Escuridão. A campainha, uma lâmpada instalada na parede do espaço, acende e apaga por três vezes. Não há ninguém em cena. Um breve intervalo se faz. Novamente vemos a lâmpada piscar, mas agora revelando Tom, que está sentado numa poltrona com o olhar voltado para trás. Um novo intervalo. Luz de cena. Félix, de óculos escuros, está virando calmamente um copo d’água. Ao terminar, ele olha ao redor, fita o copo, notando que não tem onde apoiar.
PRÓLOGO | COMO QUE SE FALA?
Félix e Tom estão aguardando.
FÉLIX Como que se fala: Derramar.
TOM Derramar.
FÉLIX Como que se fala: Contenção.
TOM Contenção.
FÉLIX Como que se fala: Insuportável.
TOM Insuportável.
FÉLIX Como que se fala: Eu tento, mas eu não consigo.
TOM Eu tento, mas eu não consigo.
FÉLIX Como que se fala: Eu tô perdido.
TOM Eu tô perdido.
FÉLIX Como que se fala: Eu escrevi um poema.
TOM Eu escrevi um poema.
FÉLIX Como que se fala: O poema é ruim.
TOM O poema é ruim.
FÉLIX Como que se fala: Paixão.
TOM Paixão.
FÉLIX Como que se fala: Não nem hora, nem lugar.
TOM Não tem hora, nem lugar.
FÉLIX Como que se fala: Acontece.
TOM Acontece.
FÉLIX Como que se fala: Eu tô apaixonado por você.
TOM Eu tô apaixonado por você.
Tom repete o sinal. Félix faz o mesmo.
FÉLIX Que bonito esse gesto.
TOM Não é gesto. É sinal.
Félix repete o sinal algumas vezes.
Tom segue interpretando em LIBRAS.
FÉLIX E como é que se fala: aquilo que a fala não sabe dizer. Aquilo que me escapa, que me toma de assalto. Como é que se fala aquilo que me reduz, que me deixa rendido, que me põe de joelhos ou me joga no chão pra me lembrar que o chão é um lugar. O chão é um lugar. Como é que se fala eu preciso descobrir em mim um espaço que ainda não existe. Ou se existe eu desconheço. Como é que se fala indizível, inominável, instável, mutante, breu. Eu não consigo colocar em palavras o que eu sinto. Como é que se fala isso?
1 | SURPRESA
Virgínia entra. Julieta entra logo atrás.
VIRGÍNIA (Português e LIBRAS) Tudo pronto?
JULIETA (Português e LIBRAS) Pronto, pronto, nunca tá.
VIRGÍNIA Você quer alguma coisa?
FÉLIX Desculpa, mas eu não falo LIBRAS.
VIRGÍNIA Ah, desculpa, me confundi.
Tom e Félix saem.
VIRGÍNIA (Português e LIBRAS) Bom, vamos finalizar de arrumar as coisas antes dele chegar. O importante é que seja tudo perfeito. É importante pra ele. Com certeza ele vai se sentir especial. Amado.
Tom e Félix voltam cada um com uma cadeira.
JULIETA Mas ele não é?
VIRGÍNIA LIBRAS.
TOM Desculpa, tia, mas não faz sentido falar em LIBRAS sem ele aqui.
VIRGÍNIA (Português e LIBRAS) Não faz sentido pra quem?
Silêncio.
VIRGÍNIA Tom?
TOM (Português e LIBRAS) Esquece.
VIRGÍNIA Vamos ensaiar o momento da surpresa?
Virgínia, Tom, Julieta e Félix ensaiam.
Matias entra e se direciona para o público.
Ao fundo, Virgínia, Julieta e Félix ensaiam sem se relacionar com ele.
Tom, em um microfone, interpreta em português a fala de Matias.
MATIAS Boa noite. Obrigado por terem vindo. Desculpem interromper a cena que vocês estavam assistindo. Essa parte não é tão importante. É até melhor que vocês não vejam agora a surpresa que eles estão preparando para mim. Quem sabe vocês se surpreendem. Eu sou o Matias. Eu vou estar ali daqui a pouco. Trabalho numa cooperativa de táxi. Sou taxista. Ou seja, eu tenho histórias pra contar. Pelo retrovisor do carro eu observo os passageiros, discretamente. Eu vejo as expressões, as bocas nervosas falando ao telefone, falando entre si, falando comigo. Eu me guio pelas expressões e quando eu vejo que o passageiro é gentil, dou um sorriso monstrando interesse, mesmo que eu não faça ideia do que ele esteja falando. Eu tô a caminho de casa. Eu vou chegar, abrir a porta e fingir surpresa. Eu vou dizer: Dessa vez vocês me pegaram! Minha mãe vai me abraçar e cheirar meu cabelo. Eu vou abraçar o Tom e ele vai me suspender. A Julieta vai me dar um abraço e um beijo. O Félix vai me cumprimentar de uma forma que só a gente faz. Nada de tão extraordinário vai acontecer. Eu sou uma pessoa comum. Essa é a minha história.
Matias chega em casa. O grupo faz a surpresa tal qual Matias narrou. (Parabéns para você em LIBRAS). Cumprimenta a todos da forma que descreveu.
Tom interpreta para Matias o diálogo entre Julieta e Félix
JULIETA Você e o Matias trabalham juntos, né?
FÉLIX Na cooperativa, sim. Prazer, Félix.
