Jornal da ABI 356

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REPRODUÇÃO

MÁRIO ALVES MEMORIAL NA ABI CELEBRA O JORNALISTA MORTO NO DOI-CODI Dilma, a mulher, e Lúcia, a filha, com ele na foto à direita, jamais encontraram o seu corpo, para dar-lhe uma sepultura digna. PÁGINAS 17, 18 E 19

Órgão oficial da Associação Brasileira de Imprensa

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Jornal da ABI

J ULHO 2010

TUCA VIEIRA/FOLHA IMAGEM

Sua doce palavra, seu instante de febre, sua gula e jejum, sua biblioteca, sua lavra de ouro, seu terno de vidro, sua incoerência, seu ódio, e agora ?

E agora, José?

Páginas 42, 43, 44, 45 e 46

UM CARLOS LACERDA QUE

DEZ ANOS SEM BARBOSA,

JORNALISMO ESPORTIVO

OS DIREITOS HUMANOS GANHAM IMPULSO NO RJ

POUCOS CONHECERAM

UM BRASILEIRO EXEMPLAR

A MAIS LONGEVA DAS PUBLICAÇÕES SOBRE ESPORTES NO PAÍS , A REVISTA CRIOU UM ESTILO DE COBERTURA. PÁGINAS 3, 4, 5, 6 E 7

CONJUNTO DE AÇÕES NESSE CAMPO INCLUI O COMBATE AO TRABALHO ESCRAVO NO NORTE E NOROESTE DO ESTADO. PÁGINAS 14, 15 E 16

O JORNALISTA QUE MAIS CONVIVEU COM O FUNDADOR DA TRIBUNA, GUIMARÃES PADILHA, NARRA FATOS INÉDITOS . PÁGINAS 20 E 21

PRESIDENTE DA ABI NOS ANOS 20-30 E DE 1978 A 2000, ELE ADOTOU COMO NORTE ESTA DIVISA: MEU PATRÃO É O BRASIL. PÁGINAS 32 E 33

PLACAR, A CAMISA 10 DO


Editorial

DESTAQUES DESTA EDIÇÃO

UM DESASTRE IRREPARÁVEL

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Veículos - Placar, uma autêntica camisa 10 da imprensa esportiva

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Testemunho - “Cobrir Copa não é prêmio, é tarefa”

A DECISÃO DO GRUPO COMERCIAL que detém o controle do Jornal do Brasil de encerrar a sua edição impressa tem um alcance que transcende o simples marco de uma empresa, para se revestir de uma significação que fere fundo a imprensa do País e a cultura nacional, pelo papel que o veículo outrora pertencente à Condessa Pereira Carneiro desempenhou nesses campos da vida nacional, sobretudo a partir da segunda metade dos anos 50 do século passado, quando Odilo Costa, filho liderou, à frente de brilhantes profissionais, a modernização da antiga folha de anúncios classificados. TAL COMO DISSE Rui Barbosa no século 19 do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, o JB era mais que um jornal: era uma instituição nacional. Como tal, havia que ser preservado, sobreviver à maré de erros cometidos pelos herdeiros da Condessa e, nos últimos anos, pelos que assumiram a sua gestão. Ao cabo dos desatinos que marcaram as duas últimas décadas do JB, configurou-se o desfecho que a Nação agora lamenta: seu próximo desaparecimento como veículo impresso. DESDE A REFORMA COMANDADA por Odilo e aprofundada por seus sucessores no comando da Redação – Jânio de Freitas, Omer Mont’Alegre, José Ramos Tinhorão, Nilson Lage, Alberto Dines, entre outros —, o JB foi o grande paradigma da imprensa diária de todo o País, que o adotou como modelo de abrangência de cobertura, técnica de redação do noticiário e das reportagens, diagra-

Jornal da ABI Número 356 - Julho de 2010

Editores: Maurício Azêdo e Francisco Ucha Projeto gráfico e diagramação: Francisco Ucha Edição de textos: Maurício Azêdo Apoio à produção editorial: Alice Barbosa Diniz, Conceição Ferreira, Diogo Collor Jobim da Silveira, Guilherme Povill Vianna, Maria Ilka Azêdo, Mário Luiz de Freitas Borges. Publicidade e Marketing: Francisco Paula Freitas (Coordenador), Queli Cristina Delgado da Silva, Paulo Roberto de Paula Freitas. Diretor Responsável: Maurício Azêdo Associação Brasileira de Imprensa Rua Araújo Porto Alegre, 71 Rio de Janeiro, RJ - Cep 20.030-012 Telefone (21) 2240-8669/2282-1292 e-mail: presidencia@abi.org.br Representação de São Paulo Diretor: Rodolfo Konder Rua Dr. Franco da Rocha, 137, conjunto 51 Perdizes - Cep 05015-040 Telefones (11) 3869.2324 e 3675.0960 e-mail: abi.sp@abi.org.br Impressão: Taiga Gráfica Editora Ltda. Avenida Dr. Alberto Jackson Byington, 1.808 Osasco, SP

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mação dos textos, edição de suplementos que ganharam forma refinada, como as revistas Programa e Domingo. GRAÇAS À SOLIDEZ ECONÔMICA assegurada pelo seu prestígio como jornal de classificados, que lhe permitia contratar os melhores profissionais, o JB pôde conduzir a alto patamar a reforma da técnica jornalística iniciada pouco antes pelo Diário Carioca sob a inspiração e o comando de Danton Jobim, Pompeu de Sousa e Luís Paulistano. Por isso o JB era admirado e imitado no País inteiro: ele fazia um jornalismo de excelência, com nível de qualidade comparável ao que de melhor se fazia e faz no mundo ocidental. A COMUNIDADE JORNALÍSTICA E SUAS instituições, como a ABI, a mais antiga destas, a Federação Nacional dos Jornalistas-Fenaj e os sindicatos de jornalistas do País, esperam que neste momento tão adverso não se reproduza em relação aos trabalhadores do JB que serão privados de oportunidade de trabalho aquilo que aconteceu com veículos e meios de comunicação que desapareceram ou passaram a ter existência apenas nominal. Para recorrer à linguagem e à imagem do meio profissional, espera-se que não se repitam, como uma espécie de pernicioso videoteipe, os percalços impostos aos trabalhadores da TV Manchete, que, após anos e anos, ainda penam para obter no Poder Judiciário direitos que lhes são sonegados desde o seu fechamento. Os jornalistas estão cansados de reprises do gênero.

DIRETORIA – MANDATO 2010-2013 Presidente: Maurício Azêdo Vice-Presidente: Tarcísio Holanda Diretor Administrativo: Orpheu Santos Salles Diretor Econômico-Financeiro: Domingos Meirelles Diretor de Cultura e Lazer: Jesus Chediak Diretora de Assistência Social: Ilma Martins da Silva Diretora de Jornalismo: Sylvia Moretzsohn CONSELHO CONSULTIVO 2010-2013 Ancelmo Goes, Aziz Ahmed, Chico Caruso, Ferreira Gullar, Miro Teixeira, Nilson Lage e Teixeira Heizer. CONSELHO FISCAL 2010-2011 Adail José de Paula, Geraldo Pereira dos Santos, Jarbas Domingos Vaz, Jorge Saldanha de Araújo, Lóris Baena Cunha, Luiz Carlos de Oliveira Chesther e Manolo Epelbaum. MESA DO CONSELHO DELIBERATIVO 2010-2011 Presidente: Pery Cotta Primeiro Secretário: Sérgio Caldieri Segundo Secretário: Arcírio Gouvêa Neto Conselheiros efetivos 2010-2013 André Moreau Louzeiro, Benício Medeiros, Bernardo Cabral, Carlos Alberto Marques Rodrigues, Fernando Foch, Flávio Tavares, Fritz Utzeri, Jesus Chediak, José Gomes Talarico, Marcelo Tiognozzi, Maria Ignez Duque Estrada Bastos, Mário Augusto Jakobskind, Orpheu Santos Salles, Paulo Jerônimo de Sousa e Sérgio Cabral. Conselheiros efetivos 2009-2012 Adolfo Martins, Afonso Faria, Aziz Ahmed, Cecília Costa, Domingos Meirelles, Fernando Segismundo, Glória Suely Álvarez Campos, Jorge Miranda Jordão, José Ângelo da Silva Fernandes, Lênin Novaes de Araújo, Luís Erlanger, Márcia Guimarães, Nacif Elias Hidd Sobrinho, Pery de Araújo Cotta e Wilson Fadul Filho. Conselheiros efetivos 2008-2011 Alberto Dines, Antônio Carlos Austregesylo de Athayde, Arthur José Poerner, Carlos Arthur Pitombeira, Dácio Malta, Ely Moreira, Fernando Barbosa Lima (in memoriam), Leda Acquarone, Maurício Azêdo, Mílton Coelho da Graça, Pinheiro Júnior, Ricardo Kotscho, Rodolfo Konder, Tarcísio Holanda e Villas-Bôas Corrêa.

Celebração - ABI pede reflexões no Dia da Imprensa

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Colapso - O JB no clímax da agonia

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Tecnolog ia - A nova velha técnica 3D ecnologia

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Barriga - Folha erra em anúncio de patrocinador da Seleção

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Reflexão - Agosto, desgosto? ○

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Lançamento - MTV vai às ruas com jornal gratuito

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Lembrança - Dez anos sem Barbosa Lima

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Pioneirismo - Anna Khoury, o sonho dourado

T he end - Larry King Live chega ao fim

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Depoimento - Oswaldo Miranda ○

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SEÇÕES 0 14

A C O N T EEC CEU NA AB BII Direitos humanos ganham conjunto de ações no RJ

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A ABI inaugura o Memorial Mário Alves

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A trajetória de Lacerda e seus episódios inéditos

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Comissão Especial da Câmara ouve as razões dos profissionais

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L I B E RDA D E D E IM P R E NS A RSF denuncia repressão a jornalistas no Irã ○

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CQC, alvo freqüente da violência

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L IVR OS IVRO O Maracanazo, nossa tragédia em 1950

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V I DA S Hermano Alves, Amaury Fonseca

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José Saramago: Ser amado ou ser amargo?

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Mais uma vítima de execução: Márcio, fotógrafo da TV Globo

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Ascendino Leite ○

Conselheiros suplentes 2010-2013 Adalberto Diniz, Alfredo Ênio Duarte, Aluízio Maranhão, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel Mazola Froes de Castro, Germando de Oliveira Gonçalves, Ilma Martins da Silva, José Silvestre Gorgulho, Luarlindo Ernesto, Marceu Vieira, Maurílio Cândido Ferreira, Sérgio Caldieri, Wilson de Carvalho, Yacy Nunes e Zilmar Borges Basílio. Conselheiros suplentes 2009-2012 Antônio Calegari, Antônio Henrique Lago, Argemiro Lopes do Nascimento (Miro Lopes), Arnaldo César Ricci Jacob, Ernesto Vianna, Hildeberto Lopes Aleluia, Jordan Amora, Jorge Nunes de Freitas, Luiz Carlos Bittencourt, Marcus Antônio Mendes de Miranda, Mário Jorge Guimarães, Múcio Aguiar Neto, Raimundo Coelho Neto (in memoriam) e Rogério Marques Gomes. Conselheiros suplentes 2008-2011 Alcyr Cavalcânti, Edgar Catoira, Francisco Paula Freitas, Francisco Pedro do Coutto, Itamar Guerreiro, Jarbas Domingos Vaz, José Pereira Filho (Pereirinha), Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Ponce de Leon, Ruy Bello (in memoriam), Salete Lisboa, Sidney Rezende,Sylvia Moretzsohn, Sílvio Paixão e Wilson S. J. de Magalhães. COMISSÃO DE SINDICÂNCIA José Pereira Filho (Pereirinha), Presidente, Carlos Di Paola, Marcus Antônio Mendes de Miranda, Maria Ignez Duque Estrada Bastos e Toni Marins. COMISSÃO DE ÉTICA DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO Alberto Dines, Arthur José Poerner, Cícero Sandroni, Ivan Alves Filho e Paulo Totti. COMISSÃO DE DEFESA DA LIBERDADE DE IMPRENSA E DIREITOS HUMANOS Lênin Novaes de Araújo, Presidente; Wilson de Carvalho, Secretário; Alcyr Cavalcanti, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel de Castro, Geraldo Pereira dos Santos, Germando de Oliveira Gonçalves, Gilberto Magalhães, José Ângelo da Silva Fernandes, Lucy Mary Carneiro, Maria Cecília Ribas Carneiro, Mário Augusto Jakobskind, Martha Arruda de Paiva e Yacy Nunes. COMISSÃO DIRETORA DA DIRETORIA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL Ilma Martins da Silva, Presidente, Jorge Nunes de Freitas, Manoel Pacheco dos Santos, Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Mirson Murad e Moacyr Lacerda. REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULO Conselho Consultivo: Rodolfo Konder (Diretor), Fausto Camunha, George Benigno Jatahy Duque Estrada, James Akel, Luthero Maynard, Pedro Venceslau e Reginaldo Dutra. O JORNAL DA ABI NÃO ADOTA AS REGRAS DO ACORDO ORTOGRÁFICO DOS PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA, COMO ADMITE O DECRETO Nº 6.586, DE 29 DE SETEMBRO DE 2008.


VEÍCULOS

LEMYR MARTINS

Há 40 anos surgia a revista semanal que revolucionou o jornalismo sobre esportes no Brasil, eternizou gols e jogadas em magníficos textos e imagens e mostrou que não é só o resultado que interessa no futebol. POR MARCOS STEFANO Temos uma bomba que vai ser uma cagada no País”. A força das palavras do jornalista Juca Kfouri, da revista Placar, pegou de surpresa Thomas Souto Corrêa, VicePresidente da Editora Abril. Era outubro de 1982 e ele trazia debaixo do braço um calhamaço de 90 laudas jornalísticas, resultado de quase um ano de árdua investigação promovida pelos repórteres Sérgio Martins e Ronaldo Kotscho. O explosivo conteúdo denunciava o elaborado esquema de corrupção que havia tomado conta da Loteria Esportiva no Brasil, uma febre nacional naquele tempo. As suspeitas vinham de tem-

pos. Anos antes, o próprio Kfouri fora chamado por Milton Coelho da Graça, atualmente Conselheiro da ABI, para compartilhar suas dúvidas. O número de acertadores, sua distribuição pelos Estados e o acerto das chamadas “zebras”, os resultados mais improváveis, formavam uma conta que não batia com a lógica matemática. De posse dessas suspeitas, a revista chegou a passar um tempo atrás de pistas em Brasília, mas sem grandes avanços por causa do sigilo que a Caixa Econômica Federal mantinha em relação a todos os seus ganhadores. Esclarecer o assunto era quase impossível, mas o pró-

prio Kfouri não desistia. Já Diretor de Redação, desafiava abertamente os repórteres a empreenderem nova investigação. No ano anterior, 1981, uma declaração do ex-Presidente do Botafogo Charles Borer dando conta de que “a loteca é séria só até a bola rolar” e a acusação contra o radialista Flávio Moreira por manipular resultados traziam renovado alento. Diante dessas informações e com várias outras pistas e contatos, Martins e Kotscho retomaram o trabalho. No dia 22 de outubro de 1982, Placar chegava às bancas trazendo uma das melhores reportagens do jornalismo brasileiro em anos. Um verdadeiro dossiê, com 125 nomes de

árbitros, dirigentes, técnicos, jogadores e personalidades nacionais, relatando passo a passo como se dava o esquema de manipulação de resultados que recebeu o nome de “Máfia da Loteria”. Não dá para contar a história do jornalismo esportivo no Brasil sem falar sobre as históricas reportagens da “Máfia da Loteria”, iniciadas em 1982, mas que tiveram uma série de suítes depois. Para muita gente, essa profunda investigação foi o nosso Watergate da bola, acabando com a idade da inocência no futebol canarinho e levando o esporte à sua maioridade. Também consagrou uma revista que já vinha sendo um dos granJornal da ABI 356 Julho de 2010

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FOTOS: DEDOC/EDITORA ABRIL

VEÍCULOS PLACAR, UMA AUTÊNTICA CAMISA 10 DA IMPRENSA ESPORTIVA

des sucessos da imprensa esportiva desde a sua criação, a semanal Placar. Ao completar seus 40 anos, a revista é uma marca de sucesso, responsável por retratar os principais lances dentro e fora dos campos nas últimas décadas. Mesmo com tantas instabilidades nas vendas, devido às crises econômicas ou aos fracassos dentro das quatro linhas, fatores que mexem com os ânimos dos apaixonados leitores-torcedores, Placar driblou as dificuldades para fazer verdadeiros gols de placa, imortalizando o suor e a luta dos jogadores em textos e imagens de qualidade e se tornando uma escola para gerações de profissionais. Até o início dos anos 70, questionavase muito por que publicações de esporte, sobretudo de futebol, não davam certo no País. Afinal de contas, a tradição na área era grande e o Brasil já era bicampeão mundial. Na prática, a imprensa sempre procurou incluir o assunto em suas páginas, mas apenas como coadjuvante. As exceções eram poucas e restritas aos jornais. Assim aconteceu com o suplemento A Gazeta Esportiva, criado no final da década de 20 pelo jornal A Gazeta, em São Paulo, e que se tornou uma publicação independente, e com o Jornal dos Sports, famoso pela cor rosa, fundado em 1930, no Rio de Janeiro. A profissionalização e a transformação do esporte em negócio ajudaram, mas não tanto. Caso mais recente é do diário Lance!, publicado desde outubro de 1997, com a meta de chegar a 400 mil exemplares diários, mas que estacionou em um quarto disso. Em termos de revistas, a Manchete Esportiva teve alguns lampejos nos anos 50, mas vida curta. Depois do surgimento de Placar, tentaram ressuscitá-la, sem sucesso. A Revista do Esporte, nascida nos anos 50, no Rio, perdurou apenas até o começo da década de 60. Coube aos jornais investirem. Entre 1953 e 1957, a própria A Gazeta Esportiva publicou A Gazeta Esportiva Ilustrada; repetindo a fórmula, o Lance! agora publica nos fins de semana a revista Lance!A+ e a mensal Fut!. Todas, porém, são produtos menores. Apenas nos últimos anos é que novos produtos têm surgido, como Trivela, FourFourTwo e Revista da ESPN. “Durante muito tempo o esporte foi considerado um gênero menor no jornalismo, o que é um grande erro, como está comprovado agora. O esporte não é mais uma questão de lazer ou supérfluo, é vivo e pulsante torcer diariamente pelo time do coração e, nas copas, pela Seleção Brasileira. Creio que parte da culpa por essa visão distorcida é da nossa cultura esportiva. Em uma nação de 196 milhões de técnicos, todos têm opinião própria e certa. Nesse ambiente, o conhecimento esportivo não é adquirido pela leitura, a não ser em poucos casos”, avalia o jornalista Bruno Chiarioni, um dos autores do livro Onde o Esporte se Reinventa: Histórias e Bastidores dos 40 Anos de Placar (Primavera Editorial). “Placar conseguiu quebrar um pouco desse pensamento e tornar-se relevante por seu conteúdo.” A Sports Illustrated brasileira

Apesar de ter se concretizado apenas na década de 70, a idéia de produzir uma 4

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revista esportiva é bem mais antiga na Editora Abril. Já em 1952, Cláudio de Souza sugeriu à família Civita a criação de uma publicação com muitas fotos, especialmente a seqüência de gols, textos curtos e charges. O nome Placar, na ocasião, inclusive teria sido anotado e registrado. Mas a Abril ainda era uma editora de quadrinhos, sem qualquer tradição em jornalismo. O projeto continuou engavetado apesar do sonho acalentado por Victor Civita de fazer por aqui uma Sports Illustrated, semanal que desde 1954 circulava nos Estados Unidos. Em fins dos anos 60, com a experiência adquirida principalmente com outras publicações como Quatro Rodas, Cláudia, Veja e, principalmente, Realidade, o problema estava resolvido. Aristélio Andrade, Maurício Azêdo, atualmente Presidente da ABI, e Paulo Patarra, que fora Diretor de Redação da revista , apresentaram uma nova proposta. A Abril encarregou Maurício, que era então Editor de Texto de Realidade, de dirigir a implantação do projeto. Seu Victor, como era chamado, imaginava associar-se à Caixa Econômica Federal e fazer de Placar o veículo oficial da nascente loteria esportiva. O volante dos jogos e os resultados seriam veiculados exclusivamente na revista. Houve gritaria generalizada e a Caixa fez a loteca de interesse público. Mas o projeto não arrefeceu. Com o foco em grandes reportagens feitas por jornalistas tarimbados e o privilégio às fotos, Placar teve quatro ediçõespiloto, com as chamadas de capa Tostão exclusivo: Eu jogo!; Toninho: Saldanha nos traiu; Acorda, João! e A seleção está fora do campo. O tão esperado número 1 chegou às bancas no dia 20 de março de 1970, com a matéria de capa “Vamos ganhar a Copa. Só nos falta humildade”. A receita era de Pelé, figura que seria recorrente nos momentos mais importantes da revista pelos 40 anos seguintes. No expediente, nomes de peso como Cláudio de Souza, diretor nominal da revista, Maurício Azêdo, Woile Guimarães, Hamilton de Almeida Filho, José Maria de Aquino, Michel Laurence e Lemyr Martins. O primeiro tempo de Placar, nesse começo de anos 70, foi marcado pela busca de influência e de mercado. Daí a escolha do rei Pelé, que vivia um momento singular na carreira, para angariar prestígio. Logo a revista tornavase a principal referência de informação sobre futebol no País, diversidade que os jornais, restritos a suas praças, não conseguiam abarcar: “A revista atravessou diversas fases e, para sobreviver, precisou sempre se reinventar, descobrir fórmulas novas. Elas eram fundamentais para superar as seguidas ameaças de fechamento da publicação. Nesse momento inicial, o grande diferencial foi sua cobertura com repórteres espalhados pelas principais praças do Brasil. Especial-

mente no Campeonato Brasileiro, com este nome desde 1971, ela passou a ter sua melhor época de vendas”, explica o jornalista Márcio Kroehn, também autor de Onde o Esporte se Reinventa. Nessa história, Sobrenatural de Almeida, o personagem criado por Nelson Rodrigues para justificar os lances mais incríveis em jogos da Seleção ou de seu Fluminense, não seria o responsável pelo sucesso da publicação. Mesmo com a precariedade das comunicações de então, Placar conseguia levar resultados quentes e precisos, um grande resumo da rodada, com a ficha técnica de praticamente todos os jogos do fim de semana pelo Brasil, em seu Tabelão. Fazê-lo não era simples. Nas noites de domingo, formava-se um grupo de atendentes, que faziam ligações para todo o País madrugada adentro. Ainda em 1970, a revista criou aqueles que se tornariam os mais prestigiados prêmios da história do futebol brasileiro.

O fotojornalismo sempre foi um dos pontos fortes de Placar, que publicou em quatro décadas instantes memoráveis. Entre eles, está aquele captado por Luiz Paulo Machado, que fotografou Pelé em 1970 com uma marca de suor em formato de coração. Sete anos depois Olívio Lamas clicou o momento em que André Catimba voa num jogo do Grêmio. Em 1982 J.B. Scalco capturou dois momentos mágicos da Seleção de Telê Santana: Zico roubando a bola de Maradona e Falcão comemorando mais um gol. Já em 2009, a foto curiosa de Alexandre Battibugli mostra Diego Souza sendo abraçado.

A Bola de Prata seleciona desde então, no Brasileirão, os onze melhores jogadores, um em cada posição. Já a Bola de Ouro é entregue ao craque da competição, o atleta com melhor média durante toda a disputa. A eles somou-se em 1999 a Chuteira de Ouro, oferecida para o artilheiro do certame. Dar notas e tabular tudo foi, desde o princípio, um trabalhão. Mas que conferiu ainda mais prestígio à revista. A ponto de, nos anos 90, num momento em que Placar nem mesmo tinha periodicidade, saindo apenas em edições especiais, a revista gastar uma boa quantia para contratar freelancers para cobrir os jogos, apenas para dar notas e não deixar os prêmios morrerem.

No meio esportivo costuma-se dizer que só o “cabeça de bagre”, aquele jogador medíocre, faz boas jogadas logo de cara. O craque, o virtuoso, o estilista, prende a bola, cultiva-a cuidadosamente e, quando ninguém mais espera, faz aquela jogada sensacional e mata a partida. Os placarianos aprenderam logo essa arte. Primeiro, com a criação de novos produtos. A revista foi pioneira na publicação de edições especiais, os guias das principais competições mundiais. Preciso e extremamente analítico, o Guia da Copa 94, por exemplo, serviu de referência para todos os jornalistas que foram cobrir o mundial dos Estados

Revista-pôster e Guia da Copa


Unidos. Sem esse caráter de antagonista do espetáculo, mas com um sucesso econômico muito maior, a revista-pôster dos campeões foi outra invenção marcante. O custo é quase zero. A foto, normalmente, já foi feita, os textos são reaproveitados e não precisa nem cortar o papel na gráfica, já que o pôster vem dobrado em oito partes. Apesar da importância de todos esses produtos, o que mais marcou os 40 anos da revista foi a reportagem. Contar muitas – e boas – histórias é um verdadeiro esporte para Placar. “Mesmo antes dela, as editorias de esporte dos jornais no Brasil já faziam matérias de denúncia e investigativas. Mas não havia uma publicação que se pautava por essa linha. Podemos dizer, sim, que o jornalismo investigativo nos esportes surge nos anos 70 por aqui com Placar”, acredita Márcio Kroehn.

A revista não somente desmascarou a “Máfia da Loteria”, em 1982. Também denunciou casos marcantes de doping, como o de Mário Sérgio, em 1981, e o de Mazolinha, em 1987, este considerado o mais marcante depoimento já dado sobre o assunto e premiado com o Prêmio Esso de Jornalismo, no ano seguinte. Antes de tudo isso, Placar, que desde o começo carregou a bandeira da organização e moralização do futebol, decidida que estava a escancarar os bastidores do esporte nacional, publicou uma série de denúncias contra Wadi Helu, então Presidente do Corinthians. Era o primeiro ano da revista, mas o clube mais popular de São Paulo estava há tempos sem títulos. Por trás dessa difícil situação, os desmandos de dirigentes que se perpetuavam no poder e tentavam a eleição para cargos legislativos às custas da agremiação.

O pontapé inicial dessa história foi dado quando o repórter José Maria de Aquino visitava a Redação do Jornal da Tarde e, quase meio que sem querer, conseguiu com um dirigente corintiano um pacote. O embrulho trazia diversos documentos denunciando irregularidades de Helu. O JT não publicaria, considerava arriscado demais. Placar não tinha tais pudores. Milton Coelho, Diretor de Redação da revista na década de 70, considera que o trabalho da publicação foi determinante para que, nos anos 80, acontecesse o célebre movimento da Democracia Corintiana e dirigentes de outros clubes passassem a respeitar um pouco mais seus associados e torcedores. Em 1988, outro furo. A revista, no período com um tamanho maior, mais colorida, textos mais curtos e impressa com papel-jornal, o que fazia com que tivesse um preço menor, investigou cinco grandes estádios no Nordeste. A matéria, produzida pelo repórter Ubiratan Brasil e pelo fotógrafo Orlando Kissner, mostrava construções imensas, verdadeiros elefantes-brancos erguidos com dinheiro público numa época de ufanismo, normalmente superfaturados e que ficavam quase totalmente ociosos, rece-

bendo na maior parte do tempo públicos modestos. Mais recentemente, em novembro de 2005, Placar desvendaria outra máfia, dessa vez a do apito. Em reportagem de André Rizek, também publicada por Veja, a revista aproveitou uma denúncia anônima para escancarar um esquema que envolveu suborno de árbitros e manipulação de resultados por golpistas de sites de apostas. “Mas as melhores matérias não foram somente de denúncia. Muitas vezes contando dramas humanos ou casos interessantes, a revista contou ótimas histórias”, ressalva Kroehn. Verdade. Foi dessa forma que o repórter Celso Kinjô se disfarçou de árabe e “comprou” meio time do Santos, mostrando como era fácil enganar os dirigentes ainda em um período em que as multimilionárias transações para o exterior não existiam. Ou passando uma semana inteira num pequeno time quase amador do interior do Paraná, como fez o Redator-Chefe Arnaldo Ribeiro, para retratar as dificuldades da vida de um boleiro. Ainda empreendendo uma monumental tarefa de investigação, como fez Kátia Perin, quando desembarcou na Redação, em 1989. Kátia recebeu do Diretor Marcelo Duarte Jornal da ABI 356 Julho de 2010

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ARQUIVO ABI

VEÍCULOS PLACAR - UMA AUTÊNTICA CAMISA 10 DA IMPRENSA ESPORTIVA

Ao lado, três capas das edições-teste número zero de Placar e a capa escolhida para a primeira edição (acima).

uma fotografia, em que o jovem Pelé aparecia ao lado de outros garotos do juvenil do Bauru Atlético Clube, o Baquinho, nos anos 50, e foi incumbida de identificar, descobrir onde estavam e o que faziam os companheiros do primeiro time do craque. Como era “foca”, Kátia sentiu-se na obrigação de resolver o mistério. Ninguém sabia nada a respeito dos demais, a não ser os apelidos escritos no verso. Em três meses, porém, ela encontrou todos e conquistou o segundo Prêmio Esso de Informação Esportiva da história da revista. A tragédia de Sarriá

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Romênia e, na cidade do lendário vampiro, encontrou um time chamado Glória de Bistrita. Apesar do aumento de publicidade, os gastos também eram altos. E havia discordâncias sobre o que se queria da revista. Para a Abril, Placar já não conservava mais sua identificação com a luta pela transparência na política esportiva. Juca Kfouri, Diretor do Núcleo responsável pela publicação, discordava. De acordo com ele, era impossível pensar na revista sem desejar a modernização do futebol brasileiro. Essas diferenças se acentuaram com seguidas críticas ao Presidente da CBF Ricardo Teixeira e culminaram na saída de Kfouri da empresa, em um episódio bastante controvertido. Fato é que, tempos depois, com a perda da Copa de 1998, na França, a revista outra vez declinou, começou a dar prejuízo e passou por nova reformulação. Voltaria a ser apenas Placar, dali por diante. Ser multimídia, o caminho

Tal qual passar pela defesa de um time que joga na retranca, encontrar a melhor fórmula para uma revista nem sempre é tarefa das mais fáceis. Os placarianos, melhor do que quaisquer outros, sabem disso muito bem. Depois de 1998, a revista continuou mensal, passou a ser semanal, voltou a sair apenas a cada mês e quase fechou de vez às vésperas da Copa do Japão e da Coréia, em 2002. Foi apenas depois do penta que a Abril decidiu que Placar já não era somente um produto, mas uma marca e que o caminho era apostar nela.

“Temos que aproveitar toda essa credibilidade. A revista é conhecida e respeitada no mundo inteiro. Tornou-se referência aqui e lá fora. No Brasil, gerações de jornalistas foram formadas por Placar. Eu, por exemplo, fui alfabetizado lendo a revista. Não queria ir ao dentista, em Porto Alegre, e minha mãe me convencia prometendo comprar um exemplar para mim na banca”, lembra Sérgio Xavier Filho, contando uma experiência muito parecida com a vivida por grande parte dos nomes mais conhecidos da imprensa esportiva nacional. Há quem diga que Placar perdeu o charme de outros tempos e, com ele, também a excelência. Xavier discorda. Afirma que continua a mesma, apenas diferente. É verdade que não conta mais com 50, 60 profissionais na Redação, como havia nos anos 70. Está enxuta, com apenas dez, mas isso é um reflexo dos tempos atuais. Importa é continuar antecipando tendências, inovando e produzindo material de qualidade. “Sem ser cabotino, mas a revista sempre esteve à frente de seu tempo. Em 1994, inovou e ganhou agilidade com o uso da foto digital. Quatro anos depois, montou uma redação inteira na França. Naqueles tempos, essas coisas pareciam loucura. Hoje, são normais. Percebemos que não basta chegar uma vez por mês nas mãos dos leitores, é preciso uma ligação mais estreita e estamos entrando em novas plataformas, buscando diversificar nosso público”, diz Xavier. Atualmente, a revista tem uma tiragem que varia entre 70 mil a 90 mil exemplaDEDOC/EDITORA ABRIL

Na trajetória de Placar, nem sempre grandes reportagens tiveram reflexos positivos na venda em bancas. Logo após a denúncia da “Máfia da Loteria”, em 1982, também capitalizada pela tragédia de Sarriá, o estádio onde o futebol força da Itália de Paolo Rossi acabou com o sonho do tetra do futebol-arte da Seleção verde-amarela, a revista entrou num período de declínio. Essa situação perdurou até que em 1984 trouxe de volta um velho sonho da Abril, a transformação da semanal numa revista de todos os esportes, em que as diversas modalidades tivessem espaços mais equilibrados. Com o título adaptado para Placar Todos os Esportes, a revista ganhou esse perfil. “A Placar Todos os Esportes não é a Sports Illustrated verde-amarela, mas se aproxima. Porém, não tem público no Brasil para ela”, já avaliava naquele tempo Juca Kfouri. Dito e feito. A fase não durou mais de 33 números. Depois disso, ainda na década de 80, tornou-se a Placar Mais, uma tentativa de torná-la mais popular, quase uma Contigo. Também não deu certo. Dessa vez, no entanto, somado a uma grave crise financeira atravessada pela Abril no começo dos anos 90, por muito pouco a publicação não sucumbiu. Foi tirada de circulação, sendo substituída por outra revista mais voltada para esportes radicais e de elite, a Ação. Placar virou um título esporádico, saindo apenas em edições especiais por mais de um ano – ainda que todo mês tenha sido lançado um número – por muito pouco o título não foi vendido. Como a Abril não costuma negociar suas revistas, a opção seria acabar de vez com ela. Isso não aconteceu por causa do tetra, que viria em 1994 e traria um novo alento à publicação. Juntamente, claro, com a estabilidade proporcionada pelo real. Em abril de 1995 a revista inovaria

no tamanho e se diversificaria. Não mais atrás de um público diferente, mas daqueles que gostavam de futebol, porém ampliando o leque para atrair mais gente. Agora, já no segundo tempo de sua existência, era a Placar – Futebol, Sexo e Rock’n‘roll, com inédita venda de assinaturas e, definitivamente, mensal. Logo na estréia, aparecia o atacante Edmundo, conhecido pelo jeito difícil e rebeldia, abraçado a um ursinho, com a manchete ao lado: O animal precisa de carinho. “Já para produzir o texto foi meio delicado. Para fazer um perfil do jogador, comecei perguntando macio e apertando aos poucos. Ele poderia deixar a entrevista, mas ficou. Fui surpreendido pela fragilidade da pessoa que se escondia por trás do atleta. Trabalhei isso com psicólogos e amigos dele. Deu trabalho, mas mais difícil foi a foto. Pensei que ia apanhar, mas, afinal, conseguimos convencê-lo”, conta e diverte-se o atual Diretor de Redação da revista, Sérgio Xavier Filho, autor da polêmica matéria. A iniciativa foi uma das mais interessantes da história do jornalismo esportivo no Brasil. O sucesso foi imediato: a revista vendeu 240 mil exemplares e, em pouco tempo, as assinaturas superaram as vendas em banca. As matérias eram as mais variadas. Marcelo Duarte, no comando da publicação, fez reportagens um tanto quanto exóticas. Um time da terceira divisão da Finlândia, o Santa Claus Futebol Clube, foi destaque em matéria sobre o esporte na terra de Papai Noel. Já no centenário do livro Drácula, de Bram Stocker, Duarte foi para a

Três capas que deram o que falar: Edmundo em 1995; Ronaldo na Copa de 1998, e Neymar ao lado de Pelé, em abril deste ano.


DIVULGAÇÃO

res. Como acontece com outras publicações, devido à enorme quantidade de títulos, a venda em bancas está estável. Mas as assinaturas não param de crescer. Dessa forma, Xavier projeta ultrapassar logo os três dígitos. Mesmo possuindo um público eclético, um pouco mais concentrado na faixa etária que vai dos 25 aos 35 anos, a ordem é atrair os mais novos. Para isso, a marca torna-se cada vez mais multimídia, com lançamentos de dvds, reformulação do site, criação de blogs e comunidades virtuais, lançamento de aplicativos para celular e inauguração de camarotes em grandes estádios, como o Morumbi e o Maracanã. Até a fórmula semanal foi recuperada. Se os tempos são outros e a revista não consegue mais concorrer com a internet e com os tantos canais de televisão especializados, a solução encontrada foi a criação do Jornal Placar, publicação com 80 mil exemplares, distribuída gratuitamente duas vezes por semana nas principais vias da capital paulista. Para celebrar a nova fase e também comemorar seus 40 anos, Placar ainda virou exposição. Em parceria com a Fun-

ARQUIVO PESSOAL

Sérgio Xavier: Fui alfabetizado lendo Placar.

dação Armando Álvares Penteado, a Faap, a revista apresentou na tradicional universidade, em junho, 180 fotos, 60 capas e dez infográficos que estiveram em algumas de suas 1.456 edições e quase 160 mil páginas durante essas quatro décadas. Há também uma compilação de vídeos, um banco de dados completo sobre todas as Copas, além de camisas, luvas, bolas e outros objetos de grandes jogadores. Se um olho está voltado para o passado, para conservar a mesma qualidade, originalidade e excelência editorial de sua fundação, o outro mira no futuro. Muitos desafios estão por vir. Afinal, o Brasil se prepara para sediar mais uma Copa e, em seguida, sua primeira Olimpíada. Nos próximos anos, o jornalismo esportivo deve ser a bola da vez no mercado, mas ainda é preciso superar o velho dilema de que o brasileiro só gosta de dois esportes: futebol e levantamento de medalhas. Sim, pois pouca gente costuma acompanhar vôlei, basquete, automobilismo, natação ou outro qualquer quando não se ganha. Encontrar solução para esse dilema parece tão importante para Placar quanto torcer para que o mercado publicitário continue em efervescência e permita mais investimentos. Na esteira de tantas novidades e desafios, uma certeza paira na Redação da revista. Por mais que se invente, a fórmula derradeira para que a publicação continue sendo o camisa 10 da imprensa esportiva nacional é simples e bem antiga. Com a palavra, o Redator-Chefe Arnaldo Ribeiro: “O segredo de Placar continuará sendo a análise aprofundada, a reportagem bem feita, o furo jornalístico. Às vezes, a presença desse tipo de matéria não garante que uma edição venda mais que outra, mas dá a repercussão que a revista precisa ter. Tem peso e gera a discussão necessária nos outros órgãos de imprensa, causa debate, reflexão, dá credibilidade. Um veículo relevante se constrói assim, com jornalismo de primeira, como há 40 anos”.

LEMYR MARTINS

Com mais de três décadas cobrindo jogos e corridas em campos e autódromos mundo afora, o fotojornalista conta causos, fala sobre os bastidores de Placar e revela segredos que permitiram à publicação revolucionar o jornalismo esportivo brasileiro. POR M ARCOS STEFANO

ALEXANDRE BATTIBUGLI

A equipe de Placar que cobriu a Copa de 2010 foi composta pelos jornalistas Heber Alvares, Marcos Sérgio Silva, Eduardo Ianicelli, José Vicente Bernardo, Alex Borba, Luis Eduardo Ratto, Everton Prudêncio, Bruno Favoretto, Ewerton Araújo e Bernardo Itri.

imagem sempre foi vista de modo diferente na revista Placar. Ainda na década de 1970, quando grande parte das publicações usava as fotos apenas para preencher os buracos vazios do texto ou, no máximo, complementar a informação dada por escrito, no semanário esportivo elas eram destaque na cobertura. Em um tempo em que a televisão ainda não mostrava os principais lances para o público, os torcedores encontravam na revista os detalhes de cada jogada e cada gol em seqüência. Fotos coloridas, às vezes, em página dupla, conferiam à imagem, sem qualquer exagero, o status de arte. Talvez nenhum nome represente melhor toda essa revolução no fotojornalismo esportivo nacional do que o do catarinense Lemyr Martins. Radicado no Rio Grande do Sul, ele iniciou a carreira no começo dos anos 1960, no jornal Última Hora. Depois, passou por Zero Hora, Jornal do Brasil, O Estado de S. Paulo, Jornal da Tarde e Edição de Esportes, an-

tes de chegar a Placar, ainda em 1969. Ficou na revista durante mais de 30 anos como repórter-fotográfico, editor de fotos, editor de automobilismo e, finalmente, editor executivo. Nesse período, cobriu seis Copas do Mundo, 14 finais das grandes competições interclubes de futebol na Europa, 304 corridas de Fórmula 1 e um sem-número de jogos e matérias especiais Brasil afora. Suas lentes foram testemunhas de algumas das cenas mais impressionantes do esporte nas últimas décadas. E registraram momentos inesquecíveis, seja Pelé socando o ar enquanto comemora mais um gol na Copa de 70, ao lado de Tostão e Jairzinho – segundo Lemyr, a foto mais publicada do século, superando a de Albert Einstein mostrando a língua –, seja o vôo espetacular da March do piloto Maurício Gugelmin, na largada do Grande Prêmio da França de Fórmula 1, em 1989. Apurando, escrevendo e fotografando com excelência, Lemyr tornou-se mentor e inspiração para gerações de Jornal da ABI 356 Julho de 2010

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LEMYR MARTINS: AS HISTÓRIAS POR TRÁS DAS IMAGENS

FOTOS: ARQUIVO PESSOAL

Um ano antes da Copa de 1986, o México foi abalado por um grande terremoto. Lemyr registrou a catástrofe.

