Viver Bahia - Nº09

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Ao mesmo tempo em que estávamos nas igrejas,

éramos embalados pelos cantos de Oxalá, Iemanjá,

Xangô, Oxóssi e foi essa via de captação espontânea que resultou na nossa formação musical.

Viver Bahia – Mateus Aleluia, quem é o músico e estudioso Mateus Aleluia? Nos fale um pouco sobre a sua vivência, como estudioso da música e do candomblé, e também de suas andanças por Angola. Mateus Aleluia - Sou cidadão cachoei-

rano, voltado para a cultura afrobrasileira de uma forma incidentemente afro-barroca, sustentada em toda convivência do hospedeiro, que é o indígena, a cultura indígena. E dentro desta mescla de culturas, da cultura barroca, cultura afro e a cultura indígena, eu penso que nós vimos fazendo nosso estudo dinâmico pela vida. Musicalmente falando, tive meu início musical no conjunto Os Tincoãs, um grupo - na época, formado por Edinho, Eraldo e Erivaldo - surgido na década de 60, ainda no antigo Escada para o Sucesso –, que fez seu primeiro disco cantando boleros e outras músicas que faziam parte do consumo da época. Ingressei em Os Tincoãs, em 1962, e, paulatinamente, fomos fazendo uma mudança no conceito de trabalho musical/cultural do grupo. De uma forma espontânea, passamos a colocar aquilo que era nossa vivência, uma somatória do afro com o barroco, suportado pela cultura indígena. E mergulhamos nos cantos de candomblé – a forma mais espontânea de todo esse somatório. Viver Bahia – E já havia essa pesquisa sobre o candomblé? Mateus Aleluia – Sim, já havia. A pesqui-

sa sobre candomblé antecede mes-

mo o meu nascimento. O Joãozinho da Goméia já fazia, Luiz da Muriçoca também, além de quatro irmãs, no Rio de Janeiro, que tinham um trabalho belíssimo no campo da pesquisa, o grande compositor Élke, e o próprio maestro cachoeirano Tranquilino Bastos, que deixou alguma coisa de matéria sobre a música africana. Agora, talvez o diferencial nosso tenha sido o de sermos o primeiro grupo a despertar o interesse da mídia e de todas aquelas pessoas que poderiam formar uma corrente de opinião favorável a mostrar, primeiramente, aqui, para a população brasileira, que a música africana não era somente aquela música que eles entendiam como vertente exótica do ritmo. Eu, principalmente, comecei a minha vida de herança musical orientada nos corais das igrejas, onde eu era também cantor, na época cantava em latim. E, ao mesmo tempo, trazia, por herança genética, toda essa informação do candomblé. Ao mesmo tempo em que estávamos nas igrejas, éramos embalados pelos cantos de Oxalá, Iemanjá, Xangô, Oxóssi e foi essa via de captação espontânea que resultou na nossa formação musical. Viver Bahia - Essa percepção só se dá com o distanciamento... Mateus Aleluia - O mais interessante

em tudo isso é que depois de analisarmos nossa proximidade com o barroco, nós – os negros africanos vindos da África- temos uma participação em todo esse barroquismo da

Bahia. E depois você vai poder analisar o que é o barroco na sua trajetória pelo mundo. Barroco é uma palavra, um vocábulo português que designa uma concha de forma não perfeita, em constante giro para poder amalgamar tudo que existe para se chegar à perfeição da harmonia. Após analisar a obra de um poeta que eu gosto muito, o senegalês Leopoldo Senda Fengo – que escreveu uma poesia sobre uma máscara feita por Picasso (Nolvaca) -, temos uma expressão, digamos assim, do barroco como artista. Como é que aquele artista cubista, mas no fundo barroco, (Picasso) influenciou tão fortemente um precursor e um criador do movimento de negritude, que é Leopoldo Senda Fengo. Quando ele viu aquela máscara de Picasso, teve que escrever, fazer uma poesia. É porque há pontos comuns que os ligavam, e daí foi que depois eu me reportei à nossa convivência no Recôncavo tendo Salvador como grande vitrine do Recôncavo. Nós temos toda essa convivência aqui, onde o afro não perdeu a sua essência de afro, o barroco não perdeu sua essência de barroco e o indígena que aqui sempre foi indígena, nunca vai deixar de ser. Ele até representa, como o caboclo, o símbolo da Independência da Bahia. Estão todos aqui, e de uma forma bem distante, representados e de certa forma integrados, amalgamados. Viver Bahia - Como você avalia essa mistura de etnias, esse caldeirão cultural? Viver Bahia | 31


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