O cerol fininho da Baixada, de Heraldo HB

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O CEROL

FININHO

Heraldo HB

DA BAIXADA Hist贸rias do cineclube Mate Com Angu



O cerol

fininho

da Baixada Histórias do cineclube Mate Com Angu

Heraldo HB

Petrobras Cultural

Realização


Copyright © 2013 Heraldo Bezerra (Heraldo HB) COLEÇÃO TRAMAS URBANAS curadoria Heloisa Buarque de HollandA consultoria Ecio Salles coordenação editorial Camilla Savoia projeto gráfico Flavia Castro O CEROL FININHO DA BAIXADA - HISTÓRIAS DO CINECLUBE MATE COM ANGU produção gráfica Sidnei Balbino revisão Camilla Savoia JOANA MILLI revisão tipográfica Camilla Savoia TATIANA LOUZADA foto da capa Apresentação circense da dupla Los Tchatchos, pós-sessão, em julho de 2010. Crédito: Noélia Albuquerque CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

H339c HB, Heraldo O cerol fininho da Baixada: Histórias do cineclube Mate Com Angu / Heraldo HB. - Rio de Janeiro: Aeroplano, 2013. 236 p. : il. ; 19 cm (Tramas urbanas) Inclui índice ISBN 978-85-7820-095-4 1. Cultura - Baixada Fluminense (RJ) 2. Cultura popular - Baixada Fluminense (RJ) 3. Cinema - Baixada Fluminense (RJ). I. Programa Petrobras Cultural. II. Título. III. Série. 13-1615. CDD: 306 CDU: 316.7 13.03.13 19.03.13 043470 Todos os direitos reservados Aeroplano Editora e Consultoria Ltda.

Praia de Botafogo, 210/sala 502 Botafogo - Rio de Janeiro - RJ CEP: 22.250-040 Tel: (21) 2529-6974 Telefax: (21) 2239-7399 aeroplano@aeroplanoeditora.com.br www.aeroplanoeditora.com.br


A ideia de falar sobre cultura da periferia quase sempre esteve associada ao trabalho de avalizar, qualificar ou autorizar a produção cultural dos artistas que se encontram na periferia por critérios sociais, econômicos e culturais. Faz parte da percepção de que a cultura da periferia sempre existiu, mas não tinha oportunidade de ter sua voz. No entanto, nas últimas décadas, uma série de trabalhos vem mostrar que não se trata apenas de artistas procurando inserção cultural, mas de fenômenos orgânicos, profundamente conectados com experiências sociais específicas. Não raro, boa parte dessas histórias assume contornos biográficos de um sujeito ou de um grupo mobilizados em torno da sua periferia, das suas condições socioeconômicas e da afirmação cultural de suas comunidades. Essas mesmas periferias têm gerado soluções originais, criativas, sustentáveis e autônomas, como são exemplos a Cooperifa, o Tecnobrega, o Viva Favela e outros tantos casos que estão entre os títulos da primeira fase desta coleção. Viabilizado por meio do patrocínio da Petrobras, a continuidade do projeto Tramas Urbanas trata de procurar não apenas dar voz à periferia, mas investigar nessas experiências novas formas de responder a questões culturais, sociais e políticas emergentes. Afinal, como diz a curadora do projeto, “mais do que a internet, a periferia é a grande novidade do século XXI”.

Petrobras - Petróleo Brasileiro S.A.



Na virada do século XX para o XXI, a nova cultura da periferia se impõe como um dos movimentos culturais de ponta no país, com feição própria, uma indisfarçável dicção proativa e, claro, projeto de transformação social. Esses são apenas alguns dos traços inovadores nas práticas que atualmente se desdobram no panorama da cultura popular brasileira, uma das vertentes mais fortes de nossa tradição cultural. Ainda que a produção cultural das periferias comece hoje a ser reconhecida como uma das tendências criativas mais importantes e, mesmo, politicamente inaugural, sua história ainda está para ser contada. É nesse sentido que a coleção Tramas Urbanas tem como objetivo maior dar a vez e a voz aos protagonistas desse novo capítulo da memória cultural brasileira. Tramas Urbanas é uma resposta editorial, política e afetiva ao direito da periferia de contar sua própria história.

Heloisa Buarque de Hollanda



Agradecimentos Ao Igor Barradas, à Cacau e Sabrina pelos toques e troca de passes no livro. À Emira pela cumplicidade e pela paciência enquanto eu escrevia. Ao Marcus Faustini, Renato de Alcântara, Adilson Fontenele e Eduardo Prates, pelas visagens.

Dedicado À galera do Mate, com o coração e o código-fonte abertos. Aos guerreiros culturais da Baixada Fluminense. Ao professor Joel Rufino dos Santos.

Em memória de Armanda Álvaro Alberto, pela inspiração. Tião, pela maestria e pelo torresmo inesquecível. Oseias José de Carvalho, da Ocupação 17 de Maio, cujo assassinato impune alimenta as estatísticas de barbárie contra os pobres.


SUMÁRIO 14

“Cara, vou fazer um filme sobre O Jardim Primavera.”

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Literatura

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Três impactos

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Caxias Mito

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Baixada no Ciberespaço

30

Progresso Primavera

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Bola quicando...

40

“A capital cultural do país.”

44

Marcos, 6

48

Nascimento

52

O nome

56

Fermentando...

58

Na FEBF/Uerj

62

Na marra

80

Faz o que com isso?

81

Open Mate

84

Verão dos Cineclubes

88

Noturna

92

Lira de Ouro

94

Fechando um bocadinho...

98

Viva!

99

Sessão Catapulta! – Filmes ao Infinito!

102

Programa pra hoje

106

TEXTO DA Sessão Dissonâncias – Cada pessoa é um universo

108

CinemaMito – Texto para O MoLA 2005, no Circo Voador

109

Slogans - Ritmo – Cerol Fininho

112

Texto da Sessão Baixada

116

Acorda!


122

Indigestando

124

Marte!

126

Dez, Nota 10

128

Rap é igual a Cinema

132

Cine Guandu

134

Cinema Palafita e a Intifada Audiovisual

136

Cinema com Batuque

138

Sessão Mosaico – Cinema com Cacos de Vidro

139

Terreiro

152

O mca

168

Lá no fim do mundo...

170

Fight the Power!

172

Power of the Angu

178

FLUXOS

184

OUTRAS PRAIAS

188

Nunca subestime a terceira idade

190

Texto da Sessão Curtas na Prateleira

192

Gente

198

Sessão 5 anos Bicando Canelas

200

Equipamento

204

Organizêichion

205

Introspectando

208

Dindin, Larjan, Arame, Bufunfa, Gaita, Pila, Grana...

214

Revirão

224

Evoé!

226

Cineclubismo 2.0

228

Papo Saideira



Todo começo é involuntário. Fernando Pessoa


O CEROL FININHO DA BAIXADA - Histórias do cineclube Mate Com Angu

“Cara, vou fazer um filme sobre o Jardim Primavera.” Olá. Você tem em mãos agora um livro sobre o cineclube Mate Com Angu, coletivo de audiovisual nascido em 2002, em Duque de Caxias, Baixada Fluminense, Rio de Janeiro, e não consigo pensar em um começo melhor do que essa frase aí em cima, dita pelo amigo e companheiro de grupo, Igor Barradas, em algum dia do ano 2000, sobre filmar o próprio bairro. Ela significa muito do que será dito aqui — lembre-se dela. Hoje o Mate Com Angu tem muitos membros e muitos colaboradores e parceiros em várias partes do país, muitas horas de voo na atividade cineclubista, produções audiovisuais, prêmios e histórias, mas, principalmente, continua sendo uma experiência de provocação audiovisual a partir de uma ótica periférica e inconformada. Como acho que certas obviedades devem ser deixadas claras logo de cara, friso que é bastante desafiador escrever um livro sobre um grupo que já nasceu com o desejo de ser uma experiência coletiva, em que a figura do líder não tivesse a ênfase que é dada nos movimentos em geral. O Mate desde o princípio foi pensado como um bonde, no sentido em que os funkeiros cariocas usam a palavra, e um bando, no sentido que mais nos definia nos primeiros anos. Sem contar que dentro do próprio grupo muitos possuem uma boa prática da escrita e certamente apresentariam uma perspectiva bastante diferenciada neste registro.

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Portanto, o livro traz uma visão particular sobre a trajetória do Mate Com Angu e contém várias opiniões pessoais que certamente ainda renderão muitas horas de bate-papo acalorado, principalmente se ao vivo e tomando uma providencial cerveja gelada. Mas, mesmo sendo um olhar pessoal, há uma essência comum que dá para captar facilmente no modus operandi em qualquer recorte feito por outro integrante do grupo, e creio que isso ficará claro no decorrer do livro. Para que faça mais sentido o entendimento do território físico e simbólico da experiência do Mate, é bom que eu mostre um pouco de onde venho e a partir de onde escrevo. São informações que jogam uma boa luz no modo como o cineclube nasceu e como ele opera suas ações na cena cultural do país. Como diz Sabrina, amiga e também integrante do cineclube, o Mate não foi exatamente um grupo de amigos que iniciou uma ideia, e sim muito mais uma ideia que reuniu e reúne pessoas que se tornaram amigas. E isso faz com que gente de várias idades e várias naturalidades se encontrem e conspirem nas produções do grupo, em um processo que continua até hoje, dez anos depois. E isso ficou mais evidente depois que, nos retrospectos de vida, nos bate-papos informais, vimos que muitos de nós frequentávamos os mesmos lugares, curtíamos várias ondas parecidas e estávamos emaranhados em uma rede de pessoas que sempre estiveram conectadas, muito antes da www ser criada pelo sangue bom Tim Berners-Lee... 15


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Literatura Na última década, graças à entrada no mercado editorial — na marra — de escritores como Ferréz e Alessandro Buzo, entre outros, é possível hoje tomar contato com um universo simbólico da juventude das periferias do país nos anos pré-internet, com uma memória silenciada principalmente por falta de gente que escrevesse e publicasse esse olhar — coisa que a literatura faz muito bem, indo além de tratamentos sociológicos e caricaturais. E com mais “respeito” e prestígio, uma vez que o livro ainda tem uma aura sacralizada, digamos. Sim, porque os sambistas sempre foram os cronistas do povo, e o rap, nas palavras do Chuck D, do Public Enemy, “é a CNN dos negros”. Mas é como se para a cultura estabelecida fossem registros menores, de validade duvidosa. E o cinema, então... Esse não conseguia mesmo apresentar esse universo subjetivo com verdade e legitimidade. O livro Suburbano Convicto, do Buzo, por exemplo, resguardadas as diferenças regionais, é um desses que tem bem pintado a riqueza de sentimentos e sensações, a dureza da vida e a alegria de nascer e crescer nas Baixadas da vida, nos anos 1970 e 1980, tempos de ditadura militar, redemocratização e “nova república”. Mesmo ambientado em São Paulo, não deixa de ser um excelente quadro do que era crescer e viver em Caxias nessa época, e por isso não en-

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trarei nessa de descrever infância e adolescência aqui — e também porque este não é exatamente um livro de histórias de superação. Mas há alguns fatos pessoais que acho importante registrar, porque revelam sintomas e tiveram reflexos nessa história lá na frente. Estudando em escola pública, em um dos muitos bairros abandonados pelos governos, com infraestrutura zero, e mesmo vindo de famílias sem envolvimento com a educação formal, aconteceu de alguns amigos e eu entrarmos em contato com o hábito da leitura ainda no período do Ensino Fundamental. Principalmente Renato de Alcântara, Marcus Faustini, Adilson Fontenele e eu acabamos mergulhando em um universo totalmente estranho ao local onde morávamos, o que nos fez suspeitar e descobrir logo cedo que o mundo era grande, grande mesmo. E depois de montar peças teatrais e escrever e publicar os primeiros textos na escola, e começar a colecionar selos e ouvir rock, sair de Caxias e visitar o centro do Rio de Janeiro tinha virado uma obsessão. Começando a trabalhar cedo, os passeios pelo centro com dinheiro contado representavam desafios que iam deliciosamente sendo enfrentados por nós, mesmo que a volta para a realidade de onde morávamos fosse difícil — se hoje ainda é complicado, imagine em meados dos anos 1980.

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Três impactos Relato a “ousadia” daqueles moleques andando na cidade do Rio porque não sei como chegamos à Biblioteca Pública do Estado do Rio de Janeiro, a BPERJ, ali quase em frente à Central do Brasil, conhecida popularmente como Biblioteca do Darcy ou do Brizola. Nela, além dos livros que se podia ler, havia um acervo excelente de filmes que podiam ser assistidos gratuitamente, o que foi certamente nossa primeira formação em audiovisual fora da televisão aberta. Embora, é claro, essa formação incluísse os fundamentais filmes dos Trapalhões assistidos no falecido Cine Paz e a Sessão da Tarde na Rede Globo. Em uma dessas visitas à BPERJ, vimos o Vidas Secas, do Nelson Pereira dos Santos, e foi uma porrada que mexeu com alguma coisa lá dentro do peito; no meu caso foi o primeiro dos três impactos “fazedores de cabeça” ligados ao audiovisual. Ainda no centro do Rio, também fomos usuários cativos das cabines de vídeo do Centro Cultural Banco do Brasil, o CCBB, que conhecemos antes mesmo de o local ser aberto ao público, estando Marcus e eu entre os primeiros usuários de lá. Explico: nessas andanças pelo centro, como entregadores de folhetos da Golden Cross, conseguimos nos empregar como menores auxiliares de serviços gerais no Banco do Brasil, na agência Primeiro de Março, alguns anos antes da criação do Centro Cultural. Havíamos descoberto a biblioteca que funcionava lá, e como só os funcionários do Banco podiam fazer empréstimos de livros, conseguimos nos inscrever para uma prova que só interna18


mente se sabia que existia. As cabines de vídeo do CCBB, a BPERJ, a Biblioteca Euclides da Cunha, no Palácio Gustavo Capanema, o Paço Imperial... São muitos os motivos pelos quais eu amo o Centro do Rio e amo as coisas gratuitas. O segundo impacto do audiovisual foi um pouco depois, por meio de uma exibição do cineclube Baixada. Eu havia visto um cartaz bastante tosco que informava sobre uma exibição no teatro da Câmara Municipal de Caxias. Nunca tinha ido a uma exibição deles e havia rumores que o grupo estava se desfazendo e que aquela seria uma de suas últimas exibições. O filme era Memórias do Cárcere, do mesmo Nelson Pereira que tinha me impressionado um ano antes. A força do filme, o barulho hipnotizante do 16 mm rodando e as pessoas que conheci nesse dia foram muito marcantes. Tanto que por conta dessas pessoas caímos de cabeça no movimento estudantil e passamos a frequentar o incipiente Partido dos Trabalhadores na cidade, nos filiando a ele com 15 anos de idade, cheios de sonhos e vontade de transformar o país, ainda que nada em Caxias sugerisse que qualquer tipo de mudança viesse a acontecer. O terceiro impacto veio por intermédio de um amigo de Nova Iguaçu, o poeta Henrique Souza, a quem sou grato até hoje. Eu tinha passado para Jornalismo na Escola de Comunicação da UFRJ e morava no alojamento do Fundão, o lendário Aló, onde Henrique começou a produzir uns eventos e uma oficinas culturais que me interessaram na hora. Foi assim 19


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que conheci Noni Carvalho Ostrower, na Oficina de Sensibilização e Criatividade, e Valter Filé, na Oficina de Teatro do Oprimido. Ambos, além de várias coisas, eram do núcleo da TV Maxambomba, experiência que eu só conhecia de nome — e de fama: na época, o linguista bambambã Noam Chomsky tinha vindo ao Brasil só para conhecer o projeto, para que se tenha uma ideia. Fui chamado para assistir a uma sessão da Maxambomba e me lembro vividamente da emoção que senti... O primeiro filme que vi era uma entrevista com o compositor Romildo, conhecido principalmente pelas músicas gravadas pela Clara Nunes, como “Conto de Areia”. A filmagem era em sua casa, em Nova Iguaçu, e me impressionou muito a força daquele registro. E me encantei definitivamente por tudo que assisti e com a proposta estética da Maxambomba que era carregada de verdade e tesão. Esse foi um contato determinante para tudo em que eu viria a me meter dali para a frente...

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Imagem de capa do jornal Luta Democrática. Crédito: Acervo Instituto Histórico Vereador Tomé Siqueira Barreto

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Capa do DVD #Mate 1. CrĂŠdito: Acervo Mate com Angu

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Caxias Mito Para entender o Mate Com Angu também é preciso falar de Duque de Caxias, cidade que temos há anos adjetivado das formas mais desvairadas possíveis, como na nossa apresentação no Orkut: “ermo, insólito, enigmático, emblemático, inacreditável, impressionante e desconcertante município de Duque de Caxias, Baixada Fluminense do rosa Estado do Rio de Janeiro”. E também falar desse território nebuloso que abriga os “paraíbas”, os "favelados", os “suburbanos” e “aquele povo da Zona Oeste”, termos que fazem a Baixada parecer ainda mais estigmatizada, talvez por conter todos esses elementos juntos e misturados, com força e quantidade. Poucas cidades no país sofreram tanto com estigmas quanto Caxias, praticamente um bullying midiático durante os anos. Primeiro nos tempos do lendário Tenório Cavalcanti, o Homem da Capa Preta, que foi um dos políticos mais conhecidos dos anos 1940 a 1960, responsável em grande parte por uma simbologia de faroeste caboclo na cidade. Figura polêmica que criou a mítica do cabra-macho protetor dos fracos, Tenório foi um dos deputados mais populares de sua época, sobretudo pelo voto dos milhares de nordestinos que chegaram aqui nas ondas migratórias nas décadas de 1940 a 1970. Essa fama de terra da pistolagem foi aproveitada e ainda mais reforçada sinistramente nos anos da ditadura militar pela imprensa sensacionalista, que endeusava a ação do 24


Esquadrão da Morte, do Mão Branca e afins, e folclorizava a cidade com requintes de mundo cão. O programa de rádio de avassaladora audiência, Patrulha da Cidade, por exemplo, chegava a ter um personagem, motorista da linha Caxias-Mauá, que entoava a crônica diária das tragédias e do abandono da cidade — Dallas City, Terra de Marlboro, “cidade onde a galinha cisca pra frente”, e daí por diante. Além disso a cidade foi transformada em área de segurança nacional pelos militares, privada do direito ao voto, administrada por interventores e prefeitos biônicos durante anos, tendo sua autoestima continuamente massacrada. Foi como se a soma de tudo isso viesse amalgamando uma carga pesada no ser caxiense. O quadro mostrado explica um pouco por que Caxias teve um problema sério de identidade e amor-próprio durante muitos anos... Esse estigma foi devastador para gerações inteiras de caxienses, sobretudo os jovens, que se sentiam inferiorizados como seres sociais, optando pela omissão da informação do local de nascimento e/ou simplesmente se “mudando para o Rio”. Mas aos poucos a cidade está se redescobrindo, percebendo a potência do caldo humano pujante presente nessa região. Caxias é uma cidade extremamente rica e promissora, mas que foi historicamente massacrada pela política aliada ao banditismo, pela depredação da Mata Atlântica, por crimes ambientais, como as retificações de rios, pelo abandono do Estado, pela exploração da miséria, pelas doenças ligadas 25


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à pobreza, pela grilagem de terras, pelos grupos de extermínio, pela especulação imobiliária, pela sombra exercida pela cidade do Rio e pela ação pesada da ditadura militar, resultando numa cidade escrota, para dizer o mínimo. E tem uma das maiores concentrações de renda do país: dos mais de 5 mil municípios do Brasil, Caxias há décadas está entre os vinte maiores orçamentos, e, no entanto, a qualidade de vida é péssima. Até meados dos anos 1990, se declarar morador de Caxias era uma vergonha mesmo, constrangimento certo; todo esse imaginário está impregnado em tudo o que foi feito e pensado na cidade desde muito tempo. E é nesse terreno do simbólico que o cineclube começou a levantar essa questão: Que cidade é essa? Que vergonha é essa? Por que os cidadãos daqui carregam esse receio de viver e conhecer sua cidade? Por que o sonho da juventude era ficar “bem de vida” e se mandar daqui? A ideia do Mate era justamente revelar essa riqueza que Caxias tem e que vem da diversidade, e de certo “jeito Caxias” de ser, que é absolutamente cinematográfico. E o curioso é que a Baixada de um modo geral é uma espécie de 3x4 do país, para usar uma imagem já citada por muita gente. Para o bem e para o mal, com imensos pedaços de Mata Atlântica original, uma rica e bonita história, uma formação humana de gente vinda de vários cantos do mundo, uma forte tradição de resistência política — e uma classe dirigente que ganha muito dinheiro aqui e mora fora. Brasil puro suco, purinho... Quando as primeiras sessões do Mate começaram a fazer sucesso e a serem faladas nas faculdades do Rio, muita gente que era da cidade foi lá dar um confere e se encantou. Muitas vezes — só eu ouvi mais de três — a gente ouvia o elogio sincero: “Muito bom isso aqui, nem parece que é Caxias!” Ou uma variação dita por um profissional da comuni26


cação naquela época no melhor estilo não-vi-e-não-gostei: “Se é feito em Caxias então não deve ser bom!” Era na esfera espiritual desse estigma que o Mate decidia atuar com força em seu início. Rompendo estereótipos; e sem bairrismos bobos: Caxias realmente é difícil, cansa, dá no saco. E ainda tem uma coisa muito doida: a proximidade sedutora com a cidade maravilhosa, onde tudo acontece... Mas entender Caxias como um símbolo, um território imaginário e imaginado é algo gostoso de se fazer e tem raízes; não é à toa que tanta gente, mesmo não sendo daqui fisicamente, se apropria imageticamente da cidade e vai criando outras Caxias carregadas de calor humano por aí nesse planeta afora. E é sempre bom lembrar que o que está sendo disputado no mundo atual com mais fervor é justamente a ficção, o território do imaginário. E quando a Rede Globo estreou uma novela que tinha a cidade como cenário, Senhora do Destino, muita gente ficou engasgada com aquela Caxias estéril e estereotipada, sem a força do que tanta gente sentiu e decidiu transportar para a arte e para a vida. Duque de Caxias é um rolo compressor esmagando sonhos de gerações de jovens há décadas, mas também é um potente liquidificador trabalhando para o futuro, processando muitas vitaminas mistas para a cultura do mundo nesse século. Pode levar fé.

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Baixada no ciberespaço Na virada do ano 2000, dois amigos e eu, Fernando Rodrigues e Eduardo Ribeiro, criamos um portal na internet dedicado exclusivamente à Baixada Fluminense, o Baixada On (www.baixadaon.com). Importante falar aqui, porque ele também está intimamente ligado ao nascimento do Mate Com Angu e nos abriu várias portas importantes. Além de enxergar as potencialidades da região, inclusive financeiras, existia a vontade de revelar para o mundo que as cidades da Baixada tinham uma riqueza que não era devidamente mostrada e valorizada. O forte estigma de violência e abandono ainda persistia... Sem contar que havia o espírito da época de que empreender um negócio revolucionário era ter uma empresa pontocom, expressão que alguns anos depois ficou curiosamente associada à outra, o estouro da bolha... Continuávamos sem dinheiro para investir, mas, apesar de o acesso ser pequeno, comparado aos dias de hoje, o portal conseguia ganhar certo respeito de vários setores da região, o que dava um gás a mais para o trabalho. Como o viés cultural era muito forte no site, naquele momento viramos fonte de vários jornais da cidade do Rio e conseguimos emplacar várias matérias legais para os grupos da região. Para ter uma ideia, até 1999 era possível ler todos os sites que continham referências às cidades da Baixada via Cadê? e Altavista, o Google da época. Lembro isso porque fazíamos esse exercício sempre. Também não havia a explosão das lan houses e muito menos as políticas de cultura digital 28


da era Gilberto Gil no Ministério da Cultura. Mas esse quadro mudou a nosso favor com a chegada do IG, internet Grátis, primeira onda de popularização de verdade do conceito de internet. Com muito dinheiro, muita propaganda em televisão e prometendo acesso gratuito à rede, o IG bombou e passou a ser a referência nacional. De uma hora para a outra o número de internautas deu um salto, e com ele o interesse e a quantidade de conteúdo gerado sobre a Baixada. E um dia o IG Rio nos chamou para uma reunião e passamos a fazer parte do conteúdo do IG, aparecendo quase todo dia na capa do portal. Com isso nosso acesso cresceu exponencialmente. Tudo indicava que, resolvêssemos logo as questões ligadas ao comercial, ficaríamos ricos... Bem, nosso prestígio aumentava cada vez mais, mas ainda não tínhamos conseguido capitalizar essa fama. Não ficamos ricos, mas pudemos assistir de uma posição privilegiada ao começo de um forte movimento, promovido pelos agentes culturais da região, de apropriação da internet como ferramenta de trabalho e de uma tímida libertação das condições de descaso com que os governos e o empresariado historicamente tratam a arte e a cultura. É nesse clima de vislumbres da transformação imagética da Baixada, nessa virada de século, que entra o Progresso Primavera na história. E aí as coisas vão esquentar bastante...

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Progresso Primavera O Jardim Primavera é um bairro muito especial na cidade de Caxias, e eu não saberia dizer ao certo por que motivo exato; provavelmente uma soma de alguns. Historicamente é um local povoado com um mínimo de planejamento, coisa rara na cidade; uma presença forte de moradores que fizeram melhorias e atividades sociais de forma comunitária nos anos 1940 e 1950; uma rica Mata Atlântica original e uma vocação para arte e cultura que chega a comover, juntando gerações e criando elos pessoais com o local que perduram durante a vida toda. Frequentando Jardim Primavera desde adolescente, as pessoas com quem convivi ali foram fundamentais para minha formação política, artística e musical; e isso inclui de forma muito especial a família de Igor Barradas. Só os seus tios dariam um livro à parte; Fabinho, por exemplo, era uma lenda do movimento estudantil nos anos 1980; era bastante articulado, bem-humorado, e tinha sido expulso do Instituto de Educação, o que para nós era algo meio mágico naqueles primeiros anos do fim da ditadura militar. Paulinho Bacamarte, elegância em pessoa, com suas músicas e dedilhado característico. Manoelzinho, seu pai, tem uma vibe roqueira autêntica e me apresentou a muitos sons loucos e variados, incluindo um tal de Egberto Gismonti, que na época eu achava um troço doido da porra. E no convívio com Regina em boa parte das experiências mais loucas da adolescência, incluindo as reuniões na casa dela com a malucada para ver TV Pirata, as matadas de aula no Instituto de Educação e o bombardeio constante de Pink Floyd no cérebro. 30


E sempre Igor por perto, moleque atento. Curioso como depois dos 30 anos vai ficando tudo mais ou menos equalizado, mas nessa época, ele seis anos mais novo do que eu, fazia diferença. Lembro que, ao conversarmos volta e meia nos eventos e nas festas, o sujeito sempre me surpreendia com observações e sacadas perspicazes sobre o cinema e sobre a vida, isso ele já saindo da adolescência. E possuía impressionante memória para se lembrar de filmes, seriados, quadrinhos e novelas. Esse moleque é foda, pensava eu. Até que um dia ele vem e diz: “Cara, vou fazer um filme sobre Jardim Primavera.” Recebi essa notícia como uma pancada certeira... Na época falei que, se isso fosse verdade, primeiro ele seria meu herói; segundo, o Baixada On iria entrar de cabeça para que o filme tivesse a repercussão midiática digna do que isso significava. Isso, entendam bem, significava fazer um filme naquele momento, e ainda mais um jovem fazendo um filme sobre o seu bairro! Fiquei muito chapado com essa parada. Progresso Primavera foi juntando uma gente que mais tarde iria despontar na cena audiovisual do Rio, como Igor Cabral, Carolina Paiva e Jansen Raveira. E era o iniciozinho da onda digital, que iria sacudir as periferias do país nos anos seguintes. Com apoio fundamental do Eraldo, da ONG Primaverde, e de vários amigos e familiares, o filme foi rodado e finalizado em 2001. Trabalhei na divulgação do filme, com meu megaempreendimento, o Baixada On, com release para a imprensa, telefonemas, fax para redações, e uso da nossa mailing eletrônica, que era ótima na época. Fizemos 31


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um hot site para o filme (http://matecomangu.com.br/progressoprimavera/), algo não usual naquele momento, em que, além de ter acesso ao release, fotos, ficha técnica e contatos, era possível ouvir a trilha sonora original. Esse trabalho resultou nas primeiras matérias sobre o Novo Cinema da Baixada, com Igor ainda sem barba. Apesar disso, Progresso Primavera foi muito menos visto do que merecia; a Prefeitura prometeu um apoio que na última hora não existiu, a onda cineclubista digital ainda não tinha a força que tem hoje e, poxa, não existiam ainda a banda larga e os youtubes da vida. Mas o filme encantava quem o assistia. A partir de uma pesquisa séria, surge através da câmera um bairro muito peculiar, bucólico e artístico, e que tanto amávamos. Como um caleidoscópio, o filme fala de progresso, de meio ambiente e de cultura por meio de imagens e personagens que tanto conhecíamos. E era também um contraponto a um momento na cidade em que havia um clima de medo de se fazer qualquer tipo de crítica ao governo local. E teve o dia da estreia no bairro... Um dia inteiro, isso mesmo, um dia inteiro de atrações no sobrado do Lelo, em Primavera. Dois telões alugados (e não totalmente pagos, agradecemos de coração à empresa até hoje), um puta som, show com vários músicos da Baixada e do Rio, exposições, performances, comidarias e encontros. Na hora da exibição, houve aquele instante mágico que tanto nos faz sentir vivos, que nos faz entender que uma exibição é mais, muito mais do que simplesmente ligar equipamentos e botar um filme para rodar. Lembro que na hora que o velho Collares surge na tela falando do também pintor Rodolfo Arldt, que morava no bairro, uma salva de palmas espontânea e calorosa fez o coração de geral rebentar em lágrimas de confusa alegria. Aconteceu algo ali. Algo que nos fez entender que era isso que nossos corações e mentes clamavam; nossos e de várias pessoas que estavam pela Baixada sentindo a mesma vibração. Era preciso uma ação nossa, na nossa área e com nosso jeito. 32

Aquele dia foi um pré-Mate.