JULIETA Julieta. E como ele é lá?
FÉLIX Ele é ótimo!
JULIETA E não é complicado pra ele trabalhar de taxista?
FÉLIX Lá no ponto, ele é que mais tem clientes fixos. Pessoal adora ele. Tem gente que deixa de pegar o carro que tá na vez só pra fazer a corrida com ele.
JULIETA Foda!
FÉLIX Vocês precisam de ajuda com alguma coisa?
VIRGÍNIA Não precisa se preocupar.
FÉLIX Eu não falo LIBRAS.
VIRGÍNIA Perdão. É a força do hábito. Eu me esqueço.
FÉLIX Seu filho é ótimo. Gosto muito dele.
VIRGÍNIA Isso me deixa feliz! Que coisa boa de ouvir.
Virgínia vira as coisas e sai. Felix constrangido, pergunta sem titubear.
FÉLIX E aí? Tem álcool nessa casa?
Virgínia, Julieta e Tom saem.
Restam em cena, Matias e Félix. Se olham e do nada se cumprimentam novamente. E outra vez. Ao final Félix coloca a mão no rosto de Matias, que sorri sem jeito. Constrangimento.
2 | O “ACIDENTE”
Matias e Félix estão sentados. Félix volta seu olhar para outro lado.
Matias joga seu chaveiro no chão propositalmente sem que Félix perceba, ele ouve o barulho e indica a chave para Matias.
FÉLIX Caiu aí.
MATIAS (Faz que não entende) O quê?
FÉLIX O chaveiro.
MATIAS (Pega) Ah sim. Obrigado.
FÉLIX Esse chaveiro… Ele é meio… esquisito. Pouco masculino, sei lá.
Através dos gestos de Félix, Matias entende ser algo sobre seu chaveiro.
MATIAS Qual o problema?
FÉLIX Na cooperativa o pessoal faz piadinhas… você sabe.
MATIAS Eu não ligo.
FÉLIX Posso ver?
MATIAS Era de uma ex-namorada que foi embora pra França.
FÉLIX Você ganhou de presente? Posso ver?
Matias joga o chaveiro para Félix, que pega no ar.
Matias se levanta e indica o chaveiro. Félix ergue o chaveiro e faz o mesmo gesto, como quem compreende. Matias segue contando em V.V. (Visual Vernacular) a história da noite em que atropelou uma pessoa.
Ao final da história trágica, Félix estarrecido, olha para o chaveiro e depois para Matias.
FÉLIX Você fugiu?! (Gesticulando) Fugiu, você?
MATIAS Eu fiquei desesperado… Não conseguia pensar. Eu fugi.
Félix chocado, levanta-se e entrega o chaveiro a Matias. Sai meio atordoado.
3 | PINÓQUIO
Virgínia entra, chatiadíssima, toca o ombro de Matias que se assusta com sua presença inesperada. Ela mostra um boneco do Pinóquio com o pé quebrado.
VIRGÍNIA (Português e LIBRAS) O pé do Pinóquio quebrou.
MATIAS Eu sei. Tem tempo já.
VIRGÍNIA Como assim?
MATIAS Caiu. Acontece.
Tom entra.
VIRGÍNIA Mas foi o presente que eu te dei quando você era pequeno. (Para Tom) Ele adorava esse boneco.
TOM Essas coisas acontecem. É normal.
Julieta entra trazendo uma caixinha de som.
JULIETA Musiquinha pra dar uma animada?
TOM Boa!
MATIAS Foi um acidente.
Félix entra. Virgínia sai.
A música começa a tocar.
FÉLIX Gente, eu acho que a descarga tá com algum problema. Eu apertei e a água não para de cair. Eu vou tentar...
Félix sai.
VIRGÍNIA (Português e LIBRAS) Música não. Hoje não!
Virgínia vai até outro ponto do espaço para que seja notada.
VIRGÍNIA (Português e LIBRAS) Pede pra ela tirar a música. Tom!
TOM Ju!
JULIETA Oi?
VIRGÍNIA (Português e LIBRAS) Será que dá pra tirar a música? Tom!
TOM Ju!
JULIETA Oi?
Félix entra. Virgínia sai.
FÉLIX Eu tentei apertar e acabou saindo mais água. Tentei fechar o registro. Girei, girei, e acho que também acabou quebrando. Mas não precisa se preocupar que eu vou consertar.
Félix faz que vai sair, mas volta.
FÉLIX Só não vai dar pra usar o banheiro temporariamente, tá bem?
Virgínia entra.
VIRGÍNIA Não tá lá.
FÉLIX O que?
VIRGÍNIA A peça que tá faltando.
FÉLIX Como não tá?
Félix sai. Virgínia observa os 3 dançando.
VIRGÍNIA (Para si) Porra.
Félix entra.
FÉLIX Eu tentei, mas parece que ela não quer fechar. Acho que é um encanamento antigo, sabe? Aqueles de ferro. Deve ser a ferrugem que vai comendo por dentro, até ficar tudo roído, mastigado, e a coisa vai ficando gasta, gasta, gasta. e não aguenta. Não aguenta. Vaza, não tem jeito...
A música acaba. Tom, Julieta e Matias seguem na coreografia, interpretando a letra em LIBRAS.
Julieta está sentada. Sem 1 dos sapatos, massageando o pé.
MATIAS O que aconteceu?
JULIETA Nada demais. Eu tô com dor.