Além de fotografar, Lemyr Martins também produzia grandes matérias, como essa entrevista em que juntou dois dos maiores craques do futebol: Pelé e Garrincha.

profissionais da imprensa esportiva, gente como JB Scalco, Manoel Morta, Ronaldo Kotscho, Rodolpho Machado, Sérgio Sade, Ari Gomes, Orlando Kissner, Ricardo Corrêa, Pedro Martinelli, Nelson Coelho e Alexandre Battibugli. “Antes de mais nada, o fotojornalista deve ser ousado. O que diferenciou tanto o trabalho de Placar foi revelar o detalhe escondido que mesmo aqueles que iam aos estádios não conseguiam enxergar. O olhar apurado e a sensibilidade aguçada são fundamentais para elaborar e executar bem uma grande pauta. Ainda mais porque pouca gente tem uma visão tão privilegiada quanto aqueles que estão atrás da lente de uma máquina fo-

tográfica”, explica Lemyr Martins. Aos 73 anos, Martins está aposentado, mas continua na ativa, trabalhando como freelancer para publicações como Quatro Rodas. Depois de tantas viagens, competições e cliques, tornou-se um contador de histórias. Tanto que já lançou cinco livros e prepara um sexto, provisoriamente com o título de 50 Anos de Fotojornalismo, no qual contará aquilo que está por trás de algumas de suas mais marcantes fotos. Não um making of, mas deliciosas histórias de coberturas, desafios e fortes emoções, uma verdadeira aula do melhor jornalismo. Para recordar alguns desses momentos e analisar a importância de Placar para o jornalismo espor-

tivo brasileiro, ele atendeu a reportagem do Jornal da ABI. Entre causos e dramas, revelou o segredo das coberturas da revista: “Foi um trabalho que unia criatividade e paixão. Coisas que só o jornalismo e o esporte podem proporcionar”. JORNAL DA ABI – COMO VOCÊ CHEGOU A PLACAR E COMO FOI O COMEÇO DA REVISTA?

Lemyr Martins – Eu trabalhava no Edição de Esportes, jornal especial do Es-

Lemyr (agachado, à direita) participava do time de Placar-Veja em 1971, que era formado pelos seguintes craques da Redação: em pé, Manoel Motta, fotógrafo; Hedyl Valle Jr., Redator-Chefe; Peninha, diagramador; e os repórteres Tim, Carmo Chagas, Micahel Laurence. Agachados, Saldanha, diagramador; Ramon, redator; Paulo Henrique Amorim, repórter, e Luizão, diagramador.

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Jornal da ABI 356 Julho de 2010

tadão. Era uma época romântica. Para cobrir os jogos no interior de São Paulo, por exemplo, viajávamos em três duplas, sempre repórter de texto e fotográfico, no mesmo avião. A aeronave deixava uma dupla numa cidade, como Araraquara, seguia para São José do Rio Preto, deixava a outra, e ia para Presidente Prudente. Lá, esperava o final da partida no aeroporto. Depois, fazia o caminho inverso, voltando para São Paulo. Revelávamos os filmes no vôo mesmo. Ao chegar na Redação, era só encaixar na página pré-diagramada. Se a partida tivesse um grande personagem, era usada um foto horizontal. Se não, era vertical mesmo. Parece um sacrifício exagerado, mas num tempo em que não havia internet nem cobertura da televisão, era a única maneira de o torcedor acompanhar o que acontecia com seu time. Quando cheguei na Abril, em 1969, Placar ainda era chamada de Projeto Alfa. A editora já tinha uma tradição em revistas bem-sucedidas como Claudia, Realidade, Quatro Rodas. A Veja ainda estava começando. Mas o desafio era diferente: o Brasil tinha uma tradição de não emplacar revistas sobre esportes. Para vencê-lo, trouxeram o modelo e a qualidade dessas outras publicações, além de uma equipe tarimbada, comandada por Hamilton Almeida Filho, Woile Guimarães e Maurício Azêdo, além de repórteres talentosos como Hedyl Valle Júnior, José Maria de Aquino e Michel Laurence. Naquele tempo, a fórmula era convidar um grande nome e ele trazia sua equipe. Fizemos diversos números zero. Lembro que viajei para o Uruguai, cobrindo a preparação da Seleção local para a Copa de 1970. Depois, fui para a Argentina, ver o clima do país, já que sua Seleção não conseguiu se classificar.


Perdeu a vaga para o Peru. Placar me deu essa primeira chance de fazer cobertura internacional. Não dá nem para comparar o hoje com aquele tempo. No começo, você ia pelo cheiro, fazia, testemunhava. Mais do que fotógrafo, tinha de ser repórter. JORNAL DA ABI - COMO ERAM AS REUNIÕES DE PAUTA NESSES PRIMEIROS TEMPOS, JÁ QUE VÁRIOS DE VOCÊS FAZIAM MATÉRIAS SOBRE ESPORTES EM JORNAIS E PRECISAVAM FAZER UMA REVISTA?

Lemyr - Naturalmente, fazíamos um crivo, para ver como os jornais tratavam os assuntos. Nossa cobertura deveria ser diferente, a de uma revista. Não podíamos apenas cobrir, deveríamos projetar, ter algo mais que o jornal, ser mais analítica, com pautas diferenciadas. Assim, nunca nos restringíamos ao jogo. Fazíamos muitas imagens para arquivo e que pudessem estampar matérias temáticas e perfis. Hoje, as reuniões de pauta são para três ou quatro. Aceitam-se sugestões dos demais, mas só por escrito. No começo de Placar, não. Todo mundo era intimado a participar. E eram reuniões apaixonadas, já que todos gostavam de futebol. O Maurício Azêdo era um apaixonado pelo Flamengo; o Teixeira Heizer, fanático pelo Fluminense. Eles se juntavam com os corintianos, são-paulinos, palmeirenses e santistas, de São Paulo, e tínhamos grandes debates. Sempre criativos, em que um explorava e ampliava a idéia do outro. O desafio era buscar algo novo, diferente, inusitado. E com abrangência nacional, um dos segredos da revista. Por exemplo, se fôssemos fazer uma reportagem diferenciada sobre a Copa do Mundo da África. Poderíamos pegar dois dos grandes jogadores desse mundial, o Robben e o Sneijder, da Holanda, para falar sobre os carecas no futebol. Mandávamos a pauta para Recife, para Porto Alegre, para Salvador, para Belo Horizonte e para o Rio e descobríamos os carequinhas do futebol brasileiro. Até hoje só a TV Globo faz algo parecido. Naquele tempo, era algo inédito. Esse trabalho tão importante do Milton Neves, de resgate da memória do esporte brasileiro, procurando onde estão grandes ídolos do passado, já fazíamos nos anos 70, quando fomos atrás dos jogadores brasileiros que disputaram a Copa de 1938. JORNAL DA ABI - ESSES DETALHES CURIOPLACAR QUE DAVA...

SOS ERA SÓ

Lemyr - Naquele tempo, o futebol não era o show que é hoje na televisão. No máximo, passavam os gols em videoteipe e uma única câmera, colocada lá em cima do estádio, acompanhava as partidas. A fotografia esportiva, até então, também trazia muita informação periférica e passamos a focar no detalhe do lance. Tínhamos os melhores equipamentos e podíamos trabalhar com planos abertos e fechados, dependendo da necessidade. Os closes eram fantásticos. Assim, descobríamos detalhes curiosos, mas fundamentais. Uma vez fizemos uma matéria sobre catimba na cobrança de escanteios. Colocávamos o fotógrafo ali do lado, na hora de cobrar o córner, e descobría-

Uma cena impressionante captada pela lente de Lemyr no GP da França de 1989: durante a largada, no Circuito de Paul Ricard, o March do piloto brasileiro Maurício Gugelmin bate no carro da frente e decola num vôo espetacular sobre outros dez carros.

mos quem eram os maiores catimbeiros. Boas fotos também podiam se transformar em belíssimas pautas. Se o jogador estivesse muito suado, por exemplo, fazíamos uma reportagem sobre suor no futebol. Procurávamos médicos, endocrinologistas, preparadores físicos. Íamos atrás do jogador que perde mais peso no Náutico, no Recife, e no Grêmio, em Porto Alegre. A matéria ficava completa, cheia de informações, plástica e curiosa, já que alguns atletas, apesar de suarem muito dentro de campo, não perdiam mais do que alguns gramas. Placar tinha dessas coisas, mas para tanto tivemos que adaptar uma máxima do jornalismo: lugar de repórter não é na Redação, é ao lado do campo, seja num importante jogo, seja num simples treino. JORNAL DA ABI - MATÉRIAS SUAS SURGIRAM DESSA FORMA?

Lemyr - Várias. Aquilo que você acha mais sem importância pode se transformar em tremendas pautas. Certa vez, fui fotografar o jogo do Santos, já perto do final do campeonato. A partida não tinha maior importância. Naquele ano, apenas Palmeiras e São Paulo ainda tinham chances de título e a foto ilustraria o Tabelão, uma seção que trazia todos os resultados da rodada e era um enorme sucesso, pois todos os programas de rádio a utilizavam para dar informações. Porém, percebi durante a partida que toda hora o Pelé caía. Foram umas 25 quedas. Fiquei curioso e perguntava a mim mesmo: por que aquele negão caía toda hora? Depois de acompanhar também o jogo do tricolor, no interior, voltei para a Redação e revelei os filmes. Na reunião relâmpago de pauta, que fazíamos todos os domingos à noite, para aproveitar sugestões do pessoal das sucursais e matérias que poderiam ser feitas logo na segunda, antes de os times viajarem para jogar, apresentei o mate-

rial. Como sabia que toda segunda-feira Pelé tinha sessão de massagem na Vila Belmiro, entre 14 e 15 horas, eu e Carlos Maranhão seguimos, no dia seguinte, para o litoral. A princípio, Pelé não queria falar conosco, mas depois cedeu. Entrei e fui logo falando: “Rei, preciso te mostrar algo”. E ele: “Sempre você. Que é, rapaz?”. Mostrei as fotos. Ele provocou: “E daí, estou caindo”. “Mas você nunca caiu tanto. E sem reclamar”, retruquei. “Mas você que é o repórter. Se acha que tem alguma coisa, deveria explicar”, disse ele, sem se dar por vencido. Mas, no fim, rendeu-se: “Você não esteve lá em Brangança Paulista, semana passada?”. Sim, eu havia estado. Tinha ido lá e feito o homem vestir mais de 100 camisas diferentes de times e seleções contra os quais ele jogou para fotografar. “Pois bem, eu estava lá gravando uma ponta num filme do Paulo Goulart. E tive de aprender golpes de capoeira e jiu-jitsu. Agora, uso isso em campo. O cara me puxa, eu empurro. Se me empurra, eu puxo. Recebo faltas, caio e não me machuco.” A matéria rendeu quatro páginas e foi um tremendo sucesso. JORNAL DA ABI - A FOTO DO PELÉ NA CAPA DA PLACAR NÚMERO 1 TAMBÉM TEM UMA HISTÓRIA CURIOSA.

tinha que convencer o Pelé a tirar a foto. “O quê? Receita para ganhar a Copa? De jeito nenhum”, respondeu ele, bem ao seu estilo. Com a ajuda do José Maria de Aquino e do Michel Laurence, convenci o homem. Mas nada de estúdio. Só posaria ali mesmo e me daria dez minutos, antes do treino da tarde, sem prorrogação. Nem a sugestão de fazer a barba ele topou. Topou usar a camisa da Seleção, mas como o distintivo ia mudar para a competição, tive que usar uma sem emblema. Por causa disso, inverti a posição da pose, que era com a taça à direita para a esquerda do logotipo. A taça, quebrada na base, ficou escondida entre as mãos dele, mas de forma bem chapada, de frente, para não se notar que era uma réplica daquelas. Pelé não era somente o melhor no ofício da bola, mas também era entendido sobre posar. Sorriu 108 vezes, nos três filmes que usei. Os dez minutos viraram os 45 do tempo regulamentar, mais acréscimos para os acertos finais. As imagens, com o belo céu azul carioca ao fundo, além de parte da capa da revista, renderam pôster e ninguém percebeu que a camisa não era oficial nem que a Jules Rimet era falsa. A verdadeira fotografei Pelé levantando pouco tempo depois, no México.

PODE CONTAR?

Lemyr - Na reunião de pauta, o Elifas Andreatto, nosso Chefe de Arte, apresentou várias sugestões. A vencedora foi a imagem do Pelé, com a Taça Jules Rimet e uma chamada já definida: Receita para ganhar a Copa. Fui escolhido para a missão e enviado ao Rio, ao Itanhangá Golfe Clube, onde estava concentrada a Seleção, para fazer a foto. Mas havia várias dificuldades. Primeiro, a taça original estava na Inglaterra, país campeão de 1966. Consegui uma réplica na antiga CBD. Mas era apenas uma lâmina de cinco milímetros de espessura e estava quebrada na base inferior. Depois,

JORNAL DA ABI - NA COPA, VOCÊ AINDA PELÉ SOCANDO O AR, NUMA CENA QUE IMORTALIZARIA ESSA COMEMORAÇÃO.

FOTOGRAFOU O

Lemyr - Foi contra a Tcheco-Eslováquia, na vitória brasileira por 4 a 1. Ele recebeu um lançamento primoroso dos pés do Gérson, subiu, matou a bola no peito, entre os zagueiros Horvath e Migas, deixou a bola quicar na grama e, quando o goleiro Vicktor saiu em sua direção, só chutou colocado. Registrei a obra-prima e, ao perceber que ele corria em minha direção, fiquei com as pernas bambas. Mas deu tempo de pegar outra Nikon F3, com lente 300, e registrar o Jornal da ABI 356 Julho de 2010

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LEMYR MARTINS: AS HISTÓRIAS POR TRÁS DAS IMAGENS

pulo, com o soco no ar, ao lado do Tostão e do Jairzinho. Jamais imaginei que faria tanto sucesso e resistiria tanto tempo. Tornou-se a fotografia mais publicada do Brasil, superando até aquela do Einstein mostrando a língua (risos). E foi eleita pelo jornal Folha de S. Paulo a foto esportiva do século.

no pior, que teria a cabeça arrancada fora. Gugelmin que me perdoe, mas foi incrível. Melhor ao vê-lo saindo do meio daquela sucata, batendo o pé no chão para certificar-se vivo e correndo até os boxes para pegar o veículo reserva e dar a segunda largada.

JORNAL DA ABI - E COMO FOI O USO DA COR NAS FOTOS, OUTRO DIFERENCIAL DE PLACAR?

RA, COBRINDO CORRIDAS, VOCÊ TAMBÉM EXPE-

Lemyr - Muita gente comprava a revista por causa delas. Até 1973, a televisão no País ainda era em preto e branco e as fotos coloridas e em cromo, um tipo de filme muito sensível e que não tolera erro, davam vantagem à revista. Além de Placar, apenas Manchete publicava fotos coloridas, mas não eram de eventos esportivos. Esse recurso garantia uma qualidade muito maior à revista. Além de serem a cores, eram fotos exclusivas. Diferente de outras publicações que publicavam fotos de agências e recebidas por aparelhos de telefotos. Mas também dava muito trabalho produzir e enviar esse tipo de material. Não havia nada comparado à internet, então. Se a cobertura era no exterior, os filmes tinham que ser enviados ao Brasil para serem revelados. Nas páginas de abertura das corridas de automobilismo, usávamos duas fotos coloridas, uma maior, bonita e com ângulo fechado, que extrapolava uma página. E outra menor, de ângulo mais aberto, que mostrava o ambiente. Títulos e legendas podiam ser fechados no domingo mesmo, junto com o resto da revista, pois a matéria seguia por telex. As fotos das páginas seguintes também, pois iam por radiofoto. Mas não as coloridas. O que eu fazia? Nos Grandes Prêmios da Suécia, que cobri entre 1973 e 78, chegava na sexta-feira, por volta do meio-dia e ficava torcendo para fazer um tempo meio nublado. Fotografava de oito a 12 filmes, com o pessoal testando as máquinas, saía do autódromo, pegava o carro e ia até o aeroporto de Gottemburgo, que ficava a uns 250 quilômetros. Lá, pegava o avião, fazia escala em Copenhague, e ia para Paris. Chegava na Varig, portando alguma coisa de Placar para me identificar, e procurava uns dois brasileiros que fossem para São Paulo e pudessem levar os filmes. Tinha que orientá-los para colocá-los junto com a bagagem de mão, para não esquecerem ou perderem os filmes. Avisava a Redação, descrevendo os portadores, pegava o vôo de volta para Copenhague. Se não tivesse outro para Gottemburgo à noite, esperava até as seis da manhã do sábado. Nesse horário, embarcava para o terceiro país. Às 10h30min, estava no autódromo, cobrindo o treino. No domingo, o restante do material era enviado depois da corrida, mas ainda assim era a primeira parte fechada, por causa do fuso horário. E saíamos em cor, junto com os principais jornais, como o Estadão, que não circulavam nas segundas.

QUASE LHE CUSTOU A VIDA, CERTO?

JORNAL DA ABI - NO COMEÇO DA CARREI-

JORNAL DA ABI – VOCÊ SOMENTE FOTOGRAFAVA OU TAMBÉM ESCREVIA?

Lemyr - Fazia ambas as coisas, já que ficaria muito caro para a revista manter duas pessoas direto na Europa, por três 10 Jornal da ABI 356 Julho de 2010

RIMENTOU UM MOMENTO DRAMÁTICO QUE

A foto que foi capa de Placar com o título O fenômeno Dario, mostra Dadá Maravilha, com três pernas, fotografado durante um jogo da Seleção pouco antes da Copa de 70.

meses. Entre as corridas, cobria futebol. Mesmo esquema. No começo, fazia um texto que era copidescado depois, mas fui me especializando, pegando o jeito. Mas não era só no Velho Mundo que uma cobertura dava trabalho. A precariedade de condições estava em todo lugar. No início de 1971, Pelé estava próximo de completar 1.000 jogos e Placar estava em contagem regressiva. O jogo aconteceria durante uma excursão do Santos pela América Central e marcamos em cima. Eu comprei os números e minha esposa costurou-os na camisa verde e preta da revista. Coloquei o troféu Bola de Prata, prêmio de hors concours que seria dado a ele, na mala e embarquei. Passei por Trinidad-Tobago, Jamaica e Suriname, onde a histórica partida ocorreu. Era o único jornalista brasileiro presente na ocasião. Convenci o Pelé e ele entrou com a camisa de Placar e o troféu em campo. Mais difícil foi enviar o material. Despachei os filmes com dois portadores, por avião. Como o único lugar que havia telex no país era o palácio do Governo, tive que enviar o texto para Amsterdã, na Holanda. De lá, ele foi retransmitido para São Paulo. Se não desse certo, teria de esperar dois ou três dias para chegar aos Estados Unidos e enviar tudo. Quem não gostava muito dessa história de viajar, não ter fim de semana, nem feriado, eram as mulheres. Pelo menos uma vez por

mês precisávamos organizar um jantar em que os homens cozinhavam. Também, com campeonatos que tinham 94 clubes, era jogo que não acabava mais. JORNAL DA ABI - QUE OUTRAS FOTOS FORAM BASTANTE MARCANTES PARA VOCÊ?

Lemyr - Além das que já citei, houve muitas outras. Uma foi tirada em Manaus, durante um amistoso do Brasil contra a Seleção do Amazonas. As novidades eram as convocações de Dadá Maravilha, o Dario “Peito de Aço”, e do Tostão. Naquele jogo, Dadá arrebentou. Quando revelei, percebi que havia uma em que ele parecia ter três pernas. A ilusão se deu porque Tostão passava justamente naquela hora atrás dele. A foto virou capa de Placar número 5, com o título O fenômeno Dario. A partir daí, ninguém mais ficou quieto. Todos pressionavam o Saldanha, pedindo o atacante no time nacional. Também inesquecível foi a seqüência da largada do GP da França de 1989, no Circuito de Paul Ricard. A cena mais dramática aconteceu na primeira curva com o piloto brasileiro Maurício Gugelmin. Ele só se recorda do impacto na traseira de seu March e que bateu no carro da frente, antes de decolar num vôo sobre outros dez carros. Viu o mundo ao contrário; quando aterrissou, de cabeça para baixo, encolheu-se todo, deslizando no asfalto e pensando

Lemyr - Em 1971, fui de última hora para os Estados Unidos cobrir as 500 Milhas de Indianápolis. Mas como tudo foi muito rápido, acabei recebendo uma pulseira com o número, 127, de cor verde, que limitava meu espaço de cobertura à mureta, ao lado da pista. Em qualquer circuito do mundo o lugar seria o ideal, menos lá. Em Indianápolis, o melhor lugar é a tribuna de imprensa, de onde se via toda pista oval. E a tribuna estava reservada para pessoas com colete de cor vermelha. Pelo menos para tirar uma foto da largada, feita em movimento, negociei com um jornalista cubano. Dei a ele 50 dólares para trocarmos de identificação e eu usar o colete vermelho por alguns minutos. Só que descobriram a armação e tive que me contentar com a mureta mesmo. De lá, assisti a um dos piores acidentes de minha vida: o carromadrinha se desgovernou e chocou-se justamente contra a tribuna. Os fotógrafos lá caíram de uma altura de cinco metros. Registrei tudo e voltei para o Brasil. Quando cheguei à Redação, não entendi toda a emoção do pessoal, que me cumprimentava com beijos e abraços apertados. Só descobri quando li o telex recebido pela revista. Ele informava que uma das vítimas, internada em estado grave na UTI do Indiana Memorial Hospital, era um fotógrafo “moreno, baixinho, de 34 anos, estrangeiro”. Ah, e portador da identificação número 127. Só aí me dei conta de que não havia pegado de volta a braçadeira verde. A partir daí, sempre que voltava de uma viagem passávamos horas conversando e falando sobre experiências. JORNAL DA ABI - APÓS TUDO ISSO, COMO VOCÊ DEFINE A PLACAR QUE AJUDOU A CRIAR?

Lemyr - Uma revista à frente de seu tempo. Capaz de olhar a fotografia de outro jeito, de forma plástica, como arte. Não à toa, criou as Imagens de Placar, duas páginas duplas com fotos que não tinham necessariamente compromisso com os textos. Sempre com bom humor e capazes de guiar a notícia. No final do ano, também era uma edição apenas com fotos que salvava a pátria. Em período de férias de jogadores, sem maiores atrativos, vendia horrores. Assim como o pôster especial. Eram produtos baratos, já que tínhamos todos os fotolitos prontos e bastava apenas reaproveitar o material. Por tudo isso, ainda acho que há espaço para uma revista semanal de esportes no Brasil. Não como fazem os diários esportivos ou competindo com a tv. Aí seria loucura. Mas analisando a rodada, os grande momentos do esporte e trazendo imagens espetaculares, na melhor tradição de Placar.


TESTEMUNHO

“Cobrir Copa não é prêmio, é tarefa” Em entrevista publicada no Jornal do Comércio de Porto Alegre, o Presidente da ABI, Maurício Azêdo, disse que cobrir uma Copa do Mundo impõe ao jornalista um prolongado momento de desconforto, de exaustão física e de estresse. LAURENCE GRIFFITHS

O jornalista Jefferson Klein, do Jornal do Comércio de Porto Alegre, submeteu ao Presidente da ABI, por e-mail, um minucioso questionário, cujas respostas foram montadas por ele num texto fluente, que reproduziu com fidelidade as opiniões do entrevistado. Publicada sob o título “Uma cobertura jornalística com emoção”, antes do início da Copa, no começo de junho, a matéria comportou dois subtítulos destacados “Profissionais enfrentam estresse da maratona” e “Soluções móveis integradas ganharão mais espaço”, este dedicado à descrição dos recursos tecnológicos com que a cobertura da Copa contaria. O texto da reportagem de Jefferson Klein é este:

UMA COBERTURA JORNALÍSTICA COM EMOÇÃO

Diferentemente das matérias jornalísticas de áreas como economia e política, a cobertura de esportes, principalmente a de futebol, no Brasil leva um ingrediente extra: o sentimento. O presidente da Associação Brasileira de Imprensa, Maurício Azêdo, defende que, sem eliminar a isenção, a cobertura da Copa do Mundo tem de ser apaixonada, militante, engajada. No entanto, ele ressalta que também não pode assumir a idéia de que a Seleção é a Pátria de chuteiras, como na definição de Nélson Rodrigues. Nélson era um ficcionista, um dramaturgo, podia criar imagens desse tipo, assim como personagens fantásticos, como o Sobrenatural de Almeida, presente nos jogos do seu Fluminense, comenta o dirigente. Para ele, o jornalismo esportivo precisa atender ao público naquilo que ele quer ver contemplado: sua paixão pelo futebol. Azêdo afirma que, mais do que os Jogos Olímpicos, que constituem outro destacado evento esportivo internacional, a Copa do Mundo de futebol é o mais importante acontecimento da área esportiva para todos os veículos de comunicação do Brasil. Ele acrescenta que isso independe do formato ou meio – veículos impressos, rádios, televisões. Para os profissionais, é a grande oportunidade de mostrar seu talento e competência, qualquer que seja a parte que lhes caiba – a reportagem, a crônica, a fotografia, a narração, o comentário, a evocação histórica etc, aponta Azêdo. Quanto às empresas, o dirigente enfatiza que é o maior momento de venda ou de audiência, bem como de faturamento e de busca de prestígio. É, também, o evento que exige maior investimento e desembolso para a manutenção de numerosa equipe no

Para acompanhar a jornada da seleção espanhola rumo ao seu primeiro título mundial de futebol, centenas de jornalistas do mundo inteiro enfrentaram uma maratona de exaustão física e de estresse durante a cobertura da Copa da África do Sul.

exterior, com custo pago em moeda forte – o dólar. “Vale a pena, esse é o principal evento em matéria de interesse do público”, diz o Presidente da ABI. Além de repórteres, comentaristas, fotógrafos e cinegrafistas, a Copa do Mundo exige a participação de profissionais de diferentes formação e qualificação, desde os engenheiros que cuidam de pormenores técnicos no cenário da Copa e na retaguarda no Brasil até o mensageiro, sem os quais a cobertura não alcança o nível de eficiência necessário. Em matéria de qualidade da cobertura, de acordo com Azêdo, os meios de comunicação do Brasil não perdem em nada para os dos demais países, mesmo aqueles com mais recursos econômicos, como os veículos de imprensa da Espanha, Itália, França, para mencionar aqueles países em que a Copa do Mundo merece cobertura especial.

PROFISSIONAIS ENFRENTAM ESTRESSE DA MARATONA

O longo afastamento de casa, da família e do País é a principal dificuldade enfrentada pelos jornalistas na cobertura da Copa do Mundo, aponta o presidente da ABI, Maurício Azêdo. Depois, vem o desconforto da vida em hotéis, por mais confortáveis que estes sejam; a diferença de hábitos de refeição e de cardápios; a necessidade de mudar de cidade para acompanhar a programação de jogos; a diferença de fusos horários entre a captação da informação. “Por

mais que procurem disfarçar, os profissionais, com todas as alegrias que as vitórias possam causar, vivem um prolongado momento de desconforto, de exaustão física e de estresse”, relata Azêdo. O dirigente acredita que cobrir uma Copa do Mundo não é prêmio, mas uma tarefa pesada. Nesta de 2010, na África do Sul, a todas as dificuldades descritas acrescenta-se a da escassez de energia elétrica no país. O presidente da ABI salienta ainda que cada meio e cada veículo tem o seu viés de cobertura. Ele recomenda que o jornal e o rádio não repitam secamente o que o público já viu pela televisão, têm de ser mais criativos, apresentar aquele algo a mais que as câmeras não mostraram ou não puderam mostrar. As revistas, de seu lado, têm que considerar que precisam ir além do que já foi oferecido a cada dia pelos jornais. De modo geral, os meios de comunicação brasileiros têm invejável know-how nessa matéria. “Afinal, temos, desde 1958, mais de meio século de coberturas dessa natureza”, lembra Azêdo.

SOLUÇÕES MÓVEIS INTEGRADAS GANHARÃO MAIS ESPAÇO

Mesmo fora dos sistemas de transmissão, a tecnologia movimentará a Copa da África. Os sistemas de rastreamento geográfico, como o GPS, estarão nas mãos dos turistas em definitivo, dando a eles uma autonomia de circulação jamais vista em eventos

esportivos. O uso da nanotecnologia já começará a ser vista nos smartcards, que identificarão os torcedores e agilizarão a compra de ingressos. Parece ficção, mas ocorrerá o tempo todo na Copa da África. Nas Olimpíadas de Inverno de Vancouver, estas inovações já foram usadas com muito sucesso, explica Ricardo Piccoli, diretor-presidente da Criterium Business Mobile. As empresas de comunicação também serão beneficiadas pelas tecnologias. A Cisco e a ESPN anunciaram uma parceria para transmissão de eventos – ao vivo e gravações de partidas e entrevistas – da Copa, por meio de uma ferramenta chamada TelePresença, que envia áudio e vídeo em alta definição por meio da infra-estrutura de banda larga da Cisco existente na sede do torneio. Cada unidade do TelePresença custará US$ 80 mil. E uma estimativa inicial da ESPN prevê que a economia será de US$ 25 mil por entrevista. Também caracterizará esta Copa a transmissão dos jogos ao vivo pela internet. Nos sites das empresas de comunicação como a Rede Globo e a Net, será possível assistir ao vivo aos confrontos. “Esta opção deverá ser muito útil no Brasil, já que os jogos ocorrerão no horário de expediente no País; por isso, as empresas estão preparadas para as transmissões online”, observa Eduardo Pelanda, professor de Comunicação Digital da Pucrs. O uso da internet também será disseminado com a implementação do wi-fi nos estádios. Jornal da ABI 356 Julho de 2010

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REFLEXÃO FRANCISCO UCHA

Agosto, desgosto? POR RODOLFO KONDER

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dou a essência da relação entre os seres humanos, bem como da relação entre eles e o planeta Terra. A partir do desenvolvimento da tecnologia atômica, continuar a existir tornou-se uma opção moral diária, já que os homens ganharam condições de eliminar a própria espécie humana – e a vida, em todo o planeta. Um novo desafio e ético surgiu diante dos nossos olhos.

tes macilentos do Holocausto, não nos mostraram somente os barracões acinzentados, as guaritas vazias, os vagões, os trilhos e as pilhas de cadáveres daquele complexo onde 1,5 milhão de pessoas haviam sido massacradas. Mostraram também a face oculta do lagarto, os segredos macabros que se escondem em nossos armários. E a descoberta nos abalou para sempre. Sessenta e tantos anos depois, podemos dizer que estamos sobrevivendo ao desafio nuclear. Mas o racismo, a intolerância, o fanatismo, a crise, o desemprego, o totalitarismo e o patriotismo continuam por aí. O nazismo freqüentemente sai do túmulo para nos assombrar, mesmo que já não disponha da Luftwaffe e das divisões Panzer. Nos cinco continentes, a crise, o medo, as desigualdades, a fome e a violência nos lembram que ainda não nos vacinamos contra nós mesmos. Logo poderemos lançar novas bombas e matar mais inocentes. Logo poderemos reabrir o complexo Auschwitz-Birkenau. Logo – se não agirmos com presteza – poderemos nos ver novamente diante dos nossos próprios demônios. Bertolt Brecht nos advertiu, um dia: “Muito antes de tombarmos em batalhas sem sentido, caminhávamos pelas ruas que ainda existiam, mas nossas mulheres já eram viúvas e nossos filhos já eram órfãos”. Se os alemães estavam mortos antes da chegada de Hitler, talvez todos nós – com nossos preconceitos, nosso radicalismo, nossa intolerância – também já estamos mortos. ELIANE SOARES

uitos anos atrás, no mês de agosto, a História registrou duas explosões atômicas, em Hiroshima e Nagasaki. Em poucos segundos, mais de 90 mil pessoas morreram, em Hiroshima. Em Nagasaki, outras 70 mil também desapareceram, num piscar de olhos. Até hoje, agosto tem o cheiro dos corpos carbonizados. Naquela ocasião, meu pai, Valério Konder, comentou que as explosões eram “um preço terrível”, mas significavam o fim da guerra. Meu avô materno, José Maria Coelho, discordou: nada justificava a morte de tantos inocentes. Os dois eram antinazistas, médicos e humanistas. Menino de sete anos, achei que meu pai estava certo (sempre achava isso). Hoje, vejo a observação de meu avô com mais admiração e respeito. A 2ª Guerra Mundial, consequência inevitável da ascensão do nazismo, na Alemanha, durou seis anos e custou 50 milhões de vidas. Significou campos de extermínio, novas formas de tortura e o fim da população judaica da Europa. O austríaco Adolf Hitler, apoiado no racismo e na intolerância, valeu-se de um tempo de crise e desemprego para chegar ao poder, como “o salvador da pátria”. Depois, formou o chamado eixo com a Itália fascista e o Japão militarista, para dominar o mundo e impor uma nova ordem, por um período mínimo de mil anos. Morreu enlouquecido e só, no seu bunker, em Berlim, seis anos após a invasão da Polônia e a deflagração do conflito. A Itália havia sido libertada pelas tropas aliadas e logo o Japão se renderia, sob o impacto das explosões nucleares. Ao revelar o poder devastador das novas armas, a 2ª Guerra mu-

Além disso, aquela guerra mundial abriu um enorme alçapão, por onde emergiram os fantasmas, os monstros e os demônios que ainda nos espreitam, abrigados em nossa sombra. Quando os soldados russos abriram os portões de Auschwitz para liberar os sobreviven-

Rodolfo Konder, jornalista e escritor, é membro do Conselho Deliberativo da ABI e Diretor da Representação da ABI em São Paulo. É membro também do Conselho Municipal de Educação da capital paulista.

POSSE

Jakobskind assume no Conselho Curador da TV Pública O jornalista Mário Augusto Jakobskind foi empossado em 1º de junho, na sede da instituição, no Rio de Janeiro, como representante da ABI no Conselho Curador da Empresa Brasil de ComunicaçõesEBC, responsável pela TV Pública. Mário foi nomeado juntamente com o engenheiro elétrico Takashi pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva em decreto publicado no dia 28 de maio, o qual designou também para o Conselho a jornalista Ana Veloso, a ser empossada posteriormente. Os nomes foram propostos por instituições da sociedade civil, conforme estabelece a lei que criou a EBC. Após ser empossado, Mário Augusto Jakobskind ressaltou a importância da presença da ABI no Conselho e assinalou que “a consolidação e o fortalecimento da mídia pública é um sonho de várias gerações de jornalistas desde a fundação da ABI até os dias de hoje”. Ele lembrou que o processo de fortalecimento da mídia pública é um dos principais itens da Carta de Cabo Frio, elaborada recentemente em um encontro de jornalistas para tratar da implantação das resoluções do Congresso de Jornalistas do Estado do Rio de Janeiro. O engenheiro Takashi disse que espera contribuir para o êxito do trabalho do Conselho e da EBC. Ele atua no desenvolvimento de tecnologias de telecomunicações na Fundação CPqD, e está engajado em pesquisa prospectiva sobre Internet do Futuro. A Presidente da EBC, Tereza Cruvinel, deu boas-vindas aos novos conselheiros e disse que conta com a experiência de Takashi para desenvolver aplicativos interativos destinados à tv digital. Os dois novos membros do Conselho assumem o lugar de Rosa Magalhães e José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, que encerraram seus mandatos. (José Reinaldo Marques)


CELEBRAÇÃO

ABI pede reflexões no Dia da Imprensa A ABI divulgou uma saudação especial à comunidade jornalística e aos veículos de comunicação pela passagem do Dia da Imprensa, em 1° de junho, que celebra a fundação do Correio Braziliense por Hipólito da Costa, em 1808, em Portugal. Este foi o primeiro órgão editado sob a ótica do interesse nacional brasileiro, então subordinado ao domínio da Coroa portuguesa. A data, diz a ABI, enseja reflexões sobre o papel que a imprensa e os meios de comunicação em geral exercem na vida do País e as condições em que estes atuam. A saudação da ABI foi feita na seguinte declaração: “A Associação Brasileira de Imprensa dirige uma saudação especial à comunidade jornalística e aos veículos de comunicação pela passagem, neste 1º de junho, do Dia da Imprensa, que celebra a fundação pelo jornalista gaúcho Hipólito da Costa, em 1808, em Portugal, do Correio Braziliense, o primeiro órgão editado sob a ótica do interesse nacional brasileiro, então subordinado ao domínio da Coroa portuguesa.

Além de se dedicar à causa da emancipação do Brasil e profetizar que este, algum dia, poderia rivalizar com as principais potências do mundo, Hipólito da Costa definiu um caminho não apenas para a imprensa que ele inaugurava, mas também para a vida social, como ao proclamar que “o primeiro dever do homem em sociedade é ser útil aos membros dela”, como destacou o jornalista Alberto Dines na recente edição de sua clássica obra O Papel do Jornal. As palavras de Hipólito constituem um estímulo a reflexões sobre questões hoje presentes no campo da comunicação no País, como as condições em que se desenvolvem as atividades jornalísticas, tanto sob o aspecto legal e institucional como sob o ângulo das garantias concretas que se oferecem ao exercício do jornalismo. Embora sob o pálio das instituições democráticas estabelecidas pela Constituição de 5 de outubro de 1988, a liberdade de informação e a liberdade de expressão são agredidas atualmente por decisões que ferem a Carta

RETRATO DE HIPÓLITO JOSÉ DA COSTA. ANÔNIMO, SÉCULO XIX. ACERVO ARTÍSTICO DO MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES - PALÁCIO ITAMARATY.

Magna, como demonstram a continuada censura prévia ao jornal O Estado de S. Paulo, que já se estende por mais de 300 dias, e a recente imposição de restrição do mesmo teor e gravidade ao jornal Diário do Grande ABC. Os registros de manifestações hostis à liberdade de imprensa incluem a decisão do Supremo Tribunal Federal que cassou a

obrigatoriedade da conclusão do curso de Jornalismo ou Comunicação Social para o exercício da profissão de jornalista, liberalidade que compromete a qualidade técnica, cultural e ética daqueles que têm o pesado e honroso encargo de dotar o conjunto da sociedade de informações que lhe permitam exercer com lucidez e consciência os direitos de cidadania. Ao referir essas questões, dentre muitas outras que estão a demandar reflexões do mundo profissional, a ABI pretende mais do que suscitar debate meramente acadêmico. É seu propósito sobretudo contribuir, como vem fazendo, para ampliar e consolidar as ações que as instituições de jornalistas promovem em todo o País visando à preservação ou restauração de bens jurídicos que lhes estão sendo arrebatados. Assim fazendo, os jornalistas honrarão o legado que o visionário Hipólito José da Costa Furtado de Mendonça lhes transmitiu há mais de 200 anos. Rio de Janeiro, 1º de junho de 2010. (a) Maurício Azêdo, Presidente.”

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Aconteceu na ABI CARLOS MAGNO

Sob as vistas do Vice-Governador Pezão (segundo à direita), Cabral e o Ministro Paulo Vanucchi se cumprimentam após a assinatura de vários atos em defesa dos direitos humanos, entre os quais a adesão do Estado ao plano nacional de combate à tortura.

Direitos humanos ganham conjunto de ações no RJ Entre elas, a criação de um comitê para a erradicação do trabalho escravo. POR CLAUDIA S OUZA A Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro promoveu a reparação simbólica de 150 ex-presos políticos do regime militar durante o evento Direitos Humanos no Rio de Janeiro: construir a memória para resguardar o futuro realizado no Auditório Oscar Guanabarino da ABI no dia 30 de junho. Durante o ato foi anunciado um conjunto de sete ações que consolidam a agenda dos direitos humanos no Estado. Organizada pela Secretaria, a solenidade marcou a semana pelo Dia Mundial de Combate à Tortura, 26 de junho. Do ato constou a assinatura pelo Governador Sérgio Cabral do decreto de criação do Comitê Estadual de Erradicação do Trabalho Escravo e das leis que criam o Comitê Estadual para a Prevenção e Combate à Tortura e o Conselho Estadual dos Direitos Humanos. Também foi lançado o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, cujo objetivo é proteger ativistas ameaçados por sua atuação na área. Foi também assinado um convênio com a Universidade Federal do Rio de Janeiro para a revisão do Plano Estadual de Direitos Humanos, através do qual serão estabelecidas diretrizes e uma agenda efetiva para o setor. Foi anunciada então a realização de quatro seminários regionais dedicados à 14 Jornal da ABI 356 Julho de 2010

construção de diretrizes e metas para promoção da igualdade racial e étnica. Participaram da Mesa da concorrida sessão o Ministro Paulo Vannuchi, da Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência da República; Tereza Souza, Ministra em exercício da Secretaria de Política para as Mulheres; o Deputado Jorge Picciani, Presidente da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro-Alerj; Ricardo Henriques, Secretário de Assistência Social e Direitos Humanos; Maurício Azêdo, Presidente da ABI; Felipe Gonzáles, Presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos; Wadih Damous, Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil-OAB, Seccional do Estado do Rio de Janeiro; José Raimundo Batista Moreira, Defensor Público Geral do Estado do Rio de Janeiro; Regis Fichtner, Secretário de Estado da Casa Civil; Luiz Fernando de Souza (Pezão), Vice-Governador do Estado do Rio de Janeiro. A atriz e cantora Zezé Mota, Superintendente de Igualdade Racial da Secretaria de Direitos Humanos, conduziu a solenidade e pediu um minuto de silêncio em memória dos anistiados políticos. O Presidente da ABI, Maurício Azêdo, abriu o evento destacando o papel da Casa na defesa das liberdades: “Quero dizer que a ABI se sente muito confortada em poder abrigar esta

reunião, que é um momento de afirmação dos valores da democracia pelos quais tanto lutamos ao longo do período 1964-1985”. Homenagem O papel da ABI na luta em defesa do Estado Democrático de Direito também foi destacado pelo Secretário Ricardo Henriques: “Na Semana do Dia Internacional de Combate à Tortura, fizemos tudo para realizar este ato na ABI, símbolo do passado e do presente da democracia. Esta Casa permite o reconhecimento do passado e ao mesmo tempo uma miragem sólida em direção ao futuro. Gostaríamos de homenagear os anistiados políticos presentes em corpo e espírito e a todos os seus familiares, e cumprimentar a todos nas pessoas do professor Emir Amed e da cineasta Lúcia Murat.” Henriques disse que o Rio de Janeiro foi colocado na fronteira dos direitos humanos no País e ressaltou que o momento concretiza uma agenda urgente e efetiva nesse campo. “Os temas têm grande significação para todos os indivíduos aqui representados e que tiveram seus direitos violados sob as condições mais degradantes de tortura e de trabalho escravo”, disse. Ele enumerou em seguida diversas ações que estão sendo efetivadas e as instituições que são parceiras do Governo do Estado:

“Temos um conjunto de agendas contempladas em parceria com a Universidade do Estado do Rio de JaneiroUerj, como o projeto de revisão do Plano Estadual de Direitos Humanos. O objetivo é atualizá-lo e colocá-lo em sintonia com o PNDH 3. Estamos relançando, em conjunto com a Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ, o Plano Estadual de Igualdade Racial. Inauguramos neste momento, juntamente com a Defensoria Pública, o Programa de Defensores de Direitos Humanos que se soma aos Programas de Proteção de Testemunhas e de Vítimas Ameaçadas e de Proteção de Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte.” Na sequência o Governador Sérgio Cabral – em conjunto com o Ministro Paulo Vanucchi e o Secretário de Estado Ricardo Henriques – assinou a adesão do Governo do Estado do Rio de Janeiro ao Plano Nacional de Ações Integradas de Prevenção e Combate à Tortura e o Termo de Cooperação com a Defensoria Pública para a implantação do Programa Estadual de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos. No mesmo ato Sérgio Cabral sancionou o projeto de lei que reordena o Conselho Estadual de Direitos Humanos; assinou o decreto que cria o Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura e o decreto de criação do Comitê Estadual pela Erradicação do Trabalho Escravo.