Cartaz da sessĂŁo CinemAmor, em junho de 2005. CrĂŠdito: Arte de Thiago Venturotti


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Bola quicando... Depois do lançamento do Progresso Primavera, eu encontrava Igor cada vez mais, tanto ao vivo quanto nas madrugadas, via internet. Havia uma necessidade gritante de fazer alguma coisa na Baixada, audiovisualmente falando, que sintetizasse aquela energia que rolou no lançamento do filme. Além do óbvio desejo dele de fazer mais filmes, eu vinha de experiências culturais que trouxeram sacadas ricas que na minha avaliação poderiam ajudar a criar algo com força e verdade, do jeito que achávamos que deveria ser feito — sem salvacionismos e sem tratar o público como café com leite. E sabíamos que todo esse sentimento estava nos corações e gargantas de muita gente.

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De cara, tínhamos mais ou menos a intuição do que não queríamos fazer... Por exemplo: criar algo que fosse um “trabalho social”. Longe disso. Naquele momento me incomodava profundamente a visão de fazer oficinas para “ocupar o tempo” dos jovens, atividades para “afastar da criminalidade”, “capacitar” e afins... Outra preocupação era fazer algo que não compactuasse com os políticos da cidade da velha forma escrota tão comum na região. Aquele tipo de ajuda que é um misto de conversa fiada com desinteresse por qualquer coisa que seja questionadora, e que por muitas vezes é calcada nos vícios do “pires na mão”, atitude que infelizmente muitos grupos culturais ainda praticavam, gastando energia atrás de migalhas, no velho jogo da política de balcão. Premissa que já nasceu aí: quer apoiar? Ótimo. Mas, apoio de fato, e não o velho tapinha nas costas típico da política da Baixada (e que, com os anos e as viagens pelo país, percebi que é comum em muitos lugares...).


Nossos papos filosóficos incluíam também a percepção de que havia uma brecha aberta em relação à tecnologia digital que mudaria totalmente a forma como a produção e a distribuição da cultura aconteceriam dali para a frente. Era preciso apostar todas as fichas nisso. Percebíamos que o que a gente estava conversando e pesquisando estava sendo debatido em todo o mundo, bolas quicando na frente do gol à espera de um chute. Não se tratava mais das periferias apenas no papel de reação, mas também, e principalmente, de proposição. E nisso a Baixada Fluminense poderia sair na frente, com real vantagem baseada na riqueza estética e na força da cultura produzida aqui. Chico Science e o manguebeat eram referência total nesse momento. É bom que se se diga que esses papos sempre aconteciam em intervalos, momentos de cerveja, saídas de shows, madrugadas na praça e coisas assim, e certamente muitos dos amigos que acompanhavam o papo julgavam que falar de cultura, Baixada, transformação da forma — e com o entusiasmo com que falávamos — era uma viagem digna de entorpecentes dos mais pesados... Muitos concordavam com o diagnóstico de riqueza em potencial, mas daí a acreditar que um movimento cultural nesses termos daria certo em Caxias já era uma grande distância. Aliás, além de sentir a necessidade de fazer algo permanente, lembro que, mesmo inconscientemente, já tínhamos a ideia de que um grupo para canalizar aquele momento não poderia ser um grupo nos moldes convencionais. Para fazer com que as pessoas da cidade acreditassem mesmo no que dizíamos precisaríamos de um grupo que fosse muito barulhento, rock 'n’roll,

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algo próximo à Associação dos Criadores de Caso ou aos Confeiteiros sem Fronteiras. Não era o momento para bom-mocismo e sim da Baixada em sua veia mais punk, cerol fininho. Isso tudo era muito intuitivo e na real não sabíamos muito bem aonde ia dar; e a vida seguia na cidade como sempre foi na área cultural: pessoas e grupos se matando para produzir, reconhecimento difícil, tratamento a pão, água e desprezo por parte dos políticos, alguns reconhecimentos fora da cidade, e o velho dilema — encontrar todo mundo no centro da cidade no CCBB, no MAM, no Odeon, nos festivais de cinema, no Circo Voador, nos shows na Uerj, na Lapa... Mas dois assuntos foram muito fortes e determinantes nesse tempo pós-Progresso Primavera e pré-Mate, um histórico e outro “prático-bíblico”, que acabaram precipitando as coisas...

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Cartaz da sessĂŁo Viva o Brasil, em junho de 2006. CrĂŠdito: Arte de Thiago Venturotti



Trecho de entrevista de Nelson Pereira dos Santos a Jean Claude Bernadet para a revista OpiniĂŁo, em 1975. CrĂŠdito: Acervo pessoal


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“A capital cultural do país.” Além da revolução que o digital significava, também alugava o Igor falando de história, uma das minhas paixões, e que é uma das riquezas da região — e matéria-prima de primeira qualidade para qualquer trabalho cultural, ainda mais audiovisual, basta querer. Falava principalmente da TV Maxambomba, experiência próxima no tempo e no espaço, e da TV Olho, no início dos anos 1980, história praticamente esquecida e cujo acervo devia ser um tesouro escondido e tesudo de pesquisar. Foi aí que Nelson Pereira dos Santos entrou de novo na minha vida. A revista Arrulho é uma revista de poesia criada em 1986 na onda do grupo Utopicus Pacificus, editada por Eduardo Ribeiro, e que iniciou muita gente nessa parada de publicar textos. Em 2001, o jornalista Geraldo Garcez fez uma matéria para a Arrulho sobre a relação do cinema com Duque de Caxias, falando principalmente das locações que a cidade ofereceu para filmes importantes da produção nacional, como Quilombo, Terra em Transe, O Homem da Capa Preta e... O Amuleto de Ogum, do Nelson. Na matéria, Garcez não entra em detalhes, mas cita uma entrevista do cineasta a Jean-Claude Bernardet para a revista Opinião, na época do lançamento do filme, em que Nelson dizia que considerava Caxias como a capital cultural do país. Eu pirei completamente com essa história e só sosseguei quando achei a entrevista na íntegra. 40


Além de ser ambientado espacialmente na cidade, Amuleto é um filme muito significativo na filmografia de Nelson Pereira, como se várias questões colocadas sobre o público, a indústria e o cinema do Brasil fossem respondidas de uma forma lúdica e desafiadora. O Amuleto de Ogum é um roteiro do Nelson adaptado de um argumento de Chico Santos, um figuraça que foi, entre outras coisas, motorista de Tenório Cavalcanti e teve uma produtora de filmes, cinejornal na década de 1960, a Índio Filmes, que posteriormente se chamou King Filmes. Graças aos amigos Josué Cardoso e Rogério Torres, pudemos participar de uma entrevista com Chico Santos, em 2005, pouco antes de ele falecer. Essa entrevista se encontra disponível no Instituto Histórico. Pois bem: na época eu falava do filme e da entrevista do Nelson em todos os lugares que ia e sufoquei muito o Igor com isso. O que falávamos — e falamos até hoje — sobre impregnar as telas com essa Baixada mítica e universal estava ali. Considero O Amuleto de Ogum um clássico do cinema nacional e um dos padrinhos espirituais daquilo que um dia seria o cineclube Mate Com Angu.

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OPINIÃO — Como surgiu a ideia de O Amuleto de Ogum? Nelson Pereira dos Santos — É um história original de Francisco Santos, um rapaz que tinha uma empresa de documentários e jornais em Caxias, e se chamava O Amuleto da Morte. Era uma história policial que fundamentalmente tratava da formação da cidade de Caxias, através da migração nordestina, o nordestino na grande cidade, o fenômeno que se estende a São Paulo. Aliás, fora do centro, São Paulo é tão parecido com Caxias! Eu disse numa entrevista que Caxias era a capital cultural do Brasil: e foi isso que inicialmente me interessou na história.

[Trecho da entrevista de Nelson Pereira dos Santos a Jean-Claude Bernardet para a revista Opinião, 1975]

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Estação ferroviária de Duque de Caxias. Crédito: Acervo Mate com Angu


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Marcos, 6 Trabalhando com cultura desde cedo, em várias ocasiões citei a passagem bíblica do Novo Testamento, Marcos, capítulo 6, para definir um fenômeno muito característico da Baixada (e que na verdade é no mundo todo, ao que parece). É a passagem em que Jesus volta a Belém, terra onde nasceu, e é desprezado e zombado pelos seus, que não levam fé nenhuma em que ele seria alguma coisa a mais do que o filho do carpinteiro. Seguramente vem daí o provérbio popular “Santo de casa não faz milagre”. Pois bem: há uma atriz e diretora em Caxias chamada Magda Resende que em 2000 fez um curta (na verdade, quase um média, 30 minutos), As Carpideiras, com roteiro próprio, vários atores envolvidos, filmado em Guapimirim, rodado em Hi8, totalmente na raça. O filme foi enviado para vários festivais e arrebatou alguns prêmios, incluindo o Cine Vídeo de Gramado. Em Caxias, nenhuma linha, nenhuma entrevista, nenhum nada. Zero. Havia um certo tempo que não conversava com a Magda, e eu mesmo só soube do filme e dos prêmios por conta do artista plástico e guerreiro cultural Paullo Ramos, numa conversa de tom indignado... Paullo me convenceu que devíamos fazer alguma coisa, no mínimo um lançamento na cidade, tímido que fosse — mas que fosse feito. Embarquei na hora.

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Paullo conseguiu uma manhã na sala de cinema da Unigranrio e marcamos a data para exibição com debate com a diretora e quem mais pudesse vir da equipe. Fizemos uma divulgação na imprensa, novamente com o apoio do amigo Josué Cardoso, convocamos os amigos e as escolas da proximidade. Foi uma pena termos conseguido fazer o lançamento apenas numa manhã, no meio de semana. Mas mesmo assim, conseguimos levar muitos estudantes, e a sessão e o bate-papo foram ótimos. E pelo menos aconteceu, o filme não passou em brancas nuvens pela cidade... Fiquei com isso na cabeça e no coração durante muito tempo: Marcos 6. Haveria algum jeito de mudar isso?

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Entrevista para jornal O Dia, no centro de Caxias, com P,10 e Magda Resende, em 2004. CrĂŠdito: Acervo Mate com Angu



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Nascimento Os papos filosóficos evoluíam, e a necessidade de fazer algo chacoalhante na cidade era cada vez maior. Foi quando um dia o amigo Manoel Mathias mandou a letra: a turma da História da Feuduc, faculdade onde ele estudava, queria fazer uma mostra de filmes, e para ele essa era uma real oportunidade de impulsionarmos um movimento audiovisual em Caxias. A “turma da História” a que ele se referia era na verdade um grupo de historiadores, professores, estudantes e simpatizantes que vinha há alguns anos se reunindo e sistematizando o conhecimento sobre História da Baixada numa perspectiva de transformação na região. A APPH-Clio (Associação de Professores e Pesquisadores de História da Baixada Fluminense) tinha sido fundada como fruto desses anos de encontros, debates e organização em torno desse objetivo.

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Neste grupo, havia especificamente uma professora, Marlúcia Santos, que era uma espécie de referência no que sempre julgamos fundamental: o brilho dos olhos, expressão que usamos muito nessa caminhada. Marlúcia, além de ser uma das pessoas que sacaram na hora a força do audiovisual para a cidade naquele momento de brecha que o digital possibilitava, trazia uma verdade nas ideias e na palavra que despertava imediata vontade de fazer alguma coisa. Por ser apaixonado por História desde moleque e por conta de militância política, mesmo não sendo amigos de convivência, eu a conhecia havia algum tempo; depois viemos a saber que ela tinha sido cineclubista junto com Manelzinho, pai do Igor — mundo pequeno...


Para a organização da tal mostra audiovisual foram convidados alunos da faculdade e pessoas simpáticas à causa, critério em que Igor e eu nos encaixávamos. Algumas reuniões aconteceram, mas aos poucos o grupo foi ficando menor. Em um desses dias, na sala da Clio, resolvemos, além de realizar a mostra, fundar um cineclube. Sim, um cineclube! Uma organização que pudesse espalhar a semente do audiovisual na cidade, exibir os clássicos nacionais, as novidades da Retomada e, principalmente, mostrar o que estava sendo produzido naquele momento histórico, os “Progresso Primavera” que certamente estavam tomando vida pelo país adentro. Fora que havia o sentimento forte, a ponto de ser opressivo no peito, de que existia um público ávido por esse conteúdo na cidade. A decisão de criação do cineclube foi unânime e o momento de escolher o nome foi engraçado... Havia o desejo de que o grupo tivesse um nome ligado à Baixada, e se possível que fosse engraçado, ou jovem, leve, sei lá; que não fosse algo pesado, que fosse sonoro, algo por aí. Os nomes que foram surgindo na mesa eram um primor de caretice e por pouco não foi escolhido algo bem terrivelmente convencional. Foi quando sugeri com total descomprometimento: “mate com angu”. Houve um momento de silêncio e um natural questionamento: Hã? Mate com angu? Como assim?

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Até aquele ano, 2002, havia muito pouca coisa publicada sobre a Escola Regional de Meriti, a Mate Com Angu, e sobre sua fundadora, a educadora Armanda Álvaro Alberto. Como apaixonado que era por essa história eu já tinha lido praticamente tudo que tinha sido impresso no Instituto Histórico da cidade, e já havia entrevistado algumas pessoas sobre o assunto. E carregava o desejo de um dia tornar popular essa história incrível. Como geralmente falo sobre esse assunto com muita paixão, devo ter causado uma forte impressão na galera... Resultado: assunto encerrado, esse seria o nome. Lembro ainda do Igor empolgado gritando: “É isso, é isso!” Ironicamente, tentei no momento várias vezes demover o grupo da ideia... Achava que ia pegar mal, que ia confundir, que ia, que ia, sei lá... Não teve jeito: nascia ali naquela sala o cineclube Mate Com Angu, sob as bençãos do espírito revolucionário de dona Armanda. Ah, sim: a mostra acabou virando uma exibição poucos meses depois em Nova Iguaçu, para ninguém; isso mesmo, nem o projecionista quis assistir, preferindo ficar bebendo do lado de fora. Mas o Mate Com Angu tinha passado a existir — e começava a querer espalhar brinquedos e bagunçar a sala...

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Dia da fundação do cineclube. Feuduc, 2002. Crédito: Adilson Fontenele


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O nome Mate Com Angu é o apelido de uma escola que funciona no centro de Caxias e que hoje faz parte da rede municipal em parceria com a Igreja Metodista, atendendo pelo nome de Escola Municipal Dr. Álvaro Alberto. Para entender a força do nome e do símbolo é preciso remeter à figura de Armanda Álvaro Alberto, uma das mulheres mais incríveis que viveram no país no século passado. Desde moleque tento entender por que a história dessa mulher e dessa escola não são elevadas à altura da grandeza da experiência, que figura entre as mais importantes já feitas na área da Educação no Brasil e no mundo. Como disse anteriormente, até 2002 havia muito pouca coisa escrita e publicada sobre dona Armanda. Havia um registro no esboço histórico-geográfico do município de Duque de Caxias, da professora Dalva Lazaroni; em Olga, de Fernando Moraes; em Sala 4, de Maria Werneck de Castro, livro sobre a primeira prisão política feminina do país; em artigos esparsos publicados em jornais e revistas por Rogério Torres, Guilherme Peres e Armando Valente; e nos textos da pesquisa da professora Ana Chrystina Venancio Mignot, que nesse mesmo ano lançou o fundamental Baú de memórias, bastidores de histórias: o legado pioneiro de Armanda Álvaro Alberto. E havia o principal: o livro que a própria Armanda escreveu e ao qual deu o nome de A Escola Regional de Meriti — documentário em que ela reúne textos, apontamentos, discursos, documentos e crônicas sobre a escola, trazendo nomes como Belisário Pena, Paschoal 52


Lemme, Heitor Lyra, Carlos Drummond de Andrade, Raquel Trindade, entre outros. Sei que é até difícil de acreditar, mas a Escola Regional de Meriti foi o exemplo de uma microrrevolução posta em prática e que foi praticamente apagada da memória nacional... Se fosse falar de tudo o que dona Armanda fez, isso aqui já ficaria imenso, mas basta dizer que além de visionária com sentido incrivelmente prático, ela escrevia de forma apaixonada em defesa da educação, da emancipação das mulheres, em defesa da igualdade racial, contra o autoritarismo dos governantes e a favor da educação como ferramenta de formação humanística da sociedade. Presa diversas vezes como agitadora, dona Armanda tinha a Escola Regional de Meriti (que inicialmente se chamava, imaginem, em 1921, Escola Proletária de Meriti) como seu laboratório, paixão e coração. A Regional foi a primeira escola do país a ter horário integral, a ter uma orientação progressista, montessoriana, a ter uma biblioteca, um museu natural e um receptor de rádio (doado por Edgar Roquette-Pinto); também foi a primeira escola a pensar e implantar um Círculo de Mães, trazendo a comunidade para o dia a dia da escola; um programa de saúde integrado para os alunos e suas famílias, entre outros avanços. Isso tudo começando na década de 1920, quando Caxias ainda era Meriti, o oitavo distrito de Nova Iguaçu, na época um grande brejo, massacrado por 53


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doenças tristes como malária e descaso governamental. E além de todo esse pioneirismo, a Regional também foi a primeira escola da América Latina a servir merenda escolar, e daí o apelido “mate com angu”... Como nas doações dos comerciantes locais sempre tinha fubá e erva-mate, muitas vezes havia essa combinação na refeição das crianças nos primeiros anos de funcionamento da escola. Mas o apelido tinha originalmente um sentido pejorativo, que acabou com o tempo sendo absorvido e ressignificado, assumido como um grande orgulho por quem lá estudou, como revela a artista Raquel Trindade, filha do poeta Solano Trindade, aluna da escola, em seu relato no livro de dona Armanda. Mate Com Angu — um nome cheio de axé, como se vê. Uma curiosidade maneira é que a Regional é de 1921, mesmo ano de Summerhill, escola fundada pelo educador A.S. Neill, na Inglaterra, uma experiência igualmente revolucionária e igualmente silenciada no século XX... Escola Regional de Meriti, a “mate com angu”, e Summerhill, duas paixões que em minha opinião apontam caminhos humanistas práticos, na direção do bem-estar social e da liberdade como princípio ético para uma sociedade mais justa e saudável.

"Quando estive na Europa, me mostraram métodos de ensino adiantadíssimos. Os senhores não imaginam o que senti quando verifiquei que os métodos da escola que o povo chamava de mate com angu estavam além dos métodos europeus. ‘Mate Com Angu’ era como nos chamavam na rua, mas eles sabiam que nós não ligávamos para o apelido, não ligávamos porque éramos felizes." [Discurso da então aluna Raquel Trindade representando os ex-alunos da escola por ocasião da festa de despedida de dona Armanda, em 1963] 54


Capa do livro A Escola Regional de Meriti – Documentário (1968), de Armanda Álvaro Alberto. Crédito: Acervo pessoal

Armanda Álvaro Alberto. Crédito: Acervo Proedes/UFRJ

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Fermentando... Sim, o Mate já existia, mas a questão de equipamento era a realidade batendo à porta. Tínhamos ganhado um projetor 16 mm do Luiz, um cara que havia sido do cineclube Baixada, e que dez anos depois faria a Oficina de Cinema do Mate; a máquina era um sonho, só que não funcionava e não conseguíamos consertá-la; também não tínhamos dinheiro. O grupo agora se reduzia a Igor, Manoel e eu. E um outro maluco, mas que ainda não andava com a gente direto, Thiago Venturotti. No dia da exibição do Progresso Primavera, um ano antes, esse cara tinha ido e logo se ofereceu para estar junto daquela energia, mesmo sem ter ideia do que seria feito a partir dali. O sujeito era skatista, tinha um trampo de design muito bom e bateu uma afinidade de ideias bem grande. Fora que diagramava o zine Escracho do Regaço, para mim uma referência em comunicação alternativa no Rio. Assim que o nome do cineclube foi escolhido, Venturotti viajou na ideia de fazer a logo, e daí nasceu a formiga do Mate, que é tão querida e viajada nesse país e até em outros. Mas talvez a ideia de pôr em funcionamento um cineclube não estivesse nos planos do restante da galera naquele momento, ou pelo menos ter um cineclube em Caxias, sem equipamento, sem dinheiro e sem a perspectiva de que isso se revertesse em ganhos no médio prazo. O momento me lembrava meados dos anos 1990, quando André de Oliveira e eu batemos em algumas portas pedindo apoio para criar 56


a Quarup FM. Ouvimos de muita gente variações da mesma resposta: Vocês estão doidos? Quem vai querer ouvir uma rádio de Caxias? Mas o momento era de mudança na região — e no mundo. Mudança certamente tímida ainda na Baixada, mas da qual dava para sentir os breves lampejos... A internet ainda não era tão popular, mas já era responsável por apresentar outras representações da região, novos interlocutores, novos aliados na luta cultural, e novas brechas de atuação frente aos gigantes da comunicação, viciados e dependentes das caricaturas e estereotipagens da cultura.

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Na FEBF/Uerj Desde a virada do século diversos setores da arte e da cultura na Baixada estavam se articulando com força para virar o jogo e mostrar a cara no cenário do Estado, principalmente mostrando força política onde sempre houve descaso e desleixo históricos. Desse sentimento e dessas ações culminaram, em dezembro de 2000, a criação do Fórum Cultural da Baixada, onde estivemos desde o princípio como militantes dos setores artístico e cultural. O centro de gravidade desses encontros nesses anos era a Uerj, na Faculdade de Educação da Baixada Fluminense, situada em Caxias, na Vila São Luís, em um prédio que havia sido um CIEP, e lá resolvemos, naquele 2002, fincar a barraca recém-armada do Mate. Faz muito tempo que queríamos estar próximos daquele lugar; vários amigos e aliados circulavam por ali e havia no ar uma impressão que dali poderia mesmo surgir algo novo de fato no cenário desolador da cena cultural da região. Fizemos um projeto a ser apresentado, o I Encontro Audiovisual da Baixada, direcionado ao professor Paulo Mainhard, um dos principais articuladores do Fórum e figuraça com quem tínhamos mútua simpatia e parceria. Eu o conhecia desde o meu Ensino Médio, quando a Faculdade de Educação ainda funcionava nas dependências do Instituto de Educação Governador Roberto Silveira, no bairro 25 de Agosto. Lembro de uma reunião bastante cheia, em que rolou uma 58


dinâmica de apresentação de projetos e de expectativas de cada grupo. Lembro que pedi a palavra e mandei na lata publicamente que nossa intenção ali era tomar o poder da Uerj e colocá-la de fato aberta à população da cidade, ser uma ponta de lança de uma revolução cultural na Baixada. Algo por aí, obviamente não lembro as palavras exatas. Mas me recordo bem que a plateia ficou meio que achando esquisita a colocação, engraçada até, mas que o professor Paulo, com sua voz de baixo profundo e riso bonachão, pediu a palavra e disse algo como: “Se depender de mim, isso aqui já é de vocês.” Acabou que o projeto mesmo que levamos não foi à frente; ali não era exatamente o espaço que atendesse a um projeto na forma como tínhamos em mãos. Mas dali o professor Paulo comentou que existia um grupo se reunindo frequentemente em torno de um projeto de mídia na faculdade e que nossas ideias tinham muito a ver com aquilo, principalmente com o professor Mauro Costa, a quem devíamos conhecer imediatamente. A verdade é que a gente achava nossas ideias bastante loucas e avançadas para aquele momento, mas depois de conhecer o Mauro pudemos dimensionar melhor o que era ideia louca... E como havia várias camadas de pensamentos e ações caoticamente articulados sendo concebidos e postos em prática. Na primeira reunião de que participamos, conhecemos a ideia que estava mobilizando gente na FEBF daquele mo59


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mento; era um projeto de comunicação que mesclava mídia e diversidade de linguagens, capitaneadas principalmente pela rádio que começava a ir ao ar, a Kaxinawá, e que deveria irradiar propostas ousadas no espectro caxiense. Apresentamos as ideias ainda bastante dispersas do Mate e do projeto do Encontro Audiovisual da Baixada, o que causou bastante simpatia. Mas o que ficou de concreto desse encontro foi a proposta do professor Mauro para que o Mate assumisse um programa, que poderia se chamar “Cinema Cego”, uma ideia simples e absolutamente nonsense para o que esperávamos: transmitir filmes pelo rádio! Porra, agora sim tínhamos achado um doido como nós aqui pertinho, pensamos na hora. O programa Cinema Cego foi ao ar durante alguns meses nessa doideira: fazíamos uma sessão de filmes no pátio da faculdade para os alunos e o cabo de áudio ia até o estúdio onde era irradiado para as imediações. O primeiro filme “transmitido” foi o Urubucamelô, de Fernando Gerheim, e curiosamente, depois de muitos meses do término do programa, conheci um cara que tinha ouvido o filme! Eu já tinha trabalhado com rádio de baixa potência e sei que sempre tem alguém na escuta, mas essa foi incrível... Devido à falta de estrutura da rádio naquele momento e de nossa falta de dinheiro, equipamento e tecnologia de organização, acabamos encerrando o programa Cinema Cego, mas com um gostinho muito bom de ter participado de uma ideia muito próxima ao espírito do que pensávamos para aquele momento na Baixada do início do século XXI. O final de 2002 foi de encontros não muito regulares e de muita angústia em relação ao vislumbre que tínhamos sobre o trabalho que podia e devia ser feito na cidade. O cenário de apoio à cultura era praticamente nenhum e nada dizia que uma ação à vera na área do audiovisual vingaria em Caxias, nem mesmo em longo prazo. O Baixada On era cada vez mais acessado e prestigiado, mas meus dois sócios e eu 60


tínhamos dificuldade em converter esse sucesso em renda, e por isso eu me desdobrava em mil bicos a fim de não deixar cair a peteca pesada das contas no fim do mês. Enquanto isso, Igor se enfiava em produtoras de audiovisual no Rio, trocando trabalho por experiência, ingressos em festivais e participações em sets, e Manoel trabalhava de cobrador de ônibus e caía dentro da faculdade de História, continuando a interface com a galera da APPH/Clio.

Proposta apresentada à Uerj Baixada, em 2002. Crédito: Acervo Mate com Angu

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Na marra O ano de 2003 entrou com força total, com Lula na presidência e a curiosidade geral sobre que rumos o país tomaria após os oito anos de Fernando Henrique Cardoso. Resolvemos que o Mate Com Angu iria para o fight de qualquer jeito, da forma que fosse. E aí as coisas começaram de fato a convergir a favor... Em 2001, havia sido criada a Associação dos Amigos do Instituto Histórico, a Asamih, com o objetivo de estimular a sociedade civil a participar, acompanhar e apoiar as atividades do Instituto Histórico da cidade. Fruto da articulação de vários setores da sociedade caxiense, dos mais variados matizes políticos e sociais, a Asamih foi um importante avanço político na cultura na cidade e foi fundamental para que o presidente da Câmara Municipal naquele momento promovesse uma reforma geral nas dependências do Instituto e contratasse técnicos gabaritados para cuidar do acervo, sua catalogação, preservação e disponibilização para o público. Sob os cuidados da historiadora e especialista em conservação Tânia Amaro, o Instituto Histórico foi decentemente reformado e pensado como um espaço cultural de real relevância para a cidade. Ah, sim, o que isso tem a ver? O Instituto Histórico funciona no subsolo da Câmara de Vereadores, sendo esse um dos lugares mais mal frequentados da cidade, para ser bastante franco... 62


No início de 2003, ficamos sabendo que o novo Instituto tinha inaugurado uma sala de projeção novinha em folha, com cinquenta lugares, um bom projetor multimídia, ar-condicionado e carente de ocupação cultural. E melhor: Manoel estava trabalhando lá! Resolvemos que ali seria a base do Mate Com Angu e, ao comunicar a ideia para a diretora Tânia e para a jornalista Jesus Lima, uma das articuladoras da nova gestão do espaço, fomos altamente bem recebidos. Novamente, acho que naquele momento, e em outros que vieram depois, nossa empolgação ao apresentar as ideias devia realmente convencer as pessoas... Do tipo: porra, esses caras estão pilhados mesmo... Fato é que fizemos um ofício para formalizar a parceria e planejamos com bastante cuidado a primeira exibição na nossa primeira casa. Tínhamos a sensação nítida de que era preciso uma pancada certeira e barulhenta para que a realização se desse à altura do tamanho de nossa verve e nossa empolgação. Chamamos a sessão de Vamos Fazer Um Filme? — Manual de Instruções, e a curadoria era composta de curtas-metragens clássicos e coisas recém-saídas do forno frenético das ilhas digitais. Nesse momento já tínhamos a clareza de que o formato prioritário de exibição do Mate seria o curta-metragem nacional, digital e independente, uma aposta assumida, mesmo que abríssemos outras frentes em que os longas tivessem espaço, como ocorreu diversas vezes. 63


Diretores de filmes na sessão em Caxias, em 2003. Felipe Nepomuceno, Heraldo HB, Igor Barradas, Fernando Gehrein, Manoel Mathias e Godot Quincas. Crédito: Adilson Fontenele

Apresentando a primeira sessão no Instituto Histórico de Duque de Caxias, em 2003. Crédito: Adilson Fontenele


Cartaz da sessĂŁo Vamos Fazer Um Filme?, em 2003. CrĂŠdito: Arte de Thiago Gomes


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Nessa primeira hora fundamental, contamos com uma rede de amigos que apostaram muito no provável fuzilamento que devia sair de nossos olhos quando comunicávamos a ideia. Guilherme Whitaker, da W7, Chico Serra, Christian Caselli, Igor Cabral e Godot Quincas certamente viam que não tinha jeito: a gente estava com o cão do revólver para trás, dispostos a atirar forte na direção do monstro do estigma da Baixada; e fizeram muitas pontes para conseguirmos acervo para as primeiras exibições. Basta lembrar que a opção de baixar filmes ainda não existia e os gravadores de DVD ainda não era baratos nem tão confiáveis. Para essa sessão inicial no Instituto Histórico, um outro amigo, Thiago Gomes, bolou um cartaz em preto e branco com linhas bem tênues, para ser colorido durante o processo de colagem e isso foi genial para aquele momento. Saímos nas madrugadas colando cartazes em muros e tapumes da cidade e depois pintando um a um, numa atividade absolutamente louca para quem nos via na madrugada caxiense em ação. Os cartazes nos tapumes em frente à C&A, por exemplo, ficaram por um bom tempo lá, vistos por muita gente, incluindo a Kelly, a primeira integrante feminina do Mate, conforme ela contou em uma ocasião posterior. Divulgação bombando, boca a boca correndo solto, filmes garantidos na mão, tentávamos nos concentrar na produção do evento para que tudo desse certo, sem furos. Não passava pela nossa cabeça naquele momento pagar aos realizadores para exibir os filmes, simplesmente porque não tínhamos nenhum dinheiro, e nem perspectiva nenhuma, naquele momento, de conseguir algum. Fora que a ideia era construir um outro tipo de relação. Mas desde o primeiro momento duas de nossas premissas eram só passar filme com autorização do autor e dar uma moral para quem pudesse vir assistir ao filme junto com o público, enriquecendo o debate.

