REVISTA LAROYÊ 1

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EXU É

Padê 1 ________________________________________6 Padê 2 ________________________8 Padê 3 __________________________________________________13 Agô ________________________24 7 crônicas _______________________________________29 De uma rua e seus ramalhetes ______________________________________30 Sete Portas _________34 Bar: Sobrenome Esperança ____________________38 O amor ainda endoida um _________________________________________________42 Salvador, Cidade-fantasma _________46 Envelheço na Cidade ________________________50 Auxílio Emergencial no buzu ________________________54 7 fotógrafa[o]s _________63 Álvaro Villela __________________________________________________________65 Amanda Oliveira _____________________________77 Aristides Alves ________________________89 Coletivo Cutucar ________________________________________99 Lázaro Roberto ________________________112 Marcelo Reis _______________________________________125 Shirley Stolze ______________________________________________________137 Lebara ________________________149

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Pade 1

A fé no caminho

Tenho visto e ouvido muitos relatos de cura nesse momento de Covid-19.

Várias pessoas relatando que recuperaram a saúde de alguma forma. Eu convivo com essas experiências no meu cotidiano. Já acompanhei várias pessoas que só passaram pelo terreiro de candomblé e outras que ficaram como filhas e filhos de santo e foram curados de várias maneiras, mas eu costumo dizer que isso depende da nossa fé individual.

Não adianta o pastor orar; o padre rezar; a Ialorixá e o Babalorixá fazerem oferen-

das e limpezas. Se a pessoa não tiver fé, nada acontece. Eu tenho experiência própria através da espiritualidade. Já fui curada e vi várias pessoas se tornarem sãs. Muitos não ficam sabendo por que não é a prática do candomblé divulgar depoimentos ou colocá-los em redes sociais.

Em um terreiro, encontramos vários tipos de sanidade. Não só para doenças, mas

amparo também para a saúde mental, saúde da alma, do amor do coração e para nossas tristezas.

Nesse contexto de pandemia, em que vejo tantos depoimentos de pessoas recu-

peradas, eu não me surpreendo. Acredito que nesse momento tão difícil para a humanidade só resta ter fé e cada um acreditar no seu sagrado para sobreviver, principalmente aqueles que sofrem com a desigualdade social.

Estes dependem mesmo da fé para se curar e para manter-se vivos.

Mãe Valnizia Bianchi [Salvador, Bahia] é Ialorixá do Terreiro do Cobre e escritora.

É autora dos livros Reflexões – Escritas de Mãe Valnizia Bianchi [2019], Resistência e fé [2009], Aprendo ensinando [2011].

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Pade 2

Silêncios cruzados

1 · a casa Era agosto. Um agosto sossegado. Ainda nas frestas do escuro acorda intermitentes instantes. Cutuca acasos Diz: Bom dia. A não ser que já tenha outros planos para hoje. Logo depois: Não me peça a verdade. Não estou com ela. Não sei onde a deixei. Logo que encontrá-la, aviso. Era uma manhã bem cedo. Veste-se. Estendendo a mão, o amor. Sempre o amor. Exige futuro. Sai sem passar a chave O dia passa. Noite de lua nova. Chega ao quarto. Diante retira a palavra de um embrulho. Desfaz o nó. Faz saltar num mergulho (desvario?). Poderia chamar violência sutil. Ou tudo o seu contrário. O que era noite se torna nove horas.

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Sobre o chão branco da sala de jantar ficam expostas vísceras. Espalhados braços pernas ossos. Restos de pele. Corações na boca. Na leitura de jornal, dia seguinte, dentro da notícia, quando alguém ler, não dá para saber amor tédio vingança navalha exercício só para renascer. Diante da notícia, o que há para ver? O de sempre. Palavras e palavras e palavras. Todas com numeração jurídica. Emoção de balcão. Reclame. Coleção de melancolias. Lembranças. Também alguns sentimentos. Sobre a cômoda ainda se deixam ver de corpo inteiro num porta-retratos. Atravessa pequeno corredor. Atrás de uma porta fechada, papéis livros discos caixas de cartas e de fotos. Paixões que viraram amores. Abre para buscar memórias. Onde elas se guardam. Para pegar a palavra ausência. Talvez Deus ou algo que o valha esteja querendo dizer algo. Por uma circunstância. Oportunidade de ocasião. Aprende-se: Não se pode jamais, na vida, esquecer em levar um olhar para cada dia e talvez, talvez, talvez.

Passa uma roda do relógio. Está na convenção do condomínio. Não é preciso mais nenhum aviso. Acordado o silêncio. Este apartamento em comum. Sala dois quartos dependências completa. Um diariamente junto. O cotidiano. Amassado os papéis, o ponto de vista cria o objeto, o tempo altera todas as coisas, melancolia do fim não morre.

Ninguém abandona ninguém. Naturalmente se sai pela porta. Da frente (a da entrada). Sai. Duas voltas.

2 · o mar Manhã no novo mês. Perto / dentro/ o mar / após aquela noite do fim de agosto/ após cigarro vinho verdade / após a despedida / sem saudades / não se deseja mais no perigo das mulheres sem graça mulheres sem dengo mulheres rudes mulheres sem brilho / olhos das abóboras nas carruagens da paixão / sacrifício de simulações / não mais se permite perder / exagerada que é / a felina ternura da delicadeza da dor do amargo do oculto que acolhe nutre prepara o colo, solta de dentro o infinito. Jamais me amei tanto / o mar / o mar que eu olho olha também para mim / não serei navio ancorado na areia escorrendo pelos dedos / eu sou este alguém que guarda uma cópia do mail diante do mar / o que passa / o que fica / não pelo adeus / alheamento / e seu modo de usar / dias a caírem num bueiro / às minhas costas / o lado do asfalto / buzinas velozes exercitam o poder / dobras e curvas / o que em si é naturalmente vertical / (ou seria horizontal?) / diante o mar, o sem fim. Setembro Manhã. O mar de Amaralina. Ondas / espumas. Não esquecer a brisa / o sal / os pés na areia. Pega o olhar / amassa o olhar / arranca a cabeça / separa o corpo. Fotografa a linha. Uma linha para se ler horizonte. Não amo o amor / a m o / a m a r Diante do mar / o mar de Amaralina / manhã de setembro / avistando as ondas no mar / olha as pedras / as pedras e o mar que as cercam / as pedras e o mar estão onde sempre estiveram / nunca saíram deste lugar / nunca saíram / nunca / o mar que margeia está onde sempre esteve / mar que a leva / mesmo mar que a devolve / mergulha para nadar nua onde se faz ave ou peixe / corpo com cabeça peito rabo / neste devir se torna o mar e o mar a possui viva. Bem vida. Uma vez mais se ouve o canto suave das águas. É quando alguém mergulha bem longe das margens.

A chave jogada por baixo da porta.

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3 · a rua

O que mais pode assustar? Algum tempo depois. Retira a pedra, contém o abismo; retira o medo, contém o erro. Não é a geografia a história ou a poesia o cotidiano o prazer o desejo que torna o perto distante, íntimos em estranhos. Palavras perdem sentido. Hoje, na faixa para pedestres, atravessamos silêncios cruzados.

Claudius Portugal [Salvador, Bahia] Poeta, curador e editor da Revista Exu [1987-1997]. Foi diretor da Fundação Pedro Calmon e da Fundação Casa de Jorge Amado. É autor de diversos livros de poesia e Arte, entre os quais Margensàmargem [2018], Fluxo [2016] e Paredes planas [2012].

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NOTAS E REFLEXÕES

SOBRE EXU

Para alem da FÉ

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“Exu é a síntese de um sofisticado pensamento filosófico instituído por civilizações africanas diversas.”

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Apesar de ser uma iniciada no candomblé, quero apresentar o perfil que transcende a

minha fé pessoal. Escolhi falar de Exu a partir da perspectiva que o aproxima a outros entes de culturas tão distintas como o nórdico Loki e o grego Hermes. Mas diferentemente desses, Ele não para de se construir e se reconstruir. Estica suas influências, experimenta outras nuances, se faz temido, amado, celebrado, mas sem perder a leveza. E isso para um deus que conhece os segredos dos caminhos entre tantos mundos possíveis, que escolheu as encruzilhadas e toda a sua potencialidade energética e comunicacional como o seu reino.