CARLOS MAGNO

Direitos resguardados Jorge Picciani, Presidente da Alerj, aplaudiu as iniciativas: “Este Parlamento foi capaz de anistiar todos aqueles que foram perseguidos. Não há no Parlamento do Rio de Janeiro um funcionário ou parlamentar que, caçado por defender a liberdade e a democracia, não teve os seus direitos resguardados, garantidos e anistiados. Fizemos isto sob a caneta de Marcelo Cerqueira, exProcurador-Geral da Alerj, de tantas lutas em defesa das liberdades e contra a ditadura. Um dos primeiros atos foi a anistia do socialista Jamil Haddad. Hoje, quando o Governador sanciona a lei de autoria do Deputado Alessandro Mólon e do Deputado Gilberto Palmares e cria o Comitê, que, na verdade, é o controle social, de autoria dos Deputados Marcelo Freixo, Luiz Paulo Corrêa da Rocha e da minha autoria, digo que o Rio de Janeiro está no caminho para manter a democracia, não permitindo retrocessos, violência, tortura, ou qualquer situação degradante contra o ser humano. Com grande alegria participo deste ato nesta Casa histórica, a ABI”. O Presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Felipe Gonzáles, também destacou a relevância da nova agenda dos direitos humanos no Estado do Rio de Janeiro e informou que representantes da Comissão Interamericana de Direitos Humanos estão em visita ao Brasil para avaliar a situação da violência policial, racismo e segurança no País e apoiar ações para o fortalecimento e proteção

A Ministra Tereza Souza e o Governador Sérgio Cabral: pela igualdade de direitos.

dos direitos humanos. Ressaltando a importância de participar do ato na ABI, Gonzáles alertou que “será primordial que as iniciativas estejam interligadas nos níveis estadual e federal, como estão sendo aqui anunciadas”. Ao final, felicitou o Rio de Janeiro pela iniciativa e também as vítimas da ditadura e seus familiares pela perseverança e a luta sem trégua para alcançar a democracia. Dando continuidade ao evento, Sérgio Cabral, Paulo Vanucchi e Ricardo Henriques fizeram a entrega do pedi-

do oficial de desculpas do Estado do Rio de Janeiro contra os atos praticados durante a ditadura militar a Jussara Ribeiro de Oliveira Batista, Nilson Venâncio e Aquiles Ferrari. “Com alegria sanciono o projeto de lei que remodela o Conselho Estadual dos Direitos Humanos. Agradeço a oportunidade de assinar o Convênio do Plano Estadual dos Direitos Humanos, a elaboração do Plano de Igualdade Racial e o decreto do Comitê de Erradicação do Trabalho Escravo. Segundo o Ministério Público do Trabalho,

o Rio de Janeiro foi o Estado campeão em 2009 de casos de trabalhadores resgatados do trabalho escravo. Temos um papel importante neste sentido, em especial no Norte e no Noroeste Fluminense, onde há muito atraso nesta área. É importante também trazer os defensores para a pauta dos Direitos Humanos. O projeto de lei que cria o Comitê Estadual do Combate à Tortura tem o papel fundamental para a implementação de políticas públicas neste campo. Estabelecemos ainda a adesão do Estado ao Plano Nacional e a execução da Lei nº 3.744/ 2001, do Deputado Carlos Minc, que garante aos ex-presos políticos do Rio de Janeiro o direito à reparação do Estado e o pagamento de uma indenização”, disse Cabral. O Governador apontou também a necessidade de ampliar a parceria com a sociedade para o avanço das iniciativas: “Ainda há muitas diferenças sociais, desigualdades, discriminação racial, sexual, religiosa, má conduta por parte da sociedade, de servidores públicos, do empresariado. Tudo isto só poderá ser enfrentado com seriedade e políticas públicas consistentes com o Estado, inclusive reconhecendo os seus erros. Assim sendo, na qualidade de Governador do Rio de Janeiro, apresento a todos os anistiados políticos e aos seus familiares presentes – e aqui faço um parêntesis de quem aos sete anos de idade visitou o pai na cadeia na Vila Militar – o pedido de desculpas do Estado do Rio de Janeiro”.

“Para que nunca mais se esqueça” A palavra das vítimas da ditadura militar. Em nome dos 150 anistiados políticos na cerimônia, Aquiles Ferrari discursou representando o Fórum de Reparação e Memória do Estado do Rio de Janeiro, a Associação dos Anistiados da Petrobras, a Unidade de Mobilização Nacional pela Anistia, a Associação Nacional dos Anistiados Políticos, Aposentados e Pensionistas, Associação dos Anistiados Políticos, a Associação dos Trabalhadores Aposentados e Pensionistas Anistiados da Petrobras e Subsidiárias, a Associação de Anistiados do Banco do Brasil, a Associação dos Metroviários Aposentados e Pensionistas, o Sindicato dos Metroviários do Estado do Rio de Janeiro, o Fórum dos Operários Navais e Metalúrgicos, o Movimento Democrático pela Anistia e Cidadania, o Movimento Nacional dos Direitos Humanos e a Associação dos Militares Pró-Anistia: “O que nos levou a criar esta rede de entidades foi a luta pela efetivação do direito à reparação econômica simbólica prevista na Lei nº 3.744/2001, e

pela reinstalação da Comissão Estadual de Reparação, que havia, em dezembro de 2006, encerrado seu prazo de existência sem ter examinado 175 requerimentos e recursos pendentes. Ao longo destes anos a rede de reparação ampliou sua agenda e a luta pela reparação integral; reparação no sentido amplo do termo, pela verdade, pela memória, pela justiça. Por uma reparação mais justa para os que viveram a barbárie da tortura e que tiveram seus companheiros desaparecidos e mortos. Lutamos para que a sociedade conheça o que aconteceu na época da ditadura e para que nunca mais se esqueça. Lutamos para que os responsáveis pelos atos de violência do Estado sejam identificados e julgados. Vivemos na carne a dolorosa experiência da tortura. Milhares foram presos, perseguidos; outros viveram no exílio, foram assassinados. Famílias e amigos ainda lutam para conseguir os restos mortais dos desaparecidos. Tivemos os nossos projetos de vida interrompidos. Não quere-

mos que esta situação volte a se repetir. Hoje, 150 de nossos companheiros estão recebendo a compensação econômica simbólica. Para muitos, decorrido quase meio século de espera longa demais. Cerca de um terço faleceu, outros adoeceram. Somos uma raça em extinção. Até o momento, foram julgados 1.010 dos 1.115 processos. Dos cerca de 920 deferidos, apenas 17% receberam a reparação até a data de hoje, quando mais 150 estão sendo contemplados”. Em vídeo, depoimentos Após o aplaudido discurso de Aquiles Ferrari, a cerimônia prosseguiu com a exibição do vídeo Memória e Direitos Humanos, realizado pela Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos e pelo Núcleo de Direitos Humanos da Pontifícia Universidade Católica do Rio de JaneiroPuc-RJ. O trabalho reúne depoimentos de presos políticos e de seus parentes, como Maria Vitória, irmã do Sargento Lucas; Iara Alves, irmã do Sar-

gento Alves; João Luiz Azeredo Rodrigues e Jayme Henrique de Azevedo Rodrigues, filhos do Embaixador Jaime de Azevedo Rodrigues; a cineasta Lucia Murat, Emir Ahmed, Sueli Mendes, filha de José Mendes de Sá Roriz. No encerramento do encontro, o Ministro Vannuchi ressaltou a relevância da consolidação de ações pelos direitos humanos: “Hoje se reúnem aqui inúmeros eventos do Legislativo e do Executivo, com presença de organismos do Judiciário para juntos darmos mais um passo decisivo neste local simbólico, que é a ABI, onde na próxima semana estaremos homenageando Mário Alves, jornalista, comunista, assassinado sob tortura em janeiro de 1970, no Doi-Codi. As ações assinadas aqui, com muito destaque para a revisão com a UFRJ do Programa Estadual de Direitos Humanos, representam a retomada do secular, talvez milenar, sonho de concretização dos sentidos de liberdade, igualdade e solidariedade. Parabéns ao Rio de Janeiro”.

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Aconteceu na ABI

Núcleo da UFRJ relata o que faz A convite do Conselho Deliberativo, professores da UFRJ expõem suas atividades no campo dos direitos humanos. POR CLAUDIA S OUZA O Conselho Deliberativo da ABI recebeu no dia 29 de junho a visita de representantes do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos-Nepp-DH, órgão suplementar do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ. O encontro contou com a presença da Professora Mariléa Venâncio Porfírio, Diretora do Núcleo, de seus colegas Ricardo Rezende e Vantuil Pereira e da militante comunitária Eliana Moura, Coordenadores do Nepp-DH. O objetivo do encontro foi apresentar aos Conselheiros da ABI os projetos e atividades acadêmicas relacionadas aos direitos humanos, visando à efetivação de parcerias nesse campo. “Esta Casa é de grande importância para a História do País e também para mim, que já participei de várias atividades aqui”, disse Mariléa Venâncio na abertura da reunião. A Professora detalhou o trabalho desenvolvido pelo Núcleo, criado em 2006, e o vínculo entre as ações e o setor social: “O Nepp-DH se dirige à formação de alunos de todas as áreas que atuam especialmente nos projetos de pesquisa e de extensão. O Núcleo busca a temática das políticas públicas em direitos

humanos como subsídio constante para as análises não só de alunos, docentes e pesquisadores da UFRJ, mas de toda a sociedade. Entendemos que a Universidade tem que estar colada na sociedade”. O Nepp-DH promove diversas iniciativas e atividades, como o Grupo de Pesquisa sobre Trabalho Escravo Contemporâneo, o Observatório da Laicidade do Estado, o Observatório da Lei Maria da Penha, o Grupo de Estudos de Sociedade Contemporânea, o Observatório da Ouvidoria e Democracia Participativa. O Núcleo também oferece cursos como o intitulado Teorias Sociais em Produção de Conhecimento, direcionado para os integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem TerraMST e ministrado nos meses de fevereiro e julho. Destacando que é muito importante o envolvimento da Universidade com movimentos sociais, disse a Professora Mariléa que os organizadores do MST participam desse curso durante 15 dias: “Eles se deslocam dos seus vários assentamentos para o campus da UFRJ na Praia Vermelha, Zona Sul do Rio. A grade é elaborada por professores da UFRJ e de outras universidades. Após seis semestres, o aluno elabora a monografia sob a orientação de um professor ou aluno do doutorado”.

Outro projeto citado foi o Centro de Referência para Mulher da MaréCRMM, desenvolvido na Vila do João, no Complexo da Maré, para atender às mulheres vítimas de violência. “A violência perpetrada contra mulheres em todo o mundo não é diferente no Brasil. A punição do agressor não é condição suficiente para que experimentemos formas mais justas e voluntárias entre homens e mulheres. O objetivo fundamental do Centro é acolher e prestar atendimento psicológico e jurídico para as mulheres violentadas”, explicou a Coordenadora do CRMM, Eliana Moura. Valorização da mulher Também são oferecidas atividades culturais, de lazer e de valorização da mulher, como o programa Oficinas Sociais: “Este projeto consiste em um trabalho de corpo para fazer que a mente assuma o sofrimento do corpo e possa falar. As estagiárias dos cursos de Serviço Social e Direito observam as reações das mulheres e buscam o atendimento adequado. As oficinas são estratégicas para nos garantir que as mulheres que entram naquele local não tenham a imagem de que ali é um lugar para mulheres que apanham, e sim um Centro de Referência para Mulheres, onde

se faz artesanato, teatro, dança, literatura. Já foram publicados 13 livros”. Eliana Moura informou que a oficina “Cozinhando com Arte” é outro bom exemplo: “Direcionada para a área de educação alimentar, ela promove a inserção no mercado de trabalho. Há ainda trabalhos de capacitação de agentes comunitários em saúde, em direitos humanos e em violência de gênero. Os agentes acompanham um conjunto de famílias e aprendem a reconhecer situações de violência, como fazer o primeiro acolhimento e encaminhar para o CRMM”. Apesar do grande retorno social, revelou Eliana Moura, os gestores do projeto encontram algumas dificuldades em mantê-lo no local. “É a lógica de funcionamento do bairro. A fixação de profissionais é complicada devido à situação de violência, vista em tantas comunidades carentes do Rio. Além do que há um imaginário muito forte de que ali não se encontra segurança nenhuma e os profissionais acabam desistindo de ficar no projeto, ou não chegam nem a conhecê-lo”. Na avaliação de Mariléa Venâncio, a universidade “não vê aquele local como uma área de risco para os profissionais, porque há uma segurança garantida a eles”: “Nunca ocorreu de fato nada com o Centro”.

O trabalho escravo, hoje, em 700 pastas Coordenador do grupo de pesquisa sobre Trabalho Escravo Contemporâneo, criado em 2003 na UFRJ com o apoio da Fundação Ford, o Professor Ricardo Rezende salientou a importância dos estudos nessa área para a sociedade brasileira: “O grupo reúne um acervo de milhares de documentos relativos ao trabalho escravo no Brasil e no mundo, principalmente no Sul do Pará. São mais de 700 pastas com informações sobre trabalho escravo e propriedades envolvidas com trabalho escravo, algumas importantes e de grupos empresariais expressivos. É um material precioso para a pesquisa e a recomposição da História deste País, onde o Poder Público financiou não só a concentração de terra, mas a destruição do meio ambiente e as relações de trabalho consideradas arcaicas, implementadas pelos novos grupos empresariais brasileiros, principalmente na pecuária.” Revelou o Professor Ricardo Rezende que há pesquisas de campo subsidiadas pela Organização Internacional do Trabalho, que participou da elabo16 Jornal da ABI 356 Julho de 2010

ração do I e do II Plano Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo. O grupo elaborou também um projeto de extensão realizado em escolas de ensino médio sobre o trabalho escravo rural e urbano. “É muito comum encontrarmos alunos que dizem: Eu sobrevivi ao trabalho escravo”, contou o coordenador, que aplaudiu a contribuição da imprensa para os avanços no setor. “A ABI foi muito importante na luta pela erradicação do trabalho escravo e o papel dos jornalistas também, inclusive para a construção da categoria trabalho escravo. A Universidade demorou muito a utilizar a categoria, mas a imprensa, desde os anos 70, a utiliza com muita insistência. No levantamento que fizemos sobre a utilização da categoria, é surpreendente como mais de 90% da constatação do problema foram reconhecidos pela imprensa como trabalho escravo. Já estive na ABI diversas vezes no passado para reuniões sobre conflitos fundiários e perseguições.” Após a apresentação dos convidados, o Presidente da Comissão de De-

fesa da Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos da ABI, Lênin Novaes, discorreu sobre a viabilidade de uma parceria entre a Associação e a UFRJ: “A partir deste momento, aí vai um convite para que a ABI, juntamente com o Núcleo da UFRJ, possa produzir uma ampla discussão na sociedade, em colaboração com a Comissão de Direitos Humanos da OAB e a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa-Alerj, para, quem sabe, produzirmos a Declaração dos Direitos Humanos no Estado do Rio de Janeiro”. Ao final do encontro, o Presidente da ABI, Maurício Azêdo, destacou a relevância do Núcleo e a trajetória de seus membros presentes à reunião: “O companheiro Lênin já nos tinha falado sobre a importância da intervenção que a Professora Mariléa faria nesta sessão do Conselho. Eu já estava empenhado não só em receber os conhecimentos sobre o Núcleo de Políticas Públicas relacionadas aos Direitos Humanos mas também em prestar as homenagens da Casa à Professora Ma-

riléa, ao Professor Ricardo Rezende, ao Professor Vantuil Pereira e à nossa destacada militante social Eliana Moura, que trabalha numa das áreas mais importantes do ponto de vista social e do ponto de vista da ocorrência de lesões aos direitos humanos, que é o Complexo da Maré”. “Houve um momento em que o Professor Ricardo Rezende esteve ameaçado de morte em uma área do Norte do País em que as ameaças geralmente são cumpridas e ficam impunes, como o massacre ocorrido em Eldorado dos Carajás, que há 20 anos não conduziu à prisão dos matadores de quase duas dezenas de sem-terras, de trabalhadores rurais. Na época das ameaças mais graves eu era vereador à Câmara Municipal do Rio de Janeiro, que, através de sua maioria progressista na época, tomou posição em defesa dos direitos pessoais e da vida do Professor Ricardo Rezende, a quem presto a minha homenagem pessoal e a homenagem da ABI. Recebam todos a saudação muito carinhosa da Associação Brasileira de Imprensa”.


A ABI inaugura o Memorial Mário Alves Jornalista, preso em janeiro de 1970, ele foi assassinado no Doi-Codi do antigo I Exército, no Rio. Seu corpo jamais foi encontrado. POR JOSÉ REINALDO M ARQUES

Um combatente libertário

Coube ao Presidente da ABI fazer a abertura da solenidade, que teve início, como ocorre em todos os atos cívicos realizados na Casa, com a execução do Hino Nacional Brasileiro. Logo após, o Presidente explicou à platéia o objetivo da cerimônia, que seria realizada a seguir no saguão do Auditório da ABI, “cenário de grandes lutas cívicas do povo brasileiro”: “A ABI se sente honrada com o convite que lhe fez a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, através de seu atuante Ministro Paulo Vannuchi, para sediar esta homenagem, que enche de contentamento aqueles que tiveram o privilégio de acompanhar, diretamente ou por informações, a trajetória de Mário Alves na vida política e cultural do País.” Em nome da Diretoria da ABI, Maurício Azêdo saudou os que prestigiaram com a sua presença o ato em memória e homenagem àquele que ele classificou

como “um dos maiores combatentes libertários que o Brasil já possuiu”. Em conversa com os jornalistas que fizeram a cobertura do evento, disse Maurício: “Mário Alves é merecedor de todas as homenagens, pelo exemplo que deu de militância social contra a ditadura e de grande intelectual. Foi diretor do jornal do Partidão-PCB, Novos Rumos, no qual se destacou pela capacidade de refletir sobre a realidade brasileira e de formular propostas.” A espera, há 40 anos

ALCYR CAVALCANTI

“Eu sei que meu pai foi trucidado, mas em sonhos imagino que ele está vivo em algum lugar”, disse a filha de Mário Alves, Lúcia Caldas, em comovente depoimento no ato na ABI. Ao seu lado, Ricardo Henriques, Secretário de Direitos Humanos do Estado do Rio.

REPRODUÇÃO

“Mário Alves, presente!” A saudação foi feita em coro pelos participantes da cerimônia de inauguração do Memorial em homenagem ao jornalista Mário Alves de Souza Vieira, preso em 16 de janeiro de 1970 por agentes da ditadura militar perto de sua casa, na Abolição, Zona Norte do Rio. Levado para o quartel do Doi-Codi na Rua Barão de Mesquita, Mário Alves nunca mais foi visto. O evento foi realizado na noite de 6 de julho, no Edifício Herbert Moses, sede da ABI, e ocupou o Salão Nobre e o Auditório Oscar Guanabarino, localizados no 9º andar da Associação. O ato de inauguração do Memorial foi precedido por uma manifestação de resgate da memória do jornalista, que contou com a presença da filha do homenageado, Lúcia Caldas; do Ministro Chefe da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, Paulo Vannuchi; do Secretário de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos do Rio de Janeiro, Ricardo Henriques; do Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil-OAB-RJ, Wadih Damous; e da advogada Ana Muller, representante do Fórum de Reparação e Memória do Rio de Janeiro. Participaram também da Mesa da sessão especial a Desembargadora Tânia Albernaz de Melo Bastos Heine, responsável em 1981 pela corajosa sentença que responsabilizou a União pelo desaparecimento de Mário Alves, cujo corpo nunca foi encontrado; a Diretora do Colégio Estadual Mário Alves, Professora Flávia Raquel Crespo de Jesus; o Professor Emir Amed, também preso e torturado no Doi-Codi; e Ana Miranda, membro do Fórum de Reparação e Memória do Rio de Janeiro.

Foram convidados também para fazer parte da Mesa os Conselheiros da ABI Sérgio Caldieri. Primeiro Secretário da Mesa do Conselho Deliberativo, e Lênin Novaes, Presidente da Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos da Casa; Carlos Eduardo Fayal de Lira, ex-membro da Ação Libertadora Nacional-ALN, organização que lutou contra a ditadura militar, e ex-Deputado à Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (1983-1987); Modesto da Silveira, advogado de presos políticos do regime militar, entre os quais o próprio Mário Alves; José Carlos Tórtima, ex-Defensor Público Geral do Estado do Rio de Janeiro; Deputado federal Jorge Bittar (PT-RJ) e ex-líder estudantil e ex-Deputado Vladimir Palmeira.

Em resposta a um repórter que cobria o evento, Lúcia Caldas disse que sabe das circunstâncias em que seu pai foi preso e torturado e desapareceu no Doi-Codi, mas que ainda sonha com a possibilidade de encontrá-lo: “Eu não sepultei o meu pai, o que é muito difícil para os familiares de qualquer desaparecido político. No plano consciente, sei que ele foi trucidado. Mas em sonhos, me lembro de meu pai e penso se ele não estaria vivo, em algum lugar. É uma esperança que continua aqui dentro.” Lúcia Caldas festejou a presença na cerimônia dos estudantes do Colégio estadual Mário Alves, localizado no Município de Belford Roxo, na Baixada Fluminense: “Fiquei muito orgulhosa de vocês terem vindo e quero conhecer a escola. Espero que em outras homenagens vocês também compareçam, porque temos outros companheiros que merecem essas cerimônias e eu sonho que os jovens tenham mais participações nesses atos.” Conteúdo de futuro

Convidado a se pronunciar, o Secretário de Direitos Humanos Ricardo Henriques, que representava o Governador Sérgio Cabral, falou sobre a representa-

tividade que o Memorial terá para as gerações futuras. Pela sua força política, disse, manifestada na trajetória de vida de Mário Alves e todo o seu sofrimento nas masmorras da ditadura do golpe de 1964, “o ato em homenagem ao jornalista deveria despertar a atenção da população mais jovem, que felizmente não viveu aqueles dias, mas deveria refletir sobre os momentos de horror ”: “O momento nos traz uma enorme emoção, mas expressa, sobretudo, a homenagem à trajetória de vida, à dignidade exemplar de Mário Alves. Este ato exala, entre outros, o seu momento dramático horripilante de tortura e morte no cárcere da Barão de Mesquita, mas a força desse Memorial, do ponto de vista do Governo, sobretudo sob o âmbito das políticas públicas, tem um conteúdo de futuro.” Disse o Secretário que o Governo do Estado do Rio reconhece a força política de Mário Alves, “um sinal para a juventude”. Ele ressaltou a capacidade que a homenagem a Mário Alves tem de deixar claro, para os que não viveram o período da ditadura militar, que “é absolutamente fundamental se enraizar nessa memória como modo de se projetar ao futuro em direção a uma sociedade não só mais justa e solidária, mas sobretudo uma nação que é capaz de aprender com a sua História que pode se transformar”. Dirigindo-se ao Presidente da ABI, disse o Secretário: “O Memorial erguido nesta Casa é o sinal de que a partir do olhar profundo e sóbrio sobre a nossa História somos capazes de redesenhar esse futuro, dizer que o País rejeita de forma veemente aquele abjeto período.” Voltando-se outra vez para a platéia, o Secretário Ricardo Henriques concluiu: “Este Memorial tem um conteúdo de fraternidade, que nós entendemos que é muito expressivo da sua força política (de Mário Alves). É um sinal para a nossa juventude, tão fundamental que nos permite projetar o futuro de uma sociedade mais justa e igualitária. Redesenhá-la com um novo olhar de que podemos construir um País mais democrático e reformador.” Testemunhos da tortura

Em seguida, a advogada Ana Müller felicitou a ABI por ter “reaberto as suas portas para homenagear Mário Alves”. Ela foi uma das advogadas que acionaram a União na Justiça, responsabilizando-a pelo desaparecimento do jornalista. Ana é uma das dirigentes do Fórum de Reparação e Memória do Rio de Janeiro, “uma entidade em formação que luta pelo resgate da memória das lutas recentes no País”: “Com muita honra fui escolhida pela família de Mário Alves para compor esta Jornal da ABI 356 Julho de 2010

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Aconteceu na ABI ços para localizá-lo, denunciando em todas as instâncias possíveis, junto às autoridades, o fato testemunhado pelos companheiros que tinham sido presos com o jornalista: “Naquele momento selamos um compromisso de reunir dados para ingressar na Justiça com um processo que condenasse a ditadura pela atrocidade cometida.” Logo que deixaram a prisão cada uma das testemunhas fez um depoimento por escrito. Esse conjunto de relatos foi registrado na OAB-RJ como uma forma de preservação da prova. Em 1979, após a anistia, foi feita a consignação dos depoimentos perante a Justiça Federal, de forma cautelar, porque se temia que as testemunhas pudessem sofrer novas prisões ou atentados. Afinal, eles estavam prestando depoimentos sobre um fato que o Governo militar procurava ocultar. Em seguida, foi interposta a ação principal, de cunho declaratório, tendo à frente os advogados Arthur Lavigne, Ana Muller e Abigail Paranhos. Revelou Ana Müller que na ocasião a família de Mário Alves queria apenas a condenação na Justiça, não tinha intenção de outras interpretações que não fosse a busca da verdade e a localização dos restos mortais do desaparecido, para dar-lhe a merecida sepultura. Ela frisou que o contexto da ação era tratado pela União como uma “obra de ficção elaborada por malfeitores na intenção de desgastar o Governo”, mas aos poucos o caso foi se tornando uma realidade: “Deixou de ser uma estória para fazer parte da triste e gloriosa História recente deste País, que foi escrita com sangue e lágrimas e precisa ser recontada, para que não voltem a acontecer as atrocidades cometidas contra brasileiros que ousaram resistir ao arbítrio e à prepotência; dando suas vidas para que este País fosse reconhecido como nação soberana e democrática”, afirmou. O quadro começou a mudar quando “a jovem e corajosa” Juíza Tânia Albernaz de Melo Bastos Heine decretou a primeira sentença condenatória da União que reconheceu que havia vínculo entre o Estado e as atrocidades praticadas contra Mário Alves e o seu desaparecimento.

JOSÉ REINALDO MARQUES

Mesa, missão que recebo com muito orgulho e gratidão. O Fórum é uma entidade aberta a todos os companheiros que queiram discutir e engrossar a luta pelo resgate da memória das lutas recentes do País, em que nossa geração se engajou por inteiro e tantos companheiros foram presos, torturados, alguns assassinados e tiveram seus corpos ocultados. Muitos exilados, banidos e que hoje mais do que nunca se fazem presentes na luta pela abertura imediata de todos os arquivos da ditadura, pela responsabilização de todos os que cometeram crime contra a Humanidade e defendem a plena implantação do III Programa Nacional de Direitos Humanos.” Ana Müller fez um breve relato sobre a missão que lhe foi designada em relação “ao companheiro Mário Alves”. Contou que em dezembro de 1969 começaram as prisões de membros do Partido Comunista Brasileiro RevolucionárioPCBR, fundado por Mário Alves e dissidentes do PCB; em janeiro de 1970 foram presos alguns dos dirigentes do Partido, entre eles Mário Alves de Souza Vieira. A tortura e a agonia que o jornalista sofreu no cárcere do Doi-Codi do Rio, lembrou, foram testemunhadas por alguns presos, entre os quais Raimundo José Barros Teixeira Mendes, José Carlos Brandão Monteiro, Antônio Carlos Nunes de Carvalho e Manoel João da Silva. Contou Ana Müller que informações sobre a precária situação de Mário Alves foram passadas para fora do Doi-Codi, numa tentativa desesperada de salvar a sua vida. A esposa do jornalista, Dilma, tomou a iniciativa de impetrar um habeas corpus de localização, medida usada para arrancar alguma resposta das autoridades visando a preservar a vida do militante político. A prisão de Mário Alves, as torturas que sofreu e a sua retirada do Doi-Codi foram denunciadas na 3ª Auditoria do Exército, mas a resposta dos representantes da ditadura era sempre a mesma: Mário Alves não se encontrava em nenhuma das dependências militares do Rio, diziam. Ana Muller contou que tanto a esposa, Dilma, quanto a filha de Mário Alves, Lúcia Caldas, não pouparam esfor-

Coube ao Presidente da ABI, a Lúcia Caldas e ao Ministro Paulo Vannuchi descerrar a Bandeira Nacional que cobria a placa do Memorial Mário Alves, localizado no Salão Nobre do Auditório Oscar Guanabarino, cenário das reuniões cívicas realizadas na Casa.

O dilema de uma jovem juíza

ALCYR CAVALCANTI

A inauguração em todo o País de memoriais como o de Mário Alves, disse o Ministro Paulo Vannuchi, representa o empenho do Governo de “quebrar o ciclo da impunidade”.

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Tânia Albernaz de Mello Bastos Heine, desembargadora atualmente aposentada, contou que ingressou na Justiça Federal em 1976. Pouco tempo depois recebeu o processo do caso Mário Alves e viveu um dilema porque o pai tinha sido exilado político no Uruguai de 1964 a 1967 e foi cassado pelo Ato Institucional nº 1; sua irmã também havia sido presa e torturada no Doi-Codi. Ela teve receio de que esses antecedentes a tornassem improcedente, ou seja, na linguagem jurídica, “suspeita” para julgar o processo. Por outro lado, ela considerava que mais do que ninguém poderia aquilatar melhor o que fosse dito no processo, porque tinha conhecimento do que havia ocorrido dentro das prisões e que sempre era negado. Diante disso, resolveu prosseguir e ouvir toda a prova testemunhal. Três coisas eram pedidas no processo: o reconhecimento e a responsabilização da União pelo desaparecimento de Mário Alves e a devolução do seu corpo: “Era a primeira vez que um pedido desses era apreciado pela Justiça. porque o Vladimir Herzog tinha sido classificado como suicídio. Era esta a primeira vez em que não havia um corpo. Era preciso criar esse vínculo, mas não havia provas de como ele tinha sido preso, exceto os depoimentos dos colegas de prisão. A Dra. Tânia Heine disse recordarse de que no momento de lavrar a sentença teve consciência de que esta teria que ser bem fundamentada para que não houvesse a possibilidade de que o caso viesse a ser tachado como revanchismo. Sua sentença foi longa, teve mais de 40 páginas. Com relação à devolução do corpo, contou que chegou a pedir um conselho ao então Desem-

bargador Osni Pereira Duarte, que também tinha sido cassado, pois não via como determinar a devolução se não se sabia o paradeiro do cadáver de Mário Alves, de quem a União sequer reconhecia a existência. Evitou seguir essa linha, porque entendeu que isso “tornaria a sentença inexeqüível”. A Desembargadora afirmou que não tinha como fazer outro caminho. Ela fez questão de lembrar que naquele momento (1981, ano em que a sentença foi decretada) a Lei de Anistia, de 1979, ainda estava engatinhando no País. Assim, seguindo a sua intuição, ela conseguiu que a sentença fosse mantida dentro dos Tribunais superiores: “Eu me sinto hoje realmente muito gratificada de verificar que isso abriu mais uma porta. Naquela época não podíamos imaginar que tempos depois teríamos uma nova Constituição e que muitos dos torturados e exilados viriam a exercer até a Presidência da República. Eu me sinto feliz porque ajudei um pouco a construir esse caminho para a abertura”, declarou a Dra. Tânia Heine sob intensos aplausos da platéia. Um colchão ensangüentado

Outro momento de grande emoção na solenidade foi o depoimento do Professor Emir Amed, que também foi preso e torturado no Doi-Codi, como Mário Alves e outros companheiros de Partido. Ele disse que conheceu Mário Alves primeiramente no PCB, depois como autor, “um literato”, da revista Leitura, ligada ao Partido na época, e também no jornal Novos Rumos, nos anos 60. Nos anos 70, foi preso na mesma época e prisão em que se encontrava o colega do Partidão. Contou Emir Amed que enviou vári-


os comunicados a Brasília querendo ser chamado para contar como morreu Mário Alves. No Doi-Codi foi colocado em várias celas; uma delas, por ironia da ditadura, era chamada de “cela do amor”: “A cela era cor de rosa e escura, dois por dois, com uma luz fluorescente intermitente para que ninguém dormisse. Fechada rigidamente com um portão de metal pesado. Quando em certo momento se acendeu a luz da cela eu me dei conta de que estava em um colchão todo ensangüentado, e meu colega de prisão Alexandre da Silveira me disse que um pouco antes de eu chegar esteve naquele mesmo colchão, coberto de sangue e empalado, o companheiro Mário Alves. Eu não sabia que havia em nossa Pátria o inferno que eu e vários companheiros conhecemos.”

Mário, um lutador precoce Mário Alves nasceu em Sento Sé, Bahia, em 1923. Iniciou sua militância política aos 16 anos e foi um dos fundadores da União dos Estudantes da Bahia-UEB. Formou-se em Letras em Salvador. Ingressou no Partido Comunista em 1939 e foi um dos líderes das mobilizações de agosto de 1942 na capital baiana contra o nazifascismo. Em 1945, passou a integrar o Comitê Estadual na Bahia do PCB, sendo eleito em 1954 para o Comitê Central e alçado à Comissão Executiva em 1957. Dirigiu os jornais do Partido Novos Rumos e Voz Operária. Após abril de 1964, tornou-se um dos líderes da corrente de esquerda do PCB. Foi preso em julho de 1964 no Rio de Janeiro e libertado um ano depois. Em 1966, teve os direitos políticos cassados por dez anos. Em 1968, ao lado de Apolônio de Carvalho, Jacob Gorender e outros membros dissidentes da direção do PCB, fundou o PCBR.

Pelo fim da impunidade

Último componente da Mesa a se pronunciar, antes da cerimônia de inauguração do Memorial, o Ministro Paulo Vannuchi disse que pela sua grandiosidade o evento realizado na ABI deveria ser classificado como uma solenidade de alto astral: “Nosso propósito é fazer deste evento um ato de astral pra cima. A dimensão do Mário Alves que se lembra aqui não é hoje de vítima, mas a do herói vencedor.” O Ministro afirmou que a solenidade em homenagem a Mário Alves era também uma forma de reunir pessoas para somar uma correlação de forças para tornar vencedores os pontos de vista que estavam sendo reiterados e de certa forma resgatados, após um ciclo em que o tema (encontrar o paradeiro dos desaparecidos durante o regime militar) tendia ao esmorecimento, pois envolve divergências no Governo e no Judiciário. Paulo Vannuchi destacou que este era o 21º ato em prol da memória dos ativistas da esquerda que estiveram à frente da vanguarda política brasileira. O Ministro fez questão de ressaltar que as inaugurações de memoriais como o de Mário Alves em todo o País representam o empenho do Governo de “quebrar o ciclo da impunidade”: “Temos o compromisso de multiplicar inaugurações de placas em homenagem a presos políticos desaparecidos e mortos pela ditadura militar”, afirmou. Ao final do discurso do Ministro Paulo Vannuchi, o Presidente da ABI deu por encerrada a sessão solene e convidou todos a se dirigirem ao Salão Nobre, onde seria descerrada a placa do Memorial Mário Alves. Coube ao Ministro, à filha do homenageado e ao Presidente da ABI descerrar a Bandeira do Brasil que cobria o Memorial, confeccionado pelo arquiteto Tiago Balen, do Rio Grande do Sul, e pela artista plástica Cristina Pozzobon, de São Paulo. Abertura ao público

O Memorial, aberto à visitação pública, está colocado junto à galeria de fotos históricas da ABI que ocupa o Salão Nobre, localizado no 9º andar do Edifício Herbert Moses, na Rua Araújo Porto Alegre, 71, no Centro do Rio. A placa contém uma foto do jornalista, com texto que descreve sua trajetória de vida.

Pesquisadoras da Abril descobrem nossa Biblioteca Em visita à Casa, elas ficaram encantadas com o acervo da BBT e também com o Edifício Herbert Moses, nossa sede. Pesquisadoras do Departamento de Documentação da Editora Abril, cujo arquivo jornalístico é reconhecido no Brasil e no exterior pelo tamanho e qualidade de seu acervo, visitaram a ABI no dia 8 de junho. Vera Lúcia, pesquisadora de textos; Elenice Ferrari, pesquisadora de fotos; e Sissi Diksztejn, coordenadora de memória da editora, vieram conhecer o acervo da Biblioteca Bastos Tigre e percorreram também o

edifício-sede da ABI, considerado um dos mais importantes marcos da moderna arquitetura brasileira. A visita ao Rio, disse Vera Lúcia, teve por objetivo conferir a riqueza de dados e informações que pode ser encontrada nas bibliotecas e arquivos da Cidade, além de conhecer como os respectivos acervos são armazenados e tratados. Na Biblioteca, as pesquisadoras ficaram impressionadas com o acervo e se encantaram ao RAQUEL BISPO

Ministros que sabotam

Orador seguinte, o Presidente da OAB-RJ, Wadih Damous, reafirmou o engajamento da entidade na campanha pela abertura dos arquivos da ditadura. Lembrou que no lançamento da campanha, no mês de abril, a OAB demonstrou o compromisso da advocacia “que nunca faltou ao povo brasileiro quando foi conclamada a se manifestar ”. Damous contou que em uma visita ao Arquivo Nacional no Rio de Janeiro, onde estão arquivados os documentos relativos ao período da ditadura, apenas os papéis relativos aos órgãos de repressão política, como o Dops, estão organizados para serem consultados, mas não há um só documento das Forças Armadas. Ele classificou isso como “uma resistência do Ministério da Defesa”. Em duras críticas às pessoas que vêm ocupando a Pasta, disse Wadih Damous que

os Ministros da Defesa “são meros porta-vozes dos Ministros militares”: “Faço uma ressalva ao Ministro José Viegas, que se insurgiu contra essa prática, denunciou e não permitiu que os chefes militares fizessem ordem unida em um dia 31 de março e por isso foi exonerado do seu cargo. Então com a exceção desse ex-Ministro, o Ministério da Defesa tem-se colocado como um grande obstáculo àquilo que nós queremos que é a busca da verdade.” Outro episódio lembrado pelo Presidente da Seccional Rio de Janeiro da OAB foi a bomba que destruiu o escritório da sede do Conselho Federal da entidade, em 27 de agosto de 1980, matando a secretária Lyda Monteiro.