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O amigo André de Oliveira tinha assumido um cargo público e nos contou que estava com um carro oficial à disposição e, se quiséssemos, no dia da exibição poderíamos usá-lo. Era tudo o que precisávamos ouvir antes de tomar o carro para a missão de buscar os diretores dos filmes... Muitos dos primeiros diretores e produtores que foram à exibição devem ter pensado como aqueles malucos pregavam revolução o dia todo e tinham um carro oficial com motorista à disposição. Na carta de apresentação que enviávamos por e-mail, quase sempre colávamos um texto padrão, um release sobre o grupo, caretaço, escrito às pressas, mas que acabou ficando. E começava assim: “O cineclube Mate Com Angu nasceu da necessidade de gerar na Baixada Fluminense uma movimentação e uma discussão sobre a produção/exibição de imagens e suas implicações sociais e estéticas na realidade e no modo de vida da região”, além de citar uma frase do diretor Coppola. Nessa de buscar autorização dos diretores, pedimos ao Caetano, da produtora Toscografics, para fazer uma ponte e conseguir autorização para exibir o Almas em Chamas, sensacional animação adulta e que queríamos mostrar logo de cara. A resposta do diretor, Arnaldo Galvão, foi a melhor possível.

Caetano, que merda é essa de mate com angu? Tem grana na parada? Esse Francis Ford Coppola é um grande de um baitola. Implicações sociais e estéticas na realidade? Tá querendo me sacanear, porra? Tá liberado o Almas em Chamas. Abraços, Arnaldo. Esse contato com os realizadores desde o princípio foi ótimo... 67


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A primeira sessão oficial do Mate, Vamos Fazer Um Filme? foi um imenso sucesso. Na plateia, várias pessoas que viriam a ser do círculo de apoio do cineclube nos anos seguintes; amigos, alguns conhecidos de vista e muitos estudantes que pintaram lá por resposta à impregnação da propaganda, ou mesmo por curiosidade. Após a sessão, o bate-papo foi intenso, como se todos os assuntos do mundo pudessem ser falados diante daquela oportunidade; o conteúdo dos filmes, o mercado do curta-metragem, o digital, a falta de espaços de exibição, a precariedade de investimentos na cultura na cidade... O debate foi longo e as pessoas ficaram até o final, quando não dava mais mesmo para continuar. E assim foi, a cada quinzena aumentando o público e enriquecendo os debates. Como aconteciam à tarde, as sessões eram muito frequentadas pelas normalistas do Instituto de Educação, resultado de um trabalho de divulgação assumido pessoalmente com grande satisfação pelo Manoel, espertinho. O clima era ótimo, mas desde o início havia um comentário na surdina de que se fossem à noite as sessões seriam melhores. Em uma dessas sessões, É Nós na Fita, só com filmes sobre funk, houve duas curiosidades dignas de nota: um dos filmes era o excelente Tá Tudo Dominado, do cineasta e professor Roberto Maxwell, que hoje vive no Japão, e que, apesar de ter morado em Caxias, seu filme nunca havia sido exibido na cidade. Roberto, que dava aulas na rede municipal, trouxe seus alunos para a sessão e, na hora do debate, soubemos que nenhum deles jamais tinha entrado numa sala de cinema. Exibimos Pixote com a presença do roteirista do filme, Jorge Durán, e com um debate emocionante no final, intercalado por uma intervenção sublime de palhaço pelo grande Odécio Antônio. 68


Exibimos Terra Estrangeira, do Walter Salles, pra dar uma quebrada; e uma sessão temática de curtas sobre futebol, Uma Viagem ao Ópio do Povo, em que a plateia era formada praticamente por mulheres. Com as sessões lotando, mesmo à tarde e em dias de semana, o cineclube começou a ganhar um considerável reconhecimento na cidade de Caxias — e na cidade do Rio também. Como começamos a trazer os realizadores para o contato direto com o público, com o formato de sessões temáticas, com uma preocupação com os textos, com a divulgação e com a exortação à “rebelião”, começava a se espalhar no meio audiovisual da capital a ideia de que alguma coisa muito legal e diferente estava acontecendo em Caxias, mesmo para quem não tinha ideia do que pudesse ser. Uma coisa engraçada era que enquanto para Igor e eu as sessões eram um exercício de pensar o máximo de ousadia no conteúdo e na estética dos filmes, para o Manoel, que trabalhava no Instituto Histórico, além disso cada sessão também representava o risco de tudo se acabar e ele ainda perder o emprego. Logo depois das primeiras sessões, a diretora Tânia chegou a nos falar que havia uma certa pressão da direção da Câmara Municipal para que os filmes fossem vistos antes, como forma de preservar a imagem da instituição. O que soava até irônico pra gente; nossa ideia não era apenas ficar longe de qualquer ligação com vereadores da cidade... A ideia era fazer o possível para que as pessoas se rebelassem contra os desmandos e as maracutaias deslavadas de várias daquelas figuras tenebrosas. Mas isso já era outra história. Independente de nossa argumentação contra essa tentativa de censura, Tânia sacava totalmente o que fazíamos, avalizava o nosso trabalho, e sua cumplicidade foi determinante para nossa liberdade de programação. Na época, soltei uma frase que foi dita depois em outras ocasiões: “A curadoria é coisa inegociável.” 69


Matéria no Caderno D, jornal O Dia, em março de 2005. Crédito: Acervo Mate com Angu


MatĂŠria no Segundo Caderno, jornal O Globo, em novembro de 2010. CrĂŠdito: Acervo Mate com Angu


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MatĂŠria no jornal O Dia, em agosto de 2003. CrĂŠdito: Acervo Mate com Angu

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Nesse meio tempo, o Mate viveu a primeira grande onda de exposição midiática: em um espaço de duas semanas saímos em matérias de diversos jornais, incluindo a capa de um grande jornal da capital, o Caderno D, do jornal O Dia. É engraçado isso, mas as matérias sobre assuntos da Baixada em geral saíam apenas nos cadernos locais que esses veículos mantinham. Essa matéria do O Dia, feita pela jornalista Tatiana Contreiras, além de bem escrita e com fotos de destaque, aumentou o nome do cineclube para fora dos limites da cidade, ecoando bastante durante um bom tempo. Uma extensa reportagem no recém-criado site Viva Favela, realizada pelo comunicador Christian Ferraz, também foi fundamental para muitas portas que vieram a se abrir depois. O Viva Favela, uma das primeiras experiências de jornalismo colaborativo na web brasileira, apresentava pautas fervilhantes e invisíveis, ou seja, que em geral não eram abordadas pelos veículos tradicionais. Isso contribuiu para expandir muito o universo de iniciativas como a do Mate. Como o Christian é muito talentoso e já tinha trabalhado comigo na Quarup FM, ele deu um tratamento muito cuidadoso à matéria, pela qual somos gratos até hoje. Também somos muito gratos à Tatiana, e sempre lembramos com humor dela zonza com a metralhada absurda de informações por minuto que despejamos em sua cabeça durante a entrevista. Para completar essa onda de exposição, o telejornal RJTV, da TV Globo, fez a primeira das duas matérias já feitas com o Mate, em horário nobre, aumentando ainda mais nossa visibilidade. E nesse clima de empolgação total, resolvemos fazer uma sessão só com curtas-metragens pedrada, aclamados e furiosos, e no bar sugerimos o singelo nome de “Filmes do Caralho”... Era uma proposta meio brincadeira, mas com um fundo de seriedade, dentro da concepção filosófica que nos unia: havia conceitos que não tinham como ser expressos com verdade se não rompessem barreiras como as da língua e da conveniência. “Filmes do caralho” não é o mesmo que “filmes do caramba”, “filmes do caraca”, “do carvalho”, ou apelidos... Do caralho é do caralho. E, obviamente, 74


Manoel protestou na hora e nos trouxe à realidade... Mas, ainda sim, resolvemos que a próxima sessão se chamaria “Curtas Duka”, uma concessão negociada à ideia original de “Filmes do caralho”. Mesmo sob protestos, Manoel concordou. Alguns dias depois, encontramos a Tânia e ela nos deu um bem-humorado puxão de orelha quando argumentamos que o nome era na verdade uma referência à Duque de Caxias, sabe como é, né? Duka, Duque e tal... Pois bem, essa sessão levaria novamente o Mate para outro patamar. Na divulgação, recebi um e-mail no Baixada On de um sujeito que estava acompanhando a gente através das matérias de jornal e queria bater um papo ao vivo. Tinha feito várias experiências com câmeras digitais, iria rodar um videoclipe e estava com material para um filme, que se chamava Cidade Dormitório. Achei engraçada a forma de escrever o e-mail e o fato de vir da Petrobras. Respondi que o melhor jeito era a gente se encontrar ao vivo e que haveria uma oportunidade muito boa: a sessão Curtas Duka, onde iríamos exibir só curta-metragem sinistro. O sujeito confirmou que fugiria do trabalho para ir e ainda levaria um amigo, parceiro de um grupo de rap, DJ e também metido com edição digital. A sessão Curtas Duka, lotada, cumpriu o que prometeu: uma seleção matadora de curtas nacionais como Um Sol Alaranjado, de Eduardo Valente, O Resto é Silêncio, de Paulo Halm, Caramujo-Flor, de Joel Pizzini, O Dia em que Dorival Encarou a Guarda, de Jorge Furtado e José Pedro Goulart e o seminal Aruanda, de Linduarte Noronha. Após o debate, eis que o cara do e-mail e seu amigo se apresentam: Cacau Amaral e DJ DMC, dois figuraças em meio aos estudantes que enchiam a sala. Decidimos trocar as primeiras ideias no bar do Zeca, o que já era um prenúncio de afinidades sintomáticas. Isso era por volta das 18h de uma terça-feira, e saímos de lá já depois da meia-noite. A identificação foi imediata, não só nas percepções do que poderia ser feito, mas também nas histórias de vida e na forma de encarar o que estava começando a se chamar de cultura da periferia. 75


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Cacau e DMC tinham uma banda de rap, o Baixada Brothers, e estavam caindo de cabeça naquele momento especial onde o digital significava uma Via Láctea de possibilidades. E além de uma ligação forte com a Cufa, a Central Única das Favelas, onde DMC era diretor e um dos fundadores, os caras tinham conceito junto a uma rede que estava começando a mostrar toda a potência de comunicação. Cacau naquele momento já era amigo do Alessandro Buzo e era colunista do portal Enraizados e do site Real Hip-Hop. O desejo incomum em comum de fazer um movimento de audiovisual na Baixada ficou evidente desde aquele primeiro papo no Bar do Zeca, e a entrada do Cacau e do DMC conectou o Mate com outras redes que também estavam com as mesmas inquietudes, e tomando para si as oportunidades que o momento histórico estava abrindo. Aliás, conversando com Cacau naquele 2003, não seria tanta viagem assim imaginar que alguns anos depois ele seria o caxiense que pisaria no tapete vermelho de Cannes... Começou a se formar um público cativo nas sessões e muitas pessoas vieram a fazer parte da fundamental rede de entorno do cineclube, ajudando de várias formas na realização das sessões e, principalmente, na divulgação. Uma dessas pessoas do público acabou entrando para o Mate também, Kelly Muniz, mineira meio perdida em Caxias e que trouxe outra energia para o grupo, que naquele momento só tinha homem. No fim desse ano também chegou a Giovana, amiga do Cacau, do DMC e da Re.Fem, e que ajudou também a abrir portas legais nesse começo e a despertar, mesmo que inconscientemente, a questão de gênero no grupo, que lá na frente ganharia contornos e preenchimentos bastante fortes e fundamentais. As sessões continuavam enchendo e mais gente ia chegando, ou tentando chegar: a reclamação sobre as sessões serem à tarde aumentava e não tínhamos mesmo argumentos... O Instituto Histórico não abria à noite, salvo combinado com antecedência e em caráter extra; além disso, não tínhamos equipamento nem dinheiro. E as histórias começavam a se ligar e ia amadurecendo essa necessidade de 76


exibir à noite. Mas por enquanto as tardes bombavam. DMC sugeriu duas curadorias sinistras: uma chamada Encontros Urbanos, em que um dos filmes trazia a figura avassaladora do Sabotage, que tinha sido recentemente assassinado, e que acabou sendo uma das referências espirituais do cineclube. Uma outra sessão era dedicada à animação, e programamos dois filmes adultos que por pouco não custaram mais uma vez o emprego do Manoel... Estava ficando claro que precisávamos migrar para outro espaço caso as sessões continuassem naquela vibração. Nisso, o André, pilhadaço com o Mate, conheceu um cara que trabalhava como curador da cinemateca da Embaixada da França e que tinha gostado muito das ideias e do jeito do cineclube. Ele então colocou o acervo de 16 mm à disposição para realizarmos o evento que quiséssemos com ele. Como sempre tínhamos pensado em exibir também em película, e como queríamos testar as exibições noturnas, nasceu o Encontro com o Cinema Francês, em parceria com o Sesi Caxias. Eram dois dias de exibição de filmes, com entrada franca, folder com ficha técnica, apoiadores, tudo certinho. Na operação do projetor 16 mm, chamamos o Chico Serra, um cara incrível, amigo da primeira hora do Mate, e que já havia feito uma lista de curtas-metragens nacionais digitais que chegamos a usar bastante nas sessões. Pois bem, o evento também foi um sucesso, enchendo o teatro do Sesi nos dois dias e deixando claro que, de fato, o Mate precisava de um espaço para exibição noturna. E depois desse evento, dado ao entusiasmo alucinado, André foi incorporado ao grupo. Um e-mail típico dos que recebemos nessa época; esse cara aí, aliás, iria montar a principal comunidade no Orkut sobre Caxias, que bombou bem no comecinho do serviço no país.

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fabiom.@... 11-10-2003 15:31

“Bem, eu moro em D. de Caxias desde que nasci. É incrível como sabemos tão pouco sobre nossa cidade! Fui descobrir o cineclube numa aula sobre jornalismo social lá na praia vermelha, e fiquei mto interessado e queria saber mais. Qualquer coisa... qualquer informação... Achei mto legal saber que existem coisas do tipo aqui em Caxias, seria legal se houvesse uma divulgação e maior apoio estatal tb... Afinal, cultura é coisa rara na baixada, pois não dá voto. Desde já, obrigado!” O cineclubismo nessa nova fase estava começando a crescer vertiginosamente no país, principalmente por conta das facilidades dos equipamentos digitais e, com esse crescimento, o movimento cineclubista, que estava praticamente paralisado desde o fim da ditadura, ensaiava sua volta com força total. Nesse ano aconteceu dentro do Festival de Brasília a 24º Jornada Nacional de Rearticulação Cineclubista, visando reorganizar o movimento para representar a classe junto aos órgãos estatais e à iniciativa privada. Igor foi representando o Mate e voltou com a cabeça borbulhando de ideias devido à intensa troca de experiências com os outros cineclubes. Como a gente desconfiava, esse sentimento estava na cabeça e nos corações de muito mais gente por esse mundão... No Rio, a galera cineclubista começou a se reunir e agitar, o que vai desembocar na criação da Ascine-RJ, mas disso eu falo depois. Para fechar esse 2003 de fortes emoções, a gente fez a sessão Beijo Saideiro, exibindo o filme Beijo 2348/72, de Walter Rogério, com um texto do Igor muito emocionante no programa, que foi originalmente publicado na revista Cineclube Brasil, e que deixava claro o que nos movia: 78


Reerguer a tradição cineclubista é muito mais do que gozar com o barulho hipnotizador do projetor. O que começou apenas como uma vontade imensa de matar uma fome nostálgica de um tempo que nunca vivemos se transformou em modernidade. Resistência real às imagens massificadas que nos impregnam, que nos sufocam em nosso dia a dia urbano caótico. Mas o que mais nos surpreendeu, de fato, foi perceber a incrível demanda que há no público por imagens que fogem dos selos corporativos, por imagens que conversem mais abertamente com o tempo atual, imagens que busquem outras formas de contar histórias. E é com esta certeza que o nosso cineclube chega ao final deste ano, ao final desta primeira etapa de uma longa jornada que ainda está por vir. O Mate fez o possível para oferecer ao seu público filmes de qualidade acompanhados de seus criadores, cabeças que dividiram conosco suas sabedorias cinematográficas em prol de um desejo único: a multiplicação do saber e a desmistificação do fazer cinematográfico.[...] E para fechar nossos trabalhos em grande estilo, exibiremos um filme que, se Deus quiser, ainda será reconhecido como um clássico, Beijo 2348/72. Filme esquecido que foi finalizado em 1990, durante o desmonte criminoso da Embrafilme pelo governo Collor. Um filme que está impregnado de nosso valor maior: a paixão pela linguagem cinematográfica. Mesmo com todos os seus defeitos, é impossível não se apaixonar por este pequeno grande filme estrelado pelo saudoso Chiquinho Brandão.” (Novembro de 2003) 79


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Faz o que com isso? O sucesso de público, e o surpreendente sucesso midiático do Mate, fizeram com que muita gente nos pressionasse naquele momento para a institucionalização do cineclube, naquilo que a gente brinca internamente de o “dilema do CNJP”. Principalmente os amigos e parceiros com ligação nos movimentos sociais. O respeito e a projeção que a iniciativa tinha ganhado poderia abrir portas de financiamento para um projeto cultural maior nos moldes das organizações que já existiam com força e que se consolidavam naquele momento de hiato tecnológico e conceitual, como o AfroReggae e o Nós do Morro. A gente não sabia exatamente o que queria fazer com tudo isso, mas sabia o que não queria... E eu gostava muito do fato de Igor, Cacau, Venturotti, DMC, Giovana, André e Kelly também não se preocuparem tanto com a legalização formal do cineclube naquele momento. Contraditoriamente, Manoel sempre puxou esse assunto, mas acabava sempre abandonando a discussão quando começávamos a zoá-lo. A legalização podia esperar — o que não podia esperar naquele precioso momento era o aumento da carga no bombardeio de ideias e conexões na região.

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Open Mate Desde nossas conversas de 2001 e 2002 que eu impregnava o Igor com a história do Linux como um caso de sucesso na busca por novos paradigmas de organização e movimentos. Eu estava muito impressionado com a licença GPL, General Public License, e tentava toscamente explicar de uma forma simples como ela poderia ser aplicada a uma experiência social como a que queríamos tentar, mesmo sem saber... Citava o Linux como a experiência mais bem-acabada dessa busca justamente porque o Linux foi criado por uma pessoa, o sangue bom Linus Torvalds, que teve a sacada de deixar a parada aberta para que todos pudessem contribuir para sua melhoria. Com o tempo, essas contribuições vinham de milhares de pessoas de todos os cantos do mundo, e Linus não teve mais como administrar essas ajudas. O que ele fez? Desenvolveu um sistema que usava a licença GPL de uma forma genial: o Linux seria um sistema aberto, livre, cujo coração, o core, seria cuidado, zelado por um grupo, que cuidaria de manter os princípios filosóficos básicos. No resto, qualquer um podia pegar e criar o seu Linux, personalizado, da forma como quisesse, desde que não ferisse o coração da ideia. Se eu conseguia explicar isso tão claro assim nas reuniões do Mate jamais saberei... Mas todas as vezes que falava disso, via que todos pensavam em algo por aí; o Mate Com Angu poderia ser um movimento audiovisual diferente: as pes81


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soas podiam ser do Mate montando sua versão, e ter seus núcleos de exibição e discussão, desde que os princípios do grupo fossem mantidos e incentivados. Que princípios eram esses é que era louco... Não tínhamos alinhamento partidário, apesar do forte enraizamento no campo popular. Era uma tendência à indisciplina que acabava nos afastando dos movimentos organizados na região. Um fascínio pela literatura e vivência anarquistas, mas sem pretensões acadêmicas. Uma certa tendência à bagaçaria. Uma vontade de jogar luz em assuntos delicados como sexualidade, drogas, micropolítica, preconceito. E uma perspectiva de traduzir em imagens o sentimento periférico que batia no peito, a captura de uma Baixada universal e mítica. E fora o princípio oculto, que logo depois passou a não ser tão oculto assim e apareceu em vários textos: "Que seja divertido!" No fundo, encarávamos o desafio de ser um grupo que queria fazer coisas, muitas coisas, principalmente filmes e exibições, mas tentando buscar novas formas de fazer sem cair nas armadilhas das estruturas já cansadas. Na época eu falei numa entrevista que o Mate Com Angu era uma formação de homens-bomba audiovisuais, o que era o mais próximo das contradições que assumíamos, mesmo não sabendo até quando isso poderia durar. Para muita gente da cidade, porém, éramos apenas um bando de malucos. Por conta dessa decisão de criar um movimento, e não um grupo fechado, começamos a chamar todo mundo para participar do Mate em reuniões abertas na Lira de Ouro, espaço cultural onde eu estava no bolo da organização. No melhor estilo “quem chegou já é do grupo”.

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Nesse momento também criei um fórum na internet por e-mail chamado carinhosamente de mca. No mca cadastramos o endereço de todo mundo que ia chegando nas reuniões, e as primeiras discussões que começaram a esquentar presencialmente logo migraram para as caixas de correio eletrônico. Mesmo com a discussão sobre legalização, verbas e apoios tomando grande espaço nos encontros, o foco eram as exibições noturnas, e numa dessas reuniões André veio com a novidade: o sindicato dos Bancários da Baixada iria inaugurar uma sede, a Casa do Bancário, no centro de Caxias, com um espaço legal, com som e com a possibilidade de irmos para lá assim que houvesse a inauguração. Começamos a mirar o local e preparar o terreno.

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Verão dos cineclubes Em 2004 o cineclubismo estava em franca ebulição no país, e mais ainda no Rio. Tanto que a Cinemateca do MAM promoveu o evento Cineclubes em Ação, quatro semanas durante as quais os cineclubes teriam um dia para programar livremente uma sessão em sua histórica sala. Para nós foi uma alegria só! Primeiro porque era uma oportunidade de levar o nome e a energia da galera da Baixada para a cidade do Rio, e isso não era pouco naquele momento. Depois tinha o fato de que o evento juntava vários grupos dos quais viramos fãs e amigos; o Cachaça Cinema Clube (que já era paixão), a Cavídeo, o cineclube da ABD, o Cine Buraco, o pessoal do CMI, o Cine Santa, o Sobrado Cultural... Fora uma sessão programada pela galera do Incinerasta, coletivo que foi responsável pela mostra muito doida “O Que Neguinho Tá Fazendo”, em 2001, na Fundição Progresso. Exibimos um retrospecto dos curtas que tinham sido mais aclamados em 2003 no cineclube; e também mandamos ver no Progresso Primavera, em VHS, com uma resposta do público melhor do que imaginávamos, em se tratando de um filme sobre um bairro de Caxias. O dia do Mate, além de ter sido o mais cheio, também foi o dia que rolou mais interação entre a galera. Aproveitamos o espaço da exibição para dar nosso recado de sempre, com ainda mais força para aquela plateia especial: o Rio é mais do que a cidade do Rio de Janeiro, o digital estava aí pra ser apropriado, e a Baixada estava chegando pra tocar o terror. 84


No final ainda conclamamos todo mundo para beber juntos e tramar uma revolução. Embora muita gente tenha achado tudo muito folclórico, conseguimos arrastar um bonde forte para após a sessão e saímos com a sensação de que o recado tinha sido dado e a missão cumprida. Importante dizer que dessa efervescência toda nesse ano de 2004 rolou a fundação da Ascine-RJ, Associação dos Cineclubes do Rio de Janeiro, da qual nem sempre conseguíamos participar presencialmente, por desorganização mesmo. Mas vale salientar que nos primeiros anos de atividade da Ascine, o Mate sempre lembrava que a ideia era romper com essa concentração de ações focadas apenas na cidade do Rio, e só no eixo Zona Sul-Centro. É gratificante ver que hoje os cineclubes da Baixada mandam muito bem e que a Ascine está conectada pela Zona Oeste, na serra, em Niterói, no interior... O Rio é grande!

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Cineclubes em Ação, no MAM, em 2004. Crédito: Acervo Mate com Angu

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Noturna

Tudo acertado com o Sindicato dos Bancários, faltava “apenas” o equipamento de projeção... Projetor multimídia já era uma coisa que tinha entrado no terreno do comprável, mas ainda era bem caro e muita gente tinha receio de emprestar por conta da maldita lâmpada, que tem vida útil programada e, caso queimasse, já era; o preço dela era praticamente o preço de um projetor novo. Tentamos vários apoios da cidade sem sucesso, até que Igor entrou em contato com o Cavi, sangue bom dono da locadora Cavídeo que também era produtora, e emprestava equipamento para muitas iniciativas parecidas. Cavi viabilizou o projetor e o telão por uma grana ínfima, simbólica, além do transporte do operador; isso aconteceu por mais três sessões e foi de grande importância naquele momento. A sessão inicial no espaço novo chamava-se Mate Ataca!, uma seleção de quase duas horas de curtas cuidadosamente escolhidos, como se só tivéssemos aquela oportunidade de fisgar o público para as noites cineclubistas. Um massacre audiovisual. Como todo mundo desconfiava, as exibições noturnas deram muita liga. Nessa primeira noite rolou um bate-papo informal e um gostinho de quero mais em todo mundo presente. Sim, a parada ia estourar mesmo nas noites... 88


Uma curiosidade: nesse dia entrou no Mate a Fernanda, mais uma menina no grupo, e estava presente o DJ Rodrigo Cavalcanti, que depois de vários anos viria a tocar no Mate e que acabou entrando também no grupo. Outro ganho com a exibição noturna foi que a rede de apoiadores do entorno do cineclube também cresceu bastante e foi moldando o formato das exibições regulares. Teve sessão falando de política, falando de esporte, e teve até uma sessão em que transmitimos depois a final da Copa do Brasil, quando o Flamengo perdeu em pleno Maracanã lotado justamente para o Santo André, time da cidade da Giovana, que estava presente e ficou bem embaraçada com a situação... Fizemos mais exibições de curtas na casa do Sindicato dos Bancários até o dia em que programamos com grande reverência o Deus e o Diabo na Terra do Sol, do Glauber Rocha, com uma boa divulgação via internet, SMS de celular, recurso que não era muito usado ainda, cartazes colados na madruga e panfletagem na sexta-feira anterior pela noite caxiense, o que depois acabou virando quase um ritual. Tudo indicava que seria mais uma noite cheia. O Orkut, por exemplo, era muito recente, mas já começava a explodir, e 89


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nosso post do evento nas comunidades Duque de Caxias e Baixada Fluminense foram bem comentados. Só não contávamos com a greve dos bancários... No dia da exibição, chegamos lá e o espaço estava fechado. Havia gente na casa, mas também um oficial de Justiça na porta, à espreita, para entregar um mandado desses de alguma coisa que ia ferrar com o sindicato... Rapidamente, entramos em contato com um diretor da Lira de Ouro e migramos o evento para lá, que é a três quadras da Casa do Bancário. Deixamos uma pessoa lá para orientar quem mais chegasse, mas ainda assim muita gente do público não entendeu nada e não conseguiu chegar na Lira. Mesmo com essa baixa, a sessão foi cheia e engraçada: o bar em frente à Lira estava com a jukebox num volume extremamente alto, e houve longos planos do sertão nordestino passando pelos olhos do público ao som de “We Are The World”... Foi assim, em setembro de 2004 que as sessões regulares do Mate passaram a se dar na Lira de Ouro.