Exu é a síntese de um sofisticado pensamento filosófico instituído por civilizações

africanas diversas. É patrono, por essas e outras, de algo tão fascinante e misterioso e ao mesmo tempo tão simples: os meios de comunicação de massa. Acolhedores, fáceis de usar, mas se houver um descuido transformam-se em armadilhas. E em tempos de redes com embates e tretas, eu quase posso ouvir a gargalhada sonora e alerta de Exu, tão à vontade com bytes e megabytes como esteve com as ondas do rádio.

Exu é uma grife, como me ensinou a grande sacerdotisa Ebomi Cidália Soledade (1930-

2012) consagrada a Iroko, o senhor que mora nas gameleiras e que também preside seus mistérios. Essa palavra foi usada por ela para dar conta de tantas facetas desse deus. Porque ele possui missões que, ainda sob os ensinamentos de Ebomi Cidália, o leva a atuar como em uma empresa de segurança: tem o especialista na proteção da porta; outro que vigia a guarita; aquele que observa as intersecções das ruas e também esquinas, passarelas viadutos e tudo mais que for caminho para se passar em direção a outro lugar e quiçá novas dimensões.

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Exu não

se pede nada

porque ele

é mais rápido

que o pensamento”

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Aprendi também com Ebomi Cidália que a Exu não se pede nada porque ele é mais rápido

que o pensamento e, antes que o nosso se forme, tudo já lhe foi revelado e está sob o seu julgamento: vale ou não a pena? Segundo a sabedoria de Ebomi Cidália, Salvador estava esquecendo de Exu. A cidade, segundo ela, precisava atentar para o reforço da proteção especialmente desses encontros de caminhos. Por isso, avaliava, de vez em quando se registram tragédias nas zonas de passagens, mas sob o seu povo Exu não diminui a vigilância protetiva. “Veja se acontece algo com gente voltando dos terreiros madrugada adentro. Você tá vendo?”. Dito isso abria o seu largo sorriso. Ebomi Cidália era alguém de muita fé. Ela dizia ver, ouvir e sentir orixá como acontece com as pessoas.

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“Eu só acredito em Exu, no Caboclo Eru e na Pomba Gira”

Mas eis que encontrei em Roberto Albergaria, que nos deixou em 2015 e que se auto

definia como um herege – porque ele dizia que não queria ser confundido com alguém incapaz de pensamento mágico – dono de uma fé inabalável em Exu, segundo seu próprio testemunho: “Eu só acredito em Exu, no Caboclo Eru e na Pomba Gira”, repetia sempre um dos mais brilhantes intelectuais que conheci e que escondia tantas e tantas vezes sua erudição na capa do deboche. Ele dizia que sim e acho que se tornou real, mesmo sem a formalização, a sua adoção por Exu como um de seus filhos. Albergaria também gostava de colecionar imagens de Padilhas, uma face feminina de Exu que o candomblé, especialmente a tradição Ketu não celebra em larga escala, mas a umbanda a adotou. Certa vez Albergaria me atormentou com um pedido de ajuda para que encontrasse um sofá na cor vermelho e assim deixasse o seu “cantinho das Padilhas” de acordo com o que idealizou. Uma gentileza de um admirador que, mesmo sem a fé, mas com a curiosidade nascida pelo encanamento da potência do conceito, tornou ciência. Tem algo mais Exu do que isso?

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A

"E se tem a face feminina" E se tem a face feminina chamada de Padilha e também Pomba Gira, em determinadas perspectivas, Exu ganha outros nomes como Zé Pelintra, que, com a sua elegância de terno e chapéu brancos, passos medidos e um eterno sorriso de canto de boca inspirou, dizem, a criação de Zé Carioca, o personagem dos poderosos estúdios Disney para recepcionar o Pato Donald no filme The Three Caballeros lançado em 1944 e que trouxe uma versão em inglês de Você já foi à Bahia?, do grande Dorival Caymmi. Ora! Estão pensando que Exu é brincadeira? Dobrou até a poderosa máquina da indústria cultural norte-americana quando seu semelhante Loki só agora chegou e ainda assim teve que perder uma parte considerável da sua potência porque é “vilão”. Nada. Exu jamais se deixaria dobrar assim. 18

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relação entre Exu e Salvador é longa, antiga e muita intensa. Já disse e reafirmo: não há limites para quem conhece todos os segredos sobre movimentos e caminhos. Assim, senhor das trilhas da cidade, Ele já deveria estar por aqui dialogando com encantados indígenas, alertando que logo povos que não sabiam da existência uns dos outros se veriam em uma intricada teia de conquista, disputa e, infelizmente, muito sangue e sofrimento. Por isso ele e outros das suas irmãs e irmãos divinos atravessariam um oceano para estar junto aos seus dando consolo. Era uma época em que talvez assumisse o nome de Nizila, como essa força é conhecida nas tradições de povos angola-congo; depois estaria sob a identidade de Elegbara, denominação equivalente nos grupos fon. Mas nem por isso deixou de se “abrasileirar”: virou Tranca Rua, Caveira, Seo Zé ou “O Homem”. Gosta de cachaça – e quem diz que essa forma de preparo da bebida não é coisa fina? – mas também aprecia bom vinho e tem um paladar refinado. Esqueçam o reducionismo da farofa. Exu sabe comer muito bem. E está à vontade em sua Cidade da Bahia. Duvida? Vamos então consultar a obra de Jorge Amado que tanto trafegou pelo mundo da crônica cotidiana e da ficção porque estava à vontade com essa intersecção em que magia e razão se inter-relacionam a ponto de não se saber onde uma e outra termina: “Quem guarda os caminhos da Cidade do Salvador da Bahia é Exu, orixá dos mais importantes na liturgia dos candomblés, orixá do movimento, por muitos confundido com o diabo no sincretismo com a religião católica, pois ele é malicioso e arreliento, não sabe estar quieto, gosta de confusão e de aperreio. Postado nas encruzilhadas de todos os caminhos, escondido na meia-luz da aurora ou do crespúsculo, na barra da manhã, no cair da tarde, no escuro da noite. Exu guarda sua cidade bem-amada. Ai de quem aqui desembarcar com malévolas intenções, com o coração de ódio ou de inveja, ou para aqui se dirigir tangido pela violência ou pelo

azedume: o povo dessa cidade é doce e cordial e Exu tranca seus caminhos aos falsos e aos perversos” (Bahia de Todos os Santos – Guia de ruas e mistérios, Jorge Amado, p.13) Como aponta Jorge no trecho recém citado, tentaram associar Exu ao diabo. E nem foi ao belo e inteligente Lucífer, “luz da manhã”, o arcanjo rebelde e inconformado nem se sabe direito por quê. Tentaram associá-lo ao monstrengo com chifres e pés de bode semelhante ao que já haviam feito com o belo Pã por conta de suas peripécias e exercício da liberdade como encantado da natureza. Mas qual? Imagina se Exu se deixaria ser aprisionado assim. Sua gargalhada deve ter ressoado nas dimensões dos mundos conhecidos para além da filosofia humana diante de tanto desaforo. E eis que ele venceu a disputa, pois segue seu caminho em desafio aos intolerantes resistindo, se reconfigurando, se transformando e até deixando que seu nome possa ser ressoado em alto e bom som nas mais diversas criações sem a necessidade do murmúrio de outros tempos.

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Exu está em camisetas, nas canções, se exibe em monumentos pela cidade e tem disposição para se revelar a quem quiser ou precisar vê-lo. Lembro de um dia angustiante, há mais ou menos uns cinco anos. Viajando cedo em um ônibus para uma demanda que não era agradável e me pesava na alma, olhei pela janela para um ponto na avenida Bonocô e lá estava um homem acocorado diante de duas páginas abertas de um jornal na calçada, com um cachimbo no canto da boca. Foi coisa de instantes a visualização da cena. Ele sequer olhou para mim, mas cá no meu íntimo de quem acredita em magia eu compreendi e comecei a encontrar ali uma resposta para as minhas angústias. Algum tempo depois, quando me dirigia para uma atividade de ensino, algo que se tornou uma nova carreira e aplacou parte da minha inquietação. Eu passava pela Avenida Garibaldi muito cedo, antes

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das sete horas da manhã, duas vezes por semana. E, por várias vezes o vi: alto, de corpo longilíneo, barbudo, cabelos compridos, em dreads. É um andarilho, sem teto, ou como desejarem chamá-lo, mas gostei da denominação que uma aluna me disse ser corrente para definir o personagem: o Exu da Garibaldi. Ele recolhe as ofertas que as comunidades do povo de santo depositam na rua e que não “são para fazer o mal”, pois gente que acredita em inquice, orixá, vodum, caboclos e encantados não perde tempo com mesquinharias em relação ao outro. Geralmente, o presente depositado na rua é em busca de cura para si mesmo. Pois certa feita o vi desfilando com uma galinha segura pelas asas. A dignidade do seu caminhar e um alheamento imponente ao que está em volta é algo hipnótico. Vai dizer que não pode ser Ele mesmo mostrando o quanto fica completamente à vontade na cidade que Jorge Amado já disse que é sua?