Num livro, o Expresso da Vitória Jornalistas lançam na ABI obra sobre o timaço do Vasco que dominou o futebol brasileiro nos anos 1940-1950 e foi a base da Seleção na Copa de 1950. Os jornalistas Alexandre Mesquita e Jefferson Almeida lançaram na sede da ABI, no dia 30 de junho, o livro Um Expresso Chamado Vitória (Editora iVentura), que narra a trajetória do Vasco da Gama entre as décadas de 1940 e 1950, período em que o time alcançou vitórias importantes como o Campeonato Sul-Americano de Futebol, em 1948, no Chile. Compareceram à noite de autógrafos, que reuniu dezenas de pessoas no Salão Gastão Pereira da Silva, os escritores Ivan Soter, autor de Quando a Bola Era Redonda (2008) e Enciclopédia da Seleção – 1914-2002, e Clóvis Martins, outro especialista em futebol, representante no Brasil da International Federation of Football History & StatisticsIFFHS e um dos autores de Flamengo X Vasco – Clássico das Multidões e Campeonato Carioca – 96 Anos de História. Com prefácio do jornalista botafoguense Roberto Porto, Um Expresso Chamado Vitória mostra como foi formado em 1942 o time vascaíno que ficou conhecido como “Expresso da Vitória”, relembra os jogos, as conquistas a partir de 1944, os craques, entre eles Ademir Menezes, Jair da Rosa Pinto, Danilo Alvim, Barbosa, Chico, Augusto, Maneca, Friaça, Tesourinha, Lelé, Eli. Com esse elenco, o Vasco da Gama foi campeão carioca invicto em 1945, 1947 e 1949. O

manusear edições número zero da revista Placar (foram produzidas cinco edições da revista antes do seu lançamento) que elas próprias não conheciam. “Nem no arquivo da Abril existem todas essas edições”, informou Sissi Diksztejn. As pesquisadoras afirmaram que já têm sugestões em mente e que a ABI poderá atendê-las no campo da troca de conteúdos. Vera Lúcia se mostrou interessada principalmente no acervo de O Cruzeiro, de que a Biblioteca tem coleção completa. Além da parte documental, as pesquisadoras ficaram impressionadas com os espaços disponíveis no Edifício Herbert Moses, sede da ABI. Elas afirmaram que a edificação é uma referência e o espaço é ideal para abrigar uma série de projetos culturais e parcerias que podem ser desenvolvidas com a Abril e outras instituições.

time também foi a base da Seleção vicecampeã mundial na Copa em 1950 e o primeiro do Rio a se consagrar campeão no estádio do Maracanã, nesse mesmo ano. “Este livro é muito importante porque passará a ser uma referência àqueles que se interessam pelo esporte, particularmente pelo Vasco da Gama e por esse período histórico, relevante para o futebol brasileiro”, destacou Luis Carlos Bittencourt, DiretorExecutivo da Editora iVentura. O jornalista Carlos Fernando, Coordenador Editorial de Esporte da iVentura, chamou a atenção para a escassez de obras sobre o tema. “Entre os quatro grandes clubes do Rio, o Vasco reúne o menor número de publicações, em especial pesquisas históricas, como esta que resgata o período e o time mais vitorioso do Vasco, base da Seleção Brasileira da Copa de 1950”. Os autores Alexandre Mesquita e Jefferson Almeida se conheceram na década de 90 na faculdade de Jornalismo e desde então compartilham o interesse pelo futebol. Juntos escreveram o livro Clássico Vovô, lançado em 2006, também na sede da ABI. “Eu e Alexandre somos pesquisadores do futebol carioca há vários anos. Percebemos que existia esta lacuna na literatura esportiva relacionada à História do Vasco. Até então, existiam poucos registros sobre este time cujos feitos eram até mencionados, mas não com a devida importância. Nenhum outro time colocou seis titulares em uma seleção, nem garantiu a hegemonia no futebol com a mesma base durante oito, nove anos”, ressaltou Jefferson. Alexandre Mesquita acredita que nunca mais haverá um fenômeno como o Expresso da Vitória. “A fórmula para o bom desempenho deste time, em minha opinião, está na origem da equipe baseada na observação, resultando em boas contratações, além da valorização dos jogadores da Casa. O que fez a diferença naquele momento histórico foi a sabedoria para se montar um time de qualidade”.

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Aconteceu na ABI

A trajetória de Lacerda e seus episódios inéditos As revelações em livro do jornalista Guimarães Padilha, o colaborador que conviveu mais próximo e por mais tempo com o fundador da Tribuna da Imprensa. FOTOS DE RAQUEL BISPO E W. WONG

POR CLAUDIA S OUZA

REPRODUÇÃO

Episódios obscuros sobre o período da ditadura militar e fatos pouco conhecidos antes do golpe de 1964 estão reunidos no livro Lacerda – Na Era da Insanidade, do jornalista pernambucano Francisco José Guimarães Padilha, lançado em 14 de junho na sede da ABI. Entre as revelações, destaque para o atentado contra Carlos Lacerda que quase explodiu um túnel ferroviário da Central do Brasil. Lacerda estava então em campanha presidencial acompanhado de uma comitiva com mais de duzentas pessoas. Prestigiaram o lançamento jornalistas, associados da ABI e amigos do autor, entre os quais nomes de destaque na imprensa que deram depoimentos publicados no livro, como o Presidente da ABI, Maurício Azêdo, Milton Coelho da Graça e Nilo Dante. Na obra, que conta as experiências pessoais e profissionais de Padilha, há ainda depoimentos dos jornalistas Alberto Dines, Cícero Sandroni, Murilo Melo Filho, Ayrton Baffa, Ely Azeredo, Nélson Lemos e Dílson Ribeiro.

Guimarães Padilha levou horas assinando autógrafos (ao alto), entre os quais os destinados a antigos companheiros, como Mílton Coelho (abaixo, à esquerda) e Nilo Dante (à direita), que fizeram textos sobre o Lacerda jornalista e o Lacerda Governador.

Lembranças da resistência

Conselheiro da ABI, Milton Coelho falou da importância da Tribuna da Imprensa e de Carlos Lacerda para o jornalismo brasileiro: “A Tribuna da Imprensa foi o primeiro veículo a se apropriar da técnica americana do lide. Lacerda tinha altas idéias de qualidade e revelou uma série de novos talentos, como Nilson Viana e Carlos Lemos”, ressaltou. Milton também lembrou da resistência no período da ditadura: “Fiquei preso durante um ano e seis meses, e passei por oito cadeias. Assim que entrei para a profissão, Lacerda já era um homem famoso, alguns anos mais velho do que eu. Na primeira parte da minha vida briguei contra as idéias dele. Somente na ditadura nos juntamos para lutar contra ela. Lacerda foi muito importante, pois eu tinha um jornal clandestino chamado Resistência, que publicou o primeiro depoimento de Carlos Lacerda na cadeia”. Sobre a obra, Milton Coelho destacou o trabalho de Padilha: “Este livro tem uma importância especial porque traz informações de bastidores nunca antes reveladas, divulgadas por uma pessoa que conviveu com Lacerda e só agora trouxe essas informações a conhecimento público”. Apesar da violência e da censura, dis20 Jornal da ABI 356 Julho de 2010

Criamos no jornal o Clube da Lanterninha, numa alusão ao Clube da Lanterna criado por Lacerda. Hélio Fernandes também fazia parte. Ele escrevia a coluna dele perto da editoria do Padilha, que sempre foi um excelente chefe, nunca perseguiu ninguém. O subeditor era o Neil Hamilton. Todos os dias, quando terminava a edição do jornal, depois das 22h, Nilo Dante, que era o editor do Correio da Manhã, ia para a Tribuna, que fechava mais tarde. Ele apressava a gente para começarmos dentro da Redação o nosso jogo de pingue-pongue ou linha de passe com bola de papel, goleiro e tudo. Na época da ditadura, de vez em quando tínhamos que fugir da Polícia. Certa vez chegaram à Redação vários fuzileiros navais prometendo quebrar tudo. Conseguimos escapar pelo buraco do arcondicionado, que dava saída para a TVE”. Na orelha do livro, o jornalista Zuenir Ventura lembra a trajetória do autor e sua estreita relação com Lacerda: “De todos os jornalistas que passaram pela Tribuna da Imprensa, meu velho companheiro de redação e amigo Guimarães Padilha foi um dos que conviveram mais tempo com Carlos Lacerda. Desde os passos iniciais da profissão como repórter até o topo da jornada como chefe de Redação e Diretor responsável, no epicentro da ditadura militar que se lançou contra o jornal, baniu Lacerda da vida política e varreu de cena os melhores valores da democracia brasileira. (...) Ainda beirando o foca, Padilha foi quem Lacerda escolheu para uma cobertura internacional histórica que o levaria à Havana de Fulgêncio Batista e à Sierra Maestra de Fidel Castro”.

se Mílton, o período registrado no livro foi de extrema importância para o fortalecimento da imprensa: “O jornalismo estava nas primeiras trincheiras. Os donos dos jornais resistiram pouco, mas os jornalistas resistiram muito. Todo resgate da História brasileira é importante. Temos uma falha no número de historiadores. Os jovens não conhecem a História da República, principalmente a da ditadura”, avaliou. “Fantástico orador”

O jornalista Nilo Dante também compartilha dessa opinião. Ele considera que a publicação deve ser aplaudida como relevante referencial histórico do período da ditadura: “O livro apresenta uma reportagem minha sobre o famoso Comício da Central do Brasil. Foi um episódio tão importante que, apesar de eu, na época, ocupar a chefia de Redação da Tribuna fui fazer a cobertura. Também está na obra um artigo que escrevi sobre Carlos Lacerda, um homem combativo, controvertido, polêmico; um homem que passou da extrema esquer-

da para a extrema direita, grande Governador do Estado da Guanabara e fantástico orador. Em todo o meu tempo como repórter político não me lembro de ninguém que possa ser comparado a Lacerda. A grande virtude deste livro é mostrar a importância histórica desta fase.” Editor de Lacerda – Na Era da Insanidade, o jornalista Luiz Erthal aponta como referencial do livro a apresentação do perfil de Carlos Lacerda a partir da observação dos profissionais da imprensa. “Embora existam outros livros sobre Carlos Lacerda, este o apresenta sob a ótica dos jornalistas e reúne depoimentos de grandes nomes da imprensa contemporâneos de Lacerda. O próprio autor foi um dos homens mais próximos de Carlos Lacerda, que apostou no talento de Padilha desde que ele, vindo de Pernambuco, iniciou a carreira no Rio”. A rota da fuga

Presente ao lançamento, o jornalista Luiz Carlos de Oliveira Chesther, membro do Conselho Fiscal da ABI, recordou momentos de descontração nos bastidores da Tribuna da Imprensa, em meio ao clima de censura imposto pelo regime militar: “Comecei a trabalhar na Tribuna da Imprensa em 1966, como diagramador.

Perfil do autor

Outras grandes coberturas marcaram a carreira do autor como as entrevistas com John Kennedy, nos Estados Unidos, um mês antes do assassinato do Presidente norte-americano, e com o Presidente João Goulart, poucas horas antes de ser deposto em 31 de março de 1964. Processado nos Atos Institucionais 3 e 4, Padilha foi preso pelos agentes da ditadura. No período em que o jornalista Hélio Fernandes permaneceu confinado em instalações militares da Ilha de Fernando de Noronha e em Pirassinunga,SP, Padilha ocupou a direção da Tribuna da Imprensa. “Guimarães Padilha foi o grande Redator-Chefe da Tribuna da Imprensa. Existiam outros excelentes jornalistas, mas não nas circunstâncias em que o Padilha assumiu o jornal por inteiro antes de completar 30 anos, em plena ditadura, quando fui cassado em 1966, e proibido de escrever ou de dirigir o jornal, numa situação dramática”, recorda Hélio Fernandes.


DEPOIMENTO

neiro possui de progresso e de modernismo é ainda fruto de seu trabalho no Governo estadual. Seu Plano Diretor ainda é o norteador, nos nossos dias, do programa de desenvolvimento da cidade.

“Hélio Fernandes e Carlos Lacerda construíram o meu saber jornalístico”

JORNAL DA ABI – EM QUE ASPECTOS O JORNALISMO DA TRIBUNA CONTRIBUIU PARA A HISTÓRIA DA IMPRENSA BRASILEIRA? RAQUEL BISPO

Por ocasião do lançamento do livro, Guimarães Padilha falou ao Jornal da ABI sobre sua carreira no jornalismo, a convivência com figuras como Lacerda e Hélio Fernandes e sobre os fatos que, em sua opinião, marcaram a história da imprensa brasileira e a evolução do jornalismo no País.

Guimarães Padilha – Contribuiu e muito. Foi o responsável pelo chamado jornalismo investigativo e pela busca de oferecer ao leitor os dois lados da notícia, permitindo que ele tenha a sua própria conclusão. Além do que modernizou a linguagem da informação, expurgando do jornalismo excessos da linguagem e a imprensa-marrom.

JORNAL DA ABI – COMO E QUANDO O SEJORNAL DA ABI – E AS TRAJETÓRIAS DE LACERDA E HÉLIO FERNANDES, NESTE SENTIDO?

NHOR INICIOU A CARREIRA NO JORNALISMO?

Guimarães Padilha – Iniciei em 1954 na imprensa de Juazeiro da Bahia e de Petrolina, em Pernambuco. No ano seguinte passei a integrar o quadro de correspondentes do Jornal do Commercio do Recife.

Diz Padilha que, apesar de ter trabalhado anos com Lacerda na Tribuna, nunca militou no chamado lacerdismo.

JORNAL DA ABI – QUANDO O SENHOR COMEÇOU A TRABALHAR NA TRIBUNA DA IMPRENSA?

Guimarães Padilha – Em seguida, me transferi para o Rio de Janeiro. Em 1956, a Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda, realizou um curso e um processo de seleção para a contratação de um repórter, quando fui escolhido entre mais de 100 candidatos. Jornalistas como o próprio Carlos Lacerda, Aloisio Alves, Hilcar Leite, Hermano Alves, Murilo Mello Filho e outras expressões da imprensa carioca da época ministraram o curso, que culminou com a escolha do novo repórter do combativo jornal da Rua do Lavradio. JORNAL DA ABI – COMO ERA A SUA RELAÇÃO HÉLIO FERNANDES E CARLOS LACERDA?

COM

Guimarães Padilha – Harmoniosa e de bom aprendizado. Construíram o meu saber jornalístico. JORNAL DA ABI – QUE EPISÓDIOS MARCARAM A SUA CONVIVÊNCIA COM ESTES DOIS GRANDES JORNALISTAS?

Guimarães Padilha – Na época de Carlos Lacerda tive a chance de ser escolhido pelo próprio para cobrir a Revolução Cubana e registrar, pessoalmente, outros acontecimentos políticos na região do Caribe. Fiz entrevistas com Fidel Castro, Raúl Castro e Che Guevara em Sierra Maestra. Cobri também reuniões de abertura da Assembléia-Geral das Nações Unidas, em Nova York, quando tive a chance de entrevistar o Presidente John Kennedy, pouco antes do atentado que o vitimou. Entrevistei ainda vários outros líderes mundiais. Na Tribuna da Imprensa, com Hélio Fernandes, proprietário do jornal, fui repórter, Chefe de Reportagem, Secretário de Redação e Diretor do Jornal. Durante o AI-5 assumi a Direção Geral, no período em que Hélio Fernandes esteve preso e confinado em Fernando de Noronha e Pirassununga, São Paulo. JORNAL DA ABI – DE QUE MANEIRA ELES INFLUENCIARAM A SUA TRAJETÓRIA PESSOAL E PROFISSIONAL?

Guimarães Padilha – Na isenção absoluta no trato da notícia. Carlos Lacerda

e Hélio Fernandes, mentes absolutamente abertas, jamais pediram atestados de comportamento político dos jornalistas que com eles trabalharam. Nem me transmitiram qualquer recomendação restritiva quando passei a dirigir o jornal. Mesmo porque eu não as aceitaria. A única exigência era produzir matérias isentas, sem tentar impor idéias préconcebidas. Graças a isso, passaram pela Redação da Tribuna e ali se revelaram notáveis valores da nossa profissão, que a honraram e se destacaram em outros grandes jornais do Brasil. JORNAL DA ABI – DURANTE QUANTO TEMPO O SENHOR TRABALHOU NA TRIBUNA?

Guimarães Padilha – Durante cerca de 15 anos. Deixei o jornal após a libertação de Hélio Fernandes do confinamento e quando a função de censura passou para a nossa responsabilidade, ou seja, na chamada fase da autocensura. Após o horror da censura do Exército e da Polícia Federal, entendia que a autocensura seria uma violência ainda maior para nossa missão de informar. Preferi ficar desempregado. Pessoalmente, sempre abominei o reacionarismo de esquerda e de direita porque eles sempre se apresentam como paladinos de causas nobres, mas sua face verdadeira mal encobre os objetivos escusos que não ajudam a democracia e os interesses pessoais e de cada grupo, nunca lastreados no objetivo primordial do bem comum. JORNAL DA ABI – QUANDO SURGIU A IDÉIA DE

que seria lançado, em outubro de 1962. Até hoje nenhuma explicação me foi dada, como era costume na era da insanidade. JORNAL DA ABI – EM QUANTO TEMPO O SENHOR FEZ A PESQUISA?

Guimarães Padilha – Desde a apreensão do livro Esse Incrível Lacerda, passei a reunir dados para produzir Lacerda – Na Era da Insanidade. Era a minha resposta à era de horror absoluto, à esquerda e à direita, ocorrido a partir de 1964. Horror de políticos, clero, Forças Armadas, sindicatos, entidades patronais – todos voltados para os próprios interesses, não raro alheios aos da população.

Guimarães Padilha – Implantaram um novo estilo de jornalismo político. Uma nova maneira de tornar o jornalismo aceitável pelo seu público. E no caso específico de Carlos Lacerda, como bem disse Maurício Azêdo: “as ressalvas de caráter político e ideológico, não impediram o reconhecimento, até mesmo por parte de seus adversários, de que Carlos Frederico Werneck de Lacerda foi um dos maiores jornalistas que o Brasil conheceu”. JORNAL DA ABI – COMO O SENHOR AVALIA O ATUAL ESTÁGIO DA IMPRENSA BRASILEIRA?

Guimarães Padilha – De desenvolvimento, mas com muita coisa a ser feita ainda. Não podemos esquecer das nefastas influências externas, aqui e acolá. Meu objetivo é concluir o meu terceiro livro Por Trás da Notícia, que aborda exatamente esse assunto. E não se pode esquecer ainda da concorrência com a internet, um forte adversário do jornalismo escrito. E da leitura de livros por meio da mídia eletrônica. JORNAL DA ABI – DE QUE MANEIRA ESTE LIVRO PODE CONTRIBUIR PARA AS NOVAS GERAÇÕES DE JORNALISTAS?

JORNAL DA ABI – QUE CRITÉRIOS FORAM UTILIZADOS NA ESCOLHA DOS DEPOIMENTOS?

Guimarães Padilha – Os critérios da isenção e que desfizessem as controvérsias e algumas histórias tanto as verazes quanto as mal contadas em torno de Carlos Lacerda. Acusações levianas. Tentativas de macular a sua trajetória política comprometendo a verdade em diversos episódios da época. Não obstante a proximidade profissional que me ligou a Carlos Lacerda por tanto tempo, nunca fui, porém, militante do chamado “lacerdismo”. Concordei e discordei dele. Mas desconhecer a importância de Lacerda na História do Brasil, o seu extraordinário papel na defesa dos interesses da Pátria, é algo inteiramente absurdo e com que eu não podia concordar. JORNAL DA ABI – ENTRE OS EPISÓDIOS CITA-

ESCREVER LACERDA – NA ERA DA INSANIDADE?

DOS NA OBRA, QUAL O MARCOU EM ESPECIAL?

Guimarães Padilha – Surgiu ainda na fase da ditadura, quando o nosso primeiro livro Esse Incrível Lacerda, escrito em parceria com os grandes repórteres Lídio de Souza e Fernando Bueno, foi apreendido nas livrarias do Rio de Janeiro no dia em

Guimarães Padilha – A determinação de Carlos Lacerda pela busca de seus ideais, pela defesa de seus princípios e a capacidade altamente produtiva de um jornalista e político na administração do Estado da Guanabara. O que o Rio de Ja-

Guimarães Padilha – Pode, na medida em que procura esclarecer episódios tanto os verídicos quanto os mal contados e envoltos em mistérios, além das más intenções. Quando eu falo na “era da insanidade” é para mostrar a Torre de Babel daqueles tempos que vivemos sob tanta indignidade e desnecessária violência. Precisamos buscar cada vez mais a transparência, a liberdade de imprensa, a aceitação dos profissionais sem o carimbo de suas ideologias, a compreensão dos proprietários dos jornais, revistas e meios televisivos e, por último, o repúdio às notícias mal contadas e que tanto mal fazem às gerações atuais e futuras. Acho fundamental também manter o respeito aos idosos, tanto em nossa classe quanto em qualquer outro tipo de atividade profissional. Apesar de velhos, eles jamais deixarão de ser inteligentes. E serão sempre a memória da História, de hoje, de ontem e de sempre. A minha identidade ideológica é a defesa de meu País, das liberdades democráticas, da liberdade de pensamento e do direito sagrado de expressar opiniões, assim como o de ir e vir. (Colaborou Raquel Bispo) Jornal da ABI 356 Julho de 2010

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Aconteceu na ABI ALCYR CAVALCANTI

Sérgio Murilo, Presidente da Fenaj (à esquerda), e Maurício acompanham a exposição do Deputado Hugo Leal, relator da Comissão Especial da Pec do Diploma, acerca da tramitação do projeto.

Comissão Especial da Câmara ouve as razões dos profissionais A ABI, a Fenaj e sindicatos expõem a parlamentares argumentos em defesa do restabelecimento da exigência da formação em Jornalismo ou Comunicação para o exercício da profissão. Um ano depois de o Supremo Tribunal Federal-STF estabelecer o princípio da não exigência do diploma para a prática profissional de jornalismo acatando parecer do então Presidente, Ministro Gilmar Mendes, a ABI recebeu a visita dos Deputados federais Hugo Leal (PSC-RJ), Arolde de Oliveira (DEM-RJ) e Chico Alencar (PSOLRJ). Eles integram a Comissão Especial da Câmara dos Deputados, incumbida de emitir parecer sobre a Proposta de Emenda à Constituição (Pec 386/09), do Deputado Paulo Pimenta (PT-MG), que altera a Constituição Federal para restabelecer a necessidade do diploma de curso superior para o exercício da profissão de jornalista. Os parlamentares foram recebidos pelo Presidente da Casa, Maurício Azêdo, e membros da Diretoria, entre os quais o Presidente do Conselho Deliberativo, Pery Cotta, o Diretor Administrativo Orpheu Salles e a Diretora de Assistência Social, Ilma Martins da Silva. O encontro aconteceu no dia 17 de junho na Sala Belisário de Souza, localizada no 7º andar da sede da ABI, onde se reuniram jornalistas e membros das entidades representativas da categoria. A abordagem de tema tão importante para a categoria profissional dos jornalistas foi conduzida por uma Mesa formada por Maurício Azêdo; Sérgio Murilo de Andrade, Presidente da Federação

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Nacional dos Jornalistas-Fenaj; Suzana Blass, Presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro, e José Ernesto Mandel Viana, Presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado do Rio de Janeiro. Informou então o Deputado Hugo Leal que a Comissão Especial da Câmara dos Deputados já realizara cinco audiências públicas para debater a exigência do diploma de jornalista, para quem quer trabalhar na profissão. Ele ressaltou que a reunião de agora tinha um caráter essencialmente técnico, visando a assegurar a constitucionalidade da emenda proposta pelo Deputado Paulo Pimenta. O Deputado Arolde de Oliveira exaltou a responsabilidade de Hugo Leal na coleta de informações para se embasar pela média de pareceres, tarefa que ele considera muito importante para um relator equilibrar as opiniões. Nesse caso torna-se mais clara a posição da Comissão para aprovar a proposta do Deputado Paulo Pimenta, uma vez que o próprio Supremo Tribunal Federal levou a entender que somente uma emenda constitucional pode referendá-la”. O Deputado Chico Alencar disse que considera o projeto do Deputado Paulo Pimenta tão importante que este poderia ser classificado como uma iniciativa de vários autores, como ele acha

que será, ao ser aprovado pelo Congresso Nacional com “aquela maioria qualificada difícil de se conquistar com Emenda Constitucional”. Segundo ele, “o Deputado Paulo Pimenta não se oporá a esta construção coletiva de jeito nenhum”. Em seguida Chico Alencar fez uma provocação: “Estamos diante de uma situação muito singular que eu imagino que nem aqui possa começar a ser resolvida. Está faltando antagonismo. Acreditem, o contraditório, que é ponto essencial para a produção legislativa, para mudar a lei, não está existindo. Em várias audiências (referindo-se às audiências públicas realizadas pela Câmara) aqueles que ano passado expressaram forte oposição à idéia da formação específica agora não estão comparecendo para argumentar, o que nos autoriza a dizer que era um interesse menor de precarização das empresas de comunicação. Está faltando alguém nesse debate.” Cenário e dia adequados Disse o Deputado Hugo Leal que a data e o local escolhidos para a realização do encontro têm um significado especial. Primeiro, porque neste 17 de junho completou um ano da polêmica decisão do STF. Segundo, porque o encontro se realizava na ABI, “um ambiente qualificado, de uma entidade que tem capilaridade com a

sociedade”. Relator da Pec 386/09 Leal informou que a Comissão tem consciência de que vai enfrentar conceitos doutrinários e aqueles das pessoas que defendem os princípios do Direito comparado da Corte norte-americana, além de uma série de outras questões jurídicas. Ele admitiu que já existe um enfrentamento jurídico em curso que demanda a superação de várias dificuldades. “Nós temos que entender que já começamos esse enfrentamento e temos que superar essas dificuldades”, ressaltou. Leal salientou que a visita à ABI teve como objetivo a busca de elementos para subsidiar o trabalho da Comissão, colher informações técnicas do corpo jurídico e dos colaboradores da entidade e conhecer a opinião dos associados da Casa, de modo que a Comissão possa consubstanciar o texto do seu parecer e garantir a constitucionalidade da Emenda, evitando que esta venha a ser questionada pelo Supremo”, declarou o parlamentar. O Presidente da Fenaj, Sérgio Murilo de Andrade, disse que em 17 de junho a categoria profissional do Brasil inteiro comemora o triste aniversário de “uma decisão infeliz, equivocada, que foi feita em nome da liberdade, e todos nós sabemos que as razões que moveram o Supremo Tribunal Federal ao tomar essa decisão muito pouco têm a ver com liberdade de expressão e liberdade de imprensa”. Disse Sérgio Murilo que não foi à toa que a Fenaj, com o apoio dos sindicatos, tomou a decisão de fazer o protesto central da categoria no Rio de Janeiro, coincidindo com a visita ao Rio da Comissão Especial da Câmara dos Deputados. “Fizemos isso pela simbologia, porque foi aqui no Rio de Janeiro, na ABI, que começou essa luta de conferir dignidade à profissão de jornalista no Brasil. Aqui teve início a batalha para se criar uma identidade profissional nacional, que foi construída principalmente por meio da formação superior, de uma necessidade, de um critério democrático de acesso à profissão que é o ensino superior e a exigência do diploma. Este ato é a retomada de um direito que nos foi violentamente cortado”. Sergio Murilo exortou a ABI para que continue sendo parceira efetiva como tem sido, exercendo um papel de destaque, “ao lado ou à frente da Fenaj”, nessa luta que nasceu na Casa do Jornalista: “A ABI tem um papel fundamental no processo de construção da profissão de jornalistas no Brasil. Nós temos a esperança de que, com a posição ativa da Associação Brasileira de Imprensa, junto com os apoios que estamos conquistando na sociedade, com entidades como a OAB, com apoio de parlamentares de respeito que têm dado

uma enorme contribuição a esse esforço, como os que se encontram presentes, tenho esperança de que vamos retomar o processo de consolidação da nossa profissão.” A Presidente do Sindicato dos Jornalistas do Município do Rio de Janeiro, Suzana Blass, salientou a importância da participação da ABI no debate público que se constituiu pela defesa do diploma de nível superior: “Eu não consigo imaginar lugar melhor para a gente marcar este dia de hoje do que estar aqui na ABI. Isso muda um pouco o enfoque dessa luta que os sindicatos e a Fenaj têm feito em função da representatividade que a ABI tem na sociedade. Quero pontuar também que estar na ABI, no Rio de Janeiro, na presença de três deputados do Estado fazendo parte da Comissão Especial da Câmara que analisa o nosso projeto, é uma vitória do Estado do Rio de Janeiro no cenário nacional, que me desculpem os outros Estados, mas é um detalhe que tem que ser apontado”. Coincidências do momento O Presidente da ABI, Maurício Azêdo, ressaltou que a presença dos Deputados Hugo Leal, Arolde de Oliveira e Chico Alencar na ABI tinha como propósito uma consulta técnica, com vista à elaboração do parecer do Deputado Hugo Leal na Comissão Especial da Câmara dos Deputados, constituída para examinar a proposta do Deputado Paulo Pimenta, mas que ao mesmo tempo o encontro coincidiu com a manifestação convocada pela Fenaj como parte do Dia Nacional de Luta em Defesa do Diploma. “São manifestações diferentes e que caminham para o mesmo fim que é o restabelecimento dos direitos dos jornalistas sonegados e eliminados pelo Supremo Tribunal Federal. Como Presidente da ABI, quero dizer que ficamos muito honrados não só pela presença dos parlamentares, mas também com as representações sindicais presentes na mesa, especialmente, sem desdouro dos demais, do companheiro Sergio Murilo de Andrade, Presidente da Federação Nacional dos Jornalistas.” Maurício declarou também que a ABI tem uma vinculação histórica muito estreita com a Fenaj, lembrando que a entidade foi fundada por “destacados militantes” sindicais da cidade do Rio de Janeiro, ainda no tempo do antigo Distrito Federal, que se articularam em todo o País atendendo ao que a legislação exigia para a formação de uma entidade de caráter nacional. Citou os jornalistas João Antônio Mesplé, cujo centenário de nascimento ocorrerá em setembro, Carlos Alberto da Costa Pinto e Fernando Segismundo, que presidiu a ABI em mais de um mandato e que, perto de completar 95 anos de idade, é um dos mais


LEGISLAÇÃO

ALCYR CAVALCANTI

Pery Cotta: Alguma empresa contratou jornalista não diplomado?

antigos membros da Associação Brasileira de Imprensa e talvez o único remanescente do grupo de sindicalistas que fundou a Fenaj. Disse Maurício que, apesar da circunstância, a luta em defesa da formação do jornalista em nível superior aproximou ainda mais a ABI da Fenaj e dos sindicatos de jornalistas de diferentes pontos do País. E completou: “Essa é uma bandeira que a Casa tem sustentado desde 17 de junho do ano passado no Jornal da ABI, tanto em manifestação em editorial, como pelo acompanhamento de todas as iniciativas que visem a restaurar a dignidade da profissão de jornalista, tão fundamente agredida por essa decisão do Supremo Tribunal Federal, que, como lembrou o Deputado Chico Alencar, evocando Evandro Lins e Silva, segundo o qual o Supremo Tribunal Federal é a última instância do direito de errar, como a Corte errou nessa questão, assim como erraria recentemente, em 29 de abril, com a decisão de perdoar os torturadores que cometeram os crimes mais atrozes da História política do Brasil”. Luta quase centenária Em sua intervenção, o Presidente da ABI elogiou os integrantes do movimento sindical e a gestão de Sérgio Murilo de Andrade à frente da Fenaj, afirmando que este tem dado à entidade “o dinamismo necessário ao enfrentamento dos complexos problemas que se oferecem à comunidade profissional dos jornalistas”. Ele recordou que a preocupação da ABI com a formação profissional dos jornalistas é antiga. Em 1918, a ABI organizou o I Congresso Brasileiro de Jornalistas, que aprovou, entre outras proposições, a proposta de que a formação dos profissionais de imprensa deveria ser em nível superior. Destacou também que nesse período o ensino superior no Brasil não abrigava instituições universitárias. A própria Universidade do Brasil, que foi a matriz do sistema universitário do País, seria fundada tempos de-

pois para permitir que houvesse a entrega do título de doutor honoris causa ao Príncipe Alberto da Bélgica, que visitava o Brasil naquela ocasião. “A ABI foi tão meticulosa nessa questão que um dos seus diretores, João Guedes de Melo, teve a sensibilidade e a paciência de não só fazer o acompanhamento no plenário do Congresso, como também elaborou o que seria a primeira grade curricular do curso de Jornalismo que seria necessário para o exercício da atividade profissional.” Quem contratou quem? O Presidente do Conselho Deliberativo da ABI, Pery Cotta, considerou oportuno fazer uma sugestão aos membros da Comissão, afirmando que corroborava tudo o que estava sendo dito durante o encontro: “A minha sugestão é no sentido de que na visita aos proprietários de veículos de comunicação os senhores peçam a eles uma listagem, referente ao ano que se passou, de profissionais diplomados e não diplomados que eles têm contratado para trabalhar em seus veículos. Pelo que eu sei, eles só estão chamando os diplomados, porque dentro das Redações de rádio, tv e sites jornalísticos eles precisam é de profissionais de imprensa. Não precisam de aprendizes de feiticeiros, nem de chefs de cozinha, como supunha o ex-Presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes.” Pery Cotta disse estar convicto de que para se trabalhar em veículo de comunicação é preciso conhecimento, informação e cultura, requisitos que não impedem que pessoas como o escritor Luís Fernando Veríssimo escrevam crônicas para jornais, ou que o ex-jogador Tostão atue como comentarista de futebol. “Ninguém melhor do que Tostão para comentar a Seleção Brasileira de futebol. Isso é imprescindível e faz parte daquela atração que os veículos sempre ofereceram aos intelectuais, às pessoas de cultura, saber e conhecimento científico de todas as áreas”. O Diretor Administrativo da ABI, Orpheu Salles, que já presidiu a Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos da ABI, disse que há algum tempo perguntou aos Ministros do Supremo Tribunal Marco Aurélio Melo, Celso Melo e Carlos Ayres Brito se eles eram contra o diploma, e que eles disseram que não eram contrários, mas que julgavam de acordo com a lei e a Constituição. A resposta dos membros do STF arguídos por Orpheu Salles foi de que a exigência do diploma era um assunto que deveria ser resolvido no Congresso Nacional, para que a Suprema Corte tivesse meios de fazer que seja atendida a reivindicação da categoria de jornalistas.

A Câmara debate a emenda do diploma A Comissão Especial incumbida de opinar sobre a proposta do Deputado Paulo Pimenta (PT-RS) faz nova audiência pública e visita a ANJ, que insiste em confundir exercício profissional com liberdade de expressão, como fez o STF. A Câmara dos Deputados realizou em 23 de junho, em Brasília, audiência pública organizada pela Comissão Especial criada para analisar a Proposta de Emenda à Constituição-Pec 386/09, que restabelece a exigência de diploma de curso superior para o exercício da profissão de jornalista. De autoria do Deputado Paulo Pimenta (PT-MG), a Emenda pretende modificar o quadro gerado pela decisão do Supremo Tribunal Federal que, em 17 de junho do ano passado, acabou com a obrigatoriedade da formação universitária específica para quem quer exercer o jornalismo. Participaram do debate Rodrigo Kaufmann, consultor da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão-Abert; Leise Taveira dos Santos, professora de Comunicação; Leonel Azevedo de Aguiar, coordenador do curso de Jornalismo da Pontifícia Universidade Católica-Puc-RJ; Carlos Eduardo Franciscato, Presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores em JornalismoSBPJor, e Edson Spenthof, Diretor do Fórum Nacional de Professores de Jornalismo-FNPJ. Em discurso na audiência, , o relator da Pec 386/ 09, Deputado Hugo Leal (PSC-RJ) ressaltou que o maior desafio em analisar a matéria é saber onde termina a liberdade de expressão e começa o exercício profissional do jornalista. A Professora Leise Taveira dos Santos disse que a decisão do Supremo de retirar a exigência do diploma surpreendeu a todos e que “para os estudantes a sensação foi de golpe”, afirmou. Acesso ao jornalismo Quando visitou a ABI (leia texto na página 22), o Deputado Chico Alencar (Psol-RJ), um dos integrantes da Comissão Especial, disse que no debate sobre a obrigatoriedade do diploma de jornalista estava “faltando antagonismo”, porque muitos dos que se manifestaram contra a idéia da formação específica em jornalismo não têm comparecido às audiências convocadas pela Comissão (até o momento ocorreram cinco audiências públicas), no que ele classificou de “um interesse menor das empresas de comunicação” pelo assunto. Desta vez, porém, o encontro teve a presença de um representante das empresas. Rodrigo Kaufmann, consultor da Abert, afirmou que o problema é ter o diploma do curso como único meio de acesso ao jornalismo. “O exercício profissional do jornalista se vincula ao direito à liberdade de expressão na nossa Constituição”, argumento que Edson Spenthof, diretor do Fórum de Professortes de Jornalismo, aponta como um equívoco conceitual. A seu ver, está havendo confusão entre liberdade de expressão e exercício profissional. Spenthof assinalou que o jornalista, ao exercer sua profissão, não expressa sua opinião, mas sim faz a mediação entre as opiniões e a sociedade. Ele finalizou com um questionamento: “Um ano depois da decisão do STF algum cidadão foi contratado por empresa de comunicação para simplesmente expor sua opinião?” Leonel Azevedo, coordenador do curso de Jornalismo da Puc-RJ, defendeu a formação profissional específica dizendo que jornalismo contemporâneo não é local de expressão de opinião, mas de produção de informações. Para Azevedo, a qualificação profissional é importantíssima na apu-

ração das notícias. Em sociedades complexas como a brasileira, “é necessário que haja formação superior dos jornalistas”. Carlos Franciscato, Presidente da Associação de Pesquisadores em Jornalismo, sustentou que o curso de Jornalismo garante uma qualificação para que o profissional tenha uma visão ética e humanística da informação. Disse ainda que “informação com qualidade é o melhor para sociedade”. Rodrigo Kaufmann afirmou que a discussão a respeito da exigência do diploma de jornalismo já está ultrapassada: “O Supremo entendeu que a exigência do diploma é incompatível com nosso regime de liberdade de expressão. O julgamento se baseia em uma cláusula pétrea da Constituição Federal”, afirmou, acrescentando que a Abert tem todo o interesse em discutir modelos alternativos que possam valorizar o jornalista. Reunião na ANJ Pela manhã, os Deputados Hugo Leal (PSC-RJ) e Arolde de Oliveira (Dem-RJ), representando a Comissão Especial, visitaram a Associação Nacional de Jornais-ANJ, com intuito de conhecer a posição da entidade sobre o tema. Os parlamentares foram recebidos pelo Diretor-Executivo, Ricardo Pedreira, e Rodolfo Moura, Assessor Jurídico da Abert. Durante a reunião, que durou cerca de três horas, foram entregues alguns pareceres que, segundo Rodolfo Moura, sustentam a decisão do Supremo. Ele destacou a posição da ANJ: “Entendemos que isso é uma questão que afeta a liberdade de expressão. Acreditamos na importância das escolas, mas precisamos oferecer oportunidades para que quem não é formado em Jornalismo possa exercer a função de jornalista”. Em entrevista ao ABI Online, Carlos Miler, assessor de imprensa da ANJ, justificou a posição pública da entidade de não defender a obrigatoriedade do diploma. Segundo ele, a derrubada do diploma não é uma questão relevante para a ANJ, “já que os jornais contratam a maioria dos profissionais formados nas escolas e entendem que é melhor, que essas escolas dão a qualidade necessária. Sermos contra a obrigatoriedade do diploma não significa que somos contra o curso superior e acreditamos que as Redações continuarão contratando os profissionais com diploma normalmente”, declarou. Em relação à desvalorização do profissional de jornalismo e a uma possível diminuição dos salários, Carlos Miler afirmou que a ANJ não acredita numa redução de remuneração; sua opinião pessoal é que não haveria desvalorização pelo fato de que o salário na imprensa não atrai profissionais de outras áreas. Miler disse ainda que “a ANJ defende que a não obrigatoriedade do diploma é uma questão de princípio, não deve haver exigência: “Segundo o princípio de liberdade de expressão, ninguém pode tolher um cidadão de se expressar em um meio de comunicação. Os requisitos para exercer a profissão não necessitam de um diploma de jornalismo”. Sobre as dificuldades que algumas faculdades de Jornalismo estão enfrentando por força da derrubada do diploma, Miler foi enfático: “Se certos cursos fecharam é porque não tinham qualidade suficiente e tinham que fechar mesmo. O bom curso continuará atraindo e formando bons profissionais”. Jornal da ABI 356 Julho de 2010

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UN PHOTO/EVAN SCHNEIDER

Liberdade de imprensa

RSF denuncia repressão a jornalistas no Irã Desde a reeleição do Presidente Ahmadinejad, em 2009, 170 jornalistas e blogueiros foram presos e 22 deles condenados a um total de 135 anos de prisão.

Berlusconi não quer escutas telefônicas divulgadas pela imprensa.

A Itália reage à mordaça de Berlusconi

POR JOSÉ REINALDO MARQUES

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A violenta repressão de Ahmadinejad provocou a detenção de 170 profissionais da imprensa no período de um ano. Pode parecer piada mas no Irã os jornalistas estrangeiros são considerados espiões a serviço dos Estados Unidos.

Lei proposta por seu Governo impede a publicação do conteúdo de escutas telefônicas feitas em investigações policiais.