Matias se senta ao lado e coloca a perna dela sobre as suas, massageando o pé de Julieta.
MATIAS A sua interpretação da música. Eu adorei. Muito linda!
JULIETA Você gostou?
MATIAS Eu amei! Muito linda.
JULIETA Que bom! Eu fico feliz. Você merece. Quantos anos você tá fazendo mesmo?
MATIAS Na verdade, hoje não é meu aniversário.
JULIETA Como assim?
MATIAS É coisa da minha mãe.
JULIETA Não entendi.
MATIAS É que ela comemora todo ano o dia em que ela me adotou como se fosse meu aniversário.
JULIETA Ah, você tá de sacanagem com a minha cara?! Sério?!
MATIAS Seríssimo!
JULIETA Caralhooo! Sua mãe é uma figura! Sério! Tô em choque! Eu não sei como você aguenta. Você é um anjo.
Matias faz um carinho na perna de Julieta. Clima. Julieta desconfortável.
MATIAS Você tem o pé muito bonito.
JULIETA Brigada.
Matias tenta beijá-la.
JULIETA Ou, ou, ou! Não! Não.
MATIAS Qual o problema? Só um beijo.
JULIETA (Português e LIBRAS) Eu disse não.
MATIAS Mas é só um beijo.
JULIETA Não!
Julieta levanta.
MATIAS Você parecia querer.
Félix entra.
JULIETA Por que?
MATIAS Não sei. Pareceu.
FÉLIX Aconteceu alguma coisa?
JULIETA Não.
Julieta sai.
FÉLIX O que é que aconteceu aqui?
MATIAS Eu sou um idiota! Eu só faço merda.
FÉLIX Não tô entendendo.
MATIAS Eu achei que ela também quisesse.
Matias senta na cadeira e pega a caixinha de som.
FÉLIX O que é que tem ela?
MATIAS Eu tentei dar um beijo nela, ela não quis e eu forcei. Eu forcei.
Félix sai.
Matias olha para a plateia.
Matias coloca a caixinha de som contra o pescoço e fecha os olhos, depois contra o peito, sentindo a música.
Félix entra. Matias está de costas para ele.
FÉLIX Eu tô apaixonado por você.
Félix sai.
5 | METÁFORAS
Matias fica só. Tempo. Félix volta repentinamente, toca no ombro de Matias.
FÉLIX Eu preciso te falar uma coisa.
MATIAS Não entendi.
FÉLIX Nem sei por onde começar.
MATIAS Não entendi.
FÉLIX Eu escrevi um poema.
MATIAS Eu sou surdo.
FÉLIX O poema fala da distância entre duas pessoas, mas essa noção de distância é, na verdade, o descompasso do desejo entre elas.
MATIAS Eu vou ao banheiro.
Félix o interpela no meio do caminho.
FÉLIX Não! Espera. Me escuta. (Se dá conta) Quer dizer… Eu falei me escuta? Que merda.
Tom entra. Félix não percebe, mas Matias sim.
Tom interpreta tudo para Matias pelas costas de Félix.
FÉLIX Lembra aquele dia que a gente saiu do trabalho e você tava com vontade de tomar sorvete? Eu te paguei um sorvete. E na hora de
te entregar eu toquei na casquinha, fechei o olho e joguei uma espécie de feitiço. Eu acreditei que eu tinha esse poder, ali, eu precisava.
MATIAS Eu não tô entendendo nada.
TOM (Português e LIBRAS) Tá difícil.
Félix surpreso.
FÉLIX Você tava aí o tempo todo?!
TOM (Português e LIBRAS) Não. Eu cheguei agora.
FÉLIX Que bom… Vocês dois são amigos há muito tempo, né?
TOM (Português e LIBRAS) Sim, amigos desde criança.
FÉLIX Você pode me ajudar?
TOM (Português e LIBRAS) Que tipo de ajuda você quer?
FÉLIX Nada diferente do que você faz.
TOM (Português e LIBRAS) Eu desconfiava.
FÉLIX Vamos lá. Diz pra ele que eu… Eu sou… Eu sinto… Meu coração… Eu tô suando. Eu preciso beber alguma coisa. Essa parte não precisa. Deixa eu secar a minha mão. (Seca na própria roupa) Eu suo muito nas mãos e nos pés também quando eu… Essa parte também não precisa. Você traduziu? (Tom faz que sim com a cabeça. Julieta entra e observa a conversa) Tudo bem.
Enfim. (Pausa) Dizem que quanto mais violento é um mar, mais firme é a terra abaixo dele.
Pausa.
JULIETA (Português e LIBRAS) Ah entendi… Vocês também comeram o brigadeiro. Tá bem especial.
TOM (Para Félix. Português e LIBRAS) Desculpa, onde você quer chegar?
Julieta assume a interpretação do que Félix diz
FÉLIX (Julieta interpreta em LIBRAS) Eu não sei onde eu quero chegar, quer dizer, eu sei exatamente onde eu quero chegar.
TOM (Português e LIBRAS) É difícil interpretar metáforas.
FÉLIX (Julieta traduz) Sério? Que pena. Eu adoro metáforas.
MATIAS (Para Julieta) Desculpa por hoje.
JULIETA (Português e LIBRAS) Aquilo não foi legal.
MATIAS Sim. Às vezes eu não sou legal.
Virgínia entra.
