com o sangue que escorria quente do seu rosto encostado ao vaso sanitário. O tiro atravessou a parte superior do pescoço, próximo ao crânio, da direita para a esquerda. O disparo da arma do marido foi tão súbito que a vítima não manifestou reação. Teria tido tempo de fechar os olhos antes do projétil saltar da funda escuridão do espelho e destruir o seu rosto?

REALIDADES 113

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE ENFRENTA

Nas mãos da justiça

O

sistema processual penal é um sistema de garantias individuais e, que por essa razão, prevê um caminho mais claro a ser percorrido durante a instrução criminal.

Quando da ocorrência de um crime, ou a polícia atua através de um flagrante em delito ou por meio de uma portaria - quando toma conhecimento do fato já após a situação de flagrância.

No presente estudo, observou-se que as investigações de 59% dos feminicídios registrados no Acre tiveram início a partir de portarias, enquanto 41% foram a partir de flagrantes em delito. Do ponto de vista temporal, o CPP determina que, caso o réu esteja preso, o inquérito policial deve ser finalizado num prazo de 10 (dez) dias, sendo que, caso em liberdade, o tempo passa a ser de 30 (trinta) dias.

No entanto, o Observatório de Análise Criminal e do CAV ao analisarem os casos de feminicídios ocorridos no período de 2018 a 2020, chegaram às seguintes conclusões: a) aconteceram 36

registros de feminicídios, com um total de 37 vítimas e 10 acusados; b) até 20 de agosto de 2021, 31 desses 36 inquéritos haviam sido concluídos; c) apenas 14 desses 30, foram concluídos no prazo legal máximo, qual seja, trinta dias; e d) dos 16 inquéritos que extrapolaram o prazo, 4 terminaram em até 60 dias, 4 em até 200 e 4 em mais de 200 dias.

Ultimadas as investigações e convencido da existência de materialidade e da autoria do crime, a Autoridade Policial, no geral, o Delegado de Polícia Civil, indicia o suposto responsável pelo crime.

O inquérito policial, resultado do trabalho da Polícia Civil aporta no Ministério Público, que pode, ou não, concordar com as conclusões da Polícia Judiciária, podendo requerer, inclusive, a realização de novas diligências. Em caso de concordância do Ministério Público, uma denúncia será oferecida.

Especificamente quanto aos feminicídios, 68% dos inquéritos implicaram no oferecimento de denúncias, 14% dos inquéritos policiais ainda estavam

REALIDADES 114

GRÁFICO 36

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE ENFRENTA

na fase de diligências e em 19% dos inquéritos, por conta da morte do autor, seja por suicídio, seja em confronto com as forças policiais, diante da óbvia impossib-

ilidade de responsabilização do suspeito, os inquéritos policiais foram arquivados, através de manifestação do Parquet e da concordância do Poder Judiciário.

Gráfico 36 -Tipo de iniciação do inquérito policial dos feminicídios ocorridos no Acre (2018-2020)

Flagrante; 15; 41%

Portaria; GRÁFICO 22; 59% 37 Fonte de dados: Observatório de Análise Criminal do NAT/MPAC Fonte do status dos casos: SAJ/TJAC Pesquisa do status dos casos: Centro de Atendimento a Vítima - CAV/MPAC.

Gráfico 37 - Situação dos inquéritos de feminicídios ocorridos no Acre entre 2018 e 2010 até 09 de março de 2021 Não concluídos; 6; 16%

GRÁFICO 38

Gráfico 38 - Situação da ação penal contra os acusados de feminicídios ocorridos no acre entre 2018 e 2020 até o dia Cometeu suicídio; 5; 14%

Concluídos; 31; 84%

Fonte de dados: Observatório de Análise Criminal do NAT/MPAC Fonte do status dos casos: SAJ/TJAC Pesquisa do status dos casos: Centro de Atendimento a Vítima - CAV/MPAC.

Morto pela PM; 2; 5%

Diligência; 5; 13%

Denunciado; 25; 68%

Fonte de dados: Observatório de Análise Criminal do NAT/MPAC Fonte do status dos casos: SAJ/TJAC Pesquisa do status dos casos: Centro de Atendimento a Vítima - CAV/MPAC.

REALIDADES 115

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE ENFRENTA GRÁFICO 39 Gráfico 39 - Dias decorridos entre a data do fato e o status atual do processo dos casos de feminicídios consumados ocorridos no estado do Acre de 2018 a 2020 - situação em 05/06/2021 Processo em andamento

1268

Processo em andamento

1256

Processo em andamento

1183 1095

Processo em andamento Processo em andamento

1066

Processo em andamento

1037

Processo em andamento

994

Processo em andamento

948

Processo em andamento

842

Processo em andamento

661

Processo em andamento

617

Processo em andamento

600

Processo em andamento

582

Autor morto por intervenção policial

557

Sentença definitiva

553 550

Não judicializado Processo em andamento

501

Processo em andamento

481

00Autor Suicidou-se

480

Sentença definitiva

474

Processo em andamento

447

Autor Suicidou-se

415

Processo em andamento

401

Processo em andamento

396

Sentença definitiva

394

Sentença definitiva

377

Sentença definitiva

314

Processo em andamento

303

Processo em andamento

291

Sentença definitiva

281

Sentença definitiva

268

Sentença definitiva

249 217

Sentença definitiva Autor Suicidou-se

0

Autor Suicidou-se

0

Fonte de dados: Observatório de Análise Criminal do NAT/MPAC Fonte do status dos casos: SAJ/TJAC | Pesquisa do status dos casos: Centro de Atendimento a Vítima - CAV/MPAC.

TABELA 9 - Situação genérica dos processos criminais de feminicídios ocorridos no Acre entre 2018 e 2020 (Status até o dia 20/08/21) Situação Genérica do Processo

Quant

%

Aguardando julgamento

2

5,4%

Arquivado com absolvição

1

2,7%

Arquivado com condenação

7

18,9%

Arquivado com medidas protetivas

1

2,7%

Arquivamento pela morte do autor

7

18,9%

Audiência de instrução designada

1

2,7%

Condenação/Em grau de recurso

7

18,9%

Denúncia oferecida

3

8,1%

Diligências

5

13,5%

Incidente de insanidade mental

1

2,7%

Sentença de pronúncia exaurida

1

2,7%

Sentença de pronúncia prolatada

1

2,7%

37

100%

Total

REALIDADES 116

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE ENFRENTA

O julgamento

U

ma vez aceita a denúncia pelo Poder Judiciário e citado o acusado, o processo penal em si tem seu início, passando-se à(s) audiência(s) de instrução.

Até este ponto, o julgamento dos crimes dolosos contra a vida em nada se difere dos demais, no entanto, por conta de expressa previsão constitucional, se o Juiz da instrução entender que se trata de um crime doloso contra vida, ou invés de condenar o réu, ele deverá remeter o processo para julgamento perante o Conselho de Jurados. Isso porque, a Constituição Federal reservou a sete indivíduos da comunidade a competência para julgar acusados pelo cometimento de crimes dolosos contra a vida, sendo que essa remessa do processo é realizada por meio de uma sentença de pronúncia.

Uma vez pronunciado, será realizado uma Sessão do Tribunal do Júri, na qual os jurados, escolhidos entre integrantes da comunidade, julgarão os indivíduos acusados de crimes dolosos contra a vida, podendo condená-lo ou absolvê-lo, com o que estará findo o processo em primeiro grau.

Inúmeros fatores influenciam na duração total do processo, sendo que, neste momento, sobretudo por conta da pandemia de Sars-Cov2, os prazos se alongaram. De qualquer forma, dos 36 inquéritos, 16 deles percorreram todas as fases processuais e foram julgados pelo Tribunal do Júri,

sendo que em 13, a condenação já foi definitiva, ou seja, não há recurso pendente de votação.

Ainda, apenas para esclarecer, no caso dos 36 feminicídios, o tempo médio foi de mais de 574 dias, sendo 217 dias o tempo mínimo e 1.268 dias o tempo máximo transcorrido.

Por fim, importante destacar que esse estudo será aprofundado em trabalhos posteriores, quando da instalação de uma ferramenta de gestão do tempo da Justiça para esses casos, denominado pela Procuradora Geral de Justiça do Ministério Público do Acre de feminicidrômetro.

Gráfico 39 - Tempo de condenação dos acusados de feminicídios ocorridos no Acre entre GRÁFICO 40 2018-2020.

0002585-23.2020.8.01.0001

8

42

12

11

25 0002533-27.2020.8.01.0001

23

7

11

0000142-57.2020.8.01.0015

7

4

0012702-10.2019.8.01.0001

15

21

0010609-50.2014.8.01.0001

3

5

11

0001870-73.2019.8.01.0014

7

26

6

89 0007657-25.2019.8.01.0001

2

16

11

14 0002838-45.2019.8.01.0001

6

27

0012310-07.2018.8.01.0001

6

89

0000547-85.2018.8.01.0008

14

10

7

0000595-41.2018.8.01.0009

20 0000401-26.2018.8.01.0014

15 0

5 20

40

60 Anos

Meses

80

Dias

Fonte de dados: Observatório de Análise Criminal do NAT/MPAC Fonte do status dos casos: SAJ/TJAC Pesquisa do status dos casos: Centro de Atendimento a Vítima - CAV/MPAC.

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FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE NÃO SE COMEMORA

A culpa é do verão

J

osé fora declarado inocente.

No júri, a defesa sustentou que ninguém pode ser condenado por desconfiança. Que, em caso de dúvida, o certo é absolver. Ao final, a tese acabou prevalecendo e os jurados decidiram pela absolvição do acusado. O Ministério Público do Acre não recorreu da decisão.

O acusado disse em juízo que a jovem cometeu suicídio.

Essa história é difícil de ser contada. Não houve punição, embora houvesse um cadáver de 14 anos se decompondo numa cova rasa no meio da mata. A história começa assim: “Aos cuidados, disse nada.” Haveria o que dizer quando não se tem testemunhas do ocorrido e o acusado muda o depoimento diante do Tribunal?

O que vou contar agora não se trata propriamente dos fatos, afinal a verdade dos fatos pode estar escondida na história contada por uma única pessoa ou demonstrado em laudo cadavérico que confirma a morte pela condição de corpo e causa? Lesão de corte contínuo penetrante na região cervical medulado medindo ± 20cm de diâmetro que provocou choque hipovolêmico, ou seja,

fora degolada, sangrou feito um porco até a última gota de sangue. A menina fizera em si um corte tão longo e profundo à sangue frio, a ponto de tirar a própria vida?

Quase não consta informações nos autos sobre a vítima de tão pouca idade, meu Deus. O fato é que ela existiu, sonhou, viveu e morreu, o crime lhe antecipou o inevitável, mas o que ficou dela no mundo, se era apenas uma menina?

A mulher é invisibilizada, faz parte do modus operandis do sistema. Com a ajuda da imaginação tentarei pisar nas terras delicadas do silêncio da adolescência, onde nenhuma palavra tocou. A história de verdade nunca acaba quando se morre, tampouco começa no dia em que se nasce. Ainda não sei como contar uma coisa tão assombrosa como essa, um mistério horripilante em que a tragédia maior talvez fosse anunciada por Poe através do grito oco de um corvo e, afinal, o corpo duro sendo decomposto por mil vermes, colado à cruz feita de caniço e cipó, preparada depois de amolar a faca, o corte raso na carne da fina árvore ainda sangrando dizia “ADIS”, que não simbolizava o martírio da morta, mas o motivo da grande desgraça.