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Cartaz da sessão Mate à Venda, em maio de 2005. Crédito: Arte de Thiago Venturotti


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Lira de Ouro

Também é importante para a história do cineclube Mate Com Angu — e da cultura na Baixada como um todo — falar da Sociedade Musical e Artística Lira de Ouro. Não havia ainda o Teatro Municipal Raul Cortez e Caxias carecia muito de equipamentos culturais; até hoje é assim: ainda há pouquíssimas opções. E havia um desejo por grande parte da classe artística de ter um espaço cultural no centro, pelo menos no centro, além do Teatro Armando Mello, que pudesse abrigar eventos ligados a música, poesia, artes plásticas e afins. A Lira de Ouro originalmente era uma banda musical, fundada na década de 1950, que se apresentava nos eventos da cidade e a representava em eventos fora dela; também formava músicos e teve grandes momentos de glória. Mas depois de mais de uma década e meia de declínio, a banda tinha praticamente acabado nos anos 1990 e a diretoria contava com poucos membros, incluindo dois fundadores vivos, seu Acácio de Araújo e seu Ramiro. E o espaço estava literalmente caindo aos pedaços, servindo de estacionamento, malconservado, e com um acúmulo impressionante de impostos atrasados.

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Havia rumores de que alguns empresários em conluio político iriam tomar o imóvel dos velhinhos, e um grupo de amigos ligados à imprensa e à cultura, com o músico Beto Cavaco à frente, propuseram à diretoria um acordo de cuidar do espaço, sanar as dívidas, revitalizar a banda em troca de pôr o espaço a serviço da cultura na cidade. Eles toparam, e daí um lindo mutirão de pessoas na cidade, das mais variadas áreas, começaram a fazer eventos culturais e almoços comunitários, negociar as dívidas, fazer obras, organizar finanças, reformar o estatuto, e cuidar de toda a parte burocrática, Em 2002, começaram atividades de oficinas e um baile charme que era considerado pelos especialistas do ramo um dos cinco melhores do Rio. Em 2003, um amigo, Luiz Tavares, organizou o Umioquiá, um bar com música ao vivo e atrações culturais de qualidade que começou a atrair ainda mais gente, e eu comecei um show musical, Quarta Básica, que durou seis anos ininterruptos, sempre na primeira quarta-feira do mês. Por tudo isso, sempre quisemos levar mesmo o Mate para a Lira de Ouro, o que acabou acontecendo curiosamente por conta de um oficial de Justiça que não conseguiu entregar uma intimação... 93


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Fechando um bocadinho... Em uma época de muita dureza financeira, eu morava na casa de um casal amigo, Angélica e Robert, a casa da Colina, e muitas vezes fizemos reuniões do Mate lá. Numa delas, em 2004, Cacau chegou trazendo dois figuras magrelos de São João de Meriti, que eram primos e queriam saber mais dessa história de um grupo barulhento mexendo com audiovisual na Baixada. Rafael Mazza e João Xavi também entraram em nossas vidas de forma intensa e, por esses motivos talvez espirituais, a identificação foi imediata. Com a curiosidade de que, além de serem bem mais novos, o Xavi não bebia e o Rafa era evangélico! Até meados de 2004, as reuniões do Mate continuavam abertas e nosso fórum mca começava a encher as caixas postais com as discussões que rolavam ao vivo. E dentro da ideia de criar um grupo fora do convencional, tínhamos considerável má vontade com umas práticas comuns e até mesmo necessárias, entre elas o “regime de votação”, aquela coisa de a maioria decidir e a minoria ter que se resignar. Mas essa má vontade foi sendo torpedeada pelo próprio grupo que crescia, mesmo que a gente sempre sacaneasse ou ar-

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gumentasse sobre a busca de novas formas de organização e ação coletiva — decisões por consenso, talvez. Mas os assuntos invariavelmente traziam à tona CNPJ, organização de metas, prazos, finanças, missão, e coisa e tal. Tudo que era importante, sabíamos, mas não era bem o que a gente queria naquele momento na cidade, nem no país. A partir de um e-mail do Igor enviado numa madrugada sobre uma reunião no melhor clima churrasco-cerveja, esse incômodo foi levantado e decidimos fechar o grupo para novos participantes; tentar nesse momento não criar um grupo tão disforme, que acabasse cedo ou tarde se transformando em algo que não era a ideia inicial. Mesmo essa ideia inicial sendo ainda tão vaga e caótica... O grupo topou a decisão e aos poucos os que pensavam o Mate em termos mais formais simplesmente saíram do coletivo ou pediram para se tornarem apenas parceiros de ação, sem ser membros do núcleo do cineclube. Muitos desses parceiros até hoje são braços que apoiam o Mate e é ótimo contar com eles.

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E-mail de igorbarradas@curtacaxias.com.br 23/3/2004 00:53

Estou por aqui pensando já neste sábado. A PAUTA será objetividade!!!!! Precisamos organizar ações precisas. Precisamos fazer CINEMA. Temos que traçar uma linha estratégica, um cronograma. Pintamos na parede a porra toda. Tragam suas ideias de filmes, para que possamos definir que filme produziremos. O meu roteiro está em anexo, comentem. Pretendo filmar nesse mutirão que armaremos pelos próximos meses, é nós na fita, mané. Tragam ideias para as próximas exibições do Mate Com Angu no Instituto Histórico. Ideias de conceitos, de temas para as próximas exibições. Tragam cerveja ou dindin para comprar em um depósito de bebidas que tem aqui perto. Quem estiver totalmente duro, apareça assim mesmo, afinal onde bebe um bebe dois. Neste momento, jogo a ideia que o Mate se feche com quem já está dentro. Se feche por enquanto para novos organizadores. Pelo menos até nos organizarmos melhor. Tenho a ideia que a gente possa formar uma máfia do bem, que um ajude o outro, que a gente se conheça, prefiro que sejamos limitados, porém unidos. Tenho medo de nos burocratizar, pelo fato de estar lidando com pessoas que mal conhecemos, ou que discordem completamente da ideia de ousar como um louco. O Mate tem que errar para poder acertar.

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Se ficar cheio de gente, nossas reuniões podem vir a ser plenárias em vez de cervejadas. Mas é claro que não sou radical. Se durante as exibições percebermos que aquele brother vai chegando junto, aos poucos, nas exibições, que bata uma afinidade de interesses irresistível. Aí a gente pode até preparar um ritual de iniciação e tudo. Falei o que sentia, não quero que o Mate se torne algo chato e difícil. Espero não ser mal interpretado, deem suas opiniões e sábado podemos ir mais a fundo sobre esta questão. Era para ser uma carta curta... Obs.: Não entendo nada de churrasco: quantidades, carnes, carvão, molhos etc. Deem uns toques pelo amor de Deus.

Os grifos são meus e evitei qualquer tipo de correção.

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Viva! Ainda usando a interface web do Baixada On, um dia chega um e-mail para o Mate de um cara dizendo que era grande fã nosso; tinha lido todas as matérias de jornal já publicadas e recebia o nosso informativo via internet. Tinha sido selecionado para a oficina de vídeo do Recine e queria nos conhecer ao vivo para trocar uma ideia. Não conseguimos nos encontrar ao vivo, mas em outro e-mail o cara disse que tinha feito um filme na oficina e queria que a gente fosse na premiação do festival para ver o filme e torcer. Sou muito fã do Recine, Festival de Filmes de Arquivos, e sempre que posso vou pelo menos no encerramento, e nesse ano eu iria de qualquer forma, ainda mais com a possibilidade de ver um filme de um cara da Baixada podendo levar um prêmio. Fomos lá de bonde, curtindo aquele prédio de arquitetura de filme de época e seu pátio delicioso... Comentei sobre o tal cara do e-mail e não é que na hora ele ganhou um troféu mesmo? Canção dos Oprimidos levou um prêmio pela concepção sonora, de fato uma sacada genial e cruel para o filme todo com imagens de arquivos mostrando a resistência estética ante a dureza violenta da ditadura. Eu já estava emocionado pelo filme, que era bom, e pelo prêmio, mas jamais imaginaria o que ocorreu na sequência... Cerimônia cheia, noite linda, e o maluco é chamado ao palco para receber o prêmio. Nunca vou esquecer as palavras ditas ao microfone em alto e bom som, com firmeza: “Viva o poeta Lasana Lukata, viva a Baixada Fluminense e viva o cineclube Mate Com Angu!” Não preciso dizer que chorei pra caramba, né? Foi assim que Pablo Cunha entrou em nossas vidas. 98


Sessão Catapulta! – Filmes ao Infinito! Passamos uns meses em grande expectativa com o filme que Cacau estava editando, 1 Ano e 1 Dia, documentário filmado no acampamento 17 de Maio, em Nova Iguaçu, com uma câmera emprestada pela Cufa. Com direção de Cacau, Xavi e Mazza, o filme mostra as comemorações de aniversário da ocupação e reconstitui, por meio de entrevistas com os moradores, a história das batalhas travadas até ali, uma história absurda como tantas pelo país. O curta 1 Ano e 1 Dia iria ganhar vários prêmios, a começar pelo Cara Liberdade, na Mostra do Filme Livre 2005, e circular por vários lugares no mundo. Mas, principalmente, por causa dele tivemos uma ideia de fazer uma sessão de cinema dedicada a lançamentos de curtas-metragens, a sessão Catapulta! que nem sonhávamos que aconteceria todo ano e que teria o sucesso que teve. Com uma arte sinistra do Venturotti, a divulgação foi forte com cartazes, filipetas, mailing eletrônico e release; e além de 1 Ano e 1 Dia a sessão teria ainda o filme do Pablo Cunha, Canção dos Oprimidos, e Espiral, de Lincoln Fonseca, que era do Rio e representava um coisa muito boa de integração, de fazer pontes — decidir lançar um filme na Baixada Fluminense não era algo muito usual até então... Os amigos P,10 e Kajá deram uma moral no som e o grupo de rap Poder Consciente, que cantava na trilha sonora de 1 Ano e 1 Dia, fez um show emocionante após a sessão, com direito até a criançada cantando junto; uma família, no melhor sentido. 99


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O filme 1 Ano e 1 Dia tocou profundamente a todos, a começar por nós mesmos. E a Lira de Ouro lotada, sessão tecnicamente perfeita, lançamento de filmes na Baixada, emoção no ar, davam a sensação de que aquele momento marcava algo muito especial no audiovisual da região. Escrevendo oito anos depois desse dia, a nota ruim é perceber que a questão da moradia ainda é grave e que ainda se usa a polícia para bater em pobres, queimar casas, expulsar e matar líderes em nome da especulação imobiliária, latifúndios e podres poderes estabelecidos.

Mazza, Xavi e Cacau com o prêmio Cara Liberdade, Mostra do Filme Livre 2005. Crédito: Sabrina Bitencourt


Cartaz da sessĂŁo Catapulta!, em novembro de 2004. CrĂŠdito: Arte de Thiago Venturotti


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Programa pra hoje Para toda sessão regular, e também em especiais, a gente produz um texto que levanta questões relacionadas ao tema escolhido ou a alguns dos filmes que serão exibidos. Ele é impresso junto com as informações sobre os filmes, fichas técnicas, as atrações e os apoios, no melhor estilo fanzine de papel xerox. Curiosamente, a questão da autoria sempre foi levantada e debatida pelo grupo, e analisando o processo de produção das sessões isso fica evidente. Hoje essa discussão tem ganhado contornos até dramáticos com a explosão da internet e a discussão sobre a Lei de Direito Autoral, mas quando começamos esse papo não era tão popular assim. Afinal, o que é o autor? Quando alguém do grupo lidera a produção de um filme, fica claro que o papel do diretor é definido; ele chama a galera para montar a equipe, toma as decisões de produção, indica apoios, coordena o projeto, enfim: fica claro que tem uma pessoa definida na frente. Mas e nos textos? Os textos do Mate são sintomáticos sobre essa questão da autoria. Em geral são quase rocambolescos, adjetivados, poéticos e crus, viajantes até, espetando, revolvendo e apontando para as armadilhas do poder dentro da estética dos filmes exibidos. Mas sempre com irreverência e muita descontração, criando um certo clima para os dias de exibi102


ção. Com o tempo os textos foram ganhando uma voz toda própria, com características muito peculiares, e escrever o texto da sessão passou a ser uma tarefa ao mesmo tempo colaborativa e mediúnica. A partir das discussões do mês vai se chegando ao espírito do que queremos imprimir na sessão, ou ao contrário, são filmes que nos chegam e parece que vão pedindo para serem exibidos, para virarem uma sessão. E começa um processo de sugestões de pedaços de frase e conceitos que depois são costurados com o toque da persona do Mate; ou é alguém que escreve incorporado com essa figura. O caboclo formiga. Os textos nesses dez anos dizem muito sobre a visão do cineclube sobre cultura, arte, política e uma visão de vida que é sentida e partilhada pelo grupo, ligada ao prazer, à poesia, à amizade e ao questionamento dos poderes estabelecidos. Talvez este seja um dos pontos que fazem com que dezenas de pessoas tenham entrado e saído do grupo, por não vibrarem nesse mesmo diapasão. E também pode explicar por que encontramos tantos empolgados irmãos de ideias em vários cantos do mundo. Colei nesse livro vários trechos desses textos, de sessões memoráveis; eles dão bem uma mostra da poética do Mate Com Angu, fermentada a cada sessão do nosso cineclubismo dionisíaco.

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Programa da sessão Angu de Ouro 2010. Crédito: Samitri Bará


Programas das sessões Abrideira (2005), Mate à Venda (2005) e Mosaico (2007). Crédito: Acervo Mate com Angu


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Texto da Sessão Dissonâncias – Cada pessoa é um universo

Filmes pra lembrar que as coisas podem ser diferentes, que o mundo é grande e que a cada seis pessoas no planeta, uma vive na China. Pra afirmar que cada pessoa traz em si um cinema particular, com seus roteiros únicos e enquadramentos por vezes imprevisíveis. Gente que existe nesse mundão pra lembrar que a vida é vasta. Embora o rolo-compressor do dia a dia queira nos convencer do contrário. Mesmo que a grande máquina de moer gente viva exaustivamente nos chamando pra tomarmos nossos lugares na engrenagem estabelecida. Dissonâncias. Ou: cada pessoa é um diapasão próprio, com sua música íntima e única. Ou: a desconfiança que aquele maluco ali do lado pode estar certo.

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Ou: que os dissonantes foram os que impulsionaram as grandes transformações da História, mesmo sendo marginalizados e/ou sacaneados em suas épocas. Ou: que olhemos com desconfiança cada rótulo limitante e cerceador. Ou: que a cultura e os cinemas nos mostrem os caminhos vitais da convivência fraterna tão desejada nesses tempos neuróticos. Venha compartilhar experiências plenas de Humanidade, com todos os seus reveses, suas dores, suas delícias e sobretudo suas loucuras próprias. Quem disse que gente é tudo igual? [Agosto de 2005]

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CinemaMito – Texto para O MoLA 2005, no Circo Voador Por que a gente faz cineclubismo? — essa coisa maluca que é exibir filmes, adorar, discutir, pensar e imaginar imagens em movimento? Porque quando a gente dança de olhos fechados, sozinhos em meio a uma pista de dança qualquer, nós vemos imagens. Imagens que nos cantam ao pé do ouvido: imagens, imagens e imagens. E de onde vem essa necessidade? (...) Quer saber a verdade? Não existem cineclubistas, cineastas, artes plásticas, músicos e teatros. Não existe o Mate Com Angu, o Cachaça, o Curta o Curta, o Nós do Cinema, o Cinemaneiro, o Malditos Filmes Brasileiros, a Ascine, a Cavídeo e tantos outros. Tudo isso são apenas bótons presos a uma jaqueta que um dia estará fora de moda. [Outubro de 2005]

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Slogans – Ritmo – Cerol Fininho

Sempre gostamos de slogans, subtítulos, frases publicitárias poéticas que mostrassem instantâneos do recado que queríamos passar. E no começo de tudo usávamos “Cinema para uma boa digestão”, com a variação “Cultura para uma melhor digestão”, que pegou até o dia que saiu o “Cerol fininho da Baixada”, que para a gente era carregado de óbvios significados. Em junho de 2010, o Mate esteve pela segunda vez mostrando seu trabalho no continente europeu, na França, a convite da associação Austres Bresils para uma noite de exibição dos filmes do grupo com debate, e para uma vivência com jovens de Aubervilliers, na periferia de Paris. E aí, logo nos primeiros dias, uma francesa que falava bem português mandou a pergunta na lata: como se traduz “o cerol fininho da Baixada”? Lembro de ter ficado embananado com a pergunta, mas abri o verbo na tentativa de explicar uma expressão tão particular e tão insólita para um grupo de audiovisual — também me dei conta de que até mesmo para brasileiros era difícil traduzir... As palavras exatas que usei na França naquela ocasião não lembro, mas o espírito do que falei é mais ou menos o que segue; um mínimo entendimento pode dar um significado bastante rico para o trabalho que temos buscado fazer, mesmo quando não é tão consciente. 109


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Digamos que, etimologicamente, é até simples... Cerol é a mistura de cola e vidro moído que é passada na linha da pipa — para quem solta à vera... A intenção de cruzar e cortar a linha dos outros está intimamente ligada ao soltar pipa na diversão, sem encucações morais e questionamentos éticos. Embora a molecada tenda a caprichar no visual, o soltar pipa na periferia não é exatamente um campeonato de “a pipa mais bonita”... A propósito, a cultura da pipa merece um estudo mais detalhado e o João Xavi tem um texto muito legal sobre o assunto. A pipa ordenou a noção de tempo de vários moleques pela periferia do país, e na Baixada não foi diferente. Por causa de pipa muita porrada comeu solta, muitas mães se desesperaram, mas também muitos laços de amizade foram construídos sem preconceito, mais velhos e mais novos compartilharam momentos mágicos de descontração em regiões onde a vida (ainda) é áspera em seu cotidiano. Pois bem, diz-se que o cerol é fininho quando a concentração de vidro é grande e, por consequência, mais cortante, o que é fundamental para a prática do cortar e aparar. O louco é: muito antes do Bonde do Tigrão ressignificar o “vou passar cerol na mão”, na Baixada dos anos 1980 “passar o cerol” era sinônimo de assassinato por grupos de extermínio. A frase sinistra “o carro do bicho passou o cerol” parece surreal no literal, mas infelizmente retratava uma realidade dura, cruel e rotineira. O cerol fininho era ainda o mais rigoroso nos processos tenebrosos de extermínio, sobretudo porque analisando o processo ficava nítido o caráter de seleção moral da ação. Até mesmo o conceito de mal-encarado, nascido na ditadura, era usado tanto pela polícia para deter pessoas para averiguação quanto para execuções sumárias de elementos tidos como perigosos moral e politicamente ao sistema político e econômico local. 110


Mas, aos poucos, cerol fininho foi evoluindo de significado para uma espécie de modus, de jeito Baixada de ser e estar no mundo. Um misto de crueza e doçura; um viver que é tenso porque a vida é dura, mas sem frescuras e afetações; uma visão de vida espiritualmente materialista; uma tensão que é ao mesmo tempo festiva; uma alegria bruta, difícil de definir. Talvez tenha algo a ver com a imensa presença nordestina por essas bandas (aquele papo do Euclides da Cunha, o nordestino é antes de tudo um forte); pode ter a ver com uma África moura ancestral, bárbaros do deserto ocupando a península ibérica, e seus eternos reconstruíres... Captar essa essência na arte e tentar entender e impregnar as telas com essa poética é também um dos desafios que fez o Mate surgir. A Baixada está em toda parte, poderia dizer Guimarães Rosa, ou no dizer do poeta Mário Faustino:“Tanta violência, mas tanta ternura.”

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Texto da Sessão Baixada Há seis anos que o Mate Com Angu vem martelando uma frase muito reveladora: a Baixada Fluminense é cinematográfica por excelência. No sentido mais amplo da expressão esse vasto pedaço de terra traz todo um caldo de cultura enriquecido à base de ferro e fogo que provoca um impressionante efeito mítico-estético-audiovisual. Como uma espécie de 3x4 do país, a Baixada revela o Brasil em miniatura. Uma enorme riqueza natural, um povo formado por gente de vários cantos do país e do mundo, uma riqueza econômica morando ao lado da miséria material, uma elite que ganha dinheiro aqui e mora fora, umas das maiores concentrações de renda do país. E uma criatividade que é meio inexplicável sem recorrer a alguma dessas teorias loucas como a Estética da Fome, do Glauber. A beleza vertendo da adversidade.

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Uma terra surpreendente. A capoeira mais famosa do mundo é a de Caxias e a Baixada tem mais terreiros do que a Bahia toda. E a política sempre foi acompanhada de perto pelo uso da pólvora, faroestes caboclos à vera. Desde o tempo de Tenório Cavalcanti e Getúlio de Moura, quando curiosamente o trabalhismo e o Partido Comunista sempre foram fortes e onde depois o brizolismo pós-ditadura cresceu como fermento nas massas. Aliás, fermento nas massas lembra as CEBs na Teologia da Libertação, que aqui foram referência no país. E dá-lhe Dom Adriano Hipólito. E Joãozinho da Goméia. E Solano Trindade, que viveu um bom tempo aqui. E Sylvio Monteiro. E Armanda Álvaro Alberto e a impressionante história da Escola Regional de Meriti. Ufa.

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E as histórias apagadas aos poucos estão vindo à tona. A incrível história do samba; só perguntar a quem sabe. Nei Lopes e Bezerra da Silva conhecem onde a coruja dorme, e deve ser ali por Mesquita. Sem falar do Donana semeando um reggae brasileiro no ouvido do país, direto de Belford Roxo, cidade que foi “eleita” em 1990 a mais violenta do mundo... Da época dos laranjais aos lotes, a Baixada sempre foi Cinema, mesmo sem ser filmada, e sempre foi Música, mesmo quando não gravada. Vida que segue. E o trem como serpentes de aço devorando as vidas espremidas em seu interior. Miscigenação, fé, desolação. Esse povo da Baixada... Como dizia o funk clássico: Baixada cruel, os sinistros são de Bel. Mesmo com suas singularidades, há uma certa identidade que permeia a Baixada e que tem a ver com a construção da cultura, com a presença do trem e suas estações, com o jeito ponta de faca com que se cresce aqui. Há um atavismo e ao mesmo tempo um diálogo com a contemporaneidade que vai além das teorias sem sangue nas veias. É o imaginário periférico provocando mentes, colocando tradição e modernidade pra sambarem juntas e misturadas. Como o bolo doido criativo e suingado presente na obra do rapper João Xavi, cria internacional de São João de Meriti. Como se houvesse uma malandragem específica, nascida da vivência com a crueza e com um certo nonsense

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ao encarar a vida nas cidades a partir de vários pontos de vista, que não só o da Zona Sul carioca. Uma certa humanidade mediadora, talvez. E o trem, a poeira, as matas, os ônibus apinhados, as igrejas, as cachoeiras, os morros, as cenas, as imagens de força e desilusão — ou um deleite para direção de fotografia? [Setembro de 2008]

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Acorda! O sucesso da sessão Catapulta! em novembro teve imensa repercussão e deu um vislumbre do que o Mate também poderia vir a ser: uma plataforma de lançamentos de filmes e sonhos concretizados, mesclando audiovisual com outras linguagens. Com isso, o ano de 2005 prometia fortes emoções, e a gente suspeitava mesmo que seria incrível e emocionante, mas nem as mais otimistas previsões chegavam perto de tudo o que viria a acontecer... Além da expectativa das sessões regulares na Lira, a casa nova, com mais espaço e autonomia para pirar nas produções, a vertente realizadora começava agora a despontar forte e o filme seguinte no forno era o Acorda!, uma ficção com direção e roteiro de Igor Barradas. Ao mesmo tempo que nossas discussões etílico-filosóficas ficavam mais intensas, mais gente chegava com corações e braços para ajudar, numa espécie de despertar para o fato de que o momento era de levante criativo e estético na Baixada. E apostávamos nessa onda. Nos papos do final de 2004 e comecinho de 2005 planejamos um megaevento para marcar o lançamento do filme novo do Barradas, na mesma vibração da noite da Catapulta!, em novembro. Havia uma mística, uma onda lisérgica em lançar filmes, ainda mais de alguém com quem você convive, admira e com quem por vezes enche a cara de cana e alegria. 116


Por conta da parceria de amigos de primeira hora, da organização da Mostra do Filme Livre, conseguimos fazer uma pré-estreia do Acorda! no CCBB, com direito a muita euforia pelo ineditismo da coisa: todos éramos frequentadores daquele espaço, mas exibir lá um filme todo feito em Caxias era demais da conta de felicidade. A recepção foi ótima, o que só aumentou a ansiedade em relação à estreia oficial. O lançamento seria em março, mas antes tivemos a sessão Abrideira — para abrir caminhos e cabeças —, com uma curadoria caprichada de curtas, com o amigo Kajá botando um som, e com a presença de várias figuras que sentiram que o que tinha rolado no novembro anterior era algo que ainda ia fazer muito barulho — gente que queria estar por perto dessa energia. Acorda! foi lançado no dia 30 de março de 2005 em uma sessão chamada Cinema de Ouvido, com uma puta arte gráfica do Venturotti, uma instalação incrível do fotógrafo Renato Velasco e uma festa de arromba, com o DJ Brasília, direto da Rádio Pulga, do IFCS/UFRJ, tocando pela primeira vez na Baixada. Gente que leu as matérias que saíram na imprensa, a galera de Jardim Primavera, artistas plásticos da cidade, músicos das redondezas, malucos em geral e cinéfilos avulsos foram conferir que diabos era isso de um grupo lançar um 117


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filme de ficção todo rodado em Caxias... Cerca de 300 pessoas na Lira de Ouro em dia de semana, final de mês... Um sucesso que reverberou durante um bom tempo, ampliando o efeito do que tinha sido a noite dos lançamentos de novembro de 2004. O dia seguinte foi de muita alegria logo ao acordar... Todos do grupo receberam retornos altamente positivos em suas redes pessoais e na comunidade do Mate no Orkut. Muita gente que tinha ido se comprometeu a ajudar ainda mais nas próximas ações e quem não foi ficou com o desejo atiçado de ir conhecer esse cineclube barulhento. Se tem um sentimento que me veio à cabeça naquele momento, como morador da Caxias e atuante na área cultural, esse sentimento era o de esperança. Digo isso sem pieguices; essa noite no Mate era um pedaço quente e apaixonado de um momento vibrante na Baixada. Produções e eventos provocadores saindo do forno em Nova Iguaçu, Caxias, Belford Roxo, São João... Como se muita gente começasse a acreditar que o momento da região era aquele, tinha chegado a virada finalmente. Mas o carrego histórico da Baixada é forte e essa alegria toda não ia passar assim impune... Como falei, estávamos no dia seguinte a toda essa empolgação que relatei. O Mate tinha sido convidado para falar em uma mesa no Espaço Cultural Sylvio Monteiro, em Nova Iguaçu, e eu fui representando o grupo. Aproveitei e marquei um papo mais cedo em Belford Roxo com os amigos-parceiros-cúmplices que organizaram muita coisa boa, entre elas o projeto Na Mosca, onde o Mate exibiu seus filmes em praça pública em Bel; agora estavam fazendo um evento de poesia e música que estava dando bastante caldo. Fui com alguns deles para Nova Iguaçu e lembro que o papo foi muito bom no evento e no pós-evento. Depois de algu118


mas saideiras, peguei o último ônibus direto para Caxias, com o coração cheio da noite anterior e dos papos dessa quinta-feira, 31 de março de 2005. Cheguei de madrugada em casa feliz demais e dormi sem entrar na internet. Dia seguinte ao acordar, as rádios, a televisão, a internet e os jornais explanavam o quadro bizarro: justo na noite anterior, 29 pessoas, trabalhadores, incluindo nove crianças, haviam sido assassinados brutalmente por policias em Nova Iguaçu e Queimados, em “retaliação” macabra a tentativas de cercear a ação dos grupos de extermínio que vivem nos batalhões policiais. A operação “Navalha na Carne”, deflagrada pelo comando da polícia, havia colocado sob detenção mais de uma centena de policiais e levado vários outros a prisão por desvio de conduta. O episódio ficou marcado como A Chacina da Baixada, e digo marcado porque essa palavra traz à tona todo o esforço de reversão dessa imagem de barbárie, marca contra qual a gente lutava e luta tanto... E envolvidos 100% na produção do evento de quarta, também não tínhamos acompanhado que na noite anterior policiais tinham decapitado duas pessoas e atirado a cabeça de uma delas dentro do 15º Batalhão da PM, em Caxias, pelo mesmo motivo. Esses corpos foram um banho de água fria na alegria que a região vivia nesse momento.

