As filhinhas do papai tasmina perry

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Agradecimentos Agradeço à minha mãe, ao meu pai, a Farrah, Digs e Dan por me aguentarem 18 meses falando do livro e, ainda assim, conseguirem demonstrar entusiasmo e apoio incansável, mesmo quando provavelmente já estavam entediados com o assunto. A Belinda Jones e Marie O'Riordan por darem chance a uma novata completa no jornalismo. Um enorme obrigada também a Louise Chunn, Polly Williams, Johnny Aldred, PB, Dog, Will Storr, Adrian Broadway, ao águia do direito John Kelly e Steven Wright pelos procedimentos policiais – qualquer erro cometido é meu. Matthew Williamson pelo endereço de Venetia, Katerine em Megeve, Deborah Joseph pela casa e pelas aventuras durante o Festival de Cinema de Cannes e a Basil Charles em Mustique, que sabia tudo que se pode saber sobre a ilha. Ao Hospital St. Thomas e à minha adorável equipe de parto, que cuidou de mim depois da minha gravidez complicada acompanhada de um livro para escrever. À equipe fantástica da HarperCollins por ter acreditado em As filhinhas do papai e por trabalhar com tanto afinco no livro, principalmente Wayne Brookes, editor extraordinário, por suas opiniões impecáveis, seu apoio e por tornar esta experiência toda algo muito divertido. E, é claro, à minha agente Sheila Crowley, a Naomi Leon, Linda Shaughnessy e Teresa Nicholls da AP Watt. Muito amor para o meu filho, Finlay, o despertador mais fofo do mundo, e, finalmente, ao meu marido e herói, John, escritor muito melhor do que eu, que estacionou seus próprios sonhos de escrever um romance para que eu pudesse concretizar o meu. Ele leu e ditou o manuscrito inteiro e fez inúmeras sugestões para que ficasse muito melhor. Obrigada por tudo - este é para você, querido.


Para John


Prólogo Dia de Natal - presente Ele estava atrasado. O tique-taque do relógio de pêndulo rebuscado as lembrava e como já tinha passado da hora. As irmãs Balcon nunca ficavam esperando por nada. Cada uma delas consultou seu relógio de pulso - Cartier, Rolex, Patek Phillipe -, imaginando se o visitante chegaria mesmo. Todas as quatro tinham mais o que fazer. O pai estava morto, precisavam organizar o enterro e tinham vidas cheias de agitação e glamour para seguir. Cate Balcon olhou através das portas envidraçadas do castelo de Huntsford, observando enquanto as sombras enchiam o aposento escuro, com a neve se assentando nos peitoris. Lá fora, enxergou dois globos de luz se movimentando pela longa entrada de cascalho. - Acho que ele chegou. Alguns instantes depois, a pesada porta de carvalho que dava acesso à sala de visitas se abriu com um rangido, e David Loftus, um homem esbelto e forte, com olhos levemente juntos demais, entrou. - Sr. Loftus - disse Cate, levantando-se para cumprimentá-lo com um aperto de mão. A mão dele era fria e ressecada, com as pontas dos dedos amareladas dos fumantes. - Este aqui é David Loftus, amigo de papai - disse ela para as outras mulheres. - O Sr. Loftus é escritor. Acabou de se mudar para cá, creio. Por favor, David, sente-se. Ignorando-a, Loftus foi até a enorme lareira acesa, esfregando as mãos. - Que tempo horroroso faz lá fora - disse, com a cabeça apontando para a janela. - O carro mal conseguiu passar pela entrada. Sabiam que tem uma dúzia de fotógrafos lá no portão? Venetia Balcon assentiu. - Por alguma razão, parece que a imprensa considera a morte de nosso pai uma notícia. - E você se surpreende com isso? - disse Loftus com um olhar irônico. - Vocês são celebridades. Todos os sanguessugas deste país querem estar nesta sala hoje. Deu um sorriso torto enquanto absorvia a grandiosidade do local. A antiga lareira galesa de ardósia, as paredes forradas de livros encadernados em couro. Seus olhos se deslocaram para o teto, todo raiado, como queijo envelhecido, por baixo da pintura. Rachado por baixo da superfície magnífica. Deu um sorriso amargo: igualzinho à família Balcon. - Bom, agora que está aqui, o que deseja? - disparou Serena Balcon, que estava especialmente impaciente. Mesmo para uma atriz, já tinha vivido drama demais naquele Natal. Fora ela que encontrara o corpo do pai no fosso do castelo na manhã seguinte à da festa da véspera de Natal, a boca aberta, com a pele congelada e todo coberto de veias arroxeadas. Estremeceu com a lembrança, enquanto David Loftus a observava. Ela era tão linda pessoalmente quanto na tela, pensou ele. Aliás, as quatro filhas de lorde Oswald Balcon eram exatamente como ele havia imaginado. Loiras e lindas, parecia que o privilégio se apegava a elas como um aroma dispendioso. E a maneira altiva como se portavam: consideravam-se tão especiais... Mas agora era ele que tinha o trunfo na manga e ia saborear cada minuto da situação. Sem que ninguém lhe oferecesse, serviu-se de uísque de um decantador de vidro de Murano na mesa e fez o líquido rodopiar dentro do copo. Na posição de advogada, Camilla Balcon reconheceu a técnica dele. Já a havia usado no tribunal uma centena de vezes: faça com que o público espere. Deixe todo mundo nervoso. - Imagino que a polícia já tenha estado aqui, não? - perguntou Loftus, tomando um gole da bebida. - E por que isso é da sua conta? - perguntou Carnilla em um tom que destilava hostilidade. - Oswald era meu amigo - respondeu Loftus. O uísque brilhava em seu lábio superior.


- Oswald era nosso pai - contrapôs Camilla, com firmeza. Loftus caminhou até a janela; agora o terreno de Huntsford era só uma série de formas e sombras na escuridão. - Morte acidental? É o que estão dizendo? As moças se entreolharam, sem saber bem o quanto deveriam revelar a ele. - Exatamente - Cate terminou por dizer, olhando para o fogo. – Ele caiu da amurada. Estava assistindo aos fogos de artifício. - Caiu? - disse David, erguendo uma sobrancelha escura e encorpada em um arco acentuado. Camilla lançou-lhe um olhar enviesado. - O senhor está dando a entender que... Loftus interrompeu Camilla. - Vocês certamente sabem que muita gente queria ver o pai de vocês morto, não? - Ele podia ser um tanto difícil - respondeu Cate, ácida. - Mas isso não é a mesma coisa de alguém querer vê-lo morto. - Difícil? É assim que você o classifica? - perguntou ele, virando o resto do uísque. - Seu pai era desprezado pela metade das pessoas que o conheciam. Não, não acredito que seu pai caiu do telhado. Acredito que foi empurrado. Deliberadamente. - Fez uma pausa. - Acho que seu pai foi assassinado. O fogo na lareira ardia e crepitava ao fundo, enquanto as irmãs olhavam para ele sem ousar dizer nada. - E acho que uma das filhinhas do papai o matou.


Parte Um


1 Dez meses antes A honorável Serena Balcon, estirada no convés superior do veleiro egípcio La Mamounia, tirou seu shortinho cor-de-rosa da Dior com movimentos sinuosos e se autoparabenizou com um gole preguiçoso de Mojito. Que ótima decisão, pensou, presunçosa, erguendo os olhos para ver as velas brancas do barco desfraldadas ao vento como duas enormes asas de borboleta. Quando estava em casa, no bairro de Chelsea, em Londres, ela não tinha muita certeza se deveria aceitar o convite do estilista de moda Roman LeFey para fazer um cruzeiro de dois dias de Edfu a Luxor. Como recebia mais de cem convites sociais em uma semana normal, recusava tudo com muita educação, a não ser os convites mais públicos e mais exclusivos - além de um gesto beneficente aqui e outro ali. Mas esta viagem estava mesmo parecendo muito promissora. Apenas trinta dos amigos mais fabulosos de Roman tinham sido convidados para o passeio totalmente classe A e, além de ter sido convidada, Serena havia recebido a suíte Cleópatra do La Mamounia, uma cabine espaçosa e exótica na popa, onde era possível abrir a janela e deleitar-se com a vista que ia recuando de dentro de uma banheira com pezinhos. Examinou seu repertório em busca de uma expressão que descrevesse a grandiosidade refinada da cena. Sorriu. A expressão era apropriado. - Isto aqui não é maravilhoso? - disse Tom Archer, namorado de Serena, debruçando-se por cima da balaustrada do barco para obter uma visão de 360 graus. Ele era um dos atores mais bem-sucedidos da Grã-Bretanha, além de um dos mais lindos e fabulosos, e o cenário do Nilo combinava perfeitamente com ele. - É, você está super-Agatha Christie, querido - disse Serena, com uma pontinha de sarcasmo, espiando por baixo da aba larga de seu chapéu de sol. - Mas não se debruce tanto. Pode haver piranhas ou qualquer coisa do tipo nessa água imunda, e eu é que não vou pular aí dentro para salvar você. Tom havia se condicionado a não escutar as implicâncias de Serena. Em vez disso, continuou olhando para um búfalo que pastava na margem oposta, ao lado do qual uma velha lavava roupa na água cor de tabaco. - Olhe só para isto - disse ele, sorrindo. - Continua parecendo tão bíblico ... Fico achando que vamos ver Moisés sentado ali na margem. Serena ergueu os olhos, distraída. - Achei que ele já tinha morrido. - Quem? - Moisés. Tom revirou os olhos e Serena captou o gesto. - Eu vi o que você fez - disse ela, amarga. Ele se virou de frente para ela. - O quê? - Você revirou os olhos para mim, como se eu fosse burra. - Bom, você falou a maior burrice. É claro que Moisés já morreu. - Era piada - soltou ela, escondendo o rosto com um exemplar da Vogue italiana. - Mas, sim, você tem razão. Isto aqui é mesmo especial. Tom deu um sorriso torto para a namorada, prevendo a resposta para sua próxima pergunta. - Nesse caso, você me acompanha a Karnak depois do almoço? Parece que lá fica o maior agrupamento de templos do mundo. Roman perguntou quem estava a fim de ir. Mas duvido que muita gente neste grupo vá se interessar - disse ele, fazendo um gesto na direção do convés do mezanino, onde os demais convidados de Roman secavam o bar.


- Não seja tolo, querido. Para que você quer ir até lá? - perguntou Serena, largando a revista em cima dos joelhos bronzeados. - Vai estar cheio de poluição e turista. E, de todo modo soltou um suspiro dramático -, estou ocupada demais pensando onde vamos fazer a minha festa de aniversário. Quer dizer, não existe nenhum lugar em Londres que comporte mil pessoas. É totalmente ridículo. - Mil pessoas - disse Tom, as sobrancelhas arqueadas. - A gente tem tantos amigos assim? - Você não tem, não. Tom estalou a língua em sinal de desaprovação. - Mas você não tem tantos amigos assim, tem? - disse ela, lançando-lhe um olhar feroz. Além do mais, você não parece gostar muito de conhecer pessoas. Não pára de reclamar desde que chegou e não fez o menor esforço para conversar com ninguém, o que é a maior falta de educação, porque eu poderia ter convidado uma dúzia de amigos no seu lugar. - Talvez devesse ter convidado. - Bem, da próxima vez eu convido. - Pode convidar. Os dois ficaram se entreolhando. - Olhe, pare de reclamar e vá pegar outra bebida para mim com aquele carinha ali de turbante - disse Serena, para encerrar a questão. – Quero champanhe Cristal. Estou morta de sede. Tom foi até ela e arrancou-lhe a revista das mãos. Abaixou o rosto para que ela pudesse enxergá-lo por baixo da aba do chapéu. - Bom, ele está ali - disse ele num tom raivoso, apontando para um homem de pele morena que carregava uma bandeja de bebidas. - Saia de cima do seu traseiro e vá pedir você mesma. O relacionamento de Serena Balcon e Tom Archer estava no estágio que a maior parte dos terapeutas avalia como terminal. Unidos pelo hábito e pela conveniência, até mesmo a conversa mais inocente rapidamente se transformava em uma discussão hostil e cheia de irritação. Para Serena, a hostilidade era suscitada por decepção inflamada. Tom Archer no começo era um tipo de novidade; era fofo e descomplicado, o oposto completo da longa procissão de ex-namorados de Serena - ex-alunos do exclusivo colégio particular Eton, sujeitos que se pareciam com Hugh Grant, eram herdeiros de fortunas, usavam o cabelo desgrenhado e trabalhavam no mercado financeiro. No começo, o fato de Tom não ter pedigree não tinha importância: a mãe dele trabalhava em uma fábrica, o pai era jardineiro; não havia nenhum sinal de refinamento em toda a sua árvore genealógica. Mas ele era gostoso, o astro britânico mais sensual desde Jude Law, e tinha feito aumentar o valor de celebridade de Serena de modo incomensurável. Antes de ela o conhecer, no set de um filme britânico independente bem pequeno cinco anos antes, Serena não passava de uma loira aristocrata que se dedicava a posar de modelo e importar pashminas. Era famosa nas páginas de coluna social por ser uma das fabulosas garotas Balcon, mas quem ia querer ficar empacada nas páginas da revista Tatler para sempre? Ela queria um palco maior, e foi o que conseguiu ao lado de Tom. A mídia amava os dois: a combinação improvável, mas classuda, era potente e irresistível; Tom, o astro de cinema de origem britânica, e Serena, a filha sexy de um barão. A imprensa voltada para a moda também não deixou passar em branco sua noção impecável de estilo. Depois de poucas semanas da estréia dos dois como casal no circuito de festas, ela era a "Garota do Mês" da Vogue dos EUA e, em menos de um ano, Tom & Serena já tinha se transformado em uma marca que era como um passe VIP para o mundo da fama.


Cinco anos depois, isso já não bastava. Sim, a família dela era cheia de títulos, mas, para a tristeza de Serena, os Balcon não eram uma família inglesa grandiosa como os Marlborough, os Wellington ou os Balfour. Serena queria uma posição que se equiparasse à dos Blenheim, queria a pequenina coroa ducal impressa em seu papel de carta pessoal timbrado e um casamento de Estado com um anel de noivado nas cores da bandeira nacional, igualzinho ao que o príncipe Rainier tinha dado para Grace Kelly. E o fato de a desgraçada da sua irmã Venetia ter conseguido se casar com um membro da semi-realeza a atormentava ainda mais. Para colocar as coisas de maneira simples, Serena queria mais do que Tom podia lhe dar. Esticou suas longas pernas aristocráticas na espreguiçadeira e se virou para ver Tom, louco da vida, na outra ponta do convés. Deu um sorriso afetado. Até que não era assim tão mau. Não havia como negar que ele era lindo. Aquele maxilar quadrado; os olhos de um azulescuro da cor do cobaIto enquadrados por cílios pretos como breu; o cabelo escuro, curto e penteado com musse; e aquele corpo incrível espreitando pela camisa branca aberta da Turnbail & Asser. A beleza de Tom era capaz de se integrar a qualquer situação social. Em um bar, ele exalava aquele ar comum de um sujeito que poderia ser o seu vizinho. Em um jantar na casa de campo com o pai dela, os belos traços ingleses de Tom assumiam um ar bastante nobre, ao estilo Memórias de Brideshead. E se posto em um cenário de filme de Hollywood, ele brilhava com aquele fator X indefinível que os agentes do mundo todo gostariam de representar. Talvez ele não fosse assim tão mau... - Desculpe por estar um pouco de mau humor - disse ela com suavidade, fazendo um biquinho com os lábios macios. - Venha aqui.. Apesar de tudo, Tom não conseguiu resistir à visão do corpo dela ali estirado, todo sugestivo, com aquele biquíni de lacinho da Missoni. Dirigiu-se cabisbaixo até a espreguiçadeira. Ela deu um agarrão nele, tirou a parte de cima do biquíni e apertou os seios nus contra o peito dele. Tom gemeu quando ela apertou suas coxas entre as dele. - Que tal a gente voltar para a cabine e fazer as pazes do jeito certo...? - ronronou ela no ouvido dele. - Ah, Serena - disse ele, debatendo-se entre duas emoções: tesão e raiva. - Serena, Tom. Aqui está o casalzinho apaixonado! - a voz cantarolada de Roman LeFey perfurou o silêncio. O maior estilista francês desde Yves Saint Laurent, ele era um negro alto com a pele cor de cacau, a barriga protuberante escondida sob uma túnica verde-escura. - O que estão fazendo no convés superior em pleno sol do meio-dia? Só mesmo os loucos e os ingleses, hein? - Loucos, exatamente, Roman - respondeu Tom, levemente acanhado, enquanto Serena colocava os pés bronzeados no chão, em busca de seu chinelo de dedo Manolo Blahnik, amarrando a parte de cima do biquíni sem demonstrar o menor sinal de constrangimento. - Roman, querido - ronronou ela, dando beijos nas bochechas dele. - Só estava tentando convencer Tom a ser um pouco mais sociável. - Parece que sim - Roman sorriu com ar de piada. - Bem, o almoço já vai ser servido, então parem de se esconder e desçam - disse ele, direcionando os dois a uma escada em caracol que serpenteava até o mezanino do barco. - Ah, não posso ir com esta coisinha minúscula - reclamou Serena. - Preciso me trocar. Cruzou o convés superior na ponta dos pés e deslizou para dentro da cabine, onde sentiu o efeito refrescante do ventilador de teto sobre a pele e o humor. Abriu as portas de madeira do guarda-roupa e começou a examinar a fileira de roupas de chiffon, linho e seda,


pensando como era exaustivo ser conhecida por seu bom gosto. Se escolhesse maio modelo para o mais casual dos eventos... ela estremecia só de pensar. Escolheu um vestidinho curto branco da Marni, tirou toda a roupa e cobriu o corpo comprido, esbelto e bronzeado com o tecido fininho, completando o visual com um enorme anel de quartzo e uma pulseira grossa de cobre ajeitada bem no alto do braço bronzeado. Prendeu o cabelo cor de mel comprido e cortado em camadas para cima, secou o rosto com uma toalha com gestos delicados e salpicou um blush levinho, cor-de-rosa, nas bochechas, para acentuar seus grandes olhos cor de água-marinha. Aos 26 anos, sabia que estava no auge da beleza física: despretensiosa, cheia de estilo, estonteante. Bem do tipo Julie Christie de férias, pensou, admirando seu reflexo no espelho. Ajeitou um par de óculos Ray-Ban modelo aviador em cima do nariz e dirigiu-se para o convés do mezanino com passos lentos e deliberados, de modo que sua chegada fosse absolutamente notada. Fez uma pausa por um momento, para absorver a cena. Um aglomerado de pessoas bebia champanhe e mordiscava cana pés. O ar cheirava a cominho; uma pequena banda usando chapeuzinhos do tipo fez tocava música egípcia tradicional ao lado do bar. Ela atravessou a multidão, para longe do lugar onde Tom conversava com um monte de gente que ria, e pegou um martíni. - O que achou do dahabeah? - perguntou Roman, que aparecera ao seu lado e tomara sua mão. - Do quê? - Do meu bebê! - Ele deu risada. - Um dahabeah é um veleiro egípcio. - É fantástico - respondeu ela, dando-lhe um beijo brincalhão na bochecha e deixando um anel de gloss rosa-claro em sua pele. - E adorei nossa suíte. - Achei que ia gostar da suíte Cleópatra. - Ele sorriu como quem sabe o que está dizendo e pegou um figo de uma bandeja abarrotada. - Eu deveria estar no ateliê terminando a coleção para o desfile de Milão - completou -, mas não consigo deixar de ser um menino mau. - Você é tão decadente, querido. É por isso que eu adoro você. – Serena soltou um suspiro generoso, mas logo assumiu ar profissional. - Então, conte para mim quem está aqui - disse, esticando o pescoço comprido para examinar seu entorno. - Na verdade, ainda não fui apresentada a ninguém. - Bem, vamos cuidar disto agora - sussurrou ele, em tom conspiratório. - Para quem quer ser apresentada? Ela examinou o convés, procurando rostos conhecidos ou pessoas interessantes de se conhecer. Alguém havia lhe dito que Leo DiCaprio estaria ali, mas ela não o via em lugar nenhum. Roman às vezes era tão aleatório em seus convites, pensou. Avistou um fotógrafo da Vogue EUA, a filha de um magnata da mídia, uma modelo da Victoria's Secret. Talvez a lista não fosse assim tão exclusivíssima como tinha sido levada a acreditar. - Na verdade, não reconheço ninguém - disse ela, depois sorriu, tentando esconder a decepção. Roman subiu em uma pequena plataforma e examinou todo o convés, erguendo um dedinho coberto de pintas para identificar seus convidados. - Para esta viagem, quis convidar amigos que apreciariam o Egito – disse Roman, muito sério. Serena sorriu, tentando parecer agradecida. Roman repassou os convidados um por um, dando informações superficiais sobre cada um deles. A princesa russa, o decorador gay, o melhor cabeleireiro de produção de Nova York,


uma florista da sociedade e um chef de Barcelona que recebera três estrelas do guia Michelin. No centro estava Michael Sarkis, o hoteleiro bilionário. - Veio com a namorada - cochichou Roman. O interesse dela estava se esvaindo. - Ah, ali está Rachel Barnaby - disse Roman, batendo palmas e apontando para uma moça voluptuosa ao lado do bar. - Ela vai ser famosíssima. Você leu a reportagem de capa da Vogue deste mês? Serena sorriu. Claro que tinha lido. A galesa estonteante com seu cabelo de corvo reluzente, sua pele de alabastro e seus lábios acolchoados tinha sido apontada como a próxima grande estrela. Talento enorme. Muito mais do que glamourosa. Os dentes dela rangiam só de pensar no assunto. - Bom, todo mundo é a próxima grande estrela da Vogue, não é? - comentou, cheia de maldade. - Mas muita gente nunca chega lá, não é mesmo? Roman deu um tapinha no bumbum dela. - Não seja indelicada - sorriu. - Você não tem nada a temer. Ela ainda nem tem um relações-públicas adequado... tive que ligar para a mãe dela para convidá-la para o cruzeiro. Serena deu um sorriso amplo. Claro que ela não tinha que se preocupar com uma adolescente bonitinha e sem sal. Certo, Rachel Barnaby tinha conseguido uma capa da Vogue. Alguém devia ter desistido no último momento. Serena, por outro lado, tinha seu lugar na primeira fila dos desfiles e seu contrato de dois milhões de libras com uma empresa de cosméticos. E, tudo bem, era verdade que por enquanto ela não tinha conseguido exatamente um papel de destaque em Hollywood, mas aqueles produtores pervertidos e acima do peso dos Estados Unidos preferiam a ralé mais maleável a uma pessoa com verdadeira classe e boa educação. E, de todo modo, ela era Serena Balcon. Cada movimento que ela e Tom faziam - brincadeiras nas férias, jantar no Ivy, uma passada de última hora na Harrods para comprar presentes de Natal – virava manchete de jornal. Quero ver você superar isso, sua ralé galesa, pensou cheia de presunção. Recobrando a postura, Serena resolveu que Michael Sarkis era o melhorzinho entre os numerosos males do La Mamounia. Não sabia muito a respeito dele, a não ser que tinha nascido em Beirute - de mãe americana e pai libanês, como lera certa vez - e fora criado no Bronx. Um dos hoteleiros mais bem-sucedidos do mundo, Michael era um verdadeiro empreendedor, que saíra do nada e ganhara muito dinheiro vendendo férias extravagantes para árabes super-ricos. A marca registrada de seus hotéis eram cassinos no lobby, aquários de tubarões nos pátios e folheados a ouro por todos os lados; lugarzinhos vulgares a que Serena não iria nem morta. Ainda assim... ele era podre de rico e estava conversando com Rachel Barnaby. Caminhou até onde Michael estava, ao lado de uma mesa comprida abarrotada de especialidades egípcias. Havia minúsculas baklavas glaceadas com mel, docinhos de pistache, pilhas de pêssegos brancos e tigelas com pão achatado partido em pedaços. Parecia a Última Ceia. - Espero que esteja com fome - disse Serena, colocando uma azeitona verde-escura carnuda na boca e lançando seu sorriso mais estonteante para Michael. - Espero que esteja com sede - respondeu ele, pegando uma garrafa de vinho e servindo uma taça para Serena. - Meu nome é Michael. - Serena. Prazer em conhecê-lo.


Michael estendeu a mão bronzeada para cumprimentá-la. Quando ele pegou seus dedos, Serena reparou como as mãos dele eram extraordinariamente sensuais. Grandes, com uma cor bonita e um formato quadrado que parecia ter sido esculpido, os dedos eram macios e as unhas estavam bem cuidadas... o vistoso relógio de ouro no pulso também não atrapalhava nada. Michael pareceu notar o interesse dela e permitiu-se um sorriso. - Gostou do vinho? - perguntou. - Do vinho? - repetiu Serena. - Maravilhoso. Pétrus, de 1947, creio? Michael virou a garrafa para ler o rótulo. - Você conhece as coisas boas. - Bom, a safra de 1947 foi uma das melhores do século para a vinícola. É ainda melhor do que a de 1970, imagino. Realmente, é maravilhosa. - Ela se virou de frente para Rachel Barnaby. - O que você acha? Quarenta e sete ou setenta? - perguntou. Rachel corou. - Eu mal sei a diferença entre tinto e branco; outras coisas, nem pensar - respondeu RacheI e deu urna risadinha educada. - Que amor! - Serena sorriu, lançando-lhe um olhar condescendente. - Bom, você é atriz, não sommelier. De repente, Rachel Barnaby precisou ir ao toalete e Serena a observou enquanto se afastava. - Uma menina legal - disse Michael. - Muito doce e simples - disse Serena, sorrindo. Michael examinou-a de alto a baixo com um olhar profundamente penetrante que a irritou. Passando o dedo lentamente para cima e para baixo na haste da taça, ele lhe lançou um sorriso lento e sedutor. - Então, como é que você sabe tanto sobre vinho? - perguntou ele, tomando um golinho da bebida. - O meu pai é aficionado por vinho - disse Serena, fazendo o contorno dos lábios com o dedo sem se dar conta. - Lorde Balcon? - perguntou Michael, erguendo uma sobrancelha basta, que formava um arco descabelado. - Ele mesmo. Você o conhece? - Não exatamente - respondeu Michael com a testa franzida. - Ele faz parte do comitê de um clube de Londres que acabou de me dispensar. Serena viu uma nuvem negra tomar conta do rosto dele e percebeu que Michael Sarkis era um homem que não estava acostumado a ser dispensado de nada. - Qual clube? O White's? O Annabel's? - O Hamilton's, na verdade. Ela pegou um canapé e soltou uma risada ruidosa. - O que você quer fazer lá? Só tem uns sujeitos empertigados que o meu pai conheceu na escola. Eu achei que você tinha mais cara de Bungalow 8 ou de Billionaire. - Também tenho meus próprios clubes - ele sorriu -, mas às vezes a gente tem vontade de experimentar alguma coisa nova. Ele chegou mais perto dela e pousou a mão em sua cintura. Foi um gesto repentino e íntimo que fez uma onda de prazer percorrer o corpo dela. Desconcertada, esforçou-se para racionalizar a situação. Ele não era velho demais? Era difícil determinar a idade daquele homem de cabelo escuro. Podia ter 40 anos, talvez até 50. Ela não diria exatamente que era


bonito: o nariz adunco era comprido demais, os olhos escuros eram estreitos e a cabeça era pequena demais para o corpo; mas assim como muitos homens mais velhos e mais poderosos que ela conhecera por intermédio do pai, ele exalava um ar arrogante, quase perigoso, que era definitivamente sensual. - Para onde você vai depois do cruzeiro? - perguntou ele em um tom que sugeria uma oferta iminente. - As coisas não estão assim tão caóticas como de hábito - respondeu ela com um sorriso recatado. - Tenho de fazer um pouco de promoção para Ladrão de casaca, mas, fora isso, o mundo é a minha ostra. - Ah, ouvi mesmo dizer que você tinha feito este remake. - Deu um sorriso em sinal de apreciação. - No papel que foi de Grace Kelly, é claro. - Claro que sim - Serena sorriu, lisonjeada por ele estar a par de seu trabalho. - E David Clooney faz Roby, o ladrão de jóias bonitão. O elenco é ótimo. - Onde vão ser as pré-estréias? - Ah, é o maior tédio. Londres, Nova York, Los Angeles - respondeu ela, demonstrando uma falta de interesse adequada por ser levada em aviões particulares para diversas partes do mundo e ter a imprensa internacional ajoelhada a seus pés. - Quando estiver em Los Angeles, dê uma ligada para mim para a gente se encontrar. Onde você mora? Serena corou de leve e colocou uma mecha de cabelo solta atrás da orelha. - No momento, estou morando em Londres. Mas estou pensando em comprar mais umas casas para ficar dos dois lados do oceano. Por enquanto, estou hospedada no The Viceroy. Ela ergueu os olhos para olhar o rosto dele, cuja expressão se encontrava em algum ponto entre decepção e perplexidade. - Qual é o problema? Ele sorriu. - Não é nada. - Não, o que foi? - repetiu ela, quase com petulância. - Só estou aqui me perguntando por que você continua morando em Londres. - Qual é o problema? Eu moro pertinho de Cheyne Walk. A expressão dele se aproximava do aturdimento. - Achei que uma mulher como você teria idéias mais grandiosas. Ela franziu a testa em sulcos profundos. - Não estou entendendo muito bem. Michael fez uma pausa. A cabeça dele estava inclinada e ele sorria para si mesmo, como se estivesse contando uma piada em um diálogo mental. - Estive em um jantar em Los Angeles na semana passada. Meu amigo Lawrence é dono da Clerc, a joalheria. Você conhece? Ela assentiu. Tinham lhe emprestado um par de brincos de diamante em forma de gota para a cerimônia de entrega do Oscar do ano anterior. - Eles estão atrás de um "rosto", de uma porta-voz, chame como quiser. Estão falando nos nomes óbvios: Julia, Gwyneth, Catherine. Alguém mencionou o seu nome e, agora que a conheci, vejo que seria a escolha perfeita. - Afagou a bochecha dela de leve. - Você é incrivelmente linda. Serena desviou o olhar. - Mas o seu nome foi descartado porque você não tem... ah, coloquemos assim... apelo internacional.


A boca de Serena imediatamente se curvou em uma expressão magoada e ferida. - Para a sua informação, eu tenho muita visibilidade nos Estados Unidos - retrucou, aprumando a coluna. - A Vanity Fair está desesperada para fazer o meu perfil. Acho que isso não é exatamente tacanho. Michael abriu as mãos grandes em um gesto de trégua. - Engano meu. Achei que você gostaria de saber. - Bem, agradeço muito pela opinião - respondeu Serena em tom gélido. - Agora, acho que é melhor eu ir falar com Roman. Ela deu meia-volta, repentinamente consumida pela fúria por causa da obsessão irracional de Tom: continuar morando em Londres. E como é que ela pôde ser desprezada para uma importante campanha publicitária? Ela era uma estrela enorme. Ela tinha berço. E por acaso não eram os americanos que adoravam aquele papo de mulher de fino trato? Um tremor obscuro de insegurança explodiu em sua consciência. Serena atravessou a multidão com um ar decidido, já pensando nas reuniões com agentes, corretores de imóveis e assessores de imprensa. Sua ambição de conquistar Hollywood estava completamente atiçada mais uma vez.


2 A quase cinco mil quilômetros dali, um 747 pousava na pista do aeroporto de Heathrow balançando de um lado para o outro, cantando pneu e forçando os passageiros da classe executiva, entre eles a nervosa Cate Baleon, a esticar o braço e apertar a mão de seu agradecido vizinho. - Desculpe - disse ela e sorriu para o senhor de idade que usava um paletó de tweed da Harris, ciente de que aquele fora o primeiro contato que os dois haviam tido durante toda a viagem. O homem, que a reconhecera da coluna de Richard Kay no jornal Daily Mail assim que embarcara, respondeu com um pequeno apertão nos dedos dela. - É o vento - disse ele, sorrindo gentilmente. - Não tem nada com que se preocupar. Levemente acanhada, Cate estava em pé assim que as turbinas pararam de funcionar. Esta é a beleza da classe executiva, pensou ao calçar seus sapatos Jimmy Choo: sair rápido do avião. Pegou a mala de couro do compartimento de bagagem, deu uma olhada rápida no céu cinza e garoento de Londres através da janela e, com educação, abriu caminho até o começo da fila, olhando para o relógio com muita ansiedade. Ela detestava aqueles vôos noturnos de Nova York no meio da semana; faziam com que chegasse a Londres tarde demais para passar em casa e dar uma dormidinha, mas cedo demais para justificar uma falta ao trabalho. Ainda assim, pensou enquanto disparava na direção do saguão de chegada, se sua assistente tivesse contratado um carro para buscá-la e ele já tivesse chegado, ela talvez conseguisse chegar bem a tempo para a reunião de produção do meiodia. - Cate Balcon? - perguntou um motorista jovem e bronzeado quando Cate atravessou as portas automáticas pisando firme. - Sim. Vamos nos apressar - disse Cate em tom impertinente, entregando-lhe a mala com rodinhas e tentando prender o cabelo comprido e grosso com uma fivela de casco de tartaruga enquanto caminhava. - Vamos para as Revistas Alliance, bem na esquina de Aldwych. Quando Cate se acomodou no banco de couro do Mercedes preto, o cenário mudando de aeroporto para subúrbio e depois para cidade, tentou aproveitar o tempo. Os desfiles de Nova York tinham sido particularmente bons nesta estação, pensou, abrindo o bloquinho para examinar as anotações que fizera sentada na primeira fila. O pessoal da moda podia ficar babando em cima dos desfiles das coleções em Paris pela fantástica teatralidade da moda de Dior e McQueen, mas Cate adorava Nova York pela elegância, pelas roupas usáveis e pelas idéias que surgiam dali para a revista. Eles poderiam fazer uma reportagem alusiva a Edith Wharton derivada do tweed apresentado por Ralph Lauren, uma produção em estilo safári baseada no linho e no couro que vira na coleção de Michael Kors e um ensaio com jeito de Grande Gatsby com base nos vestidos em tons de pedras preciosas de Zac Posen. Pegou sua caneta Mont Blanc e começou a rabiscar mais idéias, completamente alheia ao fato de que seu lindo motorista ficava espiando pelo retrovisor aquela mulher fantástica de cabelo ruivo-dourado acomodada no banco traseiro. Cate estava obviamente imersa no trabalho, como sempre. Ela dizia a si mesma que se dedicava ao trabalho duas vezes mais do que qualquer pessoa porque todo mundo esperava que Cate Balcon, a "filha do barão", fosse duas vezes mais folgada. Apesar de ser verdade que as Revistas Alliance tinham a fama de escolher seus funcionários dentro de uma certa classe social - havia rumores de corredor sobre ser preciso ser aristocrático e bonito para se conseguir passar pelo departamento de recursos humanos


-, a indicação de Cate para ser editora da Class, a revista de moda e estilo de vida mais refinada da empresa, causara muitos cochichos no setor. Os fofoqueiros de plantão sentiram-se ultrajados. Claro, argumentavam, havia uma ou outra aristocrata em algum cargo menor na Alliance: a colunista social da Verve era condessa e havia uma filha de visconde no departamento de moda da Rive, mas ninguém realmente achava que algum dia elas chegariam a editoras. As engrenagens dos boatos começaram a girar insanamente. Como Cate se tomara editora na tenra idade de 31 anos? Com quem tinha ido para a cama? Que pauzinhos o pai dela tinha mexido? O mais insultante de tudo era que a fotogênica Cate Balcon ainda era famosa. Os editores britânicos não deviam se tornar celebridades: apenas Anna Wintour tinha direito a essa coroa. Cate Balcon simplesmente não merecia, diziam os fofoqueiros. Mas, bem, todo mundo que já tinha trabalhado com ela sabia que não era bem assim. - Bom dia, Sadie - cumprimentou Cate, sorrindo para a assistente de cabelo encaracolado que examinava um fichário bem grosso na frente da sala dela. Deu uma olhada geral na sala, observando as moças bonitas que falavam ao telefone, separavam araras cheias de roupas fabulosas ou digitavam até não poder mais no computador; todas indubitavelmente mais absortas no trabalho no momento em que Cate chegou. - Boa tarde, Cate! - Sadie sorriu, erguendo os olhos para o relógio. - Acho que Nicole tomou a liberdade de fazer a reunião do meio-dia no seu lugar. As duas mulheres trocaram uma revirada de olhos. - É a cara dela - disse Cate baixinho. - É melhor você me fazer um favor enorme e trazer uma xícara de café bem forte. - Cate, você voltou! - exclamou Lucy Cavendish da outra ponta da redação. Lucy era editora sênior de moda da Class e a coisa mais próxima de amiga que Cate tinha no trabalho. A negra de um metro e oitenta aproximouse vestindo uma minissaia justinha e curtíssima, com botas Versace acima do joelho; cada centímetro de seu corpo era igual aos das supermodelos que mandava fotografar. - Você nunca vai adivinhar - despejou Lucy, toda alegre. - François Nars deu sinal verde para a gente fazer um ensaio na casa dele em Bora-Bora. Se você disser que eu não posso ir, vou morrer. - Antes de organizarmos o enterro, vamos dar uma olhada no orçamento com Ciara e depois conversaremos melhor - respondeu Cate, sorrindo, enquanto entrava em sua sala. Lucy seguiu-a, para se atualizar sobre as fofocas da Semana de Moda. - Você foi à festa de Zac Posen? Foi uma pena eu ter perdido, mas precisei pegar o vôo de ontem. - Eu fui, e foi divertida mesmo - respondeu Cate, sorrindo com a lembrança. Lucy lançou um sorriso malicioso para Cate. - Estou sentindo cheiro de fofoca, chefe... Então, quem você conheceu? Como foi? Ela fez um sinal para que Lucy entrasse em sua sala, um espaço de canto no oitavo andar, alto o suficiente para que ela avistasse a roda-gigante London Eye e o rio. Lucy se sentou e Cate se jogou na cadeira cor de caramelo atrás de sua mesa, rapidamente começando a abrir a enorme pilha de correspondência que se acumulara durante sua ausência. Na verdade, ela ia jogando cada item na frente de Lucy, sem prestar muita atenção, enquanto conversavam. Acres de informativos de imprensa, convites de festa brancos e rígidos e pacotes de presentes de anunciantes e lojistas agradecidos: uma bolsa Jimmy Choo, um lenço branco de marca e um saco de papel pardo do tamanho de uma montanha, cheio de produtos de beleza, que Cate duvidava que sequer passasse pela porta do banheiro de sua casa


minúscula em Notting Hill, que fora adaptada de um antigo estábulo. Empurrou o saco na direção de Lucy. - Está precisando de alguma dessas coisas? - Não preciso de produto nenhum, quero saber das fofocas - disse Lucy. - Vamos, fale logo. Ciente de que não conseguiria desviar a atenção da amiga, Cate se rendeu com um Sorriso. - A festa foi ótima. Foi em um loft enorme e fantástico no Meatpacking District. E deram uma sacola de brinde incrível, você vai adorar. Um cheque-presente de cem dólares para comprar lingerie e um frasco de perfume. Está em algum lugar da minha mala, se você quiser. Lucy fez um gesto de dispensa com a mão na frente do rosto. - Bolsinhas de brinde, bolsinhas de porcaria! Catherine Balcon, você conheceu um cara, não conheceu? Pelo amor de Deus, conte logo se encontrou alguém, mesmo que ele more em Manhattan. Só Lucy podia ser assim tão direta e sacana com ela. Um amplo sorriso se espalhou pelo rosto de Cate, suas bochechas maduras pareciam duas maçãs redondinhas quando ela assumiu a derrota. Fazia tanto tempo que Cate não conhecia ninguém decente... Os amigos playboys e sempre bronzeados de Serena não despertavam nenhum interesse nela, ao passo que solteiros bacanas no circuito da imprensa londrina eram tão raros quanto dentes de galinha. Nos últimos dois anos, tinha transado com dois homens, e já fazia tempo demais que não tinha nenhum relacionamento propriamente dito. Não precisava de um psiquiatra para lhe dizer que tinha problemas de intimidade e, quanto mais o tempo passava, mais difíceis as coisas ficavam. Serena não cansava de dizer a Cate que ela se fazia tão acessível quanto o Fort Knox. Ela certamente tinha razão, mas em Nova York as coisas haviam sido um pouco mais produtivas. - Um fotógrafo chamado Tim. Ele é legal. Mas não vai ligar. – Cate sacudiu a cabeça. Satisfeita? - Não. Não estou satisfeita. Arrancar algum detalhe pessoal de você é como perfurar um poço de petróleo no fundo do mar. Ah, se eu tivesse arrumado um nova-iorquino gostosão, eu... As fantasias de Lucy foram interrompidas quando uma loira macérrima e flexível com um terninho cor de creme Chloé entrou na sala, sentou-se cheia de atitude no braço do sofá, cruzou as pernas e deixou um Manolo pendurado na ponta do pé. - Então, como foi em Nova York? - perguntou Nicole Valentine com sua voz dura e anasalada. Cate ergueu os olhos para sua subeditora, aborrecida por ela ter interrompido um raro momento de confissão. - Oi, Nicole, foi ótimo - respondeu. - Olhe, Nicole, estamos conversando... Nicole ignorou Cate e voltou a atenção para Lucy. - O armário de moda está uma confusão - rosnou ela. - E por que tem araras de roupa na sala de reunião? Preciso que você tire tudo de lá, Lucy. Tipo, ontem. Lucy lançou um olhar para Cate e saiu. Cate voltou-se para a sub. - Não há necessidade de falar com uma integrante sênior da equipe, aliás, com qualquer integrante da equipe, assim. Nicole ergueu a sobrancelha perfeitamente desenhada para a chefe. - Como quiser - respondeu, em tom de desafio. - Mas temos coisas mais importantes com que nos preocupar.