UN PHOTO/MARK GARTEN

A organização Repórteres Sem Fronteiras-RSF denunciou que o Governo do Irã está praticando uma “política de repressão sabiamente elaborada” com detenções de jornalistas no país. Informou a organização que desde a reeleição do Presidente Mahmoud Ahmadinejad, em 12 de junho de 2009, 170 jornalistas e blogueiros foram detidos em um ano e “22 deles foram condenados a penas que representam no total 135 anos de prisão”, destacou a RSF em um comunicado. O relatório da RFS aponta que a repressão do Governo iraniano aos jornalistas provocou a saída do país de mais de uma centena de profissionais que trabalham na imprensa. De acordo com o levantamento da entidade, “milhares de sites foram bloqueados e 23 jornais estão proibidos de circular pelas autoridades iranianas”. A RSF acusa o Governo de Mahmoud Ahmadinejad de estar implantando no Irã um sistema de erradicação da profissão de jornalista. O mesmo comportamento se aplica a ativistas sociais e observadores internacionais. As denúncias da RSF contra o Governo do Irã foram feitas após análise do período de 12 meses decorrido desde a reeleição de Ahmadinejad, por meio da qual a organização buscava informações sobre a liberdade de expressão no Irã. Entidade de defesa da liberdade de imprensa e da atividade profissional, a RSF afirma que o regime iraniano atuou para “enfraquecer” as redes de comunicação, “seja através da internet ou pelo controle das redes telefônicas para o envio de meras mensagens de texto a celulares”. A organização também faz críticas às medidas adotadas pelo Governo iraniano para impedir a circulação de informações sobre os protestos contra o resultado das eleições ocorridas no ano passado. A iniciativa foi classificada como “guerra contra as imagens”. Segundo a RSF, até o trabalho dos correspondentes estrangeiros no Irã vem sendo prejudicado. Com isso, afirma a entidade, o Governo iraniano está promovendo a “demonização” da imprensa estrangeira, cujos representantes no Irã são considerados “espiões a serviço dos Estados Unidos”. Um dado preocupante, diz a RSF, é a falta de garantias judiciais nos processos abertos contra jornalistas, cujas prisões ocorrem freqüentemente jun-

to a presos comuns. De acordo com a denúncia há casos “sistemáticos” de tortura na prisão de Evin. Em 3 de maio, Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, a RSF divulgou uma lista com o nome de 40 personagens mundiais chamada de “predadores da liberdade de imprensa”, na qual o Presidente Mahmoud Ahmadinejad tem seu nome citado ao lado do dirigente

chinês Hu Jintao e do atual Presidente de Cuba, Raúl Castro. Segundo informações divulgadas na época no site da RSF, são “40 políticos, oficiais de governo, líderes religiosos, milícias e organizações criminosas que não suportam a imprensa, tratam-na como inimiga e atacam jornalistas diretamente. Eles são poderosos, perigosos, violentos e acima da lei”.

Honduras, onde o perigo é maior Desde março, oito jornalistas assassinados. Em outro comunicado, a RSF cobrou das autoridades hondurenhas pressa no esclarecimento dos assassinatos recentes de jornalistas em Honduras. Entre os casos de assassinatos de jornalistas este ano no país está o do repórter Luis Arturo Mondragón, assassinado em 14 de junho quando saía do trabalho por dois homens que estavam em um carro e dispararam tiros contra ele. Mondragón era diretor de notícias de uma emissora de tv da cidade de Danlí, em El Paraíso. Segundo a RSF, ele foi o oitavo profissional assassinado em Honduras desde o dia 1º de março deste ano. Afirmou a RSF que quaisquer que tenham sido os motivos que levaram ao assassinato do jornalista nada justifica que a verdade não seja revelada imedi-

atamente. “Mesmo que não haja uma relação entre o assassinato e a atividade profissional da vítima, não se deve ocultar a violência política que está minando o país desde o golpe de Estado de 28 de junho de 2009, assim como suas trágicas consequências para a liberdade de imprensa”, disse o comunicado. Segundo a agência de notícias Ansa, o porta-voz da Polícia Nacional de Honduras, Leonel Sauceda, afirmou que os assassinatos de jornalistas no país não foram causados por motivos profissionais. Até agora, apenas dois responsáveis pelas mortes foram detidos no país. Atualmente Honduras é considerado pela RSF o país mais perigoso para o exercício da profissão de jornalistas na América Latina.

Um dia após a aprovação pelo Senado italiano da chamada “Lei da Mordaça”, que pune com penas severas repórteres e editores que vierem a publicar o conteúdo de escutas telefônicas, feitas durante inquéritos judiciais e policiais, a imprensa da Itália organizou uma grande mobilização de protestos, como o do jornal de esquerda La Reppublica, que publicou na edição do dia 11 de junho sua primeira página totalmente em branco com apenas um post-it amarelo com a inscrição “A lei da mordaça nega aos cidadãos o direito à informação”. Esta foi a primeira vez na história da imprensa italiana que isso acontece. Por meio de um editorial, o editorchefe do La Reppublica justificou o ato: “Publicamos uma página em branco para dizer aos leitores que a democracia entrou em curto-circuito”. Em Milão, o Vice-Procurador Armando Spataro – que se especializou em crimes de terrorismo, máfia e corrupção – alertou os cidadãos que a lei vai dificultar a investigação de crimes. “Todos os criminosos se aproveitam dessa lei. Se for promulgada, os cidadãos devem saber que sua segurança estará em risco”, afirmou. Desde que foi anunciada pelo Comitê Judiciário do Senado, a nova lei foi muito contestada pela maioria dos meios de comunicação, pelo Sindicato dos Jornalistas e também por membros da magistratura, que temem principalmente que o trabalho de combate à corrupção e à máfia seja prejudicado. A Lei da Mordaça conta com o apoio do partido do Primeiro-Ministro Silvio Berlusconi e já havia provocado uma manifestação de repúdio pela internet que mobilizou cerca de 76 mil internautas. Para que a medida seja aprovada definitivamente e entre em vigor, o projeto depende de nova aprovação pela Câmara dos Deputados e depois tem que ser sancionado pelo Presidente da República, Giorgio Napolitano. (José Reinaldo Marques)


CQC, alvo freqüente da violência Novas agressões e ameaças contra os profissionais do programa humorístico-jornalístico Custe o que Custar, o CQC, da TV Bandeirantes, mostram como é frágil a liberdade de expressão no Brasil, sujeita ao mau humor e arbítrio dos donos do poder. AGÊNCIA NA LATA/BAND

POR MARCOS STEFANO Está virando rotina e isso é preocupante. No final de junho e começo de julho, a equipe do programa Custe o que Custa, conhecido como CQC, exibido pela Rede Bandeirantes, foi vítima de violência durante a realização de suas reportagens. O primeiro incidente aconteceu em São Bernardo do Campo, no ABC paulista, e o segundo, em Analândia, interior de São Paulo. Nas duas oportunidades, o repórter e humorista Danilo Gentili e a produção do programa apuravam denúncias quando foram agredidos e impossibilitados de realizar as matérias. Sofrer violência e ser censurado não é propriamente uma novidade para o CQC, mas nos últimos tempos essas situações vêm sendo cada vez mais comuns, contando até com apoio do Poder Público. A violência em São Bernardo Na tarde de 22 de junho Gentili e a equipe do CQC foram ao Centro de Formação de Professores de São Bernardo do Campo-Cenforpe para fazer uma reportagem para o quadro Proteste Já, denunciando o risco de desabamento de uma escola construída ao lado de um barranco. Quando saíam do local, eles foram abordados por integrantes da Guarda Civil Metropolitana. De acordo com o repórter e com a matéria que foi ao ar na semana seguinte no CQC, toda a equipe foi empurrada novamente para dentro do prédio. Cinco dos oficiais o seguraram pelo pescoço, torceram seu braço e lhe deram socos, inclusive, no rosto. Após a violência, tentaram algemá-lo e deram voz de prisão à equipe, alegando desacato. “Foi uma agressão gratuita e covarde. Tenho todas as imagens para comprovar que sou uma vítima no caso”, declarou Danilo Gentili no twitter. Os guardas contam uma versão diferente. Além de garantir que não foram violentos – mesmo que as cenas gravadas mostrem o contrário –, dizem que Gentili primeiro os ofendeu. No boletim de ocorrência, eles dizem que o jornalista os teria chamado de “guardinhas de merda que não mandavam nada e deveriam estar na praça cuidando de pombos”. No 3º Distrito Policial, para onde todos foram encaminhados, Gentili confirmou que houve ofensa, mas só depois da agressão. O repórter submeteu-se a exame de corpo de

A trupe do CQC enfrenta a truculência de políticos incomodados com as reportagens do Proteste Já e de perguntas sem meias palavras.

delito, logo após ser liberado. Para investigar o caso, a Polícia instaurou inquérito que deverá apurar tanto o afirmado abuso de autoridade quanto o suposto desacato. A violência em Analândia Poucos dias depois, em 1º de julho, os profissionais do CQC foram para Analândia, onde apurariam irregulari-

O protesto de Marcelo Tas Em entrevista ao ABI Online, o ator e jornalista Marcelo Tas, apresentador do CQC, mostrou grande preocupação com os repetidos incidentes e com a tolerância com que a sociedade e as autoridades tratam casos de censura e de violência contra a imprensa: “Penso que a situação da liberdade de expressão no País

dades na administração municipal. Quando tentavam entrar no prédio da Prefeitura local, sofreram nova agressão. Ao se identificarem, Gentili levou um soco na barriga e o produtor Yuri Cruz Costa teve sua mão prensada na porta. Vanderley Vivaldini Júnior, representante da Associação dos Amigos de Analândia-Amasa, que acompanhava a equipe,contou que os jornalistas foram agredidos por José Roberto Pe-

mostra sintomas de raquitismo diante da truculência e impunidade dos coronéis de sempre. É lamentável, depois de décadas de luta por redemocratização vermos a plena força de mãos pesadas que calam jornalistas, fecham blogs, processam veículos, causando constrangimentos profissionais, ameaças emocionais e prejuízos financeiros. A nova modalidade dessa nova censura se mostrou nas recentes agressões às equipes do CQC. Tanto por guardas

rin, ex-Prefeito do Município e atual Chefe de Gabinete do Prefeito, e Luiz Fernando Carvalho, vereador e cunhado de Perin. “Não houve nenhum tipo de discussão. O Prefeito Luizinho Garbuio simplesmente se recusou a atendê-los e chamou os assessores, que vieram com truculência”, contou Vivaldini depois que Gentili e Costa registraram boletim de ocorrência.

municipais em São Bernardo do Campo, quanto em pleno Congresso Nacional. Na mesma semana ainda tivemos o caso de uma repórter do SBT sendo agredida por um vereador do Democratas, vejam que ironia! É importante os jornalistas e os veículos tomarem uma posição firme diante de tão perigosos precedentes. Além de inconstitucionais, tais atos vão contra o rumo do aperfeiçoamento da sociedade brasileira e da saúde de nossa jovem democracia”.

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Mensagens

Liberdade de imprensa

Trabalhando no CQC, Danilo Gentili já foi agredido no Senado, em Analândia, em São Bernardo do Campo...

meçou a nos xingar com palavrões e a nos chamar de corintianos. Tomei até uma gravata de um deles. Se não fosse um santo segurança do estádio, eu, o cinegrafista e o produtor teríamos apanhado feio. Sorte que o grandão e outro torcedor mais consciente apareceram para nos ajudar ”, contou Andreoli na ocasião. No mesmo dia, mas em Brasília, Danilo Gentili já havia sido agredido por seguranças do Senado, quando tentava entrevistar seu Presidente, Senador José Sarney (PMDB-AP). O jornalista tentou abordar o Senador e perguntar se, com sua saída, os escândalos ainda continuariam. Nesse momento, os seguranças o impediram e o derrubaram no chão. No ano anterior, o humor debochado do CQC já tinha provocado estragos no Congresso, tanto que em abril de 2008 o programa chegou a ser proibido de entrar no Senado. Porém, como essa determinação só acabou por dar mais força às sátiras dos repórteres, que passaram a gravar depoimentos com parlamentares simpáticos, pedindo a volta da equipe ao Congresso, a ordem foi revogada.

AGÊNCIA NA LATA/BAND

Censura prévia em Barueri Em março deste ano, o incidente foi na Prefeitura de Barueri, na Grande São Paulo. Após uma ação movida pelo órgão público, o CQC foi impedido de exibir o quadro Proteste Já com uma reportagem que mostrava como um aparelho de televisão doado a uma escola do Município foi localizado na casa da diretora da instituição. A ação acatada pela Juíza Nilza Bueno da Silva, da Vara da Fazenda de Barueri, afirmava que a matéria não poderia ser exibida sem antes ter o direito de resposta. Na época, a direção

da atração reclamou da decisão, classificando-a como uma “proibição velada”, uma “censura prévia”. Depois da repercussão das últimas agressões a Danilo Gentili e ao pessoal do CQC, a Prefeitura de São Bernardo do Campo – cujo Prefeito Luiz Marinho (PT) é responsável também pela censura prévia imposta judicialmente ao Diário do Grande ABC – divulgou um comunicado em que informa que abriu um inquérito administrativo para apurar a violência. O caso está sendo investigado pela Corregedoria-Geral da Guarda Civil Metropolitana. Na nota, o Secretário de Segurança Urbana, Benedito Mariano, diz que solicitará à produção do programa a cópia na íntegra das imagens, e não somente o conteúdo editado pelo CQC. Na semana seguinte ao incidente em Analândia, o CQC enviou uma nova representante. Desta vez, a escolhida foi a jornalista Mônica Iozzi, que só se dirigiu à cidade depois de ter a garantia de que alguém da Prefeitura a receberia. Apesar de Mônica ter ficado à espera de algum representante da Prefeitura, ninguém apareceu. O órgão apenas comunicou que o tratamento de esgoto da cidade, no qual foram investidos R$ 2 milhões, continua sem funcionar. Com ou sem boa vontade das autoridades, o fato é que os problemas com censura e violência contra o trabalho do CQC não devem ser superados tão facilmente. Adaptado de uma atração argentina chamada Caiga Quien Caiga, a versão brasileira rende muita polêmica por transitar entre o humor e o jornalismo. Ninguém é obrigado a rir com o sarcasmo e com as provocações da atração, mas apoiar agressões ou proibição de seus profissionais realizarem seu trabalho de denúncia, legítimo por sinal, não tem a menor graça.

Mais agressões a jornalistas Outro grave caso de violência contra jornalistas envolveu a repórter Márcia Pache, da TV Centro-Oeste, retransmissora do SBT em Pontes e Lacerda (MT) que foi agredida com um tapa no rosto pelo Vereador Lourivaldo Rodrigues de Moraes (Dem-MT), conhecido como Kirrarinha. Registrada pelas câmeras da equipe de TV, a agressão ocorreu no dia 28 de junho, quando Márcia tentava entrevistar o parlamentar que foi indiciado por esbulho possessório e denunciação caluniosa. Em nota, o Sindicato dos Jornalistas de Mato Grosso-Sindijor-MT repudiou a agressão sofrida pela jornalista e colocou a assessoria jurídica da entidade à disposição da repórter, que pretende processar o agressor. Esta não é a primeira vez que o parlamentar usa de vi-

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olência contra a imprensa. Segundo o Sindijor-MT, o jornalista Celso Garcia, da TV Record, foi agredido em 2007 pelo Vereador. Representantes de veículos de imprensa da região realizaram manifestação em frente à Câmara de Vereadores da cidade para exigir do Presidente da Casa, Vereador Claudinei Cela, a abertura de processo para investigação de possível quebra de decoro parlamentar de Moraes, o que pode provocar a cassação do mandato. Agressão em Bebedouro O repórter Marco Antônio dos Santos, da Gazeta de Bebedouro, também foi agredido por guardas municipais no final de junho ao tentar cobrir uma entrevista coletiva do Prefeito da cidade

de Bebedouro, SP, João Batista Bianchini, conhecido como Italiano. A Prefeitura teria anunciado a coletiva para outros veículos, com exceção da Gazeta e da Rádio Bebedouro AM. No encontro, o Prefeito responderia a questões relacionadas ao relatório da chamada CPI de Italiano, na qual o Prefeito Bianchini é investigado. Ao tentar participar da entrevista, o repórter foi contido por guardas municipais. “Não deram mais nenhuma explicação, chamaram os guardas para me intimidar e imobilizar para que eu não conseguisse participar da coletiva”, contou Marco Antonio. Ele contou que os agressores o soltaram “somente após ordem da assessoria de imprensa, que viu que todos os jornais fotografavam a cena, e me deixaram acompanhar a coletiva”.

Aplausos de Sirotsky e Calheiros Bonfim Duas manifestações de aplausos a Edição 353 do Jornal da ABI, com data de capa abril de 2010, foram recebidas pela Casa, uma enviada de Tel Aviv, Israel, pelo jornalista Nahum Sirotsky (foto), que considera que a publicação deveria ser vendida em bancas, e outra encaminhada pelo advogado B. Calheiros Bomfim, que classifica de “excelente” a matéria de contestação das declarações do General Leônidas Pires Gonçalves. A ABI agradeceu as mensagens, sublinhando em e-mail a Sirotsky que divulgaria sua manifestação no Site e no Jornal da ABI, “para que os leitores conheçam o opinamento de um jornalista extraordinário”: ele, Sirotsky respondeu: “Oi, Maurício: se eu fosse tão bom assim, isto pensariam de mim no IG, no Último Segundo e no Zero Hora, onde sou mero colaborador ”. Calheiros Bomfim, que é o decano dos advogados trabalhistas do Rio de Janeiro e aos 90 anos ainda atua nos fóruns da Justiça do Trabalho, afirma em sua mensagem que “o Jornal da ABI presta relevante serviço à nação, relembrando as ilegalidades, violências e torturas, com o que contribui para manter viva a memória da ditadura militar, a fim de que não sejam esquecidas”.

A MENSAGEM DE SIROTSKY O Jornal da ABI que recebi hoje é para ser vendido em bancas. Está um trabalho profissionalíssimo até no leiaute. Conhece New York Books? Creio exista no Consulado Americano: é papel jornal que sangra significados. O Jornal da ABI tem tudo para ser jornal sobre jornalismo. O Observatório da Imprensa é crítico e bom. O ABI poderia ser sobre jornalismo em geral. Há milhares de colegas e estudantes que o desconhecem. Pense nisso: Você tem equipes ansiosas por escrever sério.” A MENSAGEM DE CALHEIROS BOMFIM “Prezado Presidente Maurício Azêdo, Permita-me felicitá-lo pelo precioso número do Jornal da ABI, de maio de 2010. Trata-se de uma edição histórica, contendo noticiário, reportagens e depoimentos sobre um período sombrio e nefasto que se abateu sobre o País. Excelente a matéria desmentindo as declarações do General Leônidas Pires Gonçalves. O Jornal da ABI presta relevante serviço à nação, relembrando as ilegalidades, violências e torturas, com o que contribui para manter viva a memória da ditadura militar, a fim de que não sejam esquecidas. Com o maior apreço e admiração do (a) Calheiros Bomfim.”

ARQUIVO ABI

Agressões no estádio e no Senado Federal A violência contra os jornalistas do CQC em São Paulo foi apenas mais um capítulo de uma trajetória de polêmicas e outras confusões. No dia 1º de julho de 2009, o repórter Felipe Andreoli e sua equipe foram agredidos por torcedores do Internacional, no Estádio Beira-Rio, em Porto Alegre, RS, quando faziam matéria sobre a decisão da Copa do Brasil contra o Corinthians. “Quando tentamos gravar, um grupo de torcedores se aproximou e co-


COLAPSO

O JB no clímax da agonia O centenário jornal anuncia o fim a partir de 1 de setembro de sua versão impressa. Esse recurso é uma forma de adiar a morte do jornal, diz Alberto Dines, um dos responsáveis pela qualidade e prestígio do JB em seu apogeu. POR JOSÉ REINALDO M ARQUES “A decadência do Jornal do Brasil me faz sofrer profundamente”. Essa foi a confissão do jornalista Carlos Lemos, que durante muitos anos foi um dos principais editores do JB, sobre a notícia de que o diário não irá mais circular. Lançado em 9 de abril de 1891, o Jornal do Brasil se tornou uma das mais importantes publicações do País em 119 anos de existência, mas isso não foi suficiente para mantê-lo vivo: a partir de 1° de setembro próximo o jornal será editado apenas em versão para a internet. A comunicação foi feita pelo empresário Nélson Tanure, dono do jornal, no dia 13 de julho, dois dias antes de ser publicado um anúncio de página dupla no próprio veículo, que buscava esclarecer a decisão aos seus leitores. De acordo com o texto da publicidade, a mudança de plataforma não vai prejudicar a tradição do jornal: “O Jornal do Brasil, coerente com sua tradição de pioneirismo e modernidade, se coloca mais uma vez à frente do seu tempo. A partir de 1º de setembro de 2010, passa a ser o primeiro jornal 100% digital gital” (grifo do jornal). Dizem os responsáveis pelo JB que a medida foi adotada depois de uma consulta que teve aprovação dos leitores, os quais responderam a uma pesquisa na internet sobre a mudança da edição impressa para a digital, publicada na edição do dia 30 de junho. De acordo, porém, com informações de fontes do mercado editorial, a decisão de Tanure de encerrar a carreira impressa do JB está ligada a dívidas acumuladas pelo diário, estimadas em R$ 100 milhões, além da queda na circulação. Como não houve compradores interessados em adquirir o centenário veículo, Tanure optou pela edição digital, vi-

sando a minimizar custos. A notícia contrariou o Presidente do Jornal do Brasil, Pedro Grossi, que foi demitido do cargo por Tanure por discordar da medida. Grossi ocupava o cargo de Presidente da Docasnet, holding que administra o JB. Ele tomou conhecimento da sua demissão no dia 12 de julho, e enviou um e-mail aos editores e diretores do jornal, em que explicava que deixava a função porque discordava da decisão de se limitar a edição do Jornal do Brasil à internet. A informação de que o Jornal do Brasil vai acabar com a sua versão impressa gerou um clima de preocupação entre os profissionais que trabalham na Redação. Os funcionários não querem se identificar, mas criticaram a forma como a direção do jornal vinha conduzindo o assunto. Reclamam que ficaram sabendo do suposto encerramento da publicação por meio de informações divulgadas em outros veículos. O começo do fim? O fim da versão impressa do JB foi assunto na maioria dos jornais brasileiros, além de em publicações do exterior, como The Guardian (Inglaterra), Clarín (Argentina), ABC Color (Paraguai) e a revista BusinessWeek (EUA). O jornalista Alberto Dines, que dirigiu a Redação do JB durante 13 anos e atualmente mantém o Observatório da Imprensa, disse que a migração da edição impressa para digital é apenas uma forma de protelar o fim do jornal.

A reação de Grossi Depois de sua demissão, o Presidente do JB, Pedro Grossi, enviou o seguinte comunicado aos editores e diretores do jornal: “Prezados, Em almoço realizado hoje (segunda-feira 12), na presença do Dr. Ronaldo Carvalho e da Dra. Ângela Moreira, o Dr. Nélson Tanure informou que publicará na edição de amanhã do Jornal do Brasil uma notificação assinada pela direção da empresa e dirigida aos leitores na qual explica a transposição do jornal escrito para o tecnológico (internet). Considerando que isto contraria a razão pela qual fui contratado, solicito, sem perda de meus direitos, que do expediente do jornal e de todas as revistas não conste mais meu nome.”

Nas páginas do JB, a História viva, como no episódio da troca de presos políticos pelo Embaixador Charles Elbrick, em 1969.

guntam eu digo que foi o responsável pela minha decisão de me tornar jornalista. Então, fui me preparando para ouvir essa notícia.” Em entrevista ao ABI Online em 14 de agosto de 2009, Ancelmo contou que quando era menino em Aracaju já demonstrava “uma paixão total e absoluta pelo JB”. Todo dia ele e um grupo de garotos se dirigiam ao aeroporto da cidade, na carona de um jipe velho, para buscar os exemplares do Jornal do Brasil que chegavam ao Município em um avião da Varig.

“Esse recurso de virar online é uma forma de adiar a sua morte. A história do JB pode ser resumida em um século de glória e duas décadas de agonia”, declarou Dines em entrevista à Rádio CBN. “É uma das piores notícias que tive como jornalista nos últimos anos”, disse Sérgio Cabral, Conselheiro da ABI e um dos grandes colunistas que atuaram no Jornal do Brasil no seu período áureo. Cabral lamentou muito a hipótese de nunca mais ler o jornal na sua versão impressa: “O melhor da minha carreira jornalística eu vivi no JB, período do qual eu tenho muita saudade. O meu sonho era acertar um prêmio numa dessas loterias mundiais e comprar o JB para salvá-lo. Essa decisão sobre o jornal é realmente lamentável”. O colunista de O Globo Ancelmo Gois também lamentou a decisão dos donos do JB, mas disse que já vinha se preparando para ouvir essa notícia há muito tempo: “Na verdade, quando entrou no processo de decadência eu comecei a não reconhecer naquele jornal o meu Jornal do Brasil, que me causava tanta emoção, aquele que quando me per-

Sindicato de luto Em entrevista ao site Comunique-se, o Vice-Presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro, Rogério Marques Gomes, disse que os maiores problemas relacionados ao JB eram os atrasos salariais e a forma de contratação dos profissionais que atuam na Redação. “A maior irregularidade do JB é a contratação de um grande número de jornalistas como pessoa jurídica”, salientou. Disse Rogério Gomes que o Sindicato estava de luto pelo fim da versão impressa do JB e considerou a situação péssima para a democracia, “porque o Rio de Janeiro fica numa situação de transmitir praticamente uma opinião só, a do grupo Globo”. Revelou Rogério que a Diretoria do Sindicato teme que a situação do JB se transforme em um problema para os jornalistas, como aconteceu com a extinção da TV Manchete. “Perder o JB é perder uma parte da História do Brasil. Vamos acompanhar rigorosamente de perto, para que não aconteça o que aconteceu com a TV Manchete”, declarou. Ameaça a 180 Trabalham no Jornal do Brasil 180 funcionários, dos quais 60 formam a equipe da Redação do veículo, que tem uma tiragem de 17 mil exemplares durante a semana e de 22 mil aos domingos, conforme dados do Instituto Verificador de Circulação-IVC. Jornal da ABI 356 Julho de 2010

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TECNOLOGIA

A nova velha técnica 3D Jornais de São Paulo lançam produtos com a tecnologia 3D para promoção e atraem anunciantes interessados no modismo, novidade nos anos 1950. POR S IBELE OLIVEIRA A nova onda 3D, que ressurge com força total em blockbusters do cinema, aparelhos de tv e jogos eletrônicos, está despertando a atenção não apenas do consumidor interessado nas novas experiências que essa tecnologia pode proporcionar. Ela está chamando a atenção dos profissionais de marketing dos jornais para as novas possibilidades comerciais que surgem. Longe de ser algo moderno – revistas com conteúdo em 3D já foram publicadas desde a década de 1950 –, a nova técnica começou a ser testada novamente, não só para tornar os anúncios mais atrativos, mas também as fotos e ilustrações que acompanham as reportagens. Em março, o jornal franco-belga La Deniére Heure publicou uma edição em 3D e em junho foi a vez do tablóide britânico The Sun e do norte-americano Philadelphia Inquirer. Durante a Copa do Mundo, leitores brasileiros também se depararam com imagens aparentemente fora de registro ao folhear o recém-lançado MTV na Rua, mas bastava colocar os óculos que foram distribuídos com os exemplares para que as fotos e ilustrações ganhassem nova perspectiva. “A idéia de fazer uma edição especial em 3D surgiu exatamente porque essa tecnologia seria apresentada nas transmissões da Copa do Mundo”, disse Noelly Russo, Diretora de Redação do MTV na Rua, que publicou um caderno com essa tecnologia para promover o veículo na semana de seu lançamento, em 11 de junho. “Imagens em 3D são lúdicas e têm tudo a ver com a nossa proposta, que é devolver ao meio impresso uma certa irreverência e o prazer de ler”, salienta. Folha x Estadão No final do mês, a Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo repetiram o feito, porém com algumas diferenças entre os dois jornais. Ambos estamparam fotos e peças publicitárias tridimensionais nos seus cadernos de tecnologia e os preencheram com matérias sobre o funcionamento da técnica e seu uso no cinema. Porém, enquanto a Folha destacou na edição de 27 de junho as transmissões hiper-realistas 30 Jornal da ABI 356 Julho de 2010

Tanto a Folha quanto o Estadão fizeram chamada de capa para seus respectivos cadernos de tecnologia impressos em 3D.

dos jogos da África, o Estado, em sua edição do dia 28, apostou no gancho dos produtos eletrônicos e publicou anúncios produzidos em imagens tridimensionais em todo o jornal. “Não é uma iniciativa pioneira, mas o projeto foi concebido desde a pauta para fazer o melhor uso do 3D. A gente queria explorar e demonstrar para os nossos leitores no meio impresso o que eles costumam ver nos filmes. Tudo foi muito planejado e o retorno do público foi positivo. Recebemos muitos e-mails, mensagens no Twitter e nos blogs”, diz Ilan Kow, Editor-Chefe de publicações de O Estado de S. Paulo. Imagens em três dimensões não são meros recursos estéticos usados para enfeitar os textos. É o que garante o Diretor-Executivo de Circulação e Marketing da Folha de S. Paulo, Murilo Bussab. “Se mostradas no formato 3D, imagens com um infográfico diferente, um diagrama, o Palácio Presidencial do Haiti depois do terremoto ou o solo lunar apresentam um ganho de conteúdo, inclusive ficam mais produtivas do ponto de vista jornalístico”. Puro marketing Não é o que pensa o jornalista Carlos Castilho, que mantém o blog Código Aberto – sobre a relação entre o jorna-

lismo e as novas tecnologias – no Observatório da Imprensa. Diz ele que fotos e ilustrações em três dimensões acrescentam informações ao texto apenas quando recebem o tratamento adequado e são vistas com óculos de boa qualidade. “Pelo que vi, sobretudo em jornais americanos com a tecnologia, não chegam a causar uma grande impressão”, analisa. “As imagens em 3D agregam uma nova dimensão, mas não são substitutas da realidade, estão longe de ser. Por terem altura, largura e profundidade, impressionam bem mais que uma imagem em 2D. É uma experiência válida, mas, no momento, isso é muito mais uma jogada de marketing do que uma jogada jornalística”, destaca Castilho, que lembra que “é preciso desenvolver conteúdos específicos para 3D; não se pode aplicar a tecnologia em qualquer fotografia, qualquer ilustração”. Além do orçamento Criar uma pauta para aproveitar bem os recursos da tecnologia 3D e tornar a edição atrativa e financeiramente viável não é uma tarefa simples. Mas, como não faz sentido ficar repetindo a mesma pauta e os óculos custam caro – eles só podem ser distribuídos se forem bancados por um grande patrocinador –, é provável que demore algum tempo antes de os veículos lançarem uma nova edição em 3D, apesar da demanda do mercado publicitário. “Percebemos uma oportunidade de mercado porque os grandes anunciantes de televisores e outros segmentos

estão falando muito em 3D. É o momento do 3D”, reagiu com entusiasmo Roberto Proença, Gerente de Negócios Especiais de O Estado de S. Paulo. A grande preocupação no lançamento do caderno, diz Proença, era informar ao leitor com bastante antecedência e de forma didática sobre a novidade para que não parecesse que as fotos estavam com um problema técnico. “Deu tão certo que já temos consultas do mercado para próximas edições. Se houver uma confluência de interesses, do ponto de vista dos anunciantes e, quem sabe, algo que tenha importância para a nossa Redação, podemos ter uma nova edição. Temos, pelo menos, duas datas em vista no segundo semestre com opções publicitárias em 3D”, avalia Roberto Proença. O ônus: os óculos A curiosidade do público até elevou um pouco o volume de vendas, mas, diz Murilo Bussab, a viabilização dos projetos só foi possível porque os jornais receberam patrocínio e não precisaram pagar pelos óculos. “O custo de publicar uma foto em 3D não é representativo para o jornal, mas encartar óculos em mais de 300 mil exemplares, tiragem daquela data, é muito caro. Representa, em média, R$ 300 mil a mais”, afirma Bussab. “Como a Folha é um jornal altamente baseado em assinantes – na casa de 95% de assinantes e 5% a 6% de venda avulsa –, a circulação não aumentou muito. Foi mais uma experiência para retomar o assunto e atualizar o nosso material editorial com o que acontece no mundo, do que trazer mais leitores.” Necessidade? Não Ao que tudo indica, as próximas experiências dos veículos impressos com a tecnologia 3D estarão mais próximas de atender a um plano de marketing do que a uma necessidade editorial.


BARRIGA

Folha erra em anúncio de patrocinador da Seleção O jornal publicou após o jogo contra o Chile uma peça publicitária em tom despedida da Copa, que só ocorreria dias depois, diante da Holanda. O Departamento Comercial da Folha de S. Paulo cometeu um grave equívoco ao publicar no caderno Copa 2010 do dia 29 de junho, um dia após a vitória do Brasil sobre o Chile, o anúncio errado da rede de supermercados Extra, um dos muitos patrocinadores da Seleção Brasileira. Na peça publicitária o tom era de despedida. Como se sabe, o Brasil só seria eliminado da Copa no jogo seguinte, contra a Holanda. Sem contar um calhau da Kalunga, o anúncio do Extra era o menor dos cinco publicados naquela edição (CVC, Mercedes-Benz, Band e Rádio Transamérica), um rodapé com apenas 8 cm de altura e um título confuso que usou o idioma Zulu para citar a palavra “seleção”: “A I quembu le sizwe sai do Mundial. Não do coração da gente”. Se não fosse pela falha cometida pela equipe da Folha a peça jamais teria sido tão comentada. O erro provocou a indignação do empresário Abílio Diniz, Presidente do Conselho de Administração do Grupo Extra/Pão de Açúcar, que divulgou nota no seu microblog, na qual pede desculpas “aos brasileiros e, principalmente, aos jogadores da Seleção”. A mensagem de Diniz diz também o seguinte: “Não compartilhamos com a impunidade e to-

tar publicamente com a correção do material, visto que, como patrocinador da Seleção, a rede Extra tem sido um entusiasta do time brasileiro”. “Mancada”

O episódio do anúncio ganhou grande repercussão no Twitter e foi classificado pela ombudsman da Folha, Suzana Singer, como uma “mancada”. Ela admitiu o erro do jornal e publicou o seguinte: “Saiu anúncio errado do Extra hoje por problema de inserção da Folha. Sairá errata amanhã. Tremenda mancada”. Suzana afirmou que, devido a um problema ocorrido no deparNo tablóide Copa 2010 um pequeno anúncio se tamento de inserção de anúncios transformou num grande problema para a Folha. do jornal, o anúncio do Hipermercado Extra tinha sido publicado maremos as providências, que não eliequivocadamente, e que a Folha lamentaminarão o erro, mas irão responsabilizar va o erro. Em sua edição do dia seguinte, a os culpados”. Folha de S. Paulo se desculpou pela confuDe seu lado, o supermercado Extra são e publicou uma errata e a versão corredivulgou nota à imprensa lamentando ta do anúncio do Grupo Pão de Açúcar. o erro e afirmando que cabe ao jornal a A errata, assinada pelo Departamento retratação. “A empresa informa que a Comercial do jornal, que lamenta o erro, Folha de S. Paulo errou na seleção do também foi veiculada no Caderno Copa material para publicação e irá se retra2010. “Comunicamos que erramos na

publicação do anúncio do Extra, referente ao resultado do jogo entre Brasil e Chile, publicado por este veículo de comunicação no dia 29 de junho de 2010, pág. D11. Ao invés do anúncio de vitória do Brasil, foi publicado, equivocadamente, anúncio citando a derrota. Lamentamos o ocorrido”, diz o comunicado. A ampla repercussão do caso na internet e nos meios de comunicação fez com que o Extra também veiculasse um anúncio de página inteira na página 9 do primeiro caderno da edição. Sem mencionar diretamente o jornal, o texto explica aos leitores por que a peça publicitária foi publicada errada: “Somos apaixonados por futebol e acreditamos no nosso time. Sempre torcemos pela vitória, mas temos que encarar as duas possibilidades de um jogo de mata-mata: ou ganhamos ou perdemos. Por isso, criamos dois anúncios para o jogo do Brasil: um em caso de vitória (e queremos publicar mais três até a conquista do Hexa) e outro em caso de derrota mostrando nosso apoio também nos momentos difíceis. Ontem (terça), infelizmente houve um equívoco e publicaram o anúncio errado. Veja no Caderno de Esportes a errata esclarecendo o ocorrido. E veja abaixo o anúncio que deveria ter sido publicado”.

LANÇAMENTO

MTV vai às ruas com jornal gratuito Canal especializado da televisão cria publicação para continuar falando aos jovens, agora a céu aberto. POR SIBELE OLIVEIRA Após anos de sucesso consolidado na televisão, a MTV parte para o mercado de jornais gratuitos, utilizando a mesma receita com a qual conquistou seu público fiel: irreverência, humor e contestação. Com circulação de segunda a sexta-feira e tiragem inicial de 150 mil exemplares, o MTV na Rua, que teve seus primeiros exemplares distribuídos em 7 de junho nas principais vias da capital paulista, faz parte de um projeto da MTV “de oferecer a seu público e clientes a possibilidade de mídia em 360 graus, com tv, site e jornal”, informou a Diretora de Redação Noelly Russo. “O MTV na Rua surgiu da percepção de que este formato de jornal, gratuito e tablóide, tinha total adequação ao público da emissora. As notícias rápidas e curtas, os títulos mais irreverentes e um portfólio de assuntos que se distancia do cardápio tradicional dos grandes jornais fazem que o jornal seja bem recebido pelos jovens, e, o que mais tem nos surpreendido, por leitores de outros veículos também”, disse. Além de atrair os jovens, muitos dos quais não cultivam o hábito de ler jor-

nais impressos, o MTV na Rua disputa com os concorrentes a preferência dos leitores adultos, mesclando colunas que abordam assuntos mais leves, como baladas, celebridades e esportes, com temas mais sérios, como política e cidadania. Dividida em cinco editorias – Geral (cidades, política, economia e internacional), Almanaque (cultura), Arena (esportes), Combo (estilo de vida) e Etc (quadrinhos, horóscopo e cruzadas) –, a pauta do jornal de 16 páginas é trabalhada sem compartimentar as notícias de maneira fixa, com o propósito de não estabelecer uma rotina. “Gostamos de pensar no jornal como um companheiro que percorre as ruas a caminho do trabalho ou da faculdade, sempre surpreendendo e apresentando questões com uma abordagem diferente, provocante”, diz Noelly. Para acompanhar a proposta editorial, o projeto gráfico do MTV na Rua é limpo e direto, sem deixar de ser vibrante e jovem. “No lugar dos fios dividindo os blocos de informação, adotamos colunas falsas, abrindo áreas brancas para arejar as páginas, com blocos de texto simples sem elementos invasivos atrapalhando

a leitura”, explicou Fábio Machado, Editor de Arte. “Conseguimos energia com uma paleta de cores pequena, mas viva e brilhante, bem definida na temperatura. Para completar, uma gama variada de ícones apresenta assuntos de maneira leve e bem humorada”. Aposta nos quadrinhos

Com a intenção de imprimir uma identidade criativa ao jornal, os idealizadores do MTV na Rua reuniram um time de cartunistas, que se revezam durante a semana. “A decisão de ter um nome diferente a cada dia tem como objetivo aproveitar ao máximo o potencial do artista convidado e abrir a possibilidade para ele usar linguagens diferentes. É quase como uma tela, na qual ele decide se faz um painel, uma charge, uma história”, afirma Douglas Vieira, Editor de Cultura. Diz Douglas que desde o início do projeto a idéia foi misturar nomes consagrados do cartum com talentos da nova geração. “Entre os grandes potenciais dos últimos anos, trouxemos Arnaldo Branco e André Dahmer, que já possuem uma tra-

jetória muito legal na internet”, explicou. Mauro A., que ganhou fama na web com a tira Wagner & Beethoven, já publicada também na revista Playboy, é a aposta do MTV na Rua. “Ele criou exclusivamente para o jornal a hq Conan, Repórter Investigativo”, informou Vieira. “Para fechar o grupo, trouxemos dois quadrinistas consagrados: Laerte, um dos nomes mais importantes da hq brasileira, e Gilbert Shelton, criador dos Freak Brothers e ícone da contra-cultura norte-americana dos anos 60. Shelton foi referência para o trabalho do próprio Laerte e também para outros grandes do Brasil, como o Angeli”, concluiu Douglas. Jornal da ABI 356 Julho de 2010

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LEMBRANÇA

PATRÍCIA SANTOS/FOLHA IMAGEM

Dez anos sem Barbosa Lima Aos 103 anos, em 16 de julho de 2000, deixava-nos aquele que foi o mais jovem e o mais velho jornalista a ocupar a Presidência da ABI. POR JOSÉ REINALDO MARQUES Em 16 de julho de 2000, Barbosa Lima Sobrinho encerrava sua participação em um capítulo histórico da História do Jornalismo e da democracia do Brasil, na qual se destacou pela cultura, competência e fidelidade aos princípios éticos que fizeram dele uma das figuras mais proeminentes da imprensa do País, e também pelo compromisso com que sempre tratou as questões da cidadania, dos direitos humanos e da prevalência do Estado Democrático de Direito. Com a sua morte abria-se uma lacuna na vida política e cultural do Brasil, que dificilmente será preenchida, pelo carisma e o respeito conquistados pelo Doutor Barbosa, por um longo período dos seus 103 anos de vida, tanto na esfera pública – onde exerceu os cargos de Governador de Pernambuco (1948-1951), Deputado federal (1935-1937 e 1946-1948) e Procurador do Rio de Janeiro, quando este era capital do País –, quanto nos meios acadêmico e jornalístico, sempre com a mesma desenvoltura. Por sua grande atuação na vida política do Brasil, mereceu entusiasmado elogio da economista e ex-Deputada Maria da Conceição Tavares: “Com ele morre também o século XX, pois Barbosa Lima Sobrinho estava atuante em todos os fatos da nossa vida política nesse período. Era defensor do Estado nacional em favor da coisa pública e a memória viva de uma geração inteira”. Em 1926, com menos de 30 anos, Barbosa Lima Sobrinho foi eleito o sétimo Presidente da Associação Brasileira de Imprensa, em substituição a Raul Pederneiras (1915-1917 e 1920-1926). O primeiro mandato foi curto, de 1926 a 1927, mas não impediu que ele, com a sua característica de reformador, logo tenha convocado uma assembléia-geral para realizar mudanças no Estatuto da entidade. Em seguida, promoveu a regulamentação da carteira de jornalista e do título de sócio, além do estabelecimento de convênios com outras associações de imprensa em outros Estados. Barbosa Lima Sobrinho voltou à Presidência da ABI em dois outros mandatos: 1930 a 1932 e 1978 a 2000, este último interrompido com a sua morte. O editorial 103 anos de um imortal, publicado na primeira página do Jornal da ABI, edição número 279 (julho/agosto de 2000), que homenageava o eterno Presidente, ressalta que “enquanto uma pessoa é lembrada ela nunca morre”. 32 Jornal da ABI 356 Julho de 2010

Essa foi realmente uma das principais características que marcaram a vida de Barbosa Lima Sobrinho. Ele jamais será esquecido, assim como a sua imagem está eternizada e se confunde com a da ABI, instituição cujo status de “trincheira da liberdade” ajudou a projetar, dando continuidade ao projeto do fundador Gustavo de Lacerda, em 1908, e de outro grande Presidente da Associação, Herbert Moses, que presidiu a ABI entre os anos de 1931 e 1964. Por ocasião das comemorações do centenário da ABI, celebrado em 7 de abril de 2008, durante uma cerimônia na Academia Brasileira de Letras, o então Presidente da Academia, Cícero Sandroni, lembrou o tempo em que trabalhou com Barbosa Lima Sobrinho e falou sobre a emoção em conviver “com a bravura cívica e o espírito pacifista e conciliador do ex-Presidente da ABI, que, revelou, somente era abalado quando o Fluminense perdia: “Ele é eterno pelas palavras que deixou escritas, muito melhores do que eu poderia fazer ”. Contou Cícero Sandroni que um dia questionou Barbosa Lima Sobrinho em relação à sua jornada de trabalho, por causa da sua idade, e ouviu dele o seguinte: “O tempo que perdemos na ABI ganhamos pelo Brasil”. Igualdade

Convidado a falar sobre o amigo, o jornalista Hélio Fernandes, em um artigo publicado na página 16 daquele número especial do Jornal da ABI, escreveu o seguinte: “Começa hoje mesmo a glorificação e a consolidação das idéias de Barbosa Lima Sobrinho. Veremos todos que tanta luta não foi, nem poderá ser mesmo, esquecida ou desperdiçada” – idéias que Barbosa Lima Sobrinho, tão brilhantemente e com um estilo próprio, apresentava à sociedade brasileira por meio de textos que foram publicados inicialmente no jornal Diário de Pernambuco em 1915. Seu último artigo foi publicado no Jornal do Brasil – do qual durante mais de sete décadas foi um dos principais articulistas – na edição de 16 de julho de 2000. Sob o título A exclusão da classe média, o texto é uma reflexão do Doutor Barbosa sobre as constantes alternâncias de crise que o País viveu desde o golpe militar de 1964, com recorrentes “confiscos e desilusões”, que ameaçavam a sobrevivência da democracia. No texto ele cita o desequilíbrio econômico daquele período, que causava

tanta desesperança na população de maneira geral, em um processo que, segundo ele, provocou inclusive a exclusão da classe média do debate e do cenário econômico. “A igualdade é pressuposto básico da democracia, que, sem ela, não tem condições de sobreviver”, afirma Barbosa Lima Sobrinho no artigo que escreveu para o JB. Biografia

Alexandre José Barbosa Lima Sobrinho nasceu no Recife em 22 de janeiro de 1897. Advogado, jornalista, ensaísta, historiador, professor e político, foi eleito em 28 de abril de 1937 para a Cadeira nº 6 da Academia Brasileira de Letras, sucedendo a Goulart de Andrade. Graduou-se bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais na Faculdade de Direito do Recife, em 1917. No mesmo ano, logo em seguida à sua formatura, exerceu a advocacia e foi adjunto de promotor no Recife. Colaborou na imprensa pernambucana no Diário de Pernambuco, no Jornal Pequeno e principalmente no Jornal de Recife, onde manteve uma coluna aos domingos, entre os anos de 1919 e 1921. Foi também colaborador da Revista Americana, Revista de Direito, Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, Correio do Povo de Porto Alegre, RS, e de A Gazeta, de São Paulo. Ao se transferir para o Rio de Janei-

ro, trabalhou para o Jornal do Brasil, no qual ingressou em 1921, inicialmente como noticiarista e depois, de 1924 até 2000, como um dos principais redatores políticos, função que exerceu até a sua morte escrevendo um artigo semanal para o jornal. Entre as principais obras que escreveu no campo da literatura figuram Árvore do Bem e do Mal, 1926, e O Vendedor de Discursos, 1935. Sobre os temas Direito, História e Jornalismo foram os livros O Problema da Imprensa, de 1923; A Verdade Sobre a Revolução de Outubro, de 1934; Pernambuco: da Independência à Confederação do Equador, de 1979; Estudos Nacionalistas, de 1981, e Assuntos Pernambucanos, de 1986, entre outros. Barbosa Lima Sobrinho foi um dos críticos mais contundentes da ditadura militar instalada no País com o golpe de 1964. Em 1973, candidatou-se à VicePresidente da República, filiado ao MDB. Em 1992, foi uma das principais lideranças do movimento civil que resultou no impeachment do então Presidente Fernando Collor de Mello. Esse foi Barbosa Lima Sobrinho, um ícone nacional, sobre o qual o amigo e jornalista Villas-Bôas Corrêa, que o conheceu em 1948, afirmou: “Barbosa Lima Sobrinho foi uma das maiores figuras do século que não pôde ver terminar”.


