Rio de Rimas, de Rôssi Alves

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RIODE RIMAS R么ssi Alves



RIODE RIMAS Rôssi Alves

Petrobras Cultural

Realização


Copyright © 2013 Rôssi Alves COLEÇÃO TRAMAS URBANAS curadoria Heloisa Buarque de HollandA consultoria Ecio Salles coordenação editorial Camilla Savoia projeto gráfico Flavia Castro RIO DE RIMAS produção gráfica Sidnei Balbino revisão Camilla Savoia CECILIA COSTA revisão tipográfica Camilla Savoia TATIANA LOUZADA fotos da capa Roda Cultural do Méier (Crédito: Fábio Teixeira) Arte do CCRP (Crédito: Gustavo Chs)

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

A482r Alves, Rôssi Rio de Rimas/Rôssi Alves. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Aeroplano, 2013. 128 p.: il.; 19 cm. (Tramas urbanas) ISBN 978-85-7820-105-0 1. Hip-hop (Cultura popular) - Brasil. 2. Rep - (Música) - Brasil. 3. Movimentos da juventude. I. Título. II. Série. 13-06783 CDD: 305.2350981 CDU: 305.2350981 01/11/2013 05/11/2013 Todos os direitos reservados Aeroplano Editora e Consultoria Ltda.

Praia de Botafogo, 210/sala 502 Botafogo — Rio de Janeiro — RJ CEP: 22.250-040 Telefones: (21) 2529-6974/ (21) 2239-7399 aeroplano@aeroplanoeditora.com.br www.aeroplanoeditora.com.br


A ideia de falar sobre cultura da periferia quase sempre esteve associada ao trabalho de avalizar, qualificar ou autorizar a produção cultural dos artistas que se encontram na periferia por critérios sociais, econômicos e culturais. Faz parte da percepção de que a cultura da periferia sempre existiu, mas não tinha oportunidade de ter sua voz. No entanto, nas últimas décadas, uma série de trabalhos vem mostrar que não se trata apenas de artistas procurando inserção cultural, mas de fenômenos orgânicos, profundamente conectados com experiências sociais específicas. Não raro, boa parte dessas histórias assume contornos biográficos de um sujeito ou de um grupo mobilizados em torno da sua periferia, das suas condições socioeconômicas e da afirmação cultural de suas comunidades. Essas mesmas periferias têm gerado soluções originais, criativas, sustentáveis e autônomas, como são exemplos a Cooperifa, o Tecnobrega, o Viva Favela e outros tantos casos que estão entre os títulos da primeira fase desta coleção. Viabilizado por meio do patrocínio da Petrobras, a continuidade do projeto Tramas Urbanas trata de procurar não apenas dar voz à periferia, mas investigar nessas experiências novas formas de responder a questões culturais, sociais e políticas emergentes. Afinal, como diz a curadora do projeto, “mais do que a internet, a periferia é a grande novidade do século XXI”.

Petrobras - Petróleo Brasileiro S.A.



Na virada do século XX para o XXI, a nova cultura da periferia se impõe como um dos movimentos culturais de ponta no país, com feição própria, uma indisfarçável dicção proativa e, claro, projeto de transformação social. Esses são apenas alguns dos traços inovadores nas práticas que atualmente se desdobram no panorama da cultura popular brasileira, uma das vertentes mais fortes de nossa tradição cultural. Ainda que a produção cultural das periferias comece hoje a ser reconhecida como uma das tendências criativas mais importantes e, mesmo, politicamente inaugural, sua história ainda está para ser contada. É nesse sentido que a coleção Tramas Urbanas tem como objetivo maior dar a vez e a voz aos protagonistas desse novo capítulo da memória cultural brasileira. Tramas Urbanas é uma resposta editorial, política e afetiva ao direito da periferia de contar sua própria história.

Heloisa Buarque de Hollanda



A esta gente que tem o “estranho” e fascinante hábito de povoar as ruas com rimas.


Agradecimentos

Aos meus amigos-bolsistas, procultianos queridos, Renato Mascarenhas, Guilherme Cardoso e Thomaz ADL, pelo brilhante trabalho e pela paciência comigo. Às minhas lindonas, Maíra Dias e Jeosanny Kym, que se hospedaram na minha casa, em meio a tantas rimas, a fim de melhor me ajudar, para que eu cumprisse esta missão. À minha amiga-irmãzinha, Graziella, pela leitura cuidadosa. Ao MC Marechal, pela atenção constante e pela poesia que tanto me emociona. Ao Nissin Oriente, meu poeta queridinho, obrigada por tantas e tão belas poesias. Ao DJ Bola (escritor, MC, informante, amigo), pelas aulas, atenção e carinho. Ao meu amigo Nuno DV, companheiro de rodas, batalhas e livro, a quem eu recorro em todos os momentos de dúvida e desespero: Valeu, pichador! À Helô, por me enlouquecer a cada encontro, pelo insano convite para fazer este livro, pela confiança, pelas reflexões, pelas brigas... Te amo!!! À Beatriz Resende, para sempre minha orientadora. Ao meu amigo de sempre, Marildo, por tudo...


À minha família, por me aturar, sobretudo em um momento de produção incessante e idêntico estresse (Rodrigo, meu amor, obrigada pela apurada audição!). Aos MCs que se dispuseram a conversar comigo, pessoalmente ou via Facebook, muito obrigada. Não cito nomes, pois há o risco de esquecer algum. Mas todos foram mencionados no texto. Ao Dropê Comando Selva e ao Djoser Botelho, pelas aulas de arte urbana e sugestões e, mais ainda, pela acolhida gentil e amiga. A todos os organizadores de rodas culturais e batalhas de rima, em especial, ao Don Allan Marola, Fabio Broa, Fabricio Mello, Aline Pereira, Gordo Soldados da Pista e Cesar Schwenck. A todos que me cederam imagens para este livro: Fábio Teixeira, Emanuel Bilson, Gustavo Chs, Don Allan Marolla, Cristiano Reis, Daniel Juca, obrigada! Aos amigos, pais do CCRP, Dropê Comando Selva, Djoser Botelho e MV Hemp. Obrigada por me apresentarem a um objeto de estudo que trouxe tanto ritmo para minha vida acadêmica. SELVA!!! À Faperj (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro), que financia a pesquisa, da qual este livro é parte, com bolsa de pós-doutorado. À imensa magia desta arte de rua, OBRIGADA! TAMUJUNTO!!!



cap.01 Os fazimentos que me fizeram

SUMÁRIO 15

PREfÁCIO - NUNO DV

18

Um lugar de batalha pelo rEp

21

Em busca da performance perfeita – as batalhas de rima cariocas

24

A tradicional, a tradicional... Batalha do Real!

35

Circuito Carioca de Ritmo e Poesia, o CCRP

47

As rimas do Rio

52

Métrica, ritmo e rimas

61

O público: um júri passional

68

“Tua rima é decorada!”: ofensa maior

72

Manifestação da literatura carioca

76

Quando parnasianos e modernistas se encontram

86

De onde vêm as rimas?

91

Onde está o palco e onde fica a plateia?

99

Gestão criativa do espaço público

108

Roda Cultural do Méier — máximo respeito

113

Uma outra instância de legitimação: as redes sociais

117

Vem pra rua, vem e traz sua arte também!

124

Referências bibliográficas

05

06

01 02 03

07

11

04

08 09

10

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Prefácio

MCs criando rimas e poesias na velocidade da luz e do vento Mas em 45 segundos muitas vão se perder no esquecimento Anotando tudo na plateia vejo que tem alguém bastante atento Navegando no RIO DE RIMAS a fim de eternizar esses momentos. A cada rima criativa a torcida grita como se fosse um gol Quem recebe mais barulho é consagrado o vencedor MCs rezam pra saber se alguém filmou, ou pelo menos fotografou Mas alguém fez melhor, anotou tudo, e num livro registrou. Rio de Rimas é um passeio nas rodas culturais de rimas do Rio de Janeiro. Um grato fenômeno da cultura espontânea jovial que vem se espalhando e se apropriando das praças, pistas de skate e espaços públicos da cidade. Sem apoio, patrocínio ou qualquer tipo de ajuda externa, as rodas de rima vem se fortalecendo e lançando novos nomes dentro da cultura hip-hop. Sejam bem-vindos a esse Rio de Rimas, um manual prático de instruções e explicações, em que o leitor se sentirá na plateia das batalhas entre MCs junto com a autora Rôssi Alves.

Nuno DV

15



Rima é assim Um trabalho instável Além de ser convincente Também tem que ser impecável.

(Nissin Oriente)


01. Um lugar de batalha pelo rEp 1


cap.01 Um lugar de batalha pelo rEp

Na década de 2000, quando o bairro carioca da Lapa já se apresentava para o mundo como centro aglutinador de cultura, lazer e boemia, um grupo de jovens e adolescentes — rimadores, músicos, artistas de circo, B-boys — encontrava-se na Fundição Progresso, em um espaço chamado CIC (Centro Interativo de Circo). Este espaço era gerido por Gerard Miranda, produtor cultural atuante na Fundição. O CIC promovia debates, oficinas, espetáculos de circo, batalhas de rima, exposições de grafite, vídeo, entre tantas outras atividades artísticas. Em uma descrição resumida: a proposta era fomentar uma alternativa de produção cultural, geração de trabalho e renda, e valorização dessas culturas — que são de rua e, portanto, independentes. Segundo Dropê Comando Selva, participante ativo dos projetos do CIC, os objetivos consistiam em: desenvolver oficinas permanentes dedicadas aos quatro elementos da cultura hip-hop — dança de rua, grafite, discotecagem e rep. Estas oficinas foram agregadas às oficinas de circo e de cinema, e tiveram como objetivo produzir documentários e afins, na busca de uma identidade visual e exploradora do senso crítico. As oficinas eram ainda aliadas a ações de cultura complementar, como skate, capoeira e basquete de rua. Todas essas ações eram trabalhadas de forma integrada a temas transversais que pudessem agregar, por sua vez, a cada oficina, valores humanos necessários para a formação da cidadania.

1 Adotarei a forma rep (ritmo e poesia) neste livro, em detrimento de rap (rhythm and poetry), tendo em vista ela assim ser tratada por muitos integrantes do movimento carioca e por considerá-la mais aderente ao formato que o movimento tomou no Brasil — ativista, irreverente, preocupado em criar uma estética brasileira. Ou seja, é uma forma de respeitar uma atitude e me aproximar, também, do modo como o rep é apresentado pelo CCRP (Circuito Carioca de Ritmo e Poesia).

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RIO DE RIMAS

Gerard Miranda define o CIC assim:2 O CIC foi o berço e estabeleceu condições para a criação e a afirmação das batalhas; como também foi uma afirmação, na Lapa, de grafite, break, DJs e, por muito tempo, foi a casa do hip-hop carioca, abrindo espaço para todos MCs de todas as comunidades, incentivando, motivando e multiplicando o hip-hop em todas as suas formas.

Quando o espaço que acolhia o CIC sofreu um incêndio, os participantes se ressentiram de uma casa para a cultura de rua. Para minorar a falta, continuaram se encontrando em frente à Fundição Progresso, e realizando reuniões com rimadores. Ocorriam às quintas-feiras. Foi lá, sob os Arcos da Lapa, numa quinta-feira à noite, que esses participantes deram origem a uma roda de rima informal — o prenúncio das rodas culturais. A ideia dos encontros às quintas-feiras, debaixo dos Arcos da Lapa, é atribuída ao Rico Neurótico. A proposta foi bem recebida pelos MCs, e as rodas levaram para as ruas o projeto bem-sucedido que acontecera dentro da Fundição Progresso. DJ Bola credita a força desses encontros ao fato de que, na rua, em rodas, muitos rimadores podem participar. Ele diz: “Nas batalhas, havia lugar para 16; na rua, dezenas de MCs, que antes não tinham como mostrar sua rima, podiam se apresentar.”3 Daí surgiram as primeiras rodas, aquelas que originaram as rodas culturais — ainda não no formato do CCRP (Circuito Carioca de Ritmo e Poesia).

2 Entrevista concedida à autora, por e-mail, em 6/8/2013. 20

3 Entrevista concedida à autora em 3/9/2012.


02. Em busca da performance perfeita – as batalhas de rima cariocas

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RIO DE RIMAS

A esta altura, é importante ressaltar que há rodas culturais e batalhas de rima. A princípio, uma roda cultural contempla várias atividades artísticas, inclusive a batalha de rima, e defende a ocupação do espaço público. Uma batalha de rima pode sustentar-se apenas com a disputa de MCs, realizando-se, também, em espaços privados. Entretanto, como esses eventos se assemelham bastante, por vezes, farei menção aqui, a rodas culturais e batalhas de rima, conjuntamente. A distinção será feita sempre quando se tornar fundamental. As batalhas de rima priorizam o concurso de MCs. Entretanto, têm outros atrativos, como shows dos próprios MCs, DJs, e dança. Ou seja, muitas vezes, a distinção entre um evento e outro torna-se difícil. Quando criei, na rede social Facebook, o grupo aberto denominado Rodas Culturais do RJ, vários organizadores de batalhas postaram informações sobre seus eventos. E mesmo entre a maioria dos frequentadores, organizadores, MCs, não há afeição por um tipo em especial. As rodas e batalhas, inclusive, dividem os mesmos apresentadores, artistas e público. Custei a entender o porquê de o CIC ser mencionado em praticamente todas as conversas que eu tinha com MCs e organizadores de rodas. Na década de 2000, quando não havia tanto espaço para o rep, nem este era um ritmo tão cultuado pelos cariocas (apesar do sucesso de grupos paulistas), havia um dia reservado à cultura rep no CIC — a quinta-feira. E mesmo sendo um espaço de pluralidade para as artes, a forma que tinha prioridade era a batalha de rima. Muito antes das rodas de rima, as batalhas ditavam o tom da cultura rep carioca, eram a forma mais comum de um MC mostrar sua aptidão na cultura do rep. A batalha era prioridade, mas não só a batalha de rap; nosso trabalho se estendia às aulas de DJs, break e grafite. [...] O CIC foi a grande casa da Batalha do Real. A gente fazia uma festa de hip-hop, aos sábados, e um tempo depois surgiu a Batalha do Real na sinuca, que veio para o CIC bem 22


cap.02 Em busca da performance perfeita – as batalhas de rima cariocas

depois; ali, onde teve grande sucesso, e deu origem ao filme L.A.P.A. (Gerard Miranda) 4 Mas na busca por uma atividade que não resultasse só na disputa “ofensiva” de MCs, Gerard Miranda abriu proposta para outras formas de arte que privilegiassem a reflexão e o debate crítico. “Eu convidei o MC Marechal pela ideia que eu tinha de fazer uma qualificação das batalhas com educação e outros temas menos sangrentos. E com o tempo ele chegou com a ideia da Batalha do Conhecimento.” 5 MC Marechal, então, apresentou seu projeto da Batalha do Conhecimento: Eu pensava na forma de manter uma batalha, que é um evento de entretenimento, e ao mesmo tempo que contivesse algo que despertasse as pessoas, que as fizesse evoluir. Eu faço aquilo em que acredito. A Batalha do Conhecimento exibe um filme, faz o debate e a batalha se desenvolve com os temas relacionados ao filme. O projeto da Batalha do Conhecimento deseja formar um núcleo, com workshop, música, literatura, cultura. Ou seja, um Núcleo do Conhecimento, uma escola, sendo a batalha um entretenimento.6 Mais tarde, a Batalha do Conhecimento passou a revezar o espaço com o projeto Reciclando Pensamentos, do coletivo Comando Selva. Alguns nomes do rep alternativo — como Cartel MCs, Mesclados, Bidi, Numa Margem Distante — saíram do Reciclando Pensamentos, segundo Dropê Comando Selva, para quem o Reciclando Pensamentos funcionava ainda como uma escola: Era uma escola de rima que abria espaço para MCs desconhecidos, promovia debate, com ativa participação do público, que atualmente sustenta a cena rep independente. O Reciclando propunha batalhas em que houvesse investimento no intelecto do MC. Por isso, considero-o a aula de rima, enquanto a Batalha do Conhecimento era a prova, para os MCs.7 4 5 6 7

Entrevista concedida à autora, por e-mail, em 6/8/2013. Entrevista concedida à autora, por e-mail, em 6/8/2013. Entrevista concedida à autora em 10/8/2012. Entrevista concedida à autora em 20/12/2012.

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RIO DE RIMAS

03. A tradicional, a tradicional... Batalha do Real!

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cap.03 A tradicional, a tradicional... Batalha do Real!