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E a gente sabe que é mesmo. Porque Exu ama a beleza: movimento, rapidez, profundidade sem complexidade; complexidade na simplicidade; leveza, mas também alerta; ordem e caos, ou do contrário não há equilíbrio. E tem o riso. Exu é aquela risada gostosa de quando se entendeu a piada; a gargalhada que tira todo o peso da alma ou até mesmo aquele sorriso discreto do triunfo. De alguma forma são características que se encaixam em Salvador. Como não respeitá-lo, como não saudá-lo e deixá-lo distribuir seus encantos, seus dons e sua generosidade? Laroye, Senhor dos Caminhos: por favor, fale, publique, edite, mobilize as redes em seus bytes, terabytes e contagens em “k”. A comunicação social é toda sua, afinal ninguém conhece melhor os seus mistérios. Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia [UFBA].

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AGÔ 24

A Laroyê é um mistério forjado pelas três faces do TEMPO. Surgiu em uma confluência histórica que nos obrigou a repensar nossas escolhas diante da asfixia promovida pela mais estúpida das terraplanices: a negação à vida. Em contraponto, a partir dos olhares sobre uma cidade e do nosso povo, retomamos as encruzilhadas-labirinto que se ramificam e consagram o diálogo entre linguagens artísticas para se estabelecer como força coletiva e mobilizadora. Neste número, artífices da palavra e da imagem, de eclético repertório, a maioria nascida na Bahia ou por ela afetivamente encantada, nos convida a percorrer nuances da nossa identidade mais profunda e algo insondável, a que vibra nas ruas: os becos da nossa feira maior, o baba sagrado na praia de Ondina, as nossas manifestações populares mais espontâneas. Ou ainda, mestres da sedução literária, nos conduzem à atmosfera da avenida Sete dos anos 1990 [logo ali e tão distante], às tretas dentro do buzu que circula por Cajacity, aos velhos bares do centro que são reduto de uma esperança que já nem sabemos mais qual é. Solta no mundo, a Laroyê não se restringe a limites geográficos nem a recortes temporais. E pelo viés da arte e dos movimentos fortuitos com origem nas ruas da Bahia, aqui tudo é possível: a ruptura, o contrafluxo, a reviravolta.

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“Odarayá”, 2015 ©Tom Correia

À ancestralidade que nos revela o caminho. A todas[os] que vieram antes. Pedimos licença e agradecemos.

Tom Correia [Salvador, Bahia] É escritor-fotógrafo com formação

em jornalismo e assina curadoria de festivais literários. Autor de Unblack Lisbon [2020], Ladeiras, vielas & farrapos [2015], Sob um céu de gris profundo [2011] e Memorial dos medíocres [2002].

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Ramalhetes DE UMA RUA E SEUS

Minha irmã morava no Garcia e ele morava na Liberdade. Eu morava em Feira de Santana, mas em toda sexta-feira vinha para Salvador vê-lo e só retornava no domingo. Ele era magrelo e, apesar de já ter vinte e cinco anos e de ser professor universitário, parecia um menino, as pernas finas, os dentes tortos. Gastava todo o dinheiro que recebia com livros, por isso eu o amava. Ele saía da Liberdade de bicicleta para me pegar no Garcia. Lá deixava a bicicleta e íamos andando, de mãos dadas, para o Glauber ou para o cine do Politeama. O que esse rapaz tinha de feio também tinha de engraçado e culto. E como me amava! O primeiro beijo aconteceu num banco enorme de cimento que havia no Campo Grande, naquele distante 1996. Nesse dia, ele levou a bicicleta consigo, me acompanhando, conversando muito sobre Italo Calvino, queria me impressionar. E conseguiu. Daí em diante começaram nossas intermináveis caminhadas aos sebos, aos cinemas, às livrarias. O namoro se aprofundou: em menos de seis meses já era meu noivo, com aliança e tudo. Portanto, estando em Salvador, eu não ficava mais no Garcia, ficava em sua casa, na Liberdade. Seu quarto era atulhado de livros. E ele fazia tudo pra mim: passava meus vestidos, esquentava minha comida, colocava meu café, sempre cantando e dançando. Os meus melancólicos vinte anos não gostavam muito dessa sua alegria extrema. Além disso, me contrariavam seus muitos amigos, seu gosto por sol e carnaval. Porém, as coisas entre nós iam bem, líamos muitos livros juntos. Eu lia contos para ele antes de dormir. Poesia não, ele nunca entendeu poesia. Toda essa história é simultânea ao fechamento da livraria Diliba, lugar que eu adorava ir, na Avenida Sete. Eu não procurava entender por que a livraria estava fechando, eu festejava o acontecimento. Isso em razão de lá haver uma mina de pedras preciosas, tudo com preços acessíveis à minha realidade de estudante de Letras. Foi ele quem me deu a grande notícia. E me chamou para vir de Feira, imediatamente: sendo amigo do vendedor, tais preços se tornariam ainda mais acessíveis. Sim, descambei de Feira de Santana e ele me esperou na rodoviária. Parecia um menino, como já disse; entretanto, alimentava algumas manias: ao se arrumar para sair, ficava nos trinques: com sapato

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e camisa social. Camisa sem um amassadinho. Porque para isso ele vivia com o ferro de passar na mão. Ele foi o maior passador de ferro que conheci. Não admitia uma nesga de roupa amassada. Sim, me esperou na rodoviária todo aprumado na camisa social. Chegando em sua casa, animadamente me contou do incrível saldão da Diliba, livros a preço de banana. No outro dia acordamos cedo para irmos à referida livraria. Logo me mostrou seu sapato social novo, iria estrear. Descemos a Pero Vaz para pegarmos o ônibus, de mãos dadas. Foi aí que, no caminho, ele começou a se queixar de aperto no pé; no entanto, disse que não era nada não, estava muito feliz. Solar demais, muita felicidade. Chegando na Diliba, vi os olhos brilhando do vendedor, seu amigo de longas datas. O homem, generosíssimo, me vendeu todo o Italo Calvino, todo o Rubem Fonseca a R$ 1,99 cada livro. Mais José J. Veiga, tudo a R$ 1,99. Isso é que era a grande felicidade! Saímos de lá levando muitas sacolas de plástico pesadas, pois que também comprei livros de teoria e crítica literária grossos. Ele pagou todos os meus livros. Como aquilo tudo me comovia. Eu o amava porque ele amava os livros, me dava livros de presente, compartilhava comigo o que para mim sempre foi o mais importante. Em razão disso é que eu suportava sua falta de melancolia, seus muitos amigos, tanto amor ao sol e ao carnaval.

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Ao sairmos da Diliba, descemos à Lapa para pegarmos o ônibus. Percebendo que ele não me acompanhava na calçada, parei e o vi bem atrás, de passo curto. Pensei que talvez fosse o peso das sacolas. Não, era o sapato novo. Sentou-se na calçada e disse para eu esperar. Retirou o sapato para os pés se refrescarem: os calos de lá saltaram, em carne viva. Voltou a calçá-lo e já íamos descer as escadarias que davam para o terminal da Lapa. Ali muita zoada dos vendedores ambulantes, todo um colorido de gente e sol. Pediu-me novamente para parar. Pensei que fosse por conta dos calos, ou para sentir o sol no rosto, mas não. Ali na esquina existia uma loja de cds, entrou. Enquanto eu olhava muitos cds dentro de um balaio na porta da loja, ele comprou, mandou embalar e me deu de presente: “Fados brasileiros”. Sem saber, aquele menino construía uma memória dilacerante de amor para mim. Eu também, sem saber (aos vinte e poucos anos a gente de nada sabe), acolhia aquilo tudo como se fosse algo natural. Devagarzinho chegamos ao terminal da Lapa. A essa altura ele andava segurando nas paredes. Todos paravam para olhar a cena, muito engraçada: ele, com passos cada vez mais miúdos, carregando um monte de sacolas de livros. Subir no ônibus naquelas condições exigiu paciência dos passageiros e do motorista. Enfim, descemos na Liberdade. Outro sacrifício dele para conseguir pisar no chão e andar até sua casa. Hoje me lembro e me pergunto por que diacho esse menino não tirou de vez aquele sapato cruel e foi andando descalço... Oxe, um rapaz que não se livra de andar arrumadinho de camisa social, engomada, jamais se prestaria a tal transgressão, mesmo gostando tanto de carnaval. O carnaval. O sol. Os amigos. A Diliba fechou e virou um restaurante. Depois a Civilização Brasileira. Quando esta faliu, assim como todas as outras livrarias de rua de Salvador, eu não mais tive notícia dele.