REALIDADES 119

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE NÃO SE COMEMORA

Os fatos aqui ultrapassam a história da garota, porque [também] não é somente a trajetória dela, mas uma face do rosto de todas as mulheres, as vivas e as mortas. Em três anos, 37 mulheres morreram no Acre nessas condições, em média um assassinato por mês marcado no calendário. Existiria crime maior?

Meninas mortas com essa idade não chegam a se conhecer por inteira.

A cada dois minutos uma mulher é agredida fisicamente no Brasil e de quem é a culpa? Das roupas inadequadas ou do batom? Fora vítima ou autora de sua própria degola sem conhecer a precisão da fórmula de uma faca em punho? Nunca conhecereis a verdade incognoscível do caso, a menos que se possa reinventá-la intimamente.

No código, esse tipo de crime é especificado no artigo 121 do Código Penal. É um tipo de circunstância qualificadora de homicídio que a “Maria da Penha” atribuiu significado à morte de uma mulher pela razão do sexo feminino, dando-lhe o nome de feminicídio; no entanto, ser mulher não é inteiramente uma razão da natureza, há outros fatores sociais envolvidos. Afinal, qual animal pior do que o homem repugna a fêmea depois do coito e a mata por ser a outra parte da relação que lhe completa como criatura? A razão aqui se refere à violência, o menosprezo e discriminação à condição de ser mulher, simplesmente.

O que torna mais grave a pena de feminicídio é quando a vítima é assassinada gestante ou de resguardo até 3 meses, e se for menina até 14 anos, idosa depois dos sessenta ou deficiente.

Já aconteceu com uma cadeirante, eu li no jornal, e é muito triste não poder cor-

rer em disparada da ponta de uma faca, o que resta à mulher ferida senão correr para se salvar? A lei também prevê pena aumentada se o crime for praticado na frente de filhos ou pais.

Sabereis dizer a cor da lágrima na tez quente de uma mãe que assiste inerte o assassinato da filha amada ou o gosto frio do beijo da filha no rosto morto da mãe? O feminicídio deixa muitos órfãos na terra. Criança sem mãe não pode ser feliz, falta-lhe o calor do aconchego. Encontrar uma nova mãe é por vezes impossível. Quem se responsabiliza pelas crianças pequenas depois que a mãe morre?

José tomara a menina como namorada e ambos haviam vindo de Tarauacá. Se hospedaram num seringal, na casa de um morador. Em sua versão primeira, os dois haviam combinado pôr fim à vida por terem sido contaminados pelo HIV: ele a mataria primeiro e depois se suicidaria. A primeira ação se consumou, mas a segunda não teria dado certo. Levado à unidade de saúde, o resultado do teste rápido para o vírus atestou negativo.

A polícia observou que o golpe no pescoço do acusado era menor do que o da vítima. Conforme o relato do acusado, eles prepararam o local na mata e produziram duas cruzes, uma para cada um. Quando chegou sua vez, passou o gume da faca na garganta, caiu sobre a menina sem consciência e só acordou tempo depois. Mas, José mudou o depoimento e disse que foi a menina quem provocou o ferimento a si própria.

Daqui para frente, nenhuma palavra faz parte dos autos, é tudo imaginação.

REALIDADES 120

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE NÃO SE COMEMORA

Tudo ia bem naquela manhã de verão, tudo combinava com a venturosa diversão juvenil. Seria verdade? Era tão bom que parecia sonho? Ela tinha gravemente 14 anos e estava conhecendo mais intimamente seu novo namorado, mais velho do que os outros que tivera, mais bonito e mais apaixonado. Como alguém pode tentar contra a vida de outra pessoa antes mesmo de conhecê-la? Esse é o tipo de pergunta que não se quer francamente uma resposta. É que no gume da faca todos os machos são temidos. Ele era um condenado; não obstante, toda pena liberta o homem dos seus pecados mortais. É direito de todo ser humano, ser humano.

Era cinco de janeiro e a menina imaginara os reis no deserto com seus presentes mágicos. Maria se sentira tentada a perguntar ao namorado se aquilo tudo acontecera de verdade ou se era fábula, não falou nada pensando na sua pouca idade, ele não a ouviria, no entanto supôs que respondesse sem mentir: os números nunca acabam, sempre haverá um messias.

Mal nascera e já estava morta?

Qual seria o veredito para uma barbaridade como essa? Teria morrido por amor ou por ódio? O que se passa na cabeça de um homem numa hora dessas? Por Deus, nem em sonhos!

A garota mergulhara para sempre na escuridão, deixara mesmo de existir?

Tudo é uma probabilidade de existir, afinal, os números nunca se acabam, não é mesmo?

A menina morreu sem saber o

que é amor de verdade. O corpo instintivo da mulher sabe identificar o que outro corpo esconde atrás das máscaras, mas frequentemente cai na armadilha da sedução ao acreditar nas promessas mentirosas do ser amado. Quem no mundo diria que esse fogo fugidio fosse a vontade incontrolável de sangue nas mãos derramado do corpo de uma mulher?

Ele já tentara outras vezes matar da mesma forma, estava foragido da polícia.

A moça não carregava nenhuma sacola com roupas íntimas e batom?

Nada mais constava nos autos sobre ela que fora mesmo invisível até quando vivia de verdade.

Depois de 1 ano, 8 meses e 20 dias, saíra a sentença. Ninguém se lembrava de mais nada. A audiência foi simples como de praxe: acusação, defesa, autor, vítima, trono da sabedoria, juiz, promotor e os fatos derramados entre a balança e a espada da Justiça.

O réu se confessou, confessou que planejaram a morte juntos: primeiro ela e depois ele, como no mito de amor juvenil da mais admirada tragédia shakespeariana. O homem fora condenado à inocência, pleno de liberdade por falar a verdade, somente a verdade? Por que ela? Não tivera voz porque sua garganta fora cortada? Justiça ou castigo divino?

Ninguém falara por ela naquele dia da morte, nenhum coração triste diferente do da mãe. Ninguém levantara a voz em defesa do inviolável para conter a fúria do homem? Livre, não há mais nada o que se julgar. “Oh, meu Deus, me perdoe, mas a culpa é do verão”.

REALIDADES 121

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE NÃO SE COMEMORA

Uma verdade

N

ão era uma verdade que se buscava, era uma dúvida. Como diz o poeta, “E a verdade é de sempre”. A morte é a mentira até que ela se torne verdade e altere o curso da realidade visível.

Enquanto muitos duvidam da ciência e colocam em xeque as verdades do mundo, a ciência vai criando as verdades que revelam a obscura face humana. É que para a ciência não existem fatos, existem apenas teorias, hipóteses e comprovações.

Nesse caso, o líquido mágico reacendeu as iniciais C.V. na fralda branca que cobria o ventre da mulher morta, grávida do amante, foi uma das provas científicas do crime diante do silêncio do assassino. O aborto do homem matara duas criaturas inocentes.

José possuía uma arma, era policial militar da reserva, mas fez questão de não usar, afinal de contas, planejara tudo depois que ficou sabendo da gravidez de 04 meses de Maria.

Friamente retrucou à futura mamãe: “ganharei um filho e perderei uma família (...) tira essa criança do útero,

senão essa criança vai trazer problemas para ti”.

Para a Justiça ele disse outra coisa, que se o filho fosse seu assumiria sem nenhum problema. Jamais pediria para ela fazer aborto, pois tinha princípios cristãos e abominava o aborto. Haveria pecado maior?

O segredo da ignorância seria negá-la piamente diante dos fatos?

Maria foi enforcada pelo pai do filho que carregava no ventre. Se soubesse que morreria tragicamente e que seria jogada na mata e localizada por populares em plena manhã de domingo, fico pensando se ela teria ou não feito um aborto seguro. De repente tudo mudou. O corpo perfeito da mulher começou a se expandir com o filho crescendo dentro dela, mas de súbito entrava em estado de putrefação.

Maria já era mãe de um casal de filhos menores. A sensação de colocar um filho no mundo é diferente no corpo de cada mulher; todavia, se apresenta de maneira bastante singular na mente de um homem. Ela vai logo comprar um par de sapatinhos de lã, como se a vida começasse ternamente pelos pés, é que a ternura é uma espécie de com-

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paixão por seres indefesos, um convite ao amor, os bebezinhos causam ternura e os sapatinhos também.

Maria foi enforcada em algum lugar desconhecido da cidade e depois o corpo foi depositado num quintal, na beira de uma estrada vicinal, com indicação de que teria sido assassinada por facção criminosa. Todavia, pelo modus operandis do crime, a polícia descartou de cara tal relação.

Na encosta da estrada havia marcas de pneus no barro seco que foram descartadas pela perícia, mas de imediato descobriram que o crime havia sido praticado em local divergente em que o corpo fora encontrado.

Ainda era primavera. Maria trajava um vestido encarnado quando saíra de casa sábado à tarde para resolver uns assuntos do pré-natal, e depois iria se encontrar com o pai da criança. Por volta de 7h de domingo o corpo de Maria fora encontrado descartado por populares em terreno abandonado sem calçados, não pelo fato de estarem gastos que não se desse mais para usá-los, mas porque foram descartados no instante do alvoroço em que a corda branca de nylon fora presa ao seu pescoço, provavelmente.

A investigação, nesse caso, fora iniciada justamente pelo fio de nylon. O caso é tudo aquilo que rodeia o símbolo.

Com a ajuda dos depoimentos

de familiares e os primeiros resultados da investigação, o Delegado chegou ao principal suspeito – no caso, José.

A quebra de sigilo telefônico permitiu rastrear as localizações do assassino, havia um padrão de deslocamento e, no dia do fato, os pontos de circulação eram diferentes e em horários distintos da curva dos deslocamentos dos dias anteriores; no caso, a hora das 17h10min15s não fazia parte do cotidiano de José. Pelo viés forense esse ponto fora da curva por si só indicara uma possível premeditação do crime.

Ademais, a localização em que o corpo fora encontrado apareceu no arco geográfico dos percursos do amante de Maria no dia do crime.

As testemunhas refizeram os acontecimentos e alguém disse essa frase no relato dos fatos, “Já corri feito bicho grande”. O que essas palavras queriam dizer?

A filha pequena da vítima sabia de coisas confidenciadas pela mãe somente a ela e outras coisas sobre a gravidez, a menina ouvira o homem falando para a sua mãe ao telefone.

A gravidez iria sujar a imagem do homem casado e pai de dois filhos, cuja esposa estava com uma grave doença e naquele dia saíra do hospital depois de um longo período de internação para tratamento.

José disse que não sentiu nada

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FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE NÃO SE COMEMORA

com o desaparecimento da vizinha na noite de sábado para domingo, pois não tinha nenhum sentimento por ela, embora tenha mantido relacionamento amoroso “somente por necessidade”, disse à polícia. O pai da vítima, ao saber que o suspeito era seu vizinho, disse para o assassino: “Por que não atirou em mim, ao invés de matar a minha filha?” Que sofrimento poderia ser pior do que a morte de uma filha?