- Foi por isso que você começou a reunião sem mim? Nicole fez uma pausa dramática e ficou brincando, bem exibida, com o anel de noivado com um diamante de cinco quilates em corte Asscher que trazia no dedo. - Comecei a reunião porque precisávamos começar a dar andamento nas coisas. Falei com o assessor de Jennifer ontem à noite e parece que a capa de abril não vai rolar. Cate sentiu o pânico começando a tomar conta de seu corpo. - Como assim, não vai rolar? Já fizemos a foto. Já diagramamos a capa. Está linda começou, depois coçou a testa. - Com os diabos. Fechamos a edição daqui a uma semana. O que deu errado? - Nós prometemos que ela iria poder aprovar a foto, e quando mandamos as imagens para o assessor dela ... bom, eles não gostaram. - Nicole apertou os lábios em um sorrisinho de auto-satisfação que dizia: "E agora, o que você vai fazer?" Cate olhou para Nicole e pensou, não pela primeira vez, como a nova-iorquina a desestabilizava. Tudo em sua subeditora, das luzes loiro-platinadas até os sapatos de salto Manolo Blahnik, era rígido. Cate era uma chefe exigente, porém justa: oferecia respeito e cortesia e recebia o mesmo de uma equipe agradecida que, ela tinha certeza, estava achando que a vida era boa na revista desde que Cate se tornara editora, um ano antes. Mas seu relacionamento com Nicole era cheio de constrangimento e competição, e ela se arrependia do dia em que a havia tirado da revista W de Nova York. Nicole era fria, eficiente e ambiciosa, e era essa ambição que a assustava, pois saberia que com muita frequência a ambição andava lado a lado com a dissimulação e a deslealdade. Os cachos de Sadie apareceram à porta. Trazia nas mãos uma xícara de porcelana fumegante. - Para a minha editora que está sofrendo com o fuso horário - disse ela, colocando a xícara em um porta-copo, em forma de flor em cima da mesa. - E William Walton ligou três vezes hoje de manhã. Mandou perguntar se você podia dar uma passada na sala dele assim que chegasse. Nos seis meses desde que Walton havia sido indicado para a diretoria das Revistas Alliance, vindo de uma grande agência de publicidade e marketing de Chicago, Cate não tinha tido muito o que falar com ele. Como sua formação não era editorial, ele não demonstrava interesse na Class, a não ser pelos números de vendas no fim do mês e pelos convites para óperas, corridas de Fórmula I ou vernissages em galerias que a editoria de reportagem podia mandar para ele. - É mesmo? - disse Cate, sentindo uma pontada de alarme. - O que ele quer? Ela captou a expressão no rosto de Nicole, que era a de alguém que acabara de receber um presente de aniversário adiantado. - Não sei - respondeu Sadie com um olhar de solidariedade -, mas a secretária dele está começando a ligar a cada cinco minutos. Sozinha no elevador, Cate ficou olhando para os botões e imaginando o que diria a Walton. Apesar da sensação de aperto no estômago, sabia que deveria se sentir confiante: se a reação que obtivera em Nova York servia como medida, tanto as leitoras quanto os anunciantes finalmente estavam começando a entender. Ela havia passado 12 meses reformulando a revista e, por pura força devontade, tinha transformado a Class de uma revista obsoleta e pomposa da sociedade em uma revista de leitura gostosa e atual para mulheres inteligentes e de sucesso. Os desfiles tinham sido uma ótima comprovação de seu trabalho; uma grande quantidade de anunciantes de prestígio, que até então só tinham


aparecido na Vogue no Reino Unido, haviam sugerido que a Class seria incluída em seu cronograma de anúncios para o outono. Isto certamente agradaria ao senhor William Walton, pensou Cate quando o sininho do elevador avisou que havia chegado ao último andar. Atravessou as portas duplas e percorreu os corredores cor de creme ladeados por capas de revista em tamanho gigante, até chegar a uma ruiva que não sorria atrás de um computador. - Ele está ocupado? - Pode entrar direto - respondeu a mulher, sem erguer os olhos de sua tela de computador. A sala de William Walton era diferente de tudo o que Cate tinha visto no prédio da Alliance. Decorada sem medir custos, era forrada de nogueira e tons de bege, em vez das paredes de fórmica e tinta branca normais que todo mundo era obrigado a aceitar. O homem em si estava sentado atrás de uma mesa com tampo coberto de couro. Sua presença assertiva enchia a sala. De estatura poderosa e cabelo preto espetado, as roupas caras sob medida de Walton mascaravam o fato de que ele chegara ao topo com muito trabalho. Mas muito trabalho mesmo. Vinte anos antes, quando o jovem William tinha superado milhares de estudantes para ganhar uma bolsa de estudos para Yale, achara que aquilo lhe prepararia o terreno para os privilégios. Estava enganado. As portas de entrada para a elite norteamericana continuavam bem fechadas para um garoto da zona sul de Chicago e, em vez de passar os verões fazendo contatos nos clubes de campo de Connecticut, ele foi forçado a batalhar seu caminho nas salas de correspondência da Grey's e da Ogilvy & Mather para alcançar o status que almejava. Mas havia conseguido. Poder e privilégio, aprendera, eram coisas que deveriam ser conquistadas com trabalho árduo e astúcia; não eram coisas inatas nem podiam ser compradas. E tudo isso explicava com precisão por que William Walton olhava para Cate Balcon com tanto desgosto. - Eu queria falar com você assim que chegasse - começou Walton. - Ouvi dizer que estamos com alguns problemas. - Walton fez uma pausa, seus olhos ferozes a mediam de cima a baixo. Ele já a vira antes, é claro, e já lera a respeito dela nas colunas sociais, que ela parecia monopolizar junto com suas irmãs. Mas sozinho e cara a cara com ela pela primeira vez, Walton estava impressionado, apesar de tudo. Talvez não chegasse aos pés daquela irmã dela que era atriz, mas, mesmo assim, Cate Balcon era um arraso. A boca firme e levemente tristonha em formato de botão de rosa; o cabelo dourado escuro ondulado que caía por cima do pescoço elegante. E depois havia o corpo curvilíneo, sem dúvida considerado cheinho pelas mulheres com quem ele saía em Chicago, finas como um pau, seguidoras à risca do regime da Zona. Mas quando ele o imaginou nu e molhado embaixo de seu chuveiro, com aquela boca carnuda em volta de seu pau, engolindo-o todo... Deteve a si mesmo e se ajeitou na cadeira, fazendo um sinal para que ela se sentasse em uma das poltronas de couro preto e duro à sua frente. - Como você sabe, Cate, revistas são negócios - começou. Ela assentiu com a cabeça, hesitante. - Claro que sim. Recebi muitos elogios em Nova York a respeito de como nós melhoramos a revista. Os anúncios parecem muito promissores. William não pareceu escutar o que ela estava dizendo enquanto folheava uma edição da Class com o que muito parecia ser desprezo. - Revistas são negócios - repetiu. - E eu fui trazido à AIliance para melhorar esses negócios. Não se trata simplesmente de diversão, são um bem, e, para ser sincero com você, Cate, acho que os números de vendas da Class neste momento não estão fazendo jus ao investimento.


Cate imediatamente percebeu que aquela conversa não seria amigável, do tipo "Como foram os desfiles em Nova York?" Ela precisava usar um pouco de sua munição. - Com o devido respeito, estamos mostrando uma virada definitiva na circulação - disse ela com a maior calma possível. - Se é que se pode dizer alguma coisa, William, desde que cheguei à Alliance, melhoramos os negócios da Class em pelo menos quinze por cento. Impedimos que a circulação se deteriorasse, melhoramos o volume de anúncios e o retorno. - Eu não classificaria vendas de cem mil exemplares por mês um negócio de fechar o comércio - interrompeu Walton, ácido, jogando a revista em cima da mesa. - Bom, a Class não é uma coisa sensacionalista como a News of the World, com certeza. Mas está melhor do que a Tatler e a Harper's - disse Cate. Walton formou um triângulo com os dedos na frente dos lábios e olhou para ela com certa timidez. Cate Balcon com toda a certeza não era de ser colocada contra a parede. Mas ele também não era. - Desconfio, no entanto, que todas as revistas que você mencionou têm capa definida para a edição de abril. Os pelinhos da nuca de Cate começaram a se arrepiar. Ela praticamente podia ver o sorrisinho de Nicole Valentine enquanto sussurrava no ouvido de Walton. Fincou as unhas na palma da mão e resolveu que a demitiria naquela tarde e arcaria com as conseqüências. Cate respirou fundo. - Então, alguém lhe falou a respeito de Jennifer. Eu também só soube, hoje pela manhã. Não é o ideal, mas acontece. Na verdade, tenho uma coisa na reserva - disse ela, e suas bochechas coraram de leve com a mentira deliberada. Mas Walton nem estava olhando. Ergueu-se de sua cadeira e ficou de costas para ela, olhando para o horizonte de Londres, e rolando uma bola de golfe na mão, distraído. - Não estou interessado no microgerenciamento da sua revista, Cate - respondeu ele, bem direto. - Pode colocar uma foto da minha avó na capa se você garantir que vai vender bem. Estou interessado é no lucro. Acho que a Class precisa ser mais dirigida ao mercado de massa, transformar-se em uma revista mais rentável. Não quero vender mais do que a Tatler, quero vender mais do que a Glamour. - Virou-se novamente na direção de Cate e bateu a bola de golfe na mesa. - Quero vender mais do que todo mundo. Cate estava acostumada a ser provocada pelo pai: tinha aguentado a provocação na ocasião e agüentaria agora também. - É uma bela ambição, é claro - disse ela sem alterar o tom de voz, alisando a saia com cuidado. Meu Deus, ela estava tremendo, pensou, olhando para as mãos. Detestava confrontos e tentou imaginar o que sua irmã Camilla faria em seu lugar. - Mas você está ciente de que a revista Class não é publicada de acordo com um modelo de mercado de massa. O título é mais voltado para a publicidade do que para a circulação, e acho que será necessário um enorme reposicionamento do produto para mudar isso. Ele olhou para ela com um sorriso cruel. - Exatamente, Cate, exatamente. Então, você vai compreender muito bem o que direi a seguir. A bile começava subir à garganta de Cate e ela estava achando que era impossível abrir a boca para dizer algo. - Que vai ser? - terminou por dizer com voz rouca. Walton não estava com pressa. Ele havia imaginado cenas assim todas as vezes que fora humilhado por algum ricaço de nariz empinado na faculdade, e sempre aproveitava cada


segundo da revanche quando ela se apresentava. Deu a volta em sua enorme mesa, apoiouse em uma quina e olhou para Cate de Cima. - A honorável Catherine Balcon - disse ele com um sorrisinho de superioridade, e Cate tremeu, sentindo que o golpe fatal estava prestes a ser desferido. - Ao mesmo tempo que obviamente é maravilhoso ter alguém de perfil tão elevado quanto o seu editando um de nossos títulos, preciso me perguntar o que isso realmente nos acrescenta. Se a Class vai ficar cada vez mais popular, preciso de alguém que esteja mais próximo do grande público britânico. Não alguém cujo papaizinho é dono de um castelo. - Mas que coisa ridícula de se dizer - retrucou Cate, furiosa. – Minha família não tem nada a ver com o fato de eu ser ou não uma editora competente e comercial. E, de todo modo, se conhecesse melhor os seus funcionários, saberia que eu não sou o tipo de aristocrata intocável que você acha que eu sou! Walton absorveu as longas pernas curvilíneas escondidas embaixo da saia-lápis azulmarinho e realmente começou a se arrepender por ter perdido a oportunidade de conhecer Cate Balcon melhor. - Você simplesmente não é a pessoa certa para a função, Cate - disse ele com frieza. Levantou-se e apressou-se de volta para sua cadeira. - Tenho planos imediatos para a revista Class - prosseguiu, já começando a examinar a lista de telefones em seu celular para confirmar o almoço. - E creio que você não fará parte deles. Cate ficou só olhando para ele. Sentia que estava ficando tonta. Tudo tinha acontecido rápido demais. - Do que você está falando? - No mais puro inglês da rainha, senhorita Balcon, está despedida. Sua demissão está efetivada a partir de agora. Cate sentiu-se paralisada. Não conseguia sair da cadeira. - Com base em quê? No fato de o meu DNA estar errado? Foi como se Walton não tivesse escutado. Sua atenção já tinha se voltado para algo em sua tela de computador. - Muito bem - disse Cate em voz baixa e controlada, levantando-se meio instável e dirigindo-se para a porta com dignidade. - Você terá notícias dos meus advogados, é claro. William Walton ergueu os olhos e deu mais uma olhada nas longas pernas que deixavam sua sala. - Peça para que liguem para a minha secretária.


3 Kamak era espetacular. Apesar de Tom ter desejado fazer uma sesta depois da enorme refeição e das gigantescas quantidades de bebida que havia consumido no La Mamounia, ele estava feliz por ter feito o esforço de se juntar ao pequeno grupo de convidados que foi visitar o complexo de templos nos arredores de Luxor. Caminhou no meio dos enormes pilares de calcário, as longas sombras dançando entre aquelas formas altas que se estendiam para um céu azul de brigadeiro. Sorriu para si mesmo. A celebridade tinha o efeito de fazer com que se sentisse muito alto, muito especial, mas ali ele se sentia um pontinho inconsequente. Poderia passar a tarde toda ali, pensou. A última coisa que desejava era voltar para Serena, depois de ter ficado enojado no almoço ao vê-la conversando com aquele gringo tarado e pegajoso. Serena. Os dois primeiros anos do relacionamento deles tinham sido maravilhosos. Tom achava que o jeito mal-humorado e dramático dela tinha uma perversão adorável. Como tinha tido pouco contato com integrantes da classe alta antes de conhecê-la, achou que todos eles eram assim: obcecados por si mesmos e mimados. Nunca havia lhe passado pela cabeça que aquela talvez fosse a personalidade de Serena. Mas agora estava convencido de que ela tinha água gelada correndo nas veias. Ao mesmo tempo ele compreendia, já que a família Balcon era totalmente disfuncional, que o sentimento predominante que Serena tinha em relação a si mesma era irritação, e não afeição. Tom tinha até começado a gostar da garçonete no Pig & Piper do vilarejo de Cotswolds, onde ele tinha uma casa. Gostava dos dentes tortos dela, de seus peitos carnudos e das bochechas coradas de cor-de-rosa quando ela lhe servia uma cerveja. Acima de tudo, gostava do calor dela. Então o sujeito de Sheffield que existia dentro de Tom tomou conta de seu corpo. Tinha enlouquecido? Ele morava com Serena Balcon! Uma das Cinqüenta Pessoas Mais Bonitas da revista People, ou pelo menos era o que tinha lido na banca de revistas do aeroporto. Tinham razão, é claro: ela era estonteante. A partir do momento em que a viu nos degraus de seu trailer lendo um roteiro, o cabelo claro esvoaçando de leve ao vento, os pés descalços no chão, ele achou que ela era a criatura mais fabulosa que ele já vira. Nunca se cansaria de olhar para Serena, mas estava farto de escutá-la: aquele tom meloso, a tagarelice vazia. Tom tinha batalhado para se formar no ensino médio, fazer faculdade e depois a Academia Real de Arte Dramática, abrindo seu caminho em direção ao topo, desesperado para provar o seu valor, por isso quase não conseguia acreditar que vivia com uma mulher cuja idéia de acontecimentos importantes era a página de festas da Vanity Fair. Espantou uma mosca que voava ao redor dele. Então, por que não conseguia deixá-la? O pensamento já lhe passara pela mente uma centena de vezes. Mas quando ele realmente imaginava a vida sem ela, via-se entre a sensação de alívio puro e a terrível insegurança. O que aconteceria a Tom sem Serena? Eram tão inseparáveis quanto irmãos siameses. Sentiu um calafrio, apesar do calor. - Tom Archer! Venha juntar-se ao grupo, seu menino mau! Jolene Schwartz era uma texana desavergonhada de uns 50 e poucos anos e um bronzeado pesado na pele que tinha se casado bem e se divorciado ainda melhor. Veio deslizando na direção dele, rodando uma sombrinha branca cheia de babadinhos por cima da cabeça, como uma Dolly Parton bem passada. - Já estou indo - disse Tom, levantando-se. - Já vamos voltar? - Já deveríamos ter nos encontrado no Grande Salão há vinte minutos para voltar para o barco. - Ela sacudiu o dedo para ele e, ao mesmo tempo, lançou-lhe um sorriso sedutor. Vou ter que colocar você sentado no meu colo.


Inconscientemente, Tom se pegou olhando para as pernas de Jolene e para seus joelhos artificialmente lisos, resultado óbvio da última moda em cirurgia plástica que tomara Nova York de assalto. Desviou o olhar e deu um sorriso fraco e amarelo. - Então é melhor eu ir andando, não é mesmo? Caminharam o mais rápido que o sol quente permitia até a entrada, onde um Range Rover preto os esperava. Tom se acomodou no banco de couro cor de creme entre Jolene e o namorado de Roman, Patric, um arquiteto bonito, grisalho e de fala mansa da Provence. - Então, a quem você vai me apresentar no barco? - disse Jolene em tom de brincadeira para Patric, enquanto o carro serpenteava entre o tráfego em direção às docas. - Ainda não descobri quem está solteiro. - Que tal Frédéric? - sugeriu Patric, em tom de brincadeira. Ela exclamou: - Mas ele é gay! - Olhou para a fingida expressão de ofensa de Patric e rapidamente se corrigiu. - Desculpe, desculpe. Eu adoro os gays. Só que não quero namorar um deles. - Que tal Michael Sarkis? - perguntou Tom. - Tenho certeza de que ele não é gay. Jolene olhou para ele e deu risada. - Ah, querido, é aí que eu estabeleço o meu limite. Em Nova York, o apelido dele é gatuno. Está sempre atrás das gatas dos outros. - Ela riu com a rouquidão de uma fumante. - Não conheço ninguém que ele não tenha traçado. Patric ajeitou-se pouco à vontade no banco e Jolene sorriu para ele. - Não, eu quero alguém igual a este aqui - disse ela, dando um apertão no joelho de Tom. Percebendo a expressão paralisada de Tom, Patric tentou mudar de assunto. - Gostou de Karnak, Tom? - perguntou. - Às vezes é bom sair daquele barco, não é mesmo? - É, sim. O Mamounia estava ficando um pouco agitado demais – disse Tom com diplomacia. - Eu sei - respondeu Patric, solidário. - Eu também sou o menos sociável da nossa parceria. Roman adora dar festas, mesmo quando deveria estar trabalhando. Mas eu... - sua voz foi sumindo. - Parece muito com a minha casa. - Tom sorriu, tentando se afastar da coxa de Jolene. - Como é a vida entre você e Lady Serena? - Jolene entrou na conversa, ansiosa para não ficar de fora. - Ela não é uma Lady. - Eu soube. Tom deu um sorriso sem graça. - Não, o que quero dizer é que, na Inglaterra, a filha de um barão tem o título de "honorável". Uma Lady é filha de um duque, ou de um conde ou algo assim. - Lady ou não, ela é muito linda - disse Patric em tom de aprovação. - Sei que Roman não consegue parar de presenteá-la com roupas. Tudo cai muito bem nela. Acho que ela vai se tornar a embaixadora da coleção neste ano. - Mais roupas! - Tom riu, olhando pela janela para o trânsito caótico. - Não cabe mais roupa nenhuma na nossa casa! Quer dizer, você sabia que ela tem quase mil pares de sapatos? Eles têm um quarto só para eles, onde ficam em umas pequenas prateleiras tipo carrossel. Por que alguém precisa de carrosséis de sapatos? - Se você fosse mulher, saberia por quê - disse Jolene, depois riu e pegou no braço dele de leve. - A vida com as pessoas lindas é assim - Patric deu de ombros. – São maravilhosas, mas dão um trabalhão.


Tom riu sozinho. Patric não sabia nem da metade. Serena estava falida e era ele quem sustentava o estilo de vida jet-set dela. Ela, no entanto, havia recebido uma pequena herança deixada pela mãe muitos anos antes e havia poucas rendas óbvias advindas da fortuna da família Balcon. Dinheiro antigo? O mais provável era que não houvesse dinheiro nenhum, se você ouvisse os boatos a respeito das dificuldades financeiras de Oswald. E embora Serena ainda ganhasse algo próximo de dois milhões de libras por ano com contratos de publicidade e papéis em filmes, seus gastos eram enormes: a casa em Cheyne Walk, as luzes no John Frieda que custavam seis mil libras por ano, as comissões do agente e do assessor, as roupas de alta-costura da Dior, as manicures, pedicures e os tratamentos faciais semanais... a lista era interminável e seus gostos eram dispendiosos. Ela dizia que precisava manter o padrão. Então sobrava para Tom acertar as contas das férias na ilha Necker, as bolsas da Hermes, os jantares no San Lorenzo e o Aston Martin novinho em folha. Por ter sido criado em uma casa onde todo mundo sabia o preço de uma fatia de pão, e por não saber se sua carreira no cinema duraria mais três ou trinta anos, o nível de gastos estava fazendo com que ele ficasse nervoso. Era mesmo um estilo de vida muito caro... para os dois. Quando chegaram às docas, o sol estava muito mais baixo no céu, tingindo o azul de roxo e damasco e salpicando o deque de nogueira do La Mamounia com sombras cinzentas. Quando Tom atravessou a prancha de embarque e adentrou as entranhas do barco, imediatamente avistou Serena no meio da multidão. Por um instante, parou para observá-la. A cabeça dela estava inclinada para trás, rindo, com o cabelo loiro se esparramando pelas costas, uma alça do vestidinho caindo do ombro e deixando-o redondo e nu como uma bola de sorvete. Ele começou a sorrir, então percebeu que as mãos de Serena estavam nos ombros de Michael, enquanto os dedos do playboy se esticavam como os de um predador para tocar no braço dela. O estômago de Tom se apertou. Os sentimentos misturados que tivera a tarde toda - arrependimento, pena, tristeza - se cristalizaram em uma emoção muito clara. Pegou um copo grande de gim de um garçom que passava, virou tudo de um só gole e foi caminhando direto para o lugar onde Serena e Michael estavam rindo. Quando Tom se aproximou, Michael se afastou na direção do bar. - Por onde você andou? - perguntou Serena imediatamente. - Fui a Karnak com Patric e Jolene. Não que você tenha notado, porque ficou grudada naquele playboy desde que eu saí. - Ah, o deserto estava fascinante, professor? - perguntou Serena com sarcasmo, as palavras um pouco arrastadas. - Você tem que me contar tudo. - Seus olhos estavam vidrados e sua voz tinha aquela pontinha de agressividade que vem com a cocaína. - Vamos para a cabine - disse ele, esforçando-se para controlar a voz. - Preciso trocar de roupa. - E por que eu iria querer assistir a esta cena? - disse Serena em tom de ridicularização. - E, de qualquer jeito, estou conversando com Michael, e ele foi buscar bebidas para nós. - Os dois olharam para o bar, onde Michael pegava duas taças de kir royale. - Venha, nós vamos para lá - disse Tom, agarrando o braço dela para puxá-la.A bebida e o calor o haviam afetado, e a pegada dele foi um pouco forte demais. - Você me solte - exclamou Serena, puxando o braço e esfregando a ele nua. - Estou conversando com Michael. Ele nos convidou para ficar no hotel exclusivo que ele tem no Vale dos Reis depois do cruzeiro. Pelo menos ele tem educação. Tom colocou o rosto bem perto do dela.


- Nós não vamos para mais nenhuma porra de hotel - sibilou por entre os dentes. Principalmente para um hotel dele. Você sabe que eu tenho uma reunião em Londres na quarta-feira. Não vou perdê-la por causa dele. Os olhos de Serena arderam, desafiadores. - Bem, eu quero ir. Tom riu, cheio de crueldade. - Ah, aposto que quer. - O que você quer dizer com isso? - Você quer trepar com ele, não quer? - O que você disse? - perguntou Serena, incrédula. - Você. Quer. Trepar. Com. Ele - disse Tom, sua voz dura e sem emoção. Serena engoliu em seco, o rosto contorcido de desgosto. - Você me dá nojo - disse ela baixinho, sua voz destilando maldade. - A gente até pode tirar o garoto da sarjeta... Tom sentiu o coração bater tão forte dentro do peito que achou que ia explodir. Ela nunca tinha parecido tão esnobe, tão superficial, tão feia. Naquele momento, Michael apareceu ao lado dela, bebericando o kir. - Você falou para Tom sobre irem para o meu hotel? - perguntou ele, como se fosse um segredinho entre eles. Tom examinou-o de alto a baixo, absorvendo a camisa branca com os tufos de pêlos pretos escapando pelo colarinho, o rosto estreito suado, as veias saltando nas laterais da testa. O que ela pode ver nele?, pensou por um instante, então ficou aborrecido só com a ideia. - Certo, vamos - disse Tom, pegando o braço de Serena de novo. Serena então se sentiu ultrajada e o repeliu, aproximando-se mais de Michael. Tom se empertigou ao ver os dedos de Michael roçarem a coxa dela. - Então, vocês vão passar alguns dias lá? - disse Michael, que havia entendido mal. - Vai ser divertido. - Eu não estava falando com você - disse Tom. Sua cabeça agora girava. Michael colocou a mão no ombro de Tom em um gesto conciliador. - Vamos lá, o lugar é lindo, e eu sei que vocês vão adorar a suíte Presidencial. - Não encoste em mim. Vamos para a nossa cabine - explodiu Tom, esticando a mão para pegar o braço de Serena de novo. Michael afastou-se quando os olhos de Tom e Serena se encontraram. - Muito bem - disse Tom, finalmente, deixando cair a mão. - Vá para onde quiser. - Acho que ela quer ficar aqui - disse Michael, interrompendo o momento entre os dois. - Não dou a mínima para o que você acha - disse Tom, voltando-se para Michael sua voz cheia de ódio. - Acho que é melhor você vir comigo - disse Michael, virando-se para conduzir Serena até o bar. Antes que se desse conta do que estava fazendo, Tom se virou e mandou um soco no rosto de Michael. Michael estatelou-se no convés e o copo dele quebrou. Serena gritou. No mesmo instante, uma multidão boquiaberta se juntou ao redor deles. A banda parou de tocar e um zunzunzum desconfortável circulou por entre os presentes. Roman LeFey abriu caminho entre a multidão e se abaixou para ajudar Michael a se levantar. Virou-se para olhar para Tom, os olhos cheios de decepção. - Desculpe - sussurrou Tom, esfregando os nós dos dedos doloridos. - Sinto muito.


- Acho que é melhor você ir embora - disse Roman baixinho. Tom olhou desesperado para Serena, mas ela se recusou a olhar nos olhos dele. Sentindo-se mais solitário do que jamais se sentira na vida, ele se virou e caminhou até a parte de trás do barco. Agarrou-se à balaustrada e subiu nela. Olhou para trás, para ver Serena mais uma vez. Então pulou nas águas do Nilo.


4 Camilla Balcon sentiu a enorme onda de orgasmo tomar conta de seu corpo e mordeu o lábio para abafar seus gemidos de prazer. Mesmo assim, o som do clímax sexual encheu o quarto quando Nat Montague enfiou bem fundo nela pela última vez, gritando de prazer enquanto desabava sobre os seios nus da namorada. - Você pode, por favor, ficar quieto? - sibilou Camilla por entre os dentes, empurrando-o até que seu pau deslizasse com suavidade para fora dela. Ela sentira um arrepio verdadeiramente ilícito quando Nat a agarrara na cama com dossel enquanto ela lhe mostrava seu antigo quarto na ala leste do castelo de Huntsford, mas agora Camilla estava incomodada por ter permitido que ele a seduzisse. Aquela foi a única vez que ela perdeu a pose. Mas não era assim tão fácil fazer Nat se afastar. Ele estava com a cabeça abaixada, procurando com a língua seu mamilo duro e redondo como uma passa. - Está com medo que alguém nos escute? - brincou ele, beijando seu corpo esbelto de alto a baixo. Nathaniel Montague, um dos solteiros mais cobiçados de Londres, tinha ido para a cama com a metade das modelos e das moças da sociedade da capital, mas Camilla Balcon era diferente. Seu cabelo loiro-mel, geralmente preso em um coque de bailarina empertigado, agora estava todo espalhado por cima do travesseiro, bem lascivo, emoldurando seu rosto anguloso mas exuberante, ainda corado de prazer. Ele adorava as contradições dela, a maneira como Camilla, por fora, era uma mulher rígida que só pensava na carreira, mas na cama era ousada, faminta e passional. Muitas vezes ele a encontrava depois do trabalho no Lincoln's Inn, só para seduzi-la no confinamento fechado de seus aposentos legais. Então, arrancava seu tailleur engomado e jogava-a em cima da mesa ampla, fazendo papéis e arquivos saírem voando. Sentiu a virilha se agitar com a lembrança e tateou à procura de Camilla mais uma vez, um sorrisinho ardiloso no rosto, mas Camilla deu-lhe um tapa na mão para afastá-la. - Não, Nat. Precisamos descer para jantar daqui a dez minutos e eu quero tomar um banho disse ela, com sua bundinha branca como leite empoleirada na beirada da cama, pronta para se levantar. - Quer usar o banheiro aqui do lado? Nat envolveu sua cintura com seus braços volumosos de jogador de rugby e puxou-a para perto de si. - Por que a gente não pode simplesmente ir fedendo a sexo? – sussurrou ele no ouvido dela. Ela se afastou e jogou um roupão branco e felpudo na cabeça dele. - Descer cheirando a sexo? - Ela soltou uma risada dura frente à sugestão. - Meu pai ia simplesmente adorar! - Achei que você não se importasse com o que ele acha - disse Nat, seu ardor finalmente arrefecido. - Não me importo, mas você sabe como a mínima coisinha pode irritá-lo. Suspirando, Nat pulou para fora da cama, vestiu o roupão e dirigiu-se para a porta, esfregando-se no corpo nu de Camilla ao passar por ela. - Mais tarde, você vai implorar por isso, gostosa, sabe que vai - disse ele com um sorriso jocoso. Os passos de Nat foram sumindo sobre a madeira encerada do corredor, Camilla caminhou até a banheira de pezinhos e colocou uma perna dentro da água, que já tinha esfriado. O banheiro estava escuro, iluminado apenas por duas velas que jogavam uma sombra sinistra de seu corpo nu dançando na pintura vermelha refinada da parede. Achei que você não se importasse com o que ele acha?


Ela afundou na água morna e ensaboou a pele com vigor, irritada com a observação de Nat. Se Nat tinha tanta razão a respeito de seus sentimentos ambivalentes pelo pai, o que ela estava fazendo ali? Já estava com quase 30 anos, era uma mulher forte, inteligente e independente, já tinha idade e sabedoria suficientes para admitir que desprezava a companhia do pai. Diferentemente das irmãs Venetia e Cate, que pareciam se sentir na obrigação de visitar Huntsford independentemente do péssimo comportamento do pai, Camilla Balcon era ambiciosa, implacável e durona - era assim que tinha sido descrita em um artigo da Direito Semanal - e, como uma das advogadas mais temidas de Londres, a palavra "sentimental" não fazia parte de seu vocabulário. Até onde Camilla sabia, a única coisa positiva que o pai lhe dera fora o desejo de fugir de seu castelo em ruínas e o ímpeto de ser bem-sucedida apesar do que ele tinha feito a ela - a todas as filhas - quando moravam sob seu teto desgraçado. Então, o que a trouxera de volta? E por que ela se sentia tão nervosa? É claro que, lá no fundo, Camilla sabia a razão: tinha passado anos reprimindo aquilo, empurrando a coisa para um canto da mente onde não poderia prejudicá-la. Mas aqui, onde as memórias ainda eram tão vívidas... De repente, um jorro de imagens sombrias encheu a cabeça de Camilla, e ela fechou os olhos com força, proibindo a si mesma de pensar na única coisa que a atraíra de volta a Huntsford. Esfregou sabonete no rosto, assoprou as bolhas do nariz e afundou a cabeça na água antes que pudesse pensar mais sobre o assunto. No andar de baixo, no Grande Salão de Huntsford, lorde Oswald Balcon, o décimo barão de Huntsford, caminhava de um lado para o outro, irritado, olhando para o relógio com a vã esperança de que houvesse tempo para pegar um dos carros clássicos estacionados na frente da casa e dar uma voltinha. Ultimamente, ele só se sentia feliz de verdade quando dirigia em velocidade alucinante por sua propriedade em Sussex, com a capota abaixada e o vento abafando o som do motor de precisão em seus ouvidos. Certamente, disparar pelo terreno em alta velocidade era preferível à socialização inútil à qual ele se sujeitaria naquela noite. Durante anos, Oswald fora o Grande Anfitrião, abrindo suas portas para bailes de Natal gigantescos ou fins de semana de caça: durante aquelas décadas douradas, reis, duques e celebridades haviam visitado Huntsford. Mas, ultimamente, receber convidados tinha se tornado algo muito mais inconveniente do que agradável para Oswald, isso sem mencionar que saía muito caro. Seu amigo Philip Watchorn, em especial, tinha um gosto impecável e glutão por vinhos, e Oswald sabia que até domingo suas reservas de Dom Pérignon, Châteauneuf du Pape 1958 e Rothschild vintage estariam no fim. Deu uma olhada em si mesmo no espelho acima da lareira e permitiu-se sorrir. Estava com 65 anos, mas parecia ter 50. Continuava sendo um homem bonito, pensou, ajustando o colarinho de sua camisa social da Ede and Ravenscroft. Sua estrutura alta ainda era forte e esbelta, devido a anos de partidas competitivas de pólo, suas sobrancelhas eram grossas e grisalhas, porém distintas, enquadrando olhos azuis brilhantes que em seus dias de glória tinham congelado inimigos e derretido admiradores. As lembranças dos velhos tempos fizeram com que Oswald recordasse a reportagem do Telegraph que saíra sobre ele no mês anterior, e fez uma careta, fazendo o uísque rodopiar dentro do copo que trazia na mão. Oswald havia pensado que o texto trataria de sua carreira brilhante na política, mas acabara sendo um artigo canalha, que o descrevera como "o barão ladrão que desperdiçou a fortuna da família em tramóias desmioladas, gula e excessos". Por um instante, ele havia considerado tomar alguma ação legal, mas logo percebeu que não desejava ver alguns dos detalhes de sua vida revelados no tribunal. Mas o que mais o


irritara fora a maneira como o artigo falava tanto de suas filhas. Ele se lembrava de uma frase especialmente irritante: "Rainhas da cena, as Garotas Balcon são as jóias da coroa de Huntsford e as salvadoras do legado dos Balcon." Aquilo era uma ferida aberta para Oswald. Ele ainda não tinha conseguido localizar o momento exato em que suas filhas tinham se transformado em obsessão nacional. Sempre houvera um certo interesse na família Balcon, é claro. A esposa dele, Margaret, fora uma linda modelo, ícone da década de 1960: a correspondente aristocrática das esquisitices do East End de Twiggy. Mais ricos que Jean Shrimpton e David Bailey, mais bonitos que John Paul e Talitha Getty, Oswald e Maggie BaIcon tinham sido o casal mais poderoso da sociedade britânica. Mas a morte de Maggie, pouco depois do nascimento de Serena, havia tirado um pouco do glamour dos Balcon. A mídia só voltou a se interessar quando a carreira de Serena decolou, principalmente quando perceberam que Serena era uma entre quatro irmãs bonitas e bem-sucedidas. Como se aquelas vadias ingratas tivessem feito alguma coisa além de gastar seu dinheiro. O ruído da hélice de um helicóptero tirou Oswald de seus pensamentos e ele espiou através das janelas altas para ver o helicóptero preto como breu de Philip Watchorn pousando no gramado. Era mesmo típico de Watchorn chegar de maneira assim tão vulgar, pensou. É bom que ele não arranhe os meus carros com as porcarias dos rotores dele. Judeuzinho de merda. - Philip. Jennifer. Que bom que vieram. - Oswald abraçou Watchorn à porta e concedeu à esposa de Philip o benefício de seu sorriso mais aberto. Como dois hommes du monde nas décadas de 1960 e 1970, Oswald conhecera Philip Watchorn em seu primeiro dia de trabalho em uma corretora de ações do distrito financeiro de Londres. Os dois tinham sido amigos muito próximos naquela época agitada, ceifando as minissaias da cena de clubes da "Swinging London" antes que Oswald herdasse seu título e Philip desaparecesse para se tornar um dos azougues corporativos mais formidáveis da década 1980. - Trouxemos Elizabeth conosco para passar a noite, espero que não se incomode - disse Philip, enquanto uma ruiva baixinha com um tailleur de veludo irrompia porta adentro. Oswald resmungou para si mesmo. Os Watchorn tinham o péssimo hábito de carregar consigo a irmã mais nova de Jennifer em ocasiões sociais, aparentemente sob alguma ilusão de que ela viesse a formar um casal com ele. Não que Oswald se ofendesse com a preocupação; depois do falecimento de Margaret, ele se mostrara mais do que aberto à possibilidade de voltar a se casar, mas em sua mente só havia dois tipos de mulher que circulavam nos níveis mais altos da sociedade: moças lindas e abastadas por conta própria, com quem seria possível se casar e que poderiam ser úteis em termos de dinheiro ou de terras, e as vagabundas vulgares, loucas para dar o golpe do baú, que queriam se casar e tirar cada centavo que você tivesse. Elizabeth encaixava-se bem na segunda categoria. Aliás, assim como a esposa de Philip, Jennifer: uma ex-aeromoça que se transformara em esposa de sociedade. Vagabundas vulgares, é o que as duas são. - Cara Elizabeth, que prazer voltar a vê-la - disse Oswald de modo efusivo, pegando a mala de couro marrom da mulher e entregando-a a Collins, o mordomo. - Senhoras, podem se acomodar. Collins vai mostrar-lhes onde vão dormir e daqui a um minuto nos veremos para tomar um drinque. Philip colocou um braço ao redor dos ombros de Oswald e conduziu-o na direção da sala de visita. - Então, diga-me, quem mais estará presente neste fim de semana?


- Charlesworth, Portia, Venetia, Jonathon. Camilla e o namorado dela, Nathaniel Montague. Creio que conhece o pai dele, não? Onze pessoas, contando comigo e Catherine - respondeu Oswald, enquanto Collins aparecia ao lado deles com uma bandeja de prata com dois uísques bem generosos. - Onze? Não é bem o seu estilo, Oz. O que aconteceu com a história de "quanto mais, melhor"? Quanto mais, melhor! Por acaso Watchorn achava que ele era feito de dinheiro? Além do mais, Oswald estava decidido a manter os números restritos depois do artigo do Telegraph.. Não queria que as pessoas aceitassem sua hospitalidade e ficassem caçoando dele por trás das colheradas de sobremesa. - Hoje à noite vai ser só um grupo selecionado, meu velho – respondeu Oswald, dando um tapinha nas costas de Philip um tanto forte demais. Falando nisso, onde diabos estão as minhas filhas ...? Venetia Balcon estacionou seu BMW 4x4 na frente do castelo de Huntsford. Estava de péssimo humor. O marido, Jonathon, não proferira palavra desde que ela arranhara o espelho lateral do carro em um caminhão parado, trinta quilômetros antes, e ela sabia que era melhor não puxar conversa quando ele estava nesse estado de espírito. Cate também não tinha ajudado em nada; só ficou sentada de mau humor no banco de trás durante toda a viagem de quase cento e cinqüenta quilômetros. E estavam atrasados. Venetia detestava se atrasar para qualquer coisa, principalmente para uma das noitadas do pai: sabia que seria culpada pela demora, apesar de ter sacrificado uma depilação de sobrancelha e um peeling Alpha Beta para chegar cedo. Entrar na residência da família só serviu para deprimi-la ainda mais. Para a maior parte das pessoas, Huntsford parecia um lugar maravilhoso para se chamar de lar. Pelo lado de fora, parecia um bolo de noiva superdimensionado, feito de pedras cor de mel, com torreões de castelo românticos, longas janelas quadriculadas e uma ampla porta de carvalho, precedida pela longa entrada de cascalho em arco. Para os dois lados da construção, estendiam-se centenas de acres de terreno, de bosques salpicados de dedaleiras e campos abertos de capim frondoso. Dentro do castelo, no entanto, a história era diferente. Apesar dos Antigos Mestres que se enfileiravam nas paredes cobertas com painéis de madeira, os afrescos pintados a mão e os candelabros que decoravam o teto, Huntsford só fazia Venetia estremecer. Como uma das decoradoras mais bem-sucedidas do país, ela achava a casa lúgubre, cansada e mais desbotada a cada visita. Os painéis de nogueira que já haviam sido lustrosos estavam rachados e desgastados como couro velho, os detalhes em gesso se esmigalhavam, os candelabros de cristal francês tinham ficado foscos e tacanhos. Huntsford tinha se transformado em uma sombra esfarrapada do palácio imaculado que já fora. Venetia, cuja carreira se solidificara com a reforma solidária de antigas casas de família, fizera inúmeras ofertas para redecorar seu querido lar, mas, até agora, o pai resistia em fazer qualquer modificação no lugar: parecia contente em deixá-lo cair em decadência sem alarde. Enquanto ela estava lá observando a sala, Oswald apareceu a seu lado e colocou a mão gelada em seu ombro. Venetia se encolheu com o toque dele e se virou para o outro lado para disfarçar seu desconforto. - Então, finalmente resolveram chegar - disse ele, ácido. - Desculpe pelo atraso - disse ela, ajeitando o cabelo atrás das orelhas.


- Jonathon só conseguiu sair às seis. Daí, tivemos que pegar Cate na casa dela. O trânsito estava péssimo. - Teria ajudado se ela não tivesse quase batido o carro no caminho - murmurou Jonathon. Oswald imediatamente tomou o lado do genro. - É, Jonathon, isso não ajudou em nada, não é mesmo? O calafrio da desaprovação de uma bronca de infância percorreu o corpo de Venetia. - E qual é o problema de Catherine? - perguntou Oswald com acidez, apontando para a outra filha, que tirava as malas do porta-malas do carro. - Está com a cara emburrada. Diga a ela que se anime, pode ser? Preciso que ela distraia Jennifer Watchom e aquela irmã pavorosa dela com fofocas de Londres. Talvez aquele emprego dela na revista realmente sirva para alguma coisa. - Ah, aliás, papai - apressou-se em dizer Venetia -, o dia de Cate hoje no trabalho foi completamente terrível, de modo que, se você puder não mencionar o assunto... - Sentiu o cheiro de uma expiração do pai e imediatamente searrependeu do que disse. Obviamente, ele estava com um humor beligerante e o uísque sempre despertava o demônio que existia dentro dele. Ela com toda a certeza não queria lhe fornecer mais munição. Estava pronta para dar as costas ao pai quando uma loira tremeluzente que descia a escada despertou sua atenção. - Camilla! - exclamaram Venetia e Cate juntas, correndo na direção da escada para abraçála. Oswald ficou lá observando as três, a raiva crescendo cada vez mais. São mesmo as salvadoras do legado dos Balcon! Deu uma gargalhada dentro de seu uísque. Olhe só para elas! Venetia: cabeça nas nuvens, um cachorrinho bobo, desesperado por atenção. Cate, tensa e sem sorrir, sempre com aquela desgraça de celular dela, como se a porcaria das revistas femininas tratassem de finanças ou algo assim, ao passo que Camilla era desafiadora, truculenta. À exceção de Serena - cuja beleza e celebridade de primeira classe secretamente o deleitavam -, sentia-se cada vez mais decepcionado com suas meninas. Cada vez que elas iam visitá-lo era sempre a mesma coisa: grudavam-se como macacos,ficavam fofocando e dando risadinhas pelos cantos, sem dar a mínima para o pai que as criara com tanta dificuldade e sacrifício. Oswald tomou mais um gole de uísque e olhou para o outro lado da sala, onde Jonathon e Nat cumprimentavam os últimos convidados, Nicholas e Portia Charlesworth, velhos amigos de Oswald. Pelo menos Venetia e Camilla tinham tido algum sucesso em atrair o parceiro certo, reconheceu Oswald. Montague vinha de uma família estabelecida - dinheiro novo, é claro, mas parecia bem sólido – e Jonathon... von Bismarck, bem, ele, definitivamente, vinha de uma boa cepa. Claro que ele havia identificado o jogador implacável do mercado financeiro como um canalha desde o início. Tinha ouvido boatos malucos sobre Jonathon: suas preferências sexuais exóticas, sua enxurrada infinita de casos discretos e não tão discretos assim. Mas Jonathon vinha de uma longa linhagem da aristocracia austríaca, e isso fazia dele uma bela adição à linhagem dos Balcon... independentemente de suas atividades extracurriculares. Collins, o mordomo, fez soar um gongo e o jantar foi servido na Sala Vermelha. Volumosas cortinas escarlates enquadravam portas envidraçadas altas; as paredes, pintadas de um tom rosado, reluziam em cor de damasco à luz de velas, enquanto a cornija da lareira, de mármore, ostentava fotografias de Oswald posando com diversos dignitários: Thatcher,


Reagan, Amin. Um observador sagaz poderia ter reparado na ausência de retratos de família, à exceção dos rostos obscuros e mal-humorados dos ancestrais dos Balcon, vigiando tudo de suas molduras folheadas a ouro penduradas no alto das paredes. Oswald ocupou seu lugar na cabeceira da mesa e examinou a sala enquanto conversas animadas sobre política, festas e negócios enchiam o ambiente. O que Watchom estava dizendo?, pensou Oswald, pegando o fim de uma história. Philip falava a Nicholas a respeito de sua recente visita à residência oficial do primeiro-ministro britânico, Chequers. Apesar de assentir com a cabeça e fingir interesse - Chequers! Mas que maravilha! -, Oswald em silêncio invejava a crescente proximidade do amigo com o gabinete. Não fazia assim tanto tempo que era Oswald o detentor das altas conexões políticas e das histórias dos corredores do poder. Como um integrante da realeza cheio de orgulho, Oswald encarara suas obrigações de lorde com muita seriedade, deslocando-se a Londres três vezes por semana para participar das sessões da Câmara dos Lordes. Mas isso foi antes de a porcaria dos Novos Trabalhistas varrerem mais de 80% dos titulares hereditários do Parlamento de um só golpe. Foi o fim do século XX, e o fim da vida de Oswald como ele a conhecia. Agora, os dias de Oswald eram vazios; de vez em quando dava uma passada nas Galerias Balcon em Mayfair, que iam bem havia anos sem que ele interferisse muito. Também tinha escrito um livro bem recebido sobre o vice-rei George Curzon e o período passado na Índia. Mas isso não era trabalho de verdade. - Estive no St. Bart's hoje - disse Philip, virando-se de frente para Oswald. - Fabuloso! - exclamou Venetia. - Queríamos ir passar o ano-novo lá, não é mesmo, Jonathon? Mas os hotéis estavam terrivelmente lotados. Philip ergueu uma sobrancelha. - O hospital - disse ele. Oswald olhou para ele. - Problemas? - Não, não. Não comigo. Não está sabendo de Jimmy? - Jimmy Jameson? - Ele sacudiu a cabeça. Apesar de Jimrny ter feito parte da turma nas décadas de 1960 e 1970, quando um grupo grande deles frequentava o Annabel's e vários outros bebedouros de Mayfair, Oswald evitara deliberadamente alimentar certas amizades. Sinceramente, não queria enfiar o nariz muito na merda. Jameson tinha sido sócio de Alistair Craigdale, outro amigo do grupo, que desaparecera de maneira sensacional na década de 1970, depois de matar o amante da esposa com um tiro. "O Caso do Assassino Craigdale", era como os tablóides sensacionalistas se referiram ao acontecido. Oswald tomara o escândalo como um sinal para que deixasse a vida de jogo e bebida para trás - em público, pelo menos. Embora Philip, Nicholas e mais um punhado de outros tivessem permanecido em seu círculo de relacionamentos, gente da estirpe de Jimmy Jameson tinha sido excluída de sua vida. - É terrível - disse Jennifer, sua voz um pouco arrastada devido ao consumo entusiasmado de vinho. – Câncer - sussurrou. - Caramba, fiquei de coração partido ao vê-lo - disse Philip, limpando a boca com um guardanapo bem engomado. - Lembra como ele era um sujeito grandão, Oswald? Não deve estar nem com sessenta quilos agora. Os médicos dizem que as visitas o mantêm animado. Parece que muita gente das antigas deu uma passada lá esta semana. Tenho certeza de que ele adoraria vê-lo. - Claro, claro - respondeu Oswald, sem ter a menor intenção de fazer a viagem até Londres. - Tudo por um velho amigo.