@vilmaangela [Andaraí, Bahia] Poeta, cronista e professora de Literatura da Universidade Estadual da Bahia. Publicou, entre outros, Aeronauta [2020], A solidão mais funda [2016] e Poemas para Antonio [2010].

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SETE PORTAS

Desocupado leitor, coisas estranhas estão ocorrendo nessa terra pintada de verde, amarelo, azul e branco. Não tô conseguindo dormir direito. E você? Veja bem, moro no Bairro Guarani, na Liberdade. Aqui, pombos e gatos estão colonizando o espaço e marcando o território de todas as formas. No largo do bairro, recebi uma cagada de pombo na cabeça. Curiosos como somos, um transeunte se aproximou, avaliou o estrago em meu cabelo afro e disse com toda bondade do mundo: dizem que cocô de pombo traz sorte, bróder. E eu, que agradeci a gentileza de suas palavras tão sinceras em tempos tão bicudos, queria o azar de andar limpo e tranquilamente em um espaço razoável da calçada. As boas oportunidades estão escapando de nós. O som que se amplifica em carros arreganhados no meio da rua ou em varandas vizinhas parece a chave para se descobrir, por exemplo, a evolução da surdez humana (reparou que a gente mal se escuta?). Outro dia mesmo, por cima da confusão de sons, uma vizinha que tem o hábito de conversar com a outra pela janela indagou repetidas vezes: QUÊ?! QUÊ?! Até que houve um breve rebaixamento das melodias em disputa lá embaixo e pude ouvir: MINHA FILHA, DE GRAÇA, ATÉ INJEÇÃO NA TESTA! A risada generalizada me fazia crer que éramos um povo feliz, sempre apesar de. Só que agora, até os gatos daqui da rua andam estressados e resolveram se matar. É uma confusão atrás da outra e nunca consigo entender bem o motivo. Preferia que a bondade continuasse a ser mais contagiante.

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Já reparei que tem uma turma do mal responsável pela guerra animalesca: a gangue dos números, essa foi a alcunha que lhes dei. Andam em grupo, enfileirados: zero um, zero dois e os outros, tocando o terror. Como se espalhar dor e sofrimento fosse sua missão aqui na Terra. Quem mais sofre nas garras deles é um gatinho cada vez mais solitário que resolveu fazer morada em minha porta (como se quisesse chamar minha atenção) e que, pelo rabo carcomido, pelas cores rajadas e pelos olhos amarelados, apelidei de Brasil. Em certa ocasião, coloquei um pouco de água e comida e a aproximação me fez perceber que suas patas pareciam queimadas, como se vivesse caminhando num solo fumegante e até me ocorreu pensar no próprio inferno. Da última vez que lhe socorri, me retribuiu um olhar lacrimejante de partir o coração. Mas, não se engane, às vezes, ele anda com um ar aristocrático e me acabo na risada com sua petulância. Apesar de tudo isso, essa noite, talvez pelo cansaço, comecei a achar que desabaria e teria um sono tranquilo. Quero dizer, achei que a ansiedade e o estado de ânimo perturbado que têm me acompanhado esses dias não alcançariam a minha cama. Só que num tempo indefinido, me vi sonhando com Brasil. Ele tava sendo perseguido mais uma vez pela gangue dos números. Dessa vez, vi com nitidez no sonho, se deparou com sete portas em sua frente. Parou, encarou as possibilidades e não se decidia por qual caminho seguir. Até que ao seu lado direito surgiu uma ladeira bem íngreme e ele optou por correr aflito para lá, fugindo, subiu e senti que foi perdendo as forças. Acho que ele pensava que lá no alto fosse encontrar a paz suprema e um reino próspero.

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EVANILTON GONÇALVES @evanilton.goncalves [Salvador, Bahia] Graduado em Letras Vernáculas pela UFBA e mestre em Língua e Cultura pela mesma instituição. É autor do livro Pensamentos supérfluos: coisas que desaprendi com o mundo [2017].

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Bar : SOBRENOME ESPERANÇA

Seria indigno começar sob o signo da trapaça, por isso meto logo a confissão: ao contrário do que sugere o título, isto não é (apenas) uma crônica biográfica sobre uma budega. É muito mais. Sou pretensioso, reconheço. Avisados? Viajemos. Seguinte é este. Geograficamente, talvez nem tanto. Porém, se abandonarmos a rigidez dos mapas cartográficos e nos guiarmos pelas afetividades, podemos afirmar, com pouca margem de erro: raros eram os lugares que possuíam o cheiro, suor, sabor e, por que não dizer?, espírito rebelde dos tempos idos e fudidos no Centro Histórico de Salvadolores quanto o Bar Quintal do Raso da Catarina, especialmente na década de 80 do século passado. A fauna que iluminava o insalubre e delicioso recinto era diversa e barulhenta. Os debates, acalorados e alegres, sempre permeados por muita música e poesia. Até os tradicionais chatos tinham algum charme, muito provavelmente porque todos estávamos entorpecidos por príncipes malucos, mistura que azucrina qualquer juízo. Por falar em misturas, artistas das mais inusitadas áreas se juntavam aos estudantes, profissionais liberais e militantes políticos. Apesar de um ambiente predominantemente de esquerda, existia pluralidade. E generosidades. A campanha para o garçom Quitério visitar a Nicarágua sandinista, a partir das vendas do jornal Barricada Internacional e outras mumunhas, confirmava uma das máximas do local: “a gorjeta é fruto de uma relação poética entre o garçom e o cliente”. A (des)propósito, recordo que meu carrasco e finado genitor, ao me flagrar com um exemplar do subversivo veículo, rogou a praga. “Tomara que os militares lhe peguem”. Só achei graça e prossegui na luta, digo, na farra. Porém, quando a farra chegou ao fim, em meados da década de 90 e a ressaca se abateu após uma longa batalha que o quixotesco Franco Barreto travou contra a Associação dos Engenheiros Agrônomos da Bahia, os habitués fundaram o Movimento dos Sem Bar. E, deslocados, percorreram a cidade, do antigo Mercado do Peixe, no Rio Vermelho,

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até o Jardim da Saudade. Sim, iam lá navegar nas noites etílicas do cemitério. Não me recordo agora se foi o poeta Ruy Espinheira ou crítico de cinema André Setaro que me confidenciou certa feita. “De todos os locais que temos andado, este daqui é o melhor. Podemos beber em paz”. Mas derivo. O fato é que, atordoado com o encerramento daquele ciclo, cogitei a possibilidade de jogar para escanteio até mesmo os meus tradicionais óculos de Dr. Pangloss que me acompanham ancestralmente. E, palhaço das perdidas ilusões, pensei que aqui na província estava a se confirmar o triste vaticínio que Russell Jacoby acabara de fazer em “Os últimos Intelectuais: A cultura americana na era da academia”. Para não lhes dar trabalhos, pois sei que vocês são pessoas ocupadas, sem tempo para maiores debates, farei um resumo, sem muita profundidade, como sói, das 288 páginas do livro em apenas um parágrafo. Vamos lá. De acordo com o referido historiador, a boemia e os seus (mal)ditos frutos (filósofos, artistas e quejandos) praticamente foram extintos pelas implacáveis mudanças ocorridas nas configurações das cidades em meados da década de 60 do século passado. Ao se transformar, a urbe matou também uma geração de pensadores, que se deslocou dos butecos, vielas, ladeiras e farrapos (beijos, Tom Correia) para as fábricas de diploma. Com isso, os insubmissos de antanho, com suas ações e discursos criativos, cederam lugar ao intelectual de academia, proprietários de textos empolados e do inabalável amor à subvenção pública. Enfim, a originalidade perdeu para o enfado.