As batalhas de rima, embora consistam na disputa de MCs, apresentam alguns aspectos que as diferenciam. Há batalhas de sangue, de ideias, de conhecimento, de imagens. As batalhas de rima são mais antigas que as próprias rodas de rima cariocas, e a modalidade de sangue é a preferida do público. Ao iniciar a apresentação de uma batalha de sangue, o MC responsável pela apresentação grita — sempre: “O que é que vocês querem ver?” E a plateia responde, animadamente: “Sangue!” A batalha de sangue propõe que a vitória seja da melhor rima, mas permite que os adversários se agridam verbalmente. O mais comum é o participante construir sua rima a partir dos aspectos físicos do seu oponente, de alguma característica marcante e, até mesmo, com base em segredos. É quase um Vale Tudo da rima. Quanto mais desafiadora e ousada for a performance do MC, maior a probabilidade de ele ganhar a disputa. Sobe-se ao palco com o explícito desejo de esculachar o adversário. E para tal, nenhum detalhe físico e moral é poupado — embora nem sempre o público aceite qualquer ofensa.8 A Batalha do Conhecimento, criada por MC Marechal, originou outras com nomes diversos, como Batalha de Ideias, de Palavras, e a de Imagens (pensada por Careca Arts Sanduba); todas elas surgiram na busca de alternativas à batalha de sangue. O apelo maior da batalha de sangue — ridicularizar o oponente — não acontece naquelas outras. Nelas, o desempenho na elaboração do pensamento, a partir de uma imagem projetada no telão, de um filme, de um debate, é que define o vencedor. Esta modalidade de batalha que incentiva um debate de ideias é aclamada pelos que veem nas batalhas de sangue apenas eventos que promovem uma disputa vazia de conteúdo e incentivadora de violência verbal. Há organizadores de 8 Na Batalha do Real, edição de 6/7/2013, excepcionalmente realizada na praça Tiradentes, duelavam, na primeira fase. Um dos MCs fez referência a um problema que o outro tem na mão. Percebendo a rima indevida, houve um pedido de desculpas logo ao fim da apresentação.

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RIO DE RIMAS

Batalha de MCs. CrĂŠdito: acervo pessoal

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cap.03 A tradicional, a tradicional... Batalha do Real!

rodas e batalhas que, preocupados com a grande frequência de crianças e adolescentes a esses eventos, propõem batalhas temáticas. Caso da Roda de Engenho do Mato, que acontece numa praça muito frequentada por crianças: Pelo fato de ter muitas crianças, não faz sentido fazer uma batalha de sangue. A gente faz uma batalha temática, nos moldes da Batalha do Conhecimento do MC Marechal. Ele sabe e dá a maior força pra gente. Aqui não é Lapa: há poucas opções de cultura. Além disso, a nossa realidade é diferente da realidade das gangues, nossas necessidades são outras. Por isso, as batalhas de sangue aqui no nosso cotidiano acabam perdendo o sentido e servindo antes como um exercício do ego do que como um meio pacificador. Podemos evoluir, dar um passo maior com a batalha temática. Nos sentimos influenciados pelo Marechal e também procuramos atuar com independência, fibra ética, moral, algo peculiar dentro do hip-hop, nos dias de hoje. O exemplo que temos do Marechal, isso representa muito para o nosso trabalho. É o tipo de força e inspiração que buscamos.9 (Aline Pereira) As batalhas são compostas por 16 participantes, formando oito duplas que são decididas na hora. Ou seja, os primeiros participantes não sabem com quem vão duelar.10 Desta primeira etapa, saem oito MCs. É possível criar uma tabela, como as de campeonato de futebol — vencedor da primeira batalha com o vencedor da segunda e sucessivamente. Assim, cruzando informações, a partir dessa fase, cada participante já sabe quem será seu oponente, o que facilita bastante, já que podem articular a rima baseando-se nas características de seu adversário. São, ao todo, quatro etapas de batalhas, com dois ou três rounds.

9 Entrevista concedida à autora em 4/8/2013, na Roda Cultural de Engenho do Mato. 10 Assim como não sabem sobre qual beat vão rimar. E a batida — mais lenta, agressiva, rápida — é uma grande aliada do MC.

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RIO DE RIMAS

Cada participante tem 45 segundos, em cada round, para rimar, atacando o adversário. Por meio de sorteio, eles decidem quem começa a batalhar. O segundo candidato tem a vantagem de, durante a performance do primeiro, pensar no que vai dizer. Entretanto, ele dá início ao segundo round, enquanto o primeiro pensa na resposta. Rimar sobre o que o adversário disse, utilizando-se das afirmações dele, é uma estratégia muito valorizada pelo público — é a articulação da resposta de um MC ao ataque do outro que ajuda muito a definir o vitorioso. Ao final do segundo round, o apresentador pede que o público aplauda os candidatos. Ganha o que for mais aplaudido. Como nem sempre a distinção é fácil, é comum o apresentador substituir os aplausos por braços ao alto. Quando nem assim fica clara a decisão do público, parte-se para o terceiro round. É comum, já ao fim do segundo round, antes mesmo de a plateia ser convocada a aplaudir, decidindo a luta, que a mesma grite, implorando o terceiro round: “Ter-cei-ro! Ter-cei-ro!” O campeão da batalha tem direito a um freestyle no fim do show. Nas batalhas, vence que tem a performance mais ousada, a maior torcida e, às vezes, a melhor rima. Nas rodas de rima, a rima é o único valor. Nas batalhas, a rima nem sempre é “convincente”, porque nem mesmo há tempo para elaboração, e a pressão sobre os batalhadores é maior. DJ Bola, rimador referência nesse cenário desde o CIC, percebe uma queda na qualidade da rima carioca: A gente que já batalhou vê que o Rio está num nível muito fraco em relação ao Brasil. O nosso nível de rima está caindo, embora o rep esteja ganhando bastante espaço. Hoje, não se tem o nível das batalhas que havia antigamente. Apesar de entender que é bem difícil subir num palco para dar a cara a tapa.11

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11 Entrevista concedida à autora em 10/9/2012.


cap.03 A tradicional, a tradicional... Batalha do Real!

Logo, é bem comum que a vitória esteja menos atrelada à elaboração da rima e mais à habilidade de reunir um grupo numeroso que defenda o seu território e/ou ao desempenho artístico do batalhador. A questão da territorialização é muito forte nessa cultura de rua. Vota-se no MC pelo talento, mas sobretudo por ele “defender” a sua quebrada: A cidade é Niterói, onde sou nascido e criado Minha família, minha praia, minha gata e meus chegados. E se eu sair daqui, uma parada anota: Já vou pensando em quando será a data de volta! (Oriente)

É interessante observar como o território ganhou contornos de protagonista nas narrativas atuais. O geógrafo Milton Santos, em Por uma outra globalização (Record, 2000, p. 79) apresenta o território como um reflexo da sociedade: Os atores mais poderosos se reservam os melhores pedaços do território e deixam o resto para os outros. Numa situação de extrema competitividade como esta em que vivemos, os lugares repercutem os embates entre os diversos atores, e o território como um todo revela os movimentos de fundo da sociedade. É verdade que o espaço sempre teve marca cativa nas letras que versam sobre o urbano, as favelas e morros, mas nada que, acredito, possa ser comparado à importância adquirida nas obras que começaram a surgir, mais propriamente, nos anos 2000 — na literatura, na música, nas rimas. O dia seguinte a uma grande batalha é especial para os amantes do rep que vivem na localidade de onde saiu o campeão. Posta-se no Facebook a satisfação por ter o território tão bem representado por tal MC. Assim como é comum que o MC faça referência a seu local de origem 29


RIO DE RIMAS

durante a rima, geralmente ressaltando a grandiosidade do lugar. Trata-se de um prêmio maior para o MC e para a comunidade. A premiação varia: livro, camisas, bonés, dinheiro arrecadado com a plateia... pouco importa. Ainda que haja batalhas que premiem com um valor monetário significativo, a fama, os comentários em torno do campeão, a popularidade, a “moral”, parecem valer mais do que qualquer prêmio material. Haja vista que a mais famosa batalha, a do Real, cobra de cada batalhador o valor de R$1,00, arrecadando R$16,00, que são oferecidos ao grande vencedor da noite. Aliás, foi esta cobrança (R$1,00 por participante) que nomeou a batalha — Batalha do Real. Apesar de os critérios para participar das batalhas dependerem bastante do apresentador, que incentiva alguns e rejeita outros, é possível resumi-los assim:

Critérios

30

Batalha de Sangue

Batalha do Conhecimento/ Ideias/Imagens

Xingar a mãe do adversário

Não

Não

Ofender moralmente o adversário

Sim

Não

Palavrões

Sim

Não

Toque físico intimidador

Não

Não

Toque físico pra realçar detalhe

Sim

Sim

Xenofobia

Não

Não


cap.03 A tradicional, a tradicional... Batalha do Real!

A Batalha do Real, a tradicional e mais famosa batalha carioca, é a mais procurada pelos MCs que desejam se aprimorar e se notabilizar. Acontece no primeiro sábado do mês, na Lapa, em local próximo ao Circo Voador, e inicia-se em torno das 19h. Segundo Aori Sauthon, “a Batalha do Real ativou a praça com hip-hop. Várias galeras apareceram, como Cone Crew, Funkero, Tony Mariano. Hoje, temos Ghetto, Buddy Poke, Allan Benevenutto...”.12 Para que um MC ganhe fama na batalha de rima, tem que passar pela Batalha do Real, a grande escola e vitrine. Fale-se bem ou mal, não conheço outra plataforma tão representativa, para os rimadores, quanto a Batalha do Real. Haja vista que centenas de pessoas lotam o espaço — uma praça ao lado direito do Circo Voador, a praça da Batalha do Real. Em dia de Batalha do Real, as redes sociais “bombam” com compartilhamentos, curtidas e confirmação de presença no evento. Para o cenário da rima, a meu ver, é a grande festa! Este ano, por conta dos dez anos de Batalha do Real, a modalidade de seleção dos participantes foi alterada. Até recentemente, os 16 primeiros inscritos no dia, no local da batalha, é que participavam. Agora, há uma reserva de 11 vagas para os vencedores de batalhas que realizam-se nas rodas/batalhas semanais. Ficando assim a distribuição das vagas: 1. Batalha do Real 10 anos 2. Batalha da Caixinha — Marechal Hermes 3. Batalha do bairro de Fátima — Centro 4. Movimento Enraizados — Morro Agudo 5. Quarta Under — Jacarepaguá 6. Roda Cultural da Ilha — Ilha do Governador 7. Roda Cultural do CDC — Petrópolis 8. Roda De São Gonçalo — Batalha do Tanque 9. Roda de Rima de Vila Isabel — Vila Isabel 10. Roda de Rima de Volta Redonda — Volta Redonda 11. Roda Racional da Tim Maia — Recreio 12 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=ANKtz1h3EXo.

31


RIO DE RIMAS

Arte da Batalha do Real.

32

CrĂŠdito: Daniel Juca


PONTUAÇÃO 1° lugar – 75 pontos

Ranking da Batalha do Real 2013 MC´S

2° lugar – 55 pontos Semifinal – 35 pontos Quartas de final – 20 pontos Primeira fase – 5 pontos

PK BUUDY POKE

01/06 06/07 03/08 08/09 02/11

TOTAL

20

35

55

75

75

20

280

X

X

75

05

X

75

155 145

PRIMO

55

X

05

35

20

35

NAAN

20

75

05

35

X

X

135

CARLOS

75

05

20

20

X

X

120

RWAVE

35

55

20

05

05

X

120

ALMEIDA

X

05

35

X

35

20

095

XANDY

X

05

X

50

05

X

060

AREN

35

X

X

20

X

X

055

X

X

X

X

55

X

055

05

X

20

20

05

05

055

FREEJAH

X

X

05

05

20

20

050

SURI

X

X

X

X

X

50

050

05

20

05

05

05

05

045

MELODIA

X

X

05

X

X

35

040

PERREIRA

05

X

35

X

X

X

040

DMIC (GO)

X

35

X

X

X

X

035

OLDI

X

X

X

X

35

X

035

VIDAL

X

X

05

X

20

05

030

SNAIDER

X

20

05

X

X

X

025

20

X

X

X

X

X

020

M.SOUZA

X

20

X

X

X

X

020

OIK

X

20

X

X

X

X

020

PINGUIM

X

X

X

20

X

X

020

BETINHO

X

X

X

X

20

X

020

NATAN

X

X

X

X

X

20

020

BART

20

X

X

X

X

X

020

GPO

05

X

X

05

X

X

010

ARAMIS

05

X

X

X

X

X

005

XD

05

X

X

X

X

X

005

22

X

05

X

X

X

X

005

ELIX

X

05

X

X

X

X

005

TAKASSU (VR-RJ)

X

05

X

X

X

X

005

DROP + SINISTRO

X

05

X

X

X

X

005

BIG EDDY

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FONTE: Liga dos MCs Brutal Crew

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Cesar Schwenk, organizador da Batalha do Real, explica o novo processo de seleção de batalhadores e os critérios de escolha das batalhas: A gente acompanha a cena e escolhe as batalhas mais antigas e representativas da cultura. Começou com a Quarta Under e Enraizados, e este ano incluímos outras oito. Isso descentraliza, fortalece as batalhas locais e aumenta o trânsito na cidade, gerando interesse do MC e do público em circular.13 As cinco vagas restantes são disputadas acirradamente. Os candidatos chegam cada vez mais cedo. Diz-se que na sexta à noite já tem candidato no local, aguardando o início das inscrições, que só ocorre no sábado à tarde. Na edição de agosto, perguntei ao MC M Souza, batalhador famoso e dono de uma rima sofisticada, por que não tem participado. Respondeu: “Eu trabalho. Não posso chegar aqui na sexta, dormir aqui.” Mas Cesar Schwenk diz: “Os batalhadores ainda não chegam na sexta-feira. Mas às 7h, 8h do sábado já tem candidato lá.” Há quem afirme que a tendência é de que as 16 vagas sejam ocupadas, gradativamente, por vencedores das batalhas realizadas pelo estado, o que é visto como um incentivador das rodas e batalhas, já que os interessados em participar da maior vitrine de batalhas não teriam outro meio de chegar ali, a não ser participando de batalhas realizadas por todo o estado do Rio de Janeiro. Por esse motivo, gosto da ideia de que as vagas sejam para participantes de outras batalhas. Todavia, Cesar Schwenk diz que não há a intenção de alterar este formato. As batalhas costumam reunir uma plateia maior do que a das rodas. Creio que por serem menos numerosas e, obviamente, por promoverem uma divertida e acirrada disputa. 13 Entrevista realizada em 9/8/2013. 34


04. Circuito Carioca de Ritmo e Poesia, o CCRP

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RIO DE RIMAS

Arte do CCRP.

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Crédito: Gustavo Chs


cap.04 Circuito Carioca de Ritmo e Poesia,o CCRP

O Circuito Carioca de Ritmo e Poesia,14 conhecido como CCRP, é um projeto do coletivo Comando Selva, criado pelo ambulante cultural Marcus Vinícius de Aquino Santana, o MV Hemp, e pelo rapper Pedro Leib Rozemberg, conhecido como Dropê Comando Selva. O objetivo maior do circuito é a ocupação das ruas, por meio da promoção do encontro de artistas sem reconhecimento pela mídia e outras instâncias tradicionais de legitimação. O coletivo Comando Selva foi criado em Bangu, zona oeste carioca, reunindo profissionais de diversas áreas — como advogados, músicos, ambulantes culturais, atores, líderes comunitários, DJs... Há, por parte de seus mentores, um forte investimento na cultura urbana e na propagação de saberes. De acordo com Dropê Comando Selva, o coletivo prioriza a multiplicação: como a Roda de Rima da Lapa (mencionada anteriormente) tinha frequentadores com potencial para levar adiante o projeto de reunir interessados na rima, foi proposto a alguns jovens — Djoser Botelho (atualmente o responsável pelas ações do CCRP junto ao poder público), Rodrigo Astronanuta, Sahel Klibre, Nissin Oriente, entre outros — que desenvolvessem rodas de rima nos seus bairros, a fim de desconstruir a ideia da Lapa como “o lugar do rep”. Ou seja, qualquer lugar poderia ser lugar do rep; logo, um bom lugar para a rima. Depois de meses, com algumas rodas de rima acontecendo sistematicamente, nasceu o CCRP. As rodas multiplicaram-se, chegando a oito bairros, o que sugeriu a Dropê Comando Selva a criação da designação Circuito Carioca de Ritmo e Poesia — tendo em vista que já se espalhavam pela cidade, organizadas em dias diferentes (para contemplar um número maior de frequentado14 Em 6 de setembro de 2012, o prefeito Eduardo Paes assinou o Decreto nº 36201, que considera as rodas culturais do CCRP um programa cultural da cidade do Rio de Janeiro. Mas Djoser Botelho frisa que esta luta por reconhecimento durou cerca de três anos.

