Jornal da ABI 372

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mente. Estudava o cangaço, estudava os movimentos populares, Canudos, as rebeliões populares todas. Ele era uma figura muito interessante, de verdade: passou por todas as esquerdas que o século 20 viveu, a Revolução Russa, o stalinismo, tudo aquilo. Ele foi stalinista, depois se decepciona profundamente e rompe. Acho que o grande interesse do Marighella é que ele foi conversando com o tempo dele. Como homem muito inquieto, ele tinha esta flexibilidade de ir mudando com o tempo dele. Quando resolve optar pela luta armada diante de uma ditadura feroz no Brasil, ele já tinha tentado vários caminhos, inclusive o parlamentar, e só foi dando errado. Só dá para entender a opção dele pela luta armada no contexto do mundo: Guerra do Vietnã, Cuba, Argélia, movimentos de libertação na África, nos Estados Unidos, o movimento negro se impondo, maio de 1968, enfim, há um contexto mundial de efervescência muito grande, e só assim se entende Marighella e a opção pela luta armada. Não era um louco, irresponsável, que saiu matando. JORNAL DA ABI – VOCÊ COMEÇA O FILME FALANDO DO SEU SUSTO QUANDO SEU PAI LHE CONTA QUE SEU TIO CARLOS ERA O MARIGHELLA. COMO VOCÊ

Isa Grinspum Ferraz: Inquieto, Marighella (ao lado) foi conversando com o tempo dele.

RECORDA ESTE MOMENTO?

Isa - Eu me lembro de cada detalhe desse momento. Meu pai [Salomão] estava me levando para a escola. Nós morávamos no Jardim São Paulo, que na época era um bairro afastado, justamente para poder hospedar o Marighella e a Clara. Era longe demais, numa casa sem telefone, uma coisa toda estranha para mim. Eu não entendia muito aquilo. Meu pai estava me levando para a escola e estava exatamente na Avenida Cruzeiro do Sul [Zona Norte de São Paulo], eu estava sentada no banco de trás do carro, tinha 10 anos. Como foi logo depois do seqüestro do embaixador americano, a barra estava muito pesada, e meu pai imaginou que eu fosse reconhecer o Marighella nas fotos dos cartazes de “Procura-se”, que estavam por todos os lugares. Só que até então eu nunca tinha associado as capas de revistas, de jornais, os cartazes, ao meu tio Carlos. Parece que criança só vê o que quer, não é? Meu pai me contou e eu fiquei desesperada, comecei a chorar, tive que voltar para casa. Nem consegui ir para a escola nesse dia. Daí pra frente, nunca mais vi Marighella nem a tia Clara. Porque a partir do seqüestro do embaixador foram dois meses de caça mesmo, e ele não apareceu mais em casa. JORNAL DA ABI - PROVAVELMENTE SEU PAI LHE CONTOU JÁ PREVENDO ALGUM DESFECHO MAIS TRÁGICO?

Isa - Meu pai chegou a se encontrar com Marighella um pouco antes da morte dele. O Marighella chamou meu pai, mandou um recado, e meu pai se encontrou com ele já bem no final. Inclusive meu pai me deu muitas informações para o filme, mas não quis gravar entrevista. Mas ele falou para o Marighella: “Mariga, ainda dá tempo de você sair, vai embora porque o cerco está muito forte”. E Marighella falou: “Não, eu não vou porque tem muita gente envolvida, que eu levei nesse momento, e eu não vou deixar. Eu vou morrer mas vou ficar até o fim aqui”. Foi o último encontro do meu pai com ele.

Ele era muito amigo do Marighella. Eu nasci com Marighella em casa, ele trocava as fraldas da gente. JORNAL DA ABI - POR QUE SEU PAI NÃO QUIS FALAR NO FILME?

Isa- Meu pai depois foi preso, foi torturado, ficou muito marcado pelo que sofreu depois. Eles queriam saber onde estava minha tia depois que mataram meu tio. A Clara foi para Cuba, para o exílio. Prenderam meu pai porque queriam saber onde ela estava. Ele foi para o Doi-Codi, passou por tudo aquilo, ficou muito marcado, preferiu não falar. JORNAL DA ABI - SEU FILME DIALOGA COM VÁRIOS OUTROS FILMES BRASILEIROS, TANTO DOCUMENTÁRIOS COMO DE FICÇÃO, QUE ABORDAM O PERÍODO DA DITADURA. VOCÊ ACHA QUE JÁ CHEGAMOS NUM DISTANCIAMENTO HISTÓRICO NECESSÁRIO PARA MOSTRAR ESTE PERÍODO ÀS NOVAS GERAÇÕES, QUE MAL SABEM O QUE ACONTECEU NAQUELA ÉPOCA?