6 | AQUELA DO PINHEIRO
VIRGÍNIA (Português e LIBRAS) Espero que vocês gostem da carne. É receita de família!
FÉLIX Desculpa, mas eu não como carne.
VIRGÍNIA (Português e LIBRAS) Ah, desculpa. Não sabia.
JULIETA Religião?
VIRGÍNIA Que amiguinho chato que você arrumou, hein!
FÉLIX Eu sou ateu. (p/ John) Que foi que ela falou?
TOM Que não tem problema nenhum.
JULIETA Não acredita em nada, nada?
MATIAS Que ele falou?
TOM Que adorou o prato.
FÉLIX Na ciência.
Tom ri.
FÉLIX Que foi?
TOM O Matias falou uma coisa engraçada.
FÉLIX O que?
TOM Ele disse que--
VIRGÍNIA (Português e LIBRAS) Bom, agora que estamos todos conversando, eu sugiro que a gente só fale em LIBRAS. Em respeito ao aniversariante.
MATIAS Não é meu aniversário de verdade.
Silêncio. Clima.
Julieta tira os sapatos.
JULIETA Vocês conhecem aquela do pinheiro?
VIRGÍNIA LIBRAS!
FÉLIX Pinheiro?
MATIAS Que?
Tom começa a traduzir para Matias.
JULIETA Por que o pinheiro não se perde na floresta?
Ninguém responde.
JULIETA Porque ele tinha um mapinha.
Tom segue traduzindo para Matias.
FÉLIX Eu não entendi.
JULIETA U-ma-PINHA!
FÉLIX Ah...
JULIETA U-MA-PINHA!
FÉLIX Eu não sei se entendi.
JULIETA U-MA-PINHA!
VIRGÍNIA (Grita) Só LIBRAS!!! Caralho!!!
Matias sai, irritado.
VIRGÍNIA (Português e LIBRAS) Desculpa. Desculpa. Meu filho.
Virgínia sai.
FÉLIX Foda-se! Eu preciso beber alguma coisa. Deve ter álcool em algum lugar nessa casa?
TOM Aqui não tem bebida.
Félix acha uma garrafa e copos.
FÉLIX Não falei? Quem me acompanha?
JULIETA Eu!
Félix vai na direção de Tom e estende o copo.
TOM Não, não, não. (Pega o copo)
Félix serve Julieta e Tom.
Virgínia e Matias voltam.
FÉLIX Eu proponho um brinde ao aniversariante. (P/ Tom) Traduz pra ele.
Tom interpreta.
MATIAS Hoje não é meu aniversário.
Virgínia sai.
Tom pega o microfone.
FÉLIX Que que ele falou?
TOM Que hoje não é o aniversário dele.
Todos saem de cena.
Tom ao microfone.
| MEU ANIVERSÁRIO NÃO É
MATIAS (Ao público. Tom, ao fundo, interpretando em português) A partir de agora é importante que todos vocês saibam de uma informação que os surdos e os ouvintes sinalizantes aqui já sabem. Souberam em outra cena. Eu sou adotado. Bom, é isso. Agradeço ao meu grande amigo por tornar essa informação acessível a todo público ouvinte. Obrigado, Tom. (Pausa) Não há nada de extraordinário em ser adotado, mas é importante que todos saibam porque a próxima cena é sobre isso. (Virgínia entra com um caixa de brinquedos. Coloca no chão) Sobre essa mãe, a minha mãe, Virgínia, que entra com um brinquedo nas mãos. Hoje é um dia especial porque fazem 29 anos que eu fui adotado por ela. Há 29 anos ela faz questão de organizar um aniversário de adoção. (Para Virgínia) Mãe, você sabe que eu te amo, não sabe?
Virgínia pega um dinossauro sem cabeça na caixa.
VIRGÍNIA (Português e LIBRAS) A cabeça do dinossauro… Você adorava esse.
MATIAS Sabe que você é tudo pra mim.
VIRGÍNIA (Português e LIBRAS) Vivia com ele pra cima e pra baixo.
MATIAS E que vai ser pra sempre.
Virgínia imita com o corpo a forma como Matias fazia o dinossauro, emite os sons. Depois ri de si mesma.
VIRGÍNIA (Português e LIBRAS) Você entrava na cozinha do nada imitando esse dinossauro, eu sempre tomava um susto.
Matias sorri. Eles se olham um pouco, em silêncio.
VIRGÍNIA (Português e LIBRAS) Você sai de casa todos os dias e eu fico com um aperto no peito porque eu sei exatamente o mundo que te espera lá fora.
MATIAS Eu cresci nesse mundo. Eu sou um adulto.
VIRGÍNIA (Português e LIBRAS) Eu me preocupo muito com você.
MATIAS Lembra a primeira vez que eu voltei sozinho da escola? Eu me perdi. Tive que me virar, tentar me comunicar pelas ruas. Depois de passar as 3 horas mais longas da minha vida procurando o caminho de casa, eu entendi que as coisas não eram tão simples pra mim.
VIRGÍNIA (Português e LIBRAS) Esse dia foi um dos piores da minha vida. Eu me culpo até hoje.
MATIAS Você disse que eu não voltaria sozinho nunca mais. Demorou muito até você confiar, mas eu te convenci de que eu tinha aprendido o caminho.
VIRGÍNIA (Português e LIBRAS) Vai com cuidado, presta a atenção! Eu disse. Mas você se perdeu de novo.
MATIAS Cada um tem seu tempo.