Do outro lado da mesa, Cate definhava lentamente em solidão. Por que estou aqui?, perguntava a si mesma enquanto respondia a mais um pedido tonto de Jennifer e Elizabeth por fofocas de celebridades. A verdade era que Cate estava tão desesperada para ver um rosto simpático depois de seu confronto com William Walton que a ameaça da desaprovação do pai parecera um preço baixo a pagar. Agora, olhando para o rosto franzido dele, já não tinha mais tanta certeza. Na melhor das hipóteses, Cate tinha uma relação de amor e ódio com Huntsford. Suas primeiras memórias lhe eram caras: a mãe lendo histórias para elas, o cheiro de uma torta de maçã saindo do fomo, Camilla andando de triciclo no corredor e sendo perseguida pela babá. Mas as memórias posteriores... bem... Cate já tinha muita prática em varrê-las para baixo do tapete. Mas elas sabiam como ser más e passar a perna nela. - Então, Catherine, que tumulto foi esse no seu trabalho que Venetia mencionou antes? perguntou Oswald, interrompendo os pensamentos de Cate. - Acredito que ela tenha usado a palavra terrível. - Fez a palavra rolar na língua com sarcasmo. Cate lançou um olhar enviesado para Venetia. A intenção era chegar cedo a Huntsford para falar ao pai sobre a demissão, mas agora não restava nada a fazer além de um anúncio público de seu desemprego. Respirou fundo e ficou olhando para o prato. - Na verdade, fui demitida hoje à tarde - disse baixinho. – Aparentemente por ser aristocrática demais. Nicholas Charlesworth, membro de carteirinha da classe mais privilegiada, a favor da caça e a favor da divisão de classes, cuspiu de tão ultrajado. - Mas que coisa absolutamente ridícula - exclamou ele. - Espero que esteja buscando conselho legal, Catherine. Camilla olhou para Cate, chocada. - Ah, Catie. Sinto muito... eu não fazia idéia. Conheço um ótimo advogado trabalhista, se precisar. Cate sacudiu a cabeça. - Por mais furiosa que eu esteja, acho que não seria sensato levar isto a um tribunal trabalhista. Sabe como são essas coisas, depois a gente fica marcada para sempre no meio. Philip Watchorn lançou um sorriso benevolente para Cate. - Aceite o conselho de um velho, Cate - disse ele. - Se você passar toda a sua vida profissional sem nunca ser despedida, está fazendo alguma coisa errada. Eu fui demitido começou a contar os dedos roliços em silêncio - quatro vezes antes de chegar à sua idade. Então pensei: que se danem as empresas, vou fazer as coisas do meu jeito. - Estendeu as mãos como quem diz: "Minha defesa está feita." O rosto de Oswald, no entanto, parecia ser de granito. - Trinta anos, sem emprego e sem marido. As coisas não estão lá muito boas, estão? - deu um sorrisinho. Cate olhou-o nos olhos pela primeira vez. - Na verdade, tenho 32, logo encontrarei um emprego melhor e estou esperando o homem certo - respondeu Cate com toda a dignidade que conseguiu reunir. - É uma maneira de encarar a situação - disse o pai, dando uma risada que transbordava crueldade. Sentindo os olhos se encherem de água, Cate levantou da mesa. - Acho que já estou satisfeita - disse educadamente, afastando-se depressa na direção da porta. - Peço licença a todos.


- Ah, Catie, não - disse Camilla. - Cate, por favor - ecoou Venetia, observando-a sair da sala. - Deixem que vá - balbuciou Oswald, agitando a mão em um gesto indiferente. Camilla começou a se levantar para ir atrás da irmã, mas ficou paralisada quando a palma da mão do pai bateu no tampo da mesa. - O que eu acabei de dizer? Os olhos de Camilla e de Oswald se fitaram. Nicholas Charlesworth olhou ao redor e rapidamente começou a falar sobre pesca. - Será que este ano vai ser bom, Oswald? - O ano sempre é bom nestas águas - respondeu Oswald, sem tirar os olhos de Camilla. - Pensei em retribuir a hospitalidade no mês que vem, se você estiver disposto - prosseguiu Nicholas. - Tenho ingressos para Cosi Fan Tutte no Royal Opera Hall. Preocupada com Cate, mas ansiosa para dissipar a tensão, Venetia aproveitou a oportunidade para mudar de assunto. - Falando em ópera - começou, para sentir o clima, limpando a garganta. - Eu lhe contei, papai, que estou fazendo um trabalho para Maria Dante? Nicholas Charlesworth aprumou-se perceptivelmente e Philip Watchorn assobiou. - A cantora? Não é exatamente Pavarotti, não é mesmo? - disse Oswald, mal-humorado. Philip deu uma bronca de brincadeira no amigo, batendo nele com a ponta do guardanapo. - Não seja tão desalmado, Oswald. Maria Dante é tão boa quanto Callas. E também é mais bonita. Como ela é, Venetia? Imagino que seja uma passarinha exuberante. - Exatamente. Precisa ouvi-la falando com os pedreiros. - Onde fica o imóvel? - perguntou Jennifer. Ela sempre se mostrava ansiosa para reunir informação para seu banco de dados social. - É uma casa de estuque de três andares em Onslow Square. Nem é necessário dizer que ela deseja um visual bem teatral para o lugar. Só vermelho-sangue e púrpura. Um horror. Tenho certeza de que ela quer o castelo do Drácula. - Essa gente do sul da Europa é assim mesmo - disse Oswald. - Aliás – disse Venetia, voltando-se para Philip -, ela estava pensando em organizar um evento musical antes de ir para o festival de Verona em julho. Ela se apresentaria, é claro, e possivelmente incluiria algumas amigas no programa: Lesley Garrett, quem sabe até Dame Kiri; e a renda seria revertida para a caridade. - E o local? - perguntou Philip, rapidamente se dando conta de que tal evento seria uma ocasião maravilhosamente original para entreter clientes. - Ela teria sorte de conseguir uma data no Barbican ou no Royal Festival assim tão em cima da hora, não é mesmo? Venetia respirou fundo, suas mãos tremiam um pouco embaixo da mesa. Ela sabia que Huntsford seria o local perfeito para o evento, mas também tinha consciência da aversão do pai por empreitadas comerciais. - Na verdade, sugeri a ela que fizesse em Huntsford - disse Venetia, evitando os olhos do pai. - O início do verão é tão lindo aqui, e a proximidade de Londres é perfeita. - Fez uma pausa. - Seria muito mais disputado do que Clyndebourne. Oswald inclinou-se para a frente na cadeira. - Não vou permitir de jeito nenhum que algo assim ocorra em Huntsford - disse ele, olhando cheio de ódio para a filha. - Diferentemente das desgraçadas das suas irmãs, que parecem não conseguir ficar fora dos jornais, eu valorizo a privacidade desta família. - Poderíamos fazer isso em benefício do Royal Marsden – ajuntou Jennifer Watchorn, sempre ansiosa para entrar em um comitê de caridade.


- Que se dane a caridade - ribombou a voz de Oswald. - Vai acabar com os gramados. Vai ter aquelas porcarias daqueles japas para tudo quanto é lado, com aqueles piqueniques de sushi deles. Jesus, imagino que você pretenda transformar o pomar em estacionamento! - Pense um pouco sobre o assunto Oz - disse Philip, pegando um charuto do estojo de madeira que Collins oferecia aos convidados. - Achei que você fosse um patrono das artes disse, caçoando do amigo. - É, sou. Mas não à custa da minha propriedade - disse ele, servindo uma taça de Porto. Foi bem aí que o som de vozes elevadas surgiu do corredor, seguido por um estrondo ruidoso. - Mas que diabos? - Oswald caminhou rapidamente até a outra ponta da sala e abriu as portas. Estatelada no chão, usando um jeans branco e uma túnica verde, Serena estava meio enterrada embaixo de uma armadura. Ergueu os olhos para o pai com expressão sofrida; seus enormes olhos de água-marinha estavam inchados e vermelhos. Então ela caiu na gargalhada. - Serena, que diabos está acontecendo? - gritou Oswald, enquanto o restante dos convidados se juntava atrás dele à porta. Serena levantou-se devagar, tentando em vão retomar a pose, cambaleando encostada à porta de carvalho pesada como um bêbado de teatro-revista. - Oi para todo mundo - disse ela com a língua enrolada, sacudindo uma garrafa de champanhe pela metade. - Adivinhem só? Estou em casa.


5 A menina de 10 anos, Cate Balcon, agarrou-se ao cabo de reboque ansiosa e lançou um sorriso nervoso para as irmãs, em pé no píer atrás dela. As pernas levemente dobradas oscilavam enquanto ela balançava na água gelada, esperando o motor rugir e ganhar vida. Ela apertou os olhos: o brilho do sol da Côte d'Azur refletia no mar enquanto ela olhava para o pai, sentado na lancha à sua frente. Ela não queria fazer esqui aquático. Não era muito boa em natação, por isso o mar aberto a amedrontava, mas havia uma coisa que a amedrontava mais: seu pai. "Está pronta?", gritou ele, virando-se do leme para abanar para ela, enquanto o zunido do motor ia ficando cada vez mais alto. Ela assentiu com a cabeça, os joelhos tremendo à medida que a lancha rugia. Concentre-se. Estique as pernas. Aprume o corpo. Uma brisa castigava seu maiô azul-marinho e ela tremia em cima da água. Agora estavam indo rápido. Ondas acertavam suas pernas e os pinheiros que ladeavam o litoral viraram um borrão contra a rocha cinzenta da paisagem de Cap Ferrat atrás deles. Mas ela estava em pé; estava andando de esqui aquático. Cate lançou um olhar para o píer para dar um sorriso de orgulho para as irmãs. De repente, seu joelho direito cedeu. Rápido demais. Rápido demais, papai. Ela gritou, mas o rugido do motor engoliu seu apelo. Seu pequeno corpo não suportou, e ela caiu de cara na água, enquanto era puxada com violência para a frente. Pare, papai, por favor, pare, mas a lancha seguia em frente, cada vez mais rápido. Ela se agarrou à corda com mais força, determinada a não largar, mas seu corpo foi afundando cada vez mais no mar e a água entrou em seus olhos. Ajude-me. Por favor, balbuciava entre respirações ofegantes. Finalmente, o motor silenciou. A lancha fez uma volta em forma de ferradura ao redor dela, a corda afrouxou, e lá estava ele, o pai dela. Cate tossia violentamente, cuspindo arcos de água salgada. Sua mão bronzeada e peluda surgiu da lateral do barco, mas ele a pegou de forma dura e aborrecida, deixando profundas marcas vermelhas no ombro dela. "Você nunca consegue fazer nada certo, não é mesmo?" Uma batidinha leve na porta fez com que Cate acordasse de seu sono. - Posso entrar? Cate esfregou os olhos e Venetia entrou em seu quarto, um espaço apertado na torre do castelo, todo forrado de chintz e lilás, da época em que Huntsford era seu lar. A irmã empoleirou-se em cima do edredom e Cate sentiu um arroubo de déjà vu. Aquela era uma cena familiar entre as meninas Balcon: uma irmã se esgueirando no meio da noite para reconfortar outra, ou fugindo escondida para a antiga casa de barcos caindo aos pedaços perto do lago para escapar dos gritos, do sarcasmo, da desaprovação. A casa de barcos fora o único porto seguro na tempestade delas; Venetia, no papel de irmã mais velha, tomava para si a tarefa de levar um estoque de doces e refrigerantes e de reconfortar quem estivesse na mira da raiva do pai. Apesar de Oswald tê-las mandado, deliberadamente, para internatos diferentes na tentativa de romper os laços, a proximidade delas sobrevivera à vida adulta, e as meninas Balcon ainda recorriam umas às outras em momentos problemáticos: elas eram as únicas que realmente compreendiam. - Você está chorando. - Durante o sono, acho - respondeu Cate, enxugando a umidade da bochecha. Sentiu uma onda de culpa e aprumou-se, apoiada no travesseiro.


- Bom, deixe para lá. Como está Serena? - apressou-se em dizer. Cate tinha corrido até o topo da escada quando ouvira a confusão, mas deixara por conta de Venetia colocar a irmã mais nova, bêbada e emotiva, na cama. - Desculpe por ter deixado sobrar para você. - Não se preocupe com isso - sorriu Venetia, entregando à irmã uma xícara de chocolate quente. - Ela apagou assim que você saiu. Mas claro que caiu no sono com muito glamour. - Apagou? - disse Cate, erguendo uma sobrancelha. - Acho que está mais para desmaiou. Deve ter enchido a cara. Nunca a tinha visto bêbada, desse jeito então, nem pensar. - Bom, eu não me surpreendo. Parece que ela bebeu metade do bar na viagem de volta do Egito. - É uma tristeza, não é mesmo? Ela e Tom. Não achei que isso aconteceria. Eles vão voltar, você não acha? Venetia deu de ombros. - Eles é que têm de decidir. Ela reparou nos olhos vermelhos de Cate e colocou a mão em seu ombro. Venetia sabia que, para Cate, perder o emprego era a mesma coisa que perder um namorado. - Você precisa aprender a ignorar papai, sabe? Ele foi o maior imbecil hoje à noite. Cate deu de ombros. - Já passei mais de trinta anos tentando fazer exatamente isso, mas parece que ele tem o dom de fazer as pessoas se sentirem o pior possível. - Então foi bom Collins ter colocado quatro doses de uísque no seu chocolate. Você vai se sentir melhor depois disso. - Ela caminhou até o parapeito da janela e acendeu uma vela que estava ali em cima. - Você vai conseguir outro emprego fabuloso, sem problema. Cate sacudiu a cabeça. - Não. Todos os cargos importantes na Elle, na Vogue e na Harper's foram preenchidos recentemente. E... não tem jeito... eu realmente quero ser editora. A esta altura da minha carreira, acho que não é bem o momento de começar a descer na hierarquia. Sua voz foi sumindo e ela se deixou afundar de costas nos travesseiros fofos, sentindo-se pequena e infantil. Ergueu os olhos e durante um segundo, à luz fraca e cor de âmbar da vela, Venetia pareceu outra pessoa. - Você está parecendo mamãe - disse Cate baixinho. - Não seja boba. Você nem se lembra. - Lembro. Às vezes, acho que lembro. Cate tinha 7 anos quando a mãe morrera de hemorragia cerebral, apenas meses depois do nascimento de Serena. Num minuto, ela estava tomando sol no jardim da casa de Cadogan Gardens com Cate correndo ao seu redor, descalça e feliz; no minuto seguinte, teve uma dor de cabeça e, antes que todos se dessem conta, já era. Foi o começo do fim da infância despreocupada, já que as quatro meninas foram submetidas ao controle inflexível de Oswald. Foram criadas pela babá, a senhora Williams, e à sombra de um tirano. Mas Venetia tinha razão, pensou Cate; só tinha lembranças mais do que enevoadas de Margaret Balcon, só um cheiro indefinido de perfume, a sensação do toque de um suéter macio, um ou outro detalhe de seu rosto, os lábios carnudos quando ajeitava as cobertas de Cate na cama e lhe dava um beijo de boa-noite. Eram memórias que lhe vinham à mente nos momentos mais aleatórios, e nesta noite, quando Venetia se inclinou por cima dela para colocar a xícara de café no chão, parecia que a mãe tinha ressurgido depois de todos aqueles anos. Não pela primeira vez, Cate ficou imaginando como seriam as coisas se a mãe ainda estivesse por perto. De repente, ela se sentiu cansada demais e puxou o edredom até o queixo.


- Será que a gente pode conversar sobre isto amanhã? Venetia assentiu com a cabeça e saiu do quarto. Embora as paredes do castelo tivessem quase um metro de espessura, Cate escutava os uivos do vento de inverno lá fora com bastante clareza. Ficou deitada à meia-luz, tentando clarear a mente, mas fazer isso ali, no seu quarto de adolescente, era difícil demais. Apesar de querer esquecer o trabalho e o vexame do jantar, seus pensamentos vagavam até uma outra época, uma outra tristeza, um outro jantar, no qual seu pai a humilhara na frente de sua platéia da sociedade. Naquela ocasião, 14 anos antes, Cate estava passando o fim de semana em casa, vinda da escola Wycombe Abbey, para dar a notícia de que não tinha sido aceita em Oxford. - Estão vendo? Produzi um bando de idiotas - dissera Oswald, caçoando dela na frente de sua platéia selecionada, que daquela vez estava lá para um fim de semana de caça. - E pensar que eu realmente achei que Catherine talvez tivesse cérebro. Bem, pelo menos minhas outras três meninas são bonitas. Nada como a última gota. Com o passar dos anos depois da morte da mãe, Cate de algum modo tinha escorrido por entre as rachaduras e se tornado insignificante aos olhos do pai. Não era a mais velha, como Venetia; nem a mais inteligente, como Camilla; nem a mais bonita, como Serena. Naquele momento, Cate percebeu que precisaria se destacar por conta própria. Aquele fim de semana foi a última vez que voltou a Huntsford durante seis anos e meio. Papai não poderia mais magoá-la se ela não se encontrasse com ele, raciocinou. A partir de então, Cate passava os fins de semana na escola ou com amigas. As Páscoas eram passadas estudando arte em Florença, os verões eram preenchidos com viagens de mochila pelo Marrocos, pelo Egito, pela Espanha. Ela não foi para Oxford, nem para sua segunda opção de universidade, Bristol. Em vez disso, inscreveu-se para estudar literatura na Universidade Brown, em Rhode Island, nos Estados Unidos, a instituição liberal de primeira linha que incentivava a criatividade e a auto-expressão. A elite da costa leste, que achava que a realeza tinha agraciado aquele campus, adorava Cate - ela namorara um Astor, um Vanderbilt e um RockefeIler e passara férias em Hamptons, Aspen e Palm Beach. Gastou cada centavo da pequena herança deixada pela mãe pagando as mensalidades da faculdade e comprando um guarda-roupa nas lojas mais refinadas de Nova York, na Madison Avenue, mas em troca ganhou autoconfiança, bons contatos e força de vontade. Fez estágios na Vanity Fair e na New Yorker, e voltou à Grã-Bretanha seis anos depois, mais forte, mais magra, mais realizada e com mechas louro-avermelhadas que significavam que, a partir daquele momento, Cate Balcon seria sempre descrita como bonita. Cate enxugou os olhos e assoou o nariz em um punhado de lencinhos de papel que tinha enfiado embaixo do travesseiro. Certo, disse a si mesma com severidade, já senti pena demais de mim mesma para uma noite. Pegou um exemplar desgastado de Madame Bovary da pequena estante ao lado da cama, mas não conseguiu se concentrar. Já era bem ruim ter sido demitida, mas pelo que soubera de sua assistente, Sadie, naquela tarde, também tinham lhe puxado o tapete. Tinham pedido a Sadie que marcasse uma passagem no trem Eurostar para Nicole Valentine ir a Paris - para os desfiles - duas semanas antes. Alguém sabia que Cate não estaria lá para ocupar sua cadeira na primeira fila... Cate não conseguia parar de pensar nas palavras de Philip Watchom durante o jantar. Eu fui demitido quatro vezes antes de chegar à sua idade. Então pensei, que se danem as empresas, vou fazer as coisas do meu jeito.


Ainda enrolada no edredom, ela se inclinou para fora da cama para puxar sua bolsa da Mulberry para cima do colchão. Lá dentro havia uma pasta de plástico preta cheia de anotações, fotografias de ensaios de moda e rascunhos de layouts de revista. Cate abriu a pasta e pegou a prova de uma capa fictícia com uma fotografia linda de Serena deitada em uma rede. O título elegante dizia "Sand", Ela sorriu. Aquele era um trabalho que ela havia feito com amor. Um ano e meio antes, no coquetel de verão das Revistas Alliance, ela havia sido abordada pelo então diretor administrativo. Cecil Bradley, o predecessor de William Walton, não podia ser mais diferente do tubarão da sala de reuniões. Homem caloroso e afável de 60 anos, Bradley ficara impressionado com a ascensão sem alarde de Cate nas fileiras da empresa, com sua experiência em Nova York e com sua reputação de força editorial criativa. Ele a encurralou com um copo de Pimms sob o sol quente de agosto e pediu que criasse um conceito para expandir a atual divisão de revistas femininas da empresa. Alertou-a com uma piscadela de que o projeto não poderia interferir com o trabalho, mas que haveria uma reunião da diretoria em outubro, e se ela tivesse uma proposta pronta até lá, ele se encarregaria de levar a ideia adiante. Cate ficou animadíssima. Era o sonho dela. Durante dois meses, passou noite após noite debruçada em cima de revistas britânicas e de outras nacionalidades, buscando o que estava em falta no mercado, separando imagens que despertavam sua imaginação, listando nomes de fotógrafos que com certeza trabalhariam para ela... e de celebridades que, por intermédio de Serena, certamente concordariam em sair na revista. As pesquisas de mercado encomendadas para a Class mostravam que turismo e estilo eram áreas que registravam grande crescimento no setor de revistas para público classe A. Sand criaria um estilo de vida delicioso para os casais com muito dinheiro e pouco tempo adotarem. Menos moda do que a Vogue, mais estilosa do que a Condé Nast Traveller, a revista Sand seria recheada de férias exóticas, viagens de compras atraentes, roupas fantásticas e interiores de sonho, tudo com uma pitada de classe e glamour de um tempo que não volta mais. Pensar em tanto sol estava deixando Cate com frio. Ela ligou um pequeno aquecedor com ventilador numa tomada no canto do quarto, que soprou sobre ela um pouco de ar quente. Acendeu outra vela para obter mais luz, virou a xícara de chocolate quente cheia de bebida e espalhou todas as imagens por cima da colcha, acariciando os projetos de layout que Carol Shelley, sua amiga editora de arte, tinha feito em troca de uma bolsa Chanel. Eram bonitos, gráficos, impressionantes. O maior desperdício. Cate lembrou-se de quando, duas semanas antes do prazo marcado para outubro, fora informada a respeito da mudança de diretoria na empresa. Cecil Bradley e os membros mais idosos do quadro executivo receberam indenizações e foram aposentados à força, e lá vieram os homens cheios de pose que só falam de marketing e dinheiro, como Walton. Um e-mail circulou para informar que toda a atividade de lançamentos estava temporariamente suspensa devido à "racionalização e reestruturação" da empresa. Cate tinha sido estripada. Por um breve momento, pensara em oferecer a Sand para outra empresa, mas então lhe ofereceram o cargo de editora da Class e ela consignou sua preciosa boneca da revista ideal em uma caixa guardada embaixo da cama. Naquela tarde, ela a resgatara e fizera uma lista das empresas para as quais poderia oferecê-la - Emap, Condé Nast, Time Wamer. Mas continuava pensando nas palavras de Philip Watchom: por que não podia tentar lançá-la por conta própria? Jann Wenner tinha começado a Rolling Stone na cozinha da casa dele, da mesma maneira que Tyler Brulé fizera com sua revista de estilo, a Wallpaper. O clima atual com certeza era mais competitivo, e as probabilidades nunca favoreciam os pequenos, mas por que ela não podia tentar?


Sentiu um friozinho na barriga. Planejadora entusiasmada, pegou uma folha de papel em branco e, esforçando os olhos naquela luz fraca, começou a escrever uma lista de tarefas: reuniões a marcar, custos de papel a pesquisar, diretores de publicidade com quem conversar... isso sem mencionar a questão espinhosa do respaldo financeiro. Ela sabia que não adiantava nada recorrer ao pai. Depois de 45 minutos, estava exausta. Foi até o parapeito da janela para assoprar as velas e voltou cambaleando para sua cama com dossel na escuridão completa, tateando o caminho. Isso era algo com que ela teria de se acostumar.


6 A cozinha de Huntsford era o lugar mais quente do castelo. Enterrada na ala oeste, aquecida pelo calor que se esparramava do fogão cor de vinho Aga e sempre cheirando a tortas que saíam do forno, era um santuário aconchegante para onde todo mundo acorria. Quando criança e já bem entrada na adolescência, Serena passava horas lá, sentada na enorme mesa de madeira, enchendo a cara de muffins quentinhos quando deveria estar estudando, ou tocando piano, ou arrumando o quarto. A senhora Collins, a cozinheira, deveria mandá-la embora ou entregá-la a Oswald, mas Serena era sempre uma companhia tão divertida, fazendo fofoca da escola ou fazendo piada sobre o pai, que ela não tinha coragem. Para os empregados de Huntsford, não era surpresa nenhuma o fato de Serena depender da beleza e do charme para se virar na vida. - Ah, foi aqui que você se enfiou! - Cate estava parada à porta, descalça, segurando uma xícara de café, e sorriu para si mesma com aquela cena tão conhecida. Usando uma calça velha de veludo cotelê e um top minúsculo de algodão branco que se esticava apenas o suficiente para cobrir seus seios espevitados, Serena estava com os pés enroscados no banco de carvalho e mordiscava um muffin de banana, com cara de quem está com pena de si mesma. Agora estava linda, não mais simplesmente bonitinha, como fora na juventude, pensou Cate, mas, ainda assim, aquele poderia ser um retrato de dez, quinze anos antes. - Muffin? - A voz de Serena estava fraca e trêmula, sua boca larga virada para baixo e sombria quando ela estendeu um bolinho castanho na direção de Cate. - A senhora Collins fez uma fornada para mim, mas não consigo comer nada. Estou enjoada. - Ressaca, quem sabe? - perguntou Cate com um sorriso. - Banana, Coca Diet e uma caminhadinha sempre resolvem para mim. Serena olhou para ela, incrédula. - Como assim, "ressaca"? Estou enjoada de tristeza. Caso você não estivesse prestando atenção ontem à noite, meu relacionamento entrou pelo cano. Cate estava acostumada a pisar em ovos com a irmã: a menor das coisas era capaz de desencadear um ataque histérico de diva, e estava claro que hoje ela precisaria tomar cuidado redobrado. Foi até a irmã para lhe dar um abraço; ela se sentiu magra e delicada nos braços de Cate. O cabelo, preso em um rabo-de-cavalo, tinha um cheiro refrescante, mas os olhos vermelhos da performance da noite anterior permaneciam. - Continuo achando que deveríamos dar uma caminhada. O que você acha? - Preciso esperar minha assistente chegar - suspirou Serena. – Não tenho nada adequado para vestir, a menos que você ache que uma bata é adequado para essa porcaria horrorosa de fevereiro. - Bom, pegue alguma coisa minha emprestada - disse Cate. Serena soltou uma gargalhada. - Eu uso 38. As duas viraram a cabeça quando Venetia entrou na cozinha, usando uma calça Katharine Hepburn e um suéter de cashmere justinho cor de oliva de gola rulê, com uma pilha de jornais embaixo do braço e a fisionomia fechada. - É melhor vocês darem uma olhada nisto. - Ela jogou os jornais em cima da mesa, que se abriram em leque. O nome de Serena estava em todas as primeiras páginas. - Mas que diabos é isso? - O rosto de Serena ficou pálido como o de um defunto quando ela viu as imagens de Tom pulando do dahabeah de Roman ampliadas na primeira página de todos os tablóides.


"Tom Pega Pesado - Serena Sai Fora", dizia um. "Vagabunda do Nilo Deixa Serena na Mão", alardeava outro. - Os jornais iam descobrir cedo ou tarde - disse Venetia, tentando transmitir um clima de otimismo. - É exatamente para evitar essas coisas que eu pago milhares de libras por mês para uma assessora de imprensa - sibilou Serena por entre os dentes, enquanto folheava os jornais freneticamente. - Vou demitir aquela vaca assim que voltar a Londres. - Mas ficou paralisada ao ler a primeira página dupla do Sun. Trazia a foto de uma garota de peitão, usando biquíni e fazendo biquinho ao lado de uma foto sobreposta de Tom. - Archer ficou dando em cima de mim. - Ao ler as palavras, a voz de Serena começou a tremer. Virou-se para olhar para Cate, batendo com o indicador no jornal com tanta força que deixou uma marca no papel. - Que porra de vagabunda é essa? - berrou ela, finalmente se desmanchando em lágrimas. - Vamos lá, Sin - disse Cate, usando o antigo apelido da irmã mais nova. - Ela não é ninguém; só está querendo fazer uns trocados - prosseguiu, passando o braço pelos ombros trêmulos da irmã. Serena ergueu os olhos de repente, parando de chorar com a mesma rapidez com que tinha começado. Olhou para Cate cheia de esperança. - Mas é verdade, não é? Tom nunca me trairia, não é mesmo? Cate olhou por cima do ombro de Serena para ler a reportagem enquanto entregava uma xícara de chá à irmã. - Tenho certeza de que é só uma garçonete tonta do bar que ele frequenta - respondeu Cate em tom tranquilizador. - Ela deve ter confundido uma gorjeta com uma cantada. É surpreendente como a memória das pessoas é capaz de mudar quando alguém abana um cheque gordo de Fleet Street embaixo do nariz delas. Do lado de fora da grande janela quadriculada, ouviram o clip-clop de cascos de cavalos no pátio da cozinha. Cate abriu a grande porta de carvalho e viu Camilla desmontando de uma égua baía grande. Usava calça de montaria cor de creme e uma jaquetinha justa de caça. - Se tiver um café prontinho, sou capaz de matar para conseguir uma xícara - disse ela a Cate. Tirou o capacete de montaria, e seu cabelo loiro desabou em cascata por cima dos ombros. - Cuidado com onde pisa - sussurrou Cate quando ela se aproximou da porta. - Serena está pronta para matar alguém com as próprias mãos. O que aconteceu com ela chegou aos jornais. - Qual é o problema? - Camilla entrou pisando firme na cozinha, onde Serena agora estava com a cabeça enterrada nas mãos. Ela ergueu os olhos quando a irmã entrou. - Camilla. Graças a Deus. Deve existir alguma ação legal que possamos tomar contra isto murmurou. - Mas é verdade, querida - interrompeu Cate com delicadeza. – Você e Tom se separaram. Serena olhou feio para a irmã. - Obrigada por me lembrar. Com um ar profissional Camilla corria o dedo com rapidez sobre o texto. - Teoricamente, podemos entrar com um mandado para impedir a publicação de mais coisas... mas vamos precisar de muita sorte para segurar o News of the World que sai amanhã.


- De todo modo - disse Venetia, enrolando um cacho de cabelo no dedo -, isto aqui não é inteiramente negativo. Acho que você saiu bem na história - disse, apontando para a manchete do Mirror, que dizia: "Fim do Conto de Fadas." - Que conto de fadas? - vociferou Serena, jogando os jornais pela cozinha toda. - A Bela e a Porra da Fera? Como é que você acha que eu "saí bem"? Sair bem é fazer um acordo multimilionário de divórcio, não ser humilhada pelos tablóides. Por estar acostumada com 26 anos de ataques de Serena, Venetia sabia que a melhor coisa era cortar o mal pela raiz. - Venham, vamos todas tomar um pouco de ar fresco - disse com firmeza, batendo palmas e conduzindo todas para fora como um grupo de crianças do jardim-de-infância. - Na semana que vem, tudo isto já vai estar no passado. Relutante, Serena calçou um par de botas de borracha, pegou o poncho velho e multicolorido da senhora Collins do espaldar da cadeira e colocou-o por cima dos ombros quando saíram para o pátio. O castelo foi lentamente sumindo da visão à medida que elas se afastavam, as janelas da casa brilhando como uma abóbora de Dia das Bruxas contra o tom pardacento e escuro da manhã. De longe, Huntsford parecia especialmente grandioso, neogótico com suas impressionantes, torres de castelo e as colinas dramáticas que se erguiam ao fundo aconchegavam Huntsford como um útero de esmeralda. Oswald tinha feito algumas reformas impressionantes na propriedade desde que a herdara; reescavou o poço, adicionou um campo de críquete, uma cerca viva, uma estufa bem iluminada de tirar o fôlego e até mesmo um abrigo nuclear, na década de 1980, quando todo mundo estava meio apavorado com os russos. Apesar de estar meio desgastado - o fosso onde Oswald costumava nadar diariamente estava agora cheio de musgo, folhas e líquen -, continuava parecendo estonteante neste horário do dia. Serena não estava com disposição de se recostar e apreciar a paisagem. Suas emoções estavam à flor da pele. Raiva. Mágoa. E forças mais fracas, que ela não podia se dar ao luxo de reconhecer: vergonha e medo. Não fazia o menor sentido, pensou, pisando furiosamente na grama molhada. Por que Tom se interessaria por uma interiorana gorda qualquer se tinha a ela? Tinha certeza de que Tom não seria infiel, independentemente do que os jornais dissessem, mas ficara decepcionada por não o haver encontrado esperando em casa quando ela voltou do Egito. Depois que ele finalmente tinha sido resgatado do Nilo, Tom e Serena haviam tido uma conversa cheia de irritação sobre "passar um tempo separados". Tom pegaria o primeiro vôo para longe do Cairo, enquanto Serena aceitara de bom grado a oferta de Michael para usar seu jatinho Gulfstream. E como não havia hordas de paparazzi à espera dela em Northolt, a base da Força Aérea Real na zona oeste de Londres que era usada por muitas celebridades para pousar com seus aviões particulares, Serena achara que a separação tinha ficado fora do radar da imprensa. Sentira-se aliviada. Em solo pátrio, tinha certeza de que ela e Tom resolveriam tudo de maneira amigável, fariam algumas aparições bem selecionadas no Ivy, sorrindo de mãos dadas para dispersar os boatos, e então veriam o que fazer. Mas, até agora, não houvera nada. Nada de aparições lacrimosas de Tom, nenhuma ligação no meio da noite, nenhum arranjo de flores caro de Paula Pryke de desculpa. Nem mesmo uma mensagem de texto para saber como ela estava. Que canalha egoísta. Por nunca antes ter sofrido a humilhação de levar um pé na bunda, ela não conseguia entender como a relação deles tinha se desintegrado com tanta rapidez, muito menos por que Tom poderia querer colocar um fim em tudo assim tão de repente. O que mais a assustava era o fim das outras coisas que isto poderia significar: as melhores camas ao lado


da piscina em Eden Roc, a melhor mesa no Cipriani, os convites para os desfiles de altacostura, festas em iates, a entrega do Oscar. Ela ficava de estômago virado só de pensar. - O pior de tudo - disse Serena, ficando irritada de repente e dando meia-volta para ficar de frente para as irmãs -, o pior de tudo mesmo é que vou para Nova York daqui a algumas semanas. A Vanity Fair vai promover uma festa para comemorar o meu filme novo, e eu vou fazer as ações de promoção da Costa Leste. Como é que eu vou aparecer lá sozinha? Quer dizer, Graydon nem está mais solteiro. Cate e Venetia trocaram olhares cínicos, cada uma deu um braço a Serena e continuaram caminhando pela grama crescida e encharcada de orvalho que descia na direção do lago e da casa de barcos. - Vamos lá, Sin, você é linda, talentosa, engraçada - disse Cate, puxando-a. - Todos os homens do mundo dariam o braço direito para estar naquela festa e encontrar você solteira - completou Venetia. - Você é fabulosa. Um sorriso fraco formou-se nos lábios de Serena. - É verdade, não é? Camilla sorriu para si mesma. Tanta autoconfiança em crise. - E isso se você ainda estiver solteira daqui a duas semanas – acrescentou ela, juntando-se à sessão de motivação da família. - Tem certeza de que não é só uma briguinha? Por que você acha que o relacionamento terminou mesmo? Serena suspirou, toda dramática. - A única maneira de não encarar isto como definitivo é se ele me entregar uma porcaria de uma carta de perdão. Ele disse que queria "dar um tempo" e não teve nem a decência de me ligar. - Então, por que você não liga para ele? - perguntou Cate. - Pelo que parece, vocês mal conversaram sobre o assunto. - Não. Por que eu devo ligar para ele? - disse Serena, enfezada. – Foi ele quem se comportou como um arruaceiro nojento e ainda teve a coragem de dizer que a gente devia dar um tempo, como se fosse eu que estivesse errada. Ele pode ficar com aquela vagabunda gorda e idiota do interior para ver aonde vai chegar com isso. - Mas se você não ligar para ele, vai haver um impasse - disse Cate, pragmática. Agora elas tinham alcançado a beira do lago. Serena olhou para a água reluzente e começou a roer uma unha minúscula e bem cuidada. Olhou de lado para Cate, de um jeito que fez Cate ficar em guarda no mesmo instante. Ela tinha um sexto sentido que lhe dizia quando estava prestes a ser manipulada por Serena. - Quem sabe você não liga para ele... - disse Serena lentamente. - Vocês sempre se deram bem. Ele vai falar com você. Cate sorriu e sacudiu a cabeça. - Ah não, não faça isto. Nem tente esta para cima de mim. - Ah, por favor. Eu faço qualquer coisa se você me fizer só este favor. Venetia e Camilla trocaram sorrisos sarcásticos enquanto Cate continuava sacudindo a cabeça. - Por favor, Catey. Você nunca faz nada por mim - disse Serena de mau humor, mas, ao ver o rosto de Cate, ficou mais suave e mudou de tática. – Por favor. Você pode ficar com aquele casaquinho branco da Chanel que eu sei que você ama. Provavelmente não vai servir, mas pode ficar com ele. Ciente de que era inútil resistir, Cate deu um abraço em Serena. - Vou pensar sobre o assunto, mas não prometo nada. O momento foi interrompido por uma campainha estridente.


- Meu telefone - berrou Serena, tirando o aparelho do bolso. – Você atende - disse, entregando-o para Venetia. - Se for Tom, diga a ele... diga a ele que eu fugi. Venetia se recusou a atender, de modo que Serena abriu o telefone cheia de raiva e tomou a trilha que levava do lago até a casa de barcos. - Alô? Era Janey Norris, a assistente de Serena, que com muita rapidez e profissionalismo repassou as providências a serem tomadas para aquele dia, como se estivesse descrevendo o desembarque do Dia D. O horário previsto para a chegada da mala de Serena a Huntsford, o horário de uma reunião com a assessora de imprensa, um encontro emergencial com o agente. - Seu terapeuta e seu conselheiro estão de férias até a próxima sexta - revelou Janey enquanto Serena ofegava, exasperada -, mas eu agendei um massagista particular para ir à sua casa na terça para um tratamento com pedras quentes, terapia cranial relaxante e massagem havaiana de quatro ondas. - Muito bem - assentiu Serena. - Alguém deixou recado? - perguntou, toda esperançosa. - Você recebeu 47 ligações hoje de manhã - informou Janey. – Nenhuma de Tom, mas um homem chamado Michael Sarkis insistiu muito para falar com você. Serena suspirou e fechou o telefone com um estalo, colocando fim imediato à conversa com Janey. - Tom ligou? - perguntou Cate, cheia de expectativa, apressando-se para alcançar Serena. - Não! - A resposta da irmã pareceu uma chicotada. - Mas preciso dar um telefonema, com licença. - Para quem? - insistiu Cate. - Por que tanto interesse? - Para quem? - perguntou Cate de novo. Seus instintos jornalísticos farejavam intriga. - Para Michael, se quer mesmo saber. Cate ergueu os olhos, confusa. - Que Michael? Caine? Stipe? Angelo? - disse com um sorriso. - Michael Sarkis, para ser exata - respondeu a irmã um pouco petulante. - Voltei do Egito no jatinho dele. - Michael Sarkis, o cara dos hotéis? - Cate ergueu uma sobrancelha. - Por que este olhar? - Serena se afastou batendo os pés na direção da casa de barcos, enquanto Venetia alcançava Cate. - Qual é o problema agora? - perguntou Venetia, dando o braço para a irmã. - É tão triste... Ela parece tão magoada... - Magoada? - Camilla deu um sorriso cínico. - O mais provável é que esteja com medo. Ela precisa de Tom e sabe disso. - Você diz isso - falou Cate, com a testa franzida -, mas ela acabou de sair para uma conversinha secreta com Michael Sarkis. Camilla pareceu preocupada. - É melhor ela não se envolver com um sujeito desses. Pelo que ouvi dizer, ele é praticamente um criminoso. Boatos de tráfico de armas e de todo tipo de coisa. As três moças se entreolharam. - Você a conhece. As três conheciam. Serena tinha chegado à casa de barcos, uma pequena construção de madeira e estuque na margem do outro lado do lago Huntsford. Abriu a porta com um rangido, afastou uma teia


de aranha com a mão e olhou ao redor para sentir o terreno, com medo de ratos ou de aranhas. Lá dentro havia um silêncio lúgubre, mas a suave pintura amarelo-clara do interior e as cadeiras estofadas de palha em frangalhos com vista para o lago davam ao lugar uma sensação de calma. Ela tirou um pouco da poeira do assento à janela, acomodou-se e discou o número que Janey lhe dera. Suas unhas golpeavam os botões de celular, pois tinha ficado brava com a reação de Cate ao nome Michael Sarkis. Totalmente competitiva, Serena partia do princípio de que todo mundo era assim e, por mais que as adorasse, tinha certeza de que as irmãs não queriam que ela subisse nem um pouco mais no pau-de-sebo social. Ficou olhando para o lago, que tremeluzia em tons escuros de prata à sua frente enquanto o telefone tocava. Seus pensamentos se perderam em Tom e em como ela queria magoá-lo por fazê-la se sentir tão tola, tão humilhada. A voz era masculina e profissional, mas logo se suavizou quando Serena disse quem era. - Serena. Como vai, querida? - ronronou ele, em tom de brincadeira. - Vi as fotos no Le Monde. Não faço idéia de como conseguiram imagens do La Mamounia. Devia haver algum fotógrafo usando uma objetiva nas docas. Apesar de secretamente satisfeita por sua história ter se tornado internacional, Serena adotou um ar de ultraje. - Tudo bem - disse ela, suspirando, num tom que indicava que as coisas estavam muito longe de bem. - Mas muito obrigada pela carona até Londres. Não posso nem dizer que alívio foi simplesmente desaparecer depois de tudo o que aconteceu. Não que eu possa realmente voltar para casa. Tive que vir ficar com o meu pai. - Eu sei - disse Michael com firmeza -, e foi por isso que liguei. Sei que você deve ter uma centena de lugares para fugir dos paparazzi, mas acredito que a minha mansão em Mustique seria perfeita. É muito, muito reservada. O coração de Serena de uma cambalhota no peito. Ela tinha ouvido dizer que ele tinha uma das casas mais impressionantes da ilha: maior do que a de Tommy Hilfiger, mais bonita do que a antiga mansão da princesa Margaret. - O que acha disso? Parece bom? Serena fez uma pausa, tentando não parecer tão animada. - É uma idéia adorável. - Que bom. Quero oferecê-la a você pelo tempo que precisar. Vá, leve uma amiga, relaxe, faça alguns tratamentos de beleza. Pode até ser que se divirta. - Tem certeza? - disse ela meio que sussurrando, em tom de flerte. - Claro que tenho certeza. Vai ser um prazer. Minha secretária vai ligar para você amanhã para dar os detalhes. Ciao, Serena. A linha ficou muda com um clique e Serena largou o corpo em cima das almofadas. Pensou em Tom, e seus lábios se apertaram em uma expressão amarga, mas então, um segundo depois, abriram-se em um sorriso vitorioso. Ela saiu correndo da casa de barcos, o mais rápido que suas botas de borracha permitiam, saltitando alegremente ao encontro das irmãs. - Então pronto - anunciou ela, apertando os braços em volta do poncho enquanto sentia a ressaca se abater sobre ela com tudo. - Quem está a fim de ir para Mustique?