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Pois muito bem, digo, pois muito mal. Este, em resumo, era meu receio pouco mais de 20 anos atrás na nossa perdida Batalha de Stalingrado no Quintal. Porém, hoje, apesar dos desmantelos e de saber que não há motivos para festa, ora esta, não sei rir à toa, a verdade, esta traquina menina nostálgica que não salva nem liberta, é uma só: sobrevivemos. Ou, para usar outro axioma do antigo Raso da Catarina: bebemos e não morremos. E não morremos apenas porque o Raso da Catarina se reinventou. Os outros bares, que permaneceram ou se disfarçaram, conseguiram preservar a alma rebelde do centro soteropolitano, se é que o centro ou qualquer outro lugar tem alma. Contudo, possuindo ou não esta etérea entidade, o fato é que este nosso querido lugar foi salvo pelos butecos. Aliás, enquanto o resto da cidade e do país foi tomado por outras indústrias de felicidades, aqui rolou o inverso e até igreja, como no caso da Barroquinha, acabou se transformando em espaço cultural. Permitem-me um parêntese. Vou abrir com jeitinho. (Sim, minha comadre, mesmo sem PowerPoint, podemos afirmar que as duas indústrias mais prósperas de quase toda e cidade são a da fé e a farmacêutica. Das janelas, sejam as laterais do quarto de dormir ou as do buzu, para onde a gente direcione nossa obnubilada visão sempre aparece uma igreja ou um outro estabelecimento comercial que também negocia fórmulas milagrosas. E neste caso, menina Susan, a doença não é apenas metáfora. É uma triste paisagem sem cura. E, quando as gentes que habitam estes outros espaços acordar, a felicidade não vai desabar sobre os ombros). Porém, graças aos 600 DEMÔNHOS, no centro a situação ainda é diferente. Embriagamo-nos de vinho, de poesia e de paixões nos mais diversos estabelecimentos que aqui nos proporcionam histórias, afetos & projetos que já foram e são vividos e sonhados. Esta Revista Laroyê é de todo o Brasil e, quiçá, até da Bahia, mas é principalmente, pelo menos pra mim, mais uma destas publicações, igual à Barricada de Quitério, que será companhia nas mesas das budegas centrais e periféricas. É isso, menino Sartre: enquanto os butecos triunfarem, não perderemos a esperança.

FRANCIEL CRUZ

@ingresia

[Irecê, Bahia] é pós-graduado em dança de rato, com especialização em ingresia. É autor de “Ingresia, chibanças e 600 demônhos” [2018].

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O Amor AINDA ENDOIDA UM

O inferno é cheio de memórias, Anastácio. Não tem fogo nem enxofre, mas tem um saco de Memoriol para você engolir todo dia, e ficar com a mente acesa, lembrando do que já passou na vida. E lá há também os fantasmas das ex-mulheres que te deram azar. Me permita falar assim, me permita. Você fica aí, sofrendo por essa Heleninha, e se ela pudesse sambava no seu caixão. Tinha mais que fazer, sabe o quê? Pegava o primeiro ônibus para Candeias, para Madre de Deus, Cachoeira, São Francisco do Conde, sei lá… Chegava num boteco, o arrocha na maior altura, tomava todas até curar essa dor de chifre. Sim, ouvindo arrocha na maior altura. Todo mundo que leva um pé na bunda tem direito a um vale-bode, a um vale-porre, a desabafar tarde da noite com uma dona de bar, enquanto ela arruma as mesas. Mas a dona tem que ser uma mulher com cara de mãe, você escolhe bem ao entrar, que elas dão importância a essas novelas. Não está vendo? Você devia era agradecer por Heleninha mandar uma mensagem dizendo que apareceu outro na vida dela. “O universo trouxe alguém”, não foi assim que ela escreveu? Porque ela não precisava se despedir de você, ela nunca esteve aqui ao seu lado. Estava contigo, mas não te pertencia. Sim, aceitava os convites, vinha a reboque, gostava das firulas que você fazia, mas até eu, que não sou mulher, até o Janjão aceita ser bem tratado.

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Olhe que eu não gosto de falar de mulher de amigo, porque depois ele reata o namoro e os dois passam a me odiar, mas, nesse caso, é perda total. Outra coisa que pode lhe doer no esfíncter: já pensou que ela pode não ter ninguém, só quer vazar? Leninha não é mulher de se apegar, e pode ter o homem que quiser, agrada a gregos e taurinos. Aliás, antes que você ache que eu tenho desejo por ela, eu confesso: é um mulherão mesmo, a turma toda comenta, a gente só não dizia na sua frente, nem ia furar seu olho nem ficar com a gata. Mas o seu problema é justamente esse, você é muito abusado, e acredita em milagre. Você apostava mesmo que conseguia manter uma dona de nível excelente como Heleninha? Como aquela outra, Fernanda, que você trouxe outro dia? E aquela que mora lá em Alphaville, a médica, como chama mesmo? Você, que já passou dos quarenta, nem tem esse dinheiro todo, atrás de ninfeta? Se isso não é vaidade, o que é, então? Olha, a beleza é fundamental, mas a água também é, e a água afoga. Lembra da “Garota de Ipanema”, como Vinícius ficou arrasado? Começou falando da coisa linda, cheia de graça, depois percebeu que estava

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“tão sozinho”, que “tudo é tão triste”, que a beleza que existe “não é só minha” e “também passa sozinha”. Isso ele estava em Ipanema, na praia… e ficou triste. O mundo mais lindo por causa do amor, e ele triste. Eu não sou de alisar macho, Anastácio, mas você também não é o último homem da face da terra, basta se arrumar um pouquinho, fazer essa barba, cortar o cabelo… agora fica aí, se desprezando por quem não lhe quer. E o pior, volta e meia tem esse drama, toda vez que uma se vai, você repassa o filme todo com a rapaziada, relembra beijos, mordidas, detalhes tão pequenos. Parece que guarda as coisas boas e na despedida elas vazam, elas sangram do seu coração. É como se fosse uma moça, com essas sentimentalidades de Bianca, de Júlia. Olha, vai ser R$ 50,00 a cota de cada um para comprar o presente do Evandro, eu vim buscar. Você sabe que a turma da quadra quer dar uma coisa boa para o amigo que vai se casar. O que é que você tem com isso, se o casamento é dele? Amizade. Não é porque está sem ninguém que seus colegas têm que ficar chorando, do seu lado. Você não está só porque seu amigo vai casar e seu amigo não vai casar porque você está só. Muita calma nessa hora! Já ouviu falar da Roda da Fortuna? Hein? E da Lei do Retorno? Pois nada disso funciona, porque no amor não há lei nem guarda de trânsito

Ouça os meus conselhos, mude de vida. E sim, pode fazer um pix, eu te dou a chave. Coração é terra que ninguém passeia.

FRANKLIN CARVALHO

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@franklincarvalho2017 [Araci, Bahia] Jornalista e autor de Céus e Terra [2017], vencedor do Prêmio SESC e do Prêmio São Paulo de Literatura. Também foi vencedor do Prêmio Nacional da Academia de Letras da Bahia com o livro A ordem interior do mundo [2019].