Depois dos rastreamentos do veículo do acusado por câmeras de segurança e analisadas as ligações telefônicas, foram colhidos vestígios e outras provas.

As ligações telefônicas permitiram analisar onde o acusado andou e com quem falou naquele período.

O acusado criou pistas falsas, ao conversar com a filha dizendo que estava em tais e tais lugares, conversas que foram posteriormente confrontadas com depoimentos de pessoas que tiveram contato com o autor do feminicídio naquela noite de sábado. A última ligação da vítima (16h50min39s) foi para o acusado, confirmando o contato entre os dois naquele dia. O fato é que a história narrada pelo assassino em depoimento era incompatível com as provas científicas da investigação.

No dia seguinte, mesmo sabendo do sumiço de Maria, José não lhe telefonou. Porém, em uma das conversas telefônica monitoradas, uma pes-

soa investigada diz: “ele não sabe que não existe crime perfeito?” Qual o sentido da morte para José, o pai da criança que crescia no ventre de Maria?

Solução ou salvação reversa?

A perícia se tornara vigilante e aprofundara as buscas de provas. O corpo da vítima fora exumado 15 dias depois do sepultamento. Na casa do acusado, os agentes primeiramente desconfiaram da corda de um varal, similar ao objeto constritor que provocou a asfixia e o estrangulamento da moça. A corda foi submetida a teste em laboratório.

A polícia realizou testes de DNA no material coletado no interior do veículo do acusado: na maçaneta interna da porta, em dois fios de cabelo, nas manchas de vestígios de sangue no banco traseiro, no cinto de segurança, no revestimento de tecido da porta traseira, no revestimento interno do plástico da coluna lateral do porta-malas, na forração felpuda que recobria a lateral do porta-malas e eis que os recursos da ciência fizeram aparecer as iniciais C.V. posicionadas centralmente no forro do bagageiro do carro. As letras possuíam leves inclinações ascendentes, aparentemente produzidas por tinta spray. A marcação não era perceptível na cor escura aparentemente limpa; no entanto, após a iluminação do revestimento com luzes

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FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE NÃO SE COMEMORA

forenses, a inscrição ficou visível, adquirindo contornos aparentes. Os peritos fizeram medição matemática das letras e compararam com as do pano usado pelo feminicida. Sobre o corpo da vítima, as inscrições das duas fontes se mostraram similares.

Além do modelo comparativo adotado pela ciência forense, foram realizados testes de DNA em outros vestígios colhidos ao longo da investigação. O material colhido foi cuidadosamente embalado em envelope de segurança, em modelo padrão da Polícia Federal, lacrado e identificado com números específicos e só depois é que foram analisados no setor de genética forense do Instituto de Análises Forenses (IAF) da Polícia Civil do Acre. Tudo isso foi feito para comprovar se os materiais biológicos encontrados no interior do veículo pertenciam à vítima, mediante o confronto com as amostras referenciais biológicas da própria vítima e, com isso, estabelecer possíveis relações de causalidade entre o crime e o veículo do suspeito.

O trabalho da perícia seguiu um padrão. Para se ter uma ideia, foi recolhido material biológico do policial que conduziu o veículo apreendido da casa do acusado até a delegacia e usado por exclusão nos testes.

Teria a moça ligação com facção criminosa? A investigação afirmou que fora feminicídio. Causa da morte? porque estava grávida.

O feminicida deve ter esquecido que o objeto puro da ciência é a propriedade invisível da matéria. Em tudo há sombras e rastros, feito pólvora. Ele poupou em seu plano mirabolante a arma de fogo que sustentava no coldre de policial militar, usou uma corda, todavia se esqueceu das manchas de sangue e dos fios de cabelo da vítima em seu veículo. Um pequeno vestígio do ácido desoxirribonucléico diz tudo sobre as características físicas e fisiológicas próprias de cada criatura.

Sem pairar qualquer dúvida sobre a autoria do crime, o júri declarou que o policial era o culpado. Foi condenado com pena definitiva de 27 anos, 06 meses e 02 dias de prisão, em regime fechado, além de 60 dias-multa, no valor de um trigésimo do salário-mínimo vigente na época dos fatos. Também lhe foi negado o direito de recorrer em liberdade.

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O amor Escuta

"Eu vi, na realidade, que, se tem amor, é o amor da vítima em relação ao acusado."

Carlos Pescador

A

Promotor de Justiça

tuante no júri, o promotor de Justiça Carlos Pescador representou o Ministério Público em quatro julgamentos ano passado por feminicídio, na capital.

O que mais lhe chamou atenção foi a ideia de que o réu matou a mulher por amor, por excesso de sentimento.

Mas, para ele, isso está longe de ser amor. “Eu vi, na realidade, que, se tem amor, é o amor da vítima em relação ao acusado. Esse amor, que nem sei se pode denominar amor, mas para mim é amor, que a incapacita de sair daquela situação, mesmo vendo tudo.”

O que mais o marcou foi o caso do assassinato da atendente de panificadora Guiomar Rodrigues, morta em 2018.

Como era seu primeiro julgamento popular com esse tipo de crime, o promotor diz que buscou preparar-se com esmero, sem contar o fato de que enfrentaria uma banca de advogados considerada dura.

De educação religiosa forte, Guiomar se casou nova e teve dois filhos com o marido. O casamento, porém, não deu certo, porque o homem a mal-

tratava e a traía. Com isso, divorciada, refugiou-se de novo na casa dos pais, que moravam ao lado do policial com quem ela iniciou relacionamento amoroso em segredo e que acabaria lhe tirando a vida.

Guiomar acreditava que o policial ia largar a mulher para assumir a relação com ela. Grávida, contou a ele, que garantiu que a ajudaria em tudo relacionado à gestação. A mulher do assassino sofria de esclerose lateral amiotrófica, conhecida por ELA, doença degenerativa do sistema nervoso. Estava há meses internada em um hospital particular.

A vítima já havia tido conflitos com a filha do assassino, que sabia da relação extraconjungal do pai. No mesmo dia em que Guiomar revelou a gravidez, acompanhada do filho de 12 anos, no supermercado, o policial ficou sabendo que a mulher havia recebido alta. Para o promotor, isso foi motivo de preocupação para o assassino.

A gravidez da amante causaria má impressão à família. “Ele deve ter ficado desesperado, a filha ia voltar a

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ficar direto em casa, e ia começar a ver a vizinha com a barriga grande, ela já sabia que eles tinham um caso. O que a família da mulher ia pensar dele?

Nesse dia, deve ter se desesperado e imaginou matá-la [Guiomar]. Como ele nega que a matou, ninguém nunca vai saber o que aconteceu. Enfim, ele a matou daquela forma muito triste.”

Vítimas indiretas. Carlos Pescador fala do impacto do feminicídio na vida das crianças. Os filhos foram os primeiros a perceber o desaparecimento de Guiomar, que foi encontrada em um matagal de um ramal. Eles já sabiam da relação da mãe com o assassino e acompanharam o estado de angústia dela poucos dias antes da morte, por conta da gravidez com homem casado.

“Antes de morrer, ela estava muito triste, não comia direito; eles falam, acompanharam a agonia da mãe. No dia da morte, eles ouviram o carro dele [o policial] chegar em casa, eles falam que esperaram a mãe chegar, como sempre acontecia depois dos encontros dos dois.

Eles passaram a noite toda em claro, e ela não chega”, relata o promotor.

Pouco tempo depois do assassinato de Guiomar, a mulher do policial também morre. Ele se casou com outra mulher enquanto estava preso. “No julgamento ele só falava dele, como a vida dele havia acabado, como ele fazia planos para o futuro, como ele queria viver com essa nova mulher, queria ter filho com essa mulher. E eu falei [indaguei] disso. E ele não chorou. Foi uma coisa bem difícil. É um caso muito duro”, lamenta.

O peso do feminicídio. Na visão de Carlos Pescador, o feminicídio tem encontrado repúdio na sociedade, o que tem refletido nas votações do júri.

“De forma geral, a sociedade já reconhece como algo muito ruim, disso não tenho dúvida. Não é difícil condenar. A defesa sempre busca fazer um júri masculino, e não é pelo fato de o júri ser masculino, que não há condenação.”

As consequências do feminicídio, de acordo com ele, são gravosas para todos. “É o tipo de coisa que é triste para todo o mundo, para quem morreu, para os familiares que ficam, para quem matou. É um crime de uma dor inimaginável, indescritível”, encerra.

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Azeitar a engrenagem Escuta da rede

O

Sistema de Segurança e de Justiça precisa funcionar para dar resposta célere aos casos de feminicídio. A luta pelo fim da violência contra a mulher envolve também as instituições dessa engrenagem, as quais devem atuar de forma eficaz para que esses crimes não caiam no esquecimento e, ainda, a sociedade se conscientize desse problema.

O Ministério Público procurou ouvir os atores que compõem a persecução penal no Acre, na qual a própria instituição também está envolta. No estudo elaborado pelo Observatório de Análise Criminal e CAV, foram detectados obstáculos que dificultam a investigação de feminicídio, o andamento do processo judicial e o julgamento do crime.

Além do excesso de prazo nos inquéritos, há nos autos a carência de informações que ajudariam a entender o feminicídio de forma mais apurada.

Na busca por evidências que apontam razões de gênero para uma morte, é importante esquadrinhar as circunstâncias do crime, as características do autor e da vítima e o histórico de violências, por exemplo.

Com relação aos processos, a

morosidade pode criar clima de impunidade e não contribui para reposicionar a imagem da mulher na sociedade, de ser suscetível à morte pela condição do gênero a sujeito de direitos. De 2018 a 2020, dos 35 processos de feminicídio, menos da metade foi julgada até o encerramento do presente estudo. O caso mais ilustrativo é o que se arrastou por 808 dias, ou seja, mais de dois anos.

O enfrentamento ao assassinato de mulheres deve ser assumido de forma prioritária pelos atores do Sistema de Segurança e de Justiça, pois é um crime que pode ser evitado, tendo em vista que é resultado de um ciclo de violência. Para isso, é preciso traçar ações de prevenção, proteção e responsabilização, dando atenção maior aos direitos das vítimas.

É louvável a criação da Lei do Feminicídio visando garantir maior grau de proteção às mulheres e inibir a conduta criminosa. Mas também são necessárias as mudanças culturais que possam pôr fim ao machismo estrutural prevalecente no meio social, o que requer do poder público, investimentos e energia em ações educativas que possibilitem o surgimento de novas relações de gênero.

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Além de promotores que atuam nesses casos perante o júri, foi ouvido um juiz que preside um desses colegiados populares, uma juíza que exerce atividades administrativas na Presidência do Tribunal de Justiça e que também é titular da Vara de Execuções e Medidas Alternativas da capital, o delegado-geral da Polícia Civil e a defensora pública-geral.

Esta publicação, guiada pela perspectiva de gênero, traz as partes que formam o sistema processual penal. Nela, diferentes vozes refletem acerca do seu agir institucional e dão explicações às dificuldades encontradas para elucidação e repressão do feminicídio.

Polícia civil

“Muitas das agressões sofridas pela vítima são registradas na delegacia” Josemar Moreira Portes

Delegado-geral da Polícia Civil do Estado do Acre

Quando o delegado instaura o inquérito, realiza as investigações, colhe provas, o foco é o acusado ou a vítima para recompor os fatos comprobatórios do feminicídio?