7 A casa de Venetia e Jonathon von Bismarck em Kensington Park Gardens era o tipo de mansão em estilo palaciano que os transeuntes paravam para olhar, imaginando quem morava ali dentro. Mas no interior de suas paredes, os proprietários pareciam completamente alheios a sua boa sorte. O clima era quieto, opressivo; o único som que quebrava o silêncio desconfortável era o farfalhar das páginas do Financiei Times de Jonathon. Dando golinhos delicados no copo de suco de maçã recém-preparado por Christina, a empregada polonesa, Venetia olhou para o marido com tristeza e ressentimento. Estava acostumada com o fato de o homem da casa ser urna entidade fria e desapegada. Quando era menina, passavam-se dias e dias em que o único contato que ela tinha com o pai era quando se esgueirava para dentro do escritório dele para dar boa-noite, torcendo com todas as forças para que ele gritasse com ela por infringir alguma de suas regras arbitrárias. Pelo menos assim, ele lhe daria atenção. Mas agora ela vivia com outro homem, mais uma vez na mesma casa, mas tão distante que daria no mesmo se vivessem em cidades diferentes. E ainda dizem que a gente acaba se casando com o pai, pensou Venetia. - Então, quando é que precisamos partir? - disse Jonathon afinal, fechando o jornal. - Se você vai, pelo menos deve ir de bom grado - disse a esposa, servindo-se de urna xícara de café colombiano escuro do bule. Jonathon ergueu os olhos bruscamente. Ele era um dos melhores administradores de fundos multimercados de Londres e não estava acostumado a receber ordens. Vestindo toda a indumentária para o trabalho, seu terno azul-marinho Kilgour, as abotoaduras de ouro brilhando por baixo das mangas compridas do paletó, ele olhou para a mulher com seu penhoar de seda cor de creme claro e soltou uma gargalhada irritada. - Não aceito o seu comentário, porque parece que você ainda nem começou a se arrumar respondeu ele, num tom ácido. - Você sabe que eu estou com pressa hoje de manhã. Tenho uma reunião atrás da outra a tarde inteira e, francamente, tenho coisa melhor a fazer do que ficar aqui à toa com você. Venetia foi para trás da cadeira dele para dar-lhe um abraço pelas costas e deu um beijinho suave na nuca dele. - Não faça assim, querido - disse com suavidade. - Só precisamos chegar às dez e, de verdade, eu não vou demorar. Ele a repeliu e empurrou a cadeira para trás ruidosamente sobre o chão de cerâmica, pegando o celular de cima da mesa com um gesto abrupto. - Tem certeza de que eu preciso ir? - perguntou ele com frieza, o celular pressionado contra a orelha. - Que tal eu pedir para Gavin deixar você lá a caminho do escritório? Venetia sentiu o jorro tão conhecido de lágrimas quentes se acumulando atrás de seus olhos. Estava se sentindo terrivelmente vulnerável naqueles dias, e a menor das críticas ou grosserias da parte de Jonathon parecia atingi-la em cheio. - Você tem de ir. Eu preciso de você - sussurrou ela. - Você precisa de mim? - Os cantos da boca de Jonathon se viraram para cima de leve. Ele ansiava por controle e estava aproveitando aquele minuto de poder sobre a mulher. - Muito bem. Está certo. Bom, então ande logo, vá se vestir. Ela o observou se afastar pisando duro na direção da sala de visita. Quando ele desapareceu, Venetia repousou a testa nos braços. Não sabia por que estava tão incomodada. Estava acostumada com as interações frias e até mesmo geladas entre eles, com seus longos períodos de ausência de casa, com a falta de apoio, com o desprezo total


por seus sentimentos. Não foi exatamente o caso de a lua-de-mel ter terminado depois de um ano e meio de casados: para ser sincera, a coisa nunca tinha nem começado. Ela nunca sentira aquela ligação, aquela excitação, a proximidade que compartilhara com Luke Bainbridge, o namorado que era fotógrafo com quem ela havia ficado por cinco anos, mas que a abandonara de maneira abrupta pouco antes de ela conhecer Jonathon. Depois de Luke ter se esgueirado para longe dela como uma sombra, Venetia tinha ficado desesperada para arrumar alguém que a protegesse e cuidasse dela. E no fundo do poço do desespero e da solidão, Jonathon aparecera, apresentado a ela por Oswald, ninguém menos. E ele meio que se encaixara em suas expectativas. Era bonito, quase gostoso, admitiu, pensando em seus belos traços ossudos e no cabelo loiro que se encaracolava por cima do colarinho da camisa. Mas não era companheiro. Ela podia estar casada, mas ultimamente se sentia mais frágil e mais isolada do que nunca. Venetia percorreu o corredor aos tropeções com seus chinelos de couro cor-de-rosa, passou pelos enormes arranjos de rosas vermelhas e depois subindo a escadaria até seu quarto. Entrou no banheiro da suíte e, parada na frente do espelho comprido ao lado do chuveiro, deixou o penhoar deslizar de seus ombros cor de leite. Ficou olhando para seu próprio reflexo e passou os dedos pelo pescoço. Não está assim tão enrugado, pensou, passando a ponta dos dedos desde a bochecha até o cabelo loiro-champanhe curto. Sua pela era bem lisa para uma mulher de 37 anos, pensou: não tinha muitas rugas, marcas de expressão nem sinais de Botox, diferentemente do rosto paralisado de metade das senhoras que almoçavam na região de Knightsbridge. Ela estava bem, ainda era bonita. Não que Venetia se importasse em envelhecer. Em comparação com a maior parte das pessoas, ela sempre fora velha para sua idade, em consequência de sempre ter sido a figura materna da família; quase se sentia contente por estar chegando aos 40. Era como um marco reconfortante. Abaixou as mãos para acariciar as curvas da barriga nua. Se pelo menos tivessem filhos, sua vida seria exatamente do jeito que ela queria. Um bebê certamente suavizaria as variações de humor descomprometidas de Jonathon e lhes forneceria o elo de que tanto precisavam. Contudo, apesar de um ano de tentativas e de um quarto de bebê adorável, em tons de lilás, prontinho no andar superior da casa, a residência continuava sem o som de passinhos incertos. Ela já não era mais exatamente uma garotinha, mas conhecia várias amigas que tinham engravidado já perto dos 40 sem muitos problemas, de modo que estava na hora de considerar questões de fertilidade. Havia muito já perdera a esperança de que teria uma família grande e ruidosa para levar para passar os fins de semana em Huntsford, com crianças e cachorros enchendo seu carro 4x4. Mas será que um único filho era pedir demais? Saindo do banho, caminhou até a cama, onde já tinha colocado uma roupa por cima dos refinados lençóis de linho da Frette. Hábitos antigos são difíceis de abandonar, pensou, sorrindo enquanto se vestia, ao lembrar-se da época em que trabalhava como assistente de moda na Vogue, quando passava o tempo todo no acervo de moda passando e pendurando as lindas roupas de marca. Fazia mais de uma década que voltara seus olhos aguçados e criativos da moda para a decoração, mas ainda ficava animada ao manusear tecidos, camisas e sapatos e combiná-los para obter um efeito delicioso. - Está pronta? - ribombou a voz de Jonathon do pé da escada. – Gavin chegou. Venetia vestiu o sobretudo grosso de cashmere, pegou a bolsinha de pele de cobra e correu para o Jaguar cinza-grafite, no qual Jonathon já estava acomodado no banco de trás. - Vamos - murmurou Jonathon para Gavin, o motorista. – Pegue Knightsbridge, vai ser mais rápido.


A mão pálida e levemente peluda dele repousava sobre o banco de couro cor de creme, o pequeno anel de ouro com brasão brilhando ao sol; Venetia pegou-a para apertá-la. Ele esticou a mão até a bochecha dela e fez um carinho com o dedo indicador. - Desculpe, querida, sinto muito. O gesto a surpreendeu. Depois de quase dois anos de casamento, ela ainda não se acostumara às emoções quente e frias dele. Tinham a maior discussão, e quando ele tomava consciência de que tinha exagerado, jogava-lhe uma isca de afeto para que ela continuasse na linha. Ela tinha certeza de que aquela era alguma técnica de gerenciamento que ele aprendera em alguma de suas escolas chiques de administração. Venetia virou a cabeça para olhar a paisagem através da janela, a fim de impedir que Jonathon visse as lágrimas em seus olhos. O trajeto até o consultório da doutora Vivienne Rhys-Iones, a melhor ginecologista da Europa, levou menos de meia hora. O prédio tinha fachada branca de estuque normal, e atrás da ampla porta vermelha, a atmosfera era sóbria e formal, mais com jeito de biblioteca do que de clínica médica. Venetia entrou com uma sensação de terror. Tinha certeza de que as notícias seriam terríveis. - Senhor e senhora Von Bismarck, bom dia - disse uma loira bonita de rabo-de-cavalo sentada à recepção. - Podem subir até a sala da dra. Rhys-Jones. O casal subiu a escadaria larga até o primeiro andar, onde foram recebidos pelo sorriso apagado de uma senhora baixa e de cabelo grisalho sentada atrás de uma mesa grande. -Venetia, não é mesmo? E este deve ser o seu marido. - Jonathon - respondeu ele com brusquidão, estendendo a mão. - Recebi anotações sobre você do Dr. Patrick - disse Vivienne lentamente, examinando com atenção um maço de papéis à sua frente. - Mas é melhor começarmos do começo. Enquanto a médica olhava com curiosidade para o casal com uma sobrancelha um pouco erguida acima do aro dos óculos, Venetia chegou à conclusão de que gostava da abordagem cheia de confiança daquela mulher. A Dra. Rhys-Jones era o segundo especialista em fertilidade que ela consultava. O primeiro, o Dr. Ebel, havia ficado alegre demais para o gosto de Venetia ao sugerir fertilização in viito. Jonathon, por sua vez, ficara ofendido com as insinuações de Ebel de que a infertilidade podia ser culpa dele. Como o médico tinha a ousadia de pedir que ele fizesse um exame de contagem de esperma, naquele cubículo asqueroso, com aquelas revistas pornográficas pegajosas? Jonathon poderia ter lhe falado a respeito da tradição de família Von Bismarck de produzir uma bela linhagem de herdeiros homens, embora talvez não tivesse tanta facilidade para falar a respeito de Suzie Betts, sua ex-secretária... Como ela podia ter sido tão idiota? Ele só queria sentir os saltos dela passeando por suas costas de alto a baixo em um hotel de Mayfair uma ou duas vezes por semana. Mas a putinha tinha engravidado. O preço tinha sido um aborto para Suzie e 50 mil libras que saíram do bolso de Jonathon para que ela ficasse quieta. Venetia respirou fundo e começou a relatar o histórico deles em suas tentativas de ter filhos, tentando superar o acanhamento de revelar detalhes tão íntimos e pessoais. O número de vezes que transavam por semana. O histórico familiar de fertilidade, seu ciclo menstrual que, sob o estresse de não conseguir engravidar, tinha virado quase nada nos últimos três meses. - O seu ciclo menstrual é o que mais me preocupa – disse a Dra. Rhys Jones, batendo no arquivo de leve com a parte de trás de um lápis. – Principalmente porque você disse que anda irritada, sofrendo com os hormônios, tendo insônia...


- As mulheres, hein? - disse Jonathon, que foi ignorado. - Eu sei que você está à procura de respostas para saber como pode engravidar, senhora Von Bismarck, mas neste momento estou mais interessada em saber por que não consegue. - Não sou eu - disse Jonathon, repentinamente irritado. - Não tem nada de errado com a minha contagem de esperma. - Parece que não - disse a Ora. Rhys-Jones, folheando as anotações. - o que acha que pode ser? - perguntou Venetia, ansiosa. A médica deu um sorriso fraco e tirou os óculos de cima do nariz. - A infertilidade nas mulheres, como o dr. Ebel deve ter dito, pode ser resultado de muitas coisas. Fatores hereditários, infecções virais, muitas coisas. Quero fazer alguns exames de sangue, medir seus níveis hormonais. E não podemos descartar a possibilidade de você estar entrando em menopausa precoce. Venetia sentiu suas entranhas se contorcerem. - Menopausa? Isso nunca foi mencionado como possibilidade antes. A dra. Rhys-Jones olhou para ela com ternura. - Geralmente não é. Alguns médicos, normalmente homens, devo dizer, não costumam considerar menopausa prematura como causa potencial de infertilidade, mas cerca de dois por cento das mulheres têm a menopausa antes dos 40 anos, então é algo a ser considerado. Algumas até a tem antes da puberdade - concluiu ela, como que para sugerir: "Olhe, poderia ser pior." Venetia sentiu as mãos tremerem enquanto uma enxurrada de emoções invadia sua mente. - E se for... posso ter filhos? - Um ultra-som de alta resolução pode mostrar se você ainda tem óvulos sobrando, mas é preciso se preparar: pode ser que só lhe restem alguns meses para tentar conceber. Se não houver mais óvulos, então a concepção natural, obviamente, é impossível. Como tenho certeza que você sabe, a fertilização in vitro exige o seu óvulo e o esperma do seu marido, então isto também estará descartado. Existe a opção de doação de óvulo - prosseguiu ela, lentamente. Jonathon soltou uma gargalhada cínica. - O óvulo de outra pessoa? Mas é claro que não, certo, Venetia? Ambas as mulheres se voltaram para olhar para ele. - Depende do quanto você quer ter filhos, senhor Von Bismarck. Fora da clínica, Jonathon e Venetia ficaram parados na rua, onde um vento cortante fazia suas bochechas formigarem. Jonathon fez um movimento para que Gavin abrisse a porta do carro para ele. - O que vamos fazer? - perguntou Venetia, olhando para o marido em busca de respostas. Ele olhou para ela com desprezo. - Você sabe que as pessoas esperam que nós tenhamos filhos. O que vou dizer a elas? Que minha mulher é incompetente? Venetia ficou olhando para ele com raiva; dessa vez seu incômodo tinha sido sobrepujado pela fúria. - Incompetente? - rosnou ela. - Eu não sou uma das suas funcionárias. - Imagino que você já soubesse disso antes de nos casarmos - respondeu Jonathon com frieza, já com um pé dentro do carro. - Você fica me forçando a ir a essas consultas ridículas, fazendo com que eu sinta que este problema tem alguma coisa a ver comigo.


Venetia sentiu-se tonta, parecia bêbada: estava tão estupefata que mal conseguia proferir palavras. - Você vai mesmo para o escritório? - sussurrou ela. Ele entrou no carro. - Eu já devia estar lá há duas horas. Quer que Gavin a deixe em casa? Ela mordeu a parte interna dos lábios com força. Não choraria na frente dele. - Então, você vai mesmo...? - repetiu. - Não vamos começar de novo. - Mas temos coisas sobre as quais conversar. Jonathon virou-se de frente para ela, seu rosto impassível e cruel. - Conversar sobre o quê? Doação de óvulos? Não vou aceitar que o óvulo de alguma vagabunda seja transplantado para dentro da minha mulher só para ter filhos. Temos que pensar na família - disse ele, esforçando-se para controlar a voz. - Esta é a nossa família, Jonathon. - A linhagem da família. Venetia sacudiu a cabeça, cheia de raiva. - Caramba, Jonathon, você parece a porcaria de um nazista. - É assim que eu me sinto. Então, você vai entrar no carro? Ela ergueu a gola do casaco mais para cima do pescoço e negou com a cabeça. - Por favor, Venetia. Recomponha-se. - Jonathon bateu a porta e o vidro fumê da janela elétrica baixou. - E não se esqueça de que William e Beatrice vão lá em casa hoje à noite para um drinque. Você pode, por favor, se assegurar de que vai estar de melhor humor? Quando o carro se afastou, Venetia ficou lá completamente parada, deixando as lágrimas escorrerem lentamente pelo rosto.


8 O Escritório de Advocacia Cornwall localizava-se em um edifício georgiano austero e imponente em Lincoln's Inn Fields, uma praça impecável de Londres que fedia a valores antiquados e respeitabilidade austera. Lá dentro, no entanto, no escritório de Charles McDonald, advogado representante do governo, a atmosfera era de festa. Homens grisalhos com ternos nos moldes de Savile Row estampavam sorrisos abertos no rosto e os copos tiniam, um raro intervalo na sobriedade usual de uma das melhores firmas de direito de Londres. Charles McDonald bateu no copo de cristal com água tônica com a parte de trás de uma colher de prata e limpou a garganta. - Não preciso nem dizer que mês produtivo este escritório teve – disse ele aos colegas com seu fortíssimo sotaque de Edimburgo. - Tão produtivo que eu considerei falta de educação não encerrá-lo com bebida, apesar de eu só me juntar a vocês tomando refrigerante. Risadinhas educadas espalharam-se pela sala. Os advogados, principalmente os que encabeçavam escritórios de advocacia, não eram conhecidos por seu senso de humor, de modo que qualquer frivolidade suscitava uma quantidade desproporcional de risadas. - Gerry e David - disse ele, fazendo um sinal com a cabeça na direção de um homem roliço com rosto corado e um homem menor e mais magro com óculos em formato de lua ao seu lado -, a vitória no caso de calúnia de Petersham foi fantástica. Saibam que na semana que vem vai haver uma entrevista com Gerry na página três da Lawyer. Mais risadas quando Charles ergueu o copo mais uma vez. - Gostaria também de aproveitar esta oportunidade para parabenizar a celebridade residente do Escritório de Advocacia Cornwall, senhorita Camilla Balcon. A vitória no caso Kendall contra Simon foi maravilhosa. Sinceramente, achei que não daria para vencer. Parabéns, Camilla. Todos os homens da sala viraram-se para a loira bonita que estava no canto, sempre felizes com uma oportunidade de olhar para ela. Camilla Balcon assentiu com a cabeça educadamente, e alisou a saia de seu tailleur justinho da Gieves & Hawkes para parecer ainda mais apresentável a seu público. Enquanto bebericava seu champanhe, ficava se perguntando se esse reconhecimento finalmente daria lugar a casos de mais importância e prestígio para ela defender. Estava ficando impaciente para chegar ao topo da árvore jurídica. Para qualquer outra mulher de 29 anos da Ordem, a trajetória profissional de Camilla Balcon seria avaliada como estratosférica. Formada pela faculdade Balliol de Oxford, entre as cinco melhores alunas do curso de direito de seu ano, ela conseguira emprego em um dos escritórios de advocacia mais renomados de Londres. Só no último ano, tinha sido advogada auxiliar dos principais profissionais do escritório em três casos importantes de fraude. Sua reputação como interrogadora astuta e brutal só crescia, e, em consequência, seus honorários anuais estavam chegando à casa das centenas de milhares. Nada mal para alguém que frequentemente era desprezada como uma gostosa aristocrática. Mas, ainda assim, não estava lá muito bom para Camilla, que passara toda a vida arquitetando sua próxima conquista, seu próximo feito brilhante. Esse era seu legado como terceira filha de uma família de muitas conquistas. Ou você desistia antes mesmo de tentar ou se esforçava até não poder mais para superar todo mundo. E Camilla queria brilhar. Virando-se para olhar para os colegas, Camilla refletiu que talvez eles fossem o motivo pelo qual sua carreira estava andando mais devagar do que gostaria. O escritório de advocacia comercial em que trabalhava tinha uma reputação fantástica, mas eram tantos os


egos e os talentos no mesmo prédio que era difícil se fazer notar; subir na carreira era ainda mais penoso. Ela tinha noção de que, embora Charles McDonald tivesse sido capaz de elogiá-la durante a comemoração alcoólica de sexta-feira à noite, aquilo não passava de um ato para apaziguar a única integrante feminina do escritório. Um homem alto e magricela mas bonito, aproximou-se dela com uma garrafa de Moët. - Estou vendo que o copo de alguém precisa de um refil - disse Matt Homby, um dos escriturários seniores do escritório, com o rosto corado. - Charles está servindo tudo que tem de mais fino, então é melhor a gente beber tudo mesmo. - Só porque é de graça não significa que precisamos beber tudo – disse Camilla, erguendo o copo com um sorrisinho coquete. Ciente de que Matt, um rapaz de 25 anos do East End, apaixonara-se por ela desde que entrara para o Escritório de Advocacia Comwall, ela não queria incentivá-lo. Mas ele tinha um rosto gentil e bonito, salpicado de sardas, e ela achou uma gracinha ele considerar champanhe uma coisa assim tão fina. - Vi você naquelas páginas de festa do Evening Standard ontem à noite - prosseguiu Matt, bebendo o Moét com goles nervosos. - Então, o que você vai fazer neste fim de semana que possa ser mais glamouroso do que esta noitada? Ela riu e bebericou o champanhe. - Tenho um monte de convites para coisas... não estou ansiosa por nenhuma delas. Aliás, daqui a umas duas horas eu deveria estar em um jantar de Charles e Nigella. A comida vai ser fantástica, mas nada me parece melhor neste momento do que ir para a cama com um vídeo e uma comida chinesa. - Por que você não me leva junto e deixa que eu decida qual é o melhor programa? Ela sorriu, incapaz de se segurar. - Para onde? - ronronou. - Para a casa de Charles e Nigella ou para a minha? - Opa, sua safadinha. Está dando em cima de mim? Ela deu um tapinha no braço dele e pousou a taça na mesa. - De jeito nenhum. E, de todo modo, acho que Nat teria um ataque se eu aparecesse com você em uma noite de diversão. Matt tentou sorrir ante a menção de Nathaniel Montague, que só tinha encontrado duas vezes, mas que via regularmente fazendo careta nas páginas diárias do Daily Mail. - Você tem certa razão - disse Matt, depois riu completando sua taça até a borda e enchendo a boca com biscoitos de arroz japoneses. - Ele me faz cagar de medo. Quando Matt desapareceu "para pegar mais uns salgadinhos", Camilla sentiu uma presença alta atrás de si. - Vai ficar mais um pouco ou já vai cair fora? - perguntou Charles McDonald, de um jeito que era menos uma pergunta e mais uma exigência. - Só tenho compromisso lá pelas oito, por quê? Ele colocou a mão de leve no ombro dela e a conduziu em direção à porta com ar conspiratório. - Podemos ir para algum lugar mais calmo? - perguntou. – Preciso conversar com você sobre algo que pode ser interessante. Camilla sentiu seu estômago revirar enquanto desciam a escada até a sala dela no segundo andar. Esta conversa tem de ser a respeito de melhorar a minha carga de trabalho, pensou. Charles parou Camilla à porta e pegou o casaco Armani dela do cabideiro. - Acho que precisamos sair daqui - disse ele, segurando o casaco dela. - É um assunto confidencial. As paredes têm ouvidos e tal.


O Pen and Wig, escondidinho em uma rua lateral atrás de Lincoln's Inn Fields, era o lugar perfeito para a happy hour de advogados. Obscuro e dickensoniano, suas banquetas eram forradas de veludo vermelho desbotado, enquanto caricaturas de juízes corpulentos em ação no tribunal enfeitavam as paredes. Estava cheio de advogados matando tempo antes de voltar para esposas e filhos em mansões vitorianas em Wandsworth Common. Não era exatamente o melhor lugar para uma conversa em particular, pensou Camilla enquanto Charles pegava um gim com tônica para ela no bar. Ainda assim, se ela estava disposta a receber mais casos ou passar para uma das salas de mais prestígio do andar superior, provavelmente era melhor que o fizesse longe dos ouvidos dos outros advogados da firma. - Muito obrigada por ter reconhecido o meu trabalho na festa – disse ela, impaciente como sempre para ir direto ao assunto. - Espero que perceba que estou pronta para passar para a equipe principal em breve. Charles fez uma pausa e pousou seu copo de suco de laranja na mesa com cuidado. - Na verdade, não era sobre o escritório que eu queria falar com você - começou, fixando Camilla com o olhar e deixando no ar um silêncio dramático. Era uma técnica que Camilla já o vira usar no tribunal, quando estava pronto para aniquilar alguém durante o interrogatório. - Camilla, você é quase com certeza a estudante de direito mais ambiciosa que eu já entrevistei para um estágio - disse Charles. - E, pode acreditar, muitos advogados entusiasmados já entraram pela porta do Escritório de Advocacia Comwall. - E por acaso todo mundo não é superambicioso aos 22 anos, quando está tentando entrar em uma firma boa? - Ela sorriu, feliz por não ter sido levada até lá para uma cantada. - Acho que sim. Mas sempre achei isso estranho no seu caso, com o seu background. Já tivemos muitos advogados que foram alunos de escolas particulares e que estudaram em Oxbridge na nossa firma, mas sempre tive dúvida quanto a aceitar aqueles que realmente eram privilegiados. - Charles sussurrou a palavra "privilegiados". - Muitos deles são os maiores folgados. – Fez uma pausa. - E foi por isso que eu hesitei em contratá-la, Camilla. Camilla começou a se perguntar onde aquela conversa ia dar e ficou fazendo as pedras de gelo no fundo do copo rodarem e rodarem. - Você se lembra de quando eu a levei para almoçar na sua primeira semana? - perguntou Charles. Camilla se lembrava muito bem. Tinham ido ao Wilton's, em Belgravia. Ela era a única mulher no restaurante e comeu faisão, apesar de saber que deveria ter pedido peixe. Foi a primeira vez que ela se sentiu pequena e um pouco fora de seu ambiente. Um pouco como agora, aliás. - Você se lembra de que Michael Heseltine estava sentado no reservado ao lado e você ficou toda animada? - perguntou Charles. Camilla sorriu. - Acho que eu até dei um oi. - Acho que, na verdade, talvez você estivesse um pouco bêbada. Não se preocupe - disse ele dando uma risadinha e erguendo o copo de suco de laranja. - Beber no almoço também nunca deu muito certo para mim. Mas eu me lembro de ter pensado na ocasião: Por que esta moça está tão animada em ver Heseltine, se já deve ter conhecido dezenas de tipos políticos de grande importância por causa da família dela? Acho que, na época, seu pai era líder da Câmara dos Lordes, não era? Você estava com um olhar aguçado e me disse que Heseltine certa vez dissera que ser líder nos debates em Oxford tinha sido o primeiro passo para se tornar primeiro-ministro. E que foi por isso que você tomou a decisão de ser a líder em Oxford, e conseguiu.


- Na verdade, acho que eu disse que era uma provação que precisava ser suportada lembrou-se Camilla, pensando nos meses de planejamento maquiavélico necessários para assegurar o posto de prestígio em Oxford, e depois o comparecimento semanal a um debate tedioso atrás do outro. - E, de todo modo - prosseguiu ela -, as coisas não deram assim tão certo para ele, não é mesmo? O plano de Oxford não foi muito bem-sucedido. - Ele não foi assim tão mal - disse Charles em tom sério. - Ele se tornou vice-primeiroministro. E acho que você, Camilla, poderia se dar tão bem quanto ele. Camilla parou e ficou olhando para ele com muita atenção. - Política? Mas e o direito? - Arre, você quer mesmo ser advogada representante do governo? – disse Charles em tom de desprezo. - Você acha que esse seria um fim de carreira satisfatório para você? Camilla sabia que tinha de agir com muito cuidado. Mas a verdade era que o direito não despertava nela nenhum fogo interior. Sim, ela era boa. Tinha a disciplina e o raciocínio inteligente e assertivo para chegar ao topo da profissão, e uma vez que percebia ser boa em algo, não parava até se tornar a melhor possível. Mas Camilla queria mais, muito mais. - Isto é algo em que já pensei - respondeu com sinceridade. – Mas tenho meu trabalho aqui e ainda não estou nem com 30 anos. - Nem me faça começar a falar de idade - disse Charles, dando uma risada. - Você sabia que eu fui candidato há, meu Deus, trinta anos? Ela sacudiu a cabeça. - Achei que o direito era a sua vida. - Muitos advogados são políticos frustrados ou fracassados – disse Charles, rindo. - Eu sou um dos fracassados. - Então, o que aconteceu? Você teria sido excelente. - Eu tinha 28, 29 anos quando me candidatei ao Parlamento. Recebi uma indicação adequada dos Tories, mas eles me fizeram lutar por uma cadeira impossível de conquistar no sul do País de Gales que era de um professor de Merthyr Tydfil fazia vinte anos. Eu não tinha a menor chance com o meu sotaque de Edimburgo. - Começou a sacudir a cabeça com a lembrança. - Mas não posso imaginar que você tenha desistido assim com tanta facilidade - disse Camilla, inclinando-se para a frente, fascinada e animada ao mesmo tempo. Charles deu de ombros. - Bom, desisti. Estava ganhando bem com os honorários, o meu nome estava sendo mencionado para ocupar um dos postos mais importantes da firma, e isso é bem bacana quando se é casado e se tem um par de filhos para criar e um financiamento imobiliário gordo para pagar. A verdade - disse ele lentamente - é que ficar quietinho no direito é algo muito tentador. Quem vai querer trocar um salário anual de 500 mil libras por um de 50 mil como membro do Parlamento? Eu não quis. E talvez hoje me arrependa. Camilla olhou para a expressão triste no rosto enrugado de Charles e se perguntou como era possível um homem de sucesso ter uma ambição assim tão grande sem realizar. E, de repente, sentiu um desespero, um desejo de atingir aquele ápice, aquele ponto mais alto do qual Charles se arrependia tanto de ter desistido. - Sua esposa não é diretora de uma associação conservadora em algum lugar? - perguntou Camilla. - Em Esher - respondeu ele. - Você conhece Jack Cavendish? Ela assentiu de novo. - Bom, meu pai conhece. É o membro parlamentar Tory de Esher, certo?


- É, mas quem pode dizer quanto tempo ainda vai ser? - disse Charles com suavidade. - Há um rumor de que Jack vai se retirar nas próximas eleições, e isso pode acontecer rápido, em maio do ano que vem. - Esher é uma cadeira garantida? - Não muito. A maioria dele se reduziu a uns dois mil. Mas se ele se retirar agora, o partido vai ser inundado de currículos. É uma cadeira maravilhoso para qualquer um. Rico, perto de Londres... Camilla mal conseguia conter sua animação ao ver o rumo que a conversa estava tomando. - Que tipo de candidato o partido está procurando? - perguntou ela, tentando manter o semblante calmo. - Alguém capaz de vencer a campanha. Alguém como você, Camilla. - Como você sabe que eu sou conservadora? - Ah, querida! - Charles riu, repentinamente acanhado. - Tal pai, tal filha. A verdade era que Camilla era politizada sem ter qualquer afiliação partidária forte. Algumas de suas opiniões pendiam para a direita, outras eram obviamente de esquerda. Mas na cabeça dela, política não tinha a ver com planos de ação, e, de todo modo, havia muito pouca coisa entre os três partidos principais. Para ela, política tinha a ver com poder. Era a idéia de respeito e de autoridade que a excitava. O glamour de seus saltos batendo contra os corredores de Westminster, a credibilidade que obteria quando comparada a Cate e suas revistas refinadas ou a Venetia e suas casas de sociedade com decoração exagerada. E o mais importante: para o mundo lá fora, ela não seria mais apenas um satélite no universo salpicado de pó de estrelas de Serena. - Eu votei nos Tories na última eleição - disse ela, mas sem completar: "Só que foi por pouco." - Então, você tem tudo o que é necessário para vencer a campanha - assentiu Charles, tirando um estojo de couro de charuto do bolso de cima. - Você se importa se eu fumar? Camilla sacudiu a cabeça. Uma de suas primeiras lembranças era o cheiro pesado de fumaça de charuto e tweed úmido; estava acostumada com aquele aroma pegajoso e amadeirado. - Você tem princípios políticos, tem determinação. E tem perfil. Nunca despreze o poder da celebridade. - Ele sorriu. - Olhe só para Boris Johnson e Glenda Jackson. E, certamente, seu pai poderia providenciar um certo apoio para você. Camilla duvidava. O que seu pai mais queria era retomar à Câmara dos Lordes em uma das cadeiras eletivas, mas tinha sido derrotado nas duas últimas eleições. Ela se perguntou como ele engoliria a notícia de que Camilla disputaria uma vaga na Câmara dos Comuns. Não muito bem, desconfiava. - Tem certeza de que eu não sou um pouco nova? - Não. O partido precisa de uma injeção de juventude e frescor. Precisa modernizar, completamente, da maneira como os Novos Trabalhistas fizeram na década de 1990, e o processo já começou. - Tem certeza de que eu posso me candidatar? - Você é filha de um barão. Tudo bem. Ela fez uma pausa, mais confusa do que achou que ficaria. - Se eu decidir que quero fazer isto, e se Jack Cavendish anunciar sua aposentadoria, o que faço a seguir? - Acredito que você não esteja na lista dos candidatos aprovados do Escritório Central. Ela sacudiu a cabeça.


- Bom, este é o primeiro passo. - Obviamente, é algo em que eu preciso pensar com cuidado – disse ela, passando o polegar para cima e para baixo na superfície da mesa. Então, ergueu os olhos e encontrou o olhar astuto de Charles. - Mas acho que não faz mal nenhum dar uma sondada, não é mesmo? sorriu. - Vou fumar em homenagem a isso - respondeu Charles, tragando seu Cohiba gordo e marrom e soprando um anel de fumaça perfeito no ar enquanto um advogado de rosto rechonchudo atrás deles começava a tossir. Camilla começou a sorrir.


9 A mansão de Michael Sarkis em Mustique, La Esperanza, era o oposto completo dos hotéis de luxo cafonas que fizeram sua fama. Empoleirada na ponta de um promontório coberto por vegetação frondosa que se projetava para as águas enevoadas azul-turquesa do Caribe, a casa era enorme, em estilo balinês, com uma piscina verde-jade daquelas que parecem não ter fim, um laguinho de carpas koi todo enfeitado, cheio de lírios d'água, e um terraço enorme com vista para o mar. - Não dá para acreditar que já faz dois dias que estamos aqui – suspirou Serena, mordiscando uma salada de lagosta enquanto se balançava em uma enorme rede de algodão azul no terraço, espiando as palmeiras. - Hoje à noite tem o coquetel da Cotton House - disse Venetia, olhando por cima dos óculos de sol Valentino. - Vamos dar uma passada lá para tomar alguns martínis? Ou você continua oficialmente escondida? Serena largou a tigelinha de salada e afofou a almofada macia de linho embaixo da cabeça. - Querida, o motivo todo de ter vindo para Mustique é evitar os turistas, e não ir atrás deles - respondeu. - Tenho certeza que você compreende e sabe que aprecio todo o seu apoio. - Ah, e eu aprecio muito estar aqui. Você é que sabe. - Venetia riu, tomando um gole de água mineral. - A mansão já é adorável sem mais nada. - Dá para acreditar que Cate se recusou a vir? - disse Serena. – Que babaca ingrata. Não que você tenha sido minha segunda opção nem nada - completou, rapidinho. - Ela não é ingrata - disse Venetia com um sorriso vago. - Mas você sabe que ela sempre se sente culpada quando se diverte. Para falar a verdade, acho que desta vez ela está mesmo superocupada. Falei com ela hoje de manhã, porque achei que pudesse estar um pouco deprimida, e ela disse que estava trabalhando em uma ideia de revista que queria tentar lançar. - Bom, é típico, não é? - desdenhou Serena. - Enquanto está desempregada, podia fazer alguma coisa útil, como ir falar com Tom para mim, em vez de fingir que é Donald Trump. Ela é impossível de tão egoísta. Venetia sorriu para si mesma. O coração de Cate era tão grande quanto o ego de Serena, mas ela sabia que não adiantava dizer nada. Cansada da cavalgada da manhã - as duas tinham pegado dois lindos cavalos castanhos do Centro Equestre de Mustique naquela manhã para trotar pela praia de L'Ansecoy -, ela se recostou e abriu uma biografia histórica, empurrando os óculos escuros para bem perto dos olhos, a fim de evitar que o brilho do sol nas páginas a ofuscasse. Tentou reprimir um sorriso, sentindo-se como uma colegial maldosa. Jonathon ficara furioso quando ela anunciara que iria para Mustique. Fora uma decisão no calor do momento, depois de receber os primeiros resultados de seus exames hormonais. De repente, a mente dela se enchera de coisas sobre as quais não queria pensar. Casamento fracassado. Ovários fracassados. Fracasso. Ela precisava fugir. Um criado com uniforme imaculadamente branco apareceu com uma jarra gelada de ponche de frutas e um prato de fatias brancas e reluzentes de coco. Obediente, colocou um copo de ponche na mão estendida de Serena. - Também tenho um fax para você - disse o belo criado, entregando a Serena uma página enrolada de papel cor de creme em outra bandeja de prata. - Um fax? - perguntou Venetia, esticando o pescoço. - O que é? Não diga que a imprensa já encontrou você aqui. Não estou preparada para o meu close-up de paparazzi. - Ah - disse Serena depois de um instante, examinando as palavras negras escritas em garranchos.


- Qual é o problema? - Michael diz que chega a Esperanza hoje à noite. Quer jantar conosco. - Lançou uma expressão confusa na direção de Venetia, que rapidamente começou a se transformar em um sorriso. - Este lugar fica muitíssimo longe de Nova York, não é mesmo? - disse ela, enquanto sua boca continuava a se curvar para cima. - E não é um pouco estranho ele aparecer de surpresa? - disse Venetia, dando uma mordida em uma fatia de coco. Fez uma pausa quando a ficha caiu. - Ou você sabia que ele vinha? Ela ergueu uma sobrancelha para a irmã, que ficou lá, com jeitão de esfinge, sem dizer nada, mas dizendo tudo ao mesmo tempo. Venetia ficou irritada, apesar de tentar se segurar. Era a cara de Serena arrastá-la até o Caribe só para matar o tempo até que alguém mais interessante aparecesse. Serena sempre tinha sido a alta sacerdotisa da manipulação. - Bom, Michael não disse especificamente que vinha - respondeu Serena, olhando a irmã nos olhos com muita segurança. - Mas não é exatamente aparecer de surpresa. Afinal de contas, a casa é dele, e ele tem o direito de dar uma passada aqui quando bem entender. Mordeu uma meia-lua de coco e deu um sorriso do gato que ficou com o creme. - Viajar cinco mil quilômetros para jantar não é bem dar uma passada. - Venetia fez uma pausa e ficou olhando desconfiada para a irmã. – Você está a fim dele, não está? Estou me sentindo a maior idiota por não ter percebido antes. - Ah, pelo amor de Deus - disse Serena, como quem quer mudar de assunto. Ela se recostou na rede e fechou os olhos. - A gente não está mais na escola, sabe como é. E, caso tenha esquecido, estou passando por um rompimento difícil para caramba. Arrumar envolvimento com outra pessoa, mesmo que seja alguém com uma mansão como a de Michael, realmente não está nos meus planos. Venetia olhou para a irmã lá, deitada seminua sob o sol do Caribe e duvidou de que aquele fosse o caso. A pista do aeroporto de Mustique era curta demais para o jatinho Gulfstream de Michael pousar, de modo que, como todos os outros milhares de visitantes que chegavam à ilha, ele foi até lá em uma lancha que fazia o traslado até uma ilha maior, e um empregado da mansão foi buscá-la de Mercedes. Quando foi ao encontro das moças, acomodadas no terraço, bebericando coquetéis de começo de noite, estava relaxado e brincalhão. - Olá, garotas - disse ele com um sorriso exultante, recolhendo as duas em um enorme abraço e dando-lhes beijos nas bochechas. - Estão se divertindo bastante? Venetia se afastou, um pouco aturdida pelo sujeito atarracado, devido à sua educação. Ele certamente era mais bonito do que ela esperava... e definitivamente era o tipo de homem cuja presença ocupava mais espaço do que seu corpo. O olhar de Michael era intenso, suas roupas - calça de pregas de linho, camisa pólo azul-marinho e mocassins da Tods exalavam um poder descompromissado e, apesar de sua reserva e dos boatos de tráfico de armas, Venetia se viu animadíssima. - Ah, este lugar é lindo - disse ela, falando toda entusiasmada sobre a decoração, o espaço e a linda luz cor de pêssego daquela noite agradável de início de primavera. - Esta foi uma ótima surpresa - disse Serena, dando meia-volta com seus pés descalços para ir até o caramanchão coberto de sapê ao lado da piscina enquanto Michael sorria e a media de alto a baixo, os olhos fazendo uma pausa nos seios firmes e arredondados que a parte de cima do biquíni branco mal segurava.


- Bom, eu estava em Barbados a negócios e não fica muito longe... é só um pulinho até as Granadinas. Achei que talvez vocês fossem gostar de mais companhia. Mustique é calma antes da Páscoa. - Calma? - disse Serena, sedutora. - Exclusiva. Bem como eu gosto. Michael chegou mais perto dela, roçando a ponta dos dedos em sua pele, e ela sentiu os seios se enrijecerem no mesmo instante. - Vou me trocar e então nós nos encontramos para jantar, digamos, daqui a meia hora? Vamos colocar a mesa no pagode. - Ele apontou para uma construção de formato hexagonal no promontório. - A vista ali é linda. Por que vocês não vão para o quarto se arrumar e nós nos encontramos lá? O quarto de Serena era lindo e seu guarda-roupa, ainda melhor. Com um dique no controle remoto, ela colocou para tocar um jazz latino relaxado e examinou a vasta coleção de altacostura que tinha levado para a semana de estada, todas guardadas com muito cuidado por seu mordomo particular. Seus dedos longos dançaram sobre uma bata brilhante com fio de metal tramado, lenços de cabeça de seda em um arco-íris de cores, calça cor de creme feita sob medida, lindas camisas de chiffon, vestidinhos com estampas minúsculas e punhados de colares de cobre e turquesa pendurados nos puxadores de ratã do guarda-roupa. Depois de deliberar um pouco, colocou um shortinho cor de creme Valentino, tão curto que a curva da parte de baixo de suas nádegas bronzeadas espiava para fora em exibição. Por não querer ficar sensual demais (era só um jantar, e ela sabia que Venetia desaprovaria qualquer coisa muito reveladora), combinou-o com uma blusinha leve de cashmere azul-marinho. Fez biquinho na frente do espelho de corpo inteiro, imaginando se não estava mais com cara do Maine do que Mustique, e rapidamente quebrou a seriedade com uma pulseira grossa de turquesa, brincos de argola e uma longa corrente de ouro da Garrard. Calçou chinelos de dedo, passou uma camada de gloss transparente nos lábios e desligou o som. Com uma borrifada final de perfume, uma fragrância exclusiva que tinha mandado fazer especialmente para ela por Jean Patou, pagando muito caro, estava pronta. Prendeu uma enorme flor de magnólia atrás da orelha e, percebendo que tinha demorado mais de uma hora para se arrumar, saiu em direção do pagode. Michael e Venetia já estavam à mesa, bebendo um ponche de frutas e conversando. Era um espaço pequeno e íntimo, e a mesa de madeira rústica parecia flutuar em um mar de escuridão com apenas duas pequenas luminárias e o vasto brilho das estrelas de iluminação. Ela viu Michael rindo enquanto servia vinho em um copo cor de rubi para Venetia e sentiu uma repentina pontada de ciúme. Foi só ela virar as costas um segundo, e Venetia já tinha começado a investir no anfitrião, como se tivesse alguma coisa a provar só porque seus ovários não funcionavam. Ela se recompôs e percebeu que, em algum lugar entre o Nilo e este momento no terraço em Mustique, Michael tornara-se incrivelmente charmoso. Especialmente para um bilionário. - Ah, é isso que eu chamo de restaurante - disse Serena, acomodando-se na ponta da mesa bem na frente de Michael e permitindo que a alça fina do top escorregasse pelo ombro. - Ah, Serena! Atrasada, mas ótima – disse Michael com um sorriso lupino. Serena sorriu, coquete, e Michael chamou dois criados que seguravam enormes bandejas de prata. - Eu estava aqui dizendo a Venetia que ela tem um gosto refinadíssimo. Poderia usá-la em alguns dos meus hotéis. Precisamos marcar uma reunião na próxima vez que eu estiver em Londres.