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Salvador , CIDADE-FANTASMA

É um domingo qualquer de janeiro do ano de 2021. Portanto, é verão numa cidade solar e estranhamente vazia, em comparação a outros janeiros e verões que parecem neste momento inalcançáveis. De dentro de casa, fecho os olhos e percorro as ruas como quem acaricia com os dedos as lombadas de livros alinhados numa estante infinita, e de repente para, escolhendo algum, ao acaso. “Foi. Nunca mais será. Lembre-se.” São essas as últimas palavras de um livro escrito sobre uma perda pessoal, sobre alguém próximo que se foi e que se tenta de alguma forma reconstituir no tempo e no espaço atuais: um inventário de memórias. Na rua por onde pas-

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seio mentalmente observo os fios elétricos à mostra, a banca de frutas, as portarias dos prédios, as farmácias e restaurantes, me demorando em frente a uma livraria, a 100 metros do Porto da Barra. Se eu levantasse e de fato caminhasse até lá, encontraria agora as suas portas fechadas e o seu interior vazio. O morador de rua que circulava pelo bairro também não está mais lá. Foi. Nunca mais será? Desde o ano anterior, no mundo todo – mostravam as notícias, os vídeos e fotografias fantásticas –, as ruas se tornavam mais vazias de gente, mas as cidades permaneciam vivas. É assim, mesmo quando não circulamos, a cidade está viva o tempo todo, e vai perdendo pedaços. Quão reconhecível será depois, se houver depois? Ao mesmo tempo em que os endereços conhecidos desaparecem no silêncio, brota ali no bairro vizinho um novo bar, e aqui ao lado uma sorveteria, árvores imensas desaparecem, novas avenidas e viadutos redesenham os caminhos possíveis para, no futuro, haver outras maneiras de se perder. Há cidades que se permitem conhecer por seus indícios, mesmo que estejam desabitadas. Algum viajante do futuro poderia percorrer cada uma delas com um mapa à mão e decifrar o seu espírito, adivinhar a sua personalidade. Salvador é um outro tipo de cidade, cheia de mistérios, para a qual se precisa de guia e os mapas não bastam. Uma cidade de passagens mágicas, em que virando à direita numa grande avenida se pode sair, de repente e sem nenhuma lógica

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aparente, em outro bairro inesperado. Uma cidade de ruas e avenidas com nome e apelido, para atordoar e confundir qualquer forasteiro. Deve haver cidades que vivem apenas o presente, e se mantêm as mesmas ou se reconfiguram sem que isso sequer se perceba. Mas Salvador tem um jeito peculiar de resistir e carregar consigo os seus fantasmas. De que outra maneira se justificaria que até hoje matérias de jornal, transeuntes dando informação pelas ruas e até mesmo corretoras de imóveis se refiram a um endereço específico entre a Avenida Vasco da Gama e a Avenida Garibaldi como o terreno da “antiga fábrica da Coca-Cola”, quando a essa altura ninguém se lembra mais nem mesmo quando ela deixou de existir? Turistas desavisados certamente solicitam pelos aplicativos de transporte uma corrida até a Praça Caramuru, sem desconfiar de que, para os locais e mesmo para o Google Maps, se trata para sempre do “antigo Mercado do Peixe”, e que o aeroporto local jamais deixará de ser o “Dois de Julho”. É possível que o mesmo aconteça com a livraria próxima ao Porto, e o futuro precise carregar consigo a lembrança do que foi. Porque talvez, para essa cidade ancestral, que viu o fim do mundo tantas vezes e continuou existindo, a parte mais importante e natural do inventário da memória seja justamente o trecho final: “Lembre-se”.

MOEMA FRANCA

@mo.franca

[Estância, Sergipe] Escritora e jornalista, é mestre em Comunicação [UFBA] e doutora em Literatura [Paris 3]. É autora de “Bem aqui, em lugar nenhum” [2013], finalista do Prêmio Jabuti.

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Cidade ENVELHEÇO NA

Hoje levei uns livros na Lapinha, bairro onde cresci. Por Deus, o que fizeram daquele lugar? Difícil de acreditar, mas arrancaram o palanque de concreto. Como sempre, jogaram fora a simplicidade. Agora é apenas uma praça que imita tantas outras praças. Um amontoado de banquinhos coloridos e muretas sem razão. Parece que jogaram um balde de Lego pra cima e depois tentaram encaixar algumas peças. São muitas grades, formas, mesas, letreiros e cores, muitas cores. O mais incrível é como esse showzinho de cimento e tinta bate na cabeças das pessoas. Nenhuma família na porta de casa. Nenhum grupo de amigos sentados na porta da igreja a matar o tempo. Ninguém tomava uma Coca-Cola em pé e sem pressa na banca de revista. Pelo contrário, vi pessoas correndo. Corriam pra academia, pro mercadinho, pra lotérica, seja lá pra onde mais estavam indo. Todos com pressa. E os que bebiam nos bares estavam apenas de passagem. Como se não houvesse ninguém ali de verdade. Quando me mudei da Lapinha, fui morar no IAPI. Outro bairro de periferia. Um corredor de casas simples com transversais tranquilas e arborizadas. Você tinha pequenos negócios familiares. Uma sorveteria, um armarinho, coisas assim. Você ainda escutava as cigarras no final da tarde e podia sentir o cheiro do pão quente que vinha da padaria. Meus velhos ainda moram por lá. E quando vou visitá-los não consigo aguentar muito tempo. Aquilo virou um inferno.

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As casinhas deram lugar a lojas, quitandas, copiadoras, bares, pizzarias, petshops, supermercados, cursos de inglês, igrejas evangélicas, trinta farmácias, carros de som e paredões. Onde foram parar as calçadas? Claro que a bala ricocheteou nas paredes e acertou as pessoas. Elas não falam mais, gritam. Gritam e xingam e gargalham e trocam socos e aumentam o volume e continuam gritando. Como se estivessem num ringue de lama pra ver quem grita mais. Tudo virou um corredor abafado. As cigarras se mudaram pro interior de Goiás e o cheiro do pão deu lugar a um concreto fedor de x-tudo com gás carbônico, cachorro molhado e Nova Schin. Por falar em pão, outra noite, ao sair de um serviço no Rio Vermelho, procurei uma padaria, mas só encontrei esse lugar chamado Bakery. Que fique claro, não era uma padaria. Era uma Bakery. Mas lá dentro havia pães de todo tipo. Encostei no balcão. “Quatro cacetinhos, por favor”. “Cacetinho?”, a atendente me olhou como se fosse um alienígena com chapéu de palha. “Pão cacetinho”. “Não trabalhamos com cacetinho”. “Sem cacetinho?” “Rústico?” “Eu?” “Gostaria de levar o rústico?”. “Rústico, o quê?” “Nosso pão, o rústico”. “Ah, o rústico. Me arranja quatro”. “40 reais”. “Jesus Cristo. Pelo menos vocês não dizem que é uma padaria”.

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Não é de espantar que a turma do Rio Vermelho agora gaste 40 conto pra comprar pão. Eles transformaram o lugar num shopping center. Estou falando de piso blocado, pergolados, lounges, luminosos. Então hoje você tem essa multidão, uma horda de jovens aglutinados como na entrada do cinema, cagando se ali é o Rio Vermelho, o Santo Antônio ou a Ribeira, tirando selfies, passando de mão em mão o novo drink da moda e dizendo, “Ei, agora esse é o lugar descolado e vejam, eu também estou aqui”. Não é boemia. É praça de alimentação. Ouvi dizer também que já colocaram áreas vips na festa dos pescadores. Mas escadas rolantes para a praia parece que é boato. Então é isso, você pisca os olhos e não reconhece mais a cidade. E não reconhece os rostos, os olhares, os passos. Não foram apenas os orelhões que desapareceram. Novos viadutos e calçadas empurram, chacoalham, jogam pra cima, escondem. As pessoas querem mais e mais e fazem de cada lugar um lugar nenhum. Talvez seja o que eles chamam de evolução, sei lá. Mas há algo de triste nisso tudo. Vou ficar por aqui pensando. Ah, Bono, deixe de ser pé no saco. Você também faz parte desse jogo e desaparece a cada dia. Posso imaginar duas árvores da Lapinha ao te verem hoje e uma diz, “Vê aquele barrigudo? Costumava rir mais.

PAULO BONO

@paulo.bono

[Salvador, Bahia] Redator, escritor e roteirista. Autor de Sexy Ugly [Novela, 2019] e Espalitando [Contos e crônicas, 2013]. Participou também das antologias de contos Soteropolitanos [2020] e Casa de Orates [2016] .

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O AUXÍLIO EMERGENCIAL

no Buzu

Ana Paula Caloteira, minha amiga, precisou ir buscar a primeira parcela do auxílio, mas não sei por qual motivo ela inventou de ir à caixa econômica do bairro da Graça. Já era umas seis da tarde quando Ana chegou aqui no portão toda descabelada, perguntando se tinha alguma farofa para comer, eu disse: “Ana, só sobrou um pedaço de frango e um pouco de arroz com brócolis.” “Ai, menino, qualquer dia desses vou sair de sua casa voando com penas verde.” “Oxente, pede comida e ainda vem com desaforo!” “Tiaguete, abra logo esse portão pelo amor de Deus! Já basta passar duas horas dentro do Integra 1386, depois de ficar o dia inteiro na fila da Caixa Econômica da Graça pra pegar a primeira parcela do auxílio emergencial.” “Que bom que conseguiu, Calô! Agora, vai pagar o que me deve.” “Olhe, nem comece que não tô boa.” “O que foi, criatura?” “Veja se sou errada: tô bem garotinha, sentada na paz de Jeová no ônibus, quando encosta um senhor do meu lado e começa a falar: ‘Ah, agora todo mundo quer o auxílio emergencial, nunca trabalhou e vão tudo pra frente da Caixa. Hoje, fui pegar meu FGTS e tive que enfrentar uma fila enorme por causa desse povo.’ “Qual foi mesmo desse homem, Ana?” “Eu tinha sentado naquele banco próximo do cobrador. Você sabe que sempre sento ali, né?” “Sim. Você sempre senta ali quando o cobrador é bonitinho pra ficar de frete seco.” “Eu já tava estressada porque passei o dia inteiro tomando sol, sem comer nada e aí vem esse homem pra ficar me dando sotaque.” “Como você sabe que era pra você?” “Ele me viu conferindo o comprovante da Caixa Tem... aquele re-cal-ca-do!” “Hum...”