Por se tratar de procedimento inquisitório, o inquérito policial busca colacionar aos autos indícios suficientes de autoria e materialidade para compor a opinio delicti [posicionamento] do Ministério Público. Assim, são carreadas provas testemunhais, circunstanciais e periciais. Neste contexto, a vítima sempre recebe atenção especial, sobretudo quando se trata de integrante de grupo com vulnerabilidade.

O que justifica a morosidade nos inquéritos de feminicídio? A polícia judiciária tem cumprido seu papel?

Integrante do Poder Executivo, a polícia judiciária tem buscado cumprir seu papel constitucional. Durante as investigações, são usados todos os meios para individualizar a autoria e a materialidade dos delitos, apurados no mais curto prazo possível. A resolutividade dos crimes de homicídio, incluindo os feminicídios, pela Policial Civil do Acre é bastante alta quando comparada à maioria dos estados da Federação.

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Como são coletadas as informações relacionadas ao perfil das vítimas e autores? Há um cuidado com essa questão?

O perfil dos autores é buscado por intermédio de investigações circunstanciais e certificado no interrogatório e no preenchimento das peças que compõem o caderno inquisitorial (boletim individual e de vida pregressa).

Em caso de feminicídio, geralmente a ocorrência é noticiada via Ciosp [Centro Integrado de Operações da Segurança Pública] ou pela família.

Imediatamente, após o conhecimento do fato, são encaminhadas ao local do crime equipes de perícia e de pronto emprego para colher as informações no local e empreender diligências para a prisão do autor. Preso em flagrante, é lavrado o devido auto na Delegacia Como é feita a consulta de de Flagrantes (capital) ou na delegaantecedentes? cia distrital (interior). Não ocorrendo

A consulta dos antecedentes é a prisão em flagrante, é instaurado infeita nos sistemas disponíveis: reg- quérito policial para a individualização istro de ocorrência, identificação da autoria. Em situações de violência criminal (condenações) e processos doméstica, imediatamente após o constantes no Tribunal de Justiça. O registro, a vítima é ouvida e são solicfeminicídio é o ponto mais alto da vi- itadas medidas protetivas. Nos casos olência contra a mulher, e muitas das de ação civil incondicionada ou de agressões sofridas pela vítima são reg- ação condicionada quando há repreistradas na delegacia. sentação, são instaurados inquéritos policiais. Após sua conclusão, são enQual a postura da polícia quando é caminhados ao Poder Judiciário e ao procurada pela vítima e quais medi- Ministério Público para a proposição das são adotadas a partir de então? da competente ação penal.

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Ministério Público “Direito sem sanção é como um fogo que não queima”.

Júlio César de Medeiros promotor de Justiça

O que justifica a morosidade nos processos de feminicídio? O MP tem cumprido seu papel?

Em regra, os processos de feminicídio são concluídos em prazo razoável, seja pela gravidade e importância dos casos ou por serem relativamente um número diminuto, quando comparados ao universo dos processos de violência doméstica, o qual infelizmente é gigantesco e parece só aumentar a cada dia. A morosidade que se observa, nestes casos, é pontual. Ela pode ocorrer devido a incidentes, como a pretensa alegação de insanidade mental do réu, pela necessidade de se complementar eventual perícia, no caso de crime tentado, da necessidade de se aferir a causa mortis, no caso de haver a imputação de qualificadoras como asfixia ou tortura, por exemplo; ou mesmo, devido a recursos em sentido estrito, da decisão judicial de pronúncia, que submete o réu ao seu juiz natural, que é o Tribunal do Júri. A meu ver, o MP tem cumprido com excelência o seu papel, o que pode ser comprovado pelo número de denúncias oferecidas no prazo legal e pelo altíssimo índice de condenações, inclusive com recursos de apelação interpostos e providos pelo Tribunal de Justiça visando elevar ainda mais a pena aplicada. Além disso, o MP criou um grupo de trabalho específico visando ao combate às prescrições em casos de violência doméstica, destacan-

do de forma clara a necessidade de esforço interinstitucional, no caso, entre Ministério Público, Poder Judiciário e Polícia Civil.

Há lacuna de informações no processo sobre a vítima e o autor do crime? Isso tem alguma influência na decisão final? Como são coletadas as informações relacionadas aos perfis das vítimas e dos autores?

Sempre pode haver lacunas, mas cabe à Polícia Civil e, sobretudo, ao Ministério Público agir com proatividade, a fim de antecipar informações que sejam úteis ao processo, tais como: vida pregressa do autor, rompimento recente de relacionamento amoroso, histórico de ameaça, comportamento anterior e posterior ao crime, modo de execução do crime, enfim, tudo o que pode ser considerado como prova indiciária, interpretada de forma concatenada e harmônica. Essas informações influenciam sobremaneira a decisão final, na medida em que podem evidenciar ainda mais a intenção de matar, a premeditação do crime ou, inclusive, que na verdade inexistia o ciúme, mas sim um verdadeiro e desprezível sentimento de posse da mulher pelo homem, como o mito de que “se não for minha, não será de mais ninguém”. É importante trazer a família da vítima para o Plenário, pois é um júri em que se fala muito de “amor”

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para uma mãe, uma irmã ou um pai. Devem-se juntar fotos da vítima, linda, em família; adolescente, em comunhão, no baile de debutante, enfim, vídeo da vítima cantando em família. Em suma, o promotor de Justiça deve conhecer bem a vítima, a fim de mostrar o seu valor, e o que a sua perda significou aos seus familiares; e deve conhecer ainda mais o réu, bem como todos os seus predicativos pessoais, e apresentá-lo aos jurados, à luz do fato criminoso por ele praticado.

Há circunstâncias que agravam a pena.

Como é feita a consulta de antecedentes? O MP se atenta a essa questão?

A folha de antecedentes criminais sempre é juntada aos autos pelo próprio Poder Judiciário, vez que é um documento extremamente importante para ser analisado na dosimetria da pena, principalmente quando há reincidência do réu. O MP sempre se atenta a essa questão, haja vista que, quando há qualificadoras de motivo, meio e modo do crime, uma qualificadora serve para fixar o quantum [quantidade] da pena, e as demais podem ser utilizadas justamente como circunstâncias agravantes, na segunda fase da dosimetria, isso quando já não foram utilizadas para fixação da pena acima do mínimo legal. É importante ressalvar que, mesmo em não havendo reincidência, o histórico criminal do réu diz muito sobre a sua personalidade, principalmente quando há atos de agressividade e violência contra outras mulheres, o que apenas comprova que, na verdade, ele é um agressor contumaz que merece uma repressão criminal ainda mais severa. “Direito sem sanção é como um fogo que não queima”.

Quando o MP atua em um caso de feminicídio e forma a sua tese de acusação, quem está na centralidade, a vítima ou o acusado? Como isso se dá?

É claro que, juridicamente, o acusado é quem sempre está na centralidade da tese de acusação, e não a vítima. Isso porque se adota o “direito penal do fato” praticado pelo autor. Todavia, no júri de feminicídio, sabemos que muitas vezes há deturpação dos papéis em Plenário, e a vítima acaba sendo julgada, ainda que intuitivamente. Portanto, entendo que, nestes casos, a vítima tem e sempre deve ter protagonismo, devido a muitas vezes ela estar inserida num “ciclo de violência” e, muitas vezes, em casos tentados, sentir-se culpada pelos atos criminosos, ainda que inconscientemente. Por isso sempre é preciso deixar claro quem é a verdadeira “vítima” no processo, e rechaçar qualquer sentimento de posse e de “coisificação” da pessoa pelo réu, com viés machista ou patrimonialista, pois, como se sabe, o amor não está na posse, o amor está na apreciação. O amor, o amor mesmo, jamais desceu ao banco dos réus. Amor não figura nas cifras da mortalidade, e sim nas da natalidade.

“Está nos berços e não nos túmulos”, diria Roberto Lyra.

Em sua opinião, quais os avanços que a Lei do Feminicídio trouxe e qual o impacto disso para mudar o comportamento da sociedade?

Entendo que houve um avanço considerável com o advento da Lei nº 13.104/2015, uma vez que o feminicídio foi incluído no rol de crimes hediondos, com previsão expressa de uma qualifica-

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dora, e com aumento de pena até metade em situações específicas. De fato, há um impacto não apenas na dosimetria da pena, mas também na progressão de regime, em caso de condenação.

Todavia, não se muda o comportamento de uma sociedade apenas com a edição de leis, prova disso é a existência do crime de homicídio qualificado desde os primórdios da civilização, o que não teve o condão de impedir, por exemplo, de Rio Branco ser a 33ª cidade mais violenta do mundo, proporcionalmente.

Para a sociedade ser realmente impactada, deve haver muita proatividade e integração, com resultados específicos a curto, médio e longo prazo. Em suma, devemos alinhar a rede de proteção em cada município, para atender vítimas e agressores, com abordagens específicas; fazer o empoderamento das vítimas, combatendo a dependência econômica; ampliar os canais de comunicação,

visando maior efetividade às medidas protetivas de urgência e atendimento qualitativo das mulheres, desde o primeiro contato na delegacia de polícia.

Mas, principalmente, temos de impactar as futuras gerações, impactar os estudantes, os adolescentes, aqueles que — a seguir a fria e triste estatística — poderão ser algumas das vítimas e agressores do porvir. Enfim, temos de ir para as escolas, palestrar, sensibilizá-los. Mostrar a eles o que aconteceu com Ângela Diniz, com Daniela Perez, o que ocorreu com Eliza Samúdio, Mércia Nakashima, Cláudia Lessin Rodrigues e, mais recentemente, com Tatiane Spitzner e com a juíza Viviane Arronenzi, brutalmente assassinada na frente das três filhas, enfim plotar neles a noção de todas as espécies de violência contra a mulher e, principalmente, de como é importante romper o quanto antes o nefasto “ciclo da violência”.

“Se há espaço para um desabafo, digo que o feminicida, como regra, é um criminoso frio e covarde” Teotônio Rodrigues Soares Júnior promotor de Justiça

O que justifica a morosidade nos processos de feminicídio? O MP tem cumprido seu papel?

As investigações e as ações penais que veiculam crime de feminicídio, via de regra, possuem tramitação célere.

Esses crimes, quase sempre, são de autoria conhecida. A morosidade, quan-

do existe, justifica-se na infinidade de recursos previstos no CPP [Código de Processo Penal]. Ademais, nos crimes de feminicídio, a 5ª PJC [Promotoria de Justiça Criminal] realiza uma gestão rigorosa dos prazos durante a persecução penal, no que podemos afirmar que temos cumprido o nosso papel.

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Há lacuna de informações no processo sobre a vítima e o autor do crime?

Isso tem alguma influência na decisão final? Como são coletadas as informações relacionadas aos perfis das vítimas e dos autores?

As lacunas de informações sobre a vítima e o autor do crime são recorrentes; contudo, em todos os crimes de feminicídio, o MP entra em contato com a vítima e seus familiares, por telefone ou pessoalmente, de modo a coletar todas as informações necessárias ao caso.

Há circunstâncias que agravam a pena. Como é feita a consulta de antecedentes? O MP se atenta a essa questão?