Serena deu um sorriso fraco. - Claro que sim - ronronou, lançando um aviso secreto à irmã. - Mas, bem, o que vamos comer? - Pedi ao chef que preparasse algo simples para esta noite – disse Michael, sorrindo. Espero que as moças não se importem. - Ele estalou os dedos e os criados removeram as coberturas de prata para revelar pratos de peixe vermelho, fatias grossas de batata-doce mergulhadas em molho picante e uma enorme travessa de vagem. Os três ficaram lá comendo em silêncio, saboreando a comida, o som das ondas e a brisa suave ao fundo. Venetia ergueu os olhos e percebeu que Michael observava as duas e tinha um sorriso aberto estampado no rosto. - Ei, por que este sorriso? - perguntou. - Estou rindo da pureza dos genes ingleses - disse ele. - Olho para vocês duas e vejo mil anos de pureza anglo-saxã. - Na verdade, temos um pouco de sangue espanhol que remonta a algum ponto do século XVI - disse Serena. - Católicos perseguidos se infiltraram na família. Então, não somos assim tão puras. - Bom, espero mesmo que não. - O comentário de Michael foi em tom de brincadeira e carregado. Todos sorriram e retomaram para a comida, o peixe se despedaçando em nacos macios, as vagens fresquíssimas. - Então, como vão os negócios? - perguntou Venetia a Michael, limpando os lábios com um guardanapo. - Muito bem. O setor de turismo foi muito abalado nos últimos anos, mas o setor de luxo, em que o Grupo Sarkis opera, não foi atingido de maneira geral - disse Michael, despreocupado. - Aliás, preciso falar com a outra irmã de vocês, a editora - prosseguiu ele. Quero publicar uma revista de turismo para mandar para todos os nossos clientes e colocar nos quartos dos hotéis. Quero que seja a melhor: cheia de estilo e sofisticação. - Engraçado você dizer isto - observou Venetia. - Cate está trabalhando para lançar uma revista própria. Talvez fosse bom que vocês dois marcassem uma reunião. - Isso me parece interessante. E, com certeza, vou apreciar conhecer mais uma garota Balcon. Ele lançou mais um olhar comprido e demorado para Serena. Desta vez ela o sustentou, instigada pelo interesse de Michael em Cate e Venetia. Venetia não deixou o olhar passar em branco e, sentindo o peso do fuso horário e percebendo que estava um pouco bêbada depois de uma garrafa de um bom Merlot, resolveu que estava na hora de se retirar para seu quarto. Sabia qual seria o resultado de deixar Serena sozinha e semivestida com um playboy de renome, mas com as pálpebras já desabando, não estava disposta a se preocupar. - Preciso ir para a cama. Boa noite para vocês dois - disse Venetia. Michael se levantou para beijá-la nas bochechas, ao passo que Serena ficou quietinha em sua cadeira, feliz por se livrar dela. Quando Venetia já tinha se afastado na escuridão, houve um silêncio súbito e intencional entre Serena e Michael. - Não consigo comer nem beber mais nada - disse Serena finalmente, colocando os dedos no cós do shortinho para exibir uma faixa magra de pele. - Bom, então que tal darmos um passeio? - Michael sorriu. – Acho que eu não vou conseguir ficar acordado se continuarmos aqui.


Serena assentiu com a cabeça e eles caminharam até a escadaria de pedra na lateral do terraço, para outro nível de Esperanza, onde havia uma banheira de hidromassagem grande e um gazebo feito de nogueira e cortinas grossas de voal branco. A única iluminação vinha da lua cremosa que irrompia o céu negro e de quatro tochas acesas nos cantos da piscina, que estalavam suavemente. Serena caminhou até o balcão que dava vista para o mar, cuja superfície prateada pelo reflexo da lua o vento fazia tremeluzir. Ela se virou para olhar para Michael atrás de si. Ele tinha aberto mais uns dois botões da camisa; um emaranhado de pêlos pretos como breu saltava para fora do tecido. - Espero não estar incomodando. - Fique à vontade. Vale a pena compartilhar um silêncio maravilhoso. Ouça só: nada! - Só o barulhinho do mar. Michael apoiou as mãos poderosas na mure ta de pedra ao lado de Serena e ergueu os olhos para o céu salpicado de estrelas. - Espero que você não se importe de eu ter vindo - disse ele. – Na verdade, eu estava em Palm Beach, e nós dois sabemos que não fica exatamente aqui do lado... - Ele olhou na direção dela e sorriu, uma sugestão de perigo se recurvando nos cantos de sua boca. - A casa é sua. Não é meu papel dizer quando você pode ou não pode vir para cá. - Digamos apenas que eu não estava na região. Ficou feliz por eu ter vindo? - Claro que sim! - Serena soltou uma risada nervosa, ainda sem saber muito bem onde aquilo iria acabar. - Simplesmente é bom estar com alguém que está passando pela mesma coisa - disse Michael. - A mesma coisa? Como assim? - Bom, as coisas com Marlena, minha namorada... acho que você a conheceu no Egito... não andam muito bem. Serena tocou de leve no ombro dele. - Ah, desculpe. Eu não fazia a menor idéia. Ele riu e afundou o queixo no peito. - Nós discutimos o tempo todo. E ela gasta em demasia. Meio milhão de dólares em altacostura. Dois milhões na JAR. Sou um sujeito generoso, mas não gosto de ser explorado. - Então, você vai deixá-la? - Temos falado sobre isso. - Ele fez uma pausa e inclinou a cabeça para sentir o cheiro da flor de magnólia no cabelo de Serena, tirando uma mecha do rosto dela com gentileza. Demora muito para colocar um fim nos relacionamentos depois que eles acabam - disse baixinho. Serena de repente se afastou dele, atordoada pelo jorro de emoções que a proximidade de Michael suscitou. Caminhou um pouco pelo terraço e se sentou em uma das espreguiçadeiras à beira da piscina, traçando redemoinhos invisíveis com os dedos do pé nas lajotas de cerâmica. Quando Michael se colocou ao lado dela, um criado uniformizado saiu do caramanchão de sapê, entregou-lhes duas taças de Krug e desapareceu sem proferir palavra. - Como estão as coisas com Tom? - perguntou Michael, bebericando o champanhe. Serena sacudiu a cabeça, longas mechas de cabelo loiro acariciando seus ombros. - Não vim aqui para falar de Tom. Michael pousou a taça e deslizou pelo colchão branco, seu braço direito serpenteando até a cintura de Serena.


Ela engoliu em seco baixinho, sem saber se devia dar o próximo passo, mas desejando que ele a tocasse mais. - Sabe por que eu estou aqui? - sussurrou no ouvido dela. Ela se virou de frente para ele. - Sei - disse com um suspiro, permitindo que ele a deitasse. Afundando-se na espreguiçadeira, Serena permitiu que Michael lhe acariciasse o pescoço, os lábios e barriga; seus músculos púbicos de repente enrijeceram quando ele tirou o minúsculo top de cashmere por cima da cabeça dela em um movimento rápido. Agora ela estava deitada de costas, nua a não ser pelo shortinho. Michael pegou a taça de champanhe pela metade dela, derramou por cima de seus seios e levou a boca de encontro à pele para lamber o líquido reluzente de cada um dos mamilos rosados. Ela engoliu em seco enquanto a língua dele se movimentava, seus movimentos cada vez mais excitantes. Compreendendo o sinal, os lábios dele percorreram a barriga dela enquanto ela abria o zíper e tirava o shortinho. Por um instante, Michael ergueu a cabeça para inspecionar o corpo dela. Seus olhares se fixaram, os dois ardendo de desejo enquanto Michael tirava a roupa com rapidez. Agora nu, ele se posicionou entre as pernas dela, abrindo-lhe as coxas com mãos firmes, a língua tremendo, girando pela listra estreita de pelos púbicos antes de mergulhar mais fundo dentro dela. Serena soltou um gemido. - Isso mesmo, não pare. Bem quando ela estava prestes a se contorcer de prazer, a boca de Michael voltou para seus mamilos, enquanto ele segurava o pau duro como pedra e, de maneira gentil mas insistente, roçava o clitóris dela. De repente ele recuou, virou-a de costas e, erguendo a bunda dela, penetrou-a por trás. As mãos dele a agarraram por baixo, seus dedos excitando o clitóris enquanto ele enfiava o pau grosso nela em movimentos compassados. Serena gemia e arfava de puro êxtase enquanto ondas de prazer tomavam conta de seu corpo, até finalmente desabar sobre o colchão branco. Viraram-se um de frente para o outro. Michael limpou as gotas de suor do rosto de Serena. Ela se recostou, respirando fundo, permitindo que a brisa quente da noite soprasse sobre seu corpo nu e soltando um enorme suspiro de prazer ao se dar conta de que a melhor transa de sua vida acabara de acontecer.


10 Apesar de ser fevereiro, não havia como o interior britânico estar mais adorável. Cate pisava fundo no acelerador de seu Mini Cooper prateado; Stevie Wonder tocava alto no som e ela deslizava pelo interior de Dorset, tirando os olhos da estrada de vez em quando para admirar a paisagem. Passava por campanários de igreja que tocavam e senhoras apressadas para a missa, passava por cercas vivas verde-escuras e campos cor de ocre que o sol claro de inverno ressaltava. Era uma manhã perfeita para um passeio de carro, pensou, dobrando uma esquina e finalmente avistando uma linha prateada tremulando no horizonte: o mar. Ah, se pelo menos ela não estivesse tão mal-humorada... o passeio poderia ser gostoso. Mas a última coisa que ela queria fazer em um domingo de manhã era viajar 320 quilômetros em uma missão caridosa. Mas Cate, como sempre, estava preocupada com Serena. Não podia acreditar que ela se mandara para a propriedade de Michael em Mustique, apesar de seus apelos para que pensasse melhor. Serena sempre fora uma criança impulsiva e esquentadinha e, depois de adulta, continuou igual. Mas apesar da atitude entusiasmada de mandar Tom para o inferno, Cate sabia que, no fundo, Serena estava magoada. E ela detestava ver as irmãs sofrendo. A única maneira de evitar uma relação que não levaria a nada entre Serena e aquele playboy asqueroso do Michael será encontrar Tom e convencê-lo a dar mais uma chance para a relação. Cate abaixou a janela, uma lufada de ar salgado litorâneo melhorou sua disposição, e ela pisou no pedal com mais força ainda. A Casa Petersham apareceu sobre um penhasco largo, uma construção térrea de pedra com dois frontões pesados e uma chaminé soltando fumaça. Pertencia a Dorothy Whetton, irmã idosa do agente de Tom, que morava em Fulham e alugava a casa no verão. Tom tinha sua própria casa em Cotswold – uma propriedade rural extensa que comprara no verão anterior -, mas no momento não tinha calefação e estava passando por uma cirurgia arquitetônica de peso. Então Dotty Whetton aparecera para salvá-lo e entregara-lhe as chaves daquele retiro fofo, junto com a garantia de que sua estada na Casa Petersham permaneceria secreta para os paparazzi famintos. - Ah, mas que coisa mais morro dos ventos uivanies - disse Cate quando Tom abriu a porta de jeans e camiseta esgarçada, descalço sobre o chão de ardósia escura. - O quê? Eu ou a casa? - perguntou Tom, mastigando um pedaço de torrada. Ela entrou, e um calor enfumaçado a envolveu. - Espero que você não tenha tomado brunch - disse Tom, lambendo a manteiga dos dedos. Chegou bem na hora de um café-da-manhã completo. Cate seguiu-o pelo corredor de laje até uma pequena cozinha de madeira, onde um bule de metal assobiava em cima de um fogão Aga. - Brunch? É melhor dizer logo que é almoço - disse Cate, conferindo o relógio. Tom deu de ombros com um sorriso e começou a mexer em uma frigideira cheia de linguiças que chiavam. - Esta é uma certa surpresa, Cate - disse ele, jogando um pouco de bacon e fatias de tomate em uma panela com fundo de cobre. - Foi o maior choque da minha vida quando você ligou ontem à noite. Achei que eu seria persona non grata e tudo mais. Ela aceitou a xícara de chá que ele ofereceu. - É, eu sei que para vir até aqui a estrada é longa - disse Cate hesitante, sem saber muito bem como tocar no assunto Serena. - Mas o lugar é fabuloso. Alguém sabe que você está aqui?


Ele sacudiu a cabeça, contente. - Há uns dez paparazzi de tocaia na minha casa em Gloucestershire, tem até um de helicóptero sobrevoando a casa, mas aqui só as gaivotas ficam olhando para mim. Deus abençoe Dorothy Whetton. Ela até encheu a despensa com comida para um mês, de modo que eu não preciso nem sair de casa com muita frequência. Depois daquelas fotos minhas pulando da porcaria do barco de Roman e daquela garçonete maluca do bar que eu frequento com suas fantasias loucas de um caso entre nós, acho que preciso ser bem discreto. Cate reparou que as bochechas dele estavam levemente vermelhas. - Então, era mentira da garçonete? - testou o terreno, lembrando-se da fofoca do tablóide. - Sim, era mentira - repetiu Tom baixinho, deliberadamente. – De qualquer forma prosseguiu ele, em tom mais alegre -, com toda a certeza estou aproveitando este isolamento esplêndido. - Apontou para uma pilha de papel desorganizada e um laptop de titânio no balcão da cozinha. – Estou escrevendo um roteiro sobre Donald Campbell... sabe quem é... o recordista de velocidade da década de 1950? Estou animado de verdade com isto: é uma daquelas histórias que tem tudo. Carros, romance, tragédia, homens bonitões com óculos de piloto. - Parece ótimo. Você me ganhou - sorriu Cate, contente de ver que o entusiasmo de moleque dele estava de volta. - Se receber sinal verde, eu não me importaria nem um pouco de fazer o papel de Campbell eu mesmo. - O sujeito bonitão com óculos de aviador? Eles deram risadas, os dois felizes por terem encontrado um respiro no mal-estar entre eles. Tom tirou a panela do fogo e voltou-se para ela. - Olhe, Cate, por que você veio até aqui? - A expressão dele era de tristeza. - Bom, acho que é uma missão de paz... - Ah, senhor Kissinger. Não o reconheci sem os óculos - disse Tom, aproximando-se da torradeira quando o pão pulou para fora. Cate forçou um sorriso. - Você sabe por que eu estou aqui, Tom... Serena. Ela disse que você passou a semana inteira evitando os telefonemas dela. Ela está enlouquecendo. Ela olhou para ele com ar de súplica, mas ele só soltou um murmúrio e retomou ao fogão, sentindo-se envergonhado e um pouco culpado. Ele realmente gostava de Cate. Aliás, muitas vezes desejou que Serena fosse mais parecida com a irmã mais velha, que tivesse a mesma compaixão e humildade. Era a cara dela estar em uma missão de paz, e ele detestava decepcioná-la. - Cate, eu... é complicado... - Fale sério, Tom - disse Cate. - Você não pode simplesmente dar as costas para cinco anos com alguém. Como é que vocês vão resolver tudo isto se você se recusa a falar com ela? - Resolver o quê? - Ele explodiu, virando-se de frente para Cate, e pela primeira vez ela reparou nas manchas escuras embaixo dos olhos dele. – O que exatamente nós temos para resolver? Uma relação unilateral que não estava indo a lugar nenhum? Algum tipo de final de conto de fadas? - A voz de Tom foi definhando e um olhar se fixou no prato. - Olhe, você não devia ter vindo até aqui - disse. - É legal da sua parte, mas... Tom fez uma longa pausa enquanto limpava uma mancha de gordura na pia, depois ergueu os olhos e encarou Cate com seu olhar de astro de cinema. - Sabe por que eu pulei daquele barco? - perguntou.


- Estava ridiculamente bêbado de tanto tomar marguerita? – arriscou Cate, com um sorriso torto. - Na verdade, sim. - Ele deu um breve sorriso, depois se voltou para a janela e ficou olhando para o gramado extenso que seguia até a encosta do rochedo. - Eu não fui infiel, Cate. Eu só me sentia infeliz... o tempo todo. Fazia meses... talvez anos. Quando eu pulei, foi como se estivesse me libertando da minha vida e da maneira como eu a estava levando. Claro que eu gosto de Serena - prosseguiu ele. - Ela é mesmo linda. E, a certa altura, nós realmente nos divertíamos. - A voz dele foi sumindo, cheia de nostalgia, enquanto relembrava momentos de épocas felizes. - Mas aquela vida em Londres não passa de uma merda superficial. O mesmo pessoal indo sempre às mesmas festas velhas e chatas. E ela se deixa envolver tanto por aquilo tudo. Às vezes eu ficava desejando que ela fosse um pouco mais pé no chão. Como você. Houve um longo momento de tormento que passou entre os dois, então Cate recuou um passo para deter um pensamento proibido. Tom olhou para ela um instante além do normal, então deu de ombros. - Bom, Serena adora agito, e se eu ficar com ela, realmente vai ser muito difícil tirar tudo isso da minha vida. Fazia anos que Cate sabia que Tom havia tido problema com bebida quando tinha vinte e poucos anos e convivia com um pessoal problemático, que bebia muito. Ela também sabia que ele tinha voltado a beber e que haveria inúmeros jantares regados a vinho e arrematados com uma dose de Porto, mas Cate não fazia idéia de como era difícil para ele controlar a bebida. - Só dê uma ligada para ela - sugeriu Cate, esquecendo-se por um instante de que Serena estava em Mustique. Tom virou-se para o fogão e esfaqueou uma linguiça com irritação. Sua voz tinha um tremor de raiva quando ele falou. - Para dizer o quê? "Desculpe, querida, foi um mal-entendido. Chego em casa daqui a algumas horas?" Cate ficou olhando perplexa para ele. - Então, acabou? Ele deu de ombros e empurrou o café-da-manhã abandonado para longe. - Vou falar com ela quando estiver pronto, Cate. Só acho que às vezes é bom manter certa distância, sabe? Não quero ser convencido a me colocar em uma situação que não me agrada. Sabe do que eu estou falando? Ela sabe fazer isso muito bem. Os dois riram, cientes de como Serena sabia ser difícil, sedutora e manipuladora. Tom conduziu Cate através de um estufa cheia de sol até o jardim. As gaivotas berravam ao redor da cabeça deles e, a distância, escutava-se o som das ondas quebrando nas pedras. Cate o observou caminhando na frente, em direção à beira do penhasco que descia até a praia, chutando uma pedrinha da grama com o sapato. Só mesmo Serena, pensou, para arrumar um astro de cinema capaz de preparar um café-da-manhã completo e destruir o relacionamento de maneira irreparável. Cate ficou se perguntando se devia mencionar Michael, mas não queria que parecesse chantagem. - De todo modo, senhorita Balcon - disse Tom, pegando a pedra para jogá-la penhasco abaixo. - O que anda acontecendo na sua vida? Já virou editora da Vogue? Algum pretendente sexual à vista sobre quem eu deveria saber? Obviamente, terei que fazer uma avaliação severa. Serena nunca cansava de dizer como o seu gosto para homem é horrível.


- A resposta é não e não. Minha vida amorosa, como você provavelmente sabe, é inexistente há séculos. Conheci uma pessoa em Nova York, um fotógrafo. Mas ele não ligou. Tom riu. - E a outra coisa que você obviamente não sabe - prosseguiu Cate – é que eu fui demitida na semana passada. - Ah, merda. Sinto muito. - É. Estou passada. Tom lançou um sorriso torto para ela. - Imagino. E o que você vai fazer por enquanto? - perguntou, jogando outra pedra no mar. Pode trabalhar como minha assistente de roteiro, se quiser. Tem muito lugar nesta casa velha para mais um refugiado de Londres. Durante um segundo, Cate torceu para que ele estivesse falando sério. Poderia ser legal largar tudo e ir passar um tempo ali com as gaivotas e as ondas. Para ser sincera, não tinha contado para ninguém seu plano de lançar uma revista porque tinha medo de que todo mundo fosse rir das grandes - e possivelmente irreais - ambições dela. Mas quanto mais guardasse segredo, mais demoraria para fazer o projeto decolar. - Eu ia trabalhar como freelancer. Mas... - olhou para o rosto aberto e sincero de Tom e viu que podia confiar nele e contar seus planos. - Eu fiz umprojeto de revista no ano passado que ia apresentar à empresa. Acabei não apresentando e continuo com o projeto; então, estava pensando... - Você vai publicar por conta própria? Ela abriu um sorriso. - Bom, é possível que sim. - Vamos voltar para dentro. Tom conduziu Cate até o escritório, um espaço confortável com lugar suficiente para uma mesa de trabalho e uma poltrona grande com espaldar de couro. Pegou sua enorme agenda Smythson e abriu-a. - Acho que você precisa ligar para um amigo meu - balbuciou, rabiscando um número em um post-it cor-de-rosa. - Você conhece Nick Douglas? Cate sacudiu a cabeça e ficou olhando para o número que ele lhe entregou. - Conheço o nome - mentiu. - Eu conheço Nick desde a escola. Ele é um grande amigo meu. Você vai gostar dele. Ele chefiou uma revista de esporte nos Estados Unidos, e acaba de voltar. Está com vontade de fazer a mesma coisa que você, publicar por conta própria. Não faço a menor ideia de como ele está em relação a patrocínio nem se já tem uma idéia de revista, mas não custa nada falar com ele. - Certo, obrigada. Vou ligar esta semana - disse ela, guardando o número na bolsa. Ela sabia que para fazer o projeto decolar, precisava trabalhar com alguém que chefiara uma revista, mas já tinha começado a ligar para os contatos que tinha. Marcara uma reunião para terça-feira com Cecil Bradley para ver se faria com que ele se envolvesse de alguma maneira. O velho tinha mais do que tempo de sobra nas mãos. Com um pouco de sorte, não precisaria da caridade de Tom. - Aliás, vamos ligar para ele agora mesmo. - Tom pegou seu celular prateado no bolso do jeans, abriu a tampa e começou a discar. - Não... não precisa. Eu ligo para ele... Tom esticou o dedo para cima.


- Ele mora em Highgate, e você continua em Notting Hill, certo? - sussurrou, caminhando para o corredor. - O sinal aqui é uma porcaria completa. Só consigo ligar de algumas partes da casa. Ele desapareceu e Cate se apoiou na ponta na mesa de Tom; ficou folheando a seção de imóveis do Sunday Times, às vezes ouvindo som de risadas e piadas. A cabeça de Tom apareceu à porta. - Está livre no domingo que vem? Ela assentiu. - Uma reunião em Highgate fica bom para você? Ela assentiu de novo. - Mas não marque muito tarde - sussurrou. Tom piscou para ela. - A Cinderela vai estar na cama antes da meia-noite.


11 Entre os muitos restaurantes badalados e exclusivos de Londres, o San Paulo era - no momento - o mais badalado e o mais exclusivo. Oswald geralmente detestava esses restaurantes da moda; sentia-se muito mais à vontade nos clubes exclusivos que salpicavam o distrito do código postal SWI em minúsculos bolsões de exclusividade das antigas. Ainda assim, era bom para ver mulher bonita, pensou, olhando ao redor de si para a clientela do almoço, uma multidão de euroesnobes bem asseada a caminho de um tratamento no spa Mandarim Oriental ou de um corte de cabelo no cabeleireiro Neville. Havia esposas de banqueiros, esposas de russos, esposas de jogadores de futebol: o lugar todo cheirava a dinheiro de marido, refletiu com desaprovação, olhando para as sacolas de compras de Jimmy Choo e para as bolsas Birkin da Hermes que se enfileiravam no chão ao lado das mesas. - Foi ao médico, hein? Qual é o problema desta vez, Venetia? – perguntou Oswald à filha mais velha, estalando os dedos para chamar a atenção de um garçom. - Ainda não tenho certeza - respondeu Venetia sem levantar a cabeça. Aquele era apenas o seu segundo dia em Londres depois de voltar de Mustique, mas tinha passado o tempo todo se preocupando a respeito dos resultados de seus exames. Naquela manhã, a médica não lhe dissera nada, apenas tirara mais sangue "para fazer uma investigação mais aprofundada". Mas por mais ansiosa que Venetia estivesse, certamente não queria sugerir ao pai que havia alguma coisa errada. - Você sempre está com algum problema, não é mesmo? - Oswald fez uma pausa e olhou para ela cheio de maldade. - Não é coisa de mulher, é? Já está na hora de você e o Jonathon começarem a soltar uns pirralhos. Venetia começou a estudar a carta de vinhos do San Paulo com muita atenção. - Como disse, não temos certeza de qual é o problema - respondeu ela, estóica, com o coração disparado no peito. - Bom, já está na hora de você dar um herdeiro a esta família. Pelo menos sabemos que você pode ter filhos, não sabemos? - disse ele com um olhar malicioso fixado em Venetia e um sorriso cruel. A lembrança que ela vinha suprimindo deliberadamente havia semanas tomou conta dela com força assustadora. Ela tinha 17 anos. Tinha tido um casinho de verão com um garoto do vilarejo que terminou três meses depois em uma clínica Marie Stopes em Londres. O pai fizera questão de literalmente arrastá-la até a porta. O problema de Oswald não era a idade dela, mas sim o pai da criança. "Quer ter um macaco retardado como filho?", escarnecera ele. "Bom, não vai ser sob o meu teto!" Ela ficava se perguntando se o aborto tinha alguma coisa a ver com sua infertilidade agora, mas não podia mencionar o fato à dra. Rhys-jones, não com o olhar de desaprovação de Jonathon observando todos os seus movimentos. Seus pensamentos dolorosos foram interrompidos por uma mulher voluptuosa de cabelo escuro que se aproximou da mesa. Já beirando os 40 anos, Maria Dante usava maquiagem pesada por cima dos traços bonitos, seu corpo cheio de curvas envolvido por um vestido bem cortado, justinho na parte de cima e com uma jaqueta. - Olá, Maria - Venetia sorriu, tentando recobrar a compostura. – Que bom vê-la novamente. Maria Dante assentiu com a cabeça, graciosamente, e permitiu que o garçom puxasse a cadeira para que ela se sentasse. - Como foram os ensaios? - perguntou Oswald, esticando-se para beijar a bochecha coberta de pó-de-arroz.


- Estão indo bem - respondeu a cantora, com um sotaque que era um coquetel de italiano e inglês norte-americano. - A noite de estréia vai ser dia 23, então você vai poder ver com os próprios olhos se está bom. Quer dizer, isso se ainda estiver disposto a comparecer. Venetia olhou para os dois, confusa com a intimidade entre o pai e a cantora. - Ah, vocês dois se conhecem? - perguntou. - Só por telefone - riu Maria, olhando para Oswald com apreço. Ele tinha superado suas expectativas. Oswald tomou um gole de vinho e deu um sorriso presunçoso para a filha. - Depois que você mencionou a possibilidade de uma noitada musical em Huntsford, tomei a liberdade de ligar para a senhorita Dante. - Ele olhou para ela como um dono de antiquário avaliando um aparador recém-adquirido. - Ficamos surpresos de ter tantos amigos em comum, não foi, Maria? A cantora soltou risadinhas adolescentes. - Ah, gente demais. Venetia deu um sorriso fraco. Tinha marcado o almoço como reunião de negócios para apresentar os dois, na esperança de que Maria pudesse usar seu charme para convencer Oswald a realizar o evento em Huntsford. Agora se sentia como se fosse uma intrusa em um primeiro encontro. - Vamos direto ao assunto para podermos almoçar de maneira civilizada - disse Oswald, fazendo o vinho girar dentro da taça. - Em princípio, acho o evento uma boa ideia. Mas se vamos fazê-la em Huntsford, quero que seja da maneira apropriada. Em grande escala. Elegante. Espetacular. Quer dizer, com o diabo, qualquer pessoa que tenha acesso à porcaria da internet pode ir ao Glyndebourne hoje em dia. Não aceito isso. Não quero que seja uma cantoria idiota no jardim dos fundos da casa de alguém. A família Balcon tem uma reputação a zelar. Fez uma pausa para coçar a barriga, que se projetava por cima do cós da calça. - Concordo plenamente que deve ser exclusivo – interrompeu Venetia -, e é por isso que acho que devemos cobrar 250 libras por entrada. Assim, pelo menos cinquenta por cento do valor pode ir para a caridade. Oswald pousou a taça e suspirou. - Achei que havia deixado bem claro o que penso sobre caridade – disse Oswald, corrigindo o tom duro da voz quando viu a expressão assustada do rosto de Maria. - Você devia ser a primeira a saber quanto as coisas custam hoje em dia - disse ele a Venetia. - Deus bem sabe como você gasta o dinheiro de Jonathon. Ela se segurou. - De todo modo, temos o cachê de Maria a levar em consideração - prosseguiu ele, engolindo mais Pinot. - Cachê? - disse Venetia, agitando-se na cadeira. - Achei que... - tentou encontrar o olhar de Maria, sem sucesso. - Mas e a caridade? - Minha filha. - Ele começou a falar com Maria como se Venetia não estivesse ali. - Ela sempre quer ajudar todo mundo. Quer salvar o mundo! Ele riu, depois se voltou mais uma vez para Venetia. - Querida, a realidade comercial é que essas coisas custam caro. Você realmente não acha que todos esses concertos beneficentes estão servindo para forrar o bolso de alguém? De que adianta ficarmos economizando na nossa noitada musical só para podermos mandar uns trocados para alguns aleijados? Eu, por exemplo, não vou fingir que estamos tomando alguma iniciativa humanitária grandiosa. Seria uma bobajada sem sentido.


Venetia ficou surpresa de ver que Maria ficava assentindo com a cabeça enquanto Oswald falava, já que a cantora tinha se mostrado animada com a ideia de o dinheiro arrecadado ser doado para o Lar Nacional das Crianças quando falaram sobre o assunto na semana anterior. - Então, Maria. - Ele colocou a mão no joelho de Maria, e ela permitiu que ele se demorasse ali. - Tudo começa com você, minha querida. Quais foram as datas que você conseguiu? Ela revirou a bolsa à procura de sua agenda, sem se dar ao luxo de olhar para Venetia. - Tenho algumas apresentações em Verona na segunda semana de julho. Estava pensando mesmo na primeira semana de junho. - Esplêndido! - disse Oswald, esticando a mão para a garrafa de vinho. - Então, Venetia, você acha que Serena concordaria em ser a apresentadora? Você conhece a minha filha, Serena Balcon? - exibiu-se Oswald para Maria. - É uma menina linda. Venetia revirou os olhos. A maneira como ele exibia a preferência pela filha mais nova nunca falhava em deixar as outras irmãs arrasadas. - E será que a gente consegue fazer com que Camilla cuide de toda aquela chatice legal que ela conhece tão bem? - prosseguiu ele. – Existem enormes possibilidades corporativas nisto - completou, com um sussurro afetado a Maria. Oswald certamente estava com tudo, adorando ser o centro das atenções. - Charlesworth tem boas conexões no mundo da música clássica. E o desgraçado do Watchorn pode aproveitar para provar que tem mesmo trânsito no governo e convocar aqueles amigos do gabinete de que vive falando. Será que o primeiro-ministro vai estar por aí na ocasião? Ele continuou falando de seus planos alegremente, enxugando o copo e estalando os dedos todo irritado para chamar um garçom, mas Venetia só ficou lá em silêncio, sentindo-se totalmente arrasada, por perceber que seus planos para uma noite gloriosa em Huntsford tinham sido completamente deturpados.


12 Eram 9h30 da noite e Nick Douglas ainda não tinha chegado. O bar Flask, na ponta da pequena praça de Highgate, estava com o som de domingo à noite no máximo e o ar, cheio de gargalhadas ruidosas, fofoca de fim de semana e cheiro de cerveja e cigarro. Cate tinha tido sorte de encontrar um lugar no canto, onde bebericava uma taça de vinho branco e fingia ler um folheto de propaganda de aulas de ioga. Deu uma olhada no relógio Cartier Tank em seu pulso e considerou a alternativa de voltar para casa. Normalmente desistia de esperar os outros depois de meia hora, e se algum de seus outros contatos editoriais tivessem demonstrado o menor interesse em unir-se a ela em sua nova empreitada, já teria desistido há muito tempo e estaria em casa assistindo a Midsomer Murders. Do jeito como as coisas estavam, no entanto, Cate se sentia muito solitária. As três pessoas com quem tinha conversado disseram-lhe que estavam insatisfeitas no trabalho. O negócio era que nenhuma delas estava assim tão insatisfeita a ponto de querer se arriscar com Cate. Nem mesmo Cecil Bradley, que, apesar de ter dado muito apoio à ambição de Cate, não demonstrou interesse em largar a aposentadoria. Francamente, só tinha sobrado uma pessoa: Nick Douglas. E ele nem se dava o trabalho de aparecer. - Cate Balcon? Ela ergueu os olhos e viu um homem alto e esbelto usando jeans e um casaco comprido de lã cinza. O cabelo castanho-claro era curtinho, os olhos cor de avelã eram intensos e a boca carnuda e grande não sorria. Nick Douglas tinha aquele tipo de beleza introspectiva e o corpo magro de esquiador que geralmente deixava Cate babando. Mas sem nenhuma palavra de desculpa e nem mesmo um sorriso, Nick Douglas parecia o pesadelo de escola particular típico de sua adolescência. - Nick? Eu já estava quase indo embora. - Ela não conseguiu impedir que as palavras saíssem em tom rancoroso. - Nós combinamos às 9h30. - Na verdade, foi às nove - disse Cate com um sorriso fino e paralisado. Respirou fundo. Não queria que as coisas começassem mal. Nick certamente também não parecia enamorado pela primeira impressão que teve dela. - Posso pegar uma bebida para você? - perguntou ela, tentando quebrar o gelo. - Não, não, eu pego - respondeu Nick. - Eles me conhecem aqui. Vinho branco, certo? - Chega de vinho - disse Cate, sacudindo a cabeça, ciente de que estava se sentindo meio tonta depois de duas taças grandes de Chardonnay em uma rápida sucessão. - Só uma Diet Coke, por favor. Com limão e gelo. - Uma garota Diet Coke - disse ele, depois sorriu e se afastou. Cate sentiu sua aversão por Nick Douglas aumentar. Enquanto ele se dirigia para o bar, Cate reparou que ele havia imediatamente atraído a atenção de uma garçonete loira bonitinha. Talvez ela tivesse concordado com aquela reunião de maneira apressada demais. Ele podia ser amigo de Tom, mas Cate não fazia a menor ideia de quem era Nick Douglas, e agora lá estava ela, meio bêbada em um bar de Londres, prestes a mostrar para aquele novo-rico arrogante seu precioso projeto de revista. Como podia saber se este tal de Nick Douglas não iria roubar todas as suas idéias e depois largá-la como uma batata quente? Quando ela já tinha terminado o restinho de seu vinho, Nick chegou com as bebidas, tirou o casaco e se apertou no espaço minúsculo ao lado dela, pressionando sua perna quente coberta de jeans contra a dela. - Isto é meio esquisito, não é? - Ele sorriu pela primeira vez. - Como assim?


- Parece um encontro às escuras. Cate deu uma risada nervosa. - Bom, com certeza eu estava me sentindo como se tivesse levado o cano. Ele deu um gole em sua Guinness e deixou um bigode branco espumoso no lábio superior. - Peço desculpas. Eu não sabia que era às nove. - Ele sorriu. – Eu estava assistindo, bem, ao final de Midsomer Murders, para falar a verdade. Cate deu uma gargalhada baixinho e fez um brinde com seu copo de Coca contra o copo de cerveja dele, cheia de sarcasmo. - Obrigada. Fico feliz em ver que estava ansioso para me conhecer. Nick ficou irritado. Ele sabia que não era correto se atrasar, mas estava fazendo um favor a ela, não estava? Só comparecera porque Tom pedira. Tinha certeza de que Cate seria a irmã gêmea carreirista daquela vaca de Serena, com aquele monte de luzes loiras e aquela atitude aristocrática. Tinha testemunhado anos de implicâncias de Serena com Tom, seu velho amigo de escola. Ele não tinha a menor intenção de entrar no mesmo padrão e sem os benefícios da cama. - Tom disse que você esteve nos Estados Unidos. Por que saiu de lá? - perguntou Cate. Nick olhou para ela. Não via razão para tentar impressionar aquela princesa cheia de enormes privilégios, de modo que só deu de ombros e contou a verdade. - Pela mesma razão que a maior parte das pessoas abandona um emprego com um salário ridículo de tão grande em Nova York e volta para Londres desempregado. Cate sorriu para ele. - Foi demitido? - Acertou de primeira. - Bom, então somos dois - disse ela, e depois sorriu com um quê de acanhamento. Nick relaxou e ficou olhando para a boca de Cate, aberta em um sorriso. A maneira como ela tentava esconder o nervosismo na verdade era bastante terna, pensou. Pena que fosse uma vaca tão pomposa. Nick tomou um grande gole de Guinness e prosseguiu. - O engraçado é que é horrível ser demitido e tudo o mais, mas eu meio que fiquei contente. Estava de saco cheio, mas podia ter continuado a fazer a mesma coisa por mais dez anos, com o meu apartamento bacana no West Village e os fins de semana de verão em Hamptons. Era bacana. Bacana de verdade. Mas quando as coisas ficam bacanas demais, a gente pára de se arriscar. - Quando ele sorriu para Cate, leves ruguinhas se formaram ao redor de seus olhos. - Então, como vão as coisas na sua editora? - perguntou Cate, sentindo-se como se o estivesse entrevistando. - Foi isso que Tom lhe disse? Que eu tinha uma editora? - Nick deu risada e enxugou o copo de cerveja. - É menos uma empresa e mais uma ideia. Sabe, tenho ótimos contatos no mundo publicitário e conheço algumas pessoas do mercado financeiro que poderiam se interessar em investir em um produto de mídia, mas ainda não tenho exatamente um produto para apresentar. Quando se deseja começar uma empresa, o primeiro produto tem que ser absolutamente certo, e não acho que a revista O Seu Papagaio vá botar fogo no mercado financeiro. - A sua idéia é uma revista de passarinho? - disse Cate, sentindo o coração apertado. - De papagaio. - Bom, o mercado de animais de estimação é enorme - admitiu ela, sem querer tirar sarro da idéia dele.


Nick começou a rir; era uma risada profunda e ruidosa. - Não, eu não vou fazer uma porcaria de uma revista de papagaio. Era piada. Foi a vez de Cate se irritar. Como ele ousava fazê-la se sentir idiota se ela só estava tentando ser gentil? Abaixou a cabeça para que ele não visse suas bochechas ficando coradas e começou a remexer na bolsa, tentando encontrar o celular para chamar um táxi. Para ela, já bastava. Nick Douglas obviamente não era o sujeito encantador que Tom descrevera. Como não conseguia encontrar o telefone, tirou uma pasta fina na qual tinha organizado com layouts e sugestões e colocou em cima da mesa. - É isto aqui? - perguntou Nick, esticando o pescoço por cima da mesa. Antes que Cate pudesse detê-lo, Nick já estava estendendo a mão para a pasta de couro preto. Ela esticou a mão com muita rapidez e pousou-a sobre a dele. - Eu não peguei para entregar para você - explodiu ela, puxando a pasta. - Então, por que estamos aqui? - Ele olhou para a linha irritada e determinada da boca de Cate e achou, apesar de tudo o que pensava, bem fofa. - Ei, não fique tão preocupada. Nick riu com mais suavidade, erguendo as mãos em sinal de rendição. - Eu não sou a KGB! Se está preocupada com a possibilidade de eu roubar a sua ideia, o que obviamente não vou fazer, posso assinar um contrato de sigilo. - Um o quê? - Um contrato de sigilo. Não que isso valha o papel em que está escrito, mas eu fico contente de assinar. Cate respirou fundo e olhou nos olhos intensos de Nick. - Tudo bem - disse ela, empurrando a pasta na direção dele. – Eu confio em você completou, em um tom não muito convincente. Nick retribuiu o olhar dela e então assentiu com a cabeça. Ele abriu a pasta e começou a examinar o conteúdo de maneira paciente e metódica, analisando os layouts e espalhando-os por cima da madeira desgastada da mesa do bar enquanto Cate dava início a uma descrição apaixonada de suas idéias e de sua crença de que realmente existia um nicho no mercado. Ele continuou folheando as páginas, de vez em quando dando uma olhadela em Cate. Ela estava sentada embaixo de uma luminária na parede e a luz se espalhava por seu rosto. Parecia reluzir de tanta felicidade. - Adorei isto aqui - disse Nick, finalmente. - Estou impressionado de verdade. É muito inovador. Faz todas aquelas revistas de viagem repetitivas parecerem a maior chatice, sem personalidade nenhuma. E a moda está linda - disse, apontando para uma foto de Serena montada em cima de um elefante com um sol indiano de fim de tarde brilhando em sua pele. - Faz as revistas de moda parecerem completamente sem graça. - Bom, é uma foto de Mario Testino. - Cate deu de ombros, tentando não explodir de orgulho. - Ele faz as pessoas parecerem exóticas e exuberantes. - Mesmo assim, isto aqui é brilhante, Cate. Sei que os anunciantes simplesmente vão amar. É glamouroso, é escapista, é novo. E, com certeza, não há nada assim nas bancas. Ele fechou a pasta com um som abafado. - Então? - Cate percebera que ele tinha gostado, mas não tinha certeza se enxergava ali uma oportunidade de negócio. - É exatamente o que eu, desculpe, o que nós precisamos – prosseguiu ele com cuidado. Do ponto de vista comercial, seria uma loucura uma pequena empresa iniciante lançar uma revista feminina de grande circulação como a Marie Claire ou a InStyle. A gente simplesmente não teria bala para competir. E se tentássemos, as grandes empresas como a


Alliance simplesmente tentariam nos destruir com a força que têm nas bancas. Mas isto aqui - ele fez um brinde com seu copo de Guinness vazio contra o copo de Coca de Cate -, isto aqui é genial. Uma revista de viagem e moda é um belo nicho para construirmos uma empresa próspera que não vai entrar no radar das grandes. Mas também é comercial o bastante para ter circulação de 50 mil por mês, fácil. E também conseguiríamos bons anunciantes. Cate sentia o corpo todo formigar. - Então, o que tudo isso quer dizer? - perguntou. - Quer dizer que pode dar certo. Ela sentiu o estômago dar cambalhotas de animação. - Que maravilha. Então, qual é o próximo passo? - A primeira coisa de que precisamos é um plano de negócios para apresentar a investidores em potencial. Eu faço as contas e delineio a estratégia editorial. Você precisa preparar uma apresentação muito bem amarrada disso que acabou de me mostrar. Tem que ter todas essas coisas editoriais maravilhosas, mas precisamos demonstrar que existe uma brecha no mercado, então preciso de todos os fatos, os números e o volume de circulação de qualquer concorrente em que possamos pensar. Idéias começaram a quicar entre eles como em uma partida de tênis em Wimbledon. - Vou fazer uma lista de todas as celebridades, assessorias de imprensa e fotógrafos que podemos ter do nosso lado. - E eu vou falar com os meus contatos publicitários. Se a gente pudesse conseguir a Armani, a British Airways, a Chanel... qualquer um dos principais anunciantes antes de ir pedir investimento no mercado financeiro, seria fantástico. Cate anotou tudo furiosamente em seu bloquinho de capa preta Moleskin. Quando ergueu os olhos, viu que ele estava sorrindo para ela. - O que é tão engraçado? - Você. Parece um castorzinho ocupado. Com toda a animação, ela quase tinha se esquecido de que Nick Douglas era o sujeito mais arrogante e presunçoso que ela conhecera em muito tempo. - Bem, senhor Douglas, se acha que eu sou assim tão engraçada, então peço desculpas por ter estragado seu showzinho de cabaré. Preciso ir andando. Nick olhou ao redor e, notando que o bar se esvaziava rapidamente, enfiou o braço no forro de seda cor de escarlate de seu casaco. - Eu também preciso ir. Minha namorada fica nervosa quando eu fico fora até tarde com outras moças - brincou, sentindo que ela estava meio de mau humor. - Se já terminamos para a cara honorável, será que isso significa que fechamos negócio? Ele lançou um sorriso para ela que derreteria seu coração de tanta sensualidade se não estivesse estampado em um rosto tão arrogante. Contra tudo o que lhe passava pela cabeça, Cate estendeu a mão e deu-lhe algo parecido com um sorriso. Ela estava irritada, sim, mas alguma coisa nos planos daquela noite a deixara toda formigando de animação. Se tivesse que escolher entre ele ou a revista... bom, simplesmente teria que arriscar. Ofereceu a mão. - Nick Douglas, acho que talvez você tenha acabado de fechar um negócio.