VIRGÍNIA (Português e LIBRAS) Eu envelheci uns 7 anos enquanto te procurava pelas ruas. Descalça.
MATIAS Eu amadureci uns 5 enquanto procurava o caminho de casa.
VIRGÍNIA (Português e LIBRAS) Foi um trauma.
MATIAS Mãe, esse é o último ano que a gente vai comemorar essa data.
VIRGÍNIA (Português e LIBRAS) Como assim? Não, imagina! Ano que vem fazem 30 anos. Vai ser um festão.
MATIAS Eu não quero.
VIRGÍNIA (Português e LIBRAS) Você sempre gostou, desde criança.
MATIAS Quando eu era criança eu gostava.
VIRGÍNIA (Português e LIBRAS) Você ainda gosta.
MATIAS Na verdade me incomoda.
VIRGÍNIA (Português e LIBRAS) Meu filho, você teve um vida tão dura no orfanato.
MATIAS Disso eu sei.
VIRGÍNIA (Português e LIBRAS) E sendo surdo… é tudo mais difícil.
MATIAS Disso eu também sei.
VIRGÍNIA (Português e LIBRAS) Você merece tanto ser feliz.
MATIAS Mãe, eu sou feliz. Obrigado.
VIRGÍNIA (Português e LIBRAS) Deve sentir que tudo tá contra você.
MATIAS É assim que você me vê?
VIRGÍNIA (Português e LIBRAS) Ano que vem pensei em alugar uma casa de festas.
MATIAS Eu não quero.
VIRGÍNIA (Português e LIBRAS) Por que isso agora?
MATIAS Porque não faz sentido.
VIRGÍNIA (Português e LIBRAS) Não faz sentido pra quem?
MATIAS Pra mim! Pra mim.
Clima. Tempo. Virgínia tenta alguma naturalidade.
VIRGÍNIA (Português e LIBRAS) Bom, acho melhor a gente cortar o bolo. Eu já tirei ele da geladeira pra consistência ficar perfeita. Nem muito endurecida, nem derretida demais. Perfeita.
Virgínia começa a colocar de volta na caixa os brinquedos.
MATIAS Mãe, o tempo passa. As pessoas mudam.
VIRGÍNIA (Português e LIBRAS) Por que tudo é tão pesado? Tudo nas minhas costas! Eu sempre faço o melhor e nunca é o suficiente!
MATIAS Não é bem assim.
VIRGÍNIA (Português e LIBRAS) Tudo pra te proteger.
MATIAS Eu amo você.
VIRGÍNIA (Português e LIBRAS) Uma vida dedicada a você.
MATIAS Você é minha mãe.
VIRGÍNIA (Português e LIBRAS) A partir de hoje vai ser diferente.
MATIAS Eu preciso te dizer uma coisa.
VIRGÍNIA (Português e LIBRAS) Vou cuidar mais de mim.
MATIAS Eu descobri onde a minha mãe biológica mora.
Silêncio. Virgínia sem reação. Congelada.
JULIETA Musiquinha pra dar uma animada?
8 | FERAS
Entram Julieta, Tom e Félix.
Félix, Tom e Julieta puxam um trenzinho ao redor de Virgínia.
Todos fazem uma fila na horizontal e cada um faz um movimento diferente. Em seguida, se espalham.
Félix levanta a garrafa no alto e tenta beber o líquido que cai. Ele serve bebida para Julieta e Tom do mesmo modo.
Virgínia começa a tremer sistematicamente. Alguém toca nela e ela para, como se nada tivesse acontecido.
Enquanto Julieta e Tom imitam os tremeliques de Virgínia (como se fosse uma coreografia), Félix e Matias fazem a coreografia de Macarena. Aos poucos, Félix faz a coreografia e aproveita para abraçar Matias. Félix vai pedindo beijinhos no rosto para Matias.
Matias puxa Virgínia para dançar com ele. Um coloca a mão no peito do outro. Félix, Julieta e Tom fazem giros pelo espaço.
Julieta sobe em cima de uma cadeira e começa a cantar um música ao microfone, mas sem voz. Todos se deitam ao redor dela.
JULIETA Não tenta fingir que você não tá vendo, pois eu sei que você tá vendo. Não vira o rosto pro lado. Não finge que não é com você. Ei, olha! Psiu. É com você mesmo aí. Você sabe. Tá na ponta da língua. É só dizer. Então por que não diz? Diz! Fala. Anda. Aqui. Tá bem aqui. Um suspiro entalado. Que fica apertando, sabe? Eu sei que você. Assim como eu. Como ela. Como ele. Também sente. Essa coisa que tá aqui. Aqui dentro. Que ninguém diz. Que tá aqui. Agarrada. Entalada. Que quer sair. Que não sai. Que vive grudada. Que não me larga. Que quase mata. Que mata. Que não me mata. Que vive me engolindo. Esse sabor amargo. Doce. Salgado. Azedo. Que vira azia. Prazer. Deleite. Um desejo inibido. Desabor. Como todo mundo tá vendo. Percebendo. Sacando. Sentindo. Vai dizer que não sente? Pra cima de mim? Você também pode ver. Sentir. Então, vai! Abocanha com força e deixa o líquido escorrer por entre as papilas gustativas e ir. E ir. Até se transformar em ácido sulfúrico e ir. E ir. Pra de novo. Sair. Regurgitar. Sair. Sem medo. Sem segurar. Deixa ir. Sente. Deixa sair. O gosto. O doce, salgado, amargo, azedo. Oh, my God! What a taste! Arriba! Si! Yes. Sim. Sim. Sinta. Sinta. Sinta!