Isa – Eu utilizo materiais diversos, sejam de ficção ou documentários, para contar a minha história. É uma linguagem que uso. Fiz, por exemplo, uma série grande chamada O Povo Brasileiro, a partir da obra do Darcy Ribeiro, com quem trabalhei muitos anos. Acredito que tudo o que a gente usa de bons materiais, materiais relevantes que já foram feitos, somam muitos significados, por vários motivos, não só pelo o que eles revelam, mas pelo que significam. O Gláuber Rocha, por exemplo, era um marighelista radical. Ele se encontrou com a Clara, em Cuba, quando ela estava no exílio. Um dia alguém chega e diz para a Clara: “O Gláuber Rocha está aí e quer conversar com você”. Era incrível o Gláuber ter encontrado a Clara, em Cuba, porque ela estava clandestina, usando nome falso, e sendo cuidada pelo Governo cubano até a anistia, em 1979, quando ela volta. “Bom, tudo bem, o que será que ele quer comigo?”,

Clara perguntou. Então ele chegou para ela e falou: “Clara, o que pensava Marighella?” Ela riu e falou: “Um monte de coisas”. E ele insistiu: “Me diga tudo”. Na época, o Gláuber queria fazer um filme que se chamaria História do Brasil, e queria saber o pensamento de Marighella. Aí Clara falou, falou, falou, e quando acabou, Gláuber, muito emocionado, abraçou-a e falou assim: “Concordo com tudo”. Então tem várias camadas de sentidos em você trazer outras referências, sejam musicais, sejam informativas. Até por isso eu estou no filme, tem a minha voz, e eu assumo o recorte de que é um filme feito por uma sobrinha curiosa, mas ao mesmo tempo sou socióloga. Mas não há um distanciamento científico, não busquei isso, mas de qualquer forma, meus entrevistados falam com algum distanciamento. Enfim, é o filme que eu podia fazer. Há outros filmes a serem feitos sobre Marighella? Muitos, porque é uma vida tão densa, um homem com uma história tão impressionante, que atuou tantos anos do século 20 na História do Brasil, que merece muitos filmes, inclusive acho que merece um filme de ficção à altura do personagem. Que não seria nunca eu a fazer, porque não sei fazer ficção. JORNAL DA ABI – VOCÊ TEVE DE DESCARTAR MUITA COISA NA MONTAGEM FINAL DO FILME. PELO JEITO O DVD VAI ESTAR CHEIO DE EXTRAS.

Isa - Vai ter milhares de extras! [risos]. Eu fiz 31 entrevistas, tem 25 ou 26 no filme, porque depois tive que fazer opções, o que foi bem difícil, foi um sofrimento. O primeiro corte do filme tinha quatro horas e meia! Foi um sofrimento ir cortando coisas, mas cada um destes entrevistados foi de muita generosidade, e eu acho que ser sobrinha de Marighella ajudou as pessoas a se abrirem de um jeito especial. Tem depoimentos de duas horas e meia. Nem sei o que vou fazer com

este material todo, tenho a obrigação moral de divulga-lo de algum jeito, porque são depoimentos incríveis, que eu agora preciso primeiro me distanciar um pouco do tema para poder pensar melhor. Mas depois eu vou ver o que fazer com isso. Acho que é um material para ir para escolas, para universidades, bibliotecas, no exterior, para festivais no exterior. Marighella tinha uma penetração incrível na Europa. Tanto que seu Manual do Guerrilheiro Urbano foi traduzido até em árabe. Ele teve apoio do Miró, do Godard, Sartre, vários ídolos meus que eram marighelistas, que mandavam dinheiro para a causa. Quero tentar mostrar este filme em festivais na Itália, na França, na Alemanha... Marighella inspirou até as Brigadas Vermelhas. JORNAL DA ABI - O FILME JÁ TEM DATA DE ESTRÉIA DEFINIDA?

Isa – No momento [novembro de 2011] ainda não. Estou negociando com algumas distribuidoras porque é um perfil de filme que não é para um distribuidor comercial comum. Eles não se interessam por filme assim. Eu quero que entre em circuito nas capitais, mas quero também mostrá-lo nas escolas, na periferia. Com este filme, até a Clara, que ficou mais de 20 anos casada com Marighella, descobriu coisas que não sabia. E ainda tem muito o que se descobrir. O Mário Magalhães, por exemplo, não consegue terminar o livro sobre o Marighella porque não pára de descobrir coisas. JORNAL DA ABI – QUAL A SUA VISÃO DO BRASIL HOJE?

Isa – Sou superotimista. Tenho paixão por este País. A história da minha vida, as oportunidades que eu tive de trabalhar com gente como Lina Bo Bardi, com Darcy Ribeiro, a minha formação familiar de esquerda, o próprio tio Carlos e as minhas experiências pela vida... eu sou otimista com o Brasil. As dificuldades que se encontram para fazer qualquer coisa no Brasil são tão brutais que dão até desânimo. A gente acha que não vai dar certo, que este País não tem como dar certo. Mas ao mesmo tempo a gente vai e faz. O povo brasileiro é poderoso. O Brasil tem uma energia que é uma loucura, mas ô coisa difícil..! Jornal da ABI 372 Novembro de 2011

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