Durante toda a persecução penal trabalhamos para coletar elementos de prova, visando à valoração negativa das circunstâncias judiciais. Essa coleta ocorre por meio de consultas processuais, pesquisas na internet e documentos enviados pelos familiares da vítima. Prova disso é que já conseguimos pena de 24 anos por crime de tentativa de feminicídio e reparação mínima de danos no valor de R$ 100 mil (autos.

0003571-74.2020.8.01.0001).

Quando o MP atua em um caso de feminicídio e forma a sua tese de acusação, quem está na centralidade, a vítima ou o acusado? Como isso se dá?

Não existe uma resposta fechada a essa pergunta. A tese de acusação, em crimes de feminicídio, centra-se, via de regra, nas circunstâncias, motivo e dinâmica do crime.

Em sua opinião, quais os avanços que a Lei do Feminicídio trouxe e qual o impacto disso para mudar o comportamento da sociedade?

A Lei do Feminicídio, no meu sentir, não trouxe avanços, tampouco irá mudar o comportamento da sociedade. Nesse rumo são os números. Se há espaço para um desabafo, digo que o feminicida, como regra, é um criminoso frio e covarde. Antes de matar, já humilhou e agrediu a vítima várias vezes, por meses ou anos. Esse perfil de gente só conhece a lei da força. Então, talvez, haverá avanços quando a pena e o regime de cumprimento observarem a real crueldade do feminicídio. Um feminicida, hoje, fica 12 ou 14 anos fechado, quando muito.

Isso é um escárnio. Depois disso, segue para o semiaberto e aberto, ou seja, vai para casa.

Pena é regime fechado, o resto ...

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Poder Judiciário “O júri é soberano” Andrea Brito juíza-auxiliar da Presidência do Tribunal de Justiça do Estado do Acre O que justifica a morosidade nos processos de feminicídio? A Justiça tem cumprido seu papel?

O Brasil convive com elevadas estatísticas de violências cotidianas praticadas contra mulheres e ocupa, no cenário mundial, o 5º lugar com maior taxa de homicídios de mulheres. Para o “Justiça em Números” de 2020, o tempo médio de tramitação dos processos criminais baixados na fase de conhecimento, por tribunal, é de 4 anos e 1 mês. Já no estado do Acre é de 2 anos. O monitoramento da política judiciária nacional de enfrentamento à violência doméstica marca 14 casos novos de feminicídio e 20 sentenças para o ano de 2019, e 15 casos novos de feminicídio e 35 sentenças para o ano de 2020 no Acre.

Há lacuna de informações no processo sobre a vítima e o autor do crime?

Isso tem alguma influência na decisão final? Como são coletadas as informações relacionadas aos perfis das vítimas e dos autores?

De regra, as informações são coletadas do boletim de ocorrência, do Formulário Nacional de Avaliação de Risco (Resolução Conjunta nº 05/2020 do CNJ/CNMP) e das demais peças do inquérito policial.

Há circunstâncias que agravam a pena.

O Judiciário está atento a isso e como é feita a consulta de antecedentes?

As circunstâncias que agravam a pena estão previstas nos artigos 61 e 62 do Código Penal. A consulta de antecedentes é realizada pela expedição no processo da Certidão de Antecedentes do sistema SAJ [Sistema de Automação da Justiça] e SEEU [Sistema Eletrônico de Execução Unificado], que é alimentada pelos dados inseridos no histórico de partes.

Dentre os casos de feminicídio com sentença proferida, no período de 2018 a 2020, houve no município de Jordão uma absolvição do réu, o qual, inclusive, já havia respondido por homicídio tentado. No caso em tela, a vítima tinha 14 anos, e, pela lei, a pena deveria ser agravada. Diante disso, quais são os pilares morais que sustentam a decisão jurídica da Justiça em uma sentença como essa? Quem está no foco da decisão, a vítima ou o acusado?

Sabe-se que o júri é soberano.

Entretanto, sentença do júri que fira os direitos humanos ou manifestamente contrária às provas dos autos não deve prosperar. Nosso Código de Processo Penal e nossa Constituição Federal reconhecem a soberania dos vereditos

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dos jurados, mas admitem recurso de apelação quando a decisão proferida por eles é “manifestamente contrária à prova dos autos” (artigo 593, III, "d", do CPP). Recentemente, por unanimidade, o Supremo Tribunal Federal (STF) firmou entendimento de que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, por violar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero. A decisão, tomada na sessão virtual encerrada em 12 de março, referendou liminar concedida pelo ministro Dias Toffoli em fevereiro, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 779. Sabe-se que o foco da decisão de absolvição é o acusado.

Em sua opinião, por que, mesmo com a vigência da Lei do Feminicídio, o número de assassinatos de mulheres só tem aumentado? O que falta para que a lei tenha eficácia na sociedade?

O feminicídio é o fruto decorrente de uma herança histórica fundada e estruturada na subjugação feminina. Necessário compreender, desde os primórdios, a respeito da inferiorização da mulher, a desvalorização social e moral, e, ainda, sobre os graus da violência de gênero, que resultam, por fim, na morte da mulher, e como interromper o ciclo [de violência]. Ainda há difi-

culdades enfrentadas diariamente por mulheres que sofreram algum tipo de violência ou ameaça, sendo certa a necessidade contínua de aprimoramento dos serviços [públicos]. O Estado, para além de se valer do sistema prisional e das medidas protetivas, precisa investir numa mudança cultural, realizando um trabalho de conscientização sobre a igualdade de gênero, com uma linguagem acessível e que alcance a todas as faixas etárias, se valendo principalmente dos meios de comunicação e dos espaços educacionais.

O investimento na divulgação sobre a igualdade de gênero é vital; a correção não é suficiente se não houver a mudança de pensamento, ainda mais em um país com homens e mulheres que cresceram num sistema fundado na supremacia masculina, e seguem repassando esse pensamento. O sistema jurídico brasileiro vem avançando positivamente, exercendo o seu papel de tutelar os direitos das minorias, fornecendo métodos para que as mulheres se sintam amparadas pela Justiça. Entretanto, estes métodos devem vir de forma conjunta com mecanismos efetivos de proteção e, ainda, com a aplicação efetiva das sanções dispostas no Código de Processo Penal aos agentes praticantes deste crime [feminicídio].

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“O que falta é o avanço na conscientização da população sobre os direitos da mulher” Alesson Braz juiz de direito da 2ª Vara do Tribunal do Júri de Rio Branco O que justifica a morosidade nos processos de feminicídio? A Justiça tem cumprido seu papel?

A morosidade decorre do grande número de processos de crime contra a vida aguardando julgamento nas unidades jurisdicionais. A Justiça tem cumprido o seu papel, que é o de julgar os fatos.

Dentre os casos de feminicídio com sentença proferida, no período de 2018 a 2020, houve no município de Jordão uma absolvição do réu, o qual, inclusive, já havia respondido por homicídio tentado. No caso em tela, a vítima tinha 14 anos, e, pela lei, a pena deveria ser agravada. Diante disso, quais são os pilares morais que sustentam a decisão jurídica da Justiça em uma sentença como essa?

Quem está no foco da decisão, a vítima ou o acusado?

O foco da decisão é o acusado, uma vez que foi absolvido. Os jurados decidiram pela absolvição, não cabendo ao magistrado decidir de forma diversa.

Há lacuna de informações no processo sobre a vítima e o autor do crime?

Isso tem alguma influência na decisão final? Como são coletadas as informações relacionadas aos perfis das vítimas e dos autores?

As informações são coletadas do boletim de ocorrência, do Formulário Nacional de Avaliação de Risco (Resolução Conjunta nº 05/2020 do CNJ/CNMP) e Em sua opinião, por que, mesmo com das demais peças do inquérito policial. a vigência da Lei do Feminicídio, o número de assassinatos de mulheres Há circunstâncias que agravam a pena. só tem aumentado? O que falta para O Judiciário está atento a isso e como é que a lei tenha eficácia na sociedade? feita a consulta de antecedentes?

O aumento decorre do maior

As circunstâncias que agravam a número de registro de boletim de ocorpena estão previstas nos artigos 61 e 62 rência, inflamado neste último ano do Código Penal. A consulta de anteced- pelo isolamento social em virtude da entes é realizada pela expedição no pro- pandemia da Covid- 19. O que falta é o cesso da Certidão de Antecedentes do avanço na conscientização da população sistema SAJ [Sistema de Automação da sobre os direitos da mulher.

Justiça], que é alimentada pelos dados inseridos no histórico de partes.

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Defensoria Pública do Acre “Sabemos que o combate ao feminicídio vai além da legislação” Simone Jaques de Azambuja Santiago Defensora pública-geral Qual o trabalho da Defensoria Pública no enfrentamento à violência contra a mulher?

A Defensoria Pública desempenha um grande papel, e atua como mecanismo de promoção de direitos e acesso à justiça a todas as mulheres em situação de violência. Por ser uma instituição essencial à função jurisdicional do Estado, a Defensoria Pública não só fornece assistência judiciária, mas uma assistência jurídica integral, garantindo os direitos constitucionais e proporcionando à mulher vítima de violência doméstica toda a orientação e amparo necessários ao exercício de seus direitos. A Defensoria Pública também possui projetos a serem executados brevemente.

soria Pública também dispõe de uma equipe multidisciplinar, composta por assistente social e psicóloga, que também oferece todo o suporte necessário à mulher vítima de violência doméstica.

A Defensoria preza pelo trabalho em rede e como isso tem se concretizado?

Com certeza. O trabalho em rede é de suma importância para a Defensoria Pública e demais instituições e órgãos que trabalham para a efetivação de políticas públicas, pela promoção dos direitos humanos. A Defensoria Pública atua efetivamente nos trabalhos da Rede de Proteção à Mulher.

Na sua opinião, qual o papel das inComo as vítimas de violência stituições para evitar o feminicídio? doméstica são recebidas pela in- Sabemos que o combate ao femistituição? nicídio vai além da legislação. A desigual Todas as vítimas de violência dade e cultura machista da sociedade doméstica são atendidas pela Coorde- são fatores que contribuem para o aunação Criminal da Defensoria Públi- mento do feminicídio. É necessário que ca. Na ocasião do atendimento, nossa haja investimento em políticas públicas equipe realiza uma triagem, verifica a de apoio às mulheres e seus filhos, o que existência de medida protetiva, orien- já vem ocorrendo em nosso estado, bem ta juridicamente, bem como faz os en- como de conscientização à sociedade, caminhamentos necessários. A Defen- que sofre com o machismo enraizado.

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Serviços especializados

Coordenadoria estadual das mulheres em situação de violência doméstica e familiar do tribunal de justiça “Indispensável que à mulher vítima e a sua família seja conferido tratamento humanizado” Desembargadora Eva Evangelista

À

frente da Coordenadoria Estadual das Mulheres em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Tribunal de Justiça, a desembargadora Eva Evangelista defende atenção humanizada por parte das instituições à mulher vítima da violência doméstica e familiar.

A magistrada ressalta a importância da Lei Maria da Penha na proteção e assistência da mulher e diz que os atores do Sistema de Justiça precisam dar resposta efetiva, para atenuar o sofrimento da vítima e evitar crise de credibilidade das leis e do poder estatal.

Parte da política do Judiciário para o enfrentamento à violência de gênero, a coordenadoria cumpre papel fundamental na consolidação da rede de proteção à mulher no estado, indo para além do papel do Judiciário de receber e julgar casos de violência.