PIONEIRISMO

Saudades de um brasileiro exemplar A ABI divulgou no dia 19 de julho declaração em que presta homenagem a Barbosa Lima Sobrinho, cuja atuação na imprensa e na vida pública foi exaltada por diferentes instituições no décimo aniversário de sua morte, ocorrida em 16 de julho de 2000, meses após ele completar 103 anos. Barbosa Lima tinha como norte de sua vida, diz a declaração, esta divisa: “Meu patrão é o Brasil”. A declaração tem o seguinte teor: “A ABI associou-se na semana que passou às homenagens prestadas a Barbosa Lima Sobrinho por motivo do décimo aniversário de seu falecimento, há dez anos, em 16 de julho de 2000. Barbosa completara então 22 anos à frente da ABI, instituição que ele presidiu por três vezes, nos anos 20 e a partir de 1978 até sua morte. Sempre bem humorado, ele chamava a atenção para a singularidade de que era protagonista: foi o mais jovem e, também, mais de meio século depois, o mais velho jornalista a ocupar a Presidência da Casa. Foi o desprendimento de Barbosa Lima que permitiu a consolidação da ABI, fundada em 7 de abril de 1908 pelo jornalista catarinense Gustavo de Lacerda, que seria o seu primeiro presidente e faleceria pouco mais de um ano depois. Após as gestões de Francisco Souto, que completou o mandato de Gustavo, de Belisário de Souza, de Dunshee de Abranches, de João Guedes de Melo e de Raul Pederneiras, a ABI viu-se diante do desafio de se tornar a única entidade do pessoal de imprensa, então dividido por três associações. Companheiro de Barbosa no Jornal do Brasil, o caricaturista e professor de Direito Internacional Pederneiras viu no jovem repórter político vindo em 1921 de Pernambuco credenciais suficientes para assumir a direção da Casa. A seu convite, Barbosa, que se tornara Redator-chefe do Jornal do Brasil em 1924, aos 27 anos, exerceu a Presidência em 1926-1927: era o mais moço dos presidentes que a Casa teve. Após o mandato de Alfredo Neves, em 1928-1929, Barbosa Lima voltou à presidência para a gestão 1930-1931, mas não a completou: renunciou para assegurar a eleição de um presidente que pudesse unificar, como unificadas foram, as entidades então existentes: Herbert Moses, que seria o grande consolidador da ABI No dia-a-dia da cobertura política, Barbosa Lima descobriu e sedimentou

a sua vocação para a gestão da coisa pública e se lançou nos embates políticos, como o da eleição para Governador de Pernambuco, em 1946, em que levou dois anos para que a Justiça Eleitoral o consagrasse como o candidato eleito, em desfavor de seu rival Neto Campelo Júnior. Desde então teve atuação destacada na vida pública, como Presidente do Instituto do Açúcar e do Álcool-IAA; deputado federal em três Legislaturas (1935-1937, 1946-1948, 1959-1963), Deputado constituinte (1946), Governador de Pernambuco (1948-1951) e, em 1973-1974, sob o regime militar, candidato a Vice-Presidente da República na chapa com que o Deputado Ulisses Guimarães, líder da oposição parlamentar, contestou a escalação do Presidente pelos generais quatro-estrelas. Empossado na Cadeira nº 6 da Academia Brasileira de Letras com 40 anos, em 1937, Barbosa Lima produziu densa obra como escritor, em que deixou ver seu talento de polígrafo, com estudos, pesquisas e ensaios em diferentes campos da vida nacional e internacional: economia, História, literatura, Direito, Filologia. Um de seus trabalhos da juventude, O Problema da Imprensa, publicado em 1923, quando tinha 26 anos, é considerado um clássico da historiografia sobre imprena. No crepúsculo de sua fecunda existência, Barbosa Lima publicou obras que constituem imprescindível referência no campo da economia sob a ótica do interesse nacional: Japão: o capital se faz em casa, de 1973, e Em defesa do patrimônio nacional: desinformação e alienação do patrimônio público, de 1994. Barbosa Lima Sobrinho marcou sua passagem pela imprensa e pela vida pública pela forte adesão às idéias de defesa da democracia, da economia nacional e do progresso social. Além de defensor da liberdade de expressão e dos direitos humanos, causas que o levaram já com mais de 80 anos a comparecer a tribunais militares para depor como testemunha de defesa de jornalistas perseguidos pela ditadura, entre os quais Hélio Fernandes, Diretor da Tribuna da Imprensa, Barbosa Lima foi um exemplo de amor ao País e ao povo brasileiro, como expressava numa divisa que constituiu o norte de sua vida: “Meu patrão é o Brasil”. É esse jornalista e estadista que a ABI reverencia com saudade neste décimo aniversário de seu passamento. Rio de Janeiro, 19 de julho de 2010. Maurício Azêdo, Presidente.”

Anna Khoury, o sonho dourado A criadora, há 55 anos, das emissoras de rádio FM no Brasil. POR EDOARDO PACELLI O Brasil perdeu há dez anos uma das mais influentes mulheres no setor das comunicações e da informação: Dona Anna Khoury. Tenaz, combativa, resoluta, Anna Khoury pode ser considerada a equivalente feminina de RoquettePinto e símbolo da luta de emancipação do universo feminino. A história da radiodifusão no Brasil pode-se dizer, está dividida em duas etapas: antes e depois de Anna Khoury. Carioca, Anna era casada com Michel Khoury, um notável criador de peças em metais preciosos. Depois de ter desenvolvido seu papel de esposa e mãe, decidiu realizar o sonho que alimentava desde a infância: ser dona de uma emissora de rádio. Logo encontrou o primeiro obstáculo, pois a miopia dos representantes brasileiros na convenção de Atlanta, Estados Unidos, onde foram distribuídos os canais exclusivos de rádio na América Latina, causou a carência desses canais no Brasil. A freqüência determinada para certo país, além da potência de 100 Kw que, teoricamente, cobria o continente inteiro, não podia ser usada por outra nação. Anna Khoury não desistiu: solicitou e obteve do Presidente da República, Eurico Gaspar Dutra, permissão para entabular, em nome do Governo Brasileiro, negociações para a cessão de bandas de freqüência junto a alguns países da América Latina. Naquele tempo de pós-guerra, transmissores de rádio eram caros, importados e de difícil aquisição. A Argentina, a Bolívia e o Paraguai não tinham ainda conseguido instalar as emissoras a que tinham direito. Anna Khoury, vislumbrando a possibilidade de compartilhar as freqüências desses países, mediante a redução de potência de transmissão para 20 Kw, que permitiria a utilização sem interferências, conseguiu um acordo com aquelas nações. Uma emissora transmitindo em La Paz com 20 Kw, por exemplo, consegue cobrir toda a extensão da Bolívia, satisfazendo as necessidades de comunicação do país. A mesma freqüência de 550 Kw utilizada no Rio de Janeiro cobre todo o Estado do Rio e grandes extensões dos Estados de Minas Gerais e São Paulo, não chegando a ameaçar qualquer interferência na emissora boliviana de mesma freqüência.

Dessa forma foi possível assinar um acordo bilateral entre o Brasil e a Bolívia, para a utilização de sua freqüência exclusiva. Acordos similares foram concluídos com o Paraguai e a Argentina. Como compensação D. Anna Khoury forneceu os equipamentos de transmissão para as respectivas nações. Para alcançar seu objetivo, Anna Khoury percorreu o Continente, conseguindo trazer ao Brasil três canais; como prêmio, recebeu o direito de possuir sua própria emissora, que, para coroar seu sonho dourado, recebeu o nome de Rádio Eldorado, emissora que se tornou conhecidíssima. Mas as raposas estavam de atalaia. Obrigada a se associar com outro, Anna Khoury foi vítima dos jogos de poder do sócio, tanto que teve de ceder a emissora, mantendo, porém, a propriedade do nome Eldorado. Quem nasceu pioneira, todavia, não pode se render a uma derrota. Aceitando o desafio, Anna fundou, em janeiro de 1955, a Rádio Imprensa FM, a primeira emissora em modulação de freqüência do País; como sentia que sua tarefa era a de inovar, criou o serviço de música ambiente, que permanece no ar 24 horas, funcionando por assinatura, como canal privativo irradiado simultaneamente na mesma banda da emissora principal. Aí nasceu o primeiro serviço de teledifusão por assinatura: os receptores eram locados a clientes que ouviam música no ambiente de trabalho. A Rádio Imprensa FM tem o mérito, também, de ter realizado o primeiro transmissor construído no Brasil, devido às dificuldades de importação. E a própria emissora, com o comando de sua Presidente, teve de iniciar a primeira indústria de rádios receptores de FM. Com programação exclusivamente musical, sem qualquer locução, a Rádio Imprensa era, até 1976, a única emissora em FM no ar no Brasil. Somente 20 anos depois de sua inauguração, com o boom das FMs, surgiram as outras emissoras. Anna Khoury continuará vivendo nos corações de quem teve a sorte de conhecê-la e admirá-la: é a pioneira, a mulher que soube fazer de um sonho dourado um Eldorado sonho. Jornal da ABI 356 Julho de 2010

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DEPOIMENTO

FOTOS: ARQUIVO PESSOAL

OSWALDO MIRANDA BODAS DE PLATINA NA ÁREA DE COMUNICAÇÃO Criador de programas e promoções em jornal, rádio e televisão, Miranda evoca com impressionante lucidez momentos significativos das sete décadas de sua marcante trajetória profissional. POR JOSÉ REINALDO MARQUES

Aos 90 anos de idade, com mais de 70 de profissão, o jornalista Oswaldo Miranda continua cheio de idéias e com o mesmo estilo vibrante que marcou toda a sua trajetória na imprensa, no rádio e na televisão. Miranda nasceu em 15 de dezembro de 1919 num sobrado em frente à Igreja do Sagrado Coração de Jesus, na cidade de Petrópolis, região serrana do Rio. A proximidade de sua cidade natal com a então capital do País levou-o a fazer os primeiros contatos profissionais nas rádios da época. Mas foi no jornalismo impresso que logo se destacou. Trabalhou nos jornais Tribuna de Petrópolis, A Noite, Gazeta de Notícias; viu surgir a Última Hora de Samuel Wainer. Passou pela Rádio Tupi, participou da criação da revista Radiolândia, conheceu J. Silvestre, com quem realizou um dos maiores programas da TV brasileira: Show Sem Limite. Nesta entrevista, Oswaldo Miranda fala de Assis Chateaubriand, de Getúlio Vargas, da sua relação com Samuel Wainer, de Carlos Lacerda, e de como desenvolveu a primeira assessoria de imprensa do Teatro Municipal.

JORNAL DA ABI – COMO SE DEU A SUA SAPETRÓPOLIS PARA INICIAR A CARREIRA PROFISSIONAL NO RIO? Oswaldo – A partir de 1934, comecei a dar umas fugas para o Rio, para começar a “piruar ” as rádios e o Café Nice, onde se reuniam grandes compositores e toda a turma que freqüentava as emissoras de rádio daquela época. Eu queria encontrar uma maneira de me intrometer no meio daquela gente. O Lamartine Babo e o Ary Barroso faziam parte dessa turma. Quando dava 17h, os cantores e compositores iam para as suas rádios. Eu conhecia muita gente importante daquela época, freqüentava quase todas as rádios, mas não conseguia penetrar no meio. Nessa época, em 1935, ainda não existia a Rádio Nacional, criada em 1936. A única grande emissora era a Tupi, instalada em um galpão no bairro do Santo Cristo (Zona Portuária do Rio). Francisco Alves, de quem tentei me aproximar, tinha um programa na emissora. ÍDA DE

JORNAL DA ABI – O SENHOR JÁ O CONHECAFÉ NICE? Oswaldo – Não. Mas um dia fui procurá-lo, pois queria lhe mostrar uma composição minha. Nessa época eu tocava bem violão e tinha uma ótima voz. Então fiquei esperando Francisco Alves acabar o programa. Quando ele saiu do estúdio eu o in-

CIA DO

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terpelei: “Senhor Francisco, eu quero lhe mostrar uma música”. Fui cantando atrás dele por um corredor enorme até à rua. Antes de entrar no carro ele me disse: “Olha, rapaz, sambinha igual a este seu eu tenho rejeitado aos montes. Mas não desanime, não. Continue tentando”. E pegou o carro e foi embora. Esta foi a minha primeira frustração como compositor. JORNAL DA ABI – FOI O RÁDIO QUE LHE

trasse a minha matéria e corri de vergonha, com timidez. Por sorte minha esse texto foi publicado no jornal no dia seguinte.

ABRIU AS PORTAS PARA O JORNALISMO?

Oswaldo – Na realidade a minha trajetória profissional começa pelo jornal, na Tico-Tico, que era uma revista infantil muito interessante, e depois em um jornal semanal em Petrópolis chamado A Idéia. No Tico-Tico eu era muito jovem. JORNAL DA ABI – QUAIS SÃO AS LEMBRANSENHOR TEM DESSAS PRIMEIRAS EXPERIÊNCIAS NA IMPRENSA? Oswaldo – Tinha um corredor petropolitano chamado Irineu Correia, que venceu o primeiro circuito da Gávea. Fiz uma matéria sobre esse evento, em 1935, para o qual ele mandou adaptar a baratinha dele, para obter mais recursos mecânicos e conseguir conquistar o bicampeonato do Circuito da Gávea. Eu peguei o texto, coloquei em um envelope e fui até o Jornal de Petrópolis e joguei o material por baixo da porta de entrada, na esperança de que alguém encon-

ÇAS QUE O

JORNAL DA ABI – QUAL FOI A SUA REAÇÃO? Oswaldo – Convencido de que eu levava jeito, fui procurar uns amigos na Pequena Ilustração, um semanário criado por dois idealistas – Armando Martins e Otávio Venâncio –, onde comecei também a escrever uma coluninha diária. Nesse tempo, eu já trabalhava no DNER, que funcionava no edifício do jornal A Noite. Lá, dois amigos meus eram diretores: o português Vasco Lima, que eu conhecia de Petrópolis, e o Luiz de Escragnoli. Eu fugia do escritório do DNER para A Noite, para ver se conseguia publicar alguma coisa. Isso foi em 1939, e eu lembro que o jornal tinha quatro edições diárias.

blicas, onde trabalhava um primo meu que era chefe de gabinete do então Ministro Marcos dos Reis. Na mesa dele eu vi um projeto enorme chamado “Variante Rio – Petrópolis”, que me deixou muito curioso. Me explicaram que era um projeto do Ministério para desviar o trânsito que vinha de Petrópolis e atravessava a Zona da Leopoldina. Peguei uma cópia e fiz uma reportagem, que o Carvalho Neto, chefe de Reportagem, achou sensacional. A matéria deu a manchete Será construída a variante Rio–Petrópolis, que viria a ser a Avenida Brasil de hoje. Foi a primeira grande reportagem que fiz, publicada com destaque em outras quatro edições, que eu consegui por ser bisbilhoteiro. JORNAL DA ABI – O SENHOR TAMBÉM PARPETRÓPOLIS. Oswaldo – Era um jornalzinho romântico. Foi uma das Redações mais elegantes e mais bonitas em que eu trabalhei. Nessa época, o Diário da Noite, daqui do Rio, lançou a campanha das pirâmides de

TICIPOU DO JORNAL TRIBUNA DE

JORNAL DA ABI – O SENHOR SE LEMBRA QUAL FOI A SUA PRIMEIRA MATÉRIA PUBLICA-

A NOITE? Oswaldo – Um dia eu tive que ir ao antigo Ministério da Viação e Obras PúDA NO JORNAL


metal. Tinha a ver com o esforço de guerra do Brasil em defesa de seus navios, que vinham sendo afundados pelos alemães. Gostei dessa idéia e quis levá-la para Petrópolis. Eu então falei com o Álvaro de Morais, que era o Secretário de Redação. JORNAL DA ABI – O QUE VEIO A SER A CAMO ÁLVARO APROVOU SUA PAUTA? Oswaldo – A campanha conclamava o povo a doar qualquer objeto de metal que pudesse ser transformado em munição. Tinha de tudo, panela velha, geladeira, penico, bicicleta velha e outros materiais. O Álvaro me disse que não assumiria o projeto, mas se eu quisesse fazer podia ir adiante. No jornal tinha um cara chamado Zico Paixão, que resolveu me ajudar. Eu aí botei uma faixa na Praça Doutor Saieb, em Petrópolis, pedindo a colaboração da população. No dia seguinte, fomos ver não tinha nada. Comentei em casa com a minha mãe, peguei umas panelas velhas e fiz o primeiro montinho. Aí a coisa explodiu. Pena que a imprensa de Petrópolis na época não tinha fotógrafo e essa imagem não pôde ser registrada. PANHA DAS PIRÂMIDES DE METAL?

JORNAL DA ABI – QUAL FOI A REPERCUSSÃO NA TRIBUNA? Oswaldo – O Álvaro Morais se encantou com o meu entusiasmo. Disse que ia fazer as manchetes e os textos. Uma delas foi Bombas de Petrópolis sobre Berlim e Roma. Nós conseguimos montar 42 pirâmides em todo o Município, com doações que iam de um caminhão com chassi inteiro ao primeiro gerador que deu luz à cidade. O Retiro Futebol Clube doou todo o seu acervo de taças.

pessoas: Francisco Gomes Maciel Pinheiro, que na época era a pessoa mais popular do Rio de Janeiro em todas as áreas da cultura, e o Roquette-Pinto, o pai do rádio brasileiro, cujo currículo dispensa apresentação. Eu registrei a presença deles no jornal, cujo texto dizia: “Tivemos a honra de receber aqui na Tribuna o senhor Roquette-Pinto, o homem que fez a primeira transmissão de rádio no Brasil (na Exposição de 1922)”. No dia seguinte o Maciel Pinheiro voltou à Redação e me fez um convite para trabalhar no Rio de Janeiro. JORNAL DA ABI – QUAL FOI A PROPOSTA? Oswaldo – Ele disse que o RoquettePinto ficou impressionado com a minha dinâmica e criatividade, e achava que Petrópolis era uma cidade muito pequena para eu desenvolver o meu potencial. Fiquei meio atordoado. Mas eles me garantiram que chegaria à cidade com uma vaga garantida no Vanguarda, um jornal que pertencia aos integralistas, na Gazeta de Notícias e no Senac, que acabara de ser criado pelo José Linhares, que foi Presidente interino, substituindo Getúlio Vargas. JORNAL DA ABI – O SENHOR CHEGOU AO RIO EMPREGADO EM TRÊS LUGARES... Oswaldo – O Maciel tinha muitas atividades, era também diretor de assuntos culturais do Senac, da difusão cultural do Município e do Teatro Municipal. Por isso ele precisava de alguém que cobrisse as suas ausências. Ele viu em mim uma pessoa de confiança e com competência, daí me contratou. Foi então que eu criei a assessoria de imprensa e relações públicas do Teatro Municipal. Não havia agenda cultural naquele tempo e nem a imprensa dava espaço para cultura como faz hoje.

JORNAL DA ABI – E O QUE FOI FEITO DE TODO ESSA MATERIAL?

Oswaldo – Eu fui falar com o Secretário de Gabinete do Prefeito, Márcio Moreira Alves, para pedir ajuda no recolhimento das toneladas de metal. A Prefeitura me emprestou dois caminhões, com os quais recolhemos todo o material, que depois foi levado para a estação de cargas da Leopoldina. Dali, tudo foi transportado para o Arsenal de Marinha, na Ilha das Cobras. Naquele tempo ainda não se falava em reciclagem. As peças foram jogadas em um forno para serem transformadas em armas.

JORNAL DA ABI – QUAL ERA O PERFIL DO NOTICIÁRIO DA IMPRENSA NAQUELE PERÍODO?

Oswaldo – Essencialmente político e policial, com aquelas manchetes malucas como as do Santa Cruz, em O Dia, que lançou uma que ficou famosa: Cachorro fez mal à moça. Para conseguir emplacar notícias culturais eu tive a idéia de comprar espaço nos jornais. O negócio foi tentar fazer permuta com a imprensa. Havia uns

15 jornais diários circulando no Rio naquela época. A sugestão era dar dois ingressos para cada Redação nas estréias, em troca os veículos passavam a publicar notícias sobre os programas de óperas e outras temporadas de concertos e recitais que aconteciam no teatro. O Municipal nunca tinha tido até então tanta divulgação. JORNAL DA ABI – QUAIS FORAM AS FUNÇÕES QUE O SENHOR EXERCEU EM CADA DOS EMPREGOS PARA OS QUAIS FOI CONTRATADO?

Oswaldo – No Senac eu organizei o serviço de documentação. No jornal Vanguarda assumi uma vaga como repórter de polícia, cobrindo os grandes crimes da época, inclusive desastres que ocorriam na cidade. Eu chegava na Redação às 6h, para cobrir o Antônio Correia, que fazia a ronda das notícias policiais de madrugada. Como o jornal saía às 11h, o pau comia. Eu tinha que correr para não atrapalhar a edição. Na Gazeta de Notícias eu criei uma seção intitulada Gazetilha de Petrópolis, onde toda semana saía uma reportagem minha com notícias sobre o Município. A outra parte do meu tempo era dedicada ao Senac, que assinou um contrato com os Diários Associados, para a produção de um curso por correspondência pelo rádio, que ia ao ar na Rádio Tupi, aos domingos de manhã.

JORNAL DA ABI – COMO O SENHOR CONTINUOU CONDUZINDO A SUA VIDA COMO REPÓRTER?

Oswaldo – Havia um deputado chamado Paranhos de Oliveira, que lançou o jornal Voz Trabalhista, onde trabalhou também o Villas-Bôas Corrêa. A minha função era cobrir o plenário da Câmara dos Deputados, anotando os debates dos parlamentares, entre os quais o Carlos Lacerda. No fim da tarde, eu ia para a Redação na Rua Senador Dantas, para entregar as notícias que eu havia apurado.

JORNAL DA ABI – QUAL ERA A SUA FUNÇÃO NESSE PROCESSO?

JORNAL DA ABI – O SENHOR TAMBÉM TRAÚLTIMA HORA. Oswaldo – Depois que me desliguei do Vanguarda, de onde saí decepcionado. O Samuel Wainer tinha um semanário intitulado Diretrizes, no qual só escreviam feras do jornalismo. Mas ele quis se aventurar em um projeto mais ousado, que seria a Última Hora, e foi a São Borja atrás do Getúlio. E foi daí que nasceu a idéia do lançamento de um jornal, que no caso da eleição do Getúlio seria financiado por ele.

Oswaldo – Na época a Tupi tinha o Maracanã dos auditórios, instalada em um espaço gigantesco localizado na Avenida Venezuela, no Centro. À frente da parte artística estavam o Mário Facini e a Babi de Oliveira, eu cuidava dos textos comerciais. Quando eles saíram, eu assumi tudo. Nessa época quem apareceu por lá para um teste como cantores foram o Cauby Peixoto e a Nora Ney, mais tarde o Orlando Dias, que veio de Pernambuco e cantava o repertório do Orlando Silva.

BALHOU NA

JORNAL DA ABI – QUEM MAIS O SENHOR CONHECEU NA TUPI NESSA ÉPOCA? Oswaldo – O conjunto do Canhoto, que era o melhor do momento no Brasil. Os locutores Gontijo Teodoro, que ficou famoso no Repórter Esso, e o Fernando José.

DECEPCIONOU COM O

JORNAL DA ABI – A PARTIR DESSA CAMPAA TRIBUNA DE PETRÓPOLIS SE ENGAJOU EM OUTRAS? Oswaldo – Foi a única campanha cívica que se fez na Tribuna de Petrópolis e na imprensa do Município, que era muito acanhada. Pena que no centenário do jornal não usaram nem uma linha para contar essa história. Hoje eles têm um parque gráfico que é fantástico. Pertence a Dom Francisco de Orleans e Bragança. Ele pegou a massa falida da Tribuna, mas apenas para garantir a tradição. Na minha opinião o veículo ainda existe, mas é encarado como um negócio menor. O interesse mesmo está no parque gráfico, onde entra muito dinheiro com a renda da impressão de jornais do interior. NHA

JORNAL DA ABI – QUANTO TEMPO O SEA TRIBUNA DE PETRÓPOLIS? Oswaldo – De 1944 a 1946. Um dia eu estava na Redação e recebi a visita de duas

Nesse período a Tupi sofreu um incêndio e nós passamos a fazer os programas no auditório do IAPC, que ficava lotado; dávamos oportunidade aos comerciários com pendores artísticos. E aí houve uma passagem muito engraçada. Um dia eu estava no hall do Senac na Rua Santa Luzia, quando a porta do elevador se abriu dei de cara com o Chateaubriand, que vinha falar com o presidente. Ao ser recebido pela Diretoria, foi direto ao assunto: “Vocês têm um contrato com os Associados e eu preciso de 150 mil cruzeiros agora”. Ele estava de posse de uma fatura que tinha um valor maior do que o solicitado, mas assinou e levou a quantia que queria. Depois eu fiquei sabendo que ele sempre agia assim, e causava um reboliço danado na Contabilidade.

JORNAL DA ABI – O SENHOR DISSE QUE SE VANGUARDA. POR QUÊ? Oswaldo – Na campanha para a Presidência o Vaguarda ficou contra o Getúlio, porque apoiava o Cristiano Machado, de Minas Gerais. O jornal já não pertencia mais aos integralistas, passara para as mãos dos irmãos Duarte, que por sinal eram uns picaretas. Mandaram a mim e a um fotógrafo para a antiga Galeria Cruzeiro, montar uma banca para fazer uma pesquisa visando a apurar em quem o povo votaria. Deu Getúlio disparado. Cheguei na Redação com esta notícia e eles me mandaram inverter o resultado: “O candidato nosso aqui é o Cristiano Machado”. Ou seja, eu fui usado como instrumento da pilantragem deles.

JORNAL DA ABI – COMO O SENHOR SE ENSAMUEL WAINER? Oswaldo – O Samuel queria que o Maciel Pinheiro fosse trabalhar com ele na Última Hora. Como ele não tinha condição de absorver mais uma função, resolveu me indicar para o lugar dele. Eu entrei na função de repórter ganhando um salário que, na época, cobria a remuneração que eu ganhava em sete outras fontes de renda. GAJOU NO PROJETO DO

JORNAL DA ABI – QUEM MAIS FAZIA PARTE DA REDAÇÃO DA ÚLTIMA HORA NESSA ÉPOCA?

NHOR TRABALHOU NO JORNAL

O jovem Oswaldo Miranda (à esquerda) entrevista o cantor Sílvio Caldas (ao centro) num evento social. À direita, Geraldo Menezes Corrêa, também admirador do Caboclinho Querido.

Oswaldo – Nessa época lá estavam Nélson Rodrigues, Oto Lara Resende, Sérgio Porto, Marques Rebelo e o Lan. Eu me sentia Jornal da ABI 356 Julho de 2010

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FOTOS: ARQUIVO PESSOAL

DEPOIMENTO OSWALDO MIRANDA

residências cerca de 200 mil presépios. Mas eu tive uma outra idéia: pedir ao então Cardeal do Rio de Janeiro, Dom Jaime Câmara, que abençoasse o nosso presépio. Montamos uma equipe, Baby Bocaiúva Cunha, João Etcheverry, eu e o fotógrafo Roberto Maia e fomos ao Palácio São Joaquim, no Catete. Dom Jaime nos recebeu bem. Pedi-lhe a benção, enquanto eu segurava o presépio solicitei autorização para o Maia fotografar, alegando que tínhamos poucas fotos dele. Dom Jaime concordou. Agradecemos e quando saímos os dois diretores vibravam com o que acabáramos de viver, por conta da minha idéia: um cardeal benzendo a promoção de um jornal considerado comunista. Deu primeira página, foto e matéria de capa em quatro colunas.

pequenino no meio de gente de tanto talento. Mas fiquei por lá fazendo notas de serviço sobre as reclamações da população. JORNAL DA ABI – O SENHOR FICOU NESSA FUNÇÃO MUITO TEMPO?

Oswaldo – Até o dia em que o Samuel me chamou e disse que eu ia passar a trabalhar na área de promoção do jornal. Foi quando passei a cuidar de sorteios, concursos sobre o futebol. Foi um sucesso. Da grandeza da Última Hora só se fala dos valores intelectuais, não se comenta sobre o trabalho de base, ninguém fala nisso. E eu estive por trás disso. JORNAL DA ABI – QUAL FOI A IMPORTÂNÚLTIMA HORA? Oswaldo – O concurso sobre palpite de futebol era fantástico. Ajudou a aumentar a venda do jornal. Houve um período em que a Última Hora chegou a ser campeã de vendas no Brasil. É claro que a pessoa comprava o exemplar, guardava o cupom e jogava o resto fora. Tinha também o “Prêmio para toda a família”, em parceria com o Rádio do Clube do Brasil, que era do mesmo grupo. Toda semana eu ia para um cinema de um subúrbio do Rio para realizar os sorteios.

CIA DESSAS PROMOÇÕES PARA

JORNAL DA ABI – A IDÉIA ACABOU ALCANÇANDO SUCESSO? Oswaldo – No embalo do sucesso das promoções da Última Hora, chegamos ainda a fazer um jornal chamado Flan, onde eu também tinha o meu espaço. Era todo colorido, a sua impressão era feita em São Paulo, e depois os exemplares eram mandados para o Rio de Janeiro de caminhão. Era um jornal meio revista, que circulava somente no domingo, quando não tinha edição da Última Hora. Nesse período o Lacerda começou uma campanha contra o Samuel Wainer. Ele começou a questionar os créditos que o Banco do Brasil liberava para a Última Hora. Isso foi crescendo e todo dia o Lacerda fazia esse questionamento, que ganhou apoio do Roberto Marinho e acabou sendo um massacre. JORNAL DA ABI – QUAL É A SUA OPINIÃO CARLOS LACERDA? Oswaldo – Ele terá sido talvez o nosso maior político. Um homem culto, de uma inteligência fantástica e oratória assombrosa e contundente. Sabia como conquistar a massa. Com a sua verborragia era presença dominante em qualquer situação. E como deputado foi um dos maiores que nós tivemos. Agora era um gênio também muito marcado pelo estigma do mal. Eu mesmo fui acusado por ele de comunista.

SOBRE

Num programa radiofônico, Oswaldo Miranda apresenta um dos maiores músicos do Brasil: Waldir Azevedo, criador de Brasileirinho, Pedacinhos de Céu e outros sucessos.

entre outros desdobramentos. O Samuel foi preso. A prisão dele foi novelesca. Foi apanhado na Praça Onze e levado para uma delegacia de Polícia que ficava no bairro do Estácio, onde hoje é o Hospital da PM. E aí o Lacerda radicalizou nas críticas ao Governo, com acusações cada vez mais bombásticas, por causa da fartura de dinheiro que entrava na Última Hora, liberado pelo Ricardo Jafet, que na época era o Presidente do Banco do Brasil. JORNAL DA ABI – QUANDO AS ACUSAÇÕES DO LACERDA SE TORNARAM MAIS VEEMENTES, O QUE ACONTECEU DE FATO INTERNAMENTE NO JORNAL? Oswaldo – A coisa foi ficando muito difícil. As agências já não anunciavam tanto, e com isso surgiu a dificuldade para remunerar os jornalistas. O jornal teve que improvisar, trocando salários por artigos domésticos. As estrelas foram saindo, sobrando apenas o que eu apelidei de “grupo de resistência de Stalingrado”, como Paulo Silveira, Marijô, Álvaro Gonçalves e eu, que passei a acumular funções para botar a Última Hora na rua. JORNAL DA ABI – E QUAL FOI O GOLPE FIÚLTIMA HORA? Oswaldo – Chegou um dia em que o Lacerda naquelas suas campanhas incendiárias foi para a televisão e declarou o fim do jornal: “Quem quiser ler a Última Hora leia a edição de hoje, porque amanhã não tem mais”. Mas o Lacerda não dava trégua.

NAL DO LACERDA CONTRA A

JORNAL DA ABI – O SENHOR ERA CONTRA LACERDA? Oswaldo – Acho que ele poderia estar com a razão sobre o financiamento do Governo para um jornal. Com o acesso ao crédito, o Samuel pôde contratar os melhores profissionais da época, ganhando muito bem. Importando paginadores argentinos, como o Parpagnoli e o Guevara – todos muito bem pagos. Eu mesmo tive um aumento de salário de 7 mil para 17 mil cruzeiros. Era muito dinheiro. OS QUESTIONAMENTOS DO

JORNAL DA ABI – QUAIS FORAM OS EFEITOS CARLOS LACERDA AO JORNAL DO SAMUEL WAINER? Oswaldo – A campanha começou a dar resultados negativos, com abertura de CPIs, IMEDIATOS DAS CRÍTICAS DO

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JORNAL DA ABI – DEPOIS HOUVE O ATENLACERDA, QUE RESULTOU NA MORTE DO MAJOR RUBENS VAZ E, EM SEGUIDA, O SUICÍDIO DO GETÚLIO. Oswaldo – Nós fizemos uma edição com a Carta-Testamento do Getúlio na primeira página. Foi um estouro de vendas nas bancas. Mas chegou uma hora em que elas não tinham mais como suportar as vendas. Eu então fui com uma equipe para o Palácio do Catete, com jipes carregados de exemplares da Última Hora, que foram vendidos para as pessoas que formavam uma fila interminável em torno do prédio, para ver o corpo de Getúlio Vargas. Dizia-se que foi um recorde mundial de venda avulsa de jornal em um só dia. Foram 900 mil exemplares. TADO AO

JORNAL DA ABI – O SAMUEL WAINER NÃO REAGIU?

Oswaldo – O Samuel se juntou ao Otávio Malta e ao Baby Bocaiúva e os três começaram a se articular por telefone. Falaram com o Simões Filho, que era o Governador da Bahia, e com o Matarazzo, que também já tinha emprestado dinheiro para o Samuel. Nessa confusão, eles conseguiram um contato com um milionário de Petrópolis, e me mandaram para lá pegar o dinheiro.

JORNAL DA ABI – QUEM ERA ESSA PESSOA? Oswaldo – Eu já não me lembro o nome. O Samuel me chamou me deu um cheque e disse para eu ir receber o dinheiro.

JORNAL DA ABI – DEPOIS DESSA SEQÜÊNCIA DE EPISÓDIOS QUAL FOI O CAMINHO QUE O

JORNAL DA ABI – QUAL ERA O VALOR DO CHEQUE?

Oswaldo – Eu não sei qual era a transação, mas levei um cheque de 150 mil cruzeiros para receber 100 mil em dinheiro. Quando eu retornei, o jornal estava pronto para rodar, mas faltava papel. Esse dinheiro era para ser usado para pagar ao fornecedor. Então nós fechamos a boca do Lacerda, porque o jornal circulou no dia seguinte. JORNAL DA ABI – HOUVE ALGUMA OUTRA ESTRATÉGIA PARA TENTAR DRIBLAR OS ATAQUES DO LACERDA?

Oswaldo – O Lacerda continuou com a sua hipócrita e alucinada campanha contra a Última Hora, agora já reforçada pelo Chateaubriand e o Roberto Marinho. Então eu bolei uma coisa para tentar neutralizar a ação destruidora do Lacerda, apresentando ao Samuel Wainer a idéia de uma campanha que acompanhei dos meus tempos de criança, o presépio de Natal da revista infantil O Tico-tico.

SENHOR SEGUIU NA IMPRENSA? Oswaldo – Apareceu o Doutor Roberto Marinho, querendo saber quem era o Oswaldo Miranda, aquele que tinha feito grandes promoções quando trabalhava na Última Hora. Ele me contratou para trabalhar na Rio Gráfica Editora, que editava as revistas Querida e Cinderela e os gibis Mandrake, Reizinho e Capitão Marvel. E eu já fazia parte de uma revista que ele quis lançar, que era a Radiolândia, criada pelo Henrique Pongetti, grande teatrólogo, amigo do Marinho e que tinha uma coluna diária no Globo. JORNAL DA ABI – FALE SOBRE A REVISTA. Oswaldo – O Pongetti foi convidado pelo Roberto Marinho para criar a Radiolândia para concorrer com a Revista do Rádio, do Anselmo Domingues, que era muito fraca em termos de impressão, mas boa em conteúdo. As estrelas da revista eram a Marlene e a Emilinha Borba. Graficamente era uma publicação muito feia, mas vendia muitos exemplares.

JORNAL DA ABI – O SAMUEL WAINER APROVOU A SUA IDÉIA?