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Capa do DVD do filme Acorda!, em 2004. Crédito: Arte de Thiago Venturotti

Pré-estreia do filme Acorda! no CCBB, em fevereiro de 2005. Crédito: Fabio Pereira


Exibição dentro do projeto Na Mosca, numa praça em Belford Roxo, em 2005. Crédito: Acervo Mate com Angu


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Indigestando

Desde o princípio do Mate a gente descobriu que tinha o poder de interferir sensorialmente na montagem de cada sessão, não só pela escolha do tema e pelos textos, mas também pela ordem de escolha dos filmes — era possível mexer com a emoção do público como se tivesse sido exibido um longa. Mas foi na sessão de abril de 2005 que esse poder da intenção ficou óbvio. A opinião pública de um modo geral, mas em especial os familiares das vítimas, os ativistas da Cultura e dos Direitos Humanos na região tiveram um mês de engulhos... Nós do Mate vivemos semanas de brochada total com o episódio da chacina e convivemos com uma falta de clima para produzir qualquer coisa em Caxias que não fosse visceral, soco no olho. E havia uma expectativa por parte de quem foi no lançamento do Acorda! de que a sessão seria uma festa orgástica como foi a daquela noite. Montamos uma sessão chamada Render-se Jamais e resolvemos não divulgar qual seria o tema, de maneira que o público chegou às escuras sem saber o que veria na tela do cineclube. 122


A sessão incluía dois curtas já exibidos, o 1 Ano e 1 Dia, e As Justiceiras de Capivari, de Felipe Nepomuceno, documentário seco e cru sobre um grupo de mulheres que resolvem fazer justiça com as próprias mãos em uma terra onde a violência é banalizada. E fechando, o longa Entre Muros e Favelas, produzido pela TV Tagarela e uma produtora alemã; um soco audiovisual dado com força no meio da cara. Cinquenta e cinco minutos mostrando histórias de famílias que moram em favelas do Rio, mostrando a opressão e o preconceito de que é vítima a população pobre, principalmente a favelada. E deixando claras as relações espúrias da ação do Estado, da polícia e dos grandes meios de comunicação quando o assunto é criminalização da pobreza. Obviamente não programamos nenhuma festa no final da exibição, mas não rolaria mesmo... Uma parte grande da galera não esperava uma curadoria tão pesada e foi um tal de gente disfarçando lágrimas e saindo de fininho... Saímos para beber no bar do Tião, um de nossos mestres referência, e foi uma noite de expurgo total. E decidimos partir para um ataque com mais força ainda no campo de batalha do imaginário local. 123


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Marte! Nesse ano de 2005 aluguei uma casa no centro de Caxias, logo batizada de “casinha da Funerária”, por ser ao lado desse mafioso estabelecimento na cidade. Como morava sozinho, e o fato de ser no centro e ter um quintal bem grande, costumava emprestar a casa para reuniões de alguns grupos culturais, e um desses que se reuniam lá de vez em quando era o Marte, Movimento de arte Engajada. O grupo era formado por jovens oriundos de várias formações e buscava usar a arte como forma de intervenção política na região, usando para isso principalmente o teatro, as artes plásticas e performances. Em uma sessão de filmes bastante pancada, chamada Descarrego, convidamos o Marte para apresentar sua nova produção, uma peça visceral, um virulento manifesto contra a violência policial e seu rastro de vítimas assassinadas nos últimos anos, tendo como mote a chacina de março. A montagem calou fundo o coração da plateia e causou comoção. Por desentendimentos internos e por falta de clareza do que seria o trabalho da tal “arte engajada” o grupo acabou se desfazendo (eu mesmo volta e meia zoava com “arte engasgada”). Mas três figuras do grupo acabaram se integrando ao Mate, e aí a coisa pegou fogo de vez. A entrada de Bia Pimenta, Márcio Bertoni e Fabíola Trinca levou o Mate Com Angu para outro paradigma de ação, engrossado com uma vigorosa vontade de fazer barulho à vera. 124


Além do Marte, os três também tinham em comum a vivência no movimento estudantil pela UEDC, a associação dos estudantes de Caxias, e uma energia forte para trabalho e festa. Já chegaram fazendo filme, produzindo e conectando de vez o Mate a uma molecada maluca que começava a aparecer no cenário do underground, principalmente a galera do rock noise. A Bia inclusive tinha sido aluna do meu curso de redação no pré-vestibular popular Joel Rufino, onde já demonstrava sua inquietação e vocação para criar caso e animar rodas de conversa, de pogo, de cerveja e quejandos.

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Dez, Nota 10 Em 2005 o Mate foi um dos ganhadores do Cultura Nota 10, prêmio do Governo do Estado em parceria com a Unesco, que contemplava iniciativas culturais que se destacavam no cenário cultural, indicados por um júri de gente da área. As dez ações premiadas ganhavam um vídeo de apresentação e 2 mil reais. Nosso vídeo foi muito caprichado e dirigido pela Márcia Derraik, o que já seria um prêmio ótimo; depois ela viria a ser parceira de trabalho de alguns dos integrantes do grupo. A forma como acontecia a entrega do prêmio era muito louca: em uma cerimônia no Teatro João Caetano, lotadaço, com gente de todo o Estado, os grupos se apresentavam no palco para a plateia, em cinco minutos, após a exibição do vídeo, e outro júri votava em cinco ações para ganhar mais 5 mil reais. Quase um show de calouros. Fomos em peso e estávamos empolgadíssimos com tudo, inclusive pela possibilidade de falar para aquele público imenso, formado por artistas, produtores, imprensa e autoridades. Fui o escolhido para falar pelo grupo e me comprometi em seguir à risca a proposta naquele momento, ou seja, abrir o verbo.

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Mas antes aconteceu uma coisa muito doida, único ponto de fato negativo na nossa avaliação. Como os secretários de Cultura foram convocados também, não sei quem, talvez a direção do prêmio, provavelmente o Governo do Estado, chamava ao palco o secretário do município de onde era a iniciativa ganhadora. E aí a figura ganhava um diploma Prefeitura Cultura Nota 10. Putz, quase estragou nosso dia. Não tínhamos apoio nenhum da Prefeitura e praticamente nada naquele momento justificava condecoração nenhuma. Alguns meses depois até conseguimos um ônibus com a Secretaria


de Cultura, que usamos durante vários meses, até o dia em que tivemos que colocar óleo diesel nele para poder usar... Decidimos na hora não explanar a situação, mas na nossa hora de falar mandei cinco minutos de porrada e poesia; uma tentativa de resumo em cinco minutos do sentimento que era produzir arte e cultura nas periferias sem apoio, com o poder público em geral jogando contra, com falta de estrutura, mas com tesão empreendedor, com propostas estéticas avançadas, combinando tradição e internet. De Caxias como o oitavo PIB do país e a merda que era. Das mudanças que estavam acontecendo e iam mudar a cara da cultura no Estado. Eu tenho dificuldades de dicção e imagino que muitas palavras devem ter sido cortadas e embaralhadas diante do “momento Enéas”, cinco minutos para falar de tudo. Mas pela reação da plateia o discurso reverberou no João Caetano... Foi o momento de mais aplausos naquela tarde. Mas não ganhamos os outros cinco paus. Os jurados, quando conversaram com a gente no final, foram unânimes: tinha sido o ponto alto da cerimônia o nosso vídeo e a apresentação, mas o negócio tinha sido montado para que os grupos justificassem por que mereciam mais 5 mil reais, coisa que nós não fizemos. Na verdade, só entendemos depois... A plaquinha Prefeitura Cultura Nota 10 ainda foi vista pendurada na sala do prefeito muitos anos depois, talvez ainda esteja lá... Mas desse dia ficou a lembrança de como tinha gente em quantidade que queria ouvir o que tínhamos para dizer. E esse dia ajudou muito a espalhar no estado a fama do Mate como um coletivo anárquico e incendiário.

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Rap é igual a cinema O Mate tem uma fama de grupo com pegada roqueira, isso é inegável. E tem fundamento. Os mais velhos em idade do Mate tem uma formação musical muito parecida: por conta das famílias de migrantes nordestinos, o som de Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, programas de rádio AM e o brega dos anos 1970 e 1980, foram matéria-prima básica, com variações por conta da estrutura familiar (exemplo do caso do Slow, cujo pai é um DJ cascudo das noites suburbanas, ou do Igor que já foi praticamente amamentado ao som de rock 'n’ roll). Depois tem o impacto da Fluminense FM, que vários de nós chegamos a ouvir direto. Fora isso tem o fato de vários de nós termos tido bandas de rock ou de punk, como eu, Cacau, Maravilha e Prestor. Prestor, aliás, toca bateria até hoje, no melhor estilo espancação rocker. Pablo Pablo é conhecido ainda pelas lendárias bandas de noise Purpose e Jesus Coca. E Bia produz bandas e shows de rock e é articuladora de vários grupos, como os que compunham a Geração Delírio, o Cabaré Viaduto, em Mesquita, cenas que reuniam bandas, artistas plásticos e malucos de variados graus. E o público que frequentava o Mate no início era de fácil constatação, se compunha de roqueiros das mais variadas matizes. 128


Mas o que chama atenção é o fato de que o hip-hop esteve presente na formação do Mate e foi um dos grandes disseminadores das ideias do grupo desde o início, a ponto de pensarmos que sem o rap o Mate dificilmente teria tido a força e a projeção que teve. Fora o Cacau, o DMC e João Xavi, desde o começo contamos com a parceria de fé do universo do rap, principalmente dos rapper P,10 e Janaína Re.Fem, do artista do grafite Kajá e do Slow, fera do freestyle nacional que acabou entrando no Mate por total identificação espiritual com o grupo. “Cinema é igual a rap” é o nome de uma música do Cacau e do Dudu de Morro Agudo que também é um projeto de disco e de uma reflexão muito sacada do Cacau sobre o fazer cultural na base da “semetência”. Logo que entrou em contato com o rap ainda nos anos 1980, quando ainda era punk, ele enxergou que fazer rap trazia muito do espírito do punk, do se-meter-a-fazer, o tal Do It Yourself, Faça Você Mesmo. Era possível comunicar uma ideia a partir de elementos acessíveis e baratos; no caso dele, caneta e papel, e depois dois gravadores de fita cassete gravando bases em loop. No meu caso particular, entrei em contato com esse universo a partir dessa galera e pude comprovar que, antes da sofisticação que o rap traz hoje, existe mesmo uma raiz 129


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forte de comunicação baseada em elementos acessíveis a todas as pessoas, por mais sem grana que sejam. Isso explica a força do rap em praticamente todas as periferias mundo afora. Esse espírito punk-rap também ganhou força no meio audiovisual por conta do barateamento dos equipamentos digitais de captação de imagem. Vimos muito também essa articulação hip-hop e audiovisual na vivência com a Cufa, a Central Única das Favelas. Cacau, DMC, Rafael Mazza, Pablo Cunha, João Xavi, Bertoni e eu fizemos o curso de audiovisual de lá (e indicamos vários amigos próximos como o parceiro Bender Dutra), e o lema “fazendo do nosso jeito” tinha tudo a ver com a teoria do “cinema é igual a rap”. Fora isso, o documentário do Public Enemy, Digitize Or Die, exibido no Hutus de 2003, já prenunciava o que viria por aí na revolução digital, e o rap estaria na ponta de lança desse processo todo.

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Cartaz da sessĂŁo Descarrego, em maio de 2005. CrĂŠdito: Arte de Thiago Gomes


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Cine Guandu Um dia, numa reunião na casinha da Funerária, Pablo Cunha chegou com a novidade: tinha passado para o concurso de Japeri para trabalhar com arte na rede municipal e queria levar o Mate para lá, abrir uma espécie de sucursal. De cara dissemos sim, mas é preciso falar um pouco sobre Japeri, última estação do ramal da Central. Um dos piores índices de desenvolvimento humano do estado, duas horas de trem correndo solto da Central para chegar, ninguém vai ali em Japeri e volta já... Ainda mais onde Pablo ia trabalhar, Engenheiro Pedreira, distrito ainda mais afastado. Ou seja, desafio total. Combinamos de fazer um evento de lançamento de um cineclube lá e fazer o possível para que ele tivesse seu próprio nome, cara, jeito e prática, com o que Pablo concordou na hora. Com a parceria do Nós do Cinema e da Secretaria de Educação do município fizemos uma sessão de filmes na Sala Popular de Cinema Anselmo Duarte seguida de um debate muito bom, com a presença do ator Leandro Firmino da Hora, que foi super solícito com a molecada que lotou o espaço. O evento foi marcante para a região e Pablo começou a levar o projeto com afinco, dando ênfase ao aspecto de produção de curtas com a galera, que acabou batizando o trabalho de Cine Guandu, referência ao rio que até hoje abastece de água a metrópole carioca e grande parte da região metropolitana do Estado. 132


Devido à distância mesmo e a nossa falta de pernas e dinheiro, o Mate foi saindo de cena e apenas acompanhando e divulgando a produção do Cine Guandu. Por meio de uma metodologia altamente participativa e descentralizada, o Cine Guandu reuniu vários adolescentes da região que produziram mais de quinze curtas com máquinas fotográficas e roteiros criativos e provocantes. Conseguimos fazer vários desses curtas serem exibidos em espaços privilegiados, principalmente O Bêbado e O Lobisomem, que foi exibido no Circo Voador, na rede SESC-Rio e em sessões regulares do Mate. Com a saída do Pablo da rede municipal de Japeri e com as próprias dinâmicas toscas da relação política-cultura na região, o Cine Guandu foi descontinuado, mas não sem antes ter um reconhecimento muito legal. Pablo e a meninada aparecem no documentário sobre Milton Santos, do Silvio Tendler, junto com Adirley Queiróz, de Ceilândia, falando e mostrando de forma muito verdadeira como milhares de ações concretas de articulação da cultura têm apontado caminhos de superação da loucura suicida a que o capitalismo chegou. Todos nós que vimos o filme no cinema saímos com um sentimento muito bom de cumplicidade e gratidão. Um viva com bastante tesão ao Cine Guandu!

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Cinema Palafita e a Intifada Audiovisual “Tripé de cabo de vassoura; grua com ripas e parafusos; triângulo de vergalhão; rebatedor com tampa de panela de alumínio; still com celular. Da adversidade, vivemos. Suprimimos nossa dificuldade com criatividade e imaginação. Sobreviver já é uma luta. Porém, ao invés de lutarmos com paus e pedras, usamos o audiovisual para ir além: para o alto e avante! O céu não mais é o limite, somos infinitos do tamanho dos nossos sonhos. Celular, câmeras fotográficas, VHS e o que vier: não importa o formato, o fim suprime o meio. E o fim é ferir a alma, emocionar e provocar reflexão até nos brutos. Eles também podem amar. Eles também podem sonhar. Nesta ideologia, seguimos na lotação com a marmita embaixo do braço fazendo cinema-palafita, cinema-intifada, cinema-baixada.” [Do terrorista cultural Coletivo Cine Guandu, 2006]

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Arte da sessĂŁo Cinema de Ouvido, em maio de 2005. CrĂŠdito: Arte de Thiago Venturotti


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Cinema com Batuque Na pressão total de 2005, a equipe do SESC São João de Meriti nos chamou para uma conversa cujo teor alegrava como água de coco descendo pela goela: ajudar a dar vida a um evento de cinema no teatro, levando a experiência do Mate para um público ainda maior, numa sexta-feira à noite, combinado com shows ao vivo. Naquele momento, havia uma galera muito pilhada em volta do SESC, querendo intervir mesmo na vida cultural da cidade, e além desse povo foi chamado o pessoal do Nós do Cinema que tinha feito umas oficinas no SESC que deixaram gosto de quero mais em muitas pessoas. Com esse núcleo inicial foi criado o Cinema com Batuque, que, além de exibir filmes, também traria atrações de música, de artes plásticas e de perfomances, juntando tudo numa noite de sexta-feira, das 18h às 22h. O Mate ficou com a responsabilidade da curadoria e o uso do modelo de sessões temáticas, que foram radicalizadas na medida em que não havia só filmes no evento. A sessão Feira, por exemplo, teve filmes, show com cantadores, banca de frutas e toda uma decoração girando em torno do assunto. Além da divulgação nas redes do Mate e do Nós do Cinema, o SESC entrou forte com uma panfletagem nas escolas e pontos estratégicos de São João de Meriti, o que foi construindo um público grande e praticamente virgem nesse tipo de evento na região. 136


O formato era muito doido: havia um MC que guiava o evento — ninguém menos que Slow Da BF, mandando um empolgante freestyle durante toda a noite; curtas-metragens intercalados com intervenções artísticas como dança, performance e circo, e fechava com um show de alguma banda da região. Pelas duas primeiras edições, dava para ter uma ideia de como o evento era sensação: teatro cheio, público participativo e um burburinho que fez crescer absurdamente a lista de gente querendo se apresentar. Fora que o SESC São João fica muito próximo do metrô da Pavuna, o que foi sendo descoberto por uma grande galera da cidade do Rio, que virou presença assídua. Além de impulsionar a criação de grupos como o Coletivo Anti Cinema e o nesse momento consolidado Cine Guandu, o Cinema com Batuque se firmou como um ponto de contato entre artistas e grupos culturais de toda a Baixada e região. A partir de 2008, por falta de pernas e organização interna, o Mate acabou se afastando do evento, passando a frequentar mais como parceiro e como público; mas o Cinema com Batuque continua acontecendo até hoje no SESC São João de Meriti.

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Sessão Mosaico – Cinema com Cacos de Vidro

caco de vidro azulejo muro chapisco pedaços pedacinhos espelhos desenho trama urdidura fractais pedras peças losangos quadrados pintura plano cena figuras figurino brasil caxias encaixes geometria caos. um cinema com cacos de vidro nos olhos. documentários lançados com a potência de pedreiras, filmes projéteis à procura de sentidos, imagens buscando revelar uma nação. conflito de visões sobre um país. retratos angustiados por lentes estilhaçadas como pedaços de azulejos reutilizados, reciclados como corações sob o mosaico do muro de chapisco... uma noite em um cineclube em uma cidade de um país de um planeta de uma galáxia. as partes e o todo do inexplicável. uma noite de baile como átomos girando em torno de seus núcleos, como peças soltas de um quebra-cabeças. como cenas entrecortadas esperando sentido em uma ilha de edição. flores na ideia. [Julho de 2007] 138


Terreiro As muitas horas de voo na atividade cineclubista incluem fazer exibições em praças da Baixada, favelas, botequins, praticamente todas as universidades do Rio, ONGs, sindicatos, festas de amigos, ocupações urbanas, e até fora do país, mas as sessões regulares que acontecem às últimas quartas-feiras do mês... Essas têm um axé especial e são responsáveis por criar vínculos importantes que até hoje perduram. É uma espécie de terreiro onde a gente vai tentando criar as condições para que a energia do cineclubismo dionisíaco baixe com vontade. Sim, a parada é meio espiritual mesmo... Quando a Sabrina começou a andar com a gente ela falava do Mate como uma “confraria de bruxos” e isso veio de uma percepção que está ligada a esse grau de entrega com que a gente costuma abraçar as sessões regulares de uma forma muito especial. Assim que esse formato das sessões temáticas foi tomando forma, cada exibição reunia não só os curtas que giravam em torno do tema escolhido; também havia toda uma movimentação sobre o assunto da vez em nossas redes, nos textos, nas atrações convidadas, nos papos em roda de bar. Um exemplo clássico foi quando vários de nós ficamos meio que apaixonados pela mesma pessoa, uma menina que conseguiu envolver boa parte do grupo de uma forma que não dá para explicar até hoje. Dos mais diretamente aboba139


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lhados com a figura, todo mundo buscava meio na encolha convidá-la para algum programa mais íntimo, achando que ninguém estava sabendo... Além da questão financeira, um percentual muito grande dos grupos termina também por questões que envolvem relacionamentos, ciúmes, intrigas sentimentais, despeito — e esse episódio foi muito emblemático. Mas no nosso caso o negócio era tão louco que chegava a ficar engraçado, e um dia nos reunimos e decidimos fazer uma sessão dedicada ao Amor em homenagem à figura e em celebração à Amizade e ao Prazer que transcendem a posse. E foi um mês inteiro em que essa onda reverberou não só entre a gente, mas entre os amigos e parceiros, como se irradiasse com toda a força dos deuses do Cinema. Cinemamor. E no dia da sessão, lotada, dava para sentir no ar essa vibração, com vários casais se formando, sem regulação de orientação sexual, sem estresses, com um clima de paixões, tudo com as bençãos de Fernando José, o herói do filme homônimo que fechou a noite, um agente secreto que nas horas vagas era cantor de música brega; um curta feito na faculdade Estácio de Sá e que levantou a galera, coroando uma noite mágica com o lema de sua principal canção: “O mais importante é o amor.” Teve também a sessão Canalha, em que quem fosse de Ray-Ban ganhava um vale-torresmo a ser trocado no bar do Tião (o torresmo do Bar do Tião era uma das maiores lendas da cidade de Duque de Caxias, com fãs em todo o Rio e que, eu vi isso, já tinha até desviado vegetariano do rumo). Houve algumas sessões eróticas que marcaram muito também. Incrível como o sexo tem mesmo um poder enorme de mobilização especial. Em uma delas, sessão Eros, conseguimos realmente aguçar os sentidos da galera através dos filmes e do clima criado; muita gente aguardava ansiosa pelo final da sessão e da performance que rolou para cair 140


na festa em meio à licenciosidade espalhada pelo salão; dava para ver nos olhos da galera e sentir no ar a atmosfera sexual... No mês seguinte também houve um clima parecido no ar, só não contamos que o DJ que tocaria nessa noite fosse tão especializado em música eletrônica; o cara namorava uma amiga nossa, que o indicou, tinha um currículo de seis páginas, site na internet, roadie para equipamento, tinha tocado na África, em castelos no Leste Europeu e o escambau... Mas quando começou a tocar o som, em dez minutos não tinha mais ninguém no salão. O público saiu muito puto com a gente e descobrimos que música eletrônica radical não era bem o que agradava na noite mateana. Em 2011, a Lira de Ouro ficou uns meses fechada para obras e o Mate aconteceu num botequim que ficava exatamente em frente, cujo dono, Luis Russo, é fã do cineclube e querido pelo público, que sempre faz um esquenta cervejístico antes das sessões. Muito legal perceber que o espírito do Mate continuou vibrante no boteco, e talvez até mais. Além de termos conseguido fazer uma sessão dedicada ao assunto maconha, um desejo antigo, na exibição do longa Cortina de Fumaça, de Rodrigo Mac Neven, fizemos uma projeção especial para Mangue Negro, um filme de zumbi dirigido por um cara do Espírito Santo, Rodrigo Aragão, que arrebatou a galera a cada jorrada de sangueira na tela. Não, na verdade é até difícil descrever o que houve: o público foi ao verdadeiro delírio urrante como se estivesse em final de campeonato no Maracanã... Foi ótimo para nos lembrar de que a galera sente falta de uma injeção punk/trash de vez em quando e que não é por acaso que José Mojica Marins é o cultuado Zé do Caixão no mundo todo, com moral. Certa vez tivemos a ideia de fazer uma sessão chamada simplesmente de Foda-se. Na hora, todo mundo vibrou com a ideia, mas não era tão simples assim, digamos. Embora nunca tivéssemos sofrido censura, a Lira de Ouro era um espaço cultural plural, onde frequentava, além dos malu141


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cos, um público mais devagar, como bailes da terceira idade e oficinas de música para crianças. Mas Foda-se era uma ideia muito forte e tinha que virar uma sessão que captasse esse sentimento fundamental para a espécie humana, que de fato faz a diferença entre a barbárie e a possibilidade de convivência mútua. Quando começamos a divulgar a sessão, a galera viajou completamente na onda e muita gente ficou com aquela impressão de que esses doidos eram capazes de qualquer coisa mesmo. A sessão foi também muito cheia e, a cada frase dita no microfone, a cada filme exibido, a cada cerveja pedida no bar, o público berrava de forma catártica: “FOOOOODA-SE!” Foi uma noite de descarrego total. Tem a primeira sessão de cada ano que é absolutamente carnavalesca há muito tempo, com um já tradicional baile à fantasia, sempre na quarta-feira antes do Carnaval. É sempre uma sessão especial porque a galera vai mesmo com a energia orgástica à toda, e sempre é um arrasa quarteirão. Por conta dela criamos um bloco, o FilmaEuAí, que não sai nem se concentra, mas vem criando um repertório de marchinhas que agradam bastante, de autoria da própria galera do grupo. Abrindo os poros da alma para entender a energia do Carnaval é possível captar muito do que move o Mate em sua veia rock 'n’ roll macumbística.

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Abertura de sessão, com tradicional chamada aos diretores presentes para se apresentarem, em 2010. Crédito: Carola Oliveira

Sessão Catapulta!, em 2010. Crédito: Carola Oliveira

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Trecho do programa Abertura 2006

Momo, Macunaíma, Arte, Cinema: a gente sofre, mas sacaneia! O Carnaval é, paradoxalmente, coisa séria. É mais que o baticum das baterias de escola de samba do grupo especial do Rio. É uma energia atávica e avassaladora. Ainda que tentem controlar o Carnaval, formatá-lo, domesticá-lo, vendê-lo como commodities, algo incontrolável se dá nos quatro dias de folia e essa é que é a parada. É o frevo do Recife, o Simpatia, o Cacique, a toré, os chorões, Rio 40 Graus, o Ilê Ayê, as guitarras do AC/DC e dos Stones, a força dos tambores possantes dos maracatus, as macumbas de todos os gêneros, os batuques que ecoam desde a caverna, os momentos de deleite nas savanas africanas... Algo indizível que sempre escapa aos controles, desde tempos imemoriais...

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E ficamos na esperança de que o Cinema continue bebendo dessa rica fonte e aproveitando ao máximo esse exemplo de experiências de insubordinação. Que cada vez mais filmes saiam por aí vestidos de mulher, eternos pierrôs procurando suas colombinas, exorcizando o dia a dia estafante. Bush andando ao lado de Bin Laden, mandando os Nayas da vida pro lugar onde merecem. Vivendo amores momescos à flor da pele. Que o Cinema sempre possa trazer essa veia pulsante da transgressão. Esse é um dos sentimentos que move o Mate. Que vai muito além do oba-oba estéril, mas sim da possibilidade, ainda que por breves momentos, de escapar dessa Matrix absolutizadora e sufocante em que vivemos. Que a nossa alegria seja uma banana e um foda-se contra a tirania e a opressão. O Mate Com Angu sente prazer em recebê-lo nesta noite de Cinema e gandaia carnavalesca. Entre nesse embalo e seja feliz. [Fevereiro de 2006]

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Apresentação circense da dupla Los Tchatchos, pós-sessão, em julho de 2010. Crédito: Noélia Albuquerque


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E teve uma sessão específica que vale a pena mencionar com mais detalhes porque ali de fato ficou patente que essa história de energia, terreiro e coisa tal tem fundamento, e passamos a ficar mais cuidadosos. Seis de nós estávamos trabalhando em Cabo Frio, morando durante cinco meses em uma casa, em clima de imersão total. Um dia frio, uma segunda-feira, Mazza mandou a letra que estava com um filme muito especial e queria que assistíssemos juntos. Contou a história da criação do roteiro, que era sobre a vida do baterista Jahir Soares, as dificuldades e incríveis coincidências na produção do filme, na montagem, na vibe do diretor e agora amigo na Escola de Cinema Darcy Ribeiro, e queria muito nossa opinião. Lá pela meia-noite, apesar de exaustos, fomos assistir ao filme juntos: O Som e O Resto, de André Lavaquial. Após os vinte minutos de duração, tivemos uma comoção, uma catarse coletiva, um misto de aperto no peito com um sentimento de “É isso!”. Mesmo tendo que acordar cedo no dia seguinte, tivemos que sair para pegar um ar, talvez tentar achar uma cerveja em meio às ruas largas e vazias do Braga, em Cabo Frio. O filme mexeu muito, e não é à toa que foi um dos curtas nacionais que correu o mundo alguns anos depois. Decidimos lançar o filme no Mate. Falamos com o restante do grupo via internet e houve uma confiança; falamos com o diretor e ele também achou a ideia ótima, confiava plenamente no Mazza, se empolgou e confirmou presença. Demos o nome da sessão de O Invisível, para reunir filmes que falassem desses contatos com o Incompreensível, essa parada que, independente de religiões e crenças, acontecem. Além de O Som e o Resto, a sessão teria Le Mâitres Fous, do Jean Rouch, e a participação ao vivo do próprio Jahir Soares, sem ninguém saber.

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E aí começam as coisas inusitadas. Saímos de Araruama para o Rio no dia da exibição atrasados, espremidos em um carro com Mazza na direção. Geralmente, pedíamos para ele ir devagar, mas nesse dia ele ia a 150 km/h e rolava um silêncio total no carro. Nisso me vem à mente, do nada, uma história antiga que começo a contar talvez para aliviar a tensão. Há alguns anos, quando a Bia era minha aluna de redação no pré-vestibular popular, ela chega chorando compulsivamente, deprimida, chocada com uma situação de fato muito traumática. Não sei por que me veio de dizer que eu podia ajudá-la a superar isso. Peguei um papelzinho e escrevi uma frase, “Isso também passará”, que é de uma poesia sufi, dos povos do deserto. Pode parecer brega, mas dobrei bem dobrado e pedi que ela se comprometesse em abrir aquele papel somente uma semana depois. Diz ela que uma semana depois, ao abrir e ler a frase, teve um profundo insight e ficou muito grata com o presente. Pois bem, contei essa história para a galera durante a viagem, já contando em chegar em cima da hora da sessão, o que de fato aconteceu. Ao chegar ao Lira de Ouro, antes mesmo de cumprimentar a galera, Bia me puxa e diz que precisa me mostrar algo. Esse algo, mostrado justo nesse dia era inacreditável: ela tinha tatuado no braço a imagem do tal papelzinho, exatamente o bilhete em que escrevi o “Isso também passará” sete anos antes! Ao ver minha letra no braço da amiga, naquele contexto, fiquei absolutamente chapado. Chamamos os mais chegados e tivemos uns minutos de epifania radical. E não terminou por aí a noite. Como mexemos com essa parada de Invisível e tal sem nenhum tipo de preparação, pedido de permissão ou coisa do gênero, a exibição parecia ter sido travada pelo Além... Vários problemas inacreditáveis com luz, com mídias e com aparelho de DVD, que não lia nada de uma hora para outra... E o público parecia solidário com nosso desespero e acompanhava curioso a sucessão de problemas, a tensão, assistindo nossa mobilização apaixonada para que a coisa acontecesse.