O que fomenta a violência contra a mulher, em especial o feminicídio?

A violência doméstica contra a mulher decorre da cultura patriarcal reproduzida no Brasil com a colonização, do domínio e subjugação do homem sobre a mulher. Existem fatores que contribuem para a prática dessa modalidade de violência, a exemplo do desemprego, do alcoolismo e das drogas. O feminicídio decorre das relações de gênero e culmina na morte da mulher. É o crime de ódio do homem contra a mulher. O Brasil é o 4º país do mundo em violência doméstica e familiar, e o Acre ostenta o quinto lugar na modalidade desse crime.

O Judiciário tem feito a sua parte?

A Lei Maria da Penha, de 6 de agosto de 2006, considerada a terceira melhor lei do mundo, superada apenas pela Espanha e Chile, representa o marco legislativo da prevenção, enfrentamento

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e combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. De natureza híbrida, civil (medidas protetivas) e criminal, a Lei Maria da Penha traçou as diretrizes das políticas públicas de prevenção, enfrentamento e combate, detalhando os procedimentos do inquérito ao processo judicial, com a intervenção necessária do Ministério Público. A atuação do Judiciário não deve ser dissociada dos demais atores do Sistema de Justiça, a partir das delegacias especializadas ou genéricas, que primeiro recebem as vítimas das práticas da conduta, a primeira informação da violência contra a mulher. Portanto, indispensável que, à mulher vítima e a sua família, seja conferido tratamento humanizado da autoridade policial, do Ministério Público e do Poder Judiciário. A mulher vítima necessita de resposta efetiva para atenuar seu desalento e o descrédito no Sistema de Justiça com inquéritos e processos judiciais alongados, ocasionando a prescrição, em inconteste negação de Justiça.

ta de cumprimento à Resolução n.º 128, do Conselho Nacional de Justiça, que dispôs sobre a criação das Coordenadorias Estaduais das Mulheres em Situação de Violência Doméstica e Familiar nos Tribunais de Justiça dos estados e no Distrito Federal. A Lei Maria da Penha introduziu não somente meios coercitivos de proteção à mulher em situação de violência doméstica e familiar, mas incorporou questões de natureza reflexiva, para excluir condutas que permeiam a história dessa prática no Brasil. Para tanto, o Tribunal de Justiça do Estado do Acre, por sua Coordenadoria Estadual das Mulheres em Situação de Violência Doméstica e Familiar, pretende estimular e contribuir para as políticas públicas institucionais, mediante parcerias com o Sistema de Justiça e órgãos públicos e privados, destinadas à prevenção, enfrentamento e combate à violência contra a mulher, visando conferir maior efetividade à Lei Maria da Penha e demais normativos que tratam da matéria. Neste desiderato, a Coordenadoria da Mulher, órgão Qual o trabalho da Coordenadoria de assessoria da Presidência do TribuEstadual das Mulheres em Situ- nal de Justiça, desenvolve ações com a ação de Violência Doméstica e Fa- indispensável cooperação da Presidênmiliar dentro do TJ? cia, da Corregedoria-Geral da Justiça e

A Coordenadoria Estadual das da Escola do Poder Judiciário, do SisteMulheres em Situação de Violência ma de Justiça e da Rede de Proteção à Doméstica e Familiar (Comsiv) resul- Mulher. No que tange à prestação ju-

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risdicional, sobressai o cumprimento da Meta 8, do Conselho Nacional de Justiça (artigo 6°, VI, da Resolução nº.

254/ 2018), que determina aos tribunais instituir a Política Judiciária Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres. Entre outras atividades, compreendendo a necessidade da Rede de Proteção à Mulher, como espaço de fala das instituições públicas e privadas e da sociedade, a Coordenadoria das Mulheres estimulou e organizou a Rede de Proteção, instrumento indispensável aos objetivos destinados à redução do elevado índice de violência doméstica no Acre. Também sobreleva a parceria fundamental com o governo do estado, o Ministério Público Estadual, a Defensoria Pública, OAB-Seccional Acre e prefeituras dos municípios, visando concentrar esforços, aperfeiçoar as ações e maximizar os resultados. Mais do que atingir a finalidade de aplicação da Lei Maria da Penha e demais normativos, é imperativo estabelecer políticas públicas consistentes destinadas à prevenção e enfrentamento à prática odiosa, utilizando eixos estruturantes, a exemplo da educação continuada, mediante conscientização coletiva e articulação com redes de serviço e amparo às vítimas.

Portanto, fundamental a gestão colabo-

rativa visando promover a proteção das famílias e a garantia dos direitos dos cidadãos. Merece registro a digitalização de mais de cinco mil inquéritos policiais da Delegacia da Mulher de Rio Branco (com início em 2019), medida objeto de plano de ação abrangendo os órgãos integrantes do Sistema de Justiça, para afastar a prescrição e garantir resposta à sociedade, afastando a sensação de impunidade. Ademais, em 3 de março de 2020, em cumprimento à Resolução Conjunta n.º 05, do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, [foi] introduzido o Formulário Nacional de Avaliação de Risco como novo instrumento da Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, possibilitando identificar o risco da mulher submetida a qualquer forma de violência nas relações domésticas e familiares. Por derradeiro, muito ainda a fazer pela prevenção, enfrentamento e combate à violência doméstica contra a mulher, luta contínua dos órgãos de políticas públicas, do Sistema de Justiça, da sociedade e todos que assumiram compromisso com a causa para estabelecer a cultura de paz nos lares acreanos.

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Serviços especializados

Centro de Atendimento à Vítima (CAV) do Ministério Público do Estado do Acre A nossa casa. As pessoas ainda perguntam: o que é o CAV? O CAV é um órgão auxiliar aos membros do Ministério Público do Acre no atendimento de meninas, mulheres e pessoas LGBTs vítimas de violência de gênero.

O dia a dia na pele da vítima. O acompanhamento atento da movimentação processual é uma das rotinas mais dinâmicas do CAV e, junto a isso, uma equipe multidisciplinar presta esclarecimentos jurídicos sobre decisões e prazo, além de fornecer orientação psicológiO que motivou a sua criação? A ca e apoio na inserção das vítimas em criação do CAV foi motivada por uma políticas de inclusão social, sobretudo lacuna na rede de proteção da mulher quando há filhos menores, pessoa com vítima de violência quanto à insuficiên- deficiência envolvida e/ou situação de cia de informação e apoio nas etapas do extrema pobreza. processo penal, inclusive sobre a transparência dos prazos processuais, restitu- Políticas afirmativas. Germano Maição, reparação e compensação de danos rino, presidente do Conselho Estaduaos direitos violados, o direito de as víti- al de Combate à Discriminação LGBT mas serem ouvidas com credibilidade no do Acre, diz que o CAV é um setor que transcorrer das investigações. presta serviços essenciais à vítima de homofobia e transfobia e que outros A violência começa antes. Valéria órgãos não realizam isso: “Se não tivesse Scarance, promotora de Justiça do o CAV, estaríamos numa situação preMinistério Público de São Paulo, falou cária. Além do atendimento acolhedor, sobre a cultura da culpa e da revitimi- procura impulsionar outros órgãos de zação que modela a ecologia da violên- políticas públicas, realiza campanhas cia, em palestra no MPAC em abril de de sensibilização da população sobre 2018: “A violência começa antes do olho o respeito e enfrentamento às atitudes roxo e da marca. O agressor controla e ações LGBTfóbicas. É um grande a vítima com o olhar. Clima de horror auxiliador nos propósitos das políticas com ofensas e gritos, agressão física, o afirmativas dos direitos humanos despedido de perdão, as juras de amor e a sa população. As articulações e propreconciliação (...) assassinato, quando osições feitas pelo Ministério Público, ela decide dar um basta sem a proteção para que tenhamos leis específicas que do Estado. A separação acaba poten- venham a coibir as violações de dignicializando a violência”. É assim. dade da pessoa LGBT, nascem dos diREALIDADES 143

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agnósticos de violação de direitos humanos que são recebidos no CAV. Não tem como pensar em não contar mais com esse serviço. É para ele que pedimos socorro quando ninguém mais nos enxerga”.

da mesma forma há uma reação da sociedade em nome da liberdade”.

A verdade é o elo. A matéria-prima do CAV é a informação. Não obstante, o CAV ainda não conta com uma estrutura de produção de conhecimentos que posCada caso é uma causa. As histórias sa dispor aos membros como forma de das violências contadas no CAV foram se contribuição transversal ao aperfeiçoaacumulando ao longo do tempo e dando mento funcional. O Conselho Nacional relevo às feições patriarcais da sociedade do Ministério Público alerta sobre a necontemporânea. O patriarcado se man- cessidade de incorporar uma concepção ifesta como matéria viva das relações de gênero nos casos de homicídios de desiguais de poder entre os sexos. A mul- mulheres, por exemplo. Esse hiato será her representa a parte inferior, invisível, corrigido parcialmente através da imsubordinada e frágil. Nessas condições, plantação do Feminicidômetro (a ferrao outro lado — antes de ser a imagem menta de acompanhamento do processo objetiva do mais forte, mais livre, mais penal está em fase de desenvolvimenalto — se apresenta para a mulher como to), para os casos de feminicídios. No o espectro do medo, dor, sofrimento e CAV, cada caso é uma causa. De posse morte. Construir um protagonismo fem- de informações, a equipe multidisciinino numa sociedade machista é um plinar presta os serviços de orientação grande desafio para as mulheres. e apoio psicossocial aos casos de violência doméstica e familiar, homofobia e O fundamentalismo. A deputada fed- transfobia, em auxílio às Promotorias de eral Erika Kokai, em palestra à nascen- Justiça do Ministério Público do Acre. te equipe multidisciplinar do CAV, em 2016, falou sobre o impacto do consumo Orientação sexual e identidade e dos ideários capitalistas na formação de gênero. Uma das violências mais lógica da sociedade: “Eu penso que esse comuns contra a mulher é aquela que fundamentalismo se organiza em reação fere a orientação sexual e a identidade aos avanços de determinados direitos, e de gênero de mulheres e homens trans-

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gêneros. O CAV vem se especializando no atendimento de vítimas de homofobia, lesbofobia e transfobia. A primeira mulher transsexual atendida no CAV, Rubby da Silva Rodrigues, atualmente é responsável pela atenção às pessoas transgêneras no registro legal de suas identidades civis.

Ao longo do caminho, a equipe foi se dando conta da magnitude e complexidade que é intervir diretamente em contextos de violências contra a mulher.

Por que a violência contra a mulher é tão naturalizada pela sociedade? O que motiva as manifestações de ódio e repulsa contra uma mulher? Em que circunstâncias reais as atitudes machistas, homofóbicas e transfóbicas operam? O que precisa mudar para se criar uma outra realidade? À luz dessa compreensão, o Ministério Público do Acre expediu a Recomendação Conjunta nº 00/2017 à Polícia Civil para que a Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam) acolhesse mulheres transexuais e travestis em situação de violência doméstica, beneficiando-as com as medidas protetivas previstas na Lei 11.340/06. A recomendação foi acatada de pronto e instituída a Portaria nº 272/2017, determinando o referido acolhimento e procedimentos na forma da lei.