Vemos Virgínia e Matias. Um diante do outro. Ela segura um bolo e acende uma vela tipo vulcão. Todos estão sentados no chão, observando em silêncio a vela queimar. A luz de cena vai se apagando até que vemos todos iluminados apenas pela chama da vela. Tempo. A vela termina de queimar. Breu.
9 | ATRASOS
Breu. Uma tela preta e retangular desce sem que o público perceba. Ela está localizada no lado direito, um pouco atrás do cenário sobre o qual estão os atores, que seguem na mesma posição da cena anterior. Surge uma projeção de texto sobre a tela preta. Entra a Legenda.
LEGENDA Cheguei. Finalmente. Que escuridão é essa? Desculpem o atraso.
Volta a luz de cena.
TOM Achei que você não vinha mais.
LEGENDA Eu tava presa num congresso, traduzindo uma palestra sobre vulcões.
VIRGÍNIA (Português e LIBRAS) Hoje não é o aniversário dele.
LEGENDA Então eu já perdi alguma coisa.
MATIAS (Para a Legenda) Que bom que você veio.
FÉLIX (Para a Legenda) Prazer. Félix.
LEGENDA Prazer.
Você é o que não sabe LIBRAS.
FÉLIX Sou eu.
LEGENDA Claro.
FÉLIX Não entendi.
LEGENDA Acontece.
Risos.
Relaxa. Vou traduzir pra você.
A Legenda traduz em português as falas em LIBRAS. Félix se relaciona agora entre o que acontece na cena e na legenda.
JULIETA Por que a gente não canta parabéns de novo agora que chegou todo mundo?
VIRGÍNIA Não faz mais sentido.
MATIAS (Para Julieta) O que ela falou?
JULIETA Que não faz mais sentido.
MATIAS Mãe, eu não quis te magoar.
VIRGÍNIA Melhor cortar o bolo pra terminar logo com isso.
MATIAS (Para Virgínia) Eu só queria que você soubesse--
VIRGÍNIA Você tá certo. Ela é sua mãe também. Sua mãe biológica. (Para Matias) Você quer ir agora? Posso ir com você. Eu só vou pegar minha bolsa e a gente vai. (Para si) Só não sei onde coloquei a minha-- (Para Matias) Vai ser bom. Não. Vai ser ótimo! (Para Tom) Ótimo pra ele. É sobre ele. (Para Matias) Eu só vou pegar minha bolsa. (Para si) Onde eu coloquei minha bolsa?
MATIAS Eu não vou a lugar nenhum agora. Eu me sinto feliz por estarmos todos juntos aqui. Isso é o suficiente. Vamos ficar e aproveitar o resto da noite.
FÉLIX (Olhando para a Legenda) Parece que eu tô num filme.
LEGENDA Você está num teatro.
Virgínia gargalha.
VIRGÍNIA Desculpa. Desculpa rir. Mas é que eu me lembrei do dia em que você ganhou da escola aquele aparelho auditivo. Você era criança. Você saiu com ele na orelha e assim que pegamos o ônibus. (Ri)
MATIAS (Para o público) Ela vai dizer que eu joguei pela janela.
VIRGÍNIA (Para Julieta) Ele jogou pela janela!
JULIETA (Para Matias) Sério?
Julieta chama Matias. Ele chega perto e ela dá-lhe um tapa nas costas. Ele ri.
VIRGÍNIA Na época custava uma fortuna!
TOM O Matias tinha certeza que você ia brigar e deixar ele de castigo por pelo menos 1 mês.
MATIAS (Para o público) Mas ela não fez nada disso.
VIRGÍNIA A escola dizia que eles tinham esperança de encontrar um resíduo auditivo.
MATIAS (Para o público) Ela me sentou na cadeira da cozinha e disse:
VIRGÍNIA Nada precisa mudar se você não quiser.
MATIAS (Para Virgínia) Eu sou 100% surdo. Pode acreditar.
VIRGÍNIA Eu nunca desconfiei.
JULIETA (Português e LIBRAS) Por que a gente não tira uma foto? Agora que tá todo mundo aqui.
TOM (Português e LIBRAS) Ótima ideia!
Tom saca um celular com uma luz acoplada. Todos se juntam próximo à Legenda. Todos fazem o sinal de “Eu te amo”. A Legenda também.
Todos saem, Matias acompanha com os olhos, sorrindo.
10 | PARADOXOS
Matias volta seu olhar para a plateia.
LEGENDA Ele pensou em ir embora naquele momento. Pegar seu táxi, dar a partida e arrancar.
Matias olha para a Legenda.
LEGENDA Tomar um vento no rosto, respirar tudo que estava sentindo. Ficar um pouco sozinho. Mas isso seria fugir de novo, não? - ele pensou.
MATIAS Você acha que sabe o que eu penso?
LEGENDA Não.
Eu só escrevo o que eu suponho que sei.
MATIAS No que eu tô pensando agora?
Félix entra e lê a tradução da Legenda.
LEGENDA Que você mentiu sobre saber onde sua mãe biológica mora. Que você mentiu sobre ter atropelado alguém.
Félix encosta em Matias para chamá-lo.
FÉLIX Você mentiu?