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Só mesmo na hora do último filme da noite, que também tinha travado, o esperado O Som e o Resto, e após pedirmos humildemente para que a sessão prosseguisse é que tudo passou a andar direito. O filme, como imaginávamos, foi recebido com euforia; e com o que o público não contava é que a cena final, um orgástico set de bateria do Jahir, seria emendado com o próprio entrando ao vivo, ainda com a luz apagada, tocando na bateria armada atrás do telão, com toda a fúria e tesão que ele costuma despertar com as baquetas na mão. Foram quase trinta minutos de som acompanhado por urros viscerais do público, que compartilhou com a gente uma noite incrivelmente mágica.

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Público na sessão 5 Anos Bicando Canelas, em 2007. Crédito: Acervo Mate com Angu

Público na sessão Foda-se, em 2005. Crédito: Acervo Mate com Angu

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O mca Desde o comecinho de 2004 temos um fórum interno por e-mail, o mca, onde circula boa parte do que é pensado e discutido entre todos, na tentativa de dar conta de costurar os muitos papos paralelos que acontecem ao vivo. Pelo mca já passaram mais de cinquenta pessoas envolvidas direta ou indiretamente na experiência do Mate com o audiovisual. Há momentos em que a mistura de assuntos sobre produção, curadoria e coisas "objetivas" vem completamente embaralhadas com opiniões polêmicas, poesias, convites para eventos, textos caóticos, videoarte, microcontos, letras de músicas, sugestões de Youtubes, esporros mútuos e muito barraco virtual... O que é natural em um grupo tão diverso e sem diretorias. Mas, mesmo nesse caos, o mca é um grande adianto quando o assunto é focado em tarefas objetivas, quando, por exemplo, se está em produção de algum filme. Nos últimos anos, as planilhas e os serviços de compartilhamento online têm quebrado um galhão e agilizado alguns processos que por vezes não tinham a rapidez necessária. E ainda assim a porradaria corre solta e é sempre muito rico e divertido acompanhar os e-mails que chegam. Se bem que tem épocas que o ritmo fica frenético e de difícil acompanhamento. Separei fragmentos de um tópico do mca de 2007, intitulado Next Próxima Sessão, postado justamente em um momento de grandes questionamentos internos do grupo sobre sua real natureza, a poucos dias de uma sessão regular, na 152


correria total. Dá para ter uma ideia sobre algumas formas como as sessões são pensadas e viram realidade; e como as opiniões são postas em debate franco e rendem...

Igor Barradas cinebarradas@gmail.com para mca 17/09/07 E aí galera, qual será a próxima sessão???

Fabíola Trinca trincaster@gmail.com para mca 17/09/07 não sei... sugestões: opção 01 como essa história do Renan Calheiros não desceu goela abaixo de ninguém, acho que a gente podia fazer uma sessão voltada pra política, filmes que flagrem ou tenham ideias "subvertoras" e muito críticas. SESSÃO CHUTA-BALDE! à la descarrego; não sobrar pau de nenhuma barraca 153


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opção 02 Ou então a gente partir pra ideia de fazer uma sessão meio com a cara de tacho que a gente fica com essas barbaridades — cara de tacho! SESSÃO SILÊNCIO, # filmes intimistas, opção 03: pra não perder a linha e manter a energia da sessão botox, deixando todo mundo sentadinho e assistindo a sessão até o fim, com classe Sessão Tinteiro Vídeo poesia e filmes de poetas é isso, beijos

Sabrina Bitencourt sabrinacourt@gmail.com para mca 17/09/07 Tava com o nome "Cinema Mata" na cabeça, Barradas tinha juntado uma sugestão do Thiago e mandado: Cabeça de Nego Podia ser por aí... Mas tmb acho a repercussão da pirataria de Tropa de Elite um tema bacana. Um divisor de águas! Acho que podíamos botar uma lenhazinha na fogueira! Que filmes??? Bjs 154


Igor Barradas cinebarradas@gmail.com para mca17/09/07 Conceitualmente, na minha opinião, "Cabeça de Nego" e "Chuta o Balde" são a mesma sessão, não há diferença. É uma sessão dedicada a filmes de impacto. Minha escolha pelo "Cabeça de Nego" ou "Cabeção de Nego" é por que uma vez quase perdi meus tímpanos por causa de uma dessas bombas, seria uma homenagem. E na verdade, num desses dias de insônia, na região dos lagos, escrevi o texto da sessão, tá 90% pronto. Fora que foi um nome dado por nosso super-herói Venturotti! é isso,,,

Cacau Amaral cacaubaixada@gmail.com para mca 18/09/07 - Tem um clipe do 5ª andar muito legal, que aborda (cultuando) a venda de cds piratas

HB - Mate Com Angu para mca 18/09/07 - acho que tem q ser chuta-balde ou cabeção-de-nego, que são as mesmas, sobretudo pela possibilidade de canalização da canalhização da renan-canalheirização. - meu voto é sessão chuta-balde, com direito a intervenções plásticas sobre o tema. - tem que fechar, decidir até quarta!!!!!!! - tem que haver alguma sacanagem com essa parada da tropa de elite hehehe. - ops, tempo acabando aqui na lan... 155


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Pablo Cunha artitudepablo@yahoo.com.br para mca 19/09/07 Porra!!!! Até que enfim CACETE! Estava esquecendo o que era o Mate que conheci há quase três anos: Arrombador de mentes e portas!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Por quase um ano, o Mate ficou na punheta de experimentalismos e videoarte para agradar um monte de estudantes universitários de arte e de cinema: Foda-se a arte — minha visão de cinema é que através desta merda pode-se mudar alguma coisa — mesmo que não se mude nada! é utopia sangue na veia ideologia — o que me instiga a caminhar. Cabeça de Nego ou chute balde chuta caneta — qualquer coisa que volte a pulsar na veia a essência mateanguense: Vamos passar o longa Tropa de Elite — Vamos passar o Di Vamos passar um pornô ou outra qualquer coisa mais próxima da gente da gente da gente da gente da gente da gente gente da gente gente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente gentegente 156


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ĂŠ isso. Pablo.

Cacau Amaral cacaubaixada@gmail.com para mca 19/09/07 TĂ´ com o dois e o trĂŞs em casa

MĂĄrcio Bertoni marciobertoni@gmail.com para mca 19/09/07 obrigado pablo! 157


O CEROL FININHO DA BAIXADA - Histórias do cineclube Mate Com Angu

Igor Barradas cinebarradas@gmail.com para mca 19/09/07 caraio! pablo explodiu!!!! Cacau, qual a diferença do dois e do três? Pablo, queria passar o filme da invasão da Ancine do noilton, ocê têm? igor

Márcio Bertoni marciobertoni@gmail.com para mca 19/09/07 galera, tô terminando um clipe de uma música do guilherme, ele nem sabe que tô fazendo... é uma música de protesto... é muito boa! o clip tem animação, minha primeira.... enfim, quando terminar vou colocar no youtube e seria legal passar nessa sessão, tem a ver com o global e coisa e tal... enfim, vou terminar e a gente ve qual é... e quando estiver no youtube basta baixar por aí e colocar no dvd! enfim, bjs gringos...

Igor Barradas cinebarradas@gmail.com para mca 19/09/07 PAblo seu e-mail reverbera, O Mate tem que ser somente arrombador de portas? por que não o experimentalismo? e a videoarte? (e nem passamos tantas assim... e +, dois filmes que tiveram forte impacto sobre o público foram experimentais: "TV IS OVER" e "RAPSÓDIA DO ABSURDO" 158


E a sessão idade mídia? A Botox (teve pornô)? duas deste ano que foram bem contestadoras. A sessão de aniversário foi foda!!! concordo que o negócio são as pessoas, temos que tocá-las. Concordo que talvez o Mate tenha caído numa viagem introspectiva. Mas a vida não é assim? não é esse o movimento? Às vezes tocar os outros é difícil. às vezes dançamos com o público como fred astaire. tem a ver com inspiração e expiração, sei lá. sei que é difícil. faço uma autocrítica, que já disse nas reuniões, a curadoria tem falhado um pouco pelo fato de não vermos juntos tantos filmes assim. Pelo menos eu que estou vivendo isolado numa ilha de edição localizado sempre numa nova e estranha cidade. eu, igor, ando meio seco. ideias vêm apenas dos livros loucos que leio. Mas algo está pra gritar. e não é apenas eu. rafa, hb, também estão em campo, mergulhados. isso faz que nossa perspectiva esteja um pouco distanciada, mas não quer dizer que não estejamos pensando o mundo e tentando colocá-lo numa sessão do mate. Mas acho que você pode também indicar filmes que tem que ser exibidos, isso ajudaria bastante. porque você está numa espécie de linha de frente, vendo uns filmes aqui, e outros ali. viva a vida

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Cacau Amaral cacaubaixada@gmail.com para mca 19/09/07 O dois é o "Notícias de uma guerra particular" e o três eu peguei ontem, ainda não assisti. Me disseram que é um conjunto de imagens recolhidas da internet. Tô montando o quarenta e dois. Uma mistura de entre muros e favelas com mulher de amigo. Fabíola Trinca trincaster@gmail.com para mca 19/09/07 Legal que a gente chegou a esse nível. De se autocriticar, de dizer o que pensamos. Discordo de você Pablito, num único ponto. E não estou aqui querendo ser pejorativa e classificando um universitário como uma pessoa autista até porque sou universitária e até porque alguém poderia se ofender, acho que o objetivo não é esse né? Não me sinto dentro do grupo universitário causador de arte e provocador sem causa, não faço cinema e não me importo com isso. Porém, se eu não tivesse chance de poder ARTEAR eu não seria a mesma pessoa a qual me considero hoje. E acredito ter hoje uma perspectiva muito menos intimista pela própria canalização de ideias, gestos e formas antivida, que as expressões artísticas acabam desconstruindo. Acho que o Mate continua sendo e representando A GENTE. Fazemos a curadoria no esforço, fazemos o programa no esforço, convidamos pessoas para se integrarem no esforço, pedimos ônibus no esforço, e assim vamú que vamú, desmistificando e vivendo, sobrevivendo. 160


Também concordo que o que vale são as pessoas, que delas ganhamos ar... Senti isso fortemente quando vi a reação delas quando viram o DESIRELLA,um filme que é muitoooo sutil e o público entendeu o recado. A gente não precisa, seria nível baixaria já, mendigar um olho sequer na tela, sabemos que o próprio filme já faz isso com as pessoas e concordo que temos que tentar sempre nos aproximar delas através do nosso bem comum, a imagem. Agora definitivamente, temo que a arte não mais inspire, enlouqueça, temo isso, até porque se vivermos nos negando, aí acabou a magia! Acho que a autocrítica é tão construtiva que aprendo a cada sessão do Mate. Sempre tem algo novo ou que tinha passado despercebido. Sem a menor nostalgia, vou aprendendo. Antes do Mate eu realmente não pensava que existiria a ideia de se viver da arte e pela arte, justamente porque é colocando minhas ideias na roda, ou até mesmo no silêncio, é quando o ouvido escuta mais e se aprende mais. Se eu tenho uma autocrítica pra fazer é que merecemos nos encontrar mais, ver mais e mais filmes, ter momentos de troca, que valem pracaralho. E se eu colocar uma reflexão, tenho muito que ver ainda sendo na frente da tela ou até atrás dela, mas preciso verrrrr muito mais! E tenho certeza, convicção que o mate é um arrombador de mentes e portas. Viva a introspecção para extroversão! Viva a extroversão para a introspecção! fab t.

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HB - Mate Com Angu para mca 19/09/07 esse papo tá ótimo!!!! MAS... (o chato...) mas... GENTE, HOJE É QUARTA!!!!!! Precisamos que alguém BATA O MARTELO sobre o nome da sessão. O espírito já foi definido. Dou meu voto de novo e faço lobby: SESSÃO CHUTA-BALDE! Precisamos também de sugestões de filmes. Autorizações! Saber se terá ônibus. Bertoni, esse clipe fica pronto até quarta? Pablito, vamos passar um cine guandu porrada? amanhã de noite mando umas sugestas de filmes. no fim de semana escrevo também sobre a parte filosófica desta discussão. hbeijos distantes e próximos.

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Sabrina Bitencourt sabrinacourt@gmail.com para mca 19/09/07 Meu voto é: Sessão Chuta Balde. Sugiro "Vocês" do Arthur Omar (do cara atirando pra todo lado)... Descobri que tem cópia em Dvd, vou fazer esse contato! Outra: O Hernani Heffner prometeu ir! NO ÔNIBUS. Vou tentar pensar em outros filmes rápido e mando novas sugestões! Sobre a discussão aqui, escrevo depois com calma mas queria apenas lembrar que as estratégias precisam se intercalar pra evitarem o hábito, o mesmo grito repetido infinitamente cria uma onda costumeira e vazia. MASSSSSSSSSSS o coletivo é dinâmico, e a vontade de cada um é lenha nessa fogueira! PABLO, seu e-mail reverbera, concordo com Barradas, chega mais, vamos montar a sessão! Contagiada! Abraço apertado, Sabrina correndocomvcsnocoração.

Igor Barradas cinebarradas@gmail.com para mca 20/09/07 voto na Sessão Cabeça de Nego - Cinema Mata. POOOXA, fiz um texto que esta praticamente pronto. seria um desperdício.... igor 163


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André Oliveira andremate@gmail.com para mca 20/09/07 Voto com o Igor....rs

Fabíola Trinca trincaster@gmail.com para mca 20/09/07 Sessão CHUTA O BALDE na cabeça!! Indico um filme que acho do caralho, e tem um pouco a ver com o filme do Omar que a Sabrina sugeriu, só não lembrooo se o Mate já exibiu (creio que não) lá vai: Sete Minutos, de Cavi Borges, Júlio Pecly e Paulo Silva nada mais nada menos que um plano sequência que mostra o acerto de contas entre dois traficantes. Falo com o Cavi e arrumo a cópia! tranks!

Recado pro Pablito: Você tem que ver ou se vc já viu, acho que tem tudo a ver com nossa discussão acima. Usam o cinema como subterfúgio pra falar do cinema de arte, lá vai: Novela Vaga, de Dado Amaral e Beto Valente (Comédia cínica sobre a arte de se fazer filmes de arte) beijus fab

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Sabrina Bitencourt sabrinacourt@gmail.com para mca 20/09/07 Meninos! O HB disse num e-mail anterior que Chuta Balde e Cabeça de Nego era a mesma sessão! Estou trabalhando com essa idéia! Mas se pelo nome, gostaria de usar Cinema Mata! Então pra mim, pode ser qq um, decidam aí! Barradas envia o texto pra afinarmos a idéia e chegarmos numa curadoria bacana!

Fabíola Trinca trincaster@gmail.com para mca 20/09/07 tô com a sá! Igor Barradas cinebarradas@gmail.com para mca 21/09/07 Sete minutos já passamos. Então será chuta o balde. Nunca houve uma sessão tão atrasada. é quarta que vem e não temos nada. nenhum filme sequer. Fabíola, precisamos que você converse aí na w/set e escolha pelo menos uns dois filmes. Carta branca nega. pense no conceito e escolha os filmes. teremos dj? não podemos passar novela vaga? mandei e-mail pro noilton pra ver se consigo dois filmes e nada!!! 165


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Fabíola Trinca trincaster@gmail.com para mca 21/09/07 bom, tentando manter a calma, vou falar com guilherme... Vou enviar e-mail pra Dado Amaral agorinha e vou pensando... beijus

Fabíola Trinca trincaster@gmail.com para mca 21/09/07 segue em anexo um pequeno esboço daquilo que ardeu meu coração pra sessão nesse instante...

HB - Mate Com Angu para mca 23/09/07 igor, eu já tava contando com o teu texto pra sessão cabeção de nego... em todo o caso já fiz o programa quase todo, usando o chuta-balde. faltam basicamente os filmes. amanhã de manha mando o texto pra vcs. quem puder, não deixe de ir na fgv, assistir a defesa da tese da zezé sobre o mate.

Igor Barradas cinebarradas@gmail.com para mca 24/09/07 A gente pode passar "mulher de Amigo" 166


HB - Mate Com Angu para mca 25/09/07 duas sugestões molinhas, a ver com a sessão e de "prévia" autorização fácil: um filme do nilson primitivo e o isto não é um título, do caselli.

Igor Barradas cinebarradas@gmail.com para mca 25/09/07 Fabíola, vc pode ver com o caselli a possibilidade de exibir "Isto não é um título?

Fabíola Trinca trincaster@gmail.com para mca 25/09/07 sim! há todas as possibilidades! vocês têm a cópia?

Fabíola Trinca trincaster@gmail.com para mca 25/09/07 tá na mão: Isto não é um título de Christian Caselli. 6min Novela Vaga de Dado Amaral. 8min beijus fab

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Lá no Fim do Mundo... A parada era filmar a cidade. FAZER FILMES. Discutir imagem e estereótipo; enquadrar, fotografar. FAZER FILMES. Como a gente dizia no comecinho do cineclube, pretensiosamente, incluir a Baixada no imaginário nacional. Essa parada. FAZER FILMES. E isso incluía a necessidade de manifestos que não fossem apenas os escritos em papel. Daí o Igor chegou com uma trama para um filme-manifesto sobre Caxias, o Lá no Fim do Mundo..., no qual a ideia era filmar a cidade em sua subjetividade, uma “investigação cinematográfica sobre o caxiense”. Segundo ele, a ideia veio de uma aula do professor José Avellar, na Escola Darcy Ribeiro, quando ele mostrou um filme do Jean Rouch em que se perguntava se as pessoas eram felizes em Paris.

Sinopse do Lá no Fim do Mundo...:

“A jornada de um homem rumo. Sobre CPF e Capa Preta. Um filme catástrofe épico em curta-metragem. Um documentário-mentira. Dallas City na veia.Uma singela demonização das grandes corporações de comunicação deste país.”

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Tendo a casinha da Funerária como base, saímos, uma parte grande do grupo, num sábado de manhã às vésperas do Natal, em direção ao calçadão de Caxias. Para quem não conhece, pense em um formigueiro, por aí. Como na primeira parte do roteiro a ideia era catar as pessoas aleatoriamente, foi o que fizemos, e o primeiro senhor que paramos era simplesmente um cara que tinha trabalhado com cinema a vida toda, segundo ele na Pan Filmes do Brasil, na Herbert Richers, e ele fez um discurso eloquente sobre viver de audiovisual no país... E assim foi o tom do leque de figuras que surgiram e foram fixadas nas fitas Hi8 do filme. Incrível como o filme foi exibido em vários lugares do país, em festivais, em oficinas de cinema, em mostras, e sempre causou identificação na plateia; é como se nossa percepção de que Caxias é um lugar mítico, simbólico, fosse confirmada a cada exibição. Quando em 2010 estivemos de novo na periferia de Paris, em uma vivência com jovens de Aubervilliers, eles tinham acabado de fazer um filme inspirado em Lá no Fim do Mundo..., que eles tinham assistido em 2008, quando Cacau e Fabíola estiveram por lá. Muitas pessoas fizeram comentários parecidos de que o filme dá uma vontade danada de fazer cinema no dia seguinte. E, afinal, todo lugar do mundo tem um calçadão de Caxias. FAZER FILMES. 169


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Fight the Power!

Desde o princípio o Mate também é um questionamento e uma brincadeira sobre o poder, e talvez daí tenha vindo a busca desejosa de achar outros caminhos para se produzir, distribuir e discutir cultura. E nessa brincadeira foram surgindo ideias loucas de tortadas na cara dos instrumentos de poder constituídos e por vezes naturalizados no cotidiano. Disso veio a ideia, por exemplo, de emitir títulos nobiliárquicos, já que a cidade tem nome de Duque... Em uma sessão superbadalada, a noite do primeiro prêmio Angu de Ouro, conferimos o primeiro título de Visconde das Quebradas ao ator, cineasta, carnavalesco, e criador de caso Godot Quincas, em uma cerimônia levada bastante a sério pela plateia presente. Também já fizemos baile junino com a presença de um padre que casava quem quisesse casar, com direito a foto e assinatura de um documento oficial de comprovação. Muita gente guarda essa certidão até hoje com carinho.

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Na esteira dos papos sobre apropriação da mídia, a mídia somos nós e coisa e tal, também aconteceu que o Bertoni trouxe a ideia de criar um programa de televisão, a Angu TV, e foi um sucesso. Exemplo clássico de uma “facção” autônoma dentro do Mate, ele pegou uma câmera emprestada do Cacau, chamou dois amigos, o Dutra e o Guilherme, e começaram a fazer crônicas audiovisuais sobre Caxias, sempre com um viés altamente crítico. Mesmo com as polêmicas internas sobre conteúdo e formato, os episódios dessa fase da Angu TV foram exibidas antes das sessões e hoje ainda são bastante vistos pela internet. Além disso, fizeram parte de mostras paralelas em festivais importantes, como a Mostra do Filme Livre, que rola no Rio de Janeiro. Partindo da experiência da Angu TV, Bertoni começou suas pesquisas sobre transmissão via web, nessa mesma perspectiva de construção de mídias contra-hegemônicas; e o streaming passou a ser parte do repertório de ações do cineclube. Com esse aporte, as sessões do Mate ganharam um público extra, de diversas partes do país, e até de outros, que participam bastante das transmissões via internet.

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Power of the Angu E teve essa ideia do troféu Angu de Ouro, um prêmio que é dado anualmente aos filmes que mais fizeram cosquinha na alma do público, sendo que o troféu principal é escolhido por voto popular numa cerimônia com pompa e circunstâncias, em geral uma papagaiada só. Aliás, o prêmio surgiu da constatação de que certos filmes faziam o público literalmente urrar, então pensamos que reunir uma seleção desses curtas em uma noite no final do ano poderia dar uma onda muito forte, o que de fato aconteceu. Com o passar dos anos, a própria galera que já é cativa nas sessões comenta quando assiste a algum filme pancada: “Esse aí é angu de ouro!” Lógico que tem uma seleção, e com ela a pancadaria rola solta; já falei que o grupo não é chegado a regime de votação... O processo caótico de escolha dos filmes é sempre diferente e divertido, deixando, invariavelmente, alguém chateado. E, além do prêmio principal, o do público, um dos troféus é sempre a escolha da curadoria, que é a tentativa de dar algum recado despertado pelo filme que escolhemos. Isso é certo de dar confusão, embora já tenhamos tido muitos consensos fáceis. Em 2008, decidimos a escolha do grupo em uma mesa de bar na Cinelândia em um processo que ilustra várias decisões que já tomamos. Havia uma dúvida entre dois filmes: 172


Sal Grosso, de André Amparo e Ana Cristina Murta, um curtinha muito bem sacado e que fez sucesso quando exibido; e Baletéia e a Boneca Misteriosa, uma animação singela e heavy, com um roteiro e uma narração irresistíveis, feita por alunos do Núcleo de Artes Alencastro Guimarães. Como não havia consenso, escrevemos o nome de cada um em um pacotinho de sal e o garçom que nos atendia escolheu. Deu Sal Grosso, mas no dia da exibição, diante da reação do público, decidimos na boa trocar a escolha... O troféu Angu de Ouro é feito a partir de um prato de angu, desses de metal, que é dado para um artista desenvolver o que quiser. Detalhe: compramos os pratos novos e trocamos por usados nas barracas que funcionam nas madrugas caxienses, carregando cada prato de toda a energia de algum trabalhador ou algum boêmio bagaceiro da cidade. Nos primeiros anos, os parceiros do Imaginário Periférico assumiram a tarefa de dar seus toques ao troféu; Raimundo Rodriguez, Jorge Duarte e Deneir de Souza foram os primeiros que deram vida para os pratos de angu com as partículas da noite caxiense. O artista plástico Marco Bomfim, um dos malucos mais queridos de Caxias, e o Umbigo Group, um dos outros coletivos que o Pablo Pablo é integrante, também já deixaram suas marcas nos prêmios.

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Daí a ideia de um prêmio: o prêmio Angu de Ouro. Menos pela competição em si e mais pela afirmação. Pela convicção sincera de que somos nós os responsáveis pelas mudanças que queremos, pelo Cinema que queremos, pela Vida que queremos. Um prêmio para celebrar a energia transformadora que pulsa nas veias periféricas do mundo, aglutinando Caxias, Mesquita, Rio de Janeiro, Nova Iguaçu, São João, Realengo, Pasargada, Seattle, Luanda, e por aí vai... Um prêmio pra deixar claro que o audiovisual brasileiro vive um momento rico e alentador: nunca tantas câmeras apontaram tanto paras as mais diversas facetas desse país continental. Um prêmio como pretexto pra celebração. [Trecho da primeira sessão Angu de Ouro, novembro de 2005]

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Uma boa lembrança do primeiro prêmio Angu de Ouro foi quando Matias Maxx foi receber o troféu e começou a contar emocionado no microfone que seu filme nunca tinha sido aceito em nenhum festival e para ele aquilo era um prêmio de fato especial. Matias é multitalento, editor, e ativista de ponta pela legalização da Cannabis. O filme, Dominação Bizarra, dirigido por ele e pelo figuraça Zé Colmeia, levou o público do Mate ao delírio nas duas vezes em que foi exibido e nos ajudou a entender muito da vibe roqueira da galera frequentadora. De quebra, o discurso de Matias nesse dia também levantou sem querer a questão séria de que havia algo de errado no mundo dos festivais... Vários filmes que levantavam a galera, ovacionados, passaram pelo mesmo problema de terem sido ignorados pelos festivais país afora, principalmente nos festivais mais descolados — e suscetíveis aos efeitos dos julgamentos das “tchurmas” que o Cinema costuma criar. Nesses dez anos o Mate sempre esteve se perguntando: por que tantos filmes que nos tiravam da cadeira não passavam em festivais? Curiosamente, vários festivais têm buscado se reinventar, se colocando novos desafios relacionados à curadoria, para o bem do audiovisual brasileiro.

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Prêmio Angu de Ouro 2010, votação popular. Crédito: Samitri Bará

Troféu Angu de Ouro 2011. Crédito: Fharah Mahrmud


Amenduim, Dutra, Godot, Bertoni e Pablo. Entrega do troféu Angu de Ouro 2011 à equipe do filme O Vento Forte do Levante, de Rodrigo Dutra. Crédito: Fharah Mahrmud

Sabrina, Samitri, Godot e Bia na entrega do Troféu Angu de Ouro 2011. Crédito: Fharah Mahrmud


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Fluxos Uma coisa fatal para quem é da Baixada e curte eventos culturais e artísticos é conviver desde pequenos com a necessidade de estar sempre na cidade do Rio de Janeiro em busca de opções de qualidade e/ou diversidade. Esse fluxo é ainda mais cruel em Caxias, principalmente depois da Linha Vermelha, por onde em 25 minutos se chega à cidade maravilhosa. E aí é aquilo: se você pintar em qualquer evento maneiro tem sempre a galera da Baixada que normalmente não se vê junta na sua cidade. Ultimamente isso tem mudado um pouco, por conta do aumento de eventos espalhados pela região, e é bom sentir isso. Mas esse fluxo, nessa direção e nesse sentido, é certo. Curiosamente, várias pessoas que foram ícones em suas épocas criaram artifícios para tentar reverter um pouco esse quadro. A própria Armanda Álvaro Alberto chegou a organizar verdadeiras excursões com bondes da classe média carioca para que a galera visse, meio na marra, que havia todo um rico universo cultural a ser conhecido e entendido. O poeta Solano Trindade também era outro que conseguia arrastar vários intelectuais e artistas para Caxias nos anos em que morou aqui. Além dos múltiplos talentos de Solano, a galera chegava na onda das articulações com a célula do Partidão local, que tinha em suas hostes pessoas do calibre do sambista Hélio Cabral, fundador e presidente da lendária Escola de Samba Cartolinhas de Caxias. Muitos desses 178


visitantes acabavam levando a descoberta de que Caxias era muito mais do que a imagem que se tinha de violência e abandono. O terreiro de Joãozinho da Gomeia, por exemplo, recebia gente de todo o país, incluindo autoridades dos altos escalões políticos, embaixadores, artistas do rádio, socialites; e dizem que até o próprio Getúlio Vargas volta e meia aparecia na roça do polêmico babalorixá. Nos anos 1990, na época da “eleição” de Belford Roxo como a cidade mais violenta do mundo, o Centro Cultural Donana levava centenas de pessoas da Zona Sul e Zona Norte do Rio para lá, para curtir aquele reggae todo especial que estava sendo vitaminado naquele momento e naquele local. Os exemplos são vários e refletem a sacada de que apresentar de verdade a sua quebrada também implica às vezes em estratégias de deslocamento físico. Pense no mundo sem internet e dominado pelos grandes grupos de comunicação; era de fato quase impossível comunicar sua realidade sem de vez em quando lançar mão do ver in loco pra saber qualé. Recentemente, o Movimento Enraizados, de Nova Iguaçu, começou um animado programa de auditório no Humaitá, o Mixtureba, levando os artistas da Baixada e região para mostrar suas verdades no coração da Zona Sul carioca, interagindo com gente de todo o Rio, esgarçando ainda mais essa parada de inclusão cultural. Na marra. 179


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Comentei isso aqui porque tem a ver com um assunto altamente polêmico nas internas do grupo e que começou meio sem querer: o ônibus do Mate. Durante mais de um ano, disponibilizávamos um ônibus na rua do Passeio, no Centro, com ida e volta para Caxias, na maioria das vezes de graça. Fui algumas vezes nele e posso dizer que era muito, muito divertido... Mas a polêmica era sempre levantada pelos usuários: por que que nós vamos aos eventos do Rio, com os perrengues de deslocamento, e vocês botam um ônibus de boa para a classe média se divertir em Caxias? Por que não botam um ônibus saindo de Nova Iguaçu e Belford Roxo também? Putz, ouvimos isso zilhões de vezes... Mas a parada tinha um fundamento inicial. Logo no início das exibições regulares, ainda no Instituto Histórico, tínhamos encampado um carro para buscar os diretores, como já contei. E reforço que sempre achamos isso um trabalho maneiro, respeitoso com os realizadores. Uma pena que não tínhamos dinheiro e nem estávamos numa de nos organizar para isso, mas por nós isso seria uma regra sempre: se alguém da equipe do filme pudesse ir, seria bem tratado, se possível com transporte, e sempre com cafuné garantido. Some essa prática ao discurso que também deixávamos claro: tenha uma experiência diferente passando seu filme no Mate; por incrível que pareça, a maioria dos filmes produzidos pelas galeras circulava apenas nos mesmos meios, festivais, mostras segmentadas, ambientes de classe média total — isso quando eram exibidos. E o nosso plá era verdade: o público geralmente intervém e interage mesmo com o filme na tela e com o diretor no pós-sessão. A soma desses fatores começou a criar uma opinião de que era muito bom exibir seu filme no Mate Com Angu, e essa fama fez com que mantivéssemos o esforço de trazer os realizadores nas sessões. Acontece que a maioria de nós trabalha na cidade do Rio e nos dias de sessão, quartas-feiras à noite, também ficamos muitas vezes no perrengue para chegar em Caxias. Daí 180


aconteceu de ter uma sessão festiva em que vários diretores eram do ou estavam no Rio e confirmaram presença; além de uma banda e seus instrumentos e um DJ e seu equipamento. Corremos atrás de uma van e alguém levantou a lebre: por que não arranjamos logo um ônibus e aproveitamos para levar nosso povo também? Sim, fazia muito sentido. Daí nasceu o busão, que durante os primeiros meses foi conseguido com a Secretaria de Cultura de Caxias. Logo na segunda vez que rolou o ônibus aconteceu o fato louco de que um bando de punks da Lapa descobriu a parada e começou a marcar presença todo mês, e era muito doido e divertido, mesmo quando havia reclamações por parte dos motoristas... Mantivemos o ônibus enquanto deu, curtindo a onda dessa galera que tocava o horror e que acabou virando fã do cineclube. Mas a polêmica do ônibus continuava e, por fim, decidimos acabar com ele. Realmente, chega de moleza. Hoje em dia cada sessão é uma produção diferente e rola muito de uma galera fretar uma van, no ratatá, ou mesmo se encontrar na Central para ir juntos. Ganhei o mês no dia em que apareceu na sessão uma menina, classe média clássica, vindo de Caxias-Central, e curtindo a noite de boa, sem preconceito, sem fetichismo, na dela, coração aberto. Ainda foi tomar uma saideira no “Centro Gastronômico da Madrugada” e comeu um churrasquinho do Douglas. Essa coisa de transporte público é um dos grandes problemas de quem mora em periferia, e na Baixada isso é cruel, frustrante mesmo. Além do serviço péssimo, dos monopólios, das caixinhas que compram políticos e outras mazelas, a parada simplesmente não dá conta; à noite não dá para contar com transporte. Na última década, vans, kombis e mototáxis cresceram muito nesse vácuo de prestação de serviço — afinal, transporte também é comunicação e pos181


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sibilidade de crescimento interior, de troca, de alargamento de horizontes. Apesar dessa limitante, o crescimento dos movimentos culturais na Baixada nos últimos anos também se deveu às trocas presenciais que aconteceram e acontecem na região. Uma coisa engraçada e ilustrativa foi quando o Mate decidiu fazer uma reunião mensal fixa nos primeiros sábados do mês. Só depois nos demos conta que é justamente no dia em que acontece a exibição do Buraco do Getúlio, cineclube de Nova Iguaçu que é muito querido também. Um dia resolvemos simplesmente fazer a reunião em Nova Iguaçu, mais cedo e curtir a noite lá no Buraco. Fizemos um racha e alugamos uma kombi de um figuraça que conhecemos na noite caxiense, o Nhonho, e foi praticamente um curta-metragem surreal, hilário e baseado em fatos reais. Às vezes nos vem a ideia de ter um Mate-móvel desses para atacar pelas quebradas e arrombar as festas e eventos alheios, à la Wagner José e Seu Bando, uma banda carioca que viaja pelo país numa kombi toda transada e que é um evento por si só. Circular é preciso. Ultimamente é lindo de ver na madrugada caxiense pós-sessão a galera parando kombis e negociando com os motoristas para fazer lotada para o Rio, na maior alegria. Porém, muita gente se incomoda muito com esse perfil trans-cidade do Mate. O fato, por exemplo, de muita gente da cidade do Rio ir ao evento... Há críticas pesadas até. Mas seguimos achando que é legal ter um evento que pessoas de outras cidades sintam vontade de ir a Caxias para curtir. Mais pontes, menos muros; fluxos, amigo, fluxos...

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Programa da sessĂŁo Foda-se, em 2005. CrĂŠdito: Arte de Thiago Venturotti


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Outras praias Em 2007 surgiu uma brecha de trabalho muito interessante na produtora em que o Igor estava atuando: fazer oficinas de cinema para ajudar nos diagnósticos socioambientais em regiões impactadas por grandes empreendimentos. Na responsa de montar equipe para a tarefa, Igor acabou colocando quase a metade do Mate para trabalhar no Norte Fluminense, em dez cidades do litoral, dinamizando oficinas de Cinema Ambiental justamente nas cidades onde a indústria do petróleo literalmente bombava. Desse contato, foram feitos vários filmes pela galera dos grupos, e fomos colocados em contato com realidades muito diferentes, mas também muito próximas em relação aos dilemas de ação cultural em regiões onde a cultura não é vista com bons olhos. Em 2009, ainda no contexto de Educação Ambiental, o Mate assina uma oficina de ação cineclubista que percorre essas dez cidades estimulando e dando suporte de criação para cineclubes locais, o que se mostrou uma experiência incrivelmente enriquecedora para todos que viveram o processo. Por conta desse trabalho, ficava evidente que a atuação do Mate como um provocador no campo simbólico, ético e

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estético tinha de fato fundamento. Vários integrantes desses núcleos abraçaram o audiovisual como ferramenta e começaram a intervir em suas cidades a partir disso. Em alguns casos, como o cineclube Tupinambá, em Araruama, nós é que aprendemos muito com a galera. Formado inicialmente por três jovens, Henrique Formigão, Felipe e Hélio, o Tupinambá funciona em uma área rural, terceiro distrito de Araruama, na região dos Lagos, em um bairro que é um dos maiores sítios arqueológicos do país. Os moleques organizavam alguns eventos; a partir da Oficina de 2007, já tinham produzido um documentário sinistro sobre uma pedreira que impactava a comunidade deles, e agora queriam nosso apoio para criar um cineclube atuante na região. Como se o nosso apoio para criação fosse tão necessário assim nesse caso... Os moleques não tinham projetor, daí fizeram um bingo na comunidade e conseguiram comprar um, demonstrando de novo uma incrível força de vontade. Municiamos os caras de um mínimo acervo de curtas e eles começaram a exibir nos cantos mais recônditos e inacreditáveis... Fora que depois do primeiro documentário, produziram outros curtas que também foram bastante exibidos.

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Venturotti fez uma logomarca super especial para eles, que a abraçaram com muito afeto. No dia da estreia oficial do Tupinambá fui lá para o batismo do cineclube e, depois de tudo montado, vi que eles usariam o laptop do Formigão como player. Imagina minha emoção, em um sábado à noite, numa quadra absurdamente lotada, em uma área rural, longe de casa, e vejo, quando o cara liga a máquina, a formiga do Mate na área de trabalho! Emoção pura. E desses anos de trabalho, ficou essa galera parceira do Tupinambá e do Tijolo Cinematográfico, de Araruama; o cineclube Ocaso, de Atafona, em São João da Barra; o Barra Viva, de Barra do Itabapoana; o Apoena, de São Pedro da Aldeia; o Macaba Doce, da galera de Macaé; e mais um monte de gente que se identificou direto com o Mate Com Angu e com quem aprendemos muito até hoje. E, além disso, foi nesse contexto que entraram em nossas vidas Paulinho Mainhard e Manu Coimbra, crias de Cabo Frio e conectados com os levantes astrais que têm rolado pelas quebradas do mundo.

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Montagem. CrĂŠdito: Carola Oliveira


O CEROL FININHO DA BAIXADA - Histórias do cineclube Mate Com Angu

Nunca subestime a terceira idade

Fomos convidados no começo de 2008 a fazer uma sessão regular no Ponto Cine, cinema localizado em Guadalupe, comecinho da Zona Oeste do Rio, que na verdade é um projeto de popularização do audiovisual com um formato que deu muito certo. Fora que é simplesmente o maior exibidor de filmes nacionais do país, com uma sala acolhedora e bem frequentada. A ideia inicial era replicar a sessão regular que acontece em Caxias, e foi uma pena naquele momento estarmos sem pernas para manter mais um espaço de exibição. Mas a primeira sessão foi lendária, sessão Liberdade, próxima ao Carnaval, com direito a um pós-sessão com a banda da Lira de Ouro, direto de Caxias, atacando nas marchinhas e, pela primeira vez, uma sessão servindo angu e mate para a galera.

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A sessão contou com filmes pinçados da Mostra do Filme Livre e mais o filme que Felipe Cataldo acabara de lançar, Trago a Pessoa Amada em Três Dias. Com direito a um mistério sobre como seria o debate que planejamos no final... A sessão estava cheia de idosos e o filme do Cataldo tem na terceira parte trechos de gente nua, fumando um, climão de liberação total. Ficamos curiosos pensando como seria a reação dessa galera da terceira idade e foi muito bom de ver o Cataldo cercado de senhorinhas comentando animadamente sobre o filme, opinando, de boa, revelando significados diversos... Muito quebrador de paradigmas. Sem dúvida, foi o debate mais rico que o diretor teve com o público acerca desse filme. Grande Ponto Cine... Para quem não é do Rio e para quem é do Rio e nunca foi, recomendo muito.

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Texto da Sessão Curtas na Prateleira existe vida além daquele leblon da televisão. (...) o momento é de ação e de apontamentos de caminhos. nunca a produção audiovisual teve tanta expressão e é como uma locomotiva que pegou embalo, disparando desabalada. de passagem uma provocação: viva o digital. viva a desbitolação. 35 mm é maravilhoso, mas o cinema pode ser muito mais, como vem sendo mostrado zombeteiramente em cada canto desse país. paulo apóstolo já pregava o tal do "combater o bom combate" e às vezes parece mesmo que assistimos a uma guerra desleal... e a produção de curta-metragem tem sido a infantaria dessa batalha, a linha de frente que vem, à brancaleone, tocando um ruidoso zaralho pra conquistar espaço, provocar o tal mercado e contagiar novas almas. é no curta que os espaços para a experimentação mais tem se manifestado. alentadoramente nos lembrando dos perigos do processo de encaretação da vida. mostrando que bastam poucos minutos pra traduzir um sentimento do mundo, uma porrada estética, um momento de ternura... 190


e essa tênue ousadia que anda no ar tem sido inspiração e encorajamento pra ir mais além... mesmo emprestado ou comprado fiado, já temos hoje equipamento pra produzir: câmeras de amigos, ilhas de faculdade, som improvisado. já temos um circuito de cineclubes que vem se ampliando; já temos redes virtuais eficientes; já temos mais filmes saindo do mundinho de festivais cabeça. mas talvez esteja chegando a hora dos próximos provocativos passos: invadir as tvs abertas, fazer a reforma agrária, projetar cinema nas praças do país, distribuir os filmes pra geral, exibir curtas nas escolas, recuperar os cinemas de bairros, revogar a lei da gravidade... é muita pressão e o buraco é embaixo, bem embaixo. mas o momento é rico em possibilidades e cheio de esperanças e tentações. oba. saúde e sequela a todos que encarnam essa parada! [Fevereiro de 2006]

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Gente

É engraçada e diz muito sobre o grupo a forma como as pessoas entram no Mate... Fico pensando que talvez tenha a ver com uma espécie de reconhecimento... Isso porque o fato de o grupo ser muito plural e difuso na ação faz com que tenha gente que se aproxima pelos motivos mais variados, mas que acaba ficando somente como apoio, como público ou como parceiro. Tem gente que chega querendo fazer filme e só, alguns querendo só mostrar o seu filme e só, gente querendo agitar a cultura em Caxias, gente que quer tocar, quer produzir eventos juntos, gente que quer apenas estar junto, acompanhar sets e porres... Isso explica que gente tenha entrado e saído, e às vezes voltado. Mas o fazer parte mesmo do Mate acaba sendo esse reconhecimento tribal e um certo entendimento do que vem a ser participar de um grupo caótico como esse. Também pode explicar por que muitas vezes o Mate foi chamado de panela, principalmente por gente que estava no audiovisual, era da região, mas que de fato não se encaixava muito no jeito ponta de faca do grupo em seus encontros e seu modo caótico de se organizar. O mecanismo de entrada no Mate nunca seguiu uma regra fixa, mas não mudou muito. Ou é alguém que frequenta as sessões, manda o papo reto de querer participar e segura 192


a onda do que isso significa; ou é alguém que um de nós indica por algum motivo, em geral conceitual. Alguns exemplos dizem por si só. Marcelo Amenduim frequentava o Mate, era amigo de vários de nós, fez a Oficina que demos no Colégio Guadalajara, e foi chegando, chegando e ficou. André Prestor também conhecia vários de nós dos rocks da vida, começou a fazer umas artes gráficas das sessões e acabou entrando também, mesmo caso do Flávio Maravilha, com os trampos de transporte e som. Um cara que eu encontrava sempre na madrugada e emendávamos papos absolutamente loucos é o Pablo Pablo. Suas ideias eram muito maneiras, mas sentia ele meio deslocado na cidade e um dia o convidei para ir a uma reunião do Mate, e ele acabou ficando. Tadeu, Anne, Fabiane e Buzina já eram bem próximos ao Mate como frequentadores e colaboradores, e a entrada deles no grupo acabou sendo muito natural devido aos vínculos de amizade e afinidade. Através das sessões e das amizades nascidas por meio das redes de relacionamento em comum, as fotógrafas e mais mil coisas Carola e Samitri passaram também a fazer parte do Mate, diferente do Josinaldo Medeiros, que chegou primeiro via filme. Para uma sessão turbinada, Igor sugeriu 193


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um filme de um “moleque muito bom”, e realmente ficamos impressionados com Josi, em como era tão jovem e já tão rodado em audiovisual. Aliás, através do Josi o Mate entrou firme em várias ações com a molecada formada nas oficinas do Cinemaneiro, experiência que trouxe uma galera fundamental para a cena no Rio, olhares atentos e sensíveis na visão de dentro da favela. Também vale dizer que uma coisa legal de um grupo solto é que todo mundo é Mate mais alguma coisa, sem grilos, de boa, e isso permitiu parcerias e pontes muito ricas nesses anos de atuação. Com as sessões cada vez mais loucas e incendiárias, uma figura que também entrou para o Mate trazendo munição pesada foi a Sabrina. Estudante da PUC, ela começou a frequentar as sessões através da dica do Xavi, que também estudava lá, indo pela primeira vez na sessão Cinemamor. Em uma das primeiras vezes que fomos convidados a falar na PUC apresentando o Mate, Sabrina estava lá e sacou na hora que nosso caô tinha a ver com algo mais do que somente exibir e produzir filmes. Até que um dia nos encontramos no centro do Rio e tivemos um primeiro papo mais longo. Vocês já leram o TAZ? Pergunta fulminante que ia levar o Mate para outro nível de entendimento sobre nosso incômodo em não encontrar uma forma diferente de organização que não uma ONG de audiovisual. Daí, foi Hakim Bey na veia, Sem Logo, da Naomi Klein, e vários títulos da coleção Baderna. Muita coisa a gente já conhecia (Xavi, por exemplo, conhecia bem), mas foi com a entrada da Sabrina, gaúcha, cidadã do mundo, que esse lado do ativismo ficou mais autoconsciente.

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SessĂŁo Tem Gente Com Fome, em julho de 2011, no teatro Raul Cortez. CrĂŠdito: Acervo Mate com Angu


Grupo na sessão 5 Anos Bicando Canelas, em 2007. Crédito: Acervo Mate com Angu

Divulgação da sessão ZAT, em 2008. Crédito: Acervo Mate com Angu


Making of de Lá no Fim do Mundo..., em janeiro de 2006. Crédito: Acervo Mate com Angu

Oficina de Cinema Livre no Colégio Guadalajara, em 2009. Crédito: Acervo Mate com Angu


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Sessão 5 anos Bicando Canelas (...) Que a televisão precisa de maior presença negra, que a tecnologia digital possibilita que novas visões de mundo apareçam na tela, que o monopólio dos meios de comunicação precisa ser revisto, que é preciso incluir a periferia — todo esse discurso agora é como um a priori. Já há massa crítica, grupos e articuladores que vão tremular essas bandeiras e fazer a pressão necessária pra que essas mudanças aconteçam. Mas é com tesão renovado que o Mate chega a esse momento especial propondo ir além. O momento caótico que vivemos representa o terreno pantanoso típico dos momentos de transformação, onde o risco do próximo passo é um desafio perigoso e onde tendemos a repetir as fórmulas conhecidas. O Novo dá medo e é difícil andar pelo Desconhecido. Mas é necessário

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arriscar. É preciso avançar no território da Estética. Estética est ética. Com a doçura que nos é peculiar, mas com o cerol fininho e necessário, à moda cruel da Baixada, transando com o Novo Cinema Ainda Não Rotulado Brasileiro. As pistas estão aí... Para onde apontarão as velas do barco corsário do Mate Com Angu não se sabe ao certo. Mas a certeza é o ataque, a provocação, as cutucadas, as contribuições à caotização da cultura, à criação de caso e às rebeliões anarco-solidárias madrugadais. O Mate brinda hoje sua vocação pra rebelião, amalgamando sonhos, fazendo pessoas se encontrarem, despertando paixões, vendo nascer projetos concebidos ao sabor do tesão do encontro, criando zonas temporárias de Utopia... (...) [Junho de 2007] 199


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Equipamento Em um país com uma brutal concentração de renda como é o nosso, equipamentos ainda fazem grande falta em muitas regiões onde o dinheiro é escasso e limitam processos que poderiam avançar muito. A política cultural da gestão Lula acertou muito com a distribuição de kits multimídia para os Pontos de Cultura espalhados pelo país, mas ainda ficou longe de conseguir equipar de verdade esse grande espectro dos fazedores de cultura, fazer chegar na ponta de fato, sendo na verdade o começo de um processo que deveria ser aprofundado. Digo isso porque, andando pelo país, mesmo aqui no Norte Fluminense, nos deparamos com vários grupos que ainda suam a camisa para conseguir emprestada uma câmera ou um projetor, por exemplo. Quando começamos a fazer sessões noturnas tivemos que tirar do próprio bolso, modestíssimo bolso, o dinheiro para alugar equipamento de projeção. Nas vezes que tivemos a parceria com a Cavídeo ainda era mais fácil, saía menos chorado do bolso, mas quando isso não pôde mais rolar, ficamos com grande dificuldade de tocar o barco. Quem tinha projetor na cidade não podia nos emprestar ou não queria nos emprestar sem a velha prática dos favores políticos já conhecidos.

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Quando começamos a exibir na Lira a coisa foi ficando difícil de arcar, mas aí conseguimos dois apoios, de um curso de inglês e de uma escola particular, totalizando 200 pratas para aluguel de telão, projetor e impressão de filipetas. Era apertado, mas íamos levando. Até que um dia recebo um e-mail misterioso. Um cara que tinha uma produtora, acompanhava o Mate, via matérias na imprensa e nosso informativo, e queria nos conhecer pessoalmente. Depois de um segundo contato, marcamos um dia de aparecer para conversar com o figura; quem sabe ele não poderia nos apoiar com um projetor? Formamos um bonde e rumamos para a produtora do sujeito. Ficamos impressionados com a quantidade de equipamentos que tinha lá; câmeras, acessórios de ponta, gruas, steady-cams, estúdios e projetores de todos os tipos possíveis, tudo dentro de um prédio rigorosamente decorado. O cara realmente acompanhava nosso trabalho; assistimos aos filmes juntos, trocamos ideias e na hora da despedida ele se antecipou oferecendo qualquer equipamento emprestado que precisássemos. Aquilo foi uma benção, como se diz no jargão evangélico.

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O projetor que passamos a usar então era excelente, de graça, e dava a impressão que o cara não tinha muito interesse em aparecer e não fazia nem questão da marca no nosso material. Totalmente o oposto da maioria absoluta dos caras com dinheiro que conhecíamos na cidade: qualquer vintém dado à cultura é como se você tivesse obrigatoriamente que entregar a alma e as pregas em “agradecimento”... Somos muito gratos a esse figura. Parece inventado, mas foi assim que aconteceram as exibições do Mate até meados de 2006, quando ajudamos a Lira de Ouro a ganhar o equipamento de projeção do MinC, dentro do programa Cultura Viva, que começava a mostrar seus primeiros resultados importantes.

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Apresentando sessão. Crédito: Carola Oliveira

Bertoni, Heraldo e Bia. Transmissão via web da Mostra Angu à Francesa de Filmes Nutritivos, em 2010. Crédito: Samitri Bará


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Organizêichion A história do Mate Com Angu também é uma coleção de mal-entendidos com produtoras e jornalistas por conta dessa informalidade com que levávamos o trabalho. Em geral, produtoras, por exemplo, estão sempre pedindo coisas para ontem, e às vezes ficava difícil explicar que o grupo não era exatamente o que podia aparentar; não havia uma secretaria com alguém só para atender as demandas de forma tão rápida. E no caso de jornalistas, nem sempre dava para sair cedo ou fugir do trabalho para fazer uma foto no meio do dia. E isso certamente criou imagens em alguns profissionais de que devíamos ser uns caras muito marrentos e desorganizados. Só recentemente temos sistematizado as informações produzidas sobre o grupo e começado a organizar todo o acervo que viemos construindo nesses dez anos, nossos filmes, textos, fotos e materiais gráficos, fruto de um amadurecimento inevitável — e hoje em dia bastante desejado e perseguido.

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Introspectando Física pura, biologia, explicado na função do orgasmo do Reich, explanado nas leis dos Vedas, do I-Ching, do Tarô e do Ifá: é impossível manter esse estado de euforia constante sem experimentar momentos de baixa energética... E ao completar cinco anos de atividade rolava uma cobrança de definição do grupo, um repensar à vera. O que estamos fazendo? E para aonde vai isso tudo? Fora que existia uma vontade da parte de vários em se fortalecer enquanto realizadores independentes do grupo. E esse olhar para dentro em meio ao ritmo louco de nossas vidas significava necessariamente uma certa lentidão nas respostas práticas que tínhamos que dar enquanto coletivo. Dúvida angustia e faz parecer que as coisas não estão andando... E após vários meses, anos, de sessões dionisíacas, lendárias, houve um momento em que as coisas começaram a desandar; discussões internas, quebra-paus acontecendo direto, várias DRs no fórum mca, e as sessões regulares começaram a ficar chochas, com pouco público, uma galera preferindo beber no bar da frente, problemas técnicos chateando, um certo cansaço do povo em tocar o bonde.

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Nas áreas de filmagem e produção de eventos em parceria as coisas até iam bem, mas o coração do Mate, o que nos mantinha próximos e compromissados, pelo menos mensalmente, as sessões, essas estavam começando a ficar meia-bomba. O fato de não fazer cineclube para viver foi um dos fatores que contribuíram para esse momento, provavelmente. Todo mundo estava trabalhando, e trabalhando muito; em produtoras, por exemplo, trabalha-se algumas épocas em expedientes de quase trabalho escravo. Sem contar que os deslocamentos Baixada-cidade do Rio também vão cansando... E fora ainda que o Mate, já fazia algum tempo, não era mais o grande local para juntar as galeras da região; vários espaços incríveis, e ainda mais segmentados, pipocaram muito na Baixada, abrindo espaço para bandas e artistas em geral. Esse descomprometimento do Mate com segmentação, aliás, sempre criou certa decepção em muita gente frequentadora. Um exemplo clássico que descobrimos por acaso: toda vez que chamávamos o DJ Saens Peña para tocar no final, percebíamos que muita gente que sempre estava lá, não comparecia. Como a gente sempre colocava no material de divulgação que o DJ vinha direto da badalada festa Phunk! direto para Caxias, pegamos uns depoimentos de pessoas reclamando que “no próximo Mate vai rolar funk, e aí não dá”. Doideira. Além do que tem sempre uma molecada chegando e querendo novidade. Mas a verdade é que era um momento muito delicado, em que parecia às vezes que a velha questão do ganha-pão acabava entrando e mostrando por que é a maior matadora de sonhos do mundo... Com todo mundo trabalhando, deixando o couro, o Mate ficou por um momento meio sem ninguém que o pegasse no colo, cuidasse dele com a dedicação necessária. 206


E isso com os convites para eventos chegando a mil, e-mails para responder, gente pedindo filmes, pedindo sessões, jornalistas pedindo matérias, editais que não conseguíamos entrar por desorganização, os relatórios para fazer... E as perguntas básicas, filosóficas, ficavam pairando no ar: o que é o Mate, quem somos e o que queremos com ele? O momento era tão crítico que em um e-mail de 2008 foi até mesmo ventilada a dúvida se não era hora de acabar com o grupo... Imagina.

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Dindin, Larjan, Arame, Bufunfa, Gaita, Pila, Grana...

Dinheiro sempre é a questão. E a questão do financiamento da cultura sempre esteve presente nos papos do cineclube, desde o início, mesmo quando a gente pensava somente em formas alternativas de manter o grupo funcionando em um processo de autogestão. Primeiro de tudo, havia a percepção de que era preciso dar um recado claro a partir da postura do grupo, e isso implicava, por exemplo, na vontade de promover eventos gratuitos. Óbvio que nunca foi consenso absoluto, e isso é assunto de porradaria até hoje. Mas havia essa provocação do dar, dar como uma posição política ante à discussão sobre o acesso à cultura. Ainda mais em uma cidade rica como é Duque de Caxias. Ou como dizíamos na época: dinheiro há. E muito. Mas era/é preciso levantar a lebre de quem e como se financia grupos como o nosso, como se leva a questão de cultura como direito básico, questão de cidadania cultural, como se coloca o papel do Estado e da iniciativa privada nessa história. Não são respostas simples, mas as perguntas têm que ser feitas sempre. Desse caldo de discussão (e, lógico, contando com nossa impaciência inicial em tratar de finanças nos primeiros

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anos) é que aconteceu de o Mate ser sempre gratuito. Ou bem barato, barato mesmo, preço de custo, quando trazíamos atrações e não tínhamos grana para alugar o som. É legal que durante os anos iniciais havia uma cumplicidade grande por parte do público e das bandas e DJs que tocavam nas sessões. Na época de baixa, tivemos muito apoio dessa galera, mesmo quando uma parte grande do público mesmo não era tão solidária assim. E descontada nossa atitude blasé de outros momentos, mesmo em épocas de fluxos midiáticos intensos, ainda assim tivemos apenas dois apoiadores que de fato desembolsaram alguma prata em espécie para o grupo — a substancial quantia de 100 reais cada, os já mencionados curso de inglês e escola particular. E o curso de inglês ainda perguntava sobre as atividades do cineclube, pedia para levarmos o material de divulgação e dava algum retorno. Mas a escola em nenhum momento se interessou em saber como o cineclube podia interagir com seus milhares de alunos, fazer alguma ação em conjunto, ou de alguma forma de integrar o audiovisual na formação de seus estudantes. Eram apenas as 100 pratas na mão, depois de ficar horas de uma tarde esperando a liberação da grana por parte da chefia.

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Aliás, eu estava lá no dia que fomos buscar a merreca com o material já impresso da sessão Foda-se. Esperava que a chefia nos chamasse, desse esporro, falasse alguma coisa, mas nada rolou. Apenas fiquei na situação ridícula de tentar convencer a secretária da escola sobre a importância do “foda-se” para a saúde do ser humano, num papo furado que não deu em nada. Peguei a grana, e, coincidência ou não, a partir do mês seguinte a escola não quis mais “patrocinar” o Mate... Bem, não era isso que a gente queria. Primeiro: atitude pires na mão nunca. Segundo: é incrível como a maioria do empresariado local tira uma onda incrível de “prafrentex” — na Barra da Tijuca e Zona Sul... Na Baixada, a maioria paga e trata mal os funcionários, não investe em nada que seja um pouco mais independente, que não sejam chopadas e churrascos para a juventude se “divertir”. Com louváveis, mas raras, raríssimas, exceções. A gente queria ver era de fato investimento, mínimo que fosse, em boas e consistentes ideias que brotam por toda a Baixada, iniciativas respaldadas, em grupos locais que têm se esmerado em produzir com qualidade, em artistas que têm mostrado na prática e sem apoio o quanto a cultura feita aqui é contemporânea e universal. Mas não: a moeda corrente na Baixada ainda é o vale-conversa-fiada e o ticket-tapinha-nas-costas. Pense nisso: dinheiro há — e muito. Especificamente em Caxias, o fato de a cidade ter um dos maiores orçamentos da América do Sul e ser, no dizer de Nelson Pereira dos Santos, a verdadeira capital cultural do país, é mais do que possível se fazer uma revolução sem precedentes com um mínimo de apoio de verdade. E olha que falo isso aqui excluindo o Mate Com Angu e nossa proverbial marra... Na verdade, uma coisa de que nunca poderemos nos queixar é de falta de apoios. 210


E quanto ao fato de o Mate ser de graça sentimos que isso sempre provocou um certo falatório. De produtores achando que isso prejudica a área cultural, e de gente que deve se incomodar a ponto de perguntar como o grupo consegue produzir tanto sem dinheiro, muitas vezes com bandas sinistras, som de qualidade, artistas conhecidos no mercado cultural, e ainda assim de graça. Mas é apenas isso: um recado de que alguém tem que bancar a cultura, e esse alguém pode não ser o público. Ou ser o público de forma parceira e colaborativa (já fizemos sessões correndo o chapéu e foi muito bom; cobrando “o quanto você quiser dar”, e cobrando preço simbólico, apenas para cobrir custos). Ou com grana de editais. Ou com grana de Moscou, como se acusavam as ações comunistas tempos atrás. Mas deixando claro o constrangimento: governos, burocratas, dondocas, ricos e empresariado deveriam coçar o bolso. Lembrando sempre que é preciso desconcentrar a renda desse país, meu Deus! Dinheiro há. Chegaremos a ver esse cenário? Só o futuro dirá — e olha que ele está cada vez mais perto. As experiências de financiamento coletivo usando softwares via web tem sido um laboratório alentador para o que virá. Ainda na esfera de financiamento das ações, duas experiências foram muito interessantes. Uma foi a produção da Mostra Angu à Francesa de Filmes Nutritivos, que aconteceu no SESC Caxias, em novembro de 2010, em associação com uma produtora parceira, a Terreiro de Ideias. Fabíola tinha dado a ideia, o grupo deu caldo à proposta, usamos nosso capital social em conversas francas com o SESC e a produtora entrou com a estrutura formal para que a coisa acontecesse. O evento aconteceu durante uma semana na cidade, com exibições de filmes feitos por coletivos brasileiros e produtoras independentes da periferia da França, e ainda oficinas 211


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e atrações culturais todos os dias, transmitidas pela web. A casa ficou sempre cheia e com a presença de alguns jovens diretores franceses que ficaram em hospedagem solidária, felizes da vida. A experiência da mostra, a despeito de todas as conturbações de se fazer um evento com coletivos, mostrou que é possível esse caminho de produzir junto, emprestando nosso capital social e nossa “moralzinha” para a materialização de eventos e produtos, mesmo não se tratando de um grupo legalizado no sentido formal. Outra experiência interessante foi quando decidimos fazer algo que sempre fomos tentados a aceitar, mas só recentemente chegamos às vias de fato, que é a produção de vídeos institucionais para outras entidades, como forma de capitalizar a caixinha do grupo. É aquela coisa: somos chamados direto para isso, mas quase nunca pegávamos. Porém no cenário de vários integrantes serem frilas, e estarmos com vontade de dar um gás nas sessões e demais ações do grupo, pensamos: por que não pegar esses trabalhos e ainda podendo sobrar algum para o coletivo? Essa prática garantiu com alguma folga muitas exibições que aconteceram e ainda deram ajudas bem-vindas a filmes, publicações e algumas contas pessoais. Nem todo mundo no grupo se sente bem fazendo institucionais, mas não dá para negar que alguns deles deram uma salvada legal...

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Publicação de aniversário dos dez anos do cineclube, em 2012, com todos os programas impressos. Crédito: Arte de Thiago Venturotti

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Revirão Na verdade, a crise aguda e angustiante que vivemos era de fato um refluxo, um remanso natural para um grupo que não fazia assembleias, não se preocupava com metas rígidas externas a cumprir e tinha dificuldades de fazer reuniões presenciais. E mal-acostumado com sessões sempre cheias e vibrantes. As frentes de produção continuavam a pleno vapor e nada mais natural do que as outras identidades dos membros do Mate florescessem e consumissem bastante de seu tempo nesse momento. E tinha a explosão radical da cultura digital pós-2007 em todo o país, como se alguém tivesse aberto as comportas da criatividade nacional, com zilhões de possibilidades de interação — e a busca pelo novo. Milhares de coletivos começavam de fato a se interconectar via banda larga e as redes passaram a aumentar seu peso político e mercadológico em níveis consideráveis. A ideia do programa Cultura Viva e os Pontos de Cultura revelavam um país multifacetado que queria se ver e dialogar com o mundo, tendo a arte e a cultura como idiomas privilegiados. Natural que estivéssemos nos achando nesse momento um pouco ultrapassados, talvez. Estávamos em contato com centenas de pessoas fazendo coisas loucas e experimentando como nunca. Os questionamentos internos do grupo foram de fato radicais, como sempre foram, e deixaram mesmo muitos de nós algumas vezes meio chochos... 214


Mas algumas coisas fizeram o grupo respirar e voltar ao eixo, se é que se pode chamar de eixo o equilíbrio caótico em que vivíamos. Uma foi entender que o Mate é um processo de formação — para uma parte grande do público que é cativa, para quem participou de nossas oficinas, para quem acompanha as produções, mas, principalmente, para os próprios membros do grupo. A prática cineclubista dentro do Mate e as intensas discussões sobre ética e estética no audiovisual acabaram também ajudando a formar profissionais de cinema que hoje atuam com moral (figurinistas, roteiristas, produtores, câmeras e editores) e gente com tesão para intervir nas esferas de pensamento sobre a região. Essa constatação teve um efeito muito bom em relação ao papel do cineclube. Outra coisa que renovou o fervor da ação foi o combinado de voltar a focar nas sessões regulares de novo, o coração do Mate. Fizemos um pacto de cuidar da curadoria, pensar novamente a sessão como uma intervenção estética, uma TAZ, uma chamada para o espírito cineclubista dionisíaco, onde tudo começou. Todo mundo continuava com seus trabalhos paralelos, suas carreiras profissionais, seus outros coletivos, mas com uma lembrança de que a sessão pede um cuidado que às vezes, na correria do dia a dia, acabamos esquecendo. Isso fez muito bem ao grupo e reordenou na cabeça e no coração o local do cineclube em nossas vidas. Nos fez lem215


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brar, por exemplo, de nossa atuação como parteiros de vários cineclubes pelo país, tanto na inspiração quando na ajuda braçal mesmo. Aliás, até fora do país: o coletivo Vira Lata, por exemplo, que organiza em Paris a mostra Nossas Novas, nasceu nos papos da Júlia Punk falando do Mate para a galera de lá. E tinha a rede do entorno do Mate que há anos ajuda a articular mil coisas. E o acervo, os filmes feitos e os que estão em produção. E a nova oficina de cinema, o “tráfico e contrabando” de cópias de curtas-metragens para os parceiros de longe, além dos “batizados” e “partos” cineclubistas. O próprio Mate, pelos trabalhos que já realizou, volta e meia ajuda a abrir portas importantes, tanto para o coletivo quanto individualmente. E o prazer de sempre em apagar a luz e projetar aqueles filmes escolhidos naquela ordem, daquele jeito, embalados pelas surpresas que as noites do Mate reservam... Não, não dava mesmo para deixar que os necessários questionamentos internos pudessem vir a se tornar uma onda de baixo astral. Várias ações começaram então a desencadear uma volta do tesão do grupo, e de uma maneira mais madura em relação à atuação no audiovisual nesses tempos em que a rede é o grande referencial. Lembrando que o Mate nasceu na esteira do digital e sempre dedicou a ele um altar especial. O que também ajudou muito o grupo foi a pesquisa de mestrado que a educadora Maria José Gouveia, a Zezé, estava fazendo sobre o Mate para a Fundação Getúlio Vargas. Foi como se nos forçasse a lançar um olhar para nós mesmos. Certo tempo depois, apareceu em nossas vidas um cara estudante da Universidade de Brasília, Tiago de Aragão, fazendo pesquisas sobre os filmes do Mate para um mestrado lá — teve o mesmo efeito de referencial, e talvez maior por um detalhe. Para apresentar sua ideia da abordagem do mestrado, o cara fez, sem que soubéssemos, uma cata de dezenas de imagens da gente no Youtube, trechos de fil216


mes, entrevistas e vinhetas, e fez um vídeo, Bricolage. Originalmente, ele não foi feito para ser público, o que acabou sendo, mas quando o vimos, a reação foi unânime: como a gente vai se esquecendo das coisas que vão sendo feitas e ditas com o passar dos anos. Às vezes é preciso olhares de fora para nos ajudar a voltar para dentro de nós mesmos... Putz, que frase de filosofia barata. Algumas ações ilustram muito bem essa revirada, mas se fosse contar todas, isso aqui se alongaria muito. Mas tem a ver com a volta ao cuidado com a sessões, com a entrada de mais gente inquieta no grupo, e com a produção de filmes. Um deles, por exemplo, Queimado, do Igor, foi emblemático. Por conta de ser em película, 16 mm, o filme reuniu o grupo em peso e mais uma renca de gente que viveu dias de utopia cinematográfica, em uma base montada em Jardim Primavera, envolvendo mais de quarenta pessoas no processo. Só a cozinha, por exemplo, foi montada no bar Cipó Brasil, um reduto de boemia e da efervescência cultural da região, o que garantiu um aumento considerável no burburinho sobre as filmagens. Além de muito trabalho e tesão, foi uma escola de set para a maioria envolvida que ainda não tinha vivido a magia de filmar em película, que é outra onda. Fora que o filme 5X Favela-Agora por Nós Mesmos, também foi uma ótima escola para alguns integrantes do grupo que participaram do processo, e que acabaram depois firmando à vera no mercadão audiovisual. O filme aliás foi um processo importante no Rio por ter mobilizado em suas oficinas de pré-produção centenas de pessoas que entraram em contato com um universo em geral bastante fechado, que é o do cinema dito profissional.

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Cartaz do filme Queimado, em 2010. CrĂŠdito: Arte de Thiago Venturotti


Making of do filme Queimado, em 2010. CrĂŠdito: Acervo Mate com Angu


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E quando falei lá atrás que no dia em que conhecemos Cacau Amaral, em 2003, não seria viagem imaginá-lo no tapete vermelho de Cannes é também porque ele é um dos diretores de um dos episódios do 5X Favela, o Arroz com Feijão, junto com o chapa Rodrigo Felha, pela Cufa. A propósito, eu evitei ficar falando disso na época do lançamento do filme, mas aqui nesse livro não tenho como não contar que tenho um orgulhozinho nesse roteiro aí... É que, além de ter saído no ano em que estudamos lá Xavi, Pablo Cunha e eu, o primeiro tratamento foi escrito na casinha da Funerária, em um sábado pós-aula, antes de ser novamente submetido à dinâmica proposta pelo professor e roteirista Rafael Dragaud. Ai, que bom falar isso... Lembrei também que fizemos uma exibição do 5X, em 2011, no grande teatro Raul Cortez, em Caxias, com quase todos os diretores do filme presentes, casa cheia, e foi uma sessão muito emocionante. E além dessa, também fizemos mais duas exibições completamente lotadas nesse teatro, que fica no centro de Caxias, um dos maiores palcos do estado do Rio, e que tem a assinatura de Oscar Niemeyer. Uma foi junto com o AfroReggae na época do lançamento do filme O Veneno e o Antídoto, uma produção do grupo com direção de Estevão Ciavatta, com o Lá no Fim do Mundo... na abertura! Muito show. A outra foi uma exibição muito especial, especial mesmo. Foi a festa de nove anos do cineclube, com dois lançamentos super aguardados de cineastas caxienses: o documentário longa-metragem O Vento Forte do Levante, de Rodrigo Dutra; e Expera, curta de Guilherme Zani. Ambos tinham sido parceiros do Bertoni na produção da Angu TV em 2007 e foi ótimo comemorar o aniversário com esses filmes saindo para o mundo. No caso do Dutra, havia alguns anos ele tinha participado das filmagens do Lá no Fim do Mundo..., quando foi definiti220


Foto still do filme Queimado. Crédito: Carola Oliveira

vamente fisgado pelo audiovisual e não parou mais. Sobre esse seu longa de estreia, havia uma expectativa de três anos pelo filme, que é sobre a figura do poeta e mil coisas Solano Trindade, que morou um tempo em Caxias, em um dos seus momentos mais criativos. Uma de suas filhas, Godiva, e o bisneto, Zinho Trindade, estavam presentes na exibição. Nessa noite emocionante o teatro teve seus 440 lugares ocupados e ainda muita gente em pé. No final da sessão, programamos uma festa na praça, que acabou espalhando gente por todos os lugares dos arredores, secando as cervejas dos botecos e camelôs da noite caxiense em uma quarta-feira, final de mês, lavação de alma. 221


Heraldo, Prestor, Claudio Prado, Fabíola, Sabrina, Zezé, Bia, Igor e Xavi no Fórum Nacional da Cultura Digital 2009, em São Paulo. Crédito: Acervo Mate com Angu


Em 2009 rolou um evento marcante para a cultura e a comunicação no país, o Fórum Nacional da Cultura Digital, em São Paulo, organizado e animado pelos “hackers”infiltrados no Ministério da Cultura e mais uma rede de ativistas, artistas e midialivristas em geral. Com a participação de grandes nomes e grandes experiências dessa articulação da cultura com a tecnologia, o Fórum foi um marco político importantíssimo no coroamento das ações de cultura digital no país. O Mate foi convocado para interagir e aproximar outros coletivos de audiovisual do país, dando vida a um cubo muito louco armado no saguão da Cinemateca Brasileira, projetando filmes, performances e o que mais pintasse na curadoria surgida no momento. O teor libertário das mesas, palestras, oficinas e shows, e mais a interação com vários grupos que conhecemos lá, deram também uma recarga bastante intensa na pilha do grupo. E além de tudo o que rolou, ficou também o lembrete de que a vocação do Mate Com Angu sempre foi conectar gente e redes, desde o princípio. “E não se esqueça disso!”

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Evoé!

Ainda nesse espírito de voltar com as sessões com a energia lá em cima, aproveitamos a sessão Catapulta! 2009 para fazer um expurgo geral, um despacho energético no nosso terreiro audiovisual caxiense. E uma noite dedicada a lançamento de filmes era a oportunidade ideal... Ainda mais porque haveria vários filmes do grupo, coproduções e filmes de parceiros. Nesse dia foi lançado Queimado, de Igor Barradas, Bicho Lamparão, de Rafael Mazza e Rodrigo Folhes e Nina Vida – Adereços de Uma Manhã de Carnaval, de Sabrina Bitencourt; Monocelular, do Felipe Cataldo, sujeito amado e parceiro do Mate; Funk-se 2.0, do Slow e Márcio Grafiti; O que Vai Ser?, de Getúlio Ribeiro, um cara novo de Nova Iguaçu, com a Bia Pimenta na direção de arte; Gaiola, do cineclube Tupinambá, molecada guerreira de Araruama, de quem somos fãs; e Salomé, de Igor Cabral, coproduzido pelo Mate e que reuniu uma galera boa do audiovisual do Rio, em sets de puro amor.

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E isso fechando com uma festa comandada pela galera do Caipirinha Appreciation Society. Foi uma noite de grandes momentos e nos lembrou bem que as sessões eram, sim, um espaço para os deuses do cinema baixarem e dançaram em celebração à vida e ao encontro. Aliás, a plateia participou intensamente da exibição; na cena inicial do Queimado, uma super-roda de pogo, deixou a galera rock 'n’ roll em êxtase; e a projeção do Bicho Lamparão, além da galera aplaudindo no meio das falas do incrível personagem, teve uma menina que pegou santo e tudo, impacto do filme. Uma semana depois, repetimos essa sessão no Cine Santa, em Santa Teresa, com lotação esgotada e foi muito boa também. Não teve festa no final, mas o papo dentro do cinema foi ótimo depois da projeção, e rendeu uma noite intensa de integração Rio-Baixada. Sim, sim, esse troço de projetar filmes dá onda mesmo.

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Cineclubismo 2.0

Levando em conta estritamente o viés exibidor do Mate, olhando tudo o que a gente exibiu desde o início, as centenas de sessões, dá para ter uma visão panorâmica, uma boa amostragem da produção digital dos últimos dez anos, pelo menos no meio da realização em curta-metragem nacional, e isso dá uma sensação muito boa. Lá no comecinho, a aposta era criar um espaço para dar vazão à avalanche de filmes que a gente tinha certeza que estavam sendo gestados e que iriam mexer a fundo no cenário do audiovisual. Vendo o espaço que o curta nacional ganhou e o conceito de desbitolação consolidado, fica a percepção de que estávamos no caminho certo. E o cineclubismo hoje chegou a um grau de maturação alentador, evoluindo a ponto de formular questões fundamentais para a cultura, indo além, muito além da exibição. As discussões que estão em plena ebulição no país têm mostrado força e de fato pautado transformações, independente das desilusões com as estruturas formais de poder. E esse caldo grosso vem sendo deliciosamente cozinhado e temperado nas práticas cineclubistas radicais pelo país

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afora; nas experiências de cineclubismo nas escolas; em projetos como a Programadora Brasil; e em ideias ousadas como o Partido da Cultura e o Circuito Fora do Eixo. Aliás, a distribuidora DF5 e o Clube de Cinema do Fora do Eixo são experiências que têm reunido uma pá de gente com vontade de sacudir de verdade o conceito de distribuição em audiovisual. O filme Cartão Postal, do Josinaldo e do chapa Wavá Novais, que estreou na Mostra Angu à Francesa, em Caxias, foi o primeiro longa a ser distribuído por essa rede, junto com o clipe “Rua Augusta”, do Emicida, e foi o balão de ensaio perfeito para sentir a força e a pressão desse circuito. Provavelmente nos próximos anos os conceitos da cadeia produtiva do audiovisual estarão todos remexidos, misturados, difusos e muito mais horizontais. No que isso vai dar não arrisco dizer, mas da parte do Mate Com Angu posso afirmar que apostamos todas as fichas nessa transformação radical.

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Papo Saideira Muitas das questões que aparecem nesse livro não fazem nem sentido hoje, parecendo meio datadas; em 2002, 2003, ainda não havia uma internet tão popular, não havia o fenômeno das lan houses, e não havia o caldo grosso dos conceitos de cultura digital e redes, crescidos e vitaminados na gestão Gil no MinC. Mas é legal registrar que a aposta do Mate sempre foi essa: de que a molecada sabe das coisas. Garantindo o acesso e não tratando as pessoas como coitadas e incapazes, a galera vai descobrindo linguagens, experimentando e produzindo dos jeitos mais variados possíveis. E agora que o grupo ultrapassou uma década de estrada, todas as frentes estão se conectando de uma forma muito especial, principalmente a rede de pessoas que tem colado com o intuito de produzir, filmar e rediscutir o papel da cultura na vida. E internalizando a ideia de que a Baixada é única, mas também é universal; que daqui se pode pensar o mundo em toda a sua complexidade e deixar sua marca. O “centro de uma outra onda”, de muitos centros possíveis, de uma periferia que também tira onda. Agora, é curioso olhar para trás e se perguntar: por que deu certo? Por que dá certo? Hoje no grupo tem muita gente que se destaca no mercado profissional, com responsabilidade 228


e competência, mandando bem, mas do ponto de vista estritamente de produção o Mate Com Angu foi durante muito tempo um manual de como não se fazer um evento. Principalmente por não ter uma hierarquia nos moldes tradicionais, não ter votações e por ser um espaço interno de delírio e experimentação dentro de cada um. Nisso, vários caíram de cabeça no cinema mesmo e na produção cultural, muitos deram vazão a projetos pessoais malucos, muitos criaram outros coletivos ainda mais loucos, e muitos partiram para radicalizar nas experimentações plásticas. E sempre ali se encontrando e botando a máquina para andar, filmando, projetando, amando e perturbando. Mas talvez o que mantenha a liga do grupo seja mesmo a amizade, que vai crescendo à base de carinho, admiração mútua e porradaria, com gente nova chegando, gente saindo e gente voltando; como diz o Eud Pestana, poeta dos subúrbios míticos do Rio de Janeiro: “A amizade é uma segunda pele.” E sentindo cada vez mais a frase do Bob Dylan, que é o lema do grupo desde o início: “A melhor coisa que você pode fazer por uma pessoa é inspirá-la.” É isso.

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Chegando ao final desse livro, dúvidas me invadem de novo... Como se finaliza um recorte desses quando o grupo continua em plena ebulição e com novidades chegando a todo momento? Como se congela um instante sem que se perca o fluxo do aqui e agora? A chave talvez seja ficando atento ao momento mágico, aquele instante que uma exibição cineclubista consegue ainda despertar, que é quando você é tocado por filmes e está de corpo presente com aquela energia no peito, saindo pelos olhos, e pode encontrar alguém ali pertinho vivendo essa mesma sensação. A vida que tentam sempre nos impor é pautada no medo, na desconfiança, na tentativa de controlar o acaso; mas quando você sai para uma exibição você está se abrindo para que tudo possa mudar, para que talvez você assista a uma obra que remexa sua alma com fúria e ternura, para que talvez você encontre alguém com quem você viva um intenso relacionamento, de uma noite ou de uma vida. Não perder de vista essa possibilidade de mergulhar no instante mágico é a parada. E mantendo sempre a vigilância para que o cânone oculto do grupo não se perca: "Que seja divertido!". Dá para ser maior, mais organizado e ainda assim manter esse tesão que é vivido pessoa a pessoa? Manter aquela magia que acontece quando você conhece as pessoas pelo nome e pelo brilho dos olhos? É o desafio. Quando da criação do grupo, eu estava muito envolvido com discussões sobre o princípio ativo que fazia as ideias serem vivas e contagiosas e o porquê de os movimentos congelarem e perderem esse contato com a coisa viva, aquilo que faz com que um organismo seja mais do que uma máquina. Observações sobre organização, sobre o papel dos líderes, sobre as repetições de vícios do movimento social, sobre tentativas de experimentar novos caminhos de ação coletiva, novas pedagogias. Enfim, um taoismo de botequim da porra.

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Nisso, em uma comemoração a algo que nem me lembro, propus um brinde aos órgãos sexuais do coletivo e falei que esperava que estivéssemos tão felizes naquele momento quanto no dia em que o coletivo morresse. Todo mundo achou estranho no momento, uns reclamaram, e a explicação que eu dei não sei se vingou... Ainda bem que em brinde de cerveja quase tudo passa. Mas era sério: se o grupo fosse realmente um organismo vivo, um dia ele morreria naturalmente. Mas também naturalmente ele se reproduziria, da forma que fosse, e poderia ter filhos bacanas. E a parada é essa: cuidar dos órgãos sexuais do grupo, procriar, compartilhar, semear, polinizar, gerar outras ondas. Mesmo que de proveta, que também vale. Mas se entregar para o Novo, aquele que sempre vem. Vai que um dia o Mate venha a ficar burocrático e se tornar cada vez mais um escritório e um número de CNPJ... Sabe-se lá...

• Tá, mas e aí, o livro termina como? • Hum... Taí: não termina. Continua...

E fecha com um texto de uma sessão de julho de 2006, que na verdade fala de fazer e de brincar, duas coisas que fazem a maior diferença na vida.

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O cineclube Mate Com Angu te propõe nesta noite uma sessão especial em forma de pergunta: Vamos fazer um filme? Mais do que uma pergunta retórica, a ideia é escancaradamente uma reflexão sobre o momento que o audiovisual vive e as implicações que... Não, não é bem isso. O Cinema foi durante várias décadas terreno das classes sociais com grana, levando consigo muito dos preconceitos e vícios de olhar de um recorte bem específico da sociedade. E por aí tem se operado uma grande mudança capitaneada pelo acesso à tecnologia digital. Mas as reflexões que vêm da sessão de hoje podem não ser tão simples — ou são de uma simplicidade quase zen. Um koan. Verdades envoltas em brumas, véu de maya... Porque a sociedade midiática necessita de que as pessoas sejam alfabetizadas visualmente, como tantos já preconizaram. Sobretudo num país com tanta concentração de canais de exibição e com tanta exposição aos padrões massificados de imagens. Mas não é esse o assunto sobre o que estamos falando... Também não é sobre o barateamento das ferramentas, câmera e ilha de edição, embora isso seja fundamental. Também não é sobre o impacto político que a sociedade sofrerá — está sofrendo — com a profusão de filmes feitos nas periferias do país. Isso é maravilhoso e por si só já é coisa digna de grande comemoração. Mas também não é isso. 232


O Cinema nacional vem sendo bastante oxigenado com a grande quantidade de cineastas novos que têm mostrados novos caminhos de linguagem. Legal, mas não é só isso. Também não é a revolução que os cineclubes têm feito Brasil afora, levando diversidade de imagens aos quatro cantos, formando plateias, deformando conceitos rígidos e discutindo o que é o mercado de exibição nacional. Isso é foda demais, mas ainda não é exatamente sobre isso. Muitos têm se debruçado em pensar que Cinema — e que sociedade — resultará desta invasão-ocupação no campo da imagem por tanta gente de uma vez só. Embora também debatamos isso em nossos seminários etílico-filosóficos, o que tem mais nos interessado é a possibilidade de que algo novo venha a surgir de onde menos esperamos. O Mate quer compartilhar com você essa noite o prazer e o mistério da realidade construída quando se aponta uma câmera para algo ou para alguém. A mágica de ordenar as imagens na montagem de filmes e o fascínio de ver a dança louca dos feixes luminosos que se chocam contra uma tela, gerando mundos interiores, provocando sensações, dando petelecos na consciência. Fazer um filme como um ato de verdade e de entrega. Fazer alguma coisa pelo nosso amor. “Cinema é luz”, como dizia Fellini. Ou apenas “o homem atrás da câmera”, como dizia Glauber. Sem preocupações com o suporte; com as possibilidades de fazer um filme com pouca grana; com a onda solidária e poderosa dos novos realizadores; com a força do movimento cineclubista e com as pos233


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sibilidades de exibição via internet, tevês alternativas, canais digitais, celulares, transportes e telas ainda inimagináveis. Com tudo isso, o Cinema pode hoje gozar da experiência gratificante do brincar. Pode ser que esse momento de efervescência seja curto e as forças do poder careta e da simulação absorvam tudo isso e continuem por cima da carne seca. Mas até lá a ordem é: câmeras nas mãos, ideias nas cabeças e subversão nas ilhas. Brincar, brincar a sério até que comecem a surgir novos gênios, novos cineastas tesudos, novas possibilidades de mexer com a linguagem cinematográfica, novas provocações à estética oficial. O momento é de ação e o cineclube Mate Com Angu tá aí pra apoiar. Abraços.

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Heraldo HB é animador cultural com ação na Baixada Fluminense, território onde já militou com movimento estudantil, rádio livre, pré-vestibular comunitário, projetos de internet popular e comunicação alternativa. Trabalhou com animação cultural em CIEPs e em escolas da rede estadual no II Programa Especial de Educação, em Caxias. Há dez anos atua com cineclubismo e audiovisual por meio do cineclube Mate Com Angu, na Baixada e no Norte Fluminense. É editor da revista eletrônica Lurdinha Duque de Caxias para Estômagos Fortes (www.lurdinha.org) e diretor de comunicação do Ponto de Cultura Lira de Ouro. É consultor da Relinkare Internet, que assessora pequenos empreendimentos em presença web com filosofia de software livre e colaboração. Possui vários textos publicados em sites, zines, revistas de poesia e, em 2009, publicou o livro Engenharia de Aviãozinho. É pai do Ângelo, compõe umas músicas e volta e meia ainda toca seu violão por aí :)

Contato: hb@relinkare.org


Este livro foi composto em DIN. O papel utilizado para a capa foi o Cart達o Supremo Alta-Alvura 250g/m2. Para o miolo foi utilizado o Lux Cream 90 g/m2. Impresso pela Edelbra para a Aeroplano Editora em junho de 2013.



Com uma narrativa singular, vigorosa e apaixonante a história do cineclube Mate Com Angu é relatada por seu guardião da memória Heraldo Bezerra (HB). Uma história que começa em Duque de Caxias, Baixada Fluminense, e se expande para outros territórios, concretizando aquilo que era o desejo de seu grupo fundador: levar o imaginário de Caxias para o mundo. Em uma região coberta por camadas de estigmas que tornam invisível a vida cultural que ali é produzida, HB apresenta a experiência de um projeto estético coletivo que revela e torna visível a identidade e a produção cultural local, relativizando centro e periferia. Por meio da linguagem audiovisual, matéria-prima de suas intervenções, o cineclube cria, suscita sensibilidades e provoca inquietudes. Em uma mistura incomum como mate com angu.

Maria José Gouvêa HB é uma marca registrada no tempo, no espaço e na memória coletiva de toda uma geração de baixadenses. Hoje falar de poesia, cinema e militância cultural sem citar Heraldo seria um crime à história da Baixada. HB pra mim é assim: marginal.

Rodrigo Dutra Mate Com Angu não tem importância pelas suas exibições cinematográficas. Mate Com Angu é o cinema enquanto poesia vivida sem concessões. Com sessões. Não há maior importância em seu DNA que o sangue que corre nas veias de quem faz pulsar o coração de um lugar. Este “bater” frenético é por Caxias, pela baixada, é pela arte, é pela vida, é pela justiça, pela transformação de um povo. E aí sim enxergaremos o Mate Com Angu como cinema autopremiado!

Cézar Ray

Patrocínio

Realização


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