Todas as mulheres. Nenhuma a menos. Léo Mendes, ativista e representante do Conselho Nacional Contra Discriminação LGBT, em palestra em março de 2017, alertou que é necessário inserir no texto da Lei Maria da Penha a palavra “gênero”: “Isso para que as travestis e transexuais possam ser atendidas nas delegacias de atendimento às mulheres e possam ser abarcadas pela Lei Maria da Penha, como é feito aqui no Acre, por conta de uma decisão judicial, que esperamos que o STF reconheça, transformando isso em uma decisão nacional”.

Depois disso, em diálogo com os movimentos sociais, o MPAC solicitou ao então senador Jorge Viana uma intervenção no sentido de alterar o artigo 2º da Lei Maria da Penha, inserindo a palavra “gênero”, para reconhecer a mulher na sua diversidade, bem como alteração no Estatuto da Criança (Lei nº 8.069/1990) e na Lei nº 10.778/2003, que estabelece a notificação compulsória e comunicação à autoridade policial de casos atendidos, de violência contra a mulher e contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes, em estabelecimentos de saúde. A PL nº202/2017, proposta pelo senador, passou pela apreciação da Comissão de Direitos Humanos do Senado.

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O exemplo vem de dentro. O MPAC emitiu a Resolução nº 08/2017 instituindo o reconhecimento e respeito ao nome social. Todos os formulários, protocolos e rotinas de atendimento foram remodelados. Foram feitas articulações com o governo do Estado e a Prefeitura de Rio Branco, as quais resultaram na criação da Lei Estadual n. 3.355/2017 e do Decreto Municipal n. 1594/2017, disciplinando o uso do nome social no estado e na capital.

Família contemporânea.

O Ministério Público do Acre se manifestou apontando a inconstitucionalidade do Estatuto da Família, aprovado pela Câmara de Vereadores de Rio Branco. Por unanimidade, o Pleno do Tribunal de Justiça do Estado do Acre concedeu medida cautelar suspendendo a lei.

Homoafetividade. O CAV é um espaço aberto, como frisou a jurista Maria Berenice Dias, em encontro com a equipe multidisciplinar do MPAC, em agosto de 2017. Maria Berenice cunhou a palavra “homoafetividade” para retirar o estigma sexual que envolvia as relações de pessoas do mesmo sexo, fazendo-se reconhecer um novo modelo de família.

Mulheres trans com deficiência.

Leandrinha Du Art, mulher transexual, ativista LGBT, escritora e militante cadeirante completa: “Muito nos foi negado, enquanto corpos com deficiência, o direito à própria sexualidade. No meio trans, se fala sobre o quanto uma travesti parece, entre aspas, ser travesti ou não, enquanto, para uma mulher com deficiência, não se imagina que possa ter

autonomia para escolher sua identidade de gênero. É um tema que ainda precisa ser esmiuçado, e inseridas mais pessoas no debate; dialogar com elas”.

Interseccionalidade (gênero, raça e classe) pela filósofa e professora Djamila Ribeiro, em palestra promovida pelo Ministério Público do Acre, em outubro de 2018: “[...] o direito à voz em uma sociedade que silencia as desigualdades...

O feminismo é necessário também por isso, não apenas para que as mulheres tenham direitos iguais aos dos homens, mas também para que possam ser respeitadas em sua humanidade... A solidariedade entre os povos se reforça à medida que se partilham combates contra a discriminação objetiva de grupos sociais claramente identificáveis... Ligar a televisão, e não enxergar pessoas negras. Por que, na USP, por exemplo, a maioria dos professores são brancos e as mulheres que limpam os banheiros são negras? Por que não tem pessoas negras, enfim, nos espaços de poder? É necessário entender que as mulheres negras precisam ser fortes, porque o Estado é omisso. Essa denominação de colocar a mulher negra como inerentemente forte, além de encobrir a omissão e a ilegalidade do Estado, também é desumana, no sentido de não reconhecer as fragilidades próprias da condição humana. Não dá para ser feminista e gerar opressão contra a empregada negra, por exemplo. Precisamos de bases para um novo marco civilizatório, e não reproduzir essas opressões quando a gente atinge os direitos que a gente acha que tem”.

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Entrevista

Orgulho de Ser

“É preciso lutar para ser feliz”

Antonella Machado de Albuquerque, 42 anos, é uma mulher transgênera e foi escolhida presidente da Associação das Travestis e Transexuais do Estado do Acre (Attrac). Ela se define como “resistência” no país que mais mata travestis e transexuais. A expectativa de vida de uma pessoa como ela é de até 35 anos.

Na associação, ela e outras pessoas transgêneras lutam por políticas públicas para a população LGBTQI+, em especial para mulheres transexuais, travestis e homens transexuais, além de fazerem acompanhamento de ocorrências de violência contra essa população e darem amparo em casos de extrema vulnerabilidade social.

Em entrevista, Antonella diz que ser mulher transexual no Acre é um desafio, pois todas as portas se fecham. Ela fala dos percalços diários para sobreviver, desde os olhares preconceituosos na rua a atos de violência extrema, como o que aconteceu com a amiga Fernanda Machado, assassinada a pauladas em 2020, em Rio Branco.

Para Antonella, por falta de educação e emprego, a prostituição é a opção para a maioria dessas pessoas. Na rua, elas estão expostas aos mais diversos perigos e violências. Mas a presidente também reconhece avanços, como a decisão da retificação do registro civil e as leis locais que garantem o uso do nome social em órgãos públicos.

Como é ser mulher trans no Acre?

É ainda luta de resistência. Nós lutamos para existir em um mundo tão preconceituoso, para aceitar nossa identidade de gênero, como nós queremos viver. É muito difícil, as portas ainda são muito fechadas para a população trans no Brasil. No Acre, não deixa de ser difícil, mas, se nos sentimos felizes assim, temos que lutar pela nossa felicidade.

Quais os principais preconceitos e discriminações que vocês sofrem?

O preconceito é diário. No momento em que eu saio de caso, quando pego um transporte e vou ao mercado, os olhares, o preconceito nos olhos das pessoas. A mentalidade das pessoas ainda é muito fechada para a aceitação. Seguimos na luta, tentando reverter esse quadro, porque o Brasil ainda é o país que mais mata mulheres transexuais e travestis. Aqui no Acre não é diferente.

Aí temos o caso da menina Fernanda, ano passado, minha amiga, que foi espancada até a morte, em decorrência desse preconceito.

Como a violência de gênero atinge a população trans?

Como estava falando, houve o caso mais recente, mais cruel, que é o da Fernanda. Já tivemos outros casos, como a menina Palhuca, que teve os dedos decepados anos atrás. Estávamos fazendo o acompanhamento desse caso,

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do da Fernanda e tantas outras que sofrem violência. E ainda a população de mulheres travestis — 80% — vive da prostituição, porque tem que sobreviver.

A empregabilidade aqui no estado não dá oportunidade para essa população que tanto necessita. Você vê muito raramente uma mulher trans [trabalhando] no supermercado, trabalhando numa loja, tendo um emprego legalizado, com carteira assinada. Então isso falta muito. Isso encaminha essa população para onde? Para a rua, onde tem que sobreviver, se alimentar, se vestir, e onde elas enfrentam todas as noites os mais variados tipos de violência, violência psicológica, violência física. A gente está aqui para ajudar, lutar pelos direitos.

Hoje em dia há algumas meninas que estão estudando, voltando para a sala de aula, querendo ter um outro futuro.

Você acha que as instituições públicas estão preparadas para atender as mulheres trans?

As instituições estão mais abertas. Nós tivemos decretos estaduais e municipais... eu até estive recentemente numa loja, num supermercado, onde tem lá uma placa que diz que racismo e homofobia são crimes. Está lá o decreto, a lei. Se todas as empresas se abrissem

para colocar [placa] para a não discriminação, para fazer uma capacitação dos funcionários, para ter um atendimento melhor com a população de mulheres travestis e transexuais e homens trans...

Nós também incluímos dentro da Attrac os homens trans, que também sofrem tanto preconceito como a gente. Nós temos aí a luta, o ganho da retificação dos nossos nomes na certidão de nascimento, pelo STF, mas, mesmo assim, as pessoas, às vezes só pela maldade, pelo preconceito, nos tratam... você vai ao supermercado e tratam por “ele”, sabendo, vendo a fisionomia de uma mulher travesti e transexual, mas querem tratar a gente por “ele”. E é difícil, mas a gente está aí, para enfrentar, para resistir, com parcerias como o CAV, que é um centro parceiro da gente, ajudando a gente nessa luta.

Como vocês estão organizadas para lutar pelos seus direitos?

Nossa organização [Attrac], a gente está com as ONGs, uma dando a mão para a outra, com alguns órgãos públicos, como o Ministério Público, Defensoria Pública. E tentando aí essa corrente de todos, de mãos dadas para resistir, para combater o preconceito, a homofobia, a transfobia, o racismo.

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Anexo Tabela 10: Dados de identificação das vítimas de feminicídio no Acre (2018-2020) Vítima

000004798.2018.8.01.0014

050000677.2018.8.01.0013

001428127.2018.8.01.0001

000040126.2018.8.01.0014

000059541.2018.8.01.0009 000171543.2018.8.01.0002

Histórico Foi encontrada degolada. O namorado alegou que o crime fora premeditado pelos dois e que ela cortou a própria garganta. O MP entendeu o caso como feminicídio e solicitou que réu fosse submetido a julgamento popular. Restaram, no entanto, dúvidas sobre a autoria, e o acusado foi absolvido.

Envolvo em controvérsias, o caso não ficou totalmente esclarecido.

Antes do crime, o acusado já havia respondido a processo criminal e era considerado foragido da Justiça.

Foi golpeada com um facão no pescoço por ciúmes do marido.

Era pai dos seus três filhos. Foi denunciado e a sentença de pronúncia foi exaurida.

Serviu de escudo em uma suposta guerra entre facções criminais, fora atingida por arma de fogo. O autor foi morto pela polícia.

Foi assassinada com 7 facadas, quando pegava uma calcinha para a filha do casal, de apenas 3 anos de idade. Ambos haviam se separado, mas estavam residindo na mesma casa. O feminicida disse que iria matar a mulher e depois se matar. Ao se referir ao ocorrido, usou a seguinte expressão: “olha a besteira aí”. O réu foi condenado a 15 anos e 5 meses de reclusão.

Foi esganada pelo namorado na própria cama depois do ato sexual. O réu foi condenado a 20 anos de reclusão.

Foi assassinada pelo ex-namorado menor de idade. Ele cumpre medidas socioeducativas.

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Nascimento

Morte

14/07/2003

06/01/2018

15/10/1996

15/01/2018

23/03/1989

27/01/2018

Não Identificado

24/02/2018

08/08/1974

10/04/2018

26/09/1999

13/04/2018

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000054785.2018.8.01.0008

xxxx

000754068.2018.8.01.0001

001231007.2018.8.01.0001

000203994.2018.8.01.0014

Bebia com o marido no quarto, quando se desentenderam. Houve um instante de calmaria, e depois o agressor saiu do quarto. A mãe dele perguntou por que estavam brigando, e ele responde: “vocês vão saber”. Em seguida, saiu de casa. A primeira perfuração foi na região das costelas. Ela ainda tentou fugir pela janela, mas ele a 25/09/1978 arrastou pelo ombro e desferiu a facada fatal no pescoço. No último instante, ela disse: “eu te amo”.