MATIAS Eu inventei.
FÉLIX (Para a Legenda) O que ele disse?
LEGENDA Que inventou.
A Legenda traduz o diálogo dos dois. Félix se divide entre falar diretamente para Matias e ler o que ele diz, traduzido pela Legenda. Volta e meia Matias faz o mesmo. Um diálogo mediado pela Legenda.
FÉLIX Por que?
MATIAS Eu não sei. Eu queria que você me dissesse.
FÉLIX O que?
MATIAS O que você tem pra me dizer.
FÉLIX Não tenho nada pra-- ei, você tá fugindo do assunto. Merda, eu tô suando.
MATIAS Agora. Me diz agora.
Félix tenta sinalizar que está apaixonado por Matias, mas faz versões desconexas dos sinais. Matias volta seu olhar para a plateia. Félix segue tentando, fazendo movimentos aleatórios, quase como se dançasse a sua própria tentativa.
LEGENDA Onde há um certo descompasso, aparece um estranho que nos habita. Eles acham que escolhem as palavras, os sinais e o sentido do que realmente querem dizer, mas, às vezes, a realidade coesa não dá conta. Quando se tenta negar o impossível, parece que algo procura se vingar de nós.
Matias entra carregando uma bandeja com brigadeiros. Olha para a Legenda.
LEGENDA Volto já.
Matias vai em direção à plateia. Pede para que alguém segure a bandeja.
Agradece. Oferece brigadeiros ao público, puxa assunto — improvisa.
Enquanto distribui, ele interage a partir do que surge no momento. Vez ou outra, ensina alguns sinais pertinentes ao assunto para os que não sabem
LIBRAS. Enfim, Matias conversa com a plateia. A ideia é que não haja nada, nem ninguém para intermediar essa relação.
Depois de um determinado tempo, Tom entra, olha a Legenda escrito “Volto já”.
TOM (Português e LIBRAS) Você precisa de ajuda?
MATIAS Não. Obrigado, amigo. (Ao público) Vocês precisam de ajuda?
Entra Félix usando seu uniforme, a camisa do início.
FÉLIX (Para Tom, que o interpreta) Posso? Diz pra ele que eu fiquei feliz de ter vindo… diz muito feliz. E que… (começa a repetir alguns sinais feitos por Tom) E que eu tenho muita admiração pela pessoa que ele é. Apesar das maluquices que ele inventa. Diz que eu quero começar a aprender LIBRAS pra gente poder conversar… diz pra ele que eu queria ficar, eu quero ficar, mas eu tô confuso, então é melhor eu ir embora -- a parte do confuso não precisa. Só diz que eu vou embora mesmo. É isso.
Matias vai até Félix e o abraça.
MATIAS (Para Félix) Você é um cara bem esquisito. Eu gosto disso.
Félix sorri, incrédulo.
FÉLIX (Para o Tom) O que que ele falou?
TOM Que você é esquisito.
FÉLIX (Fica sério) Ah…
TOM E que ele gosta disso.
FÉLIX (Sorri) Ah… Bom, eu tô indo.
Os dois se olham. Cumprimentam-se da forma que só eles fazem. Félix vai se afastando, aponta para Matias e sinaliza.
FÉLIX Até amanhã.
MATIAS Até amanhã.
Félix sai. Matias olha para o público e depois chama por Tom, que vai até ele.
MATIAS (Fala com Tom) Esse é o nosso público.
Matias pega duas cadeiras enquanto Tom observa e fala com a plateia.
TOM (Português e LIBRAS) Prazer… Obrigado por vocês terem vindo.
Matias chega com as cadeiras e indica para que Tom se sente.
Volta-se para a plateia. (Tom interpreta em português)
MATIAS Por acaso tem algum intérprete na plateia hoje?
Pausa. Pode ser que mais de uma pessoa levante a mão, pode ser que não — ao menos de imediato. Se for o caso, Matias pergunta: “Ninguém?” Pausa. Expectativa. Alguém levanta a mão. Importante cultivar um clima de improviso. Matias pergunta o nome da pessoa, o sinal dela e agradece por ela ter vindo.
Depois pergunta se ela poderia, por gentileza, interpretar essa próxima cena.
MATIAS (Para Tom) Quando foi que você começou a ter contato com pessoas surdas?
TOM RESPONDE.
MATIAS E o que te fez decidir se profissionalizar, se tornar Intérprete de LIBRAS e Português?
TOM RESPONDE.
MATIAS Dentre tantas diferenças existentes entre a cultura surda e a ouvinte, qual você destacaria, sendo você um ouvinte inserido na comunidade surda?
TOM RESPONDE.
MATIAS Qual a diferença entre traduzir e interpretar?
TOM RESPONDE.
A lâmpada acende e apaga três vezes. Tom percebe e indica para Matias.
TOM (Português e LIBRAS) A campainha.
MATIAS Quem será? Não estou esperando mais ninguém.
Matias agradece o intérprete, a pessoa volta para seu lugar na plateia.
12 | VULCÕES
Félix de volta, entrando. Virgínia e Julieta logo atrás.
FÉLIX Desculpa. Eu esqueci… a chave do carro.
Virgínia interpreta para Matias.
Todos olham ao redor, mas sem fazer qualquer esforço.
JULIETA Como ela é?
FÉLIX É um chaveiro bem simples, com um escudo do Botafogo.
Virgínia interpreta para Matias.