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Linha 1386 · Barra/Jardim Esperança-Nova Brasília “Eu olhei pro homem dos pés à cabeça. Revirei os olhos, respirei fundo que nem uma cobra caninana e joguei na cara dele: olhe, bonito, eu não te conheço, não sei o seu nome, não tenho o número do seu RG, do CPF, nem sei quantos anos o senhor tem, mas se tiver me dando indireta, acho melhor fechar a cara, me respeitar e procurar outra pessoa pra perturbar...” “Caloteira do céu!” “Ah, que nada... e disse mais: olhe, querido, você não sabe da minha vida, não sabe de quem sou filha, nem qual o meu orixá. Então, não mexa comigo que eu não ando só, como diz MB, a abelha rainha.” “E você escuta Bethânia?” “Por osmose... já que você me obriga!” “E o homem, Caloteira?” “O homem ficou azul, vermelho... todas as cores. Tentou disfarçar... o ônibus todo olhando. Claudiane, filha de Zé do Bujão, tava no fundo do buzu, ouvindo tudo, depois começou a gritar: ‘Arrasou, Anaaa!’ “Ele te disse alguma coisa? “E quem disse que deixei?” “Não?” “Não! Levantei a cabeça, cravei meu olhar nele, e completei: olhe, tô há dois meses sem sair pra passar minha rifa no bairro. Tenho três filhos, dois poodles, meu marido foi embora, me deixou sozinha... e o senhor, boazudo, vem pra cá me dizer o que não sabe. Seja sensível, nem precisa ser demais, mas seja... porque o senhor, bonito, não tem ideia do que eu tô sofrendo.” “Ana, você mentiu! Nem passarinho você tem.” “Nesse momento, ficou um climão... todo mundo do buzu olhando, quase me levantei pra passar o chapéu porque ninguém do 1386 esperava aquele show às cinco e meia da tarde no meio da cidade, cheia de buzina e vendedor de água e de pendrive. Ah, Tiaguete, e não venha com essa de falar a verdade. Eu tinha que colocar aquele homem escroto no lugar dele. “E aí...” “Aí, que ele foi passando pro fundo do ônibus, sem graça, sem graça... e eu bem bonita, conferindo meu nome, o saldo do auxílio e bem menininha anotando o número do novinho que trabalha na Caixa auxiliando os clientes.”

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“Eu sabia que em algum momento iria aparecer um contatinho nessa história.” “Você não sabe é de nada... Eu quero saber é do que te pedi!” “O frango com arroz e brócolis?” “E o que me trouxe aqui além da fome de comer?” “Vá esquentar. É só ligar o fogão!” “Ah, esqueci de falar... menino, não paguei o transporte, nem da ida, nem da volta. Disse que tava sem dinheiro por causa da pandemia e que precisava da ajuda pra ir buscar o auxílio, isso era verdade. Na volta, inventei que não tinha recebido.” “Mas você anunciou pro buzu inteiro que tinha recebido o auxílio.” “Tiaguete, não queria te contar, mas antes disso já tinha rolado um clima com o cobrador. Então, não fui cobrada, nem chamada de caloteira. Satisfeito?” “Mas você é caloteira!” “Ó, vou pegar meu frango e esse negócio verde... só espero não sair voando como uma galinha”. “E me pagar os abadás de 2017, viu, querida?!” “Esse dinheiro já tem rumo certo. Olhe, se cuide, se afaste das pessoas, use máscara e passe álcool gel nas mãos.” “E você passe álcool na consciência!” “Beijo, Tiaguete, já fui!”

TIAGO CORREIA

@tipoeta

[Salvador, Bahia] é poeta, doutorando e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura [UFBA], graduado em Letras Vernáculas [UFBA].

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Álvaro, Shirley e Aristides, Lázaro e o Coletivo Cutucar, Marcelo e Amanda têm muito mais em comum do que registrar o que acontece nas ruas. Cada um, à sua maneira, circula por onde é possível, guiados talvez pelo inexplicável impulso de percorrer as esquinas em busca daquela imagem que salve o dia ou algum personagem de vida misteriosa que habita a via pública, a realização íntima que se alcança ao flagrar um gesto irrepetível. Ainda que ninguém dê a mínima importância para o que realizam [e como é grandioso o que fazem!] continuam com sua lida, perdem a noite maquinando como se reinventar, como depurar o próprio estilo, mapeando zonas de desconforto onde pretendem fotografar um dia.

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Fotografia

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ÁLVARO VILLELA @alvarovillela.fotografo

Premiado fotógrafo publicitário e de rua, é autor de dois livros e já realizou exposições em Salvador, Rio de Janeiro e Pinacoteca de São Paulo, além de trabalhos em galerias dos Estados Unidos e Alemanha. Tem obras no acervo da Fundação Joaquim Nabuco (Museu do Homem do Nordeste) e no Memorial Pierre Verger da Fotografia Baiana.

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AMANDA OLIVEIRA @amandatropicana Fotojornalista premiada, já participou de diversas exposições internacionais, como The Fifth Annual Exposure Photography Award, no Museu do Louvre, Olhares Afro Contemporâneos, em São Paulo, e Ibeji Eró, em Salvador. Possui obras permanentes no Memorial Pierre Verger da Fotografia Baiana.

SERIE: SENTINELA

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ARISTIDES ALVES @aristidesalvesphoto Nascido em Belo Horizonte, reside em Salvador desde 1972. Foi um dos fundadores da ASA, primeira agência baiana de fotografia e foi correspondente da agência paulista de fotojornalismo F4. Tem diversos livros publicados, dedicados à investigação da paisagem humana e natural do Brasil.

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SAINDO DO BECO DO ALVES EM DIREÇÃO A PRAÇA DO CUTUCAR 96

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COLETIVO CUTUCAR @coletivocutucar Criado em 2012, é formado por jovens do Subúrbio Ferroviário de Salvador: Camila Souza, Lenon Reis, Maiara Cerqueira, Railane Vasconcelos e Vaguiner Braz. Além do registro cotidiano de onde vivem, eles desenvolvem ações educativas na região.

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COLETIVO CUTUCAR CAMILA SOUZA

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COLETIVO CUTUCAR LENON REIS

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COLETIVO CUTUCAR MAIARA CERQUEIRA

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COLETIVO CUTUCAR RAIANE VASCONCELOS

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COLETIVO CUTUCAR VAGUINER BRAZ

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Ilê, 1993

LÁZARO ROBERTO @lazaroroberto.fotografo 112

Fotógrafo e arte-educador, atua desde 1970 e se tornou conhecido como Lente negra. É um dos fundadores do Zumvi Arquivo Fotográfico, uma associação de fotógrafos que reúne precioso acervo sobre a memória da cultura e do movimento negro na Bahia.

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LÁZARO ROBERTO São Joaquim, 2018 114

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Timbalada, Lavagem do Bonfim, 1991

Yemanjá, 1998

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Timbalada, Lavagem do Bonfim, 1991

LÁZARO ROBERTO

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Cachoeira, 1994

LÁZARO ROBERTO

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LÁZARO ROBERTO Gandhy, 1993 120

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MARCELO REIS @rmarceloreis

SERIE: ANIMA

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Fotógrafo, jornalista e fundador do Instituto Casa da Photographia, atua diretamente na área como professor, produtor cultural e diretor do A Gosto da Fotografia. É coordenador do projeto Câmera Lata, além de ser curador de diversas exposições e encontros fotográficos em Salvador.