O autor tentou conter o sangue com um pano, mas era tarde demais. A voz da mulher é a prova viva de que ela existe. O réu foi condenado a 14 anos e 7 meses de reclusão.

Foi assassinada pelo marido com uma facada no pescoço. O marido

envenenou o filho de 3 anos e cometeu suicídio.

Marido e mulher estavam embriagados quando ela fora atingida por arma branca. Ele alegou que também fora lesionado pela vítima.

30/03/1975 Disse ao delegado que “ela brigava como se fosse um homem”. O réu aguardava julgamento até a conclusão do estudo.

Foi assassinada por 2 integrantes de facção criminosa. Os réus torturaram e assassinaram ainda dois amigos da jovem, com quem ela estava acompanhada no dia do 11/06/2005 crime. Ela recusou relacionamento amoroso com um dos criminosos. Os feminicidas foram condenados por 89 anos e 10 meses de reclusão.

Teve o pescoço quebrado depois de estuprada pelo ex-namorado e um comparsa. O processo estava 03/12/2003 em fase de alegações finais até a finalização do presente estudo.

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10/06/2018

27/06/2018

08/07/2018

05/08/2018

03/09/2018

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001378765.2018.8.01.0001

000283845.2019.8.01.0001

000018233.2020.8.01.0017

000018233.2020.8.01.0017

000059783.2019.8.01.0006

000502441.2019.8.01.0001

000765725.2019.8.01.0001

000187073.2019.8.01.0014

Foi assassinada no ambiente de trabalho pelo amante, que era vigilante do prédio. O processo 20/08/1995 estava em fase de diligência até a finalização do presente estudo.

Foi assassinada pelo amante porque estava grávida. O réu foi con19/09/1984 denado a 27 anos, 6 meses e 6 dias de reclusão.

Foi assassinada pelo filho de criação com um tiro no pescoço. O 08/02/1967 filho morreu em confronto com a polícia.

Foi assassinada pela mesma pessoa do caso supracitado. O femini08/06/1968 cida morreu em confronto com a polícia.

Pediu a separação e recebeu um tiro na região esquerda da face, 29/01/1984 enquanto se arrumava no banheiro. O marido cometeu suicídio.

Estava em processo de separação e pediu ao ex-marido para vender a propriedade, e dividir o dinheiro. Tinham dois filhos adolescentes. O autor alegou que “não 24/04/1970 teve escolha, estava fora de si”, quando disparou contra a mulher.

O acusado estava foragido até a finalização do presente estudo.

Foi assassinada pelo ex-companheiro com 7 facadas, uma delas no peito. Ela gritava: “Não faz isso, não”, e ele dizia: “eu não 02/09/1987 disse que iria te matar”. O réu foi denunciado e aguardava julgamento até a finalização do presente estudo Foi assassinada com 22 perfurações quando aguardava o ônibus para ir à escola, em companhia da criança de 4 anos de idade. O casal 26/03/1993 estava em processo de separação.

O réu foi condenado a 26 anos e 7 meses de reclusão.

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16/10/2018

01/12/2018

31/12/2018

01/01/2019

21/01/2019

17/03/2019

18/07/2019

29/07/2019

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000038140.2020.8.01.0022

001270210.2019.8.01.0001

000193910.2020.8.01.0001

000014257.2020.8.01.0015

000434082.2020.8.01.0001

00080828.2019.8.01.0004

000253327.2020.8.01.0001

Foi vítima de arma branca. O autor disse que, se ela se separasse dele, a mataria. O processo sofreu uma dilação de prazo e estava em diligência até a finalização do presente estudo.

Foi assassinada com 52 golpes de faca na própria cama depois que o marido desconfiou que ela o traía com o vizinho. A Justiça aguardava resultado de laudo de de insanidade mental do autor até a finalização do presente estudo.

Morava de aluguel social, era usuária de drogas e beneficiária do programa Bolsa Família. O autor confessou que agiu por impulso, agredindo-a com socos no pescoço.

Era agredida e ameaçada pelo marido com frequência, mas tinha medo de denunciar. Separaram-se várias vezes e reataram a relação.

Estavam em processo de separação. Foi assassinada com 6 golpes de arma branca. O processo estava em grau de recurso.

Foi atingida por 2 disparos de arma de fogo. Haviam se separado 2 meses atrás e ela havia pedido medidas protetivas. O feminicida cometeu suicídio.

Residia em Epitaciolândia. Sofria constantemente violência doméstica e familiar. Sofreu várias lesões no decorrer do casamento. O marido chegou a atear fogo na casa anteriormente. Ele era usuário de drogas e, no dia do assassinato, queria que o filho saísse para comprar drogas. O caso estava em diligência até o encerramento do presente estudo.

Estava a caminho da rodoviária, na companhia do feminicida, quando foi assassinada. O réu foi condenado a 23 anos e 11 meses de reclusão. Até a finalização do presente estudo o processo estava em grau de recurso.

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24/02/1995

14/09/2019

30/06/1991

28/10/2019

24/06/1973

14/11/2019

06/06/1992

03/12/2019

11/06/1985

14/12/2019

10/05/1972

14/01/2020

04/09/1997

01/02/2020

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000158585.2020.8.01.0001

000222151.2020.8.01.0001

000258523.2020.8.01.0001

000635439.2020.8.01.0001

000064229.2020.8.01.0014

Foi decapitada pelo marido e sua cabeça foi ofertada pelo feminicida à mãe dela. O autor foi denun28/09/2002 ciado e a Justiça aguardava laudo de de insanidade mental até a finalização do presente estudo.

Foi assassinada com arma de fogo depois de um desentendimento com o marido. Ele alegou “rotinas do casal, problemas no trabalho e 07/05/1984 ciúmes”. O autor foi condenado a 25 anos e 11 meses de prisão. O processo estava em grau de recurso até a finalização do presente estudo.

Foi assassinada com golpes de faca nas costas e seios depois que ameaçou “ligar para os amigos da facção para matá-lo”. A mulher segurava o filho do casal no colo 03/09/1997 quando foi atacada. O autor foi condenado a 42 anos, 8 meses e 12 dias de reclusão. O processo estava em grau de recurso até a finalização do presente estudo.

Foi assassinada no estacionamento da Fundhacre nas primeiras horas da manhã. Foi atingida por 2 tiros 13/06/1981 pelo ex-marido. Gozava de medidas protetivas. Ele se suicidou.

Foi assassinada com 5 facadas na região do tórax pelo ex-companheiro, dois meses após a separação. Depois do crime, ele jogou a criança de 1 ano ao lado do corpo da mãe e o caso foi descoberto pelos vizinhos pelo choro do menino. Ela chegou a pedir medidas protetivas. O feminicida sempre 23/07/1994 dizia: “cuidado comigo que vou te pegar”. Ao consumar o crime, teria dito: “Liga para a polícia, que eu matei uma mulher”. O autor não recorda quantas furadas desferiu, mas alega que o crime foi por causa de um celular. Foi denunciado e aguardava julgamento até a finalização do estudo.

REALIDADES 153

21/02/2020

12/03/2020

25/03/2020

13/04/2020

15/04/2020

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE ENFRENTA

000021708.2020.8.01.0012

000042234.2020.8.01.0013

0005822.65.2020.8.01.0001

Sofreu 28 lesões de arma branca.

Ele queria saber o que havia no celular dela e disse que, na pandemia, ela passou a ser a “cabeça da casa”, o que causava os desentendimentos entre o casal. Que era ciumento e não suportava ver a mulher receber ligações telefônicas. Há relatos de que a agredia fisicamente e a estuprava. No dia do crime ela disse que era a última vez que teriam relação sexual e 28/03/1990 depois ele iria embora. No ato de violência ele expressou a seguinte frase, quando ela pediu para parar: “agora é que o show vai começar”. Dizia para outras pessoas: “você viu a vergonha que ela me fez passar?” e que, se ela fosse embora, ele a mataria. Ela tinha medo de denunciar. O réu aguardava julgamento até a finalização do presente estudo.

Foi atingida no rosto por disparo de arma de fogo, depois de uma discussão com o companheiro. A filha de 8 anos de idade presenciou o assassinato. Antes do disparo, ele disse à vítima: “já que você quer ser feliz, vou te matar”. A fi07/12/1993 lha disse ter visto a mãe morta na cadeira e o pai a levantando, para certificar-se de que estava mesmo sem vida. O acusado aguardava julgamento até a finalização do presente estudo.

Foi enforcada pelo namorado enquanto dormia. Depois ele ocultou o cadáver dentro do poço da casa 24/05/1994 da própria vítima. O acusado estava foragido até a data de finalização do estudo.

REALIDADES 154

31/05/2020

05/06/2020

06/09/2020

FEMINICÍDIO NO ACRE: UMA REALIDADE QUE ENFRENTA

000035068.2020.8.01.0006

000007367.2021.8.01.0022

000405237.2020.8.01.0001

Tinha Síndrome de Down e começou a consumir bebida alcoólica aos 15 anos. Estava com 22 quando foi assassinada. Ele era ciumento, dizia que, se ela não fosse dele, não seria de mais ninguém.

Em depoimento, disse que nunca fora de andar armado, mas que naquele dia estava com a faca na cintura. Ao ver a namorada com um homem em um bar, tentou contra a vida do homem, que se defendeu. Se dirigiu à namorada, abraçou-a enquanto a furava com uma facada no abdômen. Ao sentir a lâmina no corpo, a vítima disse: “oh, meu véi, tu me acertou”.

Ela morreu no hospital. O Ministério Público ofereceu a denúncia.

Ela tinha 25 anos e foi assassinada pelo ex-marido com pelo menos 9 golpes violentos de faca, que atingiram a cabeça, tórax e membros, o que revelou uma brutalidade fora do comum, por motivos de ciúmes, depois que ela decidiu pela separação. O assassino cometeu suicídio com a mesma arma que matou a mulher. Antes de morrer, ela gritou por socorro, mas, quando o irmão da vítima foi acudi-la, o assassino desferiu um golpe de faca na mão dele, que fugiu para se salvar do ataque violento do feminicida.

Homicídio doloso praticado pelo namorado que evoluiu para feminicídio no curso das investigações.

Ele era integrante de facção criminosa e era violento com a mulher.

De acordo com a perícia, ela estava na lateral da cama quando foi atingida por disparo de arma de fogo na cabeça.

REALIDADES 155

02/06/1998

18/09/2020

28/03/1996

07/11/2020

12/03/2000

09/05/2020

FEMINICÍDIOS Mulheres Assassinadas

AC

98

líder no ranking nacional de Feminicídio

Taxa de feminicídio por grupo de 100 mil mulheres:

BR

2018 3,2

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tinham entre 1

Cor d

2,5

89%

2020 2,5

Dos 22 municípios acreanos,

14

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FEMINICÍDIOS Autores e Coautores dos feminicídios 35 anos 69 anos

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59% 27% 14%

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com 8% oRelação Crime Org.

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Situação do autor

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35

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Suicídio

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Instauração do inquérito: Mediante 59% portaria

30

Ações penais

14

Condenações

41%

7 27 18

Ações penais em diligência

Sentenças