MATIAS Tô feliz que você voltou.
FELIX (Para a Legenda) O que ele…
LEGENDA Matias está feliz que você voltou.
FÉLIX Não. Eu não vou ficar. Eu vim só porque esqueci a --
MATIAS Fica.
VIRGÍNIA Até encontrar a chave você não tem como ir.
Felix olha para a Legenda.
LEGENDA Até encontrar a chave você não tem como ir.
JULIETA Fica!
TOM Fica!
LEGENDA Fica.
FÉLIX Ok, mas só até eu achar.
Todos comemoram, estendem suas mãos e vibram, sorridentes. Param.
FÉLIX Vocês me podem me ajudar?
Todos acenam que sim, dizem “Podemos, claro”. Tom interpreta para Matias.
Ninguém começa a procurar pelas chaves. Silêncio.
LEGENDA Risos.
VIRGÍNIA Do que você tá rindo?
À medida em que a Legenda diz, Tom interpreta para Matias.
LEGENDA Eu lembrei de uma coisa, que traduzi mais cedo. Na palestra sobre vulcões.
JULIETA Fiquei curiosa. Conta.
LEGENDA O especialista disse que, antes de um vulcão entrar em erupção, sua respiração fica falha. E que sua temperatura sobe, como se estivesse com febre. Como se ele fosse uma pessoa doente.
JULIETA Eu não entendi. Por que isso é engraçado?
FÉLIX Eu não entendi qual a graça.
LEGENDA Acho divertido esse hábito. Para compreender um fenômeno que não entendem, vocês tentam atribuir características humanas às coisas.
Silêncio. Todos imóveis, olhando para a Legenda.
FÉLIX Eu já fui num vulcão.
JULIETA (Para Matias) Félix disse que já esteve num vulcão.
TOM Sério?
MATIAS (Ao público) Ele vai dizer que foi uma experiência única.
Julieta interpreta para Matias.
FELIX Dizem que depois da erupção, o solo por onde a lava passa é o mais fértil que existe.
TOM Isso é uma metáfora?
FÉLIX Não… É como as coisas são.
MATIAS (Ao público) Ele disse outra coisa?
Tom interpreta para Matias.
JULIETA (Para Félix) Continua a história.
FÉLIX Foi uma viagem que fiz com o meu pai. Já faz um tempão. Ele amava vulcões. Fomos pro Chile. Eu me lembro que fiquei muito impressionado quando eu vi aquele negócio imenso.
JULIETA Eu gostaria de conhecer um vulcão. (Para Matias) Eu eu gostaria de conhecer um vulcão.
MATIAS Eu nunca pensei sobre isso. (Para Félix) Continua.
Julieta interpreta para Matias a fala de Félix.
FÉLIX Eu tinha perguntado a ele: E se o vulcão entra em erupção com a gente lá? Ele me disse que não tinha como saber ao certo, mas que, geralmente, um vulcão dava sinais antes de entrar em erupção. Só que não tinha como a gente saber a hora certa em que aquilo vai acontecer.
Todos refletindo sobre a fala de Félix.
FÉLIX Bom, eu vou procurar a minha chave.
Matias coloca a mão no bolso, tira a chave de Félix e a deixa cair no chão, dissimulando a ação. Todos olham.
FÉLIX A minha chave.
MATIAS O quê?
Félix indica a chave.
MATIAS Ah.
Pega a chave e joga para Félix, que ri, sem entender. Matias sorri e pisca.
TOM (Para Matias) Sabia! Eu te conheço muito bem.
JULIETA Eu não sei se isso é bom.
VIRGÍNIA O que?
JULIETA Conhecer alguém tão de perto. Eu não sei se gosto.
MATIAS Só tem como saber conhecendo.
VIRGÍNIA Sem isso, o que nos resta?
Félix olha para a Legenda e estala dos dedos, chamando. Todos olham.
LEGENDA Desculpe.
Acabei me entretendo com o diálogo.
Resumindo:
Tom disse que conhece bem o Matias.
Julieta não sabe se é bom conhecer alguém tão de perto.
Matias disse que só há como saber conhecendo.
Já Virgínia, indagou: “Sem isso, o que nos resta?”
Silêncio.
A luz começa a baixar muito lentamente, quase imperceptível.
Matias se vira para o público. Tom interpreta a fala de Matias.
MATIAS É poderoso isso de dizer coisas, mas não se vive apenas aquilo que se é capaz de dizer. Se vive bem mais. Amanhã ou depois estaremos aqui repetindo essas palavras, mas elas já não serão mais as mesmas — porque nós também não. Desejo que elas
sejam aquilo que eu reconheça, mas que me espanta um pouco. É que, às vezes, vocês sabem, a gente é previsível demais. Tomara que nem tudo tenha sido dito, que nem tudo tenha sido vivido aqui hoje, que tenha sobrado um tanto pra amanhã e depois. Tomara que ainda nos restem coisas pra dizer, coisas pra viver. Gosto de pensar que somos parte de algo indecifrável. Gosto de pensar no significado do silêncio, mas eu não gosto tanto dessa palavra. Gosto de pensar nos olhos da minha mãe. No quanto eles são vibrantes e tristes ao mesmo tempo. Eu sou uma pessoa comum. É poderoso isso de dizer coisas, mas não se vive apenas aquilo que se é capaz de dizer.
Matias é agora visto numa penumbra, até que a luz se apaga por completo.