13 Serena estava tão entediada que mal conseguia ficar com os olhos abertos. Apesar de normalmente adorar falar sobre si mesma, estava absolutamente farta de repetir os mesmos chavões de sempre a respeito de seu "trabalho" em Ladrão de casaca. Desde que retornara de Mustique, duas semanas antes, passara três dias estafantes de entrevistas em Londres e dera centenas de entrevistas por telefone para todos os tipos de publicações japonesas e européias. Perguntas chatas de gente que mal sabia falar uma palavra em inglês. Agora, tinha mais dois dias de entrevistas para a imprensa e a televisão em Nova York, e se precisasse repetir mais uma vez a resposta clichê a "O que me atraiu neste filme", jurou que cometeria hari-kari com o salto de seu Jimmy Choo. - Última pergunta, por favor - disse Clara, a assessora de imprensa, enfiando a cabeça de cabelos curtos na porta da suíte do Four Seasons com vista para o Central Park, onde Serena sobrevivia à última entrevista do dia. Graças a Deus, pensou Serena, forçando mais um último sorriso ao jornalista da Time Out New York. Tomou um gole delicado da água mineral Badoit e cruzou as pernas, alisando a prega marcada da calça social Gucci com os dedos. - Mande. O jornalista agitou-se na cadeira. Clara o avisara que todas as perguntas relacionadas ao recente rompimento entre Serena e Tom Archer estavam absolutamente fora da pauta, mas como faltavam só alguns minutos para a entrevista terminar, ele tinha de arriscar. - Então - começou, empurrando o gravadorzinho um pouco mais para perto de Serena -, você e suas irmãs são muito famosas na Inglaterra. Acha que pode conseguir o mesmo sucesso em Nova York? Serena jogou o cabelo por cima do ombro. Esse era o tipo de pergunta de que ela gostava. - Bem, é verdade que sou bastante conhecida em Londres. - Ela sorriu, tentando parecer modesta. - E como as minhas irmãs têm um certo grau de fama... Depois de esquentá-la, o jornalista resolveu partir para o ataque. - Você fez um cruzeiro no barco de Roman LeFey. Foi bom o passeio? Os olhos de Serena se apertaram no mesmo instante. - Foi, Roman é um grande amigo meu e viajamos juntos com frequência. - No mesmo momento ela percebeu onde aquilo ia dar... e não permitiria que aquele canalha superficial conseguisse uma manchete com ela. - O Egito é um país lindo, e eu me diverti muito respondeu ela, evasiva. - E eu soube que Roman a apresentou ao hoteleiro bilionário Michael Sarkis... Serena desistiu, e uma nuvem de desaprovação surgiu em seu rosto. - Estou aqui para falar do filme - explodiu ela, e sua ferocidade era tanta que até o entrevistador casca-grossa recuou, chocado. - Claro que sim - gaguejou ele. - Eu só achei que uma aspa sobre... Serena pegou o telefone a seu lado. - Clara, querida, precisamos de você aqui um instante. Clara irrompeu de novo na sala, segurando sua pranchetinha bem apertada na frente do peito, com um sorriso paralisado no rosto. Ela era uma das melhores assessoras de imprensa do ramo e era capaz de se livrar de qualquer atenção indesejada em um instante. Serena apontou para o jornalista com sarcasmo. - Perguntas pessoais, querida - disse ela, tremendo de nojo. Clara sorriu para o jornalista e enfiou um kit promocional nas mãos dele.


- Acho que por hoje é só. Qualquer informação extra de que você precise deve estar aí. Tchauzinho! O jornalista olhou para ela, murcho, depois enfiou os papéis na pasta e saiu pela porta às pressas, deixando as duas mulheres sozinhas na suntuosidade da suíte. - E então, como foi? Não muito terrível, certo? - perguntou Clara com gentileza, enchendo o copo de água mineral de Serena. Serena largou o corpo no estofamento delicioso de pena de ganso do sofá e pousou um salto-agulha da bota na mesinha de centro, esfregando os dedos por cima do couro. - Estou completamente exausta - disse ela fazendo biquinho. - Jornalistas. Eles são a maior dor de cabeça. Falando nisso, esses lírios estão me deixando enjoada - acrescentou, abanando a mão na direção de um enorme vaso de flores abertas. - Será que você pode tirar daqui e me arrumar uma Aspirina? Tenho de sair deste quarto antes que comece a ficar claustrofóbica. Clara era tão profissional quanto experiente e, com o passar dos anos, tinha lidado com mais divas do que se dava ao trabalho de pensar. Simplesmente deu um sorriso gentil e telefonou para o concierge. - A Aspirina está a caminho - respondeu, ocupando-se em ajeitar as xícaras de café enquanto Serena fazia biquinho no sofá. - Está lembrada - aproveitou para dizer Clara, delicadamente – de que a sessão de Ladrão de casaca para o elenco e a equipe começa às oito? Serena lançou-lhe um olhar de tédio, sem disfarçar. Ela não tinha a menor intenção de ficar sentada no escuro com o terceiro assistente do diretor e a costureira do figurino. E, além do mais, tinha coisas muito mais importantes para fazer do que assistir a Ladrão de casaca. - Creio que não vou conseguir comparecer, querida - respondeu, acendendo um cigarro. Tenho muito o que fazer hoje à noite e quero estar descansada para amanhã. Aliás prosseguiu, como quem não quer nada -, será que você pode providenciar para que amanhã me sirvam San Pellegrino em vez de Badoit? Badoit tem um gosto salgado demais. No andar de cima, na suíte presidencial do Four Seasons, Serena tomou uma chuveirada e então começou a andar pelo quarto de um lado para o outro, cheia de nervosismo. Caminhou até a sala de jantar da suíte, um enorme triângulo de vidro que se projetava por cima da Quinta Avenida que fazia a gente se sentir como se estivesse flutuando no ar rarefeito do Upper East Side de Manhattan. Apoiada na quina da mesa de jantar, olhou para o panorama de Nova York que se estendia à sua frente. O Central Park se transformara em um golfo negro e cerrado na escuridão que ia tomando conta da cidade, enquanto táxis amarelos disparavam de um lado para o outro como vespas. Serena deu mais uma tragada no cigarro. Nova York. Olhando para as luzes da cidade que piscavam à sua frente como uma oportunidade de ouro que se solidificava, ela estremeceu. Nunca tinha se sentido assim tão exultante e, no entanto, tão apreensiva. Em Londres, ela fora a rainha da cena social; isso era seguro e aconchegante. Mas aqui, diante do horizonte de Manhattan, Londres simplesmente parecia insignificante. Serena não queria ser a estrela mais badalada de Londres; queria ser a estrela mais badalada do mundo. E era por isso que logo mais se encontraria com Stephen Feldman no bar do Four Seasons. Feldman era presidente da Feldman Artist Management, que contava com os empresários de artistas mais quentes, mais implacáveis e com as melhores conexões do setor. Ele atuava de costa a costa nos Estados Unidos, era bissexual e brilhante; até uma garçonete com dois neurônios podia virar superestrela de Hollywood nas mãos de Feldman.


E agora ele queria conversar com Serena Balcon. Ela olhou para o relógio, depois olhou para si mesma no reflexo da janela escura. Estava bem... e se desse as cartadas certas, Nova York - e os Estados Unidos - logo seriam dela. - Duas palavras. Grace Kelly - disse Stephen Feldman em seu sotaque nova-iorquino arrastado e afetado. - Na verdade, você vai ser maior do que Kelly. Claro, ela era cheia de classe, mas era filha de um mendigo. Serena Balcon é o artigo genuíno. Eu simplesmente sei que vamos fazer algo muito especial juntos. - Stephen virou todo o copo de claret e chamou o garçom do bar de vinhos para enchê-lo novamente. Serena recostou-se em sua banqueta e deleitou-se com o momento. Estava adorando a atenção que Feldman dispensava a ela com tanta generosidade, observando-a como um técnico que estivesse inspecionando um garanhão premiado. - Dito isso, querida, você tem muitos problemas - disse ele, tirando um grão de poeira de seu paletó de cashmere cor de camelo da Brioni. Serena olhou para ele, surpresa. - Problemas? - disse ela com uma voz alterada, quase cuspindo o coquetel. - Mas agora mesmo você estava dizendo que eu sou maravilhosa! - Querida, ouça bem o que eu vou dizer - falou ele, apertando os lábios. - Se quisermos colocá-la no mesmo patamar de Julia, Catherine e Gwyneth, vamos ter que promover algumas mudanças, e isso começa com a criação de uma estrutura de apoio adequada ao seu redor. Não dá para acreditar que você ainda não tem empresário! - disse ele, incrédulo. Querida, em Los Angeles, até as garçonetes têm empresário. - Eu tenho um agente em Los Angeles e em Londres e uma assessora de imprensa em Londres, e por enquanto está funcionando - respondeu ela, tentando esconder o aborrecimento. Se Feldman não tivesse reputação tão temível, se não tivesse operado maravilhas na carreira de lendas de Hollywood como David Sanders e Michael Montgomery, ela já teria se retirado há muito tempo. - Está funcionando em Londres, querida. Agora você está brincando com as crianças grandes. - Feldman sorriu, passando a mão pelo cabelo loiro com luzes. - Além do mais, você já não tem Tom Archer ao seu lado. Claro que ele era bonitinho, tinha futuro... até andam falando de dar um Oscar para ele, mas já era. Agora, você precisa ser notada por conta própria. – Feldman começou a coçar o queixo, pensando em uma solução. - Colocar você junto com algum membro da realeza hollywoodiana não faria mal nenhum. Veja só como Zeta-Jones subiu às alturas quando conheceu Douglas. Ou que tal ir direto à realeza? Ei, por que não ter um casinho discreto com o príncipe William? Você deve conhecê-lo, certo? Pediram mais uma rodada de drinques, e Feldman explicou seu plano para ela, que era ao mesmo tempo estonteante de tão animador para seu futuro e brutalmente crítico em relação ao seu passado. Serena, ele observou de modo um tanto grosseiro, tinha passado os últimos cinco anos se concentrando em sua celebridade, não em sua carreira. Por acaso ela achava que Julia Roberts ou Tom Cruise haviam chegado lá sem uma estratégia calculada nos mínimos detalhes? Sim, Feldman tinha assistido a algumas das fitas de Serena, disse ele, mas eram filmes medíocres com performances medíocres. No entanto, também havia boas novas. Depois de cinco minutos em sua companhia, disse Feldman, ele havia percebido que Serena Balcon poderia ser uma boa atriz e, mais importante, uma grande estrela, grande de


verdade. A voz dela era fantástica; um pouco melosa, claro, mas saborosa e sensual, e cada um de seus pequenos gestos tinha carisma e expressão. E sua beleza física era fabulosa. - Então, vamos providenciar um curso de atuação para você - disse ele, sem rodeios. Conheço uma pessoa ótima, Ellen Barber. Ela trabalhou na Lee Strasberg durante anos, agora faz muita coisa para mim. Serena se contorceu, sentindo algo entre raiva e acanhamento... e sem parar de pensar a respeito do tal "papo de Oscar para Tom". De onde isso surgiu? Não podia ser daquele filminho insignificante de arte que tinha distribuição do tipo "piscou, perdeu", não é mesmo? - Curso de atuação? A esta altura? Feldman só ergueu as sobrancelhas e olhou para ela. Serena encontrou seu olhar por um instante, depois simplesmente assentiu com a cabeça. Satisfeito, Feldman prosseguiu com seus planos. Ela assinaria com Greg Bloomberg, ex-garoto prodígio da enorme agência CM, que recentemente formara a superagência SPK com alguns outros talentos vindos da William Morris e da CM em Los Angeles. Ele queria que ela fosse atendida pessoalmente por um dos melhores assessores de imprensa, não por um de seus lacaios: Pat Kingsley em Los Angeles, Lesley Dart ou Muffy Beagle em Nova York. E o mais importante é que ela teria que se mudar para Los Angeles. - Los Angeles - gaguejou ela, recuando no mesmo instante. Sua mente viajou para muitos anos antes, para pouco depois de ter sido expulsa da escola St. Mary's, quando pegara um avião para Los Angeles para "vencer". Fora a única vez que deparara com séria oposição do pai e a única vez que não conseguira o que queria. Seis meses, centenas de audições e uma participação minúscula em um comercial de celular depois, ela retomara à Grã-Bretanha com o gosto amargo da Costa Oeste dos Estados Unidos na boca. - Mas eu detesto Los Angeles - disse ela. - A cidade toda não passa de um imenso estacionamento de carros! Stephen deu uma risada. Ele estava certo a respeito de Serena: a garota já era uma diva. - Claro, e é por isso que eu passo a metade do tempo em Nova York. - Bom, então por que eu não posso fazer a mesma coisa? – perguntou Serena, fazendo sua melhor cara de menininha. Feldman refletiu durante um instante. - Pode ser possível. Liv Tyler, Uma, Julianne Moore, muitas das garotas mais importantes moram aqui. Mesmo assim, você teria que ir muito para lá para construir o seu perfil na Costa Oeste, mas acho que dá. O principal é esquecer Londres e vir para onde a ação está, baby! - Então pronto - disse Serena, erguendo a taça. - Acho que fechamos negócio. - Fechamos mesmo, caramba! - respondeu Stephen, fazendo um brinde com seu copo contra o dela. - Quando terminarmos, você não vai ser só uma atriz, vai ser uma marca de negócios internacional: linhas de roupa, perfumes, imóveis. J-Lo vai se cagar nas calças quando vir você se aproximando. Nós vamos ficar ricos, baby, ricos de verdade! Ao sair do hotel e parar na escadaria à espera do carro de Michael Sarkis, Serena olhou-se no espelhinho de seu estojo de maquiagem. Ficou satisfeita com o reflexo. Seu tailleur cor de creme de Stella McCartney, sem nada por baixo para provocar, era o lado certo do casual, mas chique o suficiente para impressionar as senhoras do Upper East Side que estava prestes a conhecer. "Vai ser só um jantarzinho descompromissado", tinha Michael dito, insistindo para que ela comparecesse e conhecesse alguns de seus amigos. Serena ficara desconfiada, mas


lisonjeada com o convite. Desde aquela noite passional em Mustique, Serena e Michael tinham se encontrado tantas vezes quanto permitira a agenda caótica dele. Passaram uma noite no apartamento de Michael em Mayfair quando ele fora a Londres a negócios, jantaram no Voltaire em Paris durante a turnê de promoção européia dela e ficaram juntos em um fim de semana em Nova York. Não saíram de casa; comeram comida chinesa em caixinhas de papelão e fizeram sexo delicioso em todos os aposentos do dúplex de Michael na Quinta Avenida: na Jacuzzi, na mesinha de centro de Philippe Starck, em cima do sofá branco de couro. Ela saíra de lá em êxtase, mas pouco à vontade. Não fazia idéia se o relacionamento deles era só sexo frenético e fabuloso ou se tinha algo mais. O convite para conhecer os amigos de Michael sugeria que podia ser a segunda opção. E, para sua surpresa, pegou-se torcendo para que fosse o caso. - Serena, baby. Você está tão linda que dá vontade de comer. - Ela entrou no banco de trás do Lincoln preto em que Michael a esperava, afundando-se no assento de couro gostoso. Ele fez um sinal para o motorista fechar a janela intermediária. Quando o vidro assobiou em seu trajeto ascendente, ele enfiou a mão embaixo da jaqueta dela e acariciou o mamilo com o polegar. - Diga de novo quem são esses amigos - murmurou ela baixinho, passando a mão por dentro do sobretudo de cashmere dele. - Será que a gente não pode dar meia-volta e ir para a minha suíte? - Mais tarde, baby. Agora tem umas pessoas que querem conhecê-la - disse Michael, sorrindo. Serena aprumou-se imediatamente no banco. - Como assim, querem me conhecer? - Relaxe. É que os boatos a nosso respeito estão começando a circular - explicou ele, depois deu uma risada suave. - Parece que Liz Smith publicou um artigo sobre nós ontem. Eu não vi. Serena ficou chocada, mas não surpresa. Por um lado, certamente era bom os grandes colunistas de fofocas estarem escrevendo a respeito dela, mas, por outro, ela só queria que os outros ficassem sabendo sobre ela e Michael quando estivesse certa a respeito do relacionamento. Tom desaparecera de sua mente tão rápido que às vezes ela se perguntava se realmente passara os últimos cinco anos de sua vida com ele. No entanto, ao estacionarem na frente da casa imponente da East Seventieth Street, ela se perguntava se realmente queria tornar público seu relacionamento com Michael. - Michael, querido. Como é bom vê-lo! - Uma loira platinada de 40 e tantos anos adiantouse quando Serena e Michael entraram na sala de visitas iluminada por candelabros. Harriet Fletch, ex-esposa do milionário dono de restaurantes Daniel Fletch, usava um vestido de chiffon cinza clarinho da Tuleh com enormes brincos de diamantes pendurados nas orelhas. Deu um sorriso fútil para Serena, seus olhos mostrando tanto curiosidade quanto nojo. Jantarzinho descompromissado o caramba, pensou Serena, dando uma rápida olhada ao redor da sala. Era um espaço cavernoso para Manhattan: todo de mármore e carvalho, com detalhes dourados e pinturas a óleo com moldura. Tudo um tanto vulgar, avaliou Serena sem prestar muita atenção, antes de ser distraída por um belo garçom hispânico de casaca preta que apresentava uma bandeja com blinis de caviar a outros protótipos de loira, todas com roupas e jóias de marca igualmente caras e todas com o mesmo olhar faminto e implacável.


Graças a Deus que eu coloquei o tailleur, pensou ela enquanto outro garçom lindíssimo lhe entregava uma taça de Krug. O que aconteceria se tivesse colocado só uma calça da Seven jeans, um salto e um top bonitinho de Diane von Furstenberg? Afinal de contas, era assim que funcionava em Chelsea. - Então, esta é Serena Balcon... ouvi falar muito de você. Bem-vinda à minha casa - disse Harriet, estendendo uma mão magra e ossuda. – Adorei ver a casa da sua irmã na Vogue um dia desses. Venetia é uma decoradora muito talentosa! Não aguento esperar até que ela abra uma lojinha por aqui. Serena sorriu com muita graça, mas se irritou por dentro. Com certeza não precisava ser lembrada daquela pequena vergonha; ainda estava se recuperando do fato de Venetia ter saído em sua revista preferida. Serena tinha garantido pessoalmente que a casa de Venetia em Kensington fosse a principal da reportagem, mas, mesmo assim, a Vogue era seu terreno, e não gostava de ver as irmãs se intrometendo. - E como é adorável vê-la aqui com Michael - prosseguiu Harriet, acariciando a bochecha de Michael. - Um dos meus homens preferidos no mundo. A verdade era que Harriet Fletch estava longe de deliciada por ver Serena ao lado de Michael. Na segunda-feira, quando ouvira no salão de Frederic Fekkai o boato delicioso de que Michael e sua namorada-modelo de dois neurônios tinham se separado, não perdera tempo em organizar uma de suas lendárias soirées. Desde que se divorciara de Daniel Fletch, Harriet estava à procura do marido número quatro, e Michael Sarkis mais do que preenchia sua longa lista de exigências. Fabulosamente rico, incrivelmente sensual e com aqueles hotéis de luxo espalhados por todo o mundo, ela nunca mais precisaria gastar um centavo que fosse no salão Bergdorf! Portanto, começara a destilar veneno quando lera, tomando seu citron pressé e comendo suas panquecas sem trigo, que Michael tinha sido visto acompanhando aquela moça inglesa rica. Mas ao ver Serena em carne e osso, Harriet sentiu que ainda não estava derrotada. Certo, Serena era bonita, mas com aquela expressão alheia e aquele sotaque de princesa Diana, essa moça Balcon era a encarnação da rainha do gelo, e Harriet sabia, graças ao circuito de fofocas do Upper East Side, que Michael gostava de mulheres exóticas, maleáveis e extremamente aventureiras na cama. Aquele britânica congelada e frígida não duraria nem dois minutos. Claro, Harriet assegurara-se de que Serena ficasse longe de Michael durante o jantar: colocou-a entre pessoas que com toda a certeza não gostariam dela. Courtney Katz, a melhor amiga de Harriet e conspiradora social sem escrúpulos, e Gary Becker, cirurgião plástico das estrelas, que com certeza não apreciaria nada o visual carnudo e natural de Serena. No entanto, Harriet não levara em conta a maleabilidade social de Serena: veterana das soirées do pai, ela era capaz de travar conversa animada com um monge trapista tímido. Quando os convidados tinham chegado ao suflê de pistache, Serena tinha conduzido a conversa para o terreno seguro dos jantares sociais: discutiam se os Hamptons ainda eram o melhor destino de fim de semana de verão. Serena permitiu que a conversa flutuasse por cima de sua cabeça e deu uma olhada para Michael, ensanduichado entre Harriet e uma mulher elegante na casa dos 60 anos na outra ponta da mesa. Ele inclinou a cabeça na direção dela e sorriu. Ela lhe enviou uma piscadela vagarosa em retribuição, sem perceber que Harriet observava cada movimento seu. - Se alguém quiser tomar café no escritório, sinta-se à vontade – anunciou Harriet repentinamente, determinada a interromper aquele momento de intimidade.


- Vamos? - convidou Gary Becker, o cirurgião plástico sentado à esquerda de Serena, puxando a cadeira dela. Estava ansioso para passar mais tempo ao lado da bela inglesa: ela era a primeira mulher que ele via em anos que não precisava de melhorias cosméticas. Era como uma pedra preciosa para seus olhos artísticos, uma orquídea perfeita para um botânico. Os convidados atravessaram a porta dupla da sala de jantar e foram para o "escritório". A sala enorme estava apinhada de sofás de couro superdimensionados e luminárias com cúpulas gigantescas, que lançavam uma luz amarelada na sala e nas paredes de livros cuidadosamente alinhados. Ansiosa para dispensar Gary, Serena começou a andar pela sala, passando os dedos na lombada dos livros. Não era exatamente como a coleção de Huntsford, pensou, arrogante: o mais provável era que tivesse sido arranjada por um decorador que levara para lá os volumes científicos encadernados em couro, os livros pesados de arte e arquitetura, até mesmo a fileira de clássicos da Penguin em branco e laranja. Cada um deles parecia não ter amor nem ter sido lido. Ela pegou um café preto de um dos lindos garçons onipresentes, atravessou outra porta e se viu em outra sala espaçosa, dessa vez cheia de antiguidades inglesas e francesas. Quem disse que os imóveis de Nova York eram pequenos?, pensou Serena. Ao perceber que o café tinha levado embora o gloss cor de ameixa de seus lábios, foi procurar o banheiro para dar um trato no visual. Como todos os garçons estavam atendendo aos convidados com bules de café de prata, ela afastou a idéia de pedir informações e dirigiu-se para o andar de cima, seguindo a curva do corrimão grosso de mogno que subia. Os amplos corredores tinham quadros de fotografias em preto-e-branco pendurados nas paredes e cheiravam a lírios, mas não havia sinal de banheiro nenhum. Quando já estava se virando - para voltar, ouviu vozes dizendo seu nome. O som havia vindo de um quarto no fim do corredor, para onde ela se dirigiu. Através da minúscula abertura da porta encostada, viu um espelho enorme rodeado por lâmpadas e captou um vislumbre de Harriet Fletch e Courtney Katz retocando a maquiagem pesada. - Não sei como ela consegue ganhar a vida como modelo – disse Harriet cheia de veneno, esfregando uma mancha de cor nos lábios. - É meio gorda, não é mesmo? Deve pesar no mínimo 55 quilos. Com toda a certeza não devia estar usando aquele terninho branco. - Também me pareceu meio maçante - disse a vizinha de jantar de Serena. - Mas tem a pele linda. Serena sentiu os pelinhos de sua nuca se arrepiarem. Gorda? Maçante? Nunca tinha sido chamada de gorda nem de maçante na vida. - Quer dizer, quem é ela, além de ser a ex de Tom Archer? – perguntou Harriet, a voz abafada pela porta. - É atriz, acho. Mas não sei lhe dizer nenhum filme em que ela tenha atuado - respondeu Courtney, mordaz. Serena apertava os maxilares de raiva enquanto ouvia as duas mulheres desprezarem suas roupas, sua carreira, sua família. Apenas um segundo antes, ela estivera dizendo como a casa de Venetia era fabulosa; agora, Harriet Fletch a desprezava como "cheia de tralha". Tremendo de raiva, ela teve que colocar a mão na borda da xícara de café para que parasse de fazer barulho em sua mão trêmula. - O negócio é que esses britânicos de classe alta ainda acham que são alguma coisa especial - prosseguiu Harriet. - O Império acabou, querida... estamos no século XXI! E a maior parte dessas famílias ditas grandiosas tem pouquíssimo dinheiro hoje em dia. Quer dizer, aquela


mulher que escreve Harry Potter. Ouvi dizer que ela ganha mais do que a rainha hoje em dia. - Não sei por que você estava tão preocupada - riu Courtney, fechando o estojinho de póde-arroz com um estalo. - Tirei o máximo que pude de informações dela durante o jantar. Vai voltar para a Inglaterra amanhã. Só está fazendo uma divulgação aqui. - É mesmo? - disse Harriet, o júbilo escorrendo por entre seus lábios finos cor de coral. Bom, acho que vou dar uma ligada para Michael na segunda-feira. Talvez eu o convide para um jantar mais íntimo. Ao ouvir as mulheres se afastando da penteadeira, Serena disparou para dentro de outro quarto e ficou esperando até escutar o som dos saltos delas estalando no assoalho do andar de baixo. Respirou fundo para se recompor. Como aquelas mulheres pavorosas ousavam falar daquele jeito? Quem exatamente achavam que eram? Se fossem capazes de traçar sua linhagem cinquenta anos para trás até algum milionário qualquer, já se consideravam realeza social. Elas eram anacronismos, abutres; mulheres que eram capazes de fazer um homem cair na armadilha do casamento e depois deixar a carcaça dele limpinha antes de passar para o próximo trouxa. Após mais alguns momentos queimando de raiva pura, Serena se recompôs e deslizou escada abaixo para se juntar mais uma vez à festa, conscientemente ignorando Harriet Fletch, que dava bronca em um garçom por colocar um bule de café quente diretamente em cima de uma escrivaninha antiga. - Ah, você está aqui, querida - disse Michael, aparecendo ao seu lado e colocando a mão na cintura dela. - Está se divertindo? - ronronou ele, roçando os lábios quentes em sua orelha. - Que noite agradável - sussurrou ela, dando um beijo na bochecha de Michael diretamente no campo de visão de Harriet. - Bom, todo mundo adorou você - falou ele com uma voz arrastada, conduzindo-a através de portas envidraçadas para um terraço que dava vista para o Central Park. Michael puxou Serena em sua direção e aconchegou seu rosto nas mãos. - Quanto você está gostando? sussurrou ele, dando um beijo na ponta do nariz dela. - Muito ou o suficiente? - O suficiente? Como assim? - perguntou Serena. Michael fez uma pausa, enquanto um sorriso perigoso brincava em seus lábios. - O suficiente para se mudar para cá? Para passar mais tempo comigo? Serena recordou sua conversa com Stephen Feldman, e um arroubo de animação fez seu estômago remexer. - Ah, acho que eu suporto Manhattan - respondeu ela, depois riu e entrelaçou os dedos dele nos dela com suavidade. - Bom, então venha morar comigo - disse Michael baixinho. - Eu sei que é um pouco precipitado para você, mas simplesmente quero vê-la o tempo todo. Não quero ter de jantar ou passar a noite com você só quando estiver às voltas com algum compromisso de negócios. Quero que você esteja aqui. Ela virou para o outro lado, a fim de enrolar um momento para poder pensar. Queria desesperadamente morar em Nova York, mas será que não era cedo demais para mergulhar em qualquer coisa? Os olhos dela se afastaram do horizonte de Nova York para dentro da casa, onde a sala de visita cor de âmbar brilhava no escuro. Parada atrás da porta envidraçada estava a silhueta de Harriet Fletch, olhando fixamente para o terraço, a mão no quadril, observando-os com muita atenção. Serena deu um sorriso triunfante na direção dela antes de voltar-se para Michael e roçar sua orelha com o nariz.


- Morar com vocĂŞ? - cochichou em tom brincalhĂŁo, sem deixar de olhar para Harriet por cima do ombro dele sem nem piscar. - Seria um enorme prazer.


14 - O problema que vocês precisam enfrentar é o seguinte - disse David Goldman, enfiando o garfo em um filé entre "ao ponto" e "mal passado" e tentando se fazer ouvir acima da multidão que lotava o Coq D'Argent para o almoço. - Estão tentando levantar dinheiro para publicar uma revista, um dos negócios mais arriscados de todos, e os investidores têm medo disso. - Goldman fez uma pausa para mastigar a carne e olhou para Cate e Nick sentados nervosos na frente dele, do outro lado da mesa. - E eles têm medo por uma boa razão. Vocês sabiam que de 453 lançamentos de novas revistas para o consumidor, 360 já fecharam? Não é uma probabilidade muito boa, não é mesmo? Cate tomou um gole de vinho e avaliou seu convidado para o almoço. Um investidor astuto, com seus 30 e poucos anos, bronzeado de Meribel e que vestia um temo imaculado, feito sob medida, da Gieves & Hawkes: David Goldman exalava segurança. Era uma pena que nem um pouco daquela confiança parecia estar direcionada ao projeto de revista deles. - Tudo isso pode ser verdade - disse Cate, dando uma olhadela para Nick em busca de apoio -, mas as revistas que obtêm sucesso são capazes de render muito dinheiro. Nós temos um ótimo produto, anos de experiência, uma equipe de gerenciamento forte... David limpou os lábios com um guardanapo de linho, os cantos de sua boa se curvando para cima em um sorriso. - Cate, você não precisa me convencer de como a sua proposta é boa. Seu histórico fala por si só. Já o nosso jovem Nick - ele bateu no braço do amigo de brincadeira com o guardanapo -, a gente se conhece desde o primeiro dia de faculdade, então eu sei que, apesar de ele ser capaz de agir como um bufão, pode fazer qualquer coisa dar certo quando se dedica a ela. Nick Douglas conseguiu dar um sorriso fraco. Preso dentro de seu temo que não servia muito bem, bebendo vinho que sabia não ter condições de pagar se David não se oferecesse para acertar a conta, Nick estava se sentindo desconfortável desde o início do almoço, e a análise dura que o amigo fizera do negócio não tinha ajudado em nada. - Obrigado pelo voto de confiança - balbuciou ele, remexendo suas mouzes-frites sem entusiasmo nenhum. - Mas, falando sério, você acha que nós temos condições de levantar dinheiro para fazer isto ou acha que estamos perdendo tempo? Precisamos lançar em junho, senão vamos perder todos os negócios do verão... o que não é muito bom para uma revista de viagem e estilo. A única outra opção é deixar para daqui a nove meses, mas daí eu já vou estar desempregado e falido. David Goldman deixou que seus olhos vagassem pelo restaurante até pousarem em uma loira voluptuosa de saia curta e justa que se balançava pelo salão. - Bom, o outro problema no caso de vocês, claro - disse, voltando-se com relutância na direção de Nick mais uma vez -, é a quantia de dinheiro que desejam levantar. Quanto é mesmo? - perguntou, virando as páginas do plano de negócios imaculado que Nick colocara na frente dele. Assentiu com a cabeça e apertou os lábios. - Um milhão e meio de libras? Havia algo na maneira como ele disse aquilo que fazia a quantia parecer insignificante. - Qual é o problema? - perguntou Nick, ansioso. - É demais? Não é o suficiente? David pousou a taça de vinho sobre a capa do plano de negócios, deixando uma marca bordô. - É uma quantia difícil, só isso. Um pouco grande demais para a maior parte dos investidores individuais, um pouco pequena demais para as empresas de investimento de risco. Normalmente, elas tratam de investimentos que ultrapassam bastante os cinco milhões. Mesmo assim, não gostam de empresas que estão entrando no mercado.


Nick e Cate pareciam murchos. Desde seu primeiro encontro, havia pouco mais de uma semana, tinham trabalhado 15 horas por dia para criar um plano de negócios convincente. Agora que estavam sentados em um dos mais quentes refúgios de investidores mais quentes do distrito financeiro, com acordos multimilionários ricocheteando nas paredes ao redor deles, tudo estava começando a parecer uma grande perda de tempo. - Tem alguma coisa para nos dizer? - perguntou Nick, taciturno, examinando o rosto do amigo com seus grandes olhos cor de avelã. O rosto de David lentamente se abriu em algo que parecia um sorriso malicioso. - Olhe, se não fossem vocês dois sentados à minha frente agora, eu dispensaria a proposta neste minuto. Simplesmente não valeria a pena porque, francamente, as minhas chances de conseguir esse dinheiro são, no máximo, de cinquenta por cento. Mas... - Ele olhou para Cate e mostrou-lhe uma fileira de dentes retinhos e brancos - ... tem alguma coisa bem sexy na idéia de investir em uma revista feminina. - Ele riu, seus olhos ainda fixos em Cate. Certamente é muito mais glamouroso do que colocar o dinheiro em aparelhinhos; embora os aparelhinhos sejam um investimento muito melhor, na minha opinião. No entanto prosseguiu ele, passando o dedo de cima para baixo no cabo da taça -, admito que é assim que vocês vão conseguir investidores. Apelando para a vaidade deles. Ele pegou o plano de negócios e enfiou-o em uma pasta de pelica que estava na cadeira ao seu lado, depois fechou a trava com um clique. - Vou dizer uma coisa, vou sondar algumas empresas de investimento para vocês... para ver se alguma delas tem interesse em um pequeno projeto de mídia, mas acho que a melhor opção é arrumar um punhado de indivíduos que tenham dinheiro sobrando para investir. Tudo o que vocês estão pedindo são 200 mil libras para que eles sejam donos de um pedaço de uma revista refinada, e isso significa um dia no jóquei para alguns desses sujeitos. Quem sabe você não consegue marcar um jantarzinho com a sua irmã, Cate? - Ele olhou de novo para Cate em seu vestido preto de seda Alberta Ferretti e se corrigiu. - Aliás, esqueça Serena, marque um jantarzinho com você. Cate deu uma risada educada, afastando cuidadosamente o pé do de David, que parecia ter deslizado para perto do dela por baixo da mesa. - Então, estamos procurando investidores com algum dinheiro no bolso e um pouco de tempo nas mãos - disse Nick. - Sujeitos como o pai de Cate, por exemplo? David aprumou-se na cadeira quando seu radar financeiro detectou uma presa. - É uma idéia, Cate: o seu pai e alguns amigos dele podem querer investir. Realmente me ajudaria a fazer a coisa andar com outros investidores se eu pudesse dizer que já temos um investimento inicial, principalmente se for de alguém de peso. Cate sentiu a cor abandonar seu rosto rapidamente. - Não sei se é possível - gaguejou. - Vamos lá, Cate, dê um telefonema para o seu papaizinho – gracejou Nick. - Por que não liga agora para ele? Vou ligar para Tom para ver se ele nos entrega uma grana. - Nossa família não tem dinheiro saindo pelos olhos, você sabe – respondeu ela com firmeza. - E, de todo modo, não acho que ele vá levar muito a sério. Falo com papai se for necessário, mas... Depois de apenas uma semana na companhia de Cate, Nick já aprendera a reconhecer sua resistência quando o nome Oswald Balcon era mencionado. Lançou um olhar para David. - Tudo bem, tudo bem - disse David, conferindo o relógio. - Se dinheiro da sua família não é opção, será que temos alguma outra fonte para um investimento inicial? Algum de vocês


pode colocar algum dinheiro na mesa, por exemplo? Dá para fazer uma hipoteca em alguma propriedade? Nick riu outra vez. - Até parece que eu estou nadando em dinheiro. Estou desempregado desde o Natal. Cate não disse nada, mas de repente começou a se sentir muito tonta. A última coisa que ela queria ver era sua adorável casinha em Notting Hill, o lindo porto-seguro em que ela investira cada centavo que tinha, transformar-se em uma hipoteca gorda. - Bom, é melhor vocês acharem alguma coisa logo - disse David, bebendo todo o vinho do copo e passando a língua pelos lábios. - Os investidores vão querer ver mais em vocês do que um corpinho bonito e uma boa ideia. - Ele estalou os dedos para pedir a conta e voltou a atenção novamente para a loira de minissaia. Parecia que a reunião estava terminada. - Não fomos muito bem, não é mesmo? - disse Cate, erguendo o colarinho de seu casaco de cashmere cor de creme quando o vento nordeste frio bateu em suas bochechas. Esticou a mão para chamar um táxi. - Bom, poderia ter sido pior - respondeu Nick, entrando no táxi atrás dela. - Para onde nós vamos? Para a sua casa? Ela sorriu. - Minha casa? Quer dizer o nosso escritório, não? - Ela riu, pensando no andar de cima de sua casa, apertado no meio das vigas do telhado, que tinha se transformado no estúdio improvisado deles, com o chão coberto de revistas e as paredes forradas de fotografias e ideias. - Ah, sim, o escritório. - Nick riu, dando ao motorista o endereço e voltando a se afundar no banco enquanto desciam a rua. No entanto, o riso logo foi substituído por um silêncio lúgubre. - Bom, eu realmente não sei como você pode achar que aquilo lá foi bom - disse Cate depois de um momento, olhando através da janela para os trabalhadores do distrito financeiro apressados na garoa. - Basicamente, ele disse que precisamos arrumar uma dúzia de apostadores bilionários ou então esquecer tudo. - É, bom, não subestime o tipo de gente que aquele homem conhece - disse Nick. - Pode acreditar, ele conhece todo mundo. Como você acha que ele chegou a chefe do departamento de corretagem corporativa aos 35 anos? De todo modo - completou -, com certeza parece que ele gostou de você. Cate ficou quase roxa de tão acanhada e fingiu estar olhando para a paisagem. - Não diga bobagem - falou. - Ah, eu já vi as táticas sedutoras de David Goldman em ação, e com toda a certeza ele gostou de você - provocou Nick, cutucando-a nas costelas e tentando despertar uma reação. - Algumas pessoas o consideram algo como um partidão, sabe? Mas na posição de seu colega de alojamento estudantil durante 12 meses, posso dizer que a higiene pessoal dele é terrível. Cate então se virou para ficar de frente para ele e, brincando deu um tapa nas costas de sua mão. - Será que dá para parar? - disse ela, a voz embargada de acanhamento. - E, de todo modo... você não devia nem estar sugerindo uma coisa imprópria dessas. Não é profissional.


Os dois começaram a rir, finalmente quebrando a tensão da reunião. Nick passou a mão pelo cabelo desgrenhado enquanto observava gotas gordas de chuva baterem no vidro embaçado. Mais uma vez, sua voz voltou a ficar séria. - Existem muitos investidores particulares ricos por aí, mas o verdadeiro problema é conseguir o investimento inicial. Concordo com David que é mais provável fazer as coisas andarem se pudermos colocar algum dinheiro do nosso bolso. Mas, falando sério, eu só consigo arrumar uns vinte mil, no máximo. - E eu fiquei muito, mas muito nervosa mesmo com a idéia de hipotecar a minha casa admitiu Cate. - Ainda mais com aquela estatística de que cerca de três em cada quatro revistas novas não dão certo. Parece assustador demais. Durante um segundo, ela ficou se perguntando se eles estavam mesmo fazendo a coisa certa. Não seria mais fácil pegar o projeto e apresentá-lo a Jonathan Newhouse, diretor europeu da Condé Nast, para ver se ele se interessava? Pelo menos ele teria a força financeira necessária para lançar uma revista e, além do mais, poderiam ver o potencial da Sand. - Ah, não vá desistir agora, Cate - disse Nick, sorrindo, como se estivesse lendo o pensamento dela. - E o marido da sua irmã? Ele não administra um fundo multimercado ou alguma coisa assim? Deve estar nadando em dinheiro... nem que seja o de outras pessoas. - Não que eu compreenda totalmente o que é um fundo multimercado, mas já sondei Venetia. Parece que a empresa dele não lida com investimentos assim. Ele só mexe com coisas de alto risco, de alto retorno, e parece que uma revista nova não se encaixa no perfil. Nick assentiu com a cabeça lentamente. - Certo... Cate olhou para ele com ar de súplica. - Nick, eu quero tentar fazer isto eu mesma. Para você, pode parecer que a minha vida é confortável, mas é difícil quando a gente passa a vida toda sendo obrigada a se sentir agradecida por tudo. Aquela era a coisa mais próxima de detalhes pessoais que ele conseguira arrancar dela desde que haviam se conhecido. - E, não, eu também não quero pedir dinheiro para o meu pai – disse ela com cuidado. Mesmo que ele tivesse um monte de dinheiro sobrando para investir, meu pai não está entre as pessoas mais fáceis com quem se lidar. Nick ficou observando Cate, tentando compreender o que ela estava dizendo. - Vocês dois realmente não se dão bem, não é mesmo? - ele disse baixinho, tentando adivinhar as emoções dela. Ela sacudiu a cabeça. - Não é bem isso - disse. - É só que ele é meio imprevisível. Não sei dizer como ele reagiria se eu pedisse a ele que investisse. Por um lado, desde que eu era menina, ele só dizia: "Catherine, você precisa fazer melhor! Você tem de conseguir!" - Ela caçoou do sotaque pomposo dele. - E, sim, agora aqui estou eu tentando fazer alguma coisa, então, nunca se sabe... - Mas e por outro lado? - perguntou Nick. - Por outro lado, ele pode gritar comigo, me fazer chorar e fazer com que eu me sinta uma porcaria completa. Pode acreditar, ele tem uma capacidade incrível de fazer isso com as pessoas, por mais seguro que você se sinta. Ele pode destruir qualquer um em um minuto disse ela, estalando os dedos. Nick colocou uma mão simpática sobre a dela e deu-lhe um sorriso reconfortante.


- Você sempre me passou a impressão de que não tem medo de ninguém... Ela sorriu para ele e de repente se sentiu forte. Colocou a mão no bolso em busca do celular. Batucou os dedos no telefone fechado por um instante, pensando na conversa, em seu tom de voz, nas coisas que ele diria. Guardou o aparelho na bolsa e voltou-se mais uma vez para a janela. - Vamos ver como David vai se virar e depois talvez eu ligue para ele - disse ela. Mas, de algum modo, a idéia de pedir dinheiro ao pai fez com que a possibilidade de hipotecar a casa parecesse muito menos assustadora.