Oswaldo – Ele autorizou. Todos os dias publicávamos os desenhos de figuras de presépio, tudo em cores, orientando os leitores, aos milhares, que cortassem tais figuras, colando-as em cartolina, para, aos poucos, irem montando seus presépios. Foi assim a campanha No Natal, um presépio em cada lar. Num jornal acusado de comunista, foi uma jogada sensacional! O povão aderiu em massa. Diariamente na Praça Onze chegava gente em busca das edições atrasadas para conseguir figurinhas. Estimo que as duas edições da Última Hora (Rio e São Paulo) tenham levado seus leitores a montarem para ornamentar suas

JORNAL DA ABI – ONDE FUNCIONAVA A RERADIOLÂNDIA? Oswaldo – A Redação ficava instalada no Edifício São Borja, na Cinelândia, onde o Ibrahim Sued tinha a revista Senhor. Para tocar o projeto, o Pongetti chamou o Moisés Weltman, que era um garotão que fazia o boletim infantil Os Curumins do Programa da Tia Chiquinha, que precedia o meu programa na Rádio Tupi. O Moisés Weltman não se sentia capaz de cuidar sozinho do projeto e chamou um amigo meu, Eugênio Lira Filho, que era um grande redator publicitário, para implementar a publicidade na Radiolândia. Contratou também o Martinho Garcia, que era muito bom na

DAÇÃO DA


evento, que foi precursor dos festivais da canção que vieram depois, reuniu dezenas de compositores, todos no anonimato. As reuniões semanais aconteciam na ABI, que tinha uma comissão formada por Herbert Moses e pelos Maestros Alceu Bocchino, Cláudio Santoro e Francisco Mignone para ouvir as músicas inscritas. Quem as cantava? Eu. Aprendia na hora, assimilava as melodias, letras na mão, para então cantálas com o Bocchino ao piano, para que a comissão fizesse o seu julgamento.

parte de paginação. Eu fui convidado para fazer parte do grupo da revista. JORNAL DA ABI – COMO FOI O LANÇAMENRADIOLÂNDIA? Oswaldo – A Radiolândia foi lançada com o apoio da Rádio Globo e do jornal O Globo. Eu fui incumbido pelo Pongetti de bolar a primeira capa. Pensei na Emilinha Borba, a Rainha do Rádio. E passei a freqüentar toda tarde o Programa César de Alencar, na Rádio Nacional. Tentei convencê-la por diversas vezes, mas sem sucesso. Foi chegando a hora do lançamento e eu não conseguia marcar uma entrevista com ela, nem fotografá-la para a capa que seria colorida. Nós tivemos que improvisar, para não atrasar o prazo de lançamento. Pegamos uma foto em preto e branco, e o Martim Garcia criou um sistema que a transformou em fotografia colorida.

TO DA

JORNAL DA ABI – E O TEXTO? Oswaldo – Eu tive que inventar uma história, mas como sabíamos muitas coisas sobre a vida da Emilinha isso não foi problema. O título da capa foi Deus salve a rainha. “O lançamento da Radiolândia aconteceu em torno da piscina do Hotel Glória, com a presença de todas as estrelas do rádio da época, inclusive a própria Rainha do Rádio. JORNAL DA ABI – E A SUA RELAÇÃO COM A RIO GRÁFICA? Oswaldo – Eu na Radiolândia não podia assinar meus textos como Oswaldo Miranda, porque nela estava o grupo da campanha contra a Última Hora. Assinava minhas matérias com o nome do meu filho José Luiz Miranda. Fiquei um bom tempo na revista até que o Roberto Marinho me colocou integralmente na Rio Gráfica, onde fui encarregado de cuidar não só da Radiolândia como também das promoções da editora. JORNAL DA ABI – O SENHOR ESTAVA EM ATIVIDADE QUANDO HOUVE O GOLPE MILITAR EM

1964. GOSTARIA QUE CONTASSE ALGUM EPISÓDIO DESSE PERÍODO. Oswaldo – Eu estava fazendo televisão no Programa do J. Silvestre, que eu acumulava com a função de assessor de imprensa do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários-IAPB. No dia 4 de abril de 64 um colega me telefonou e disse: “Miranda, você está intimado a comparecer aqui para depor em um inquérito policial militar-ipm, porque foi acusado de ser comunista”. JORNAL DA ABI – O QUE ACONTECEU DURANTE ESSE INQUÉRITO? Oswaldo – Me trancaram em uma sala, por duas horas e meia, com um major e um capitão do Exército e um escrivão. Do lado de fora as minhas colegas chorando com medo que eu fosse levado para o quartel da Polícia do Exército da Barão de Mesquita, pensando que eu seria assassinado ou torturado. JORNAL DA ABI – ELES O ACUSARAM FORMALMENTE DE SER COMUNISTA? Oswaldo – Fizeram aquelas perguntas imbecis. “Por que você é comunista? Desde quando, quem eram os seus companheiros? Onde vocês se reuniam?” E eu dizia: “Eu não sou comunista”. Acho que se eu tivesse um revólver teria feito uma besteira. Foi horrível, essa situação me deixou arrasado. Nes-

JORNAL DA ABI – O SENHOR MORA ATUALMENTE EM UM IMÓVEL NO LEBLON, COM DOIS BLOCOS DE APARTAMENTOS QUE FICOU CONHE-

Como um dos principais editores de Radiolândia, revista especializada, cabia a Oswaldo ciceronear astros que vinham ao Brasil, como o ator e cantor mexicano Tito.

se dia eu fiquei aos pedaços, preocupado com o que poderia vir em seguida. JORNAL DA ABI – NESSA ÉPOCA O SENHOR TV RIO? Oswaldo – Eu ajudava muito a TV Rio, da qual fui fundador. Fazia tudo o que podia para ajudar o canal na concorrência com a Tupi, que era a dona do pedaço. JÁ TRABALHAVA NA

JORNAL DA ABI – COMO SE DEU O SEU INGRESSO NA TELEVISÃO?

Oswaldo – Eu queria ser da televisão, mas não conseguia espaço. Nessa época eu escrevia para uma revista chamada TV Guia. Fiz uma reportagem com o J. Silvestre, que falou sobre o seu desejo de montar no Rio uma filial da sua agência de publicidade. Ele descreveu o perfil da pessoa que estava procurando. Eu quase falei que essa pessoa era eu, mas me segurei porque o dono da revista estava ao meu lado. Até que surgiu uma oportunidade, eu fui atrás do Silvestre e me apresentei como candidato à vaga que ele oferecia. Ele me perguntou se eu poderia viajar a São Paulo no dia seguinte. Não tinha dinheiro, mas disse que sim. Raspei os últimos trocados que tinha no banco e viajei. Chegando lá o J. Silvestre me apresentou à sua equipe: “Aqui está o nosso homem no Rio”. JORNAL DA ABI – COMO FOI A SUA ESTRÉIA TV? Oswaldo – Aconteceu em 1965. A agência foi instalada em uma sala gigantesca na Rua México. O primeiro programa da agência na TV Rio foi Biscoiteste Duchen, que fazia grandes promoções e dava prêmios. NA

JORNAL DA ABI – O SENHOR TAMBÉM TRAJ. SILVESTRE NO PROGRAMA SHOW SEM LIMITE. Oswaldo – O Silvestre foi perdendo a conta da TV Rio e passamos então a fazer aquele que viria a ser o maior programa de televisão da época, que foi o Show Sem Limite, baseado num programa norteamericano da NBC, que gerou um grande escândalo da pergunta combinada, onde o produtor passava pelo ponto eletrônico as respostas para o candidato. BALHOU COM O

diu em toda a rede no Brasil. Batemos o recorde nacional de Ibope. JORNAL DA ABI – QUAIS SÃO AS MELHORES LEMBRANÇAS QUE O SENHOR TEM DESSE PERÍODO DA TELEVISÃO?

Oswaldo – São muitas, porque o Show Sem Limite foi um arraso na televisão brasileira. Na noite do quadro com o casamento da Noivinha da Pavuna, que virou um mito da televisão brasileira, nós demos 80 pontos de Ibope, contra 14 da TV Globo, enquanto a Excelsior, a Continental e a TV Rio deram traço. Essa marca nunca mais foi batida por programas de variedades, somente em novelas, com Roque Santeiro, ou quando o homem foi à Lua. JORNAL DA ABI – O SENHOR TAMBÉM TRABALHOU COM O FLÁVIO CAVALCÂNTI. COMO SE DEU A SUA APROXIMAÇÃO COM ELE?

Oswaldo – Ele estava de olho em mim há muito tempo. Quando fui trabalhar com ele comecei fazendo jornalismo no quadro A notícia é o espetáculo, que eu fazia junto com o Ghiaroni, que foi um grande produtor da Rádio Nacional. E fazia também O repórter da História, uma criação do Deputado Amaral Neto, que inclusive lançou um jornal com este título. Esse quadro era o momento mais importante do Programa Flávio Cavalcânti Nós entrevistávamos vultos da História. Contávamos com a participação de atores da TV Globo, como a Isabel Ribeiro, que interpretou a Cleópatra. O Waldir Maia fez Abraão Lincoln, Jaime Barcelos representou Assis Chateaubriand, e o Perry Sales assumiu o papel de Jesus Cristo. Com todos vestidos a caráter era o momento principal do programa, a ponto de nós produzirmos um lp com as gravações. A capa foi criação do Benício, que ainda hoje é um dos maiores desenhistas do Brasil. Falta isso na televisão hoje: cultura. JORNAL DA ABI – O QUE MAIS O SENHOR ACHA QUE ESTÁ FALTANDO ÀS EMISSORAS?

Oswaldo – O talento de homens como Walter Clark e o Boni, que foram quem deram o formato inicial da televisão que temos hoje. O que está faltando à televisão brasileira hoje em dia é talento para produzir programas culturais.

JORNAL DA ABI – POR QUE O SILVESTRE LEVOU O PROGRAMA PARA A TUPI?

Oswaldo – A Tupi já estava de olho no J. Silvestre e nós fomos levados para a TV Tupi, eu como empregado da agência do Silvestre. Na emissora o programa explo-

JORNAL DA ABI – E O SEU CONTATO COM A ABI? Oswaldo – Eu sou sócio da ABI desde 1938. Me lembro que em 1956, numa promoção da revista Radiolândia, fizemos a 1ª Semana de Música Popular Brasileira. O

CIDO COMO C ONJUNTO DOS J ORNALISTAS. COMO COMEÇOU ESSA HISTÓRIA? Oswaldo – Eu integrei o grupo do Sindicato que em audiência com o Presidente Getúlio Vargas, no Palácio do Catete, apresentou o projeto da construção da casa própria para a classe. Éramos eu, Luiz Guimarães, Presidente do Sindicato e que hoje dá nome a um dos blocos, Ariosto Pinto e o José Talarico. Presente também o Presidente do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Comerciários-IAPC, que era o órgão de previdência da época, Henrique de La Rocque.

JORNAL DA ABI – QUAL FOI A REAÇÃO DO PRESIDENTE GETÚLIO QUANDO FOI APRESENTADO O PROJETO? Oswaldo – Getúlio achou a idéia interessante: “Os comerciários têm, os bancários, os inapiários, por que não os jornalistas?”. E dirigindo-se ao de La Rocque perguntou: “Quais são as disponibilidades de terreno?” Este respondeu: “Jacarepaguá, Cascadura e Leblon, mas este está um pouco embaraçado”. Getúlio perguntou se dava para desembaraçar o terreno do Leblon. Autorizada a operação, o IAPC preparou dois projetos. A partir do segundo deu início às obras, que eram acompanhadas por nós no dia- a-dia. JORNAL DA ABI – QUAL FOI O CRITÉRIO PARA AQUISIÇÃO DOS IMÓVEIS?

Oswaldo – O Sindicato indicou uma comissão para a devida distribuição dos apartamentos. Deu bode! Um dos colegas quis ficar com quatro apartamentos. Outros já negociavam a venda, sem conhecer. Era malandragem sobre malandragem. Eu fiquei com o apartamento 1.203, onde vivo até hoje, vizinho do grande repórter José Montenegro, no 1.204. JORNAL DA ABI – O LEBLON É HOJE UM BAIRRO ONDE O METRO QUADRADO É UM DOS MAIS CAROS DO RIO DE JANEIRO. ENTÃO FOI UM GRANDE NEGÓCIO PARA OS JORNALISTAS.

Oswaldo – Na época o Leblon estava estagnado. Não tinha água. A chegada da água foi o impulso que faltava e fez aquele pedaço de terra tranqüilo, depois do Jardim de Alá, explodir como o mais importante bairro da cidade. JORNAL DA ABI – COMO FOI EFETUADA A VENDA DOS APARTAMENTOS?

Oswaldo – A venda foi um ano de aluguel simbólico, depois escritura para amortização em 20 anos, e pronto! Temos a casa própria graças ao Getúlio. Deve haver algum velhinho que saiba coisas mais importantes do que as que eu conto aqui. Velhinho, claro, mas que ainda esteja lúcido e consciente, como eu, já passado dos 90. Jornal da ABI 356 Julho de 2010

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THE END

Larry King Live chega ao fim Depois de 25 anos no ar o famoso programa de entrevistas já tem data para encerrar sua carreira na tv. EDWARD M. PIO RODA

POR S IBELE OLIVEIRA Pela bancada do seu programa já passaram alguns dos políticos de maior notoriedade da História, figuras do showbiz que vivem de alimentar a aura de inacessíveis, personalidades dos mais variados calibres e até celebridades fabricadas instantaneamente pelos reality shows. A atração dava sinais de que ainda iria durar algum tempo no ar, mas de uma hora para outra Lawrence Harvey Zeiger deixou fãs surpresos e executivos da CNN preocupados ao anunciar ao vivo que, após 25 anos à frente do Larry King Live, irá desocupar sua cadeira e pendurar seus suspensórios. Embora o talk show não se mantenha nos patamares áureos de audiência – atualmente é visto por cerca de 725 mil pessoas todas as noites –, não é difícil entender o sentimento de perda dos telespectadores e a lacuna de sua ausência na emissora. Larry King, de 76 anos, conduz o programa de maior longevidade da CNN e conserva o carisma e habilidades lapidadas ao longo da carreira, como a popularidade que o fez alçar ao estrelato e sustentá-lo durante tantos anos. Antes de pertencer ao seleto rol de entrevistadores no qual ele figura como um dos mais bem-sucedidos, King percorreu longo caminho. Natural de Nova York, o apresentador lutou muito antes de chegar ao topo do sucesso. Seu primeiro emprego foi na pequena estação de rádio WIOD, em Miami, onde executava diferentes tarefas e adotou o pseudônimo Larry King, sugerido por um diretor.

Planos futuros

Os ex-Beatles Paul McCartney e Ringo Star foram recebidos por Larry King em seu programa em 2007, quando deram uma entrevista memorável ao jornalista.

Larry trabalhou ainda em noticiários esportivos, como locutor de futebol, e organizou um talk show de esportes até ganhar seu próprio programa, The Larry King Show, na Mutual Radio Network, que foi ao ar de 1978 a 1994, também em Miami, que lhe garantiu o sucesso local. Com a visibilidade conquistada, ele não demorou a ser contratado pela CNN. Dono de um humor ácido e tom provocativo inconfundíveis, Larry King contabiliza em torno de 50 mil entrevistas em 53 anos de carreira. Na extensa lista de entrevistados aparecem nomes como Nelson Mandela, Barack Obama, Yasser Arafat, Marlon Brando e Bill Gates. O

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dia, 365 dias ao ano”, contou Will King, Diretor de operações de notícias da CNN Internacional, ao jornal Post-Gazzete. A partir de fatos que causaram grande comoção mundial, a CNN passou a ser conhecida por grande parte do público, como foi o caso da cobertura sobre o atentado que resultou na morte do ex-Beatle John Lennon, seis meses após sua inauguração. Pouco a pouco, os telespectadores foram criando o hábito de sintonizar o canal à procura de informações sobre acontecimentos de impacto mundial, especialmente a partir da Guerra do Golfo, em 1991. Porém, com a concorrência de novos canais de notícias, como a Fox News e a MSNBC, a CNN vem amargando uma sensível perda de audiência; talvez por isso a comemoração de seus 30 anos não foi tão alardeada. A rede de notícias saudou a data com a campanha Impact Your World - Give 30 for 30, na qual funcionários e telespectadores foram incentivados a participar de ações sociais. Destronada do posto de canal mais visto do formato, a CNN vive um momento de

âncora ainda acumula outros feitos notáveis, capazes de inspirar qualquer jornalista. Ele conquistou a segunda maior audiência da história da CNN durante o debate entre o vice-presidente norte-americano Al Gore e Ross Perot sobre o Acordo Comercial entre Estados Unidos, Canadá e México-Nafta, perdendo apenas para a transmissão da guerra do Golfo; seus livros tornaram-se best-sellers. Larry King ainda recebeu os títulos de “mais espetacular apresentador de programas de entrevistas da televisão” pela revista TV Guide, e de “mestre do microfone” pela Time. Para coroar sua trajetória, Larry King Live recebeu um prêmio

A vida privada de Larry King sempre foi mais tumultuada que a profissional. Em 1987, o hábito de fumar levou-o a uma mesa de cirurgia, vítima de um infarto. Depois de passar pela experiência, ele escreveu dois livros sobre doenças cardíacas e criou a Fundação Cardíaca Larry King, que mantém até hoje. Apesar de ter planos de continuar vinculado à CNN, apresentando programas especiais, assim que o último Larry King Live for ao ar, King pretende dedicar o tempo livre à sua sétima esposa, Shawn Southwick King, 50, de quem quase se divorciou no início do ano, e aos filhos. Após o anúncio de Larry King, o Presidente da CNN, Jon Klein, afirmou que está à procura de um sucessor para o apresentador. “Ninguém mais faz esse tipo de programa. É uma ferramenta importante para nós e queremos continuar com isso”. Entre os mais cotados aparecem a norte-americana Katie Couric, que comanda o CBS Evening News, dona do maior salário do telejornalismo dos EUA, Ryan Seacrest, que apresenta os programas American Idol e E! News, e Piers Morgan, que ficou mais conhecido ao ser um dos jurados que avaliou Susan Boyle no programa Britain’s Got Talent.

A crise não se deve a fórmulas obsoletas. Acompanhando as tendências tecnológicas, a CNN aderiu às mídias sociais para manter-se atual e cativar o público jovem, caso dos projetos iReport, com conteúdo online gerado por usuários, e o Rick’s List, noticiário produzido a partir de notícias do twitter, uma modernidade que não agrada aos mais conservadores. Por outro David Walker e Lois Hart apresentaram o primeiro telejornal lado, a saída de nomes transmitido pela CNN no dia da estréia do canal. importantes como Christiane Amanpour, contratada pela impasse: permanecer alinhada à sua postura ABC, e o afastamento de Larry King do seu neutra, mantendo o foco nos fatos, ou ceder programa dão indícios de que talvez seja a às novas demandas para conter a fuga do hora certa para a emissora renovar o casting. público. Mas reverter a queda acentuada de No entanto, não há grandes mudanças audiência está longe de ser uma tarefa previstas, pelo menos na linha editorial e no simples. De acordo com uma matéria curto prazo. “Nós vamos continuar a ser o publicada por Bill Carter no The New York que somos: uma organização jornalística Times no final de março, a emissora perdeu apartidária. Nada está iminente, nem nós quase metade de seus telespectadores em estamos sob pressão para negociar”, garantiu um ano e ficou atrás das duas oponentes no Jim Walton, Presidente da CNN Worldwide, primeiro trimestre de 2010. ao Atlanta Journal Constitution. (S.O.) REPRODUÇÃO

Um canal chamado notícia Trinta anos depois de sua fundação a CNN enfrenta sua maior crise de audiência. Embora não esteja enfrentando um de seus melhores momentos ao completar 30 anos de existência, e volta e meia seja acusada por críticos de ser resistente a renovações, a CNN tem o mérito de ser a precursora de um formato que colocou o público no olho dos acontecimentos da História recente da Humanidade. O pioneirismo da idéia coube ao empresário Ted Turner, que começou com um canal de tv em Atlanta, EUA, quando iniciou a Turner Broadcasting System. Inconformado com a ausência de notícias nacionais nos Estados Unidos, uma vez que as três principais redes televisivas da época determinavam quando as informações deveriam ser divulgadas, Turner fundou a CNN em 1º de junho de 1980. Pioneira em transmitir notícias 24 horas por dia, com reportagens ao vivo e análises, a emissora não demorou a se consolidar como referência em coberturas jornalísticas. “Em 1980, a CNN definiu as ‘notícias por demanda’, porque pela primeira vez as informações ficaram disponíveis 24 horas por

Emmy; duas semanas antes de King anunciar sua saída, o talk show entrou para o Guinness Book, o Livro dos Recordes, como a atração que permaneceu mais tempo no ar, na mesma emissora, mesmo horário e sob o comando do mesmo âncora.


Livros FRANCISCO UCHA

O Maracanazo, nossa tragédia em 1950 Teixeira Heizer mostra que depois da derrota para o Uruguai, em 16 de julho, no estádio recém-inaugurado, o País do Futebol renasceu para grandes conquistas. POR CLAUDIA S OUZA O jornalista Teixeira Heizer lançou na noite de 1° de junho, na Livraria Argumento, o livro Maracanazo - Tragédias e Epopéias de um Estádio com Alma. A obra reúne prefácio de Zico, apresentação de Villas-Bôas Corrêa e crônicas assinadas por Maurício Azêdo, Presidente da ABI, Eduardo Galeano, Ferreira Gullar, Luiz Mendes, Manolo Epelbaum, Sérgio Cabral e Washington Olivetto. Dezenas de amigos, parentes e jornalistas participaram do lançamento, entre eles Villas-Bôas Corrêa, Conselheiro da ABI, José Carlos Araújo, e sócios da ABI, como José Rezende, Geraldo Pedrosa e Raul Martins Bastos, além de amigos do autor, como Álvaro Caldas. O livro se debruça sobre a derrota do Brasil para o Uruguai na Copa do Mundo de 1950, episódio que ficou conhecido como Maracanazo e, quase seis décadas depois, é lembrado pelo dramático desfecho que abalou os jogadores e os torcedores brasileiros. “O Maracanazo, como os uruguaios se referem ao episódio, com um certo desdém e deboche, fica desmistificado com as informações que eu apresento neste livro. Porque, na verdade, nós temos, de 1950 até hoje, uma temporada que nos mostra que o futebol brasileiro saiu daquela tragédia com o vigor renovado e alcançou brilhantes performances e títulos extraordinários como os que têm acontecido nos últimos anos”, disse Teixeira Heizer, que é membro do Conselho Consultivo da ABI.

O trauma dos jogadores O jornalista e escritor José Rezende destacou a abordagem histórica como um dos pontos altos da obra, em sua opinião referência para antigas e novas gerações de jogadores e de torcedores: “Em julho, a final da Copa de 1950 completa seis décadas. Teixeira Heizer, testemunha deste episódio, foi muito feliz ao reunir a opinião de outros companheiros, alguns que na época ainda eram muito jovens, como Sérgio Cabral, que tinha 13 ou 14 anos. Contudo, todos guardam este acontecimento na memória. A obra é importante também pela abordagem do lado humano, não se limitando ao aspecto do futebol. O sofrimento da população foi muito grande. Os jogadores também ficaram traumatizados, como Barbosa e Bigode. O primeiro conseguiu superar e jogou por mais 12 anos, encerrando a carreira só em 1962, no Campo Grande. Bigode jogou apenas mais três anos e, deprimido, preferiu se recolher”. Geraldo Pedrosa, um dos grandes nomes do jornalismo esportivo, relacionou a relevância do livro ao talento e experiência do autor: “Conheci Teixeira Heizer no Estadão, ele como editor de Esporte, e eu como repórter. Formávamos uma turma boa que incluía Paulo Stein, Raul Quadros, José Castelo, Luís Carlos Guimarães, entre outros excelentes jornalistas que passaram pelas mãos de Teixeira Heizer. Trabalhamos juntos ao longo de mais de vinte anos. Ele tinha o costume de chegar na Redação às 7 horas para fazer a pauta e só terminávamos entre meia-noite e uma hora da manhã. Nós gostávamos do trabalho e ele procurava fazer tudo muito bem. Por isto, é autor de vários livros e querido por todos.” Lembranças O jornalista Álvaro Caldas, ex-militante político, preso durante a ditadura militar, conviveu com Teixeira Heizer durante seis anos no Estado de S. Paulo. “Foi uma época especial trabalhar em um dos jornais que mais enfrentou a censura no País. Teixeira Heizer, meu grande amigo, teve importante postura de enfrentamento diante do regime de repressão. Ele está de parabéns pela obra”.

Teixeira Heizer: O futebol brasileiro saiu com vigor renovado da tragédia de 1950 e alcançou títulos extraordinários" .

Além do talento versátil de Teixeira Heizer, os colegas de Redação, como Luiza Mariani, exaltaram o espírito harmonioso do jornalista. “Ele sempre se destacou pela alegria. Como eu fazia a cobertura da cidade e ele de esporte, sentávamos em lugares diferentes, mas na hora do almoço tínhamos nosso momento de lazer. Teixeira, sempre extrovertido, divertia a todos. Foram mo-

Currículo Com passagem pelas Redações de O Estado de S. Paulo, Veja, Placar, Mundo Ilustrado, Correio Fluminense, O Dia, Diário da Noite, Última Hora, Diário de Notícias, Empresa Brasileira de Notícias e pela TV Continental, TV Excelsior, TV Tupi e TV Globo, Rádios Continental, Globo e Nacional e pela Rio Gráfica e Editora, Teixeira Heizer acompanhou diversas Copas do Mundo, além de dezenas de outras competições nacionais e internacionais. Residiu na França, na década de 1990, e lá trabalhou em documentários de sucesso, participou de transmissões especiais para emissoras estrangeiras, entre as quais a BBC, de Londres; Wrul, dos Estados Unidos; e Nacional, de Lisboa. É autor do livro O Jogo Bruto das Copas do Mundo. (Colaborou Raquel Bispo, estagiária da Diretoria de Jornalismo da ABI)

“Uma dor irreparável” O livro Maracanazo Tragédias e Epopéias de um Estádio com Alma conta com depoimentos emocionados.

MAURÍCIO AZÊDO “Tão doloroso quanto aquele fim de tarde de 16 de julho de 1950 foi a segunda-feira. O condutor do bonde 33 evitava tilintar as moedas. Temia que o pequeno ruído ferisse aqueles que, como ele, carregavam uma dor irreparável e mereciam a solidariedade de piedoso silêncio.” RAQUEL BISPO

Um erro de Flávio Costa Autor da apresentação do livro, Villas-Bôas Corrêa, decano do jornalismo político brasileiro, com mais de seis décadas de atividade, apontou a mudança de endereço da concentração como fator decisivo para o Maracanazo. “Este é o segundo prefácio que faço para Teixeira Heizer, um amigo de muitos anos. Trabalhamos juntos no Estado de S.Paulo. Somos parceiros de papo sobre o Maracanã desde aquele tempo”, lembrou. “Na apresentação do livro, sustento que o Brasil perdeu a Copa de 50 na véspera, quando Flávio Costa tirou a Seleção da Casa das Pedras, em São Conrado, local paradisíaco onde os jogadores estavam concentrados, e foi para São Januário, em São Cristóvão. Os jogadores passaram duas noites sem dormir com o tumulto do

bairro. Tínhamos um time fabuloso e a obrigação de vencer”.

mentos muito marcantes. Tive uma grata surpresa ao saber do lançamento do livro”. Sônia Meinberg, que também trabalhou na Redação Rio do Estado de S.Paulo, disse que, além de ser um ótimo jornalista, Teixeira Heizer “é um profissional com espírito de liderança, que busca a transparência no esporte, sempre disposto a reportar falhas e acertos, principalmente no futebol”. “Quando ele lecionava, seu entusiasmo e competência atraíam a admiração dos jovens que o cercavam”.

SÉRGIO CABRAL “Pouca coisa se compara aos gritos das arquibancadas de ’fica! fica!’, quando Pelé dava a volta olímpica numa das suas inúmeras despedidas do futebol. Não há dúvida de que há entre nós, amantes do futebol, e o Maracanã, um maravilhoso e eterno caso de amor.”

LUIZ MENDES “Corre que a CBD pagou US$ 15 mil a fim de que Steban Marino não comparecesse ao julgamento para acusar Garrincha (expulso no jogo contra o Chile). O juiz voltou para Montevidéu, não houve a acusação, nosso craque jogou e vencemos a Copa de 62.”

EDUARDO GALEANO

VILLAS-BÔAS CORRÊA “A Copa de 50 foi perdida na véspera. E o responsável foi Flávio Costa, ao mudar a Seleção do paradisíaco sossego da Casa das Pedras, em São Conrado, para o inferno do estádio do Vasco, em São Januário, antes da final contra o Uruguai.”

“Caí al suelo. Y de rodillas, llorando, rogué a Dios, ay Dios, ay Diosito, haceme el favor, yo te lo ruego, no me podés negar este milagro. Y le hice mi promesa. Y entonces el partido se dio vuelta y Uruguay ganó el partido y la copa del mundo, contra todo pronóstico, contra toda evidencia.”

ZICO “Além de ter marcado 333 gols, vivi momentos de alegria praticamente impossíveis de

serem descritos. Trafeguei por caminhos que fizeram sentido muitos anos depois. Derrotas que antecipam vitórias. Sofrimentos que nos ensinam a beleza de vencer.”

FERREIRA GULLAR “Como a maioria dos pernasde-pau, tornei-me torcedor. Depois que me mudei para o Rio, fui algumas vezes ao Maracanã torcer pelo Vasco. O estádio me fascinou, sobretudo porque por ali passaram os grandes heróis que situaram o Brasil no topo da hierarquia mundial.”

MANOLO EPELBAUM “No futebol, bem pequeno, experimentei a dor brasileira com a derrota de 1950. Gardel e Le Pera não construiriam, “al compas”, tangaço de igual dramaticidade. Até o título, zombeteiramente criado pelos vencedores, Maracanazo, mexeu com a alma da gente do Rio de Janeiro.”

WASHINGTON OLIVETTO “Nasci em setembro de 1951. Mas, não escapei incólume à tragédia. Mesmo sendo uma criança corajosa – sem medo de cuca, lobisomem ou mula-sem-cabeça –, tinha medo de uruguaios, medo que me acompanhou até quase os 19 anos de idade.”

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Livros POLÊMICA

O fim do livro num bate-papo erudito Em entrevistas concedidas ao jornalista Jean-Philippe de Tonnac, Umberto Eco e Jean-Claude Carrière passeiam por 5 mil anos de História da Civilização e garantem que a tecnologia não matará um dos mais importantes símbolos da liberdade de expressão.

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Qual é a importância do livro para a Humanidade? Depois de ser comparado à roda, considerado a “roda do saber e do imaginário”, nos últimos tempos as previsões feitas sobre seu futuro são nebulosas. Muita gente, especialmente na imprensa, acredita em sua morte com a popularização dos formatos digitais. Em 2008, a discussão chegou à cúpula de Davos, na Suíça. Lá, entre muitos fenômenos que devem abalar o mundo nos próximos 15 anos, como o barril de petróleo a 500 dólares ou a água sendo comercializada na bolsa de valores, o desaparecimento do livro foi um dos destaques. Mas a discussão não pára: na próxima Festa Literária Internacional de Paraty-Flip, que acontece em agosto, um dos debates mais concorridos será justamente sobre o futuro do livro. Entre muitas especulações e apostas comerciais, Não Contem com o Fim do Livro (Editora Record), recém-lançado no Brasil, é uma das contribuições mais lúcidas quando se discute o assunto. Mas não por conta de qualquer profecia. Pelo contrário, logo no início a brochura já trata de desmoralizar qualquer vaticínio: “Com a internet, voltamos à era alfabética. Se um dia acreditamos ter entrado na civilização das imagens, eis que o computador nos reintroduz na galáxia de Gutenberg, e doravante todo mundo vê-se obrigado a ler. E o suporte não pode ser apenas o computador. Passe duas horas lendo um romance em seu computador, e seus olhos viram bolas de tênis. Além disso, o computador depende de eletricidade e não pode ser levado para uma banheira, tampouco para a cama. Ou o livro permanecerá o suporte da leitura, ou existirá alguma coisa similar a ele. O livro é como a colher, o martelo, a roda ou a tesoura. Uma vez inventados, não podem ser aprimorados. No máximo, ele evoluirá em seus componentes. Talvez as páginas não sejam mais de papel. Mas ele permanecerá o que é”, garante o texto. Tais certezas poderiam ser consideradas apenas delírios caso não ti-

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POR M ARCOS STEFANO

O semiólogo italiano Umberto Eco (esquerda) e o dramaturgo francês Jean-Claude Carríère, dois bibliógrafos de obras raras, manifestaram sua convicção de que o livro não irá sair de circulação. Foi numa conversa com o jornalista Jean-Philippe de Tonnac, autor do livro.

vessem partido de quem partiram. Não Contem com o Fim do Livro é um conjunto de entrevistas do jornalista, biógrafo e ensaísta Jean-Philippe de Tonnac com o semiólogo italiano Umberto Eco e o dramaturgo e roteirista francês Jean-Claude Carrière, autor dos roteiros das principais obras do cineasta Luís Buñuel. Como resultado, uma espécie de bate-papo erudito e bem humorado, sábio e subjetivo, dialético e anedótico, que não pretende apenas entender as transformações anunciadas pela adoção dos formatos eletrônicos, mas desvendar a essência, a alma de uma das mais importantes invenções do homem. “O ser humano é uma criatura impressionante. Descobriu o fogo, inventou cidades, escreveu obras magníficas

e interpretou o mundo. Mas, ao mesmo tempo, não cessou de guerrear contra seus semelhantes, de enganar e de destruir seu meio ambiente. Os livros são reflexos das aspirações e aptidões da Humanidade, necessariamente traduzindo esse excesso de honra e indignidade”, aponta Eco, colecionador contumaz de obras raríssimas sobre a grandeza e o erro humanos. Do papiro ao arquivo eletrônico, Eco e Carrière passam por 5 mil anos de História e analisam como o livro contribuiu tanto para o melhor quanto para o pior da Humanidade. Um trajeto que começa muito antes dos incunábulos da época do criador da prensa de tipos móveis, passa pela tragédia grega e pelo incêndio da biblioteca de Alexandria. Com reflexões simples, mas essenciais. “Através da História do livro é possível reconstruir a História da Civilização. Junto com as religiões, certos livros não servem apenas de continente, de receptáculo, mas também de ‘grande angular’ a partir da qual podemos observar e contar tudo, até mesmo deci-

dir tudo”, argumenta Carrière, outro bibliófilo de obras antigas e raras. Em momento nenhum, fora da convicção de que o e-book não matará o livro, eles fecham questão sobre o que quer que seja. De fato, soluções prontas não são objeto de delonga para Não Contem com o Fim do Livro. A obra é antes um diálogo aberto de dois observadores e cronistas do tempo e das sociedades capazes de observar o que foi escrito além do papel. Em um processo quase metafísico, o livro adquire status de símbolo da própria cultura e, por que não, da liberdade de expressão. E, nessa conversa, censura, imprensa e religião não ficam de fora, uma vez que Eco e Carièrre compõem um interessante mosaico do mundo moderno. Também nesse sentido, é inevitável pensar: se existe a esperança para o livro, da mesma forma existe para a imprensa e o bom jornalismo. Numa volta ao vernáculo, o trombeteado apocalipse das letras, amplificado por tecnologias e inúmeros a(u)tores, talvez não seja o anúncio do fim, mas a revelação de novos tempos e possibilidades.


Vidas

Hermano Alves, o irreverente

Amaury Fonseca, nosso editor Sergipano de Estância, onde nasceu em 10 de novembro de 1924, mas criado em Ilhéus, na Bahia, para onde foi com quatro anos, Amaury Fonseca de Almeida veio para o Rio de Janeiro em 1955 e só deixou a cidade por dois anos, entre 1972 e 1974, quando se radicou em Brasília para exercer função na Presidência do Banco do Brasil, de que era funcionário por concurso. No Rio, formouse em Jornalismo em 1959 na antiga Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, marco de uma trajetória que incluiu a passagem por inúmeras publicações, entre as quais a de editor por oito anos, até 1997, do Jornal da ABI, função em que prestava trabalho voluntário e gratuito. Como outros nordestinos, Amaury teve uma iniciação precoce no jornalismo, pois foi em princípios de 1941, quando tinha 16 anos, que começou a trabalhar no Ilhéus-Jornal, no qual atuaria por cerca de dois anos, até se mudar para o

colaborações eventuais em diferentes publicações periódicas. “Ele foi uma das minhas referências como jornalista. Era um dos nomes que o Carlos Lacerda mais ouvia”, disse o jornalista Zuenir Ventura em declaração publicada por O Globo no registro do falecimento de Hermano, na edição de 6 de julho. Repórter especial da Folha no Rio na época do golpe militar de 1º de abril de 1964, Hermano foi-se engajando na política nos anos seguintes, dado o crédito com que era ouvido nos setores de oposição à ditadura. Ele participou ativamente dos entendimentos para a formação da Junto com o poeta Mário Faustino, Hermano foi Frente Ampla, em que responsável pelos editoriais mais influentes que o Jornal do antigos adversários poBrasil publicou a partir de 1962, no Governo João Goulart. líticos – Lacerda, Juscelino Kubitschek e João Goulart – se uniram para contestar o Hermano, nascido em Niterói em 13 regime. Em 1965, elegeu-se Deputado de dezembro de 1927, trocou a carreira federal pelo MDB, antecessor do atual de Direito, que estudou até o quarto ano, PMDB, mas não pôde completar o manpela iniciação na nascente Tribuna da dato que assumiu em janeiro de 1966: Imprensa, começo de uma carreira que o com a decretação do Ato Institucional levou aos principais jornais do País, nº 5, de 13 de dezembro de 1968 – dia como o Correio da Manhã, o JB, a Folha de seu aniversário –, teve o seu mandade S. Paulo e O Estado de S. Paulo, afora

to cassado e foi privado dos direitos políticos por dez anos. Por sua vigorosa atuação de combate à ditadura na Câmara dos Deputados, Hermano tornou-se um dos alvos principais da repressão após a edição do AI-5. Cassado e caçado, teve de empreender uma fuga rocambolesca para escapar à prisão. Um companheiro jornalista, Rubem Azevedo Lima, repórter da Folha de S. Paulo na Câmara dos Deputados, enviou-lhe por um motorista do Correio da Manhã sua carteira de identidade, com a qual Hermano pôde passar incólume pelas barreiras policais nas estradas para São Paulo. “Emprestei minha carteira para ele, mas sem trocar a foto, deixei a minha mesmo”, contou Rubem Azevedo Lima a O Globo.”Só que, na hora em que o pararam na estrada, o policial só viu se o nome na identidade estava ou não na lista de procurados. Nem olhou para a cara dele. E ele conseguiu passar.” De São Paulo Hermano seguiu para o México, iniciando um périplo de exílio que o levou também à Argélia, à França, à Inglaterra e a Portugal.Para a Argélia seguiram depois sua primeira mulher, Maria do Carmo, e os quatro filhos do casal. Ele voltou para o Brasil nos anos 80, após a instituição da anistia, em 1979. Casado pela segunda vez, agora com a portuguesa Maria Helena, Hermano mudou-se nos anos 90 para Lisboa, onde morreu de um câncer na coluna. Deixou viúva, os quatro filhos do primeiro casamento e cinco netos.

Jornal Oficial do Município de Ilhéus, em que permaneceria até junho de 1944. Nesse ano, aprovado em concurso, ingressou no Banco do Brasil, no qual trabalhou até 1974, em Ilhéus, em Brasília e no Rio, onde dividia seu tempo entre o BB e jornais, como o Diário Carioca, no qual trabalhou um ano, e o Jornal do Commercio, no qual atuou de 1957 a 1972 e exerceu destacadas funções, como repórter de Economia, Editor de Política, Chefe de Reportagem Geral e Subsecretário. Foi também colaborador por dois anos da Revista AFBNDE, publicação mensal da Associação dos Funcionários do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico-BNDE, e durante cinco anos colaborador da revista Bancário, publicação mensal dos Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro, na qual assinava uma página em caráter permanente. Após 1974, editou durante cinco anos a revista mensal da Associação dos Antigos Funcionários do Banco do Brasil. Ele foi também tesoureiro durante três anos, na gestão de Domingos Meirelles, da Cooperativa dos Profissionais de Imprensa do Município do Rio de JaneiroCoopim, tentativa de numeroso grupo de jornalistas de criar, no fim dos anos 1970 e começo dos anos 1980, uma alternativa de trabalho para a categoria. A convite de Nestor Jost, Presidente

companheiros uma mensagem de Festas com desenhos e fotografias de paisagens e aspectos culturais que enriquecia com minuciosas informações, para ilustrar os destinatários. Ele morreu no dia 18 de julho no Hospital Copa D’Or, onde estava internado. Sua filha Ana Luísa Fonseca Ribeiro de Jesus fez um pedido à ABI visando à doação de sangue destinado à reposição da reserva do plasma fornecido a ele, mas Amaury faleceu antes da divulgação do apelo.