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SHIRLEY STOLZE @stolzeshirley Fotojornalista e andarilha urbana, vem de uma linhagem que teve sua escola nos jornais e nos laboratórios, em que a cobertura diária sempre acontecia muito rapidamente. Nas suas andanças, ela capta com olhar atento detalhes do nosso dia a dia, principalmente a nossa relação íntima com o litoral de Salvador.

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GUIA DE SAUDADES E BOLINHOS DE ESTUDANTE NO PELÔ

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Menino nascido e criado até os dezesseis anos na Península de Itapagipe (Alagados, Jardim Cruzeiro, Uruguai e Roma), eu, em dia de subir a Ladeira da Montanha ou o Elevador Lacerda para compras com minha mãe na Cidade Alta, tinha sempre expectativas de um passeio de grandes novidades. Nessa época, final dos anos 1970 e quase toda a década seguinte, as lojas da Avenida Sete de Setembro e da Rua Chile eram ainda uma referência de comércio de rua popular e chique, embora já com sinais de pouca atração em relação aos shoppings, principalmente o primeiro e maior da cidade, o Iguatemi. O diferencial era que neles dificilmente se encontrariam personagens erráticos ou exóticos como a Mulher de Roxo com sua cara de “meter medo em criança” na entrada da Casa Sloper, ou ainda o Guarda Pelé com sua performance gestual neobarroca organizando o trânsito no cruzamento das ruas Carlos Gomes e do Cabeça ou na Praça Castro Alves. Andávamos do Campo Grande até a Praça Municipal quando mainha saía da Boca do Cofre, como era chamado o setor de pagamentos do Governo do Estado no Corredor da Vitória, com seu salário em dinheiro vivo de auxiliar de enfermagem. Garantia de no final do mês ganhar brinquedos, doces, roupas e sapatos da Mesbla, Lobrás... Filho único, os mimos eram só para mim. As aventuras pelo Centro não se resumiam a esse circuito de compras. Minha mãe nunca me levou para além dos limites da Prefeitura. Praça da Sé, Terreiro de Jesus, Largo do Pelourinho, Santo Antônio Além do Carmo eram inacessíveis. Espaços vistos com preconceito, onde diziam só ter “zona de meretrício”, “bodega de cachaceiros”, “baticum de pretos”, um “bocado de mendigos” e “desordeiros da capoeira”. Um mundo pelo qual criança não andava, mesmo que sua origem não fosse muito diferente da população pobre e negra que morava ou transitava por ali.

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Certa vez, eu a assustei com um pedido quando saímos da loja Duas Américas, seguindo em direção ao Elevador para descer e pegar o ônibus da empresa Sul América de volta para casa. Eu tinha acabado de ganhar um jogo de bingo e dama da marca Estrela pelo bom desempenho nas provas escolares. Estava com fome e queria comer um bolinho de estudante de uma baiana no Pelourinho. “Como você sabe?”. Eita, me arrependi de falar. “Hein, menino?” Continuei calado. Já estávamos passando pelo Palácio Rio Branco, virando a esquina para a Praça Municipal, quando olhei para a Rua da Misericórdia. Tio Mirinho, ou Mestre Coringa, capoeirista conhecido nas rodas do Mercado Modelo, me levava com ele para o Pelourinho. Aquela rua era um portal para outras experiências soteropolitanas. “Seu tio Mirinho, né? E sua avó deixou você sair com ele?” Como ele morava com minha avó Tarcila em Pirajá, os netos que passavam férias e feriadões na casa dela corriam sério e divertido risco de serem levados para as “capoeiras” de Mirinho. Um sarará de mais ou menos 1,70m, de cabelo encaracolado baixo, parrudo e xingador, para desespero de sua mãe que era evangélica. “Jeová Deus te repreenda”, dizia ela quando meu tio, na brincadeira, perguntava se Jeová era homem ou mulher. Ríamos baixinho dessa heresia, senão era surra na certa. E aguardávamos minha avó sair para a reunião no Salão do Reino ou pregar de casa em casa para fugirmos com Mirinho. Nessa de passar temporadas lá, os sobrinhos tinham permissão de entrar no quarto dos tios. Escurinho era o outro, mas esse gostava de Michael Jackson e tinha black power, o ouriçador no bolso de trás da calça. Entre revistas pornográficas, fitas cassetes de soul music e apostilas de cursos por correspondência, um livro apareceu para mim dentro de uma caixa de papelão. Volumoso e colorido na capa: Bahia de Todos-os-Santos: guia de ruas e mistérios, de Jorge Amado, de 1977. Tio Mirinho havia comprado para fazer bonito quando conhecesse alguma gringa e a levasse para um tour. O texto falava de uma cidade

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que eu não conhecia e as ilustrações de Carlos Bastos davam todo o atrativo para um garoto apaixonado por leitura. Mainha já permitia que eu lesse aos dez, doze anos, John Steinbeck, Irving Wallace, Agatha Christie e Bukowski pelo saudoso Círculo do Livro e outras edições dos anos 1980. Mas Jorge Amado era inédito. O “guia” tornava-se vivo quando Tio Mirinho me levava para um terreiro de candomblé no Lobato, para um sambão na Festa da Ribeira, para uma feijoada na Feira de São Joaquim... Mas seu roteiro principal ficava além da Praça Municipal, fosse na casa de uma namorada na Cruz do Pascoal, num ensaio do Gandhi, no Terreiro de Jesus para uma talagada na Cantina da Lua, fosse um bate-papo com seus amigos de capoeira em Mestre Bimba, uma passagem pela missa da Terça da Bênção na Rosário dos Pretos... Anos depois, quando já pesquisava a obra de Caymmi, ecoava em meus ouvidos a sua mú-sica 365 igrejas ao caminhar pelo Pelourinho. No documentário Um certo Dorival Caymmi (2000), de Aluísio Didier, o cantor e compositor falou sobre suas memórias do Centro, onde nasceu e morou até os 23 anos, quando se mudou para o Rio de Janeiro. Ele destaca a “visão bonita pra cima”, se referindo às torres das igrejas como os pontos mais altos da cidade. Jorge em seu livro dedica um capítulo especial para o compadre e parceiro Caymmi, a quem chama de “o cantor das graças da Bahia”. Ambos só se conheceram na Capital Federal em 1939, mas é bem provável que tenham se cruzado nos anos 1920 pelas ruas do Centro. A diferença de idade era de dois anos. Jorge Amado é de 1912; Dorival, de 1914. O escritor tinha dezesseis anos quando morou por uns dois anos num sobrado na Ladeira do Pelourinho. E o compositor

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na Ladeira do Carmo dos onze aos dezessete anos. Entre 1928 e 1930, os dois futuros Obás de Xangô do Ilê Axé Opô Afonjá vivenciaram no mesmo período a “universidade vasta e vária” do Pelourinho. O resultado desse aprendizado está em seus romances e canções. Exu abriu bem os caminhos. Hoje, morador do Centro Histórico, vejo de minha janela as torres da maioria das igrejas do Pelourinho e ouço seus sinos seculares. Em dia de ensaio do Olodum ou Cortejo Afro, ouço também os tambores reverberando sua ancestralidade. Quando decidi morar perto “da velha São Salvador” cantada por Caymmi, eu tinha outros motivos. Mas com o tempo fui vendo que me reintegrava levemente a esse território que meu tio me mostrou. Quando saio com minha máquina fotográfica para registrar essas ruas e mistérios da Cidade da Bahia, sempre vejo passar por mim um menino magro, negro, cabelo crespo dividido de lado, bermuda jeans folgada, camisa de botão e tênis Conga. Ele acompanha seu tio capoeirista. Param mais adiante num tabuleiro no Terreiro de Jesus. O menino pede bolinho de estudante. A baiana acabara de fritar alguns. Ao polvilhar com açúcar e canela, o cheiro me desconcerta de saudade. Tento flagrar a primeira mordida do garoto no quitute, mas o cartão de memória só anda cheio. Enquanto eu libero espaço, deletando fotos repetidas, eles somem efêmeros... A minha esperança é de que ele apareça com sua mãe na esquina do Palácio Rio Branco no próximo mês e a convença depois de uma manhã de compras na Avenida Sete e Rua Chile comer um bolinho no Pelô.

MARIELSON CARVALHO

é escritor, fotógrafo e professor de Literatura da Universidade Estadual da Bahia. Autor de Caymmianos – Personagens das canções de Dorival Caymmi.

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EXÚ* *Não é Diabo

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