15 - Eu poderia ter comprado a loja inteira! - disse Camilla, rindo, enquanto saía da Christian Louboutin para a calçada em Belgravia. - Quase comprou - disse Venetia, olhando para a irmã que se esforçava para carregar quatro sacolas grandes. - Bom, é meu aniversário! - Camilla sorriu, sentindo-se um pouco culpada por gastar tanto. Ainda assim, seu cartão American Express Black, que só era dado a clientes muito especiais, podia mais do que dar conta de umas 2 mil libras gastas em sapatos. As moças deram uma última olhada nos lindos escarpins de salto ajeitados na vitrine como jóias preciosas e começaram a caminhar lentamente por Belgravia. - Fiz reserva para o almoço no San Lorenzo - disse Venetia, erguendo a gola do casaco Fendi. - O que você quer fazer até lá? Ir à Harvey Nicks? Que tal passar lá em casa para tomar um café? Camilla sacudiu a cabeça. - Ah, desculpe, Van. Eu adoraria ficar mais tempo com você, mas Nat quer que eu esteja em casa às 12h30. Disse que tem uma surpresa. - Ele já deu o seu presente de aniversário? - perguntou Venetia, dando o braço para a irmã. - Ainda não - respondeu Camilla -, mas imagino que esta seja a surpresa. Trinta anos. Desde adolescente, Camilla se apavorava com a idéia de ficar velha. Só que agora, com a grande terceira década que chegava, ela não se sentia assim de jeito nenhum. Trinta anos realmente lhe caíam bem e também combinavam com o lugar para onde ela iria. O Parlamento. Só de pensar, já ficava toda arrepiada e com um friozinho no estômago. - Já é meio-dia. Isso significa que precisamos nos despedir? – perguntou Venetia, fingindo pavor. Camilla assentiu com a cabeça. - Creio que sim. Obrigada pelas compras de aniversário e pelo meu presente lindo, lindo mesmo. - Ela sorriu, segurando a bolsa Jo Malone com fitas pretas costuradas. - Acho melhor entrar em um táxi antes que eu desabe sob o peso das minhas compras. Venetia ficou triste de ver a irmã indo embora. Apesar de morarem a poucos quilômetros de distância uma da outra, Camilla trabalhava tanto que ela tinha sorte quando a via duas vezes por mês. As irmãs se abraçaram e um táxi encostou no meio-fio para pegar a linda moça loira com os braços cheios de compras. - Glebe Place - disse ela antes de se acomodar no banco. Observou as ruas caras de construções de estuque de Belgravia se afastando e ficou imaginando qual poderia ser a grande surpresa. Era um dos apartamentos mais bonitos de uma das ruas de maior prestígio de Londres; todo mundo que via o dúplex de quatro quartos fabuloso de Camilla achava que a decoração era obra dos talentos renomados de Venetia Balcon. Na verdade, Camilla deliciara-se ao recusar a oferta de Venetia para redecorar o lugar quando ela o comprara e, como era fanática por controle, resolvera fazer o trabalho pessoalmente. Tinha escolhido cada tapete, tecido e cortina, supervisionara cada melhoria estrutural e até dera sugestões inovadoras a Tom Barrett, o arquiteto, que ficara tão impressionado com sua noção de design que quase lhe oferecera um emprego. Camilla obviamente tinha um dom oculto, pois o apartamento ficara estonteante. As paredes eram branco-giz, forradas de gravuras de Diane Arbus. Os tapetes eram tão grossos


e macios que pareciam uma camada de pêlo de mink, e o sabor de Extremo Oriente da mobília, em tons de teca escura e cereja, de alguma forma funcionava com o moderníssimo coração cor-de-rosa de néon, uma "obra de arte", e a enorme pilha de livros de fotografia sobre a gigantesca mesa de centro da Perspex. Portas envidraçadas arrematavam dois lados do apartamento, sendo que as portas dos fundos se estendiam para uma sacada cheia de vasos de barro com flores e cercas vivas. Apenas uma pilha de arquivos legais amarrados com barbante vermelho dava a dica de que a casa pertencia a uma advogada, não a uma designer. Camilla chegou ao hall de entrada e encontrou Nat Montague parado no meio do tapete cor de creme, com um pulôver cinza esticado sobre os ombros largos, o cabelo cor de nozmoscada caindo cheio de malícia no rosto. Ela percebeu que os olhos azul-marinho dele brilhavam e que ele estava parado ao lado de uma pilha de malas de couro cru. - Você chegou cinco minutos adiantada - disse ele, sorrindo e pegando uma das malas. Camilla foi até onde o namorado estava e beijou-o com urgência. - Ah, Nat, eu detesto esperar surpresas - fez biquinho. - Diga logo o que é! Para que tanta bagagem? - É a sua surpresa - respondeu Nat, jogando os braços ao redor dos ombros dela e dando um beijo suave em seu lábio inferior. Ele escorregou a mão quente por baixo da parte de trás do jeans dela para acariciar a base de sua coluna e depois as nádegas. Ela se afastou, dando risadinhas. - Nat... Ele deu de ombros, decepcionado. Não haveria nada mais gostoso para ele naquele momento do que tirar toda a roupa dela, levá-la para a cama tamanho imperador e fazer amor a tarde toda. Mas ele olhou para o grande relógio antigo em cima da lareira e percebeu que não dava tempo nem para uma rapidinha em cima da mesa de centro da Perspex. - Calce os sapatos e vista o casaco de novo - sorriu, misterioso. - Estamos de saída. Camilla ficou confusa. Havia uma parte dela muito cautelosa que realmente não gostava de surpresas. - Mas Cate vem aqui às três... - Já cancelei a visita dela - disse Nat, com um olhar presunçoso. Camilla deu uma olhada em sua mesa de trabalho, coberta de arquivos de processos e blocos amarelos de anotações, e sentiu uma onda de pânico. - E eu preciso trabalhar... Ela olhou para a irritação no rosto de Nat e deu um sorriso fraco e preocupado. - Tudo bem, tudo bem. Vamos. Só quando o Aston Martin cinza de Nat entrou na faixa de acesso ao aeroporto Camilla percebeu que provavelmente não iriam comemorar o aniversário dela com um jantar. Pelo menos, não em algum restaurante da Inglaterra. - Será que agora você pode me dizer para onde a gente está indo? - choramingou Camilla, puxando a manga da camisa de Nat enquanto se apressavam na direção do balcão de checkin da Swiss Air. Nat parou na frente do balcão e tirou duas passagens do bolso. - Feliz aniversário, querida - disse ele. - Vamos jantar em Megeve. Por um instante a mente de Camilla repassou todo o trabalho que ela precisava terminar para um processo que começava na terça-feira, mas rapidamente afastou a ideia. Estava indo para Megeve! Ela adorava aquela estação de esqui francesa mais do que qualquer


outro lugar no mundo e adorava esquiar quase tanto quanto adorava trabalhar. Todas as garotas Balcon tinham sido forçadas rampa de esqui abaixo desde que deram seus primeiros passos. Na época, costumavam ir a Gstaad, quando Oswald as abandonava nas encostas nevadas e desaparecia em seu exclusivo Eagle Club. Então, agora, ela encontrara outra estação de inverno para frequentar. Megeve era como Paris nas montanhas: só tinha europeus refinados, comida deliciosa e um charme rústico relaxado, sem o brilho de St. Moritz que ela detestava. E, é claro, era a cara de Nat carregá-la para lá em seu aniversário. Ele tinha uma queda por gestos extravagantes, e como um banqueiro rico com dinheiro da família, podia pagar por isso, principalmente quando o objetivo era o prazer. Nos dois anos que eles estavam saindo, ele e Camilla tinham exaurido, além de todo o calendário social britânico, o internacional também. Haviam passado inúmeros fins de semana nos jogos de pólo na Argentina, nas corridas em Dubai ou no mar das Granadinas. Além disso, Nat passara muitos outros fins de semana com os amigos, divertindo-se no circuito do jetset, enquanto Camilla se preparava para algum processo importante na segunda-feira de manhã. Ela o observou enquanto ele fazia o check-in no balcão do aeroporto. Precisava reconhecer que ela havia tido alguns momentos fabulosos com ele, mas, ultimamente, aquele traço hedonista de seu comportamento andava preocupando-a. Certamente ela não apreciara nada o perfil que haviam feito sobre ele na Tatler do mês anterior, quando fora classificado como a versão inglesa da escória européia. Mas enquanto ele a conduzia até a sala executiva, Camilla lembrou a si mesma que aquela era sua surpresa de aniversário e tentou empurrar qualquer pensamento ruim para o fundo da mente. Chegaram a Genebra às seis da tarde. Um 4x4 os esperava para conduzi-los pelos setenta quilômetros até o vilarejo. À medida que subiam cada vez mais as montanhas, observavam a mudança arquitetônica de blocos de concreto sem charme para chalés de madeira, com pontas de gelo compridas penduradas nos beirais. Quando entraram em Megeve, com suas ruazinhas antiquadas cobertas de neve, Camilla apertou o nariz contra a janela para observar os esquiadores com seus volumosos macacões acolchoados que entravam nos cafés em busca de vin chaud e fondue depois de um dia duro nas descidas. O motorista saiu da rua principal pouco antes de ela se transformar em calçadão, pegou uma ruazinha que subia até uma parte bem alta da montanha e parou algumas centenas de metros acima da cidade, em um chalezinho lindo. A frente era guardada por uma fileira espessa de cerca viva, em que torrões de neve se acumulavam nos galhos como botões gigantes de magnólia congelados; a varanda entalhada estava iluminada com fios de luzinhas brilhantes. - Chegamos - disse Nat, alegremente, enquanto esperava o motorista abrir a porta do carro. - Isto aqui é tão adorável... - disse Camil1a. Uma senhora com ar atarantado saiu do chalé, deixando escapar um facho de luz dourada atrás de si. - Bon sair, bon sair! - exclamou ela, tirando o avental para recebê-los. Nat ignorou as boas-vindas; em vez disso, dirigiu-se para o porta-malas do carro e ficou observando impaciente enquanto a mulher se debatia com as três malas grandes e o par de esquis de Nat. - Merci - disse Camilla, sorrindo pouco à vontade e lançando um olhar acanhado para Nat enquanto ele a puxava para dentro do chalé. - Uau, Nat - suspirou Camilla, tirando a parca e absorvendo o interior do chalé, que era realmente primoroso. Parecia uma fantasia hollywoodiana de como um chalé nas montanhas devia ser: cheio de sofás marrons e


tapetes de pele, almofadas de couro e mantas de cashmere. Cortinas de veludo em tom de chocolate caíam por cima das janelas, velas aromáticas enfileiravam-se nos parapeitos e havia uma cabeça de alce pendurada acima da lareira de pedra, onde o fogo crepitava. Havia uma sauna, uma prateleira de botas aquecidas e uma sala de jogos com uma televisão de plasma gigantesca. Até mesmo Camilla ficou impressionada. - Venha ver isto - disse Nat, conduzindo-a para o fundo do chalé, onde as portas se abriam para um pátio com uma Jacuzzi de pastilhas em mosaico que já estava fumegando e borbulhando. - O que é isso? - riu Camilla riu, sentido frio só com a ideia. - Para mais tarde - disse Nat com um sorriso preguiçoso. Todos os pensamentos sobre trabalho e pastas de processos à sua espera na mesa de casa tinham se dissolvido. - Quer se preparar para o jantar? - perguntou Nat, apontando na direção da escada. - Vou daqui a um segundo. Ela assentiu com a cabeça e subiu a escada até o quarto. Tinha uma vista incrível para todo o vilarejo de Megeve, que brilhava à sua frente na luz cinza-azulada, enquanto a montanha desenhava formas sombreadas e ameaçadoras por trás. Aquilo tudo era realmente maravilhoso, mas Camilla continuava nervosa, sem saber por quê. Relaxe, mulher. Divirta-se um pouco, repreendeu a si mesma. Isto aqui é maravilhoso. Será que você não pode se permitir ser feliz? Ela se sentou na beirada da cama e repassou tudo em sua mente mais uma vez. Nos últimos meses, pelo menos uma vez por semana Camilla se perguntava o que realmente estava fazendo com Nat. Camilla Balcon, uma mulher preocupada e precavida, com um sujeito inconseqüente e baladeiro como Nat Montague. Simplesmente não combinava. Como passara toda a casa dos 20 anos ocupada demais com o trabalho, ela só tinha tido dois namorados de verdade antes de Nat: Jeremy Davies e Crispin Hamilton. Tanto Jeremy quanto Crispin eram advogados: secos, trabalhadores, mais interessados nos processos do que em Camilla. Então, quando ela conheceu Nat na festa de verão do Serpentine, foi como se um fogo de artifício tivesse estourado na mão dela. O sexo era incrível. Fazer amor com Jeremy e Crispin era a mesma coisa que observar a tinta secando na parede em comparação com a paixão que Nat libertava dentro dela. Antes de conhecê-lo, ela nunca tinha tido um orgasmo sequer: agora sabia exatamente por que se falava tanto nisso. E havia as viagens exóticas, as festas loucas e os gestos extravagantes que a faziam se sentir querida e amada. Mas, de algum modo, Nat simplesmente não fazia com que ela se sentisse... ah, não sabia dizer exatamente o quê. Xingando sozinha, ela abriu o zíper da mala de couro, imaginando que diabos Nat tinha trazido para ela. Tirou as roupas rápido, jogando cada peça para um lado, como se fosse uma criança remexendo um saco de doces. Dois conjuntos de lingerie sedosa, entre as peças mais sensuais que ela tinha: dava para ver que a mala fora feita por um homem, sorriu. O macacão de esqui dela; algumas meias, dois pulôveres grossos de cashmere, seu vestido de coquetel preferido, preto e de frente-única da Dior, sapatos de cetim com salto 12 e... o que era aquilo?, ficou se perguntando ao tirar dali uma calcinha de tela preta sem fundilhos. Não reconheceu a peça. Depois de tomar uma chuveirada rápida, colocou o vestido de coquetel e secou o cabelo com o secador até que os fios formassem uma cortina dourada caindo por sobre seus ombros. Como não era muito de usar maquiagem, passou um pouco de blush nas bochechas e aplicou um gloss cor de pêssego nos lábios carnudos. Olhou seu reflexo no espelho e


ficou preocupada de que estivesse formal demais apenas para um jantar em um chalé, apesar de ser seu aniversário. Sua preocupação foi interrompida pelo Peugeot 206 velho da caseira, que fez um barulhão ao ligar e depois desapareceu na distância. - Enfim, sós - exclamou Nat do pé da escada. Ela desceu ao seu encontro; ele lhe entregou uma taça de Chateau Margeux e conduziu-a até a mesa ao lado das janelas compridas. Estava arrumada para duas pessoas, com taças de cristal, guardanapos de linho e louça de porcelana branca, tudo brilhando sob a luz cor de açafrão das velas. - Nunca imaginei que você pudesse ser tão romântico – brincou Camilla, com um fundinho de verdade. As noites românticas anteriores que os dois haviam passado tinham sido interrompidas por pelo menos seis dos amigos de Nat da alta sociedade que apareciam "sem avisar". - Meu objetivo é agradar - disse Nat, entrando na cozinha para pegar uma panela e duas travessas de legumes fumegantes. - Estou me sentindo uma porcaria de um garçom resmungou ele ao colocar a comida na mesa, afastando um cacho de cabelo castanho que lhe caíra no rosto. – Mesmo assim, não queria que a caseira ficasse aqui muito tempo disse ele e pegou uma garrafa de Krug de um balde de gelo cheio de neve. - Feliz aniversário, querida. Ficaram lá sentados durante alguns minutos, comendo. - Amei o pot-au feu - disse Camilla, pegando uma porção do cozido saboroso com um garfo cheio de cenouras na manteiga. - E eu amo você - disse Nat, baixinho, com a cabeça levemente inclinada por cima do copo. O garfo de Camilla ficou paralisado no ar. No ano e meio em que estavam juntos, Nat nunca dissera "eu te amo". Tinha ensaiado as palavras, geralmente quando estava bêbado e, para ser completamente honesta consigo mesma, aquilo nunca fora problema. Camilla detestava aquele tipo de mulher que sempre ficava buscando confirmação com declarações de amor dos parceiros. Ela própria nunca quisera parecer tão fraca, dependente ou desesperada. Deu uma respirada rápida, estupefata com as palavras dele. - Você me ama? - repetiu ela, como se aquele fosse algum tipo de conceito alienígena. Agora estava sorrindo, quase caçoando dele, mas Nat prosseguiu com um ardor que não lhe era característico. - Você me faz tão bem - disse ele, largando o garfo e a faca para olhar diretamente para ela; a covinha em seu queixo estava ficando mais pronunciada. - A minha família ama você, os meus colegas amam você. Ele pegou a garrafa de Krug e se serviu de mais uma taça; passou as mãos pelos lábios, nervoso. - Eu sei que às vezes eu sou meio louco, mas é só o trabalho e a pressão... Camilla começou a brincar com um pedaço de carne no prato, nervosa. - Mas você me acalma. Você me faz ter vontade de me assentar. Estou com 34 anos, pelo amor de Deus. Não posso ficar correndo por aí como um playboy de idade para sempre. Agora foi a vez de Camilla virar um enorme gole de vinho, já que sua intuição lhe dizia que aquela conversa estava tomando um rumo que ela não tinha muita certeza de querer seguir. - Você sabe por que eu a trouxe aqui? - perguntou Nat, fixando seu olhar no dela através da luz das velas. - Fondue? Umas descidas na montanha? - respondeu Camilla, com risadinhas nervosas. - Case comigo - disse ele, na lata.


Um silêncio espesso tomou conta da sala. Camilla sentiu sua respiração ficar mais pesada e irregular. Estava acostumada a pensar em pé, argumentando e debatendo ao mesmo tempo no tribunal. Mas, naquele segundo, estava completamente sem palavras. Sentiu um certo enjôo na boca do estômago. - Casar com você? - disse ela com um sorrisinho, enrolando para ganhar tempo. Nat se levantou e foi até ela. Não se ajoelhou em um joelho exatamente, mas se inclinou sobre a ponta da cadeira e tirou uma caixinha bordô da Garrard do bolso. Abriu-a e revelou um enorme diamante rosado em lapidação marquesa que brilhava amarelo e lilás sob aquela luz suave. - Nós ficamos bem juntos - disse ele. Ela olhou para ele. Será que ele estava sendo sincero? Será que realmente a amava? Fez uma careta. Afinal de contas, o que era mesmo o amor? Mas Nathaniel Montague era um partidão, pensou, recompondo-se. Será que era mesmo? Ele era louco e descuidado, mas era rico, bem-sucedido, importante. O pai dela gostava dele. Não que isso fizesse diferença, raciocinou, afastando imediatamente a ideia da cabeça. E estar com Nat fazia com que ela fosse notada. Não era só Serena que desejava os olhos da multidão sobre si. Ela simplesmente não sabia; estava agoniada e cravava as unhas nas coxas. Nat pegou a mão esquerda dela e, pousando-a no joelho de seu jeans, tirou o anel da caixinha e enfiou-o no terceiro dedo da mão esquerda dela. - Como você se sente com ele? - perguntou com suavidade, embalando-a com a voz. Ela assentiu com a cabeça. Sentia-se bem com aquilo. Era pesado e seguro. Nat fez com que ela se levantasse, pegou-a nos braços e passou a mão por suas costas nuas. Meu Deus, como ele era sensual. - Diga que sim - sussurrou ele no ouvido dela. - Sim - respondeu ela de repente, desejando conseguir relaxar e se deixar levar pelo momento. - Você fez o meu dia - murmurou ele no pescoço dela, tirando o tecido do vestido de seu ombro com um movimento hábil com o queixo. - Você está usando o meu presente? sussurrou ele, levando a mão até a fenda da bunda dela. Por um instante, Camilla ficou se perguntando do que ele estava falando, mas logo se lembrou da calcinha sem fundilhos e começou a sorrir, enquanto uma onda de poder tomava conta dela como uma droga que bate. - Na verdade, não - disse ela, mas, sentindo-se repentinamente corajosa e sensual, olhou para ele de maneira sedutora. - Quer que eu coloque? Ele a pegou pela mão e a conduziu ao andar de cima. O quarto estava imerso em uma escuridão suave, iluminado apenas pela lua que brilhava no céu negro. - Vista - disse Nat, apontando para a calcinha minúscula que estava em cima da cama. Ele se recostou em uma poltrona de couro bege no canto do quarto e ficou observando enquanto Camilla lentamente removia o vestido. Ela se virou, fez a calcinha fio-dental da La Perla escorregar pelas pernas compridas e vestiu a calcinha sem fundilho. - Fique com os sapatos - disse Nat com a voz arrastada e os olhos fixos no corpo reluzente dela, que brilhava como uma linda estátua de mármore ao luar. Ela calçou novamente os sapatos Jimmy Choo de salto 12 e ficou em pé de frente para ele, por um lado sentindo-se pouco à vontade com o teor sensual descarado do que estava


fazendo, por outro, sentindo uma noção fortíssima de feminilidade ao ver Nat ficando visivelmente excitado. - Levante - ronronou ela, esticando a mão. Nat se ergueu lentamente, puxando os botões da camisa. Camilla puxou o cinto dele, abriu sua Levis e abaixou-a, junto com a cueca samba-canção. Ali, em pé, juntos, os dois da mesma altura por causa dos saltos altíssimos dela, Nat enfiou dois dedos entre as pernas dela, rapidamente encontrou o buraco na tela transparente da calcinha e começou a cariciála de leve ali. Camilla gemeu e recurvou as costas. Ao fazê-lo, Nat pegou um de seus mamilos com os lábios e mordiscou-o de levinho. Com os corpos unidos, eles se aproximaram da lareira: Camila dava passinhos para trás e sussurrava ao ouvido dele: - Agora, por favor. Pode me comer. Seus corpos brilhavam à luz das chamas da lareira. Ele a deitou no tapete de pele, beijando todo o seu rosto, depois deslocando lentamente a boca por todo o seu corpo, pegando o elástico da calcinha com os dentes e abaixando-a com um puxão forte. Quando chegou aos pêlos púbicos curtinhos e bem cuidados, enfiou o rosto lá dentro, agitando a língua para dentro e para fora dela, fazendo-a gemer de prazer. - Agora, por favor - implorou Camilla quando os lábios dele se aproximaram dos dela e seu pau pulsante estava pronto para penetrá-la. Ele escorregou devagar para dentro dela, erguendo suas costas da pele de carneiro, de modo que os dois começaram a balançar juntos, cada enfiada indo mais fundo, até que ela viu o rosto dele se contorcer de prazer e sentiu o espasmo do corpo dele ao gozar. - Puta que o pariu, foi incrível - disse ele, ofegante, saindo de dentro de Camilla e rolando para o tapete de pele. Camilla estava nua, à exceção do enorme diamante. Não conseguia parar de sorrir ao admirá-lo brilhando à luz do fogo da lareira. - Oito quilates - disse ele, assentindo com a cabeça e acariciando o anel. - Você sabe como os diamantes cor-de-rosa custam caro? - perguntou, erguendo os olhos para ela para enfatizar o comentário. - É lindo. - E este vai ser um ano grande e lindo para nós dois. De repente, Camilla sentiu frio e puxou a manta de cashmere para cobrir o corpo. - Vai ser um grande ano em mais de um aspecto - disse Camilla, aconchegando-se em Nat. - Ainda não contei para você, mas tenho o Fim de Semana de Seleção de Candidatos do partido Tory no mês que vem. Sabe aquilo sobre o que eu falei para você? Preciso entrar na lista dos aprovados do Escritório Central. Nat virou-se para ficar de frente para ela e apoiou a cabeça na mão. - Amor, você não continua pensando naquela bobagem de ser representante parlamentar, não é? - disse ele, cheio de irritação. - Olhe, que se fodam o Parlamento e aquele salariozinho de merda e as 18 horas de trabalho por dia. Este ano você vai ser minha esposa. Ele se levantou e foi até uma poltrona grande, o pau flácido batendo contra o couro. - Estou pensando em nos casarmos em setembro, talvez – prosseguiu ele, esticando a mão para pegar a taça de vinho que tinha levado para o andar de cima. - Claro que isso exclui metade das melhores opções no estrangeiro para lua-de-mel. Chove para caramba no Caribe nesta época. Mas que tal uma viagem de um mês pela América do Sul? Rio. Peru. Argentina. Talvez possamos até ir ao México.


Camilla olhou para ele e, de maneira inconsciente, cobriu o corpo ainda mais com a manta de cashmere. - Nat, isto é importante para mim - disse ela. - Querida... é uma bobagem. - Bobagem? - Ela se sentiu enervar. - As coisas que eu quero fazer, as minhas ambições, não são bobagens. Ele deu um gole no vinho e riu de leve para ela. - Ah, fala sério. Não precisa ficar toda nervosinha. Com o dedão do pé, ele levantou a calcinha sem fundilho e jogou-a em cima do tapete branco na direção dela. - Mas, bom, que se foda tudo isto. Falamos depois sobre o assunto. Por que você não telefona para casa? Ligue para Venetia. A velha mamãe ganso vai adorar esta boa notícia. Nat recostou-se na poltrona, nu, virando como se fosse limonada mais uma taça de vinho e Krug que trouxera para o andar de cima. Ela abaixou os olhos para o anel rosado estonteante e de repente aquilo pareceu uma depravação. Antes de ter tempo para pensar melhor, foi sobressaltada pelo som de uma buzina alta tocando bem na frente do chalé. - Mas que diabos...? - disse, apertando ainda mais a manta de cashmere em volta do corpo. Nat levantou-se da poltrona de um salto e olhou para o relógio enquanto vestia um roupão atoalhado. - Caralho. Já são nove horas? - O que está acontecendo? - perguntou Camilla ao vê-lo correndo escada abaixo. Nat gaguejou para responder. - JJ e Rich, Ant e alguns outros estão por aqui. Eu disse que a gente podia sair para comemorar. - O quê? - gritou Camilla. Ela se levantou, envolveu o corpo com a manta como se fosse uma toga e foi atrás dele. - Eu não vou a lugar nenhum! Não nesta noite, Nat! Onde você estava com a cabeça? Ouviram-se batidas ruidosas de várias mãos na porta da frente. - Saiam, saiam de onde estiverem - entoou uma voz alta e embriagada. - Eles não vão entrar - disse Camilla praticamente cuspindo as palavras e sentindo o romance se esvair da noite a cada batida na porta. - Caramba, Cammy, pegue leve! - disse Nat. - Descobri que eles estavam por aqui hoje à tarde. Tem uma festa rolando no chalé de JJ. O que você queria que eu dissesse quando eles ligaram? De todo modo - ele sorriu, tentando abraçá-la -, eu sabia que nós iríamos comemorar... - Você nunca consegue se libertar, não é mesmo? - sibilou ela por entre os dentes cerrados, empurrando-o para longe e vislumbrado seu reflexo na janela. Seminu, com o copo inclinado, ele parecia uma versão mais glamourosa do personagem de Dudley Moore em Arthur - um milionário sedutor: um bufão rico e mimado. - Do que é que eu nunca consigo me libertar? - perguntou Nat num tom calmo e apaziguador. - Dos amigos, das festas. Nem mesmo na noite em que você me pede em casamento, droga. Nat sacudiu a cabeça e lançou-lhe um olhar condescendente quando chegou à porta. - Baby, você sabe que me ama! Camilla subiu para o quarto correndo e Nat abriu a porta para deixar cinco aristocratas bêbados e ruidosos entrarem. Sentada no escuro, ouvindo as vozes aos berros, ela percebeu instantaneamente que não se casaria com ele. Ela era Camilla Balcon, destinada ao


Parlamento, e não permitiria que nada nem ninguém se colocasse no caminho de sua ambição.


16 Cate olhou ao redor de si, examinando com ansiedade o impressionante átrio de vidro e aço da PCT, a maior empresa de contabilidade de Londres, e sentiu-se um pouco tonta. Nick Douglas é um desgraçado, murmurou, dando mais uma olhadinha no relógio. Estava atrasado de novo, e em um dia tão importante quanto aquele, ainda por cima. Ela não precisava de mais nada para deixá-la mais nervosa. A apresentação em PowerPoint no laptop dela repousava em um estojo fino ao seu lado e as páginas da boneca da revista saltavam de sua bolsa de mão Bottega Veneta. Ela já estava bem abalada; não havia necessidade de piorar a situação com os vinte minutos de atraso dele. Como David Goldman tinha explicado exaustivamente para ela naquela manhã, aquela era a maior (e provavelmente a única) oportunidade que eles teriam para levantar os 2 milhões de libras de que necessitavam. Afinal de contas, as seis empresas de capital de investimento que David abordara tinham-no rejeitado sem nem assistir a uma apresentação. Então, David tinha mexido todos os seus pauzinhos para reunir 12 investidores particulares que poderiam se interessar e que haviam concordado em se reunir na sala da diretoria da PCT naquela tarde. Se Cate e Nick não conseguissem impressioná-los com a apresentação de hoje... bom, era isso: o fim de um sonho. David não investiria mais tempo nem dinheiro em uma ideia que certamente não chegaria a lugar nenhum tão cedo. E talvez eles tivessem razão, resmungou Cate para si mesma. Talvez aquilo fosse uma perda de tempo. Principalmente depois do telefonema no dia anterior, a ligação pela qual teria matado alguém no dia em que foi demitida. Do nada, o editor da Harper's Bazaar em Nova York quis saber se ela estaria interessada em um cargo de editora contribuinte na prestigiosa publicação feminina. Por que simplesmente não respondeu que sim? Sorriu tristonha para si mesma. A opção mais fácil nunca foi seu estilo. - Desculpe, desculpe, desculpe - disse Nick, voando com tanta rapidez através da porta de vidro que seu sobretudo cor de caramelo esvoaçou atrás dele como uma capa. - Tinha um trem quebrado - disse ele, tentando recobrar o fôlego desesperadamente. - A porcaria do metrô inteiro ficou paralisada. Tive que vir correndo desde Angel. Cate nem tentou disfarçar seu aborrecimento. - Bom, talvez você devesse ter saído um pouco mais cedo - disse ela, seca. Nick ignorou-a e deu um assobio falso de admiração. - Iu-hu! Você está maravilhosa - assobiou e, apesar de não desejar fazê-lo, Cate retribuiu com um sorriso, segura de sua aparência pelo menos por uma vez. Naquela manhã, ela tinha passado séculos se arrumando. O cabelo ruivo-alourado estava preso em um coque elegante, e ela combinara uma saia-lápis preta de Michael Kors com uma malha de cashmere verde-hortelã com gola rulê. A maquiagem - lábios com gloss, bochechas ressaltadas com blush cor de bronze - dava um aspecto natural, porém elegante. Ela parecia profissional, mas não maçante; causava impressão sem intimidar. - Você vai arrasar com eles - disse Nick com uma piscadela, dirigindo-se à recepção de mármore para anunciar sua chegada. Subiram até a sala da diretoria em silêncio no elevador: um não precisava dizer ao outro como aquela tarde era vital. Cate e Nick tinham se empenhado muito mesmo nas três semanas que haviam se passado desde o encontro inicial com David. A boneca da revista estava finalizada, o plano de negócios estava afinado. Tinham feito duras negociações com gráficas e firmas de reprografia para conseguir obter os melhores preços possíveis. Tinham conseguido fazer um acordo para a distribuição da revista em todos os aeroportos, estações de trem e bancas de revista. Tinham até marcado reuniões com anunciantes importantes


como Estée Lauder, Chanel, British Airways e Armani para falar a respeito de apoio caso precisassem se apressar para fazer o lançamento no verão. A porta do elevador se abriu com um chiado e David os esperava. Seus olhos cinzentos estavam sérios, a boca não sorria: este é David em modo de operação, pensou Nick. - Todo mundo já chegou - disse David aos sussurros, apressando Cate e Nick pelo corredor na direção da sala da diretoria. - Dez homens, duas mulheres. Prestem atenção em Nigel Hammond, que está sentado na cabeceira da mesa - disse, baixando a voz ainda mais. Nigel ganhou um bilhão investindo em spread, vai fazer perguntas muito duras, mas, se conseguirmos fisgá-lo, os outros vão acompanhar. - Ao chegarem à pesada porta de carvalho, David virou-se para eles e pousou uma mão no ombro de Nick e a outra no de Cate. - Demonstrem segurança, respondam a todas as perguntas que discutimos e deixem as mais capciosas para mim. Boa sorte. Ele apertou o ombro de Cate, e ela sentiu um brilho caloroso e aconchegante. - Vocês vão ser fantásticos - sussurrou ele quando entraram na sala. A sala da diretoria era tão grande que Cate se sentiu como se a observasse através de uma lente olho-de-peixe. Uma enorme mesa oval de nogueira dominava o centro da sala; ao redor dela, uma dúzia de rostos sóbrios se espalhava, cada um deles pintado com níveis diferentes de hostilidade, tédio, impaciência ou arrogância do tipo "andem logo, quero ver se me impressionam". Apenas Lesley Abbott, uma mulher elegante de seus quarenta e tantos anos, que tinha feito uma fortuna vendendo sua empresa de pesquisa em marketing, parecia levemente aberta. Cate decidiu que concentraria sua atenção nela. David Goldman ficou em pé em uma ponta da mesa e limpou a garganta. Tinha a arrogância de um vendedor de carros e a segurança de um candidato à presidência. - Todos nós sabemos por que estamos aqui - começou. - Este é um projeto que, acredito, tem enorme potencial. Foi elaborado de acordo com pesquisas extensas, conta com uma ótima equipe de administração e, como eles dois explicarão, a revista se encaixa em um verdadeiro nicho de mercado inexplorado. Cate sentiu o estômago revirar quando se deu conta de que era sua vez de falar. Nick lançou-lhe um olhar que era uma mistura de incentivo e ansiedade. Ela se levantou e apertou a tecla "enter" no teclado do PowerBook branco. Uma imagem grande da revista Sand apareceu na tela de projeção atrás dela. - Senhoras e senhores, obrigada por estarem aqui. Gostaria de tomar um minuto para me apresentar e para mostrar a nossa revista de viagem e estilo, a Sand... Caramba, pensou David Goldman ao observar Cate a toda. Ela é incrível. Qual vai ser o gasto de vocês com marketing? É o suficiente? Quem está interessado em anunciar? Vocês acham que as pessoas se preocupam tanto assim com viagens? Quais são as oportunidades de expansão da marca? Perguntas, perguntas, perguntas. Cate e Nick demonstraram experiência ao tratar de cada uma delas com paixão e autoridade. Surpreenderam a si mesmos com sua capacidade de discutir cada objeção. Mas foi difícil. Cate tinha falhado em alguns dos pontos mais difíceis e tinha certeza que tinha deixado de mencionar um número excessivo de atrativos. Cate deu uma olhada no relógio. Caramba, será que só fazia mesmo 45 minutos que eles estavam falando? Estava fisicamente exausta, sua garganta doía, sua boca estava seca e sua


cabeça latejava. Ela precisava de uma taça grande de vinho e de uma boa cama para se deitar. - Posso perguntar, Cate, por que você acha que a sua revista vai fazer sucesso, se centenas de revistas que têm investimentos maiores e editoras mais importantes por trás fecham todos os anos? Nigel Hammond deu um gole em sua água mineral Evian e pousou o copo em silêncio à sua frente. O tom dele era levemente sarcástico, sua expressão, cheia de ceticismo. Nick abriu a boca para falar, mas Cate se adiantou. - Senhor Hammond - começou ela, calmamente. - Não há necessidade que eu diga que existem investimentos mais seguros e mais lucrativos para o senhor colocar o seu dinheiro. Nick Douglas lançou um olhar para David Goldman. Ele tinha ficado da cor de uma parede branca recém-pintada. - Mas este aqui não é um projeto editorial movido pela vaidade – disse ela, apoiando as mãos abertas na superfície da mesa. - Não é uma revista de auto-indulgência. Nosso objetivo é preencher um verdadeiro nicho em um mercado lucrativo, e nós temos o talento, a visão e os contatos necessários para explorá-lo. Sim, para ser honesta de verdade, isto aqui é uma aposta: revistas representam um risco muito alto. Mas para quem tem colhões para investir nisso, não se trata apenas de comprar um negócio com potencial de valorização, mas sim de comprar uma fatia da história editorial. Será que os senhores não gostariam de ter comprado uma revista como a Rolling Stone ou a Wallpaper quando foram criadas na mesa da cozinha de alguém? Ela olhou para Nigel Hammond, que lhe devolveu o olhar, sem deixar nada transparecer. - Talvez, sim - respondeu ele. - Mas por que eu devo me convencer de que você é a mulher que fará isto acontecer, principalmente depois de você ter sido demitida, há pouquíssimo tempo, de seu último emprego? Cate engoliu em seco, as mãos úmidas de suor. Ela sabia que tinha uma escolha muito importante a fazer. Poderia ficar se desculpando ou podia lutar. - Fui demitida em fevereiro, é verdade - disse ela sem alterar a voz. - Mas, senhor Hammond, entre esta dúzia de pessoas bem-sucedidas sentadas aqui nesta sala hoje, aposto que quase todos nós já fomos demitidos em algum ponto da carreira. É o que geralmente acontece com as pessoas que conquistam seus objetivos. Ela deu uma olhada pela sala e reparou que Lesley Abbott sorria para ela. Nigel Hammond afastou o olhar e rabiscou alguma coisa no caderno à sua frente. Em seguida fechou-o de maneira ruidosa, o rosto totalmente impassível. - Cate. Cate! Para onde você vai? - Cate corria do prédio o mais rápido que seus sapatos Manolo Blahnik permitiam, e Nick, com seus mocassins de sola baixa, esforçava-se para acompanhá-la. Ela parou e se virou para ele com os olhos cheios de lágrimas. - Sinto muito - disse. - A respeito da coisa de eu ter sido demitida. Sinto muito... estraguei tudo para nós dois. Vou falar com o meu pai. Talvez ele queira investir, ou quem sabe pode ligar para Philip Watchorn, amigo dele, que tem muitos contatos e é rico e... - As palavras foram despencando de sua boca até ficarem todas emaranhadas, e ela simplesmente deixou os braços desabarem do lado do corpo. Nick simplesmente queria esticar os braços e dar um abraço nela: aquela mulher profissional, linda e dinâmica que, naquele momento, parecia uma criança decepcionada. - Acalme-se, Cate. Acalme-se - disse ele baixinho. - Achei que você se saiu de maneira brilhante. Eu também fui demitido, está lembrada? O problema é que você simplesmente é


mais conhecida do que eu, então as pessoas sabem. - Ele colocou a mão no braço dela, mas ela o afastou com um gesto brusco e apertou o casaco ao redor do corpo. - Aposto que ninguém naquela sala nunca foi demitido - disse, arrasada, remexendo no cinto do casaco. Nick deu de ombros. - Você me impressionou. Eu teria entregado o dinheiro a você. Cate olhou para Nick e podia jurar que as bochechas dele tinham ficado levemente rosadas. - Quer sair para beber alguma coisa? Ela sacudiu a cabeça lentamente. - Vou até Mayfair. Vou conseguir o dinheiro para nós, Nick. Vou, sim - disse ela baixinho e com muita determinação. Ele a observou descendo a rua e lançou um sorriso vagaroso na direção da moça corajosa que chamava um táxi. Estava ficando escuro e as luzes dos postes estavam começando a acender. No fundo do coração, Nick também achava que a reunião não tinha sido muito boa. Tinham respondido a todas as perguntas com paixão e autoridade, mas Cate tinha razão. Era uma aposta. Se ele tivesse um milhão de libras, será que ia mesmo querer colocar em uma revista lançada por uma empresa nova no mercado que poderia muito bem fechar dali a seis meses? Duvidava muito que a resposta fosse sim. A Galeria Balcon ficava enfiada em uma rua pequena, transversal à Mount Street, um bolsão tranquilo e seleto de Londres, cheio de salões de beleza da alta sociedade e galerias de arte refinadas. A orgulhosa fachada de tijolinhos vermelhos tinha um toldo branco imaculado, uma porta azul sóbria e uma vitrine grande cheia de obras-primas caríssimas dos séculos XIII e XIX. A galeria estava a anos-luz de distância dos espaços de arte britânica da moda do East End de Londres, onde homens com mullets pintavam suásticas com sangue para vender a publicitários e roqueiros milionários. A Galeria Balcon localizava-se no outro extremo do espectro de amantes da arte: era para pessoas discretas e endinheiradas da velha-guarda, que preferiam obras mais tradicionais para enfeitar seus lares antiquados em Belgravia e Kensington. Conhecida como uma galeria especializada em pintores flamengos do século XIX, recentemente tinha se atualizado e começara a vender estátuas de bronze do final do século XIX e início do século XX. Quando Cate se aproximou, pôde ver uma bailarina de Degas na vitrine. Cate empurrou a porta para abri-la e um sininho tocou acima de sua cabeça. Sentado à mesa no fundo da sala, Mark Robertson, o gerente administrativo da galeria, preenchia um recibo para um casal de meia-idade vestido de maneira impecável, enquanto Oswald, apoiado na beirada da mesa, conversava com os clientes. Oswald ergueu os olhos e lançou um de seus sorrisos mais charmosos para Cate. - Ah, aqui está minha filha - disse ele, todo orgulhoso. A mulher, com seu cabelo com luzes louro-mel, bolsa Kelly de avestruz Hermes e sapatos Ferragamo, reconheceu Cate da revista Class e abriu um pouco mais o sorriso. - Quer subir até o escritório, querida? Já estou indo para lá – disse Oswald, todo alegre. Cate assentiu com a cabeça e subiu a escadinha em caracol no final do salão. Enquanto avançava, observava o pai trabalhando. Era uma pena ele passar tão pouco tempo na galeria, pensou: era um vendedor nato. Até mesmo aquele cumprimento jovial de pai para filha tinha sido perfeitamente calculado. Performático e charlatão, pensou ela com tristeza. O prédio era alto, comprido e estreito, um espaço perfeito para uma galeria, embora isso significasse que o escritório, localizado embaixo das vigas do telhado, era bem apertado. A mesa no meio da sala transbordava de recibos e papéis; ela se sentou ali e começou a


folhear um catálogo de leilão com detalhes da venda de algumas esculturas raras de Henry Moore. Serviu-se de uma xícara de café de uma cafeteira que estava no aparador e foi bebendo devagar, enquanto sua mente girava em um carrossel de emoções. Sentia-se tão nervosa agora quanto se sentira no início do dia. Mas na sala da diretoria da PCT, sentira seu corpo tomado pela adrenalina, o estômago revirando e o coração acelerado; ali, no escritório da Galeria Balcon, ela se via pequena, apreensiva e resignada. Realmente não queria ter de falar com Oswald, mas ainda podia ver a expressão orgulhosa porém decepcionada de Nick quando saíram da reunião com os investidores. Ela olhou para a boneca da revista dentro da bolsa, com a capa meio amassada e rasgada, e sentiu uma onda de tristeza. Por que estava se comportando de maneira assim tão sentimental em relação a uma revista?, brigou consigo mesma. A revista não era um cachorrinho abandonado, era um negócio... e era um negócio bom para caramba, se alguém os ajudasse. E, enquanto pensava isso, ouviu os passos abafados do pai subindo a escada em caracol. Ele estava usando suas roupas de Londres, reparou Cate, vendo o refinado terno azulmarinho com forro de seda vermelho-sangue: sem dúvida iria a algum de seus clubes de cavalheiros em St. James na sequência. - Então, a que devo este prazer? - perguntou Oswald com animação. - Imagino que queira alguma coisa... alguma coisa importante demais para ser resolvida com um telefonema. Tirou um relógio de bolso de dentro do paletó, examinou-o através das lentes de seus óculos de leitura em formato de meia-lua e voltou a guardá-lo, estalando a língua em sinal de desaprovação. - Preciso estar no White's às sete para jantar com Watchorn, então é melhor que você seja breve. Prepare um chá Earl Crey para mim, pode ser? Cate foi até o aparador, ligou o bule elétrico cromado e colocou duas colheres de chá no fundo do bule de Oswald. Virou-se para ele mais uma vez, tirou a boneca da revista da bolsa de mão e colocou-a na mesa, na frente do pai. - Será que pode dar uma olhada nisto, papai? - disse ela com o tom mais casual possível. Oswald pegou o volume e folheou as páginas rapidamente. - Estou sabendo disto. Seu amigo David Coldman enviou para um amigo meu. Cate deveria saber. Era típico do pai saber tudo o que ela fazia. Independentemente de ela ter feito algo bom ou ruim, mesmo quando estava a milhares de quilômetros de distância, sempre tinha a sensação de que ele a estava observando com um olhar de desaprovação no rosto. - No entanto, acredito que lhe ofereceram um emprego em Nova York - observou Oswald, olhando para a chaleira, que soltava nuvens de vapor. Cate levantou-se de um salto e começou a preparar o chá, agora se sentindo realmente desestabilizada. - Venetia me contou - disse Oswald, como se estivesse lendo os pensamentos dela. - Francamente, acho que seria a melhor solução para todo mundo. Você depreciou a si mesma e sua família com esta demissão. E, assim, você vai poder fazer um pouco de companhia para Serena. Pelo menos uma de vocês tem uma espécie de carreira. - Papai, não quero ir para Nova York - disse ela lentamente. – Quero fazer isto. - Ah, isto. - Ele pegou a revista e começou a folhear as páginas sem prestar a menor atenção. - É, Nigel Hammond me ligou para perguntar o que eu achava. O coração de Cate ficou paralisado. Nigel Hammond? - Você conhece Nigel Hammond? - perguntou com a voz trêmula.


- Tenho um número muito grande de amigos, Catherine - respondeu, Oswald, olhando para ela por cima dos óculos. - Fiz algo da vida e eles respeitam a minha opinião. - Então, o que você disse a ele? Oswald pousou a revista em cima da mesa e olhou para a filha, obviamente se deleitando com aquele momento de poder. - O que eu podia dizer a ele? Hein? Que você acabou de ser demitida de uma publicação muito parecida com a que está pedindo para que ele faça um investimento? Eu simplesmente disse a Nigel que falasse com William Walton, da Alliance. Achei que ele seria a melhor pessoa para fazer considerações a respeito do risco de investir em você. Nigel é um investidor muito cauteloso. Ela se virou de supetão e ficou olhando cheia de ódio para ele, os olhos soltando faíscas por causa da traição. - Mas você sabia... - sibilou ela por entre os dentes - você sabia que... - No entanto, logo viu que aquilo não adiantava nada. A frustração que sentira ao longo das últimas semanas veio à tona em um jorro. - Você não quer que eu me dê bem - gritou Cate, com a voz embargada. - O que há de errado comigo? Qual é o problema, porra? Oswald deu um sorriso azedo. - Eu não lhe proporcionei uma educação de 200 mil libras para ouvi-la falando assim. Agora, acho melhor você ir andando. Vou me atrasar para o jantar. Enquanto observava Oswald se afastar em seu Bentley, ela fechou a mão em um punho cerrado de raiva. Sabia que seu pai seria difícil, que até tentaria obstruir seu caminho, mas não podia acreditar que ele tivesse sido capaz de agir daquela maneira com a própria filha. Respirou fundo o ar de Londres, tentando em vão fazer com que a enxurrada de lágrimas parasse de escorrer por suas bochechas. Ao remexer na bolsa em busca de um lenço de papel, reparou na luz azul luminosa do celular tocando. Respirou fundo, assoou o nariz e abriu o aparelho. - Cate? - era Nick. - Oi, Nick - respondeu ela, tentando esconder o tremor da voz com uma fungada. - Mal estou conseguindo ouvir. Onde você está? - Estou no bar, enchendo a cara. Cate, você não vai acreditar, de jeito nenhum! Nós conseguimos a porcaria do dinheiro! Ela parou, cambaleou. - Não acredito! Mas como? Nigel Hammond falou com o meu pai e o canalha o encaminhou a William Walton. Ela ouvia as risadas de Nick pelo telefone. - Eu sei! David me contou. Parece que Hammond achou que William Walton é um americano idiota e presunçoso. Acredito que "um monte de merda" foi a frase que ele usou. No entanto, ele ficou muito impressionado com você. Achou a apresentação "muito espirituosa". Acho que você arrumou um fã. E, Cate? - disse Nick, sua voz alegre e levemente arrastada. – Eu também acho que você é maravilhosa. Ela enxugou os olhos e um sorrisinho começou a se formar em seus lábios. Estava começando a se sentir muito melhor.


17 - Ela simplesmente vai amar - disse Camilla, dando golinhos na água mineral enquanto examinava a casa de Venetia em Kensington. O interior de uma das casas mais elegantes da zona oeste de Londres tinha se transformado em um jardim de rosas interno. Treliças delicadas como renda erguiam-se na frente de cada parede, enfeitadas com flores delicadas em todos os tons de cor-de-rosa. As portas haviam recebido fitas de cetim em tom creme claro; camadas de tule lilás presas no teto formavam ondas de tecido. Em todas as superfícies disponíveis, havia enormes travessas de água perfumada com velinhas flutuando. Em uma das pontas do salão de baile havia um palco montado e forrado de pétalas, onde uma orquestra de jazz tocaria. Janey Norris, a assistente de Serena, caminhava de um lado para o outro com uma prancheta na mão e um fone/microfone preso à cabeça pelo qual dava ordens ríspidas, enquanto dezenas de funcionários do serviço de bufê corriam pelo salão salpicando canela dourada em badejas de martínis cor-de-rosa e ajeitando cana pés em bandejas de porcelana rosada. Venetia assentiu com a cabeça, toda contente. Quando se tratava de dar festas, ela sabia ser extremamente criativa. Ao lado da comemoração de ano-novo de Andy e Patti Wong e do baile de gravata branca e tiara de Elton John, a festa de verão de Venetia Balcon, que acontecia todo mês de agosto em Kensington Park Gardens, era obrigatória no calendário social londrino. Com reputação assim tão impressionante como anfitriã, Venetia sabia que precisava criar algo muito especial para a festa de despedida de Serena. Não estava assim muito feliz de ver a irmã mais nova se mudando para Nova York, principalmente para morar com um homem com a reputação de Michael, mas o mínimo que podia fazer era lhe proporcionar uma despedida decente. Camilla pegou um dos convites da festa. - Adeus, Nossa Rosa Inglesa. - Ela riu ao ler as palavras impressas em dourado na capa. Mas as rosas não estão fora de época? Será que não deveria ser uma festa de narcisos ou algo assim? Isto aqui deve ter custado uma fortuna. Venetia riu junto, deixando para lá o custo de importar todas as flores de Amsterdã. - Hummm... "Adeus, Nosso Narciso Inglês"? Serena iria adorar! As duas foram para o quarto de Venetia para evitar o caos das providências de último minuto, pegando uma garrafa de champanhe no caminho. Agora eram 18h30. Os convidados chegariam às 19h30, e Serena insistira para chegar uma hora depois disso. Apesar de ter experiência como anfitriã, Venetia sempre ficava nervosa antes de seus eventos sociais, e estava contente de ter a companhia de Camilla, principalmente porque a irmã acabara de jogar a bomba de que tinha terminado tudo com Nat. - Champanhe? - perguntou, estourando a garrafa. Camilla sacudiu a cabeça. Não estava muito em clima de festa. Duas horas antes, estivera na chuva em Canary Wharf, olhando dentro dos olhos confusos de Nat. - Por que você quis que nos encontrássemos aqui, Cam? – perguntara Nat quando ela o interceptara saindo às pressas de seu escritório em Docklands, seu paletó sobre a cabeça para se proteger da chuva. - Não tínhamos combinado que nos encontraríamos direto na casa de Venetia? Camilla respirou fundo e disse a ele que não haveria festa - pelo menos não para ele. O mais importante é que não haveria casamento. Camilla tinha escolhido aquele território neutro porque era frio, anônimo e clínico. Eles tremiam às margens do Tâmisa, rodeados por enormes edifícios de vidro que varriam o céu, com gotas de chuva escorrendo-lhes


pelas bochechas. Dizer aquilo a ele era difícil, mas a decisão tinha sido fácil. Quando ela retomara de Megeve e vira a papelada de inscrição para o Fim de Semana de Seleção do partido Tory em cima da escrivaninha, no mesmo instante soubera o que queria. Não queria simplesmente ser membro do Parlamento, queria ser ministra de gabinete. Ou, quando se atrevia a sonhar, desejava uma posição ainda mais alta. E, para isso, precisava do parceiro certo: um parceiro político. Não alguém cujo passado coalhado de glamour e drogas pudesse macular sua reputação. Afinal de contas, Camilla já tinha máculas suficientes por conta própria. - Anime-se - disse Venetia, colocando a taça de champanhe na mão da irmã. - Você fez o correto. - Fiz? - perguntou Camilla, repentinamente duvidando de si mesma. - É gostoso compartilhar noites como a de hoje com alguém. Camilla foi até as compridas portas envidraçadas que davam vista para o parque. De repente, voltou-se para encarar Venetia. - Mas, caramba! Dá para acreditar que Nat falou para papai sobre o nosso suposto casamento em setembro? Antes mesmo de pedir a minha mão? - Nossa - respondeu Venetia. - Tenho certeza de que ele estava ansioso para ter um herdeiro de banco na família Balcon. Esta notícia vai deixá-lo de mau humor. - Mau humor. Que novidade - desdenhou Camilla. - Não, mau humor de verdade - prosseguiu Venetia, seus traços suaves tornando-se repentinamente rígidos. - Ele já estava ameaçando não vir hoje à noite. - Ah, ele vai vir - disse Camilla, sem prestar muito atenção, borrifando no pulso um pouco de perfume com cheiro de jasmim da penteadeira. – Por que diabos ele perderia a oportunidade de ser o centro das atenções? O táxi encostou no meio-fio de Kensington Park Gardens, quando Cate pisou na calçada, ouviu um quarteto de cordas tocar "Come Fly with Me" dentro da casa de Venetia. Ela colocou uma nota de vinte libras na mão do taxista e inalou o ar de início de noite. Já estava de bom humor, e ouvir aquela trilha sonora de Sinatra fez com que ela se sentisse em um filme de Doris Day. Claro que estava triste por ver Serena se mudando para Nova York - e estava apavorada com a perspectiva de encontrar o pai na festa - mas nada disso conseguia apagar a felicidade que sentia, agora que sua vida finalmente estava cheia de animação e promessas. Cate tomou fôlego e quase abraçou a si mesma enquanto pensava na situação: era a diretora editorial de sua própria editora! Quantos jornalistas podiam dizer a mesma coisa? Naquela manhã mesmo tinham assinado um contrato de um ano de um escritório, um minúsculo espaço apertado entre a estação de metrô London Bridge e o Borough Market, mas um endereço bacana, com aluguel decente e uma sala de reunião/armário de vassouras que também fazia as vezes de sala de Nick. Ela tinha alcançado êxito, por enquanto não exatamente com estilo, mas com certeza estava a caminho. - Onde está seu par? Achei que você viria com alguém - disse Venetia, dando um abraço em Cate quando ela entrou alegremente pela porta com um vestido azul-escuro justo da Lanvin. - Aah, um homem novo - caçoou Camilla, deixando o mau humor para lá e dando um apertão caloroso na irmã. - Dois homens, na verdade. - Cate sorriu e pegou um martíni.


- O seu par vem com outro homem? Mas que moderno! – disse Venetia, com um sorriso torto. - Ah, pare com isso - disse Cate, dando um tapinha no braço de Venetia para fingir desaprovação. - Um deles é o meu sócio; o outro é o sujeito que cuida dos nossos investidores. Acho que não tem nenhuma fofoca. - É o que veremos - disse Camilla, dando uma piscadela. - Adeus, Nossa Rosa Inglesa! - caçoou David Goldman com Nick quando tirou o convite do invólucro de papel de seda fúcsia. - Mas que porra é essa? - sibilou por entre os dentes ao entregar o papel a um porteiro. - Não faça com que sejamos expulsos antes mesmo de entrar – balbuciou Nick com o canto da boca, fazendo a maior encenação para sorrir para os seguranças corpulentos que estavam parados diante da casa de Venetia. A porta da frente tinha sido isolada dos paparazzi impacientes à procura de convidados famosos. - Cate devia estar pê da vida quando nos convidou para isto. - Ela sabe que dois sujeitos bonitões como nós podem contribuir para uma festinha como a de hoje. Há grande demanda por nós - disse David, inteiramente sério, desacelerando ao passar pelos fotógrafos, que simplesmente os ignoraram. Parados no afunilamento da fila perto da porta, David começou a conferir os outros convidados da festa à frente deles, mal vestidos e cheios da grana. - Meu Deus, todo mundo aqui parece tão aristocrático! - sussurrou. - Eles sofrem da síndrome de falar afetado - disse Nick, sorrindo e empurrando o amigo porta adentro. - Então, entre logo. Naquele momento, a rua se iluminou quando um Mercedes preto encostou no meio-fio. - Serena. Aqui, querida - gritaram os paparazzi, acotovelando-se para conseguir uma imagem da beleza bronzeada que descia do carro e caminhava com elegância pela calçada de Kensington. Serena estava fantástica de acordo com qualquer padrão, seu cabelo preso em um coque elegante com mechas cacheadas caindo sobre as bochechas firmes. Apesar de momentaneamente aborrecida pelo fato de os fotógrafos terem tomado conhecimento da festa, Serena deu uma paradinha no pé da escadaria e tirou o casaco de mink antigo Chanel para revelar um vestido rosado de um jérsei de seda tão fino que parecia escorregar sobre seu corpo. O efeito completo era magnífico: o tom do vestido era tão clarinho e o tecido tão fluido que, se alguém não olhasse com muita atenção, acharia que ela estava quase nua. Ela se virou um pouco de lado, colocou uma perna para a frente, para que a longa fenda do vestido revelasse um vislumbre da coxa bronzeada, e inclinou a cabeça em um gesto sedutor. Ela sabia que a imagem estaria na primeira página dos tablóides na manhã seguinte. Com relutância, permitiu que fosse levada para dentro por Comad Davies, seu agente e acompanhante da noite, e deu uma olhada no relógio Piguet. Eram 20h45: bom. Todo mundo já devia ter chegado, pensou. Pendurada no braço de Comad, atravessou o enorme hall de entrada, aceitou um martíni cor-de-rosa de um garçom e fez uma pausa para dar beijos em todo um sortimento de integrantes da alta sociedade londrina. A frequência estava maravilhosa, pensou, presunçosa, ao avistar Sting e Trudie Styler em um canto, Elton John e Elle Macpherson conversando na escada e Jade Jagger dando risada com Matthew Williamson perto do bar: parecia que toda a nata da elite de Londres estava ali presente para se despedir dela.


- Mas que amor da sua parte - disse Serena, toda feliz, ao abraçar Venetia e plantar um beijo em cada uma de suas bochechas. - Todo mundo está aqui. E é tudo para mim. Venetia deu um sorriso. Graças a Deus e a Janey, com seu Rolodex: ela não fazia a menor idéia de quem eram os amigos de Serena. De modo bem parecido ao de Serena, Venetia também sorriu. Cate e Camilla apareceram através da porta dupla e as quatro deram gritinhos juntas, apertando-se em um abraço único e caloroso. Ignorando os astros ao seu redor, as garotas Balcon se juntaram e começaram a fofocar como menininhas de escola em uma festa do pijama. - Onde está Michael? - perguntou Cate, decepcionada por não vê-lo ali. - Eu ainda não o conheci e você vai nos abandonar por causa dele! - Não vou abandonar vocês por causa de Michael. - Serena deu um sorriso doce, fazendo um agrado no braço da irmã. - Vou trocar Londres por Nova York. De todo modo prosseguiu ela, servindo-se de uma apara minúscula de cenoura de uma bandeja que passava -, Michael está na Cidade do Cabo, a negócios. Então, meu acompanhante de hoje é Conrad, não é mesmo, querido? - Ela jogou um beijo para o homem bonitão de meiaidade que usava uma camisa branca bem engomada e uma gravata solta, do tipo que se usa com casaca. - É a nossa última noite antes de embarcarmos em uma relação de longa distância - gritou ele para ela em uma voz profunda de barítono, ao estilo de Richard Burton. Até parece, pensou Serena, com desdém, ciente de que, assim que houvesse uma certa distância entre os dois, ela o dispensaria. Agora estava se mudando para os Estados Unidos e, francamente, um agente em Londres era totalmente desnecessário. Conrad devia se sentir agradecido por ela não lhe dizer hoje à noite mesmo para não estragar aquela festa fabulosa. Serena voltou-se novamente para as garotas. - Então, bom, onde está papai? - perguntou. Nenhuma festa começa de verdade antes que eu chegue, pensou Oswald, muito seguro de si, chegando à porta de Venetia a bordo de seu Bentley. Ele olhou para o relógio: 21h15. Ótimo. Todo mundo já deve estar aí, pensou, desprezando o recado manuscrito de Venetia pedindo para que todos chegassem às 20h30, antes de Serena. A filha mais nova deveria se sentir muito agradecida por ele se dar ao trabalho de aparecer. Estava profundamente desgostoso com o tal de Sarkis com quem ela tinha se envolvido. Um americano já era bem ruim, refletiu, mas o tal de Sarkis era meio libanês. Por que diabos ele deveria ir a uma festa para comemorar isso? Claro que estava feliz por ela ter dispensado aquele plebeu, Tom... o pai dele era minerador ou qualquer coisa do gênero, mas se Venetia fora capaz de encontrar alguém como Jonathon von Bismarck, Serena certamente conseguiria qualquer um que desejasse. Alguém de boa e sólida ascendência inglesa. Enxugou a testa que suava em profusão com um lenço, voltou-se para Maria Dante no banco de trás e pegou a mão dela com delicadeza. Esta é a noite, pensou, radiante, absorvendo o corpo voluptuoso dela quando entraram no campo de visão dos paparazzi. Esta é a noite. - Finalmente, caramba - sussurrou Venetia em tom de urgência para Jonathon. O homem da casa examinava o salão de pescoço esticado, certo de que tinha avistado um garçom inepto derramando suco de cranberry no tapete agorinha mesmo. Iria descontar o prejuízo da conta do serviço de bufê. - O que foi? Que diabos há de errado com você? - retrucou Jonathon.


- Papai chegou - disse Venetia, apontando para a porta de entrada com o queixo. - Acabou de chegar. - E, olhe, trouxe Maria Dante consigo - sorriu Jonathon, ciente de que aquilo impressionaria alguns clientes que ele convidara para a festa. Eles não faziam a menor idéia de quem era Robbie Williams, mas Maria Dante, isso, sim, era classe. Ela usava um amplo vestido azulanil, seios escapando do decote cavado, o cabelo preto todo preso para cima, um ar de diva da ópera em cada centímetro. Oswald e Maria atravessaram a multidão lentamente, cumprimentando as pessoas com a cabeça e aceitando elogios com muita graça, como se formassem um casal real caminhando por entre seus súditos, e finalmente pararam para dar beijos em Serena. Oswald não a via desde o fim de semana em Huntsford. Não era segredo que ela era sua filha preferida, areia do mesmo bom e velho saco em mais de um aspecto, mas sua paciência tinha sido levada ao limite quando Cate mencionara sem querer que ela se mudaria para Nova York. Aos olhos de Oswald, isso constituía traição. - Você está cometendo um erro enorme indo para Nova York – sussurrou ele ao ouvido dela; a voz abafada respingava de superioridade. Serena não se tornara sua filha preferida por ser submissa. - Você é meu pai, não meu agente de viagens - respondeu Serena à altura, sem pestanejar. Ao reparar que várias pessoas tinham começado a escutar a conversa deles, Oswald instantaneamente mudou de marcha e abraçou a filha. - Então... vamos festejar - vociferou ele, pegando um gim com tônica de uma bandeja que passava. - Temos Sinatra e Serena, dois dos meus favoritos. Vamos encarar a música e dançar. Venetia puxou o braço de Serena para pedir que ficasse enquanto Oswald se afastava. - O que foi? - perguntou Serena. - Então, o que você achou dela? - Venetia sorriu, apontando na direção de Maria. - O que ela está usando? - desdenhou Serena, indignada. - E aquele cabelão! A cabeça dela parece uma nuvem de petróleo. - Não se esqueça de que vai fazer um discurso às dez, querida – lembrou Venetia à irmã. Colocamos um microfone ao lado do piano de cauda, então, sabe como é, só algumas palavras. - Eu preciso mesmo fazer isto? - disse Serena, fazendo biquinho, mas secretamente apreciando a oportunidade de assumir o centro do palco. – Neste caso, é melhor eu tomar um pouco mais de champanhe. Venetia começou a percorrer o salão com Camilla a seu lado, entrando e saindo do mar de convidados, de vez em quando esbarrando em um de seus próprios amigos. Tinha se sentido culpada por convidá-los para a festa de Serena, mas Venetia não estava disposta a se sentir uma estranha em sua própria casa. Naquele momento, queria se sentir famosa e amada e apoiada, principalmente por Jonathon estar se comportando de maneira tão distante. Ele estava agindo com mais frieza do que nunca com ela e parecia jamais estar em casa, sempre dando desculpas para sua ausência: jantares com clientes, reuniões no estrangeiro. O marido era viciado em trabalho, mas ela sabia que os dois estavam se afastando. E, por mais que ela desejasse que a última noite de Serena em Londres fosse fabulosa, a festa não poderia ter ocorrido em pior momento. Naquela manhã, ela tinha retomado ao consultório da dra. Rhys-Iones para pegar os resultados da última rodada de exames e suas piores desconfianças tinham se confirmado. Ela não tinha mais quase


nenhum óvulo disponível: dentro de poucos meses, ter um filho por métodos naturais ou por fertilização artificial seria impossível. Não tinha contado a ninguém, bloqueando o fato com muito estoicismo, como se fosse uma tempestade passageira ou uma dor de cabeça leve. Passar a vida toda com o pai a ensinara a se desligar quando a única coisa que tinha vontade de fazer era se desmanchar em uma enxurrada de lágrimas. Não, ela trataria da questão amanhã, resolveu, quando a noite especial de Serena tivesse terminado e quando ela e Jonathon pudessem se sentar para resolver o futuro. - Tudo bem com você? - perguntou Camilla e colocou a mão de leve no ombro da irmã. Você parece um pouco, bem... - O quê? - disse Venetia, na defensiva. - Não sei. Um pouco triste? Não se preocupe, Van, ela só vai para Nova York, você sabe disse Camilla com gentileza. Venetia só assentiu com a cabeça. Deixou que Camilla acreditasse que ela estava triste por causa de Serena. - Vamos ali - disse ela, com bom humor forçado. - Vamos até ali para eu apresentar você a Diego Bono, o estilista fabuloso de quem lhe falei. Ele se formou no Royal College no ano passado. Ouvi dizer que a Calvin Klein e a Burberry estão atrás dele, mas acho que eu o convenci a integrar a equipe Venetia Balcon como nosso novo estilista da linha feminina. - Você vai começar a fazer roupa? - perguntou Camilla, surpresa. - É um avanço lógico da marca para nós - respondeu Venetia, seus olhos voltando a brilhar. Estou tão animada com isto, Cam. É algo que eu sempre quis fazer. Fazia séculos que Camilla não via a irmã tão animada: ela irradiava entusiasmo. Queria saber mais, mas de repente foram interrompidas por dois homens bonitos que estendiam taças de champanhe para elas. - Senhoras, senhoras, senhoras. As bebidas são por nossa conta! - disse um. Cate aproximou-se, rindo da expressão surpresa das irmãs. - Não se preocupem, garotas. Não são bicões. Venetia, Camilla, estes são meus parceiros no crime, Nick Douglas e Dave Goldman. Nick imediatamente abraçou Venetia e Camilla, prometendo, com a fala um tanto enrolada, contar-lhes "segredos" sobre Cate, enquanto David chegou mais perto de Cate, fazendo seu terno preto elegante roçar nela. - Então, o que achou? - perguntou Cate, nervosa com a proximidade dele, mas escondendo a reação com gestos na direção da decoração. - Tudo aqui é sempre tão florido? - perguntou David com um sorriso. - Só em aniversários e ocasiões especiais - respondeu Cate, colocando uma torta de morango na boca. - A gente sabe que venceu na vida quando mora em uma casa assim - disse David com um quê de inveja. - Mas realmente ouvi dizer que o fundo multimercado de Jonathon está indo muito bem mesmo. Você se importa se formos dar uma espiada? - Que parte você gostaria de visitar? - perguntou Cate. - Já viu a cozinha? É incrível. - Estava pensando em um lugar um pouco menos barulhento – disse David, aproximando-se da orelha dela e pegando uma garrafa de champanhe de uma mesa. - Vamos dar uma volta por aí. David tomou a mão de Cate e conduziu-a através da multidão até os fundos da casa. David queria tê-la só para si. Cate Balcon era seu tipo de mulher. Inteligente e linda, ela também tinha aquele algo especial. Família. Criação. O que quer que fosse. E, como tal, ela seria a


peça final de seu quebra-cabeça, a maneira ideal de completar sua transição de filho de negociante do mercado para protagonista sofisticado. Sentindo o pau endurecer da mesma maneira que acontecia quando estava prestes a fechar um acordo, pegou a mão de Cate e saiu por uma porta envidraçada aberta nos fundos da casa, conduzindo-a para dentro da escuridão. O quarteto de cordas foi sumindo aos poucos ao fundo, assim como as risadas e o tinir dos copos, enquanto eles se afastavam por uma trilha no jardim. - Para onde estamos indo? - riu Cate, sentindo-se mais nervosa do que parecia. - Vamos explorar o terreno - respondeu Oavid, cheio de malícia, dirigindo-se para o fundo do jardim. - Vamos ver o que tem lá! - Não tem nada lá, posso garantir - respondeu Cate, a voz em um sussurro. - A não ser algumas pedras das quais podemos cair. Raposas, corujas. Quem sabe? Acho que é melhor voltarmos... - Eu a protejo - sorriu David, segurando um galho baixo com a mão e conduzindo Cate na direção de um banco de mármore iluminado por uma tocha de jardim. David tirou uma taça de cada bolso e, de maneira ruidosa, derramou champanhe em cada uma delas com um floreio. Subitamente, tudo ficou em silêncio. Cate só escutava o crepitar da tocha no jardim e de repente ficou nervosa com a intimidade entre eles. Conhecida por sua incapacidade de diferenciar quando um homem estava sendo simpático com ela e quando a estava paquerando, até mesmo Cate conseguia ver que aquilo não era paquera, mas sim sedução descarada. Respirou fundo quando o corpo grande de David chegou mais perto do dela: dava para sentir o calor que emanava dele. Ela apertou o braço com força em volta do peito, deixando mais estreito o V de seu decote. Na medida em que David se aproximava cada vez mais, suas mãos tremiam. - Está com frio? - ronronou David. Estou mais para frígida, pensou Cate, desejando ser capaz de relaxar. - Você é fantástica - sussurrou ele com voz rouca e ergueu a mão para acariciar a bochecha dela. A linha fina de pêlos que iam dos dedos até o pulso dele roçaram a pele dela. - Você está me deixando acanhada - gaguejou ela, virando o rosto de leve para o outro lado. Caramba, pensou, estou me comportando como uma espécie de personagem de Jane Austen. Parecia que o tempo tinha desacelerado. Os dedos dele pararam no queixo dela e a puxaram em sua direção. - Qual é o problema, Cate? - perguntou ele, sem parar de acariciar seu rosto. - Você não quer? Qual era o problema dela?, perguntou a si mesma, sentindo o estômago revirar em uma mistura de tesão, ansiedade e nervosismo. Caramba, ele era gostoso, pensou, olhando para os cílios espessos ao redor dos olhos cinzentos intensos e para o nariz longo, estreito e masculino. Ela não sabia muito bem o que a impedia de se inclinar para a frente e tocar nos lábios dele com os seus ou de passar a mão pelo cabelo preto ondulado dele. - Não tenho certeza, David. Sinto muito. David Goldman estava acostumado a rendições instantâneas. - O quê? Você gosta de homem, não gosta? Cate ficou chocada. - Bom, gosto. Claro. Mas... caramba, David. Fico grata por tudo que você fez por nós, mas... Olhe, sinto muito... David deixou os dedos desabarem do rosto dela para seu colo, com expressão em parte aborrecida, em parte decepcionada.


- Acho que não - disse ele, depois deu um sorriso tristonho, fugindo da rejeição. Levantouse. - Está ficando frio. É melhor voltarmos para a festa. No interior da casa, Maria Dante sabia que estava chamando a atenção. Depois de dar uma olhada boa e demorada em Serena Balcon, reconheceu, de má vontade, que a menina de Oswald era tão bonita ao vivo quanto nas fotografias. Mas ela era só isso mesmo: uma menina. Qualquer homem que desejasse Serena Balcon devia ter tendências homossexuais. Olhe só para ela: é só pele e osso. Não tem bunda, seus peitos são do tamanho de azeitonas; tem um corpo de menino. Mas Maria Dante... ah, Maria Dante era um mulherão. Ela era capaz de sentir todos os homens do salão - os adultos, pelo menos – apreciando seus peitos maduros saltando para fora do vestido decotado Oscar de la Renta, as curvas arredondadas das nádegas forçando a seda da saia. Uma mulher glamourosa, talentosa, cosmopolita: exatamente o que a cena cansada de Londres estava precisando; e com Serena Balcon fora do caminho, ela era a pessoa certa para preencher a lacuna. Tudo bem, Oswald era um velho, pensou, olhando para ele com nojo. Ela se apavorava só de pensar no momento em que teria de vê-lo nu. Mas era um preço baixo a pagar. Ele era rico, tinha bons contatos, era um verdadeiro aristocrata inglês com uma casa magnífica. E Oswald estava embevecido. Riu para si mesma. Quem teria pensado nisso? Maria Dante, a italianinha do vilarejo miserável de Puglia: ela iria se transformar em uma Lady. - Achei que você foi simplesmente sensacional na ópera de Nice no mês passado - babou Nicholas Charlesworth, aparecendo ao lado dela para entregar-lhe uma taça de champanhe. - Gosta de se apresentar na Europa? - Adoro - respondeu ela com um suspiro, toda sedutora. - Precisa ir à Royal Opera House no mês que vem, quando eu me apresentar lá. - Ficaria encantado! - respondeu Nicholas, gaguejando, transfixado pelos olhos cor de chocolate derretido dela. - E, hum, como estão os preparativos para o evento musical em Huntsford? Creio que esteja um tanto alheio em relação ao que está acontecendo, mas parece que Oswald está planejando uma pequena reunião no nosso clube, o White's, na semana que vem. Avise-me se precisar de alguma coisa - sorriu ele e deu tapinhas deliberados na lateral do nariz. - Acredito que Oswald esteja com todo o aspecto organizacional sob controle. - E o aspecto criativo? Ela olhou com ar de superioridade para aquele homenzinho com cara de fuinha. O que ele sabia sobre criatividade? - Vou chamar algumas amigas para cantar comigo - disse Maria, cheia de mistério. - Eu... vou interpretar algumas árias, talvez Bizet, Debussy, Mozart, é claro, talvez até mesmo outras canções de outros estilos... quem sabe Gershwin. Vou fazer um recital no Carnegie Hall, em Nova York, algumas semanas antes, então talvez use algo dali. - Vai haver alguma apresentação prévia? - perguntou Nicholas, esperançoso. Entediada - e desejosa de se divertir um pouco com todos aqueles britânicos ediosos e cheios de pompa - ela olhou para ele, e uma ideia começou a tomar forma em sua mente. - Apresentação prévia? - sorriu, tirando uma mecha do cabelo cor de ébano da testa. - Pode ser que esteja com sorte. Serena olhou para o relógio. Dois minutos para as dez. Alisou o jérsei de seda na coxa e dirigiu-se para a ponta do salão, onde Venetia deixara um microfone pronto para seu discurso. Ela não tinha preparado nada, mas era boa oradora, e queria ter certeza de que seu


canto do cisne, na frente de todo o seu velho público londrino, não fosse nada menos do que sensacional. Foi bem aí que avistou Maria Dante caminhando na direção da orquestra, que estava no meio de uma versão de Clair de Lune, de Debussy. Maria levou o indicador aos lábios e posicionou-se na frente do microfone. Seu peito começou a tremer, como se seus pulmões estivessem se enchendo de ar, e então, de seus lábios cor de escarlate, rompantes de sua voz de soprano começaram a se erguer por todo o salão. Charlesworth, ao reconhecer o hei canto de Rossini, fechou os olhos, como se estivesse hipnotizado pelo canto de uma sereia. Todas as cabeças se voltaram para escutar as notas agudas de Maria, perfeitamente nítidas em sua ressonância e dicção, a voz tão forte e poderosa que não havia necessidade de microfone. Todos os presentes se voltaram para ela e, com a sala pulsando de tanta emoção, Oswald olhou ao redor de si com ar apreciativo, deleitando-se com a glória espelhada. Parada no fundo do salão, perto da escada, Serena observava tudo, furiosa. - Cate, Cate - sibilou ela por entre os dentes, acenando para a irmã que, assim como todos os presentes, estava transfixada pela performance. Cate virou-se para ela e falou, sem emitir som nenhum: - O que foi? Serena agarrou Cate e puxou-a para trás de uma pilastra. - Como assim, "o que foi"? Aquela mulher está lá se exibindo toda. Cate riu em silêncio. - Serena, ela é fantástica. Uma das maiores estrelas da ópera mundial está cantando na sua festa. - Ah, que maravilha - desdenhou Serena, puxando Cate com tanta força que marcas de dedo rosadas apareceram no braço dela. - Ela está é querendo me ofuscar. Eu tinha que fazer um discurso daqui a cinco minutos. Quem vai querer me ouvir depois de escutar A Gorda da Ópera? Os lábios de Serena tremiam, seus olhos tinham começado a se encher de lágrimas. Então, ao perceber que não estava surtindo efeito nenhum sobre Cate, empurrou-a de volta ao salão. - Ah, vá chamar Venetia! Cate encontrou a irmã mais velha recostada em uma chaise longue cor de creme. - Serena está furiosa - sussurrou Cate, tentando amenizar o drama. - Dá para fazer Maria parar de cantar? - O que você quer que eu faça? - perguntou Venetia com uma expressão de pânico no rosto. - Se eu tentar interromper isto, vão me vaiar. Indignada, Serena resolveu dar um jeito naquilo com as próprias mãos. Atravessou a multidão e se postou diante de Maria Dante com um sorriso no rosto que dizia: "Que maravilha!", mas com olhos ardendo de hostilidade. Oswald observou tudo do bar, deleitando-se com o uísque single malt que tinha na mão, mas não tanto quanto com a briga que fermentava entre a filha e a namorada. Esgueirando-se para ficar atrás da filha, ele sussurrou em seu ouvido: - É o destaque da noite, não é mesmo? - Ela está acabando com a minha noite - disse Serena, sua voz trêmula. - Papai, por favor! Implorou. - Por favor, faça alguma coisa.


Oswald sorriu, apreciando o drama do desconforto de Serena, sentido sua tristeza e decepção se acumulando enquanto a canção crescia, espiralando para seu crescendo triunfal. - Por favor - sussurrou Serena. - Por favor. A voz de Maria se erguia como um balão, preenchendo cada canto da casa com luz e beleza. A voz dela era tão forte e, ao mesmo tempo, tão íntima, que era como se estivesse fazendo uma audição particular para cada convidado. Com o olhar fixo nos olhos de Serena, Maria uniu as mãos na frente do corpo e colocou fim à música, suas pálpebras fechadas, a cabeça inclinada em um arrebatamento exausto. A platéia explodiu em aplausos insistentes, os músicos pareciam maravilhados, e Maria Dante sorriu triunfante para o público. Durante o instante mais breve possível, deu uma olhadela para Serena, que aplaudia com gestos mecânicos e sorria com seus dentes perfeitos cerrados. - Suba lá - sibilou Venetia para Serena por entre os dentes, olhando para o relógio. - Obrigada, obrigada - desmanchou-se Maria. - Agora, permitam-me apresentar a verdadeira estrela da noite: Serena Balcon. Mas suas palavras foram abafadas pelo tagarelar da multidão; todo estavam conversando com muita animação sobre a apresentação e deslocando-se na direção do bar. Serena tinha razão: ninguém queria ouvi-la depois daquela performance. Com a fúria se acumulando dentro dela, fechou as mãos em punhos tão apertados que as unhas feriram as palmas. Queria Maria Dante fora da vida do pai o mais rápido possível - e faria qualquer coisa necessária para que esse desejo se realizasse.


18 Milão não perdia o glamour nem no meio de março, pensou Nick Douglas enquanto seus olhos percorriam a Piazza del Duomo. Embora o carnaval da Fashion Week já tivesse deixado a cidade havia duas semanas e uma garoa cinzenta e úmida que o fazia se lembrar de Manchester estivesse caindo, o lugar ainda exalava uma sofisticação e uma elegância que não podiam ser encontradas em nenhuma outra cidade do mundo. Nem o Upper East Side de Manhattan era capaz de exibir tantas mulheres de visual imaculado indo ao mercado em sobretudos de mink até o pé e óculos escuros. Nova York podia ser a terra das oportunidades, onde um vendedor de gravatas como Ralph Lauren se transformava em bilionário do varejo, pensou, mas Milão era o verdadeiro centro do glamouroso universo da moda, principalmente no que dizia respeito à publicação de revistas femininas voltadas para moda. Sem impressionar os gigantes da cidade - Armani, Prada, Dolce & Gabbana, Versace - e sem garantir seus gastos lucrativos com publicidade, o lançamento de qualquer revista já estava fadado ao fracasso. Cate e Nick estavam em um café minúsculo à sombra da enorme catedral, comemorando uma tarde de trabalho produtiva com um Bellini. A Prada tinha emitido sons positivos a respeito de entrar depois das primeiras edições, se gostassem do resultado, ao passo que Giorgio Armani, que fazia questão de inspecionar e aprovar cada revista pessoalmente antes de dar o sinal verde, tinha se mostrado ainda mais positivo. Além de ter se comprometido a anunciar a Armani Collezioni na edição de estréia da Sand, até falaram sobre fazer uma sessão de fotos e uma entrevista com ele, uma verdadeira lenda da moda, em sua suntuosa mansão na ilha italiana de Pantelleria. - Nem parece que a gente só se conhece há um mês - disse Cate, sorrindo, agora no terceiro Bellini e se sentindo meio zonza. Ela estava passando as páginas de sua agenda cor-de-rosa Smythson para anotar um lembrete para entrar em contato com a assessoria de imprensa da Armani e havia reparado na anotação "Encontrar Nick Douglas no Flask" em uma página do início de fevereiro. - Parece que já faz uma vida inteira - disse. - Acho que você vai ver que são seis semanas - corrigiu Nick, olhando por cima do ombro dela para dar uma espiada na agenda. - Mas você tem mesmo razão. Parece que o meu corpo ganhou uma cabeça nova: a sua. Ela deu um chute de brincadeira nele por baixo da mesa e esticou a mão para pegar um punhado de amêndoas sem casca da tigelinha na mesa. - Quer ir a algum lugar para jantar? Estou morrendo de fome – disse ela, olhando para o céu através da janela do café. Nuvens rosadas flutuavam acima do pináculo do Duomo, e ela não conseguiu conter um sorriso que se espalhou por seu rosto. - Mas eu não acharia ruim se pudesse tirar essas roupas de megera carreirista - completou, olhando para a calça cinzaardósia Helmut Lang de seu tailleur. - Tudo bem, vamos lá - respondeu Nick, jogando uma nota de cinquenta euros em um cinzeirinho de prata. - De volta ao hotel. Estavam hospedados no suntuoso Bulgari. O hotel estava totalmente fora do orçamento deles, mas era um endereço adequado para impressionar os diversos profissionais de relações públicas de moda com os quais precisariam falar. "É muito dinheiro só para poder distribuir um número de fax refinado", reclamara Nick. Mas tudo bem. Não havia como negar que era lindíssimo. Adaptado em um antigo mosteiro, o lobby era um excesso de mármore preto e decoração elegante. Nos quartos, lençóis de linho bem passados esticavam-se sobre enormes camas macias, enquanto o banheiro de mármore era cheio de toalhas brancas felpudas e artigos de toalete caríssimos.


Como só precisava aparecer no bar às 19h30, Cate foi nadar um pouco na piscina de pastilhas douradas antes de voltar para sua suíte. Preparou um banho de espuma e, pela primeira vez em semanas, deu-se ao luxo de mergulhar demoradamente na banheira. Abriu a torneira em forma de balão com o dedão do pé e deixou a água quente sair para envolver sua pele e fazer as bolhas subirem por suas costas até que estivesse afundada até o pescoço na água perfumada. Meu Deus, como ela estava se sentindo bem. Nunca tinha se sentido tão orgulhosa e tão satisfeita consigo mesma, nem quando conseguira seu primeiro estágio na revista New Yorker, nem quando recebera o prestigioso prêmio de Novo Editor do Ano da Associação de Publicações Periódicas do Reino Unido, nem mesmo quando a revista Class ultrapassara a Vogue em vendas nas bancas pela primeira vez. Fazer tudo por conta própria, por iniciativa própria, era completamente diferente: principalmente quando parecia que estava dando certo. Ela sorriu para si mesma e ficou imaginando o que Nick estaria fazendo no quarto adjacente. Espero que esteja se aprontando, pensou, de olho no relógio. Imaginou-o entrando no chuveiro e passando as mãos ensaboadas no cabelo castanho fofo. Sentiu-se corar. Onde ela estava com a cabeça? Não podia começar a ter fantasias sexuais com Nick Douglas! Aborrecida consigo mesma, saiu da banheira, seu cabelo molhado escorrendo pelo pescoço, e começou a se enxugar vigorosamente para se distrair. Caminhou com cuidado até o closet para escolher uma roupa para o jantar. Acabou pegando um vestido Missoni cor de ferrugem e verde-garrafa com decote acentuado que se agarrava a cada curva de seu corpo. Examinando-se no espelho, ficou contente. As cores ressaltavam as mechas ruivas de seu cabelo grosso e ondulado, e os sapatos Manolo Blahnik altíssimos, presos na parte de trás do pé, faziam suas pernas bem torneadas e compridas parecerem sensacionais. Passou um creme Donna Karan almiscarado nas pernas e prendeu uma mecha de cabelo com uma fivela de strass antiga. Depois jogou o cartão da porta do quarto do hotel na bolsa e estava pronta. Fez uma pausa, levemente confusa: Pronta para quê? O restaurante Bagutta estava cheio e agitado. Famoso por seus enormes bifes toscanos, atraía um público glamouroso que não tinha medo de comer. - O que você quer? - perguntou Nick, percorrendo a carta de vinhos com o dedo. - Acho que o dia de hoje pede um champanhe. - Champanhe rosê - concordou Cate. - Para combinar com um pedaço enorme de carne. Ela olhou para Nick. Se não estava muito enganada, ele tinha se empenhado tanto quanto ela para aquela saída noturna. Em vez do jeans e do blusão de moletom de sempre, ela desconfiava que ele estava querendo impressionar com a calça cinza sob medida e a malha de cashmere preta. Ele retribuiu o sorriso dela, criando ruguinhas ao redor dos olhos cor de avelã. - A nós - disse ele e ergueu sua taça para brindar com ela. - E à nossa revista - respondeu ela, repentinamente nervosa com a intimidade entre eles. Nick olhou para ela com um brilho no olho. - Então, está feliz por ter dispensado o emprego na Harper's Bazaar? - perguntou ele. Cate aprumou-se na cadeira. - Como é que você sabe? - engoliu em seco. - Serena me contou na festa dela. Disse que estava muito aborrecida por você não ir com ela para Nova York. - Ele deu um gole vagaroso no champanhe. - Por que você não me contou?


Cate mergulhou um pedaço de pão no azeite de oliva e ficou fazendo círculos com ele no prato. - Não achei que fosse tão importante a ponto de precisar lhe contar. Não queria que você pensasse que eu não estava me dedicando ao projeto. - Eu nunca pensaria isso de você. Eles se entreolharam. Ela se sentiu desconfortável. Aquele era o tipo de olhar que só os amantes trocavam. - Para ser sincera, eu poderia ter considerado a possibilidade de aceitar o emprego se não tivéssemos conseguido o dinheiro naquele dia – prosseguiu ela, devagar. - Mas eu já morei e já trabalhei em Nova York. Para mim, a cidade não tem aquele apelo mítico que tem para outras pessoas. E eu nem queria tanto assim ir para lá da primeira vez. - Então, por que você foi? Ela olhou para Nick e, pela primeira vez, sentiu que realmente podia confiar nele. Tinham passado por tanta coisa juntos ao longo das últimas semanas, tinham ficado tanto tempo juntos, que ela sentiu uma onda de vontade de ser sincera percorrer seu corpo. - Fui para lá para fugir do meu pai. Nick não disse nada. Só ficou olhando para ela, incentivando-a a falar mais. - Acho que ele sempre fez com que eu me sentisse tão inadequada que, quando eu tive idade para fugir, foi o que fiz. - Por quê? O que ele fez? - Ele encostou na mão dela de leve. – Você tem que falar sobre isso, Cate; senão, nunca vai conseguir se livrar desse peso. Ela fez uma pausa e respirou fundo, em um movimento que pareceu durar uma eternidade. Mas o champanhe, seu bom humor e a dose crescente de amizade fizeram com que fosse mais fácil conversar sobre aquilo. - Quer saber quando começou? Foi quando minha mãe morreu. – Cate começou a brincar com o anel em seu dedo do meio. - Minha mãe era maravilhosa. Doce, linda - disse ela, baixinho. - Ela foi modelo da Dior na década de 1960. Mamãe simplesmente tinha um jeito de fazer com que tudo parecesse bem, mesmo quando não estava assim tão bem. Por exemplo, ela lia O mágico de Oz sempre que eu ficava doente e não conseguia dormir. Ela deu um sorriso suave, então parou, ao notar que o olhar dele estava apontado diretamente para o dela. - Mas, bom, quando eu tinha sete anos, ela levou Camilla e eu para ver um musical em Londres. Venetia estava no acampamento do Clube do Pônei, Serena ainda era bebê e ficou em Huntsford com a babá. Fomos ver Oliver. Ela deu risadinhas com a lembrança, então o sorriso desapareceu e seu rosto se anuviou. - Eu me lembro que papai deveria ter nos acompanhado, mas ele estava ocupado. Papai estava sempre ocupado. Tinha alguma reunião em Londres... não sei qual foi a desculpa da vez. Mas, bom, nós fomos ao teatro e depois voltamos para nossa casa em Chelsea, onde passaríamos a noite. Eu me lembro que fazia muito calor. Eu estava correndo pelo jardim com o meu vestidinho enquanto minha mãe aguava as floreiras. Nick reparou que a voz dela tinha começado a falhar, mas ela prosseguiu. - Então ela desabou, ali mesmo no jardim. Eu não sabia o que fazer. Eu só tinha 7 anos, Nick. - Cate ergueu os olhos cheios de súplica para ele, como se estivesse tentando convencê-lo a enxergar o lado dela. "Não consegui achar o meu pai. Encontrei uma caderneta de telefone em uma gaveta com um monte de números e tentei ligar para todos, mas não o encontrei. Liguei para a ambulância, e uma vizinha que eu não conhecia veio ficar comigo e com Camilla. - Ela tomou um gole grande de vinho e tirou alguma coisa da bochecha. - A partir daí, a próxima


notícia que tive já foi no meio da noite. Papai chegou em casa e disse que mamãe havia morrido... de um coágulo no cérebro. Disse que eu não tinha sido rápida o bastante. – Cate olhou para Nick. - Disse que a culpa era toda minha. Ela soltou todo o ar dos pulmões e se sentiu estranhamente liberta. Nick podia ver a culpa pintada em seu rosto, uma camada de um dedo de espessura. Ele sentiu vontade de dar a volta na mesa e abraçá-la bem forte, mas, em vez disso, acariciou seus dedos do outro lado da mesa. - Não é para menos... - Começou. - Cate, isso... - Tudo bem - disse Cate rápido, passando a mão na bochecha de novo e desviando o olhar. Estou feliz por ter contado para você. Então, aposto que o tiramissu deles é ótimo. Nick percebeu que ela não queria mais falar sobre o assunto e a distraiu com piadas e besteiras. Cate deu risadinhas. Fazia muito tempo que não ria, e aquilo era divertido. Tão divertido que ela nem percebeu que a refeição tinha terminado, que a conta tinha chegado e que o restaurante estava esvaziando. - Quer voltar caminhando ou pegar um táxi? - perguntou