FOLHAPRESS

Tão talentoso quanto irreverente, de uma irreverência que por vezes parecia deboche, feito pelo prazer do jogo de palavras, sem intenção de ofender o interlocutor ou terceiro sobre o qual falava. Assim era Hermano Alves, ou Hermano de Deus Nobre Alves, um dos mais brilhantes jornalistas da equipe de fundação da Tribuna da Imprensa de Carlos Lacerda, em 1949, ao lado de Nilson Viana, Carlos Lemos, Zuenir Ventura e uma série de outros jovens que começavam na imprensa. Foi o início de uma carreira em que se alternaram jornalismo e política, o primeiro empurrandoo para a segunda; esta, após percalços e sacrifícios, devolvendo-o ao jornalismo até o seu falecimento, em Lisboa, no princípio de julho. Ao lado do jornalista e poeta Mário Faustino, morto prematuramente no céu da Venezuela na explosão de um avião detonado por terroristas anticastristas, Hermano foi responsável no começo dos anos 1960 pela fase mais influente dos editoriais do Jornal do Brasil, num tempo em que, sob a direção de M. F. do Nascimento Brito, o jornal da Condessa Pereira Carneiro perfilhava as propostas progressistas do Governo João Goulart, cuja posse na Presidência da República fora defendida pelo JB. Foi marcante, na época, um editorial sob o título Posição Democrática, feito a seis mãos – Hermano, Faustino, Brito —, no qual o JB expunha as razões de seu alinhamento com as propostas de mudanças no País.

do Banco do Brasil, Amaury criou a Assessoria de Imprensa do BB, que passou a funcionar mais intensamente a partir de 1972, com a transferência dos principais órgãos e diretorias do Banco para Brasília. Ele participou da equipe que renovou editorial e graficamente os relatórios anuais do BB, modernizando-os, e a equipe conquistou com isso o Prêmio Colunistas como o Melhor Relatório de Empresa. Vinculado à Assessoria de Imprensa do Banco durante cinco anos, nela trabalhou até 1974, quando se aposentou por tempo de serviço. Sócio da ABI desde novembro de 1977, Amaury teve atuação destacada nas gestões de Barbosa Lima Sobrinho, como Editor do Jornal da ABI,membro do Conselho Deliberativo e Diretor. Por sua contribuição à Casa, recebeu a mais honrosa distinção conferida aos sócios, o título de Benemérito. Maçom, Amaury recebeu em abril deste ano do Grande Oriente do Brasil a Comenda da Ordem do Mérito Dom Pedro I, conferida pela Loja Regeneração Sul Baiana do Oriente de Ilhéus pelos “relevantes serviços prestados à Maçonaria, à Patria e à Fraternidade Universal”. Amaury, que faria 86 anos em novembro, era conhecido pelos amigos como uma pessoa doce e carinhosa, que todos os anos fazia questão de encaminhar aos

Bueno, assassinado A edição número 250 de Linguagem Viva registra também a morte de Wilson Bueno, escritor e jornalista, editor do extinto jornal O Nicolau, assassinado em 30 de maio em sua casa, em Curitiba, Paraná. Bueno, homônimo de outro jornalista, este radicado no Rio e felizmente ainda vivo, era autor de Mar Paraguayo e de A Copista de Kafka, obra finalista do Prêmio São Paulo de Literatura de 2008, segundo Linguagem Viva.

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Vidas

Ser amado ou ser amargo? A morte de José Saramago teve grande espaço na mídia, com as esperadas homenagens à genialidade de sua obra. Contudo, surgiram também críticas e ressalvas, polêmica que retrata a própria trajetória do escritor e ajuda a compreender sua relevância no mundo da literatura e da política. POR PAULO CHICO Mais do que no ditado que prega que ‘toda unanimidade é burra’, a verdade parece residir na certeza de que não há opinião ou personalidade que goze de julgamento unânime neste mundo. Único escritor de língua portuguesa a ganhar o Nobel de Literatura, fato ocorrido em 1998, José Saramago era amado por muitos, é verdade. E, também, visto com restrições por outros. Sua morte aos 87 anos, na casa da ilha espanhola de Lanzarote, em 18 de junho, rendeu cadernos especiais em jornais de diversos países. As referências, em sua maioria, eram elogiosas. Algumas poucas, no entanto, nem tanto. A vasta obra de Saramago combinou realismo mágico e ácida crítica política, com investidas ferozes contra as injustiças, o conservadorismo e os poderes econômicos, além de instituições. A Igreja Católica, por exemplo, foi alvo preferencial de seu último livro, Caim, lançado em 2009. Ela própria já havia sido provocada em O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de 1991, romance que conta a história da vida de Jesus de uma maneira moderna, com severas críticas à religião. Em ambos os lançamentos, apesar das reações furiosas da Igreja, ou até mesmo com a ajuda delas, houve imediata repercussão, com a conquista de posições de prestígio nos rankings dos mais vendidos. “Ele era um ateu atuante. E, mais do que isso, atribuía a um ente em que não acreditava – ou pensava não acreditar – as grandes desgraças e os pequenos males do mundo. Culpava Deus por tudo. Não compreendia que Ele aceitasse a imperfeição. Toda a sua obra foi escrita com paixão a revoltar-se com o que os homens fazem aos homens, buscando transformar o real em sonho, num sonho com os contornos do real, numa prosa de música própria e inconfundível, na qual a beleza teima em agasalhar-nos ainda quando a vida nos 42 Jornal da ABI 356 Julho de 2010

maltrate as esperanças”, afirmou Alberto da Costa e Silva, membro da Academia Brasileira de Letras-ABL, casa que realizou mesa-redonda de homenagem ao escritor em 5 de julho, e para a qual ele fora eleito Sócio-Correspondente no ano passado. Tamanho radicalismo provocou reações da mesma proporção junto a nãosimpatizantes de Saramago, como a que se tornou pública quando de sua cremação, no Cemitério do Alto de São João, em Lisboa, em 20 de junho. Enquanto centenas de admiradores portugueses se despediam do escritor com aplausos e cravos vermelhos – símbolos da revolução que, em abril de 1974, derrubou a ditadura Salazar – chegava de Viseu, no Norte do país, a declaração do herdeiro do trono português, Duarte Pio Bragança, questionando o tom da celebração. “É simbólico que neste momento Portugal homenageie como um grande herói nacional um homem que é contra Portugal”.

Nos jornais, muitos elogios, algumas omissões e críticas A relação de Saramago com seu país foi quase sempre conflituosa. Chegou mesmo ao rompimento. Com a exclusão de O Evangelho Segundo Jesus Cristo de uma lista de recomendações para o Prêmio Literário Europeu, por ter sido considerado pelo Governo português uma blasfêmia ofensiva aos católicos, o escritor mudou-se em 1993 para Lanzarote, nas Ilhas Canárias, Espanha, para esquivar-se da perseguição religiosa. Talvez por isso, sua morte tenha sido noticiada apenas com discreta reverência em Portugal. O país o homenageou com luto oficial de dois dias – a fadista Amália Rodrigues, morta em 1999, mereceu três. O Presidente Cavaco Silva, do PSD, partido de centrodireita, limitou-se a divulgar uma bu-

rocrática nota de pesar pelo falecimento. Não compareceu ao velório, ao contrário de líderes socialistas como Mário Soares e Jorge Sampaio, e de vários intelectuais portugueses. Na Espanha, país de adoção do escritor, todos os grandes jornais, sem exceção, destacaram a sua morte em manchetes repletas de afeto e reconhecimento. ‘Desaparece a alma do português’, publicou o El País. O jornal dedicou-lhe no sábado, 19 de junho, oito páginas inteiras. E no domingo, dia 20, mais duas. Todas elas generosas e altamente informativas. No El Mundo podia-se ler: ‘Morre Saramago, herói das letras portuguesas’. No ABC e no catalão La Vanguardia, e no material produzido e divulgado pela agência EFE, o Nobel português foi igualmente o assunto em destaque. Em Portugal, o esquerdista Público lamentou com ênfase: ‘A literatura ficou cega’. Saramago ainda obteve destaque na edição de final de semana do I e do Jornal de Notícias. No Brasil, os jornais também dedicaram páginas e cadernos a Saramago. Em O Globo, por exemplo, foi publicada a reação do fotógrafo Sebastião Salgado, amigo do escritor: “O Saramago foi um amigo, uma pessoa que eu respeitava demais. Ficava em minha casa quando vinha a Paris, mas eu não o via há muito tempo. Sempre foi um militante, um homem de esquerda, comprometido com todas as causas sociais, principalmente as de Portugal e do Brasil”. O Correio Braziliense manteve sua proposta gráfica ousada e presenteou os leitores com uma expressiva caricatura do escritor, que ocupava quase toda a parte central da capa da edição do dia 19 de junho – data em que Saramago esteve presente na primeira página dos principais jornais de Norte a Sul do País. As publicações abriram espaço privilegiado para a repercussão da morte

do escritor. Gabriela Canavilhas, Ministra da Cultura de Portugal, lembrou que “Saramago é o escritor português mais traduzido e o mais conhecido internacionalmente”: “Ele sempre valorizou muito a liberdade. Era um homem de determinação e de liberdade interior elevadíssimas. A sua morte é uma perda incalculável”, elogiou, sem, contudo, perder a chance de alfinetar: “Ele não tinha fé em Deus. Mas, certamente, Deus teve fé nele”. Ministro da Cultura do Brasil, Juca Ferreira disse, em nota oficial, que a notícia da perda era recebida com muita tristeza, “particularmente pelos que têm apreço pela língua portuguesa e por sua importância cultural em tantos continentes.” No suplemento Sabático Especial, publicado em 19 de junho, o Estado de S. Paulo centrou o foco de sua cobertura nos pensamentos e obras do escritor, bem como em sua militância política e nas polêmicas com a Igreja Católica. O caderno de seis páginas trouxe ainda entrevista exclusiva com o crítico americano Harold Blomm, para quem Saramago se aproximava de William Shakespeare por sua versatilidade e pela facilidade de trafegar com inteligência do drama à comédia.


ARQUIVO FUNDACAO JOSÉ SARAMAGO

“Toda a sua obra foi escrita com paixão a revoltar-se com o que os homens fazem aos homens”

“Ele era um homem inigualável. A literatura vai sentir muito a sua falta. Entre os vencedores do Prêmio Nobel de Literatura nos últimos anos, creio que ele foi o que realmente mereceu”, disse Harold Bloom. O prêmio que levou Saramago à glória, no entanto, pode ter abalado as avaliações de sua obra. Isso, pelo menos, foi o que apontou João Pereira Coutinho, colunista da Folha de S. Paulo, em polêmico artigo publicado no caderno de oito páginas dedicado ao escritor. “Se existe um Saramago que interessa como escritor, ele existe antes do Nobel, não depois dele. A Caverna ou Ensaio Sobre a Lucidez, para citar apenas dois exemplos recentes, representam o pior do Saramago pós-Nobel: um escritor moralista e verborrágico, com certa atração pelo maniqueísmo mais vulgar”, atacou ele, que escreveu ainda sobre a conduta política controversa do consagrado autor. “Agora, na hora da morte, Portugal prepara-se para honrar o escritor, o que me parece justo. Mas é provável que se prepare também para honrar o ‘democrata’, o que me parece insultuoso. Comunista até o fim, Saramago assinou algumas das páginas mais intolerantes do período revolucionário português,

quando integrou a direção do Diário de Notícias no ano quente de 1975. Um período de violência física (nas ruas) e verbais (nos jornais), com Saramago a vestir a farda do fanatismo bolchevique e a salivar de ódio contra os ‘reacionários’ e os ‘burgueses’ (…) Nas culturas latinas, a morte melhora sempre o caráter. Só se espera que não se faça o mesmo com a biografia política do defunto”, concluiu João Pereira Coutinho no especial da Folha de S. Paulo.

Reações contraditórias a um provocador pessimista

as palavras são disparadas à queimaroupa contra o senso comum. E a maestria com que pegava o que estava dado como certo para logo colocar em dúvida, em xeque. Mais que excepcional escritor, firmava-se como provocador capaz de desfigurar cada certeza e normalidade. Democracia, utopia, Deus e linguagem... Tudo era passível de questionamento. “A obra de Saramago interessa a mim menos no estilo e mais nas temáticas e nas idéias. Cada livro parte de uma idéia muito boa. Como pessoa, ele tinha idéias muito próprias e não tinha

receio de expô-las e entrar em polêmicas. Nesse sentido, obrigava todos a pensar. Isso é relativamente raro em Portugal. Ele procurava a polêmica. Acho isso muito positivo, extraordinário. Um bom escritor é aquele que não se curva ao debate, cujos livros trazem alguma perturbação e levam as pessoas a pensar. Ao mesmo tempo, era um personagem interessante, com contradições. Por um lado, tinha afirmações de extrema descrença na humanidade. Ao mesmo tempo era um combatente”, descreveu ao O Globo o escritor angolano José Eduardo Agualusa, que conheceu o colega quando participou do júri do Prêmio José Saramago, voltado para o reconhecimento de jovens autores. Por vezes, suas ações provocavam reações adversas. Foi criticado pelo L’Osservatore Romano, jornal do Vaticano, que o classificou como “populista extremista, ideólogo anti-religioso, um homem e um intelectual que não admitia metafísica alguma, aprisionado até o fim em sua confiança profunda no materialismo histórico, o marxismo”. Porém, no dia de sua morte, foi elogiado pela Igreja Católica de Portugal, instituição com a qual tivera seguidos embates, nos quais chegou a declarar: “Para mim, a Bíblia é um livro. Importante, sem dúvida, mas um livro”. Ou ainda: “Penso que não merecemos a vida. Penso que as religiões foram e continuam a ser instrumentos de domínio e morte.” “Portugal perde um ‘expoente’. E a igreja perde um crítico com o qual sempre soube dialogar. Seja como for, o diálogo sempre foi possível. Saramago olhava para Jesus nem tanto como uma chave para o divino, mas como chave para o humano. Nesse sentido, para um teólogo, é um autor incômodo e fascinante. Ele estava apaixonado pelo texto bíblico. Seu estilo tem musicalidade bíblica”, afirmou o Diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura da Conferência Episcopal Portuguesa, Padre José Tolentino. Ele conta que fez essa observação ao próprio escritor durante um debate. Ao que Saramago teria acenado com um breve sorriso de concordância. “Talvez ele seja o mais bíblico dos grandes autores contemporâneos. E, ao mesmo tempo, o mais antibíblico”, definiu o religioso.

A capacidade de provocar respostas iradas, para muitos críticos, foi o grande trunfo da obra de Saramago. Mais até que seu apurado valor estético, ou a escrita refinada – por vezes difícil, complexa e pouco palatável. Seu texto destaca-se por frases e períodos extensos, que podem ocupar mais de uma página, com pontuação nada convencional. É marcante como Jornal da ABI 356 Julho de 2010

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Vidas O perfil sisudo, por vezes pessimista, de José Saramago não parece ser fruto apenas da imaginação ou perseguição dos inimigos e desafetos. “Não sou pessimista. O mundo é que é péssimo”, disse em entrevista concedida em 25 de novembro de 2008, quando esteve no Brasil para o lançamento de A Viagem do Elefante. “Na longa história da humanidade, em que ponto tomamos uma direção errada que nos levou ao desastre que estamos hoje, do qual somos responsáveis? A literatura pode salvar o mundo? Mas salvar o mundo como? Principalmente depois de tudo o que já se escreveu... Como não conseguimos mudar o rumo de nossas vidas? Quantos delinqüentes existem? A violência já atingiu o nível da barbárie. A palavra bondade hoje significa qualquer coisa de ridículo”, prosseguiu, numa coletiva na qual se permitiu, por alguns momentos, inverter os papéis. Era o entrevistado quem apresentava tais questões aos jornalistas.

“Nós, da comunidade lusófona, temos muito orgulho do que o seu talento fez pelo engrandecimento do nosso idioma. Como intelectual respeitado em todo o mundo, José Saramago nunca esqueceu as suas origens e tornouse um militante ativo das causas sociais e da liberdade. Neste momento de dor, quero me solidarizar, em nome dos brasileiros, com toda a nação portuguesa pela perda de seu filho ilustre”, declarou o Presidente. Editor das obras de Saramago em Portugal, Zeferino Coelho frisou que o escritor deixou um monumento literário imponente: “Do ponto de vista de Portugal, podemos comparar sua obra à de Fernando Pessoa. Ele sempre teve linhas próprias. Portanto, não há diferença entre o Saramago escritor e o cidadão. Eu, pessoalmente, perdi um amigo. Um grande homem, um grande escritor, que construiu uma obra notável: são milhares de páginas de poesias, romances e crônicas”, definiu. Nicole Witt, sua agente internacional nos últimos três anos, salientou que a condição física do escritor dificultava o contato com fãs, editores e jornalistas. “Ele foi um amigo de muitos anos. De corpo, estava bastante frágil. Mas, ao mesmo tempo, tinha muita serenidade”.

No relato dos muitos amigos, sobretudo brasileiros, pouco aparece a personalidade forte ou difícil do escritor. Vista como defeito pelos críticos, a crença no comunismo é alvo de elogios. “Saramago era um comunista de carteirinha, uma posição a que chegou em boa parte por ter origem humilde. Foi operário e viveu sob uma das ditaduras mais persistentes da modernidade, o regime salazarista. Ele era uma grande pessoa, um homem sensível, afeti-

cluiu os estudos secundários em uma escola técnica, mas não cursou a universidade por dificuldades financeiras. Sua primeira experiência profissional foi como operário, na condição de mecânico. Fascinado pela literatura desde jovem, visitava com freqüência a Biblioteca Municipal Central Palácio Galveias, na capital portuguesa. Só aos 19 anos, e com dinheiro emprestado por um amigo, conseguiu comprar pela primeira vez um livro. Também foi desenhista, funcionário público, editor, tradutor e jornalista. O primeiro romance, Terra do Pecado, saiu em 1947. “Se eu pudesse repetir minha infância, a repetiria exatamente como foi, com a pobreza, com o frio, pouca comida, com as moscas e os porcos, tudo aquilo”, disse certa vez. Saramago casou-se pela primeira vez em 1944 com Ilda Reis, com quem teve uma filha, Violante, nascida em 1947. Permaneceu casado com Ilda por 26 anos. Após se divorciar, em 1970, iniciou relacionamento com a escritora portuguesa Isabel da Nóbrega, que duraria até 1986. Em 1988, casou-se novamente, desta vez com a jornalista e tradutora espanhola María Del Pilar Del Río Sánchez, com quem permaneceu até a sua morte. “Posso dizer que José Saramago era um grande amigo meu e da minha família. Quando vinha ao Brasil hospedava-se em minha casa, no quarto que foi da Júlia, minha filha. Ele detestava hotéis. Viu meus filhos crescerem. Fui conhecer sua casa em Lanzarote logo que se mudou com Pilar, abandonando Portugal. Assisti emocionado à cerimônia do Nobel em Estocolmo. Pouco antes, no hotel, aprovamos, Lili e eu,

lançado em vida. Atendeu-me com respostas educadas e elaboradas, quando o assunto era literatura, mas curtas e secas quando o tema era política, em especial quando eu insistia em conversar sobre sua convicção esquerdista. Saramago era assim. Mantinha-se geralmente na defensiva quando estava com jornalistas. Por outro lado, era doce e emotivo com o público, particularmente com o público brasileiro”, conta Sylvia Colombo, Editora do caderno Ilustrada, da Folha de S. Paulo. Recentemente, Saramago experimentou um boom de popularidade inédito em sua carreira. Em 2008, Fernando Meirelles dirigiu o filme Ensaio Sobre a Cegueira, baseado no livro homônimo do escritor, lançado em 1995. A produção abriu o Festival de Cannes daquele ano, com sucesso de crítica e expressivas bilheterias, alimentadas, é claro, pela genialidade da obra. E também pelo apelo comercial de atores como Julianne Moore, Mark Ruffalo, Danny Glover, Gael García Bernal e a brasileira Alice Braga. “Saramago era um homem lógico. Dizia que a morte é simplesmente a diferença entre o estar aqui e já não mais estar. A lucidez naquele grau é um privilégio de poucos, e não consigo escapar do clichê: o mundo ficou ainda mais burro e ainda mais cego hoje”, lamentou o cineasta.

José Saramago publicou romances, poesias, contos, crônicas, memórias, peças teatrais e até um livro infantil, A Maior Flor do Mundo, de 2001. Nos úl-

Contou a família que Saramago passou mal após tomar o café da manhã e recebeu auxílio médico, mas não resistiu e morreu. Ele sofria de leucemia e nos últimos anos fora hospitalizado várias vezes por problemas respiratórios.

vo. Vai me deixar muitas saudades”, afirmou o acadêmico Moacyr Scliar, em declaração ao Portal Terra. Secretária-Geral da ABL, Ana Maria Machado também falou sobre Saramago: “As letras brasileiras se associam à dor de seus leitores por todo o mundo, lamentando sua partida e celebrando sua literatura, que permanece. Um sábio, um grande escritor, um ser humano de primeira grandeza”. José de Sousa Saramago nasceu na aldeia portuguesa de Azinhaga, província de Ribatejo, no dia 16 de novembro de 1922, embora no registro oficial conste o dia 18. Filho dos camponeses José de Sousa e Maria da Piedade, mudou-se para Lisboa aos 2 anos, onde viveu grande parte de sua vida. Con-

o vestido de Pilar para o evento. Estava em Frankfurt quando ele recebeu a notícia do prêmio. Agora só quero me despedir mais uma vez de José. Com as melhores lembranças, o amor, e minha saudade. Maldita palavra, tão portuguesa, que agora ficará associada ao meu amigo. Mas saudade não tem remédio, não é, José?”, despediu-se Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras, em texto publicado no blog da editora e reproduzido em diversos jornais. “Numa manhã fria de outubro de 2008, José Saramago me recebeu para uma entrevista em Lisboa, na sede da Fundação que leva seu nome. Ele preparava-se para uma visita ao Brasil, na qual lançaria mundialmente A Viagem do Elefante, seu penúltimo romance

timos anos, aderiu à internet. Em setembro de 2007, entrou no mundo virtual ao lançar o blog Cadernos de Saramago, onde comentava temas nas esferas da política, literatura, religião e sociedade, ou escrevia relatos sobre suas viagens, muitas delas ao Brasil. Além do Nobel, de 1998, recebeu dezenas de outros prêmios, como o Camões e o de Consagração da Sociedade Portuguesa de Autores, ambos em 1995. Apesar das críticas diretamente dirigidas ao seu Governo – “Lula está de pés e mãos atados e parece que não vai mais conseguir fazer as grandes medidas que prometeu no plano social. Foi uma decepção para o mundo”, disse Saramago –, o Presidente da República manifestou pesar pela morte do escritor:

“Hoje, sexta-feira, 18 de junho, José Saramago faleceu às 12h30 horas (horário local) na sua residência de Lanzarote, aos 87 anos de idade, em conseqüência de uma múltipla falha orgânica, após uma prolongada doença. O escritor morreu estando acompanhado pela sua família, despedindo-se de uma forma serena e tranqüila”, dizia a nota assinada pela Fundação José Saramago e publicada na página do escritor na internet. “Não consigo temer a morte”, afirmara em entrevista à revista Época, em 2005. Assim era Saramago. Um escritor genial, amado por muitos. Mestre da polêmica. Provocador. De sabor amargo para alguns. Por vezes, ameaçador. Coerente até o fim.

O lado mais afável e popular de Saramago

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O fim “Um monumento literário imponente”, como Pessoa


“Saramago revolucionou a literatura em língua portuguesa” João Marques Lopes, biógrafo do único Prêmio Nobel no idioma português, fala com exclusividade ao Jornal da ABI sobre a obra e o legado do escritor.

das ao escritor, via Fundação José Saramago, dificultou o esclarecimento de certos aspectos.

e acredito que só poderá ser feita por uma equipe de investigadores.

ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA FOI SUA GRANDE OBRA, A MAIS IMPORTANTE?

MA COMO O SENHOR VÊ O HOMEM E O ESCRI-

Esse romance de 1995 foi certamente uma das obras mais relevantes do escritor, mas a que mais contribuiu para o seu reconhecimento nacional e internacional foi, sem dúvida alguma, Memorial do Convento (1982).

Digamos que a admiração que nutri desde cedo pela obra e pelo homem não saiu minimamente abalada do conhecimento aprofundado, decorrente da investigação. A verdade é que, acima de tudo, Saramago foi um escritor com uma prosódia narrativa extremamente original e valores e ideais inabaláveis. Ele realmente revolucionou em muitos sentidos a literatura em língua portuguesa.

AO CONCLUIR O LIVRO, MUDOU MUITO A FORTOR JOSÉ

ESSA É UMA BIOGRAFIA DEFINITIVA? O QUE FALTOU?

P OR M ARCOS S TEFANO

JORNAL DA ABI - POR QUE O SENHOR DESARAMAGO?

CIDIU FAZER UMA BIOGRAFIA DE

João Marques Lopes - Quando li Ensaio Sobre a Cegueira, logo que foi lançado em 1995, a obra me conquistou. Desde então, comecei a fazer leituras anotadas das obras de Saramago e a recolher materiais sobre a obra e o homem, mas

apenas na perspectiva de um leitor atento e para formar um arquivo pessoal. Porém, entre 2004 e 2005, escrevi biografias sobre Almeida Garrett, Eça de Queirós e Fernando Pessoa, todas integradas numa coleção de biografias dos Grandes Protagonistas da História de Portugal. Em conversas com o coordenador dessa coleção, o editor António Simões do Paço, surgiu a idéia de avançarmos também com uma a respeito de José Saramago. Para mim foi ótimo, pois comecei a me aprofundar mais no estudo da obra e da vida saramaguiana, já com o fito de publicar a biografia.

Esta é apenas a primeira biografia a sistematizar o percurso literário, a intervenção cívico-política e o trajeto pessoal de José Saramago. Daí a sua relevância. Contudo, não pode ser considerada uma biografia definitiva. Ainda não há suficiente distância temporal. E também inexiste uma acumulação de dados tão significativos quanto, por exemplo, a publicação da correspondência completa de Saramago, tanto enviada por ele quanto recebida. Igualmente, ainda não há uma edição crítica das obras completas. A maioria dos textos da juventude é inédita. Nem sequer há uma bibliografia crítica integral e fiável. Tudo isso ainda deve ser feito antes de uma biografia mais aprofundada. É uma tarefa difícil

COMO FOI O PROCESSO DE ELABORAÇÃO DESSA BIOGRAFIA?

Foi um trabalho que levou vários anos, pois foi necessário dar vários passos, mas um de cada vez. E cada um deles levou bastante tempo para ser eficientemente feito. O primeiro foi ler e reler tudo quanto Saramago publicou, e arranjar múltiplas entrevistas que o autor já deu, sobretudo desde que se tornou conhecido com Levantado do Chão (1980). Depois, precisei consultar uma vasta bibliografia secundária sobre a obra do autor e constituir vários dossiês da imprensa literária e generalista, que vão dos fins dos anos 60 até aos dias de hoje. Por fim, entrevistei algumas pessoas próximas de José Saramago e ele próprio. Uma das tarefas mais complicadas foi arranjar alguns textos e entrevistas de Saramago e sobre ele, sobretudo dos anos 1970 e princípio dos 1980, quando o escritor ainda não tinha a projeção que sobretudo Memorial do Convento (1982) veio lhe dar. Conseguir os depoimentos de pessoas próximas nem sempre foi fácil e também não posso revelar as fontes pessoais. SARAMAGO TINHA FAMA DE SER MUITO RECLUSO. ISSO ATRAPALHOU?

E como! O fato de não ter obtido resposta a uma série de questões endereça-

NO LIVRO, O SENHOR DIZ QUE JOSÉ SARAMAGO ADQUIRIU O STATUS DE GRANDE ESTRELA DA LÍNGUA PORTUGUESA. EM SUA OPINIÃO, QUAL FOI SUA GRANDE CONTRIBUIÇÃO À LITERATURA E AO MUNDO MODERNO?

DIVULGAÇÃO/FLT/PICA BILD AB

A trajetória do escritor português José Saramago pode ser considerada improvável até para a obra de um inspirado ficcionista. Menino pobre, em sua casa havia apenas dois livros, e nenhum deles era de sua família. Autodidata, começou a vida como serralheiro mecânico, tornou-se escrevente e somente aos 53 anos passou a se dedicar definitivamente à escrita ficcional. Mesmo assim, tornou-se um dos mais importantes autores da literatura contemporânea, o único escritor em língua portuguesa a ganhar o Prêmio Nobel. Contar uma história tão fascinante assim não é fácil, ainda mais tratando-se de Saramago, que teve na reclusão uma das principais virtudes dos seus últimos dias. Ainda assim, o filósofo e escritor português João Marques Lopes aceitou o desafio proposto e, num vigoroso trabalho de pesquisas e entrevistas que durou alguns anos, produziu Saramago – Biografia, a primeira obra sobre a vida do escritor, lançada recentemente no Brasil pela Editora Leya. Apesar do foco na obra, Lopes não deixa de falar sobre os momentos mais marcantes da vida de Saramago, sua militância política e episódios polêmicos como a censura do Governo português ao seu livro O Evangelho Segundo Jesus Cristo, que acabou por levá-lo ao exílio na ilha espanhola de Lanzarote, nas Canárias. Para falar sobre a biografia e a importância da obra de Saramago, Lopes concedeu uma entrevista exclusiva ao Jornal da ABI. Nela, o biógrafo também comenta a importância que teve a imprensa na vida do escritor, que entre 1968 e 1972 colaborou com diários como A Capital e semanários como Jornal do Fundão.

Saramago discursa para os membros da Academia Sueca em Estocolmo quando recebeu o Nobel de Literatura, em 1998.

SARAMAGO?

Penso que realmente ele mereceu tamanha projeção. Por quê? Por causa de seu legado. Em primeiro lugar, por sua capacidade de oralizar a escrita, de contar uma história como se estivesse no meio de uma roda de companheiros, aberta a várias vozes, rompendo com as regras da pontuação e da sintaxe portuguesas. Com isso, Saramago trouxe algo de profundamente original à literatura contemporânea. E essa foi a sua grande contribuição para a literatura de língua portuguesa e mesmo internacional. Em segundo lugar, ele representava literária e civicamente uma voz dos explorados e oprimidos contra a lógica concentracionista e guerreira do sistema capitalista, e em prol de um outro mundo possível para lá do lucro, da concorrência e do individualismo desenfreados. Por isso, milhões de cidadãos em todas as latitudes identificam o escritor como símbolo de uma alternativa civilizacional. Em terceiro lugar, com as suas desconstruções simbólicas das religiões reveladas, e em particular da versão católica do cristianismo, que desencadearam polêmicas bastante midiatizadas. No caso específico do Evangelho Segundo Jesus Cristo, convém não esquecer que a censura do Governo português de Cavaco Silva se deu num contexto em que a perseguição dos aiatolás iranianos a Salman Ruschdie ainda estava bem presente. Por certo, não se pode comparar a gravidade de um caso com o outro, mas havia uma mesma essência no fato de ambos os governos censurarem a criação artística. Em quarto e último lugar, a excelente penetração de Saramago no mercado internacional de bens simbólicos com seus prêmios literários na Espanha, Itália ou Inglaterra, via adaptações de romances para óperas, peças de teatro e filmes, via o reconhecimento de críticos literários tão influentes como o italiano Umberto Eco Jornal da ABI 356 Julho de 2010

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Vidas ou os estadunidenses George Steiner e Harold Bloom. Com esses fatores conjugou-se com uma rara aceitação junto a um público leitor mais lato, até nos EUA e na Inglaterra, que são conhecidos por terem mercados pouco propícios a escritores mais intelectualizados, num movimento que teve o seu ponto alto com o Prêmio Nobel. TANTO NO BRASIL QUANTO EM PORTUGAL HÁ OUTROS QUE PODEM SUCEDÊ-LO OU PODEMOS NOS CONSIDERAR ÓRFÃOS?

SARAMAGO DESENVOLVEU PARTE DE SUA QUAL É A IMPOR-

CARREIRA NA IMPRENSA.

TÂNCIA DE SEU TRABALHO EM JORNAIS PARA SUA OBRA?

Se repararmos em certas crônicas que ele escreveu no fim dos anos 60 e começo dos 70, veremos que o trabalho para os jornais contribuiu em boa medida para a posterior elaboração ficcional do escritor e para o apuramento da sua capacidade de escrita. O professor paulista Horácio Costa, até hoje o melhor estudioso do período da formação literária de José Saramago, reputa mesmo esse trabalho como decisivo para o que o escritor se tornaria no futuro. 46 Jornal da ABI 356 Julho de 2010

Na Globo Márcio registrava cenas, como em Dalva e Herivelto, e fazia ensaios fotográficos, como este Pinóquio do Sítio do Pica-pau Amarelo.

Mais uma vítima de execução: Márcio, fotógrafo da TV Globo Abateram-no a tiros de fuzil e pistola na saída de um jogo de futebol amador no Vasco. Ele era justo, correto e grande profissional, disse Tony Ramos. POR PAULO CHICO Mais uma vez disparos põem fim a cliques. Há pouco mais de um ano, em 25 de fevereiro de 2009, o fotógrafo do jornal O Dia André Az, de 34 anos, foi morto na Avenida Brasil, na altura da Penha, quando passava de moto pela pista em direção ao Centro da cidade. A vítima mais recente da violência é o também fotógrafo Márcio Alexandre de Souza, de 36 anos, da TV Globo, morto a tiros de fuzil e pistola, no início da tarde de 20 de junho, no bairro de São Cristóvão. A execução ocorreu na esquina das Ruas General Padilha e General Almério de Moura, área de acesso ao Morro do Tuiuti. A assessoria de imprensa da emissora informou que Márcio tinha ido ao local para levar um de seus três filhos, de 11 anos, a uma partida de futebol amador do Vasco, em São Januário. No momento do crime ele já estaria retornando para casa, próxima ao local. Enquanto caminhava, com outras duas crianças, colegas de time do filho, dois homens teriam se aproximado em uma moto e começado a atirar de fuzil e pistola. Márcio trabalhava na TV Globo há mais de cinco anos, fazendo fotos de divulgação e dos bastidores de programas e novelas. Ele havia retornado em junho da Itália, onde fotografou cenas da novela Passione, atualmente exibida na faixa das 20 horas. Em declaração à imprensa, a assessoria da TV Globo lamentou a perda do co-

DANIELA DINIZ

Se entendermos essa questão dos herdeiros do legado saramaguiano no sentido da eventualidade de algum dos atuais escritores de língua portuguesa vir a atingir a notoriedade internacional de Saramago e entrar para a short list de um prêmio como o Nobel, não sei responder. Mas posso arriscar que provavelmente o próximo Nobel em português terá sotaque brasileiro devido ao peso econômico e à projeção que o Brasil tem alcançado no cenário cultural mundial. Para ficarmos apenas na literatura de boa qualidade, dou como exemplo um escritor como Rubem Fonseca, que tem uma boa aceitação no mercado e na crítica literária estadunidenses, ou Clarice Lispector, infelizmente há muito falecida, que se tornou uma espécie de mito nos meios cultos da França, do Canadá ou dos Estados Unidos. Em termos de autores que seguem em suas obras os aspectos formais e temáticos da obra saramaguiana, citaria José Luís Peixoto, Gonçalo M. Tavares, Valter Hugo Mãe e João Tordo. Todos ganharam o Prêmio José Saramago. Peixoto, por exemplo, tem um romance chamado Nenhum Olhar, uma obra que traz algo do realismo mágico de José Saramago e também da capacidade de penetrar no mundo rural alentejano do mesmo modo que Levantado do Chão, embora tal incursão tenha contornos diferentes em ambos os autores. Também o escritor moçambicano Mia Couto, que desenvolve uma inventividade lingüística assinalável e que tem como uma das suas matrizes João Guimarães Rosa. A meu ver, só a morte prematura inviabilizou a entrada de Guimarães Rosa para os nomeáveis ao Nobel, pois a sua criatividade na língua, a sua mitopoética e o seu entrosamento do erudito com o popular correspondem a um dos patamares mais elevados da língua portuguesa e da ficção internacional.

Talentoso, Márcio de Souza trabalhava na TV Globo há mais de cinco anos.

lega. “O Márcio fazia parte da nossa equipe há cinco anos. Muito comprometido com o trabalho e com a família, era uma pessoa realmente especial. Fala mansa, andar tranqüilo, sorriso doce, excelente caráter, conquistou todos nós muito rapidamente com a sua forma franca e o seu indiscutível talento profissional. Alto, era um gigante com jeito de menino. Gentil, estava sempre

disposto a escutar e a ajudar. Filho de fotógrafo, trazia a fotografia no dna e suas lentes mostraram, ao longo desses anos, a sensibilidade com que olhava o mundo e a todos nós. O Márcio está fazendo muita falta.” Diversos atores da emissora, especialmente os da novela Passione, manifestaram seu pesar. “Soube da notícia lendo um jornal. Eu posso confessar a vo-


d’água. Era contagiante. Ele estava sempre atento aos momentos simbólicos durante as cenas. E nos bastidores registrava carinhosamente cada detalhe”, recorda a atriz. “O Márcio foi uma das pessoas mais queridas que conheci na Globo. Daquelas que você olha nos olhos e de cara identifica o bom caráter, a generosidade, a educação, a dignidade e o profissionalismo. Um ser humano da melhor qualidade. Um dia, lá na Itália, o vi cabisbaixo, triste. Quando perguntei o que era, ele disse que não estava conseEm junho Márcio esteve na Itália acompanhando a equipe da novela Passione para fazer fotos de guindo falar com a famídivulgação como a de cima, com Aracy Balabanian e Fernanda Montenegro, e a de baixo, com Tony Ramos. Paulo Coelho, que fez uma ponta em Eterna Magia, também posou para as lentes do fotógrafo. lia e sentia muita saudade da mulher e dos filhos. Não pensei duas vezes: comprei um cartão telefônico fácil de falar e dei a ele. Foi um enorme prazer ver que pude solucionar o seu problema naquele momento. Ele era o tipo de gente que faz falta de verdade entre nós”, disse Reinaldo Gianecchini. O Delegado Pablo Rodrigues, que foi até o local do crime, informou que a Polícia não descartava nenhuma hipótese para a elucidação do crime, nem mesmo a de assalto, uma vez que Márcio teve o celular roubado no episódio. A Delegacia de Homicídios assumiu as investigações. Cunhado do fotógrafo, Douglas Carvalho acredita que ele poderia ter sido alvejado por engano. “Só podem ter feito confusão com ele. Márcio não fazia mal a ninguém. Era evangélico, não consumia bebida alcoólica, tinha uma vida saudável”, desabafou, na porta do IML, contestando a versão de que, por supostamente ser usuário de drogas, Márcio tivesse sido executado num acerto de contas com traficantes do Morro do Tuiuti. cês, e a minha mulher que estava ao meu lado, o choque, a dor e a tristeza com a perda deste companheiro. Um companheiro justo, correto e grande profissional. Eu conheci o pai dele, Sérgio de Souza, que foi um excelente profissional também. Márcio era ótimo fotógrafo. Estão aí as fotos dele. Quantas e quantas fotos lindas que esse profissional fez comigo, com minha mulher e com todos os nossos colegas em tantos e tantos trabalhos. As coisas que mais admiro em um homem são a sobriedade, a simplicidade, a dedicação, o profissionalismo e a perseverança. O Márcio tinha tudo isso”, disse Tony Ramos. Mariana Ximenes, também do elenco de Passione, disse que o que a impressionava em Márcio, além da competência, discrição e gentileza, era o fato de expressar o amor pelos filhos e pela mulher, que tinha acabado de dar à luz. “Ele mostrava fotos da família todo orgulhoso e saudoso por estarmos longe, na Itália. Seus olhos se enchiam

Ascendino, jornalista, escritor e censor Autor de mais de 50 obras, entre romances, poesia e crítica literária, como informou em sua edição número 250, de junho passado, o periódico Linguagem Viva, editado em São Paulo por Rosani Abou Adal, o paraibano Ascendino Leite trabalhou no Diário de Notícias, no Diário Carioca, no Jornal do Brasil e na Folha de S. Paulo, mas ganhou notoriedade na imprensa do Rio não por méritos como jornalista, poeta, escritor e memorialista, mas como chefe da Censura do Governo Carlos Lacerda nos anos 1960. Chefe de Redação do Diário Carioca até pouco antes de assumir esse cargo, Ascendino valeu-se dessa condição na crise que se seguiu à renúncia do Presidente Jânio Quadros, em agosto de 1961, para tentar censurar os jornais e proibi-los de publicar um manifesto do General Henrique Teixeira Lott, Ministro da Guerra no Governo Juscelino Kubitschek, favorável à posse do Vice-Presidente João Goulart, vetada pelos Ministros militares, General Odilo Denys, da Guerra, Brigadeiro Gabriel Grun Moss, da Aeronáutica, e Almirante Sílvio Heck, da Marinha. O manifesto de Lott poderia ter grande impacto na crise, como teve, isolando os chefes golpistas junto aos seus companheiros das Forças Armadas. Partidário, como seu chefe Governador Carlos Lacerda, do golpe militar contra o Vice-Presidente, Ascendino telefonou para o Secretário de Redação do Diário, Everardo Guilhon, indagando se o jornal tinha o texto do manifesto, pois queria conhecê-lo. “Temos sim, Ascendino. Aliás, o jornal já rodou e estamos publicando o texto do manifesto.” “Obrigado, Guilhon”, respondeu Ascendino, que logo em seguida mandou a Polícia Política apreender não apenas o manifesto, mas toda a edição do Diário Carioca. Nascido em Conceição do Piancó, PB, em 21 de junho de 1915, Ascendino morreu de insuficiência respiratória em João Pessoa, em 13 de junho, oito dias antes de completar 95 anos. Sua obra mais famosa foi seu primeiro romance, A Viúva Branca, de 1952, em que romantiza o relacionamento que iniciou como jornalista com a mulher de um médico que comoveu o País com sua luta contra o câncer e com uma campanha para sensibilizar as autoridades de saúde sobre a necessidade de prevenção e tratamento da doença. Jornal da ABI 356 Julho de 2010

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