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res), e formavam um conjunto expressivo da rima carioca. Todavia, o projeto crescia em número de participantes e de arte. Com o tempo, a rima deixou de ser a única expressão do movimento e Djoser, organizador da oda de Botafogo, a primeira a crescer e ganhar notoriedade, cunhou o termo roda cultural, por considerá-lo mais adequado à pluralidade artística que as rodas logo revelaram. E qual é a singularidade do CCRP? “É uma rede independente de produção, pesquisa e inovação cultural que estruturou um conjunto de encontros semanais — denominados, antes, rodas de rima, e agora rodas culturais — em praças e espaços públicos de diversos bairros do Rio de Janeiro.”15 O CCRP determina os seguintes critérios para absorver uma roda: ocupação semanal do espaço público; revitalização do mesmo; ao menos um ano de existência; contato com representantes da prefeitura local, a fim de obter autorização para o evento. Trata-se de um grande encontro de jovens unidos pela ideia de ocupar lugares públicos e levar diretamente arte e cultura às pessoas, de forma horizontal e interativa. Com a participação de poetas, músicos, grafiteiros, artistas plásticos, forma uma grande rede cultural que une bairros como Bangu, São Cristóvão, Lapa, Vila Isabel, Botafogo, Méier, Jacarepaguá, Barra. E une pessoas de situação sociocultural diferente, aproveitando-se de praças e ruas, proporcionando lazer e consumo cultural sem a necessidade de gastos (a entrada e participação são gratuitas e os produtos vendidos são comercializados quase pelo preço de custo).16 Candido (2006, p. 155) considera a criação da Faculdade de Direito e das repúblicas de estudantes fatores “decisivos” 15 Trecho do documento enviado, pelo CCRP, à Prefeitura — intitulado “Proposta inicial ao Programa de Desenvolvimento Cultural Carioca de Ritmo e Poesia”.

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16 A Roda de Bangu, atualmente, encontra-se parada, por ter sofrido repressão da milícia. A Roda de Vila Isabel também esteve impedida de se realizar por alguns meses, por imposição da polícia, segundo informação dos frequentadores das praças e dos organizadores do circuito.


cap.04 Circuito Carioca de Ritmo e Poesia,o CCRP

para o surgimento de uma expressão literária em São Paulo, no século XIX: Interessa-nos aqui, justamente, apontar algumas manifestações desse espírito de grupo na literatura; mostrar como a convivência acadêmica propiciou, em São Paulo, a formação de agrupamentos, caracterizados por ideias estéticas, manifestações literárias e atitudes, dando lugar a expressões originais. Ainda que congregue uma multiplicidade de membros que nem sempre comungam dos mesmos propósitos, o CCRP propõe, em sua base de formação, o debate estético, a divulgação de trabalhos de artistas fora do mercado, o estímulo a novos artistas, uma participação mais próxima com os espaços onde estão inseridas as rodas culturais. As rodas, por sua vez, exercem ainda o trabalho fundamental de integrar jovens artistas em busca de aprendizado e reconhecimento. Nuno DV — o mais famoso pichador carioca e artista que investe na tendência do rep reflexivo — afirma sobre as rodas culturais: Os grandes eventos não contratam novos MCs, por melhores que sejam. Eles levam MCs mais conhecidos, mesmo que não sejam bons, mas que, pelo tempo de estrada, fizeram um nome e ganharam público. Esse público, para quem contrata, é o que vale, pois se reveste em bilheteria. Vou às rodas por dois motivos: elas abrem espaço para os novos, e eu sempre vou me considerar um novo MC; e porque o tipo de letra que eu faço não funciona em boate e festinha; tem que ser ouvido por quem curte rep, pois é som de reflexão. Nas festas, eu até vou, mas pelo cachê. Mas sei que onde valorizam o que eu faço é nas rodas.17

17 Disponível em: https://www.facebook.com/nunodv?fref=ts. Acesso: 28/07/2013.

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Filipe Ret, rapper que leva multidões aos seus shows, que tem, entre seguidores e amigos no Facebook, mais de 5000 pessoas, e que faz shows por todo o país, não pode ser tratado, exatamente, como um artista underground ou um iniciante. Entretanto, faz um trabalho incessante de divulgação nas rodas. Quando se apresentou, em janeiro de 2013, na Roda Cultural do Méier, reuniu cerca de 800 pessoas, segundo os organizadores Don Allan Marola, Fabio Broa e Fabricio Mello.18 Luã Medeiros (mais conhecido como Gordo Soldados da Pista) organizador da concorrida Roda Cultural de São Gonçalo, diz que os MCs desejam se apresentar nas rodas culturais mesmo sem cachê, porque lá formam público e vendem CDs. O espaço é usado também na busca por votos. Luã diz que, em época de eleição, os políticos aparecem na praça para angariar a simpatia dos eleitores da roda, que reúne centenas de jovens.19 Assim, as rodas representam um lugar de apadrinhamento e validação para o movimento rep — e não estão subordinadas ao mercado, ao número de fãs ou ao tempo do MC na vida artística. As rodas culturais, além de receberem enorme público — portanto um excelente meio de divulgação e distribuição dos produtos artísticos —, formam, normalmente, uma assistência cuja participação não se restringe ao consumo imediato da arte. Em sua maioria, formam um grupo crítico, atento e fiel aos movimentos da arte urbana. Não obstante ser nomeado de ritmo e poesia, o CCRP não se prende a tais práticas, e estende suas interpretações da arte para rodas de rima, de sons instrumentais, exposição de grafite, de fotografia, batalhas de rima, xarpi, malabares — todas as práticas ao mesmo tempo, coabitando o mesmo espaço e interagindo. Não há eleição de um movimento: há diálogo e harmonia entre as formas culturais.

18 Entrevista concedida à autora no dia 17/6/2013. 40

19 Entrevista concedida à autora em 7/8/2013, na Roda de São Gonçalo.


cap.04 Circuito Carioca de Ritmo e Poesia,o CCRP

Na maioria das praças onde as rodas culturais se realizam, tem uma rampa de skate. Este é um dos esportes mais ligados a essa atividade cultural,20 embora outros esportes, informalmente, possam ocupar o espaço, formando pequenas rodas. O grafite está presente nas paredes ou exposto em papéis presos em cordas, sobretudo quando há alguma comemoração nas rodas. A identificação entre grafiteiros, pichadores, skatistas, rimadores, praticantes de slackline, malabares e demais artistas que expõem nas rodas é de uma intensidade talvez só explicada pela necessidade de fortalecerem-se diante das inúmeras dificuldades da arte urbana alternativa. São tribos que atuam juntas, nas reivindicações, “no fortalecimento”. Existe um investimento para que o movimento se configure como uma teia que receba, cada vez mais, contribuições de todas as expressões culturais, transformando a “poesia da rua” em um movimento plural, que tem seus desdobramentos no rep e em outras sonoridades e formas artísticas. Ou seja, a rima foi o movimento iniciador. E por intermédio dela formou-se um espaço cultural plural e fundamental para a cidade. Fundamental porque, embora o espaço público seja ocupado com arte sem que isso configure uma exceção, o tipo de ocupação que as rodas culturais oferecem é, sem dúvida, singular. E essencial para uma cidade que invista na arte como elemento transformador e criador de subjetividades, e que se deseja democrática. Os encontros acontecem à noite e duram cerca de 4 horas. Há, normalmente, algum artista convidado. Entretanto, o recurso mic aberto possibilita que, mesmo numa noite de apresentações “célebres”, qualquer artista, independentemente do gênero a que se ligue, ocupe o “palco”.

20 Na Roda de São Cristóvão, que acontece em uma enorme praça próxima à Quinta da Boa Vista, há várias quadras de esporte. Talvez, por isso, a prática de esportes durante a realização da roda seja mais forte nesta do que nas demais.

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Mapeamento das rodas culturais do Rio de Janeiro

Roda Cultural do Centro – CCRP • Bairro de Fátima • Sexta • 20h Roda Cultural de Botafogo – CCRP • Praça Mourisco – Botafogo • Terça • 19h30 Roda Cultural de Bangu – CCRP • Praça da Guilherme – Bangu • Domingo • 20h Roda Cultural da Freguesia – CCRP • Freguesia • Quarta • 20h Roda Cultural de Manguinhos/São Cristóvão – CCRP Biblioteca de Manguinhos • Segunda• 19h30 Roda Racional Tim Maia – Recreio – CCRP Praça Tim Maia (Posto 12) – Praia do Recreio • Quinta • 20h Roda Cultural de Vila Isabel – CCRP Praça 7 – Praça Barão de Drummond – Vila Isabel • Quinta • 20h Roda Cultural do Méier – CCRP • Mini Ramp do Méier • Quarta • 18h Roda Cultural da Ilha do Governador Pista de Skate do Aterro do Cocotá • Último sábado do mês • 18h Roda Cultural do Pistão Pista de Skate de Campo Grande • Domingo - Quinzenal • 15h Roda Cultural de Olaria • Olaria • Quinta • 20h Roda Batalha do Bairro de Fátima Praça do Bairro de Fátima – Rio de Janeiro • Sexta • 20h30 Roda Cultural do Rocha • Quadra do Rocha • Domingo • 19h Roda Cultural de São Gonçalo Praça dos Ex-combatentes, Paraíso – São Gonçalo • Quarta •19h30 Roda Cultural de Macaé • Pista de Skate do Parque da Cidade • Quinta • 20h Roda de Rima da Cantareira • Cantareira – Niterói • Segunda • 20h Roda Cultural de Itaboraí • Praça do Outeiro – Itaboraí • Quinta • 19h30 Roda Cultural de Piratininga Rótula do Cafubá – Piratininga - Niterói • Sábado • 19h Roda Cultural de Alcântara • Praça Chico Mendes – Alcântara • Sábado • 19h Roda Cultural do Alto • Praça do Alto – Teresópolis • Domingo • 18h Roda de Saquá • Praça Bem Estar – Ao lado do Clube Saquarema • Quinta • 20h Roda Cultural do Engenho do Mato Praça Irênio de Mattos Pereira – Engenho do Mato • Domingo • 17h 42


cap.04 Circuito Carioca de Ritmo e Poesia,o CCRP

Roda Cultural de Queimados Praça dos Eucaliptos – Queimados • Sexta • 19h30 Roda Cultural de Cabo Frio • Praça da Cidadania – Cabo Frio • Sábado • 20h Roda de Rima de Volta Redonda Praça do Rap (Debaixo da Biblioteca) – Vila - Volta Redonda • Sábado • 19h Roda Cultural de Mesquita Praça da Telemar – Ao lado da Estação Mesquita • Quinta • 20h Roda Cultural de Maria Paula • Trevo de Maria Paula • Sexta • 19h30 Roda Cultural de Rio das Ostras Praça José Pereira Câmara (Praça do Centro) • Sexta • 21h Roda Cultural do CDC Em frente à Câmara dos Vereadores – Petrópolis • Quinta • 19h Roda de Rima da Praça do Galo Praça do Galo – Parque Fluminense - Duque de Caxias • Quinta • 19h30 Roda de Rima do Horto Parque dos Patins – Lagoa - Rio de Janeiro • Quarta • 20h Roda de Rima Pró-Cultura Parque de Skate Nova Cidade – Rio das Ostras • Sexta • 19h Batalha do Real • Lapa • 1º Sábado do mês • 20h Batalha Movimento Enraizado Morro Agudo – Nova Iguaçu • 3º Sábado do mês • 18h Quarta Under • Jacarepaguá • Quarta • 19h Batalha da Caixinha • Praça Montese – Marechal Hermes • Sexta •19h Roda Cultural da PSK Praça Padre Ambrósio – Tanque - Jacarepaguá • Segunda • 20h30 Roda Cultural Soul Pixta Aterro de Cocotá – Ilha do Governador • Quinta • 18h Roda Cultural do Jabour • Rua Raul Azevedo – Jabour • Segunda • 18h Roda Cultural de Duque de Caxias Praça Humaitá, Duque de Caxias • Sexta • 20h Roda Cultural da Lagoinha • Praça da Lagoinha, 98, São Gonçalo • Terça • 19h Roda Cultural de Trindade • Praça da Trindade • Sexta • 18h FONTE: Facebook Rodas Culturais do RJ

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As oito rodas do CCRP, já mencionadas, foram pioneiras na cidade do Rio de Janeiro. Entretanto, por causa do sucesso delas, pelo crescimento do movimento rep, e com o incentivo do público e dos artistas, muitas outras rodas foram surgindo na cidade. Há, atualmente, em torno de 40 rodas catalogadas no grupo Rodas Culturais do RJ, no Facebook (também mencionado anteriormente).21 A cada semana surge uma roda cultural ou mais, no mesmo modelo. No mês de junho de 2013, um dos membros desse grupo, morador de Manaus, publicou o seguinte post: “Satisfação, sou de Manaus, tô querendo fazer uma roda de rima, queria saber os recursos que terei que usar, porque será a primeira roda de rima manauara.” Em 22 de julho, pouco mais de um mês depois, ele voltou ao grupo: Primeira Roda de Rima Manauara (batalha) http://www.youtube. com/watch?v=2eWivQze9uk. Um dos primeiros rimadores com quem tive contato foi Ygor Cub, na Roda de Botafogo. Na época, além de seu talento, sua declaração sobre a sua presença naquele espaço me impressionou muito: “Eu estava passando, ouvi o som e colei aqui por causa da rima.” Ygor Cub morava até recentemente em São Gonçalo. E foi lá que o reencontrei e soube que ele está voltando para Minas Gerais, e formando uma roda cultural em Contagem. “Já estamos indo para quarta edição. A Prefeitura apoiou o movimento e a cada roda tem mais gente participando.”22 Provavelmente há outras rodas, em outros estados, embora não haja registro na internet, até o momento.23 Como já disse, no mês de maio, com meus bolsistas, criei um grupo aberto na rede social Facebook — o Rodas Culturais do RJ. Mesmo que acostumada ao enorme sucesso das rodas culturais e batalhas de rima, fiquei surpresa com

21 Disponível em: https://www.facebook.com/groups/618921451452511/. 22 Depoimento dado na Roda de São Gonçalo, dia 7/8/2013. 44

23 Há notícia de uma outra roda em Juiz de Fora, a Azorra.


cap.04 Circuito Carioca de Ritmo e Poesia,o CCRP

a quantidade de pessoas adicionadas, em poucas horas, e com a intensa participação. A proposta do grupo é reunir informações sobre esses eventos, tais como dia, horário, local, organizadores. A partir daí, mapear as rodas do Rio de Janeiro.24 Além dessa função, o grupo serve também como meio de divulgação das rodas e batalhas, discussão dos problemas da arte urbana, troca de experiência: é um grupo em que só o que diz respeito a este tipo de arte urbana é postado.25 Contudo, logo percebemos que a tarefa de mapear as rodas seria infinda, já que a cada semana surge uma nova roda/ batalha na cidade, no estado. E a cada semana, também, esses eventos sofrem com repressão por parte da polícia, da guarda municipal, não só na capital, mas em tantas outras cidades. Por conta dessa situação frágil da arte no espaço público, o grupo abriu-se, também, para postagens de documentos, decretos, editais relativos à arte pública — ou seja: qualquer material que possa instrumentalizar os organizadores, na disputa pelo espaço da arte nas praças do Rio de Janeiro. Dentre esses documentos, o Decreto nº 36201, assinado pelo prefeito Eduardo Paes em setembro de 2012, é um dos mais divulgados. Mesmo com validade apenas no município do Rio de Janeiro, acredita-se que seja um instrumento com algum poder de legitimação das rodas junto a outras prefeituras.

24 Em princípio, pensamos em mapear as rodas, apenas. Entretanto, têm surgido muitos eventos semelhantes a rodas culturais, que priorizam a batalha de rima. Assim, decidimos, reunir as duas modalidades. 25 Uma das reclamações mais comuns sobre os grupos das rodas culturais, logo debatida no meu grupo de pesquisa, diz respeito ao uso do espaço apenas para reflexões sobre as rodas, e não para divulgação de shows, artistas fora das rodas, e o que acontece com os demais grupos.

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Batalha do Tanque, em São Gonçalo. Crédito: acervo pessoal

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05. As rimas do Rio

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Tem fogo no céu da cidade, não são fogos de artifício É bom me ouvir, melhor não me subestimar Pelo meu tamanho, cara, raça ou vício Sou Gustavo, codinome Black Alien, patente primeiro-tenente Vim vingar os moradores daquele edifício Interestelar setenta e dois, esquadra número sete Na Terra em reconhecimento, aqui desde o início Se tem disposição, junte-se a mim Senão, sai da minha frente e não atrapalha o meu serviço De qualquer maneira, vou passar por cima Na pressão que tem a rima, não há nada de pessoal nisso Nem comédia, nem brincadeira É alto o saldo de soldados mortos Feridos, confinados a uma cadeira O mal domina esse planeta, é preciso combatê-lo Eu tenho minha caneta. (Black Alien)26

O mais interessante neste movimento cultural das rodas e batalhas é o fazer poético, que se realiza como um enorme sarau, em que o artista pode improvisar, declamar um texto originalmente composto para ser cantado, cantar sozinho ou em dupla, com acompanhamento de instrumentos ou de beatbox. No final da década de 1990 e início dos anos 2000, a literatura marginal (termo cunhado pelo escritor Ferréz) instaurava, em São Paulo, uma nova tendência literária que, embora

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26 Disponível em: http://www.vagalume.com.br/black-alien/america-21.html#ixz z2cXrKSb5V.


cap.05 As rimas do Rio

tenha se expandido para outros lugares, notabilizou-se por uma dicção bastante paulista. Não obstante o sucesso dessa tendência literária e seu lugar assegurado na literatura brasileira, não houve ecos significativos na cidade do Rio de Janeiro. O silêncio carioca, neste segmento, era inquietante. As rodas de rima vêm fazer barulho na cidade, criando uma literatura das ruas — em que o poeta pode ser um MC famoso na cena alternativa, um passante atraído pela sonoridade, ou um jovem iniciante, aspirante ao gênero rep. MC CT, 18 anos, rimador desde os 14, conta que seu início na rima aconteceu em uma roda de rima perto de sua casa. Ele, que já se interessava pela cultura hip-hop e recebia influência de rimadores, como Rico Neurótico, Dropê Comando Selva e Nissin Oriente, começou a participar das rodas, passou a batalhar, e veio para o Rio participar da Batalha do Real. Sérgio Vaz, escritor e idealizador da Cooperifa, o mais famoso sarau de São Paulo, em entrevista a Marcos Sanchez, atribui o início dos saraus, na capital paulista, ao movimento rep: Foi o hip-hop que começou a falar da periferia. Os rappers falavam da sua realidade, dos seus bairros, assim como a bossa nova falava de Ipanema e de Copacabana. As pessoas tinham vergonha de falar que moravam na periferia. [Mas] quem deveria ter vergonha é o governo e não a gente. O movimento negro começou a se assumir e o pobre também.27 Enquanto os saraus de São Paulo obedecem a um ritual que tem no silêncio um dos protagonistas, em que a poesia é declamada sem nenhum acompanhamento, sendo a expressão única e majestosa do evento, no Rio, o sarau das rodas culturais pede barulho e divide a cena com outras formas de arte — principalmente, com o ritmo. As rodas culturais cariocas são fomentadas pela cena rep alternativa. Quando iniciei a pesquisa buscava apenas en27 Disponível em: http://www.dw.de/literatura-marginal-brasileira-ultrapassafronteira-das-periferias/a-168352490.

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tender o porquê da eleição da rima pelos jovens. Não tinha conhecimento de que aqueles rimadores, em sua maior parte, estavam ali por terem escolhido o rep. Ou seja, chegaram ali com o hábito-paixão-vício já assentado pela cultura rep, porque ouviam Racionais MCs, Sabotage, assistiam ao Marechal, Dropê Comando Selva, Rico Neurótico, MV Hemp, Gil Metralha e tantos outros talentos rimarem. O próprio surgimento das rodas de rima deve-se à cena rep. Isso explica o embaralhamento de rimadores diante da minha infalível pergunta, quando iniciei a pesquisa: “Isso é um poema? O que você declamou na festa tal é um poema? É letra de alguma música?” E as respostas, invariavelmente, eram semelhantes: “É rep. Rep é ritmo e poesia. Eu só tiro o som e declamo.” Comentando com o rapper Dropê Comando Selva sobre a inibição de alguns rimadores diante do mic,28 o que, por vezes, torna as rimas nas rodas mais raras e as músicas mais numerosas, ele me perguntou: “Mas você não considera a música (no caso, o rep), rima?” No Facebook há uma página — Literatura do Rap29 — que se apresenta assim: Fortalecendo a cultura rap. Curta a página e fique por dentro do que está rolando no cenário rap/hip-hop; entrevistas, frases, downloads, músicas, vídeos e informações! Visitando a página, pode-se comprovar uma narrativa do rep, pois é possível acompanhar o que está ocorrendo na música, o que se pensa sobre determinado assunto, ler citações de rappers e outros personagens relevantes, além de buscar e dar apoio a manifestações. É uma crônica da cena rep.

28 MC Bola acredita que grande parte do sucesso das rodas de rima formadas sob os Arcos da Lapa, com o fim do CIC, se deve à ausência do microfone, o que favorecia a performance dos mais tímidos. 50

29 Disponível em: https://www.facebook.com/LiteraturadoRap?fref=ts.


cap.05 As rimas do Rio

Logo que me apresentei como uma professora de literatura que investigava as rodas culturais, MC Marechal foi rápido na pergunta: “Você acha que falta literatura nas rodas culturais?” Situações que revelam o quão amplo é o conceito de literatura, para os poetas de rua do século XXI. A primeira década do século XXI foi especialmente prolífica para a literatura de periferia, em São Paulo — hoje, com absoluto reconhecimento e lugar na história da literatura brasileira. Da cena literária de periferia no Rio, na mesma época, não se tem notícia; despertou ano passado, com a FLUPP. No entanto, pode-se afirmar que este silêncio não existia na literatura urbana carioca, que, no início da década passada, já gritava seus versos pelas ruas. O registro dessa história pode ser encontrado no YouTube, nas redes sociais, na memória dos jovens que ocupam as praças com atitude, sons, cores, rimas e sentimento. Este último, o mais nobre elemento defendido na cena poética urbana carioca. Com certeza e com cerveja Eu não ligo pra igreja Eles mostram a imagem de Deus branquinho pra que você veja Mas com “nós” é diferente nosso freestyle é da mente 100% entorpecente. Te mostrar conhecimento?! Foda-se essa merda do dinheiro que eles roubam lá dentro Eu não preciso disso, eu sou a rua Eu sou a humildade, cultura pras crianças, literatura. (Essiele)30

30 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=m_l2DP84Upk.

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06. MĂŠtrica, ritmo e rimas

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cap.06 Métrica, ritmo e rimas

MC que é MC rima em qualquer tema qualquer esquema, qualquer esquina vira cena de cinema se destaca pelo que pensa, reconhece a recompensa alcança as grandes mídias sem assessoria de imprensa. (Nissin Oriente)

A poética das ruas não obedece a um único esquema: fala-se de todo tipo de tema — embora os de conotação sociopolítica sejam mais aplaudidos; a métrica é variável, o estilo é livre, e os MCs criam novas medidas, palavras, combinações. Uma medida muito usada e facilmente perceptível é o 4x4. Consiste em o rimador apresentar uma estrofe de quatro versos, seguido por outro MC, que mantém a medida até completarem 16 versos. A última palavra do quarto verso, entretanto, deve aparecer no primeiro verso do outro rimador. E assim alternam-se, independentemente do número de rimadores. O 4x4, de acordo com Dropê Comando Selva, “é uma forma da rima girar, de ser compartilhada”. Mas esta é uma métrica combinada entre os rimadores, porque há liberdade para a prática da rima, principalmente em se tratando de freestyle. Neste exemplo de freestyle, com a temática de traição, Cleo inicia, propondo o tema, que é seguido por todos. A retomada da palavra que aparece no último verso, pelo MC seguinte, no entanto, nem sempre se realiza.31 Cleo: Essa é a realidade Eu posso ser solteira mas ter um relacionamento de verdade sem falsidade, sem pilantragem, sem trairagem.

31 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=buX8psATmLE.

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Henrique: Sem trairagem, não pode traição porque o encontro de duas almas não é à toa não é amor pela flor o amor de todo compositor. Taz Mureb: Os “homi” adora fala mal de “mulé” mas tá solteiro às vezes porque nenhuma te quer Tu tá ligado qual é, chega mina de boné e freestyle verdadeiro, mano, é muita fé. Squizo: Mas na moral, melhor tu parar de ser bobo traição e perdão é igual traição de novo é um recado, homem que não presta mas tem mulher também que acha que é santa mas tá escrito “puta” na testa.

Entretanto, em relacão ao tempo da rima, não há liberdade: o MC deve rimar dentro do compasso, respeitando seu flow, sua velocidade. Dependendo do ritmo do MC — mais veloz, mais lento —, ele inclui mais ou menos palavras dentro do verso. O importante é que a rima dele feche dentro da marcação. Nem sempre isso ocorre, o que é uma falha para o rimador. E como as bases nunca são indicadas de antemão, no caso das batalhas o MC toma consciência delas na hora da apresentação e, de imediato, tem que adaptar seus versos a ela.

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cap.06 Métrica, ritmo e rimas

Tudo que eu fiz, sempre fiz pela METADE Abandonei os estudos, não entrei na FACULDADE. (Nuno DV)

O primeiro verso possui 11 sílabas poéticas, e o segundo, 14. Independentemente do tamanho do verso, o MC deve fazê-lo caber na marcação. Às vezes, o MC dá uma acelerada na emissão do verso — é quase impossível identificar as palavras nesse momento, tamanha a rapidez de enunciação —, o que se chama flipada. Mas ainda assim, apesar da velocidade acelerada com que apresenta as palavras dentro do verso, ele respeita a marcação e conclui a rima no tempo imposto... Ou seja, a batida é o elemento que controla o MC. No mais, ele tem liberdade. Nissin Oriente, neste freestyle, desenvolve seus versos com liberdade: a rima se faz entre os dois primeiros; o terceiro com o quarto, e com os quatro versos finais. Aqui não tem nenhuma pose fazendo um freestyle pra professora Rôssi Que daqui a pouco vai ser PhD em cultura Por isso a gente valoriza a literatura, a escritura que a gente põe no papel indo do inferno diretamente pro céu Todo mundo é juiz, todo mundo é réu Todo mundo é abelha que tá produzindo mel [...] Em relação à produção da rima, não há mesmo uma única origem. MCs têm métodos e recursos diferentes — por vezes, até antagônicos. Leitura, informação atualizada, vida cultural, trabalho incessante sobre versos, seleção vocabular não exatamente formam as rimas das ruas. 55


RIO DE RIMAS

PK é um iniciante que tem investido na elaboração da rima:32 Eu leio livros e fico com o dicionário do lado. Todas as palavras que não entendo eu procuro nele. Às vezes eu fico lendo o dicionário também. A rima é quase que um vício: eu vou andando na rua e rimando com tudo. Para ter ideias eu vejo filmes, desenhos e os jornais da TV. Já Buddy Poke, 16 anos, bastante conhecido e respeitado nas batalhas, explica de outra maneira sua produção:33 Produzir as rimas é algo muito diferente, algo muito mágico, muito fácil pra quem sabe e muito complicado pra quem está de fora. Dizem que pra saber rimar é preciso ler muitos livros, ler o dicionário, ter estudos em excesso etc. Eu digo que não é verdade: nunca gostei de ler livros e nunca fui muito chegado a dicionário. Rimas são mágicas, é necessário criatividade, principalmente em batalhas. A agilidade de pensar, a forma de expressar as rimas e o jeito de praticar não têm explicação; simplesmente fluem... Ghetto, o primeiro rimador a respeito de quem ouvi inúmeros elogios, nas ruas, e cujo vocabulário é incomum e sofisticado, declarou que sentia dificuldade em explicar sua rima:34 Black Alien, MC Marechal, são referências para mim, porque falam de atualidades, são versáteis. Minha rima vem de tanto ouvir música diversa. Não leio tanto, mas vejo filmes, presto atenção às palavras de uma conversa, tenho a mente aberta, aflorada. Fico atento ao que vejo nas ruas. Eu me utilizo muito do rep pra escrita, mas todo o resto como o beat e o flow vêm de influencia do rock, devido ao fato de eu ter crescido numa casa de roqueiros.

32 Conversa com a autora pelo Facebook, em 11/8/2013. 33 Conversa com a autora pelo Facebook, em 11/8/2013. 56

34 Entrevista concedida à autora, por telefone, em 11/8/2013.


cap.06 Métrica, ritmo e rimas

Gil Metralha, unanimidade na rima, um dos recordistas em vitórias nas batalhas, diz: Eu sempre tive boas referências: Sabotage, Quinto Andar, Planet Hemp, Chico Science... Eu trocava o livro e a televisão pela música. O que me dava títulos era minha espontaneidade, meu humor: não tinha vergonha de falar nada do que pensava. E a galera achava engraçado.35 Para Nissin Oriente, poeta de uma sensibilidade, delicadeza e competência ímpares, talvez o maior poeta da geração que se criou assistindo aos mestres do CIC, o contato com a arte da rima e do improviso se deu com [...] os ditados do colégio. Eu lia, rapidamente, as palavras que eram colocadas no quadro, decorava. Depois, foi com o contato com a música: lia tudo, sabia as letras. Mais tarde passei a brincar de rima. Eu nem sabia que havia batalhas. Fazia só para me divertir. Até conhecer a Batalha do Real.36 Zumthor (2010, p. 39), em seus estudos de poesia oral, performance e recepção, reconhece como realização poética o produto dos transmissores orais — que, mesmo sem o recurso da escrita, devem ser inseridos na lista de poetas. Reconhecendo as distinções entre as duas formas literárias, a escrita e a oral — especificidades apontadas com esmero em seus estudos —, o teórico é assertivo na legitimação da poesia oral: A noção de literariedade se aplica à poesia oral? O termo é indiferente: eu defendo a ideia de que existe um discurso marcado, socialmente reconhecível como tal, de modo imediato. A despeito de uma certa tendência atual, descarto o critério de qualidade, devido à sua grande imprecisão. É poesia, é literatura, o que o público — leitores ou ouvintes — recebe como tal, percebendo uma intenção não exclusivamente pragmática: o poema, com efeito (ou de forma geral, 35 Entrevista concedida à autora em 13/8/2013. 36 Entrevista realizada pela autora em 26/5/2013.

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o texto literário), é sentido como a maior manifestação particular, em um dado tempo e em dado lugar, de um amplo discurso constituindo globalmente, um tropo dos discursos usuais proferidos no meio do grupo social. Embora a maioria dos rimadores — rappers ou não — tenha seus posts do Facebook bastante comentados, curtidos e compartilhados, seja qual for o tema exposto, há uma distinção nos comentários, na efusão de seus fãs. Quando postam suas rimas, em segundos, além das curtidas, surgem expressões como: “Mestre”, “Mandou”, “Representou”. A respeito da lacuna que a mídia intenta reduzir, no caso da “reprodução” da performance, Zumthor (2010, p. 275) observa que: [...] enquanto oral, não é jamais reiterável: a função de nossa mídia é de suprir essa incapacidade. Uma reprise é sempre possível; de fato, é excepcional que uma obra não seja objeto de várias performances: ela não é forçosamente nunca a mesma. Mas, dentro do que o teórico chama de “falsa reiterabilidade”, há uma página no Facebook que seleciona os versos que causam mais comoção entre o público, nos eventos. E, ainda que de modo bastante incompleto, seja possível reviver, experimentar, através dos comentários, a euforia da plateia, nenhuma tentativa de reprodução desta poesia oral, por mais aprimorada que seja, dará conta da emoção que a rima, mesmo simples, provoca no ouvinte ao vivo: “Marechal falou/você não entendeu na missão/Flow não é porra nenhuma/se não tem nada de informação.” (Naan). Esse post recebeu comentários como: “Pesado!” e “Só quem tava sabe como foi foda. Rs.” E outro: “Ele dança, ele anda, mas minha rima destrói/Fica parado: é batalha de rima, não batalha de B-Boy.” (Ghetto), seguido dos comentários: “Kkkkkkkkkk. Ele é foda!” e “O melhor na minha opinião!”.37

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37 Destacados da página: https://www.facebook.com/pages/Mestres-de-Cerim% C3%B4nia/541964472481309?ref=ts&fref=ts.


cap.06 Métrica, ritmo e rimas

Os comentários são diferentes quando o rimador produz posts de outra ordem que não a artística. Isso confirma a situação excepcional do discurso do rimador. A recepção desse trabalho como poesia pode ser melhor compreendida pelo público tomando-se a performance como o meio agenciador de tal literariedade, já que o ato envolve locutor e ouvinte, numa relacão de dependência para a “realização” poética. Ou seja: há um poeta que só ganha existência, bem como sua arte, na medida em que o público o completa, porque assim deseja. O ouvinte atua como um coautor. A componente fundamental da “recepção” é, assim, a ação do ouvinte, recriando, de acordo com seu próprio uso e suas próprias configurações interiores, o universo significante que lhe é transmitido [...] Poderíamos, sem paradoxo, distinguir assim, na pessoa do ouvinte, dois papéis: o de receptor e o de autor. (Zumthor, 2010, p. 258) Nas rodas culturais e batalhas de rima, a participação do público nunca se limita à contemplação passiva. Com gritos de “Wow!”, braços levantados como se louvassem o artista, acompanhamento do canto, formando quase uma segunda voz, fazendo sinais com os braços, indicando que acabou a disputa, fazendo barulho, entre outras intervenções, o público assina a sua participação na obra. Por outro lado, ainda que seja ocorrência rara, algumas apresentações se desenrolam praticamente sem sensibilizar o ouvinte; mesmo incitado pelo locutor e/ou apresentador, ele pode silenciar. Portanto, é preciso haver uma “predisposição”, por parte da plateia, para a realização da poesia. E esta predisposição deriva de uma certa simpatia pelo locutor, de um apreço por determinada rima, do percurso artístico do rimador, da origem e, até mesmo, da idade do poeta.

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Talvez, por isso, Allan Benevenutto, grande vencedor de batalhas, preocupe-se tanto com o desejo do público: O MC fica rimando para o adversário e o espetáculo é para o público. Se é para o público, vamos falar mais em cultura. Os MCs que se destacam no Brasil têm um estilo próprio. Quando os MCs passarem a rimar mais para o público, a batalha de sangue será mais aceita e os MCs, mais profissionais.38

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38 Entrevista realizada pela autora em 18/8/2013.


07. O pĂşblico: um jĂşri passional

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Minhas observações das rodas culturais e batalhas de rima me levam a afirmar que alguns MCs já chegam à disputa campeões, tamanha a energia que a plateia emite ao ouvir seus nomes. De certo que há aqueles que conquistam o público na hora, mesmo sendo pouco conhecidos no Rio. Entretanto, a alguns rimadores, é atribuída uma “aura” que, provavelmente, não só lhes confere, de antemão, a vitória, como inibe a participação dos menos conhecidos. É uma reunião muito semelhante a das torcidas organizadas de futebol. Ao identificar o impacto que as repúblicas de estudantes exerciam sobre a produção literária no século XIX, Candido (2006, p. 161) permite que façamos, hoje, uma identificação análoga — a do papel das plateias na legitimação das rodas e batalhas: [...] as repúblicas constituíam o público — elemento básico do funcionamento e na continuidade da literatura. No século passado, os estudantes de São Paulo tiveram este privilégio pouco vulgar no Brasil de então: saída certa para a sua atividade intelectual. Imagine-se o estímulo que decorria, devido à ressonância entre os colegas, espécie de auditório ou conjunto permanente de leitores, cuja opinião formava pedestal para a evidência das obras na comunidade e eventualmente no país. Nas rodas de rima das rodas culturais e, principalmente, nas batalhas de rima, nem sempre vence o que faz a melhor rima. É comum ouvir, na plateia, reclamações sobre o vencedor. Isso porque vence o artista que o público escolhe; e o público escolhe, via de regra, aquele por quem tem mais empatia — não necessariamente quem se apresentou com maior talento. Dá-se a vitória ao amigo do bairro, já que o território é um elemento de negociação fortíssimo nessa arte urbana. O vencedor não recebe sozinho o prêmio; carrega consigo, simbolicamente, o local de origem, de pertencimento. E isso funciona com uma afirmação do rimador 62


cap.07 O público: um júri passional

na sua localidade e nos grupos culturais que formam a cena rep. Assim é comum, no dia seguinte à vitória, nas redes sociais, o elogio ao vencedor estar entrelaçado ao elogio ao bairro de onde ele vem. É a vitória do território. O próprio rimador exalta o nome da sua comunidade durante a performance, reivindicando um protagonismo na construção da cena da rima local. Assim, São Gonçalo viveu momentos de euforia ao ter seu MC Naan vencedor da batalha que decidiu o representante do Rio de Janeiro no Duelo Nacional de MCs. Os comentários no perfil de Naan no Facebook exibiam o orgulho do território: “Caralho, mano, notícia do ano pro rapsg! Na humilde!” e “Pow pow pow respeita Sg terra de forasteiro — CAVERNA TÁ NO PÁREO!! Parabéns Naan.” É comun, nesta arte de rua, que o MC associe ao seu nome siglas que identificam o seu lugar — zona norte, zona sul, zona oeste —, como Ghetto ZN. Assim como é constante o grito de “ZN”, “ZS”, “ZO”, durante as apresentações dos MCs. Em uma edição da Batalha de Imagem, em 2012, na Carioca, Fercley Alta Consequência iniciava a sua apresentação quando alguém gritou “Viva ZN!” No mesmo instante, ele parou e falou: “ZN, não. Zona Oeste!” Fercley mora em Bangu, e organizou a Roda Cultural de Bangu até a milícia impedi-la de funcionar. Não quero dizer que as vitórias sejam injustas, mas salientar que os critérios de classificação passam mais por emoções do que por avaliações técnicas. O flow, a rima rara, a métrica são preteridos, por vezes, em favor da simpatia, pertencimento, imposição da voz, ofensas, outros critérios não poéticos. Gordo Soldados da Pista, apresentador da Batalha do Tanque, na Roda Cultural de São Gonçalo, diz que quando está apresentando uma batalha e percebe que a plateia tende a dar a vitória para um MC por qualquer outro motivo que não seja a melhor rima, manda um recado para 63


RIO DE RIMAS

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Batalha do Real. CrĂŠdito: acervo pessoal

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o público, chamando sua atenção para a seriedade que se deve ter na avaliação.39 Na Batalha do Real, edição de julho 2013, houve a apresentação de um menino de 12 anos, o MC Melodia. Além de talentoso, o menino é carismático, ousado e tem uma performance envolvente. Ele disputava com um MC extremamente bom, RWave. Percebia-se que o público estava emocionado com a atuação do menor, inclusive o próprio apresentador da batalha, MC Funkero. Isso levou a disputa ao terceiro round. RWave ganhou, então, mas com pequeníssima margem de diferença. Acredito que isso tenha ocorrido mais pela empatia do público com o menino do que pela qualidade que ele apresentou na rima. Acompanhei os eventos de rima por muito tempo, apenas como observadora. Não me manifestava, gritando, aplaudindo, nem mesmo quando considerava mágica a atuação do MC. Nunca participei das pesquisas no Facebook — “Quem você acha que vai ganhar a Batalha tal?” Não queria, de repente, ter problemas com os rimadores, quase todos devidamente contatados para entrevistas. Aos poucos, conhecendo mais amiúde os rimadores, tantas vezes me flagrei torcendo por certos MCs, silenciosamente; e convidando amigos para verificarem as performances desses artistas. Por fim, depois de mais de um ano envolvida com batalhas e rodas de rima, às vezes, me flagro gritando, aplaudindo — ou seja: votando em um MC. E mais: nem sempre é o MC autor da melhor rima. Muitas vezes, meu voto é levado por questões outras que não a rima perfeita que tanto prezo. Certa vez, um organizador de roda cultural inscreveu-se numa batalha. Eu, que o admiro pela inteligência, militância e performance, fui assistir à batalha, torcendo por ele — que, inclusive, havia me confidenciado desejar mostrar para a garotada da plateia que havia outras formas de rimar sem ser “sanguinárias”. O duelo de que ele participou foi 66

39 Entrevista concedida à autora em 7/8/2013, na Roda de São Gonçalo.


cap.07 O público: um júri passional

considerado o melhor da noite, mas ele foi eliminado. Eu quis, naquele momento, abandonar o evento, por considerar injustíssimo o resultado. Eventualmente, sou também tomada pelas mesmas paixões que arrebatam a plateia que pesquiso.

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08. “Tua rima é decorada!”: ofensa maior

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cap.08 “Tua rima é decorada!”: ofensa maior

Improviso que não é decoração é de coração.

(Dropê Comando Selva)

Além da decisiva contribuição ao resultado, a plateia também colabora significativamente com as rimas. A arte do improviso é bastante devedora aos estímulos do público. Durante o freestyle, de repente, uma roupa, um penteado, uma careta, alteram o percurso da rima, tornando o espectador um coadjuvante do rimador: “Eu era fissurado! Rimava tomando banho, na escola, na rua. Via um ônibus, cachorro, saco de lixo e rimava sobre aquilo.”40 Mas trata-se de uma arte geradora de polêmica. Dizer que a rima do MC “é decorada” é um insulto grave neste meio. E o limite entre o preparado, o organizado e o decorado é tênue. Por isso, quanto mais referências ao cenário — público, adversário, situações, fatos inusitados acontecidos durante a apresentação do MC —, menos decorada será considerada sua rima. E isso é mais comum nas rodas, onde o MC está rimando de brincadeira. Ainda que as rodas de rima sejam a escola de rimas, lá a descontração é total, não há regras fixas, o rimador pode errar, parar de repente, o público em torno ri, debocha, mas é uma ambiente familiar. Já em eventos de disputa, não. Improviso vem da alma. E quando eu rimo, parceiro, eu sou um canal divino espiritual: literatura marginal a servir a e a salvar... (Rico Neurótico) Por outro lado, a rima é classificada como decorada, quando é considerada muito boa. E isso deveria equivaler a um elogio para o MC. Mas é motivo de desentendimentos, charge, comentários nas redes sociais, ou seja, é o tipo de menção que macula a imagem do rimador. Entretanto, mesmo raramente, a ofensa pode receber uma outra leitura:

40 Entrevista com MC CT, do grupo Caixa Baixa, concedida à autora em 7/5/2013.

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PASSANDO PRA AGRADECER UNS 2 ou 3 carinha do YOUTUBE, QUEM TEM CORAGEM DE DIZER QUE EU MANDEI ALGUMA RIMA DECORADA. Ao contrário dos outros MCs, eu gosto quando o cara fala que eu decorei. ISSO PROVA QUE CHEGUEI AO NÍVEL DE FREESTYLE EM QUE O OUVINTE NÃO ACREDITA QUE EU INVENTEI NA HORA. ISSO É MUITO BOM!!!! (Autor desconhecido)

Todos os rimadores entrevistados — e minhas observações, nas rodas de rima e batalhas, comprovam — carregam consigo algumas estruturas que são usadas comumente: algumas palavras e estrofes adaptáveis a qualquer situação, que farão parte de qualquer espetáculo do MC. Novamente é MC CT que afirma: “O dia em que o MC não está com inspiração, vai repetir o que já falou, o que o outro falou. Ele não produz sempre coisas novas. Todo MC, uma hora, vai repetir.” E há palavras/expressões infalíveis nos discursos do MCs, como “se liga”, “proceder”, “tá ligado”, “na moral”, “papo certo”, “na humildade”, “mando no improvisado” — recordistas nos encontros de rima e, às vezes, comprometedoras da rima de qualidade. Além da polêmica sobre as expressões prontas, há estruturas na rima do MC que, com frequência, não convencem como improviso. O excelente freestyleiro Nissin Oriente tenta explicar a diferença entre a pesquisa vocabular e a rima pronta:

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cap.08 “Tua rima é decorada!”: ofensa maior

Sempre tinha sessões maneiras de improviso com a galera do Comando Selva. Essa galera tem um entendimento alucinante do movimento. Eu ficava com eles brincando e desenvolvendo a arte. Porque pra rimar, o MC normalmente pesquisa. Todos os MCs de batalha têm um trecho preparado. Mas não pode ser decorado; decorado é fake! 41 PK, MC iniciante e já campeão de batalhas, confidenciou, a respeito das rimas prontas: Quando eu improviso pela rua não uso, mas nas batalhas eu já levo algumas ideias formadas. Todo MC tem suas rimas de suporte, embora o que o faça ganhar a batalha seja a resposta — e esta não tem como ser decorada, pois é feita na hora.42 Assim, o discurso, em quase sua totalidade, é construído no momento. E para isso, além do repertório do locutor, os signos captados entre o público são de grande auxílio.

41 Entrevista realizada pela autora em 26/5/2013. 42 Conversa com a autora pelo Facebook, em 11/8/2013.

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09. Manifestação da literatura carioca

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cap.09 Manifestação da literatura carioca

Como os encontros ocorrem diariamente e possuem um público diversificado e fiel, favorecem e incentivam uma enorme poética, por meio do freestyle, das rodas e batalhas de rima, aponto este movimento como uma recente e criativa expressão literária carioca; ou seja, uma tendência notável entre as inúmeras possibilidades de fazer literário atuais: A lua é minha companheira, não vivo na solidão Meu perfume exala amor, sexo e sedução Flui na imaginação do mais nobre cidadão Libido na intenção: 12h de paixão! (Rico Neurótico)43

Em “A literatura na evolução de uma comunidade”, Antonio Candido (2006, p. 147) diz que “se não existe literatura paulista, gaúcha ou pernambucana, há sem dúvida uma literatura brasileira manifestando-se de modo diferente nos Estados”. E as rodas culturais cariocas são, nos últimos anos, o lugar especial de manifestação de uma literatura carioca e urbana. Segundo Candido (2006), para haver literatura, é necessária uma congregação, grupo formal com afinidades, um estilo, um sistema de valores que delineie a produção, ressonância e herança. As rodas cariocas, à exceção deste último aspecto — obviamente não se pode falar em herança, no sentido proposto por Candido, dado o recente surgimento do circuito —, apresentam os demais elementos formadores de uma expressão literária. Contudo, até mesmo a herança, de modo sutil, pode ser verificada, tendo em vista que os MCs mais novos apontam os mais antigos como referências, como mestres. Nomes como Papo Reto, Dropê Comando Selva, Fabio Beleza, Gil Metralha, Marechal, MCs que, nos anos 2000, indicavam a direção do rep carioca, são comumente citados pelos MCs iniciantes. 43 Disponível em: https://www.facebook.com/riconeurotico?fref=ts.

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Percebo três gerações/referências para os rimadores: os nomes citados acima são parte da velha guarda; depois, há Allan Benevenutto, Nissin Oriente, Aramis, Ghetto, M Souza, intermediários; e Buddy Poke, PK, CT, TK, Naan, entre outros mais jovens, que estão ajudando a fomentar a nova cara da cultura rep carioca. Todos convivem com o máximo respeito e admiração. Entretanto, ao comentar sobre essas gerações, alguns MCs discordaram do lugar que lhes é conferido, por se considerarem ainda aprendizes: “Eu me considero da última geração, porque tô rolando agora. Há quatro anos, ninguém me conhecia.” (Ghetto).44 Vejamos: as rodas constituintes do CCRP possuem, no mínimo, um ano de existência. Cada roda tem, na organização, dois ou três gestores e uma média de público em torno de 100 a 300 pessoas por noite. Estas rodas realizam-se semanalmente e têm, em cada edição, a produção da poesia em tempo real, ou a promoção de uma rima elaborada anteriormente. Em depoimentos, vários MCs afirmam que começaram assistindo a outros MCs e, por se sensibilizarem com o rep, passaram a treinar, assistir a vídeos, ler, buscar um repertório para participar das apresentações. Nem todos os que desejam rimar chegam às rodas e batalhas já com disposição para tal. MC M Souza, quando indagado a respeito do grupo a que se sentia ligado, disse:45 Eu tive meus primeiros contatos com o rep em 2005, com essa galera aí que você citou primeiro. Tudo que eu aprendi e minhas influências vêm dessa geração mais antiga mesmo. Digamos que essa segunda geração que você cita foi o momento em que eu decidi botar mais na prática todo aprendizado passado anteriormente!

44 Entrevista concedida à autora, por telefone, em 11/8/2013. 74

45 Depoimento dado à autora, via Facebook, em 10/8/2013.


cap.09 Manifestação da literatura carioca

Ainda, o fazer social — a preocupação verificada na produção poética e na organização do evento, na ocupação do espaço público de forma democrática, no acesso à arte por todos, na participação indistinta dos artistas, entre tantas outras questões sociais — é um aspecto singular, que não pode ser desconsiderado na proposta deste movimento como expressão literária, urbana, carioca. Ocorre, portanto, um antes impensável encontro de parnasianos e modernistas, nas ruas do Rio de Janeiro: [...] Foi assim no começo eu aprendi com os tropeços Adquiri experiência, sei bem o que eu mereço Porque talento é do berço, do esperma até os avessos Não tô lançando CD, tô preparando arremesso Não tô quebrado com gesso nem derrotado na lona Tô preparando o ataque e várias noites de insônia. [...] (M Souza)

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10. Quando parnasianos e modernistas se encontram

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cap.10 Quando parnasianos e modernistas se encontram

Artista sem comprometimento sociocultural, pra mim, é egoísta. A arte vem da consciência coletiva, da troca e vibração humana. É você dando sua participação para um TODO. (Dropê Comando Selva)

No final do século XIX conviviam, no Brasil, dois movimentos literários: Realismo/Naturalismo e Parnasianismo — este último, na poesia. Enquanto o primeiro propunha enfaticamente uma arte com olhar crítico sobre instituições e sociedade, não se furtando a apresentar as mazelas da vida urbana, o cinismo, a impotência dos homens comuns diante do poder instituído, ente outras denúncias, o último propunha o belo como elemento fundamental da arte. Os parnasianos buscavam o rigor métrico, a forma perfeita, o vocábulo incomum, a rima rara, o distanciamento da realidade; uma “arte pela arte”. Não à toa, Profissão de fé, de Olavo Bilac, é o poema que melhor sintetiza a proposta do poeta parnasiano: Invejo o ourives quando escrevo: Imito o amor Com que ele, em ouro, o alto relevo Faz de uma flor. Imito-o. E, pois, nem de Carrara A pedra firo: O alvo cristal, a pedra rara, O ônix prefiro.

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Por isso, corre, por servir-me, Sobre o papel A pena, como em prata firme Corre o cinzel. Corre; desenha, enfeita a imagem, A ideia veste: Cinge-lhe ao corpo a ampla roupagem Azul-celeste. Torce, aprimora, alteia, lima A frase; e, enfim, No verso de ouro engasta a rima, Como um rubim. Quero que a estrofe cristalina, Dobrada ao jeito Do ourives, saia da oficina Sem um defeito: E que o lavor do verso, acaso, Por tão sutil, Possa o lavor lembrar de um vaso De Becerril. E horas sem conto passo, mudo, O olhar atento, A trabalhar, longe de tudo O pensamento. 78


cap.10 Quando parnasianos e modernistas se encontram

Porque o escrever — tanta perícia, Tanta requer, Que oficio tal... nem há notícia De outro qualquer. Assim procedo. Minha pena Segue esta norma, Por te servir, Deusa serena, Serena Forma! Nos anos 2000, nas ruas do Rio de Janeiro, surge um grupo cuja comparação com os poetas parnasianos é inevitável: os rimadores das rodas e batalhas. Entender a paixão pela rima é complexo. A relação com o rep — ritmo e poesia — não parece suficiente para justificar que um grupo numeroso de jovens ocupe as ruas da cidade para fazer um freestyle, participar de uma batalha de rima, rimar em pequenas rodas, sem compromisso, mas com paixão e primor: [...] que Deus me livre das maldições do sucesso, das ilusões do progresso, das exclusões do acesso, das confusões do processo, das citações em excesso... (Nissin Oriente)

MC CT explica o preparo para a rima: De tanto rimar em qualquer situação, eu fui ganhando vocabulário para a rima. Por exemplo, você começa a rimar e fala uma palavra: dentista. Você não sabe o que vai rimar com dentista. Depois de um tempo, de tanta rima que fez, para toda palavra você vai saber pelo menos três que rimam. Já está tudo na sua cabeça, de tanto que você treinou.46 46 Entrevista realizada pela autora em 7/5/2013.

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Muitos rimadores afirmam que o exercício da rima nas rodas é essencial para o desenvolvimento do trabalho do rep. Entretanto, é muito comum encontrar rimadores que não têm a pretensão de cantar rep. Bruno Rafael, pichador conhecido como ÃO, frequenta rodas culturais e arrisca-se nas rimas, mas declara não sentir vontade de fazer rep. O desejo da estrofe cristalina, do lapidar constante da rima, é o único ponto de encontro de rimadores cariocas do século XXI com parnasianos do século XIX. Muito diferentemente de buscar um movimento que se interesse apenas pela rima perfeita e que fale somente para a elite letrada, os parnasianos cariocas deste século preocupam-se com o social, com os descaminhos da cidade, têm um posicionamento político mais à esquerda e não se furtam de abordar toda a temática sócio-político-cultural em suas composições. As rimas precisam ecoar! O movimento modernista, datado do início do século XX, propunha, ao lado da liberdade formal, maior conscientização crítica, valorização da cultura brasileira, pesquisa estética e cultural, reposicionamento das tradições, destituição dos valores acadêmicos e parnasianos, ironia, paródia, valorização do falar brasileiro... Os que não sabem ler me viram, distinguiram o coração Mensagem clara de que a tropa precisa tá em formação Precisa da informação, mas precisa pra que no fim Possa provar que as bala vindo não estão tão perdidas assim. (“É a guerra Neguim”, MC Marechal)

E festa também: “Modernismo é o movimento mais alegre e jovial da nossa literatura, — manifestado no próprio comportamento de seus protagonistas, na sua furiosa ânsia de diversão.” (Candido, 2006, p. 172). Aqui, nas praças, entre as rimas elaboradas exaustivamente e a preocupação social, há um feliz encontro que a história da literatura brasileira 80


cap.10 Quando parnasianos e modernistas se encontram

não poderia prever: parnasianos e modernistas — no mesmo artista, na mesma roda, na mesma festa. Nas rodas, não há “parnasiano aguado” nem “máquina de fazer versos”. Há trabalho por uma rima bela e, de preferência, social. Afinal, nenhum gênero musical brasileiro entrecruza melhor a rima e o social do que o rep! MC Papo Reto começou a rimar aos 12 anos, fazendo funk. Em 2003, com 23 anos, foi campeão da Primeira Liga de MCs. Admirado e respeitado pelos rimadores, o rapper, que desenvolve seu trabalho no Brasil e na Europa, define assim o seu percurso campeão nas batalhas: “Tive uma educação muito rígida. E isso foi um diferencial nas minhas rimas. Tinha polidez, não falava palavrões. Eu fazia rimas com conteúdo, com vocabulário. Outros rimadores chegavam lá e soltavam só palavrões, não tinham vocabulário.” Além de rimador-referência para os novatos, Papo Reto faz parte do coletivo Comando Selva, por meio do qual, na época, desenvolvia trabalhos sociais, principalmente voltados para o público infantil: “É fundamental trabalhar com crianças, mexer com o futuro.”47 Dentre as inúmeras propostas das rodas culturais, estão a pesquisa do local onde se realizam, a aproximação com os moradores, ofertas de oficinas para a capacitação de moradores e amigos das rodas, entre outros trabalhos sociais. MV Hemp diz que “a revitalização dos bairros é um dos objetivos das rodas. Capacitar os moradores para, por meio da arte, relatar a história do seu bairro é um dos desafios do CCRP”.48 Pra Meu Bairro ficar um pokinho mais TOP... Falta um movimento Cultural forte... São Cristóvão e seus Rebeldes... Zumbi Vive. (Sahel Klibre)49 47 Entrevista concedida à autora em 22/7/2012, no Morro do Encontro. 48 Entrevista concedida à autora, em, 30/6/2013, por telefone. 49 Disponível em: https://www.facebook.com/sahelklibreoficial?fref=ts. Acesso: 29/7/2013.

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Sahel Klibre organizava a Roda Cultural de São Cristóvão, que migrou para Manguinhos, a fim de melhor contemplar esta comunidade, e é um estudioso da cultura do bairro. Alguns desses pilares são defendidos pela cultura hip-hop, e amplamente difundidos por seus membros: transformação e inclusão de jovens, formação e desenvolvimento humano e social, elevando a autoestima, e valores de organização e coletividade. Em dezembro de 2010, logo após a invasão da polícia ao Complexo do Alemão, no subúrbio carioca, diversos coletivos reuniram-se e organizaram uma invasão cultural, com apresentação de roda de rima, música, grafite, exposição de fotos, entre muitas outras atividades artísticas. O CCRP esteve presente, por intermédio de alguns organizadores das rodas. Segundo MV Hemp, “naquele momento, as rodas estavam em alta e o lado social dos participantes aflorava. Sentiam necessidade de agir, principalmente naquela comunidade onde havia vários amigos do rep que estavam apreensivos com a situação”.50 A Roda Cultural de Engenho do Mato promove ações sociais diversas. São constantes os chamados para os frequentadores atuarem em diferentes frentes, tais como: Galera, conseguimos autorização para fazer um mutirão em prol da biblioteca do Ciep 448 — Ruy Frazão Soares. Após a limpeza do local, iremos ajudar a organizar a biblioteca, que será reinaugurada. A partir de segunda-feira, às 9h, começa o mutirão inicial para que o espaço volte a funcionar!! É o nosso sonho se transformando em realidade, convidamos a todos!!! (Aline Pereira, 12/07/2013) 51

Na visão de Nissin Oriente, primeiro organizador da Roda de Rima da Cantareira, o trabalho social é inerente à cultura do hip-hop: 82

50 Entrevista concedida à autora, por telefone, em 30/7/2013. 51 Disponível em: https://www.facebook.com/groups/412294925513117/.


cap.10 Quando parnasianos e modernistas se encontram

Eu sou grato ao hip-hop. Então, tenho vontade de retribuir. Faço muitos projetos ligados à questão da educação. Quem não faz nada não conheceu a essência do hip-hop. O cara que tem amor vai falar de disciplina, natureza, educação alimentar, consciência...52 Aori Sauthon, personagem fortíssimo da cena urbana carioca, exerce uma militância constante em nome da cultura, da política, dos direitos sociais. No Facebook, seus posts recebem centenas de curtidas e comentários: “Galera, calma, a policia só está tratando os manifestantes como sempre tratou os negros!” Este post recebeu 153 curtidas e 44 compartilhamentos, em 20 de julho de 2013.53 Em 23 de julho, ele escreveu: “Se vc divulgar seu som botando a hashtag #ondestaoamarildo eu vou dar um like e compartilhar.”54 Aori tem seu perfil no Facebook lotado, tem inúmeros seguidores; é respeitadíssimo no meio cultural, seus posts sofrem considerável reprodução, por parte da garotada que o admira. Aori está afinadíssimo com as demandas da escola do hip-hop. Há ainda a roda de livros, em algumas rodas culturais. Algumas funcionam na base do empréstimo: o leitor pega o livro, lê durante a roda e devolve ao final, podendo, obviamente, retomar a leitura na roda seguinte. Mas há também rodas que recebem doações significativas, e oferecem o livro ao leitor que pode, caso queira, retribuir a gentileza, doando um livro na roda seguinte. Quanto às características dessas obras, há de tudo: poemas, romances, contos, canônicos ou não — a diversidade é grande, assim como a motivação de formar um público leitor.55

52 Entrevista realizada em 26/5/2013. 53 Disponível em: https://www.facebook.com/aorisauthon/posts/10151672876 059320. 54 Disponível em: https://www.facebook.com/aorisauthon?fref=ts. 55 Outra atividade que vale o registro é a distribuição de livros que MC Marechal faz em suas apresentações. Ele mobiliza uma rede de cooperadores que recebem doações e o ajudam na distribuição dos livros pelo Brasil.

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Roda Cultural de Engenho do Mato. CrĂŠdito: acervo pessoal

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11. De onde vĂŞm as rimas?

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cap.11 De onde vêm as rimas?

Eu sou Gil Metralha Das rimas das batalhas Sem deixar falha Nada me atrapalha Sou general no rep Fecho com os moleques Os inimigos aqui nós quica Igual bola de basquete Conectado na internet? Vai lá: YouTube: Gil Metralha É só pesquisar. (Gil Metralha)

E de onde vem tanto ritmo e poesia? Quais são as referências para esses poetas da rua? Era o que me perguntava o tempo todo, sabendo que a rima não vinha de nenhuma instituição tradicional, já que escola, universidade, aula de literatura representam o saber institucional, que é criticado severamente pela grande maioria do movimento rep. Entretanto, há uma escola do rep, nada institucional, informal e que inspira gerações. Como foi apresentado nos capítulos iniciais, os grandes nomes da cena rep carioca atualmente formam essa escola, cujo início situo no CIC e, mais à frente, nas rodas de rima — escola que atualmente absorve outros nomes, como Ghetto, M Souza, Nissin Oriente.56 “Eu invento um flow e uma métrica.” (Allan Benevenutto)57

56 Nos anos 1990, a cultura do hip-hop carioca já se fazia reconhecer. Entretanto, este trabalho reflete acerca da cena a partir do CIC e das rodas de rima. 57 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=j7SPtwVJZKQ.

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Mas há poetas que fundam poéticas, tornam-se referência para batalhadores e rimadores iniciantes e antigos. Um desses nomes, o mais forte do momento, é Allan Benevenutto. Rimador por excelência, campeão da Batalha do Real 10 anos, Allan é citado por quase todos os entrevistados. Quando ele participa de uma batalha, ainda que não saia vitorioso, os vídeos, comentários, agradecimentos de pessoas com que ele duelou, são postados muitas vezes nas redes sociais. Afirmo que formou uma escola: na Batalha do Bairro de Fátima, onde é apresentador, nos freestyles que faz nas rodas e batalhas, seu trabalho é observado com avidez e admiração. É o nome mais citado nas batalhas. E quando os MCs batalhadores querem indicar que o adversário quer imitar alguém, o nome do imitado é... Allan. Vive-se, na rima carioca, um efusivo “Allanismo”. Nomes da velha guarda, como MV Hemp, Papo Reto, Marechal, Dropê Comando Selva, Gil Metralha são sempre citados. Mas Allan vem conquistando uma notoriedade junto aos mais novos que chama a atenção, porque há MCs de sua geração que também deixaram suas rimas inscritas na história da poesia oral, como os brilhantes Ghetto, M Souza, Nissin Oriente, mas que não parecem exercer tanto fascínio para a garotada mais jovem. Eu acabei virando referência para esta geração por ser o cara que mais ganhava. Criei uma identidade. Mas minha visibilidade, também, tem muito a ver com os adversários que enfrentei. Só MCs muito bons, como TH e Ghetto. Na última edição da Batalha do Real, todo MC que descia do palco me pedia conselho, perguntava minha opinião.58 Por reconhecer tantos outros talentos no rep, em atuação ainda, fico pensando se essa celebração em torno do Allan não está atrelada ao título maior recebido recentemente (em abril de 2013): Campeão da Batalha do Real — 10 anos; sobretudo, sabendo-se que essa batalha é a maior, mais respeitada e concorrida entre os rimadores cariocas. 88

58 Entrevista realizada pela autora em 18/8/2013.


cap.11 De onde vêm as rimas?

Porém, Allan faz uma análise cuidadosa e interessante a respeito do culto ao seu trabalho: Eu consigo uma identidade muito forte com a rima, porque eu me interesso pela rua. Eu dou um conselho à galera: tem que estar na rua, porque a história está na rua. Já morei no Méier, Jacarepaguá, Lapa e circulo por aí, conhecendo a cidade, os públicos. E, com isso, eu relato a cidade.59 Allan Benevenutto é dono de uma rima muito bem elaborada e de uma performance invejável. Sua poesia tornou-se a meta dos mais novos rimadores. Além de muito citado e reverenciado nos eventos de rima, alguns MCs percebem o desejo de outros em imitá-lo. Repito: Allan é uma escola de rima, atualmente. E está rimando menos; reinventou-se depois do título de campeão da Batalha do Real 10 anos. Agora, diz que está mais seletivo com os eventos de que participa. E com isso faz uma crítica à cena das batalhas: Tem que haver mais profissionalismo. Eu tô tentando valorizar meu trabalho. Eu sou um multiplicador, porque sou apresentador, estou totalmente envolvido com batalhas, frequentando-as, e sei que é possível fazer algo comercial e com cultura. Eu não quero perder essa identidade com batalhas. Se aparecer uma galera para organizar uma batalha com patrocínio, marketing e respeito, eu participo.60 Allan atua, ainda, como convidado especial (está presente em quase todos os eventos de rep no Rio). Vem se destacando na busca de maior profissionalismo no trato com a categoria dos MCs: “Não acho justo que apenas o vencedor da batalha ganhe reconhecimento. Os outros também merecem respeito e divulgação.” E quando pega o mic para um freestyle, deixa evidente o porquê de ser tão cultuado:

59 Idem. 60 Idem.

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Aí, na moral, você sabe que tem a vantagem porque é você que termina Mas se eu não tivesse, não estaria aqui na batalha de rima Tranquilo, eu tiro a sua paz Deram um terceiro round para geral ver eu te batendo mais. (Allan Benevenutto)61

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61 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=j7SPtwVJZKQ.


12. Onde estรก o palco e onde fica a plateia?

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Outra singularidade da ocupação da rua com arte é a ausência do palco. As rodas culturais cariocas recebem, em média, um público de 100 a 300 pessoas por noite, número que aumenta consideravelmente quando há nomes famosos da cena rep alternativa participando. Como não há palco — as apresentações de todas as atividades acontecem em meio ao público, sem nivelamento (no máximo, o uso do microfone concede ao portador uma aura diferenciada, de artista) —, os lugares do poeta e do público se confundem, amalgamam-se, desconstruindo a noção de hierarquia entre o criador e o seu ouvinte. Isso radicaliza a questão discutida por Zumthor sobre a coautoria do público: o público, por ora, pode utilizar-se do mic, e pode ter sua voz e presença corporal tão ou mais demarcadas do que as do próprio artista ali se apresentando. Em algumas batalhas de rima, faz-se uso de um pequeno tablado que sugere um palco; é mais comum nas batalhas que recebem maior púbico, e onde é possível organizar essa estrutura. Ainda assim, o palco, como lugar do artista, não é “respeitado”: não é ocupado apenas pelos MCs batalhadores e pelo apresentador; há o DJ, os organizadores ao fundo (totalmente visíveis para a plateia), e as muitas pessoas que vão se ajeitando pelas laterais do tablado, buscando um lugar melhor para acompanhar a apresentação. Emicida, rapper que originou-se das batalhas de rima, cunhou a expressão “a rua é nóis”. Nela identifica-se claramente a opção do artista por um lugar entre o público, sem palco, sem distinção do artista. Comumente os MCs colocam-se como público, constituindo um coletivo. MC Marechal, um dos nomes mais celebrados nacionalmente, me disse em entrevista: “Eu não sou artista. Eu faço arte.” Em uma ocasião na Rocinha, na I Batalha de Rimas e Ideias, Marechal apresentou-se sob forte chuva, sem lugar privilegiado, embora pudesse se resguardar sob uma das tendas; ao fim, pacientemente, posou para fotos, mesmo estando encharcado. Esta postura flutuante e indistinta dos MCs 92


Roda Cultural de São Gonçalo. Crédito: acervo pessoal

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Palco da Batalha do Real. CrĂŠdito: acervo pessoal

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não elimina a tietagem. Os fãs querem fazer fotos — a nova modalidade de lembrança — junto aos artistas, já que um autógrafo é um pedido raro, atualmente. Ainda assim, é um tanto perturbador, para os acostumados ao mainstream, ver o artista famoso ao lado do público antes, durante e depois da apresentação. Os artistas, sem exceção, circulam com naturalidade e destituídos de pose pelas rodas e outros espaços acolhedores desta arte urbana. Pode-se falar que há uma suave tietagem. O público admira os artistas, curte as fan pages, vai aos shows e sabe de cor todas as músicas, mas não se comporta como os conhecidos “fãs de auditório”, nem deixa de reconhecer o valor distintivo do artista. Esta cultura de admiração, e não de adoração, é um aspecto intrínseco desta particular arte urbana, principalmente no formato das rodas culturais e batalhas de rima. Apesar de a roda ser cultivada para todas as expressões — há pequenas rodas de malabares, de rima, de praticantes de slackline —, nem sempre em torno do artista/cantor/ rimador forma-se uma roda. Os motivos são variados: a grande quantidade de pessoas na plateia, o desejo do artista de estar bem próximo do público, o pequeno espaço destinado à apresentação e, sobretudo, por conta de certo abandono da aura do artista de rua. A roda é uma organização do espaço muito comum na cultura popular. Mais presente no samba, é um recurso utilizado, também, pelo jongo e a capoeira e, nos últimos anos, tem ganhado fama no funk. Ela desarma, por sua própria física, a estratificação. Na roda, tem-se um ao lado do outro, sem destaque. O contato corporal também é bem mais comum, as investidas para estar mais perto do artista ou assistir à apresentação de um plano melhor são mais constantes. A roda não pressupõe uma ordem — social ou espacial.

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Roda Cultural do Méier. Crédito: Fábio Teixeira

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A roda é única, com uma organização autônoma, que não tem como ser reiterada. E no caso da roda cultural, ela é democrática, horizontal e apresenta as especificidades do lugar onde ocorre: é agregadora da arte e da cultura local. Comporta adolescentes, famílias, namorados, crianças, por vezes todos na mesma roda, ou guardando particularidades. Assim, no Méier, há uma roda frequentada por famílias, apesar da elevada participação de jovens; a de Botafogo é tipicamente formada por adolescentes e jovens; a de São Cristóvão atrai amantes dos esportes. Contudo, as rodas sempre carregam de significados o lugar, alterando sua rotina, levando visibilidade, recriando a história do bairro.

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13. Gestão criativa do espaço público

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As rodas culturais acontecem nas praças públicas. Algumas dessas praças, antes da ocupação pelo CCRP e por outras rodas que não fazem parte deste circuito, encontravam-se abandonadas ou frequentadas, tão somente, pela população de rua. Com a realização constante das rodas culturais, alguns organizadores declaram que passou a haver uma nova movimentação nesses espaços: pessoas que não tinham o hábito de fazer uso deles começaram a verificar outras possibilidades oferecidas além do abrigo às crianças que moram na rua. Dessa forma, há, evidentemente, uma ressignificação destes lugares que se tornam, assim, espaços culturais, com registros nas paredes (devidamente grafitadas e pichadas) e na memória afetiva de seus frequentadores. A respeito do conceito de espaço cultural, Teixeira Coelho ressalta: De fato, a construção de um edifício específico para a prática da cultura ali onde antes nada havia de análogo, ou o aproveitamento para esse fim de um edifício cuja função original era outra (caso de ressemantização do espaço), não deixa de ser uma operação de abstração: condições para a prática da cultura são criadas artificialmente num local que anteriormente não a comportava ou lhe era, mesmo, hostil. (Coelho, 1997, p. 167)

Frequentadores e organizadores comentam sempre sobre a adesão, às rodas, de adolescentes com comportamento mais desafiador ou que praticam pequenos delitos na área. Djoser Botelho, o representante do CCRP junto à Prefeitura, conta: Em Botafogo, tinha um grupo de meninos que ia para a roda, pedir dinheiro e cometer pequenos furtos. E a gente começou a incentivar: “Olha tá todo mundo aqui cantando, rimando. Se quiser dinheiro vai ter que cantar também.” Eram cinco moleques e um deles era genial na rima. Dos 100


cap.13 Gestão criativa do espaço público

cinco, só um ficou. Mas hoje em dia , ele está rimando na Lapa, para ganhar dinheiro.62 E essa perspectiva de formação de poetas e artistas por meio da ocupação das praças públicas é das mais divulgadas pelos gestores. Assim, o grupo foi cada vez aumentando pela união de outros coletivos e a partir daí foi criado o termo roda cultural, cujos dois princípios básicos de criação são a apresentação semanal e a ocupação de praças ou espaços públicos esquecidos ou abandonados, buscando sua revitalização.63 Para Djoser, a ideia da roda cultural foi importante, porque havia reunião de pichadores, de rimadores, de esportistas, de vários segmentos, separadamente. E a roda cultural juntou diversos encontros que aconteciam pela cidade. Enriqueceu, artisticamente, o bairro, a cidade. Canclini (1997) reflete sobre a tendência, não apenas na periferia, de cidadãos realizarem sua vida cultural e lazer nos próprios bairros em que moram. As rodas culturais assumem um papel de provocar os moradores à participação, como artistas ou público. Entretanto, ainda que as rodas tenham lugares fixos de realização, há também um investimento na circularidade. Ou seja, é possível encontrar, nos grupos do Facebook, endereços e horários de todas as rodas ligadas ao CCRP, e de outras mais recentes. Bastante comum, também, é a divulgação de todo o circuito em cada roda. Tem-se, assim, uma efetiva ocupação das praças e espaços públicos afins pelos consumidores e produtores da cultura urbana. Evidentemente que cada roda mantém sua especificidade; não é desejo dos idealizadores do CCRP, nem dos organizadores das demais rodas, em geral, a padronização. Desta forma, ao acompanhar o circuito, ao fim de uma se-

62 Entrevista realizada pela autora em 11/7/2012. 63 Trecho do documento enviado à Prefeitura, intitulado: “Proposta Inicial ao Programa de Desenvolvimento Cultural Carioca de Ritmo e Poesia — CCRP”.

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Praça em Engenho do Mato. CrÊdito: acervo pessoal

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mana, pode-se obter um catálogo das características particulares de cada roda — desde a organização, frequência, até a produção da poesia e das outras expressões artísticas. Infelizmente, esse aspecto inovador das rodas culturais — a ocupação da rua com arte —, é também uma das grandes dificuldades a serem vencidas, diariamente. Apesar de contarem com a anuência da Prefeitura do Rio de Janeiro, há cerca de um ano, as rodas realizam-se, apenas, com base nos esforços pessoais de seus organizadores, e nas eventuais contribuições do comércio local. De modo geral, para operacionalizar uma roda, os gestores precisam de mesa de som, tenda, cooperação do público e muito empreendedorismo. Entre eles, há uma percepção de que é preciso agir, conscientizar, produzir, criar comunidades. O apoio do comércio, quando existe, embora simples, é fundamental: a Roda Cultural de São Gonçalo “puxa luz” de um bar próximo à praça. E quando chove, para que a reunião não seja cancelada, é realizada em um restaurante, também vizinho à praça. A Roda Cultural de Engenho do Mato conta, eventualmente, com alguma doação do comércio em torno da praça. São contribuições importantes para o movimento e baseadas na força do território — uma perspectiva abordada por Santos (2000), como “vontade local que vem de baixo para cima” e busca formas inesperadas de luta, para expressar seus sentidos, os desejos do lugar. Não há banheiros, segurança, nenhum tipo de apoio relacionado à infraestrutura, por parte do poder público. Apenas, tem-se o espaço, nos oito pontos geridos pelo CCRP. As demais rodas, normalmente, sofrem com ainda mais problemas, já que muitas delas nem autorização da Prefeitura conseguem obter. Foi mencionada, nos capítulos iniciais, a dificuldade de manutenção de algumas rodas, por conta de problemas com 104


cap.13 Gestão criativa do espaço público

a polícia — inclusive as rodas do CCRP, reconhecidas pela Prefeitura do Rio. Outras rodas também disputam o espaço com a polícia e os fiscais da Prefeitura. A Roda Cultural de São Gonçalo teve o som proibido recentemente: Esta semana não vamos ligar o som, porque o secretário de Postura esteve aqui, passou nas barracas, bares — um tipo de choque de ordem. E tinha uma galera bebendo e fumando na roda. Como não tem segurança, tem droga e álcool sendo vendido para menor. Mas nosso oficio é produzir cultura, não dá pra controlar. Então, o secretário perguntou se eu tinha autorização para a roda. Como eu não tinha, ele mandou cancelar o som.64 E a arte urbana experimenta outras situações que, eventualmente, podem representar transtornos. MV Hemp, um dos idealizadores do CCRP, chama atenção para os problemas que os organizadores das rodas podem enfrentar devido à precária infraestrutura: “Se alguém se machucar, se houver violência, qualquer problema, vão cobrar dos organizadores. E o CCRP não tem apoio do poder público. É tudo feito pelos meninos, na base da vontade, da garra.”65 No Rio, depois de assinado o Decreto nº 36201, o prefeito liberou um ponto de venda de bebidas em cada roda, o que é aproveitado pelos organizadores para angariar fundos que custeiem a ida de artistas (passagens), equipamentos de som e outras despesas. Como a entrada nestes eventos é gratuita (às vezes, passa-se o chapéu ao fim do espetáculo, tão somente), a busca por formas alternativas de financiamento é uma urgência. Os artistas convidados, em sua maioria, aceitam participação sem cachê, porque conhecem a dinâmica de realização deste circuito e querem divulgar seus trabalhos em meio a um público fiel e amante do rep. Mas, ainda assim, há 64 Entrevista concedida à autora em 7/8/2013, na Roda Cultural de São Gonçalo. 65 Depoimento dado à autora em 16/5/2013, no CICRIA — escritório de alguns coletivos, dentre eles, o Comando Selva.

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custos que precisam ser cobertos. E só são resolvidos pelo esforço e criatividade, de acordo com o que Santos (2000) denomina “prontidão de sentidos”. Por serem espaços de escassez, despreparados para receber arte, isso demanda dos gestores: planejamento, solidariedade, inventividade e disposição para negociação — esta última com vizinhos, guardas municipais, milícia, público, polícia. A fim de contribuir efetivamente para a reorganização responsável do espaço público, além de muito envolvidos com os problemas das comunidades onde as rodas são realizadas, seus gestores vêm estudando as possibilidades de aplicação de uma economia criativa ao movimento. Assim, como um dos objetivos do CCRP é a autonomia das rodas e a capacitação dos gestores e demais integrantes, é imprescindível o debate constante pela ampliação, solidificação e gestão criativa do circuito. Na verdade, embora não se tenha movimentação monetária, a roda cultural já faz uma gestão de economia criativa. Agora seria colocá-la na prática. A gente tem o movimento semanal e planeja fazer eventos grandes em todas as rodas, de forma que isso se reverta em dinheiro pra cada roda, mas com responsabilidade [...]. A gente quer marcas de empresas investindo no cenário independente e sem interferir na criação do mesmo.66 Um ano após a assinatura do Decreto nº 36201, as rodas do CCRP não tiveram nenhum dos seus pedidos atendidos. A fim de provocar a participação da Secretaria de Cultura do município do Rio de Janeiro, os organizadores do circuito enviaram, em maio deste ano (2013), um documento ao secretário Sergio Leitão, cobrando apoio e propondo uma ampla rede de ações que envolve, de modo sucinto: Formação de uma rede de ambulantes culturais, jovens multimídia, que vão receber bolsa auxílio e funcionar como pilares de desenvolvimento local, expansão, através das 106

66 Entrevista realizada pela autora com Djoser em 11/7/2012.


cap.13 Gestão criativa do espaço público

diferentes artes e produções da cultura urbana, fazendo com que surjam novas rotas de turismo na cidade e novas oportunidades para a população carioca, o que cria novos incentivos de desenvolvimento local; edição bimestral da Revista CCRP, que será distribuída gratuitamente, desenvolvida pelos jovens multimídia frequentadores das rodas, que vão fazer cursos de redação e design; estruturação de um acervo da cultura urbana carioca para proteger, compilar e resgatar as produções históricas e contemporâneas da música e das mais diversas expressões artística de rua do Rio de Janeiro. [...] 67 Djoser explica que há cerca de dois anos. Vários outros documentos com proposições mais simples já foram enviados ao poder público, com o objetivo de conseguir condições mais dignas de realização das rodas culturais; inclusive, pelo que se verifica no documento citado acima, objetiva-se também a ampliação sistemática da atuação do circuito. Djoser complementa: “O poder público está um pouco atrasado. Agora que foi se tocar da nossa potencialidade, que a gente abrange o Rio inteiro, e articulado pela internet. Agora que os poderes entenderam o que estamos fazendo.” No momento, aguarda-se uma contraproposta da Secretaria de Cultura do município do Rio de Janeiro.

67 Documento intitulado “Economia Criativa Circuito Carioca de Ritmo e Poesia — CCRP”, datado de 2/5/2013.

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14. Roda Cultural do Méier — máximo respeito

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cap.14 Roda Cultural do Méier — máximo respeito

Hoje é dia de culto! (Don Allan Marola)68

Não há frequentador de roda cultural no município do Rio de Janeiro, e até mesmo nos municípios vizinhos, que não conheça a fama da Roda Cultural do Méier. É a roda mais pulsante do CCRP e, talvez, dentre todas as outras do estado do Rio de Janeiro. O apelo que a roda possui deve-se à exemplar organização do espaço público feita por Don Allan Marola, Fabio Broa e Fabricio Mello. A roda acontece às quartas-feiras, na praça da minirrampa de skate, próxima ao viaduto do Méier, de 19h até meia-noite. De fácil acesso, cercada por bares, restaurantes e residências, a roda recebe, em média, 300 a 350 pessoas, em dias sem atividades especiais. É uma roda com a cara do bairro. Sempre fico muito atenta à frequência das rodas e verifico a particularidade do Méier: há grande presença de famílias, de idosos, de crianças, casais de todas as idades e, claro, de jovens amantes da cultura urbana. Sem exagero, aquele trecho do Méier, compreendido entre as ruas Medina e Silva Rabelo, conhecido como Baixo Méier, para. Segundo os organizadores da roda, os comerciantes afirmam que estão obtendo mais lucro em dias de roda do que na sexta-feira, tradicionalmente dedicada ao chopinho. A gente mudou até o faturamento do local. Antes da roda, na quarta-feira, o movimento nos bares era fraco. O Méier tinha muita força cultural. É preciso reinventar isso. As pessoas já estão percebendo que a roda não é para gente ganhar dinheiro; é pra agitar o bairro e difundir a cultura. Don Allan Marola, o coordenador do grupo, foi o mais falante durante a entrevista com representantes do movimento, que me foi concedida numa tarde de segunda-feira, no 68 Retirado do status de Don Allan Marola no Facebook, em 3/7/2013.

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Arte da Roda Cultural do Méier. Crédito: Don Allan Marola

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cap.14 Roda Cultural do Méier — máximo respeito

terraço do Imperator. Terminei a conversa considerando-a uma aula de ocupação do espaço público. Allan começou explicando o funcionamento dos bastidores, em dia de roda: Nosso dia começa na correria, comprando bebidas, gelo, copos. O Fabricio traz dinheiro trocado, passa no depósito e paga a bebida; enquanto isso, o Broa já está contatando os convidados... No fim da tarde, levamos os equipamentos para a praça e organizamos o espaço. O grupo se reúne toda segunda-feira para pensar nas atividades da roda. Allan diz: Eu faço estudos sobre o número de pessoas que passa por lá. E temos um custo: aluguel, transporte de equipamento. Hoje temos o nosso som, mas antes era emprestado. Temos segurança particular na roda. A gente se preocupa com a dispersão, com a segurança. O prefeito permitiu o ponto de venda de bebidas, o que se tornou uma fonte de renda pra financiar a vinda de MCs e cobrir outros gastos — “Eu vi que este ponto precisaria ser bem pensado, já que temos um gasto alto para a roda funcionar, mesmo em dias comuns: transporte, funcionários, reposição de algum material quebrado.” (Don Allan Marola). Outro indicador da boa gestão da roda é o apoio das lojas Brasil Pizza e Skate Brothers, que financiaram o som: Chegamos a este acordo: temos um público de cerca de 300 pessoas. É bom para qualquer comércio expor sua marca junto à cultura. Eu levei esta ideia para eles e foi muito bem recebida. E hoje temos a Vanzer Clothing que nos veste nos eventos. Além da visibilidade conseguida durante o evento, os apoiadores contam com outra bastante eficiente: os organizado111


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res promovem as lojas em seus perfis particulares no Facebook e na divulgação dos eventos da roda cultural. Mesmo com o respaldo do Decreto nº 36201, já citado e tão propagado no circuito das rodas, os organizadores do evento no Méier procuraram a Região Administrativa do bairro para realizar a roda dentro da legalidade: Temos zelo com o espaço, pedimos que o público cuide do lugar, não fume maconha na praça, terminamos cedo para respeitar o silêncio... A gente quer assumir isso aqui, cuidar do lugar. Tem que respeitar o direito do outro num evento aberto ao público e com fins culturais. Quero manter o evento com certo nível; não só para o público underground. Queremos que a tiazinha leve seu netinho de 5 anos para andar de skate e ouvir som. (Don Allan Marola) Ainda, segundo o entendimento de que os gestores das rodas devem ter uma atuação mais produtiva com o bairro, criou-se uma parceria com a casa de shows Imperator: lá, no terceiro domingo de cada mês, é realizada a Batalha do Terraço, no evento Arte Urbana no Terraço. De acordo com Allan: “Foi o Imperator que nos procurou na roda, tentando firmar a parceria. A casa de shows percebeu na roda a possibilidade de revitalização da cultura no Méier.” O aniversário da roda cultural, em agosto, foi realizado na praça Agripino Grieco, a mais conhecida e a maior do bairro, com todo o ritual que envolve uma grande festa. Com um ano de rodas culturais, Don Allan Marola, Fabio Broa e Fabricio Mello já se inscrevem entre os respeitados fomentadores da arte urbana carioca. Por isso, para eles, o Méier pede: “Faz barulho aê!”

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15. Uma outra instância de legitimação: as redes sociais

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A arte urbana discutida aqui tem nas redes sociais o seu principal meio de divulgação e repercussão. Sem apoio e mesmo ignorada pela mídia tradicional, a sua abrangência se deve à fervilhante vida na rede. Cada roda possui uma página no Facebook, e algumas são tão ativas que tornam difícil o acompanhamento dos posts. Lá, são divulgadas as atrações, as batalhas de rima e seus participantes, vídeos, fotos, rimas e demais produtos artísticos das rodas. Enquetes a fim de saber quais artistas o público gostaria de ver nas rodas, quais os MCs que chegarão ao final das batalhas, debates sobre o comportamento do público durante o evento, sobre a ação da polícia e das Secretarias de Cultura, mapeamento do circuito, aconselhamentos, decretos, tudo circula na rede com ampla participação e reconhecimento. É nessa fonte que estão as rimas, opiniões, posicionamento político e social dos artistas e do público das rodas. Blogs, perfis no Facebook, Twitter, fan pages intensificam uma cena que contraria o que se imagina: que a juventude está mais desligada da arte, plugada que vive nos computadores. A rede de amizade e trocas artísticas fervilha na web, e vai, em boa parte, para as ruas. Marcam-se dia e hora para lançamentos virtuais de clipes, de músicas. Convites para eventos diversos, relacionados ao rep, são enviados por este canal. O número de curtidas, comentários, compartilhamentos, confirmações em eventos indicam a importância do artista, da roda, do evento, como se pode conferir neste trecho da reportagem sobre o rapper Filipe Ret, no blog Amplificador: Aos 27 anos, Filipe Ret é apontado como uma das grandes revelações do rap carioca, para alguns, o sucessor de Marcelo D2. Nascido no Catete e morador de Laranjeiras, o MC tem público fiel e ativo nas redes sociais que levam posts curtos, certeiros e filosóficos à incrível média de 500 curtidas e dezenas de comentários (essa profusão de participação dos fãs acontece até num simples bom dia com letras de Zé Ketti, Barão e Chico).69 114

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Disponível em: www.oglobo.globo.com. Acesso: 3/7/2013.


cap.15 Uma outra instância de legitimação: as redes sociais

Mas se a rede funciona como um excelente lugar de encontro e de interação, também promove debates virtuais e extravirtuais sobre a real notoriedade dos envolvidos nesta festa, discussões acaloradas sobre temas diversos, ironias, mensagens subliminares, manifestos contra páginas e uso indevido de rimas, questionamentos... Exatamente como deve ser em um espaço democrático de lutas. Castells (2003, p. 114), por meio de dados estatísticos, verifica o efeito positivo da internet sobre a interação social: “O ciberespaço tornou-se uma ágora eletrônica global em que a diversidade da divergência explode numa cacofonia de sotaques.” E a rede social Facebook ilustra sobremaneira essa questão. Porém, como o movimento rep se realiza na rua, embora as redes sociais sejam respeitadas e, evidentemente, todos tenham consciência de seu poder, a participação na praça física, na rua, ainda é o modelo de inserção mais legítimo para os integrantes do movimento. Parece haver uma exigência de que o artista, o produtor cultural, o agente cultural venham da rua para as redes virtuais. A correria ganha maior reconhecimento vinda do espaço público. Ou seja, à atuação virtual deve corresponder uma atuação na rua — na geração de processos culturais no bairro e na rede. Assim, tem-se uma legitimação, independentemente do número de seguidores, views, likes... Entretanto, mesmo colocando-se em dúvida a real popularidade — medida pelas visualizações, curtidas e confirmação de presença — de eventos e, sobretudo, de artistas, não há outro meio de propagação deste movimento que seja tão eficiente quanto o Facebook. Os organizadores da Roda Cultural do Méier contrataram, recentemente, o serviço de um carro de som, o Canela Som, que anuncia o evento pelo bairro. Porém, é a rede social, com seu grande número de adeptos, que movimenta a roda. 115


RIO DE RIMAS

Os frequentadores tomam conhecimento das rodas, dos artistas, dos shows, pela rede, já que não há, a não ser o conhecido boca-a-boca, outro meio tão eficaz de divulgação. Para essa cena artística independente, a “recepção pública” — enredada ao reconhecimento público — de que fala Habermas (1984) se dá pelo comparecimento aos eventos, porém, fundamentalmente, pelo apoio vindo das redes sociais. As poucas mídias tradicionais que percebem a dimensão desses eventos não fazem um trabalho sistemático. Logo, não é este um meio a se recorrer para ter acesso às informações sobre a cultura urbana carioca: Eu abro o computador e vejo o rap nas redes sociais. Eu abro o caderno de cultura de grandes jornais e lá o rap não existe. Se a mídia tradicional não der espaço, nós vamos continuar crescendo pela internet. O hip-hop já mobiliza milhões de pessoas nas redes. E não vai parar de crescer.70

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70 Entrevista concedida por Filipe Ret ao blog Amplificador, em www.oglobo. globo.com. Acesso: 3/7/2013.


PRÁTICA ENGENHADA: PEDAGOGINGA

16. Vem pra rua, vem e traz sua arte também!

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Foi a rima que me aproximou deste movimento de rodas e batalhas, inicialmente. Causava-me fascínio e espanto que tantos adolescentes e jovens cultivassem o hábito de rimar, vício de parnasianos. Como professora de literatura, sempre me envolvi com infinitas formas de levar a arte literária aos alunos, por meio de saraus, performances, teatro... De repente, vi nas ruas, em forma de festa, centenas de jovens criando uma expressão literária carioca. Com ritmo e sentimento, a expressão literária das ruas aponta para novas reflexões acerca da produção de uma rima que narra um ambiente; marginalizado ou não, um ambiente produtor de identidade e memória, cuja potência artística abre caminhos para novas formas de leitura da cidade e dos cidadãos. De certo que há os famosos repentistas e emboladores do nordeste, cuja atividade é muito semelhante à descrita aqui. Entretanto, a rima carioca não comparece sozinha: ela se faz acompanhar de muitas outras modalidades artísticas, ocupando sistematicamente as praças. Existe uma ligação que extrapola a rima, entre as rodas, batalhas, malabares, fotografias, grafite, xarpi, rep. Invariavelmente, os protagonistas dessas cenas estão juntos, atuando em todas as áreas, em performances diversas. Fazem parte das muitas tribos de ruas da cidade, que unem-se, fortalecem-se e criam associações, formando um corredor cultural que vem se sustentando e desdobrando, desconhecendo fronteiras territoriais e artísticas. Uma boa explicação da necessidade de ocupar todos os espaços me foi dada por Kel Pastore, ex-pichadora, organizadora da festa Xarpi: “Vejo a Xarpi como o xarpi: o objetivo é dominar todas as áreas, todos os públicos.”71 O CCRP me parece o melhor exemplo dessa atitute: por meio de suas rodas culturais incentivou um movimento que tem ocupado espaços pela zona norte, oeste e até a quilômetros de distância da cidade do Rio, como em Macaé e Cabo Frio. 118

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Entrevista concedida à autora, por e-mail, em 16/7/2012.


cap.16 Vem pra rua, vem e traz sua arte também!

Embora este movimento tenha suas propostas bastante afinadas com o movimento de periferia de São Paulo, não se tem exatamente um discurso da periferia nesse circuito. Não são excluídos falando: o lamento, a expressão de desilusão não se fazem mais presentes. Ferréz avisa, em Literatura marginal: “Nós arrombamos a porta e entramos.” No Rio, atualmente, no máximo, essa porta seria pichada e/ou grafitada! Obviamente que, por ser o rep um dos gêneros artísticos mais voltados para as questões sociais (e nem é necessário se buscar a referência em Racionais MCs, Sabotage, GOG para afirmá-lo como movimento politizado), a produção da rima não se descola muito desse olhar. Entretanto, percebo que a verve denunciativa é mais explorada pela música (desemprego, miséria, fome, opressão) do que pelas rimas improvisadas. Fala-se de temas cotidianos e faz-se muita ironia pelas praças: nem sempre de boa qualidade, nem sempre com a rima perfeita e, muitas vezes, de teor machista. Aliás, esta é uma expressão cultural que tem a participação das mulheres praticamente restrita à plateia. Raríssima é a presença feminina no palco. Taz Mureb, Samantha Muleca, Negra Rê são raridades que marcaram um lugar nesta cena diante de centenas de homens. Em mais de um ano de observação constante e atenta da cena poética nas ruas, só vi mulheres rimando em dois ou três encontros. É um espaço a ser conquistado ainda, não é, meninas?! Um articulado organizador de roda cultural comentava, em uma batalha de rima, recentemente, que tinha muita curiosidade de ver que comportamento a plateia teria, caso um dia aparecesse um homossexual rimando com talento. Infelizmente, acredito que este hipotético rimador seria eliminado na primeira fase. Essa postura desacertada em relação à minoria homossexual contradiz o que a arte de rua prega. 119


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Evidencia-se, nas ruas do Rio de Janeiro, uma luta jovem, em sintonia com novas frentes de atuação militante: pelas minorias, pelos independentes, pelo direito à arte, à praça, à pluralidade... É uma luta travada diariamente com o poder público: ao mapear as rodas e batalhas, verifiquei a impossibilidade de catalogar todas, já que surgem quase diariamente. E quase diariamente, também, uma ou outra é embargada, ainda que esteja funcionando dentro dos espaços reconhecidos pelo Decreto nº 36201, assinado pelo prefeito Eduardo Paes. São impedidas de acontecer, sempre, sob as mesmas alegações: a de que há menores de idade fazendo uso de bebidas alcoólicas (pois há vendedores ambulantes, no entorno, que as vendem a menores de idade sem preocupação com a lei), e a de que há pessoas consumindo drogas. Apesar de os organizadores das rodas insistirem em esclarecer que são produtores de cultura e não têm poder de polícia, e que a situação poderia ser outra caso houvesse policiamento no local, muitas rodas são suspensas repentinamente e levam algum tempo para se reorganizarem. E a dificuldade de reorganização acontece também porque os produtores das rodas nem sempre sabem como proceder, a que instância recorrer: Região Administrativa, Secretaria de Cultura, Subprefeituras? Como redigir o documento? Há modelo específico? Nem todos os organizadores têm tempo disponível e conhecimento para resolver essas questões burocráticas. Por isso, vejo como uma necessidade urgente a interação desses coletivos. Pois há formas de luta tão eficazes que precisam ser compartilhadas, há trajetórias locais emocionantes que, certamente, habilitariam outros organizadores de rodas, pois a troca de informações sobre estratégias de realização e manutenção das rodas e batalhas poderia manter o circuito constantemente ativo.

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cap.16 Vem pra rua, vem e traz sua arte também!

Compartilham-se, na rede, muitas histórias de repressão, mas o passo-a-passo das conquistas não é compartilhado. Teme-se a perda da autonomia. Entretanto, não acredito que um diálogo mais constante e fora da rede, como em reuniões mensais, impeça que os grupos possam gerir livremente, e de acordo com as vontades locais, as rodas culturais. No momento, algumas prefeituras buscam formas de interação com o movimento cultural das ruas, providenciando um cenário mais favorável: oferecendo som, guardas municipais, espaço adequado e encaminhando os organizadores aos setores responsáveis pelo ordenamento público. Ou seja, cumprindo a função do poder público de criar políticas que assegurem a produção do discurso popular. A observação dessa situação nos faz pensar, mais uma vez, que este movimento cultural funciona antes como um movimento pela cidadania do que pelo entretenimento. Trata-se de mais do que um direito de levar arte às ruas; trata-se de ter assegurado o direito à rua.

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Roda Cultural Soul Pixta. CrĂŠdito: Emanuel Bilson



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Referências bibliográficas BOTELHO, Djoser; ROZEMBERG, Pedro; SANTANA, Marcos Vinícius. Proposta Inicial ao Programa de Desenvolvimento Cultural Carioca de Ritmo e Poesia, 2012. BOTELHO, Djoser; ROZEMBERG, Pedro; SANTANA, Marcos Vinícius. Economia Criativa: Circuito Carioca de Ritmo e Poesia – CCRP, 2013. CANCLINI, Néstor G. Culturas híbridas. Trad. Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão. São Paulo: Edusp, 1998. ___. Consumidores e cidadãos – conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997. CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006. ___. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006. CASTELLS, Manuel. A galáxia da internet. Trad. Maria Luiza Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. COELHO, Teixeira. Dicionário Crítico de Política Cultural, São Paulo: Iluminuras, 2012. HABERMAS, Junger. Mudança estrutural de esfera pública. Trad. Flavio Kothe. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984. SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Rio de Janeiro: Record, 2000. SEABRA, Odete; CARVALHO, Monica de; LEITE, Jose Correa. Entrevista com Milton Santos. São Paulo: Editora Funadação Perseu Abramo, 2000. ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a literatura medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. ___. Performance, recepção e leitura. São Paulo. Cosac & Naify, 2007. ___. Introdução à poesia oral. Trad. Jerusa Pires Ferreira; Maria Lucia Diniz Pochat; Maria Ines de Almeida. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

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Referências bibliográficas

Sites e perfis na rede social Facebook: Matéria com Filipe Ret http://oglobo.globo.com/blogs/amplificador/posts/2013/07/03/fenomeno-na-rede-nos-palcos-filipe-ret-nova-aposta-do-rap-no-rio-502020.asp Letra de América 21, de Black Alien http://www.vagalume.com.br/black-alien/america-21.html#ixzz2cXrKSb5V Letra de É a Guerra Neguinho, de MC Marechal http://letras.mus.br/mc-marechal/1728920/ Página Literatura do Rap https://www.facebook.com/LiteraturadoRap?fref=ts Página Mestres de Cerimônia https://www.facebook.com/pages/Mestres-de-Cerim%C3%B4nia/541964472481 309?ref=ts&fref=ts Aori Sauthon https://www.facebook.com/mclapa?fref=ts Don Allan Marola https://www.facebook.com/don.marola?fref=t Dropê Comando Selva https://www.facebook.com/drope.comandoselva?fref=ts Filipe Ret https://www.facebook.com/FilipeRet?fref=ts MC Marechal https://www.facebook.com/vamosvoltararealidade?fref=ts Nissin Oriente III https://www.facebook.com/nissinmc3?fref=tss Nuno DV https://www.facebook.com/nunodv?fref=ts Rico Neurótico https://www.facebook.com/riconeurotico?fref=ts Sahel Klibre https://www.facebook.com/sahelklibreoficial?fref=ts 125


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As narrativas da cidade e suas estratégias de legitimação sempre exerceram sobre Rôssi enorme fascínio. E foi trabalhando com adolescentes, em sala de aula, que deu início a pesquisas nessa área, mais propriamente com os bailes de corredor, nos anos 1990. Verificar aquela cena, discuti-la com os protagonistas daquele espetáculo foi categórico para o seu percurso acadêmico. Funk, literatura marginal, rep, rodas culturais e batalhas de rima, espaços culturais alternativos e outros signos de uma cidade suburbana são experimentados com prazer, desafio e reflexão em seus trabalhos. Rôssi Alves Gonçalves é professora do curso de Produção Cultural e do Programa de Pós-Graduação em Cultura e Territorialidades, na UFF. No momento, faz Pós-Doutorado em Estudos Culturais, no Programa Avançado de Cultura Contemporânea/UFRJ, onde desenvolve a pesquisa “Poesia e ocupação do espaço público: um estudo do Circuito Carioca de Ritmo e Poesia”, projeto este contemplado com bolsa de Pós-Doutorado pela Faperj e que investiga as rodas culturais cariocas, considerando sua produção como uma expressão da literatura oral carioca.


Este livro foi composto em DIN. O papel utilizado para a capa foi o Cart茫o Supremo Alta-Alvura 250g/m2. Para o miolo foi utilizado o P贸len Bold 90 g/m2. Impresso pela Grafitto para a Aeroplano Editora em novembro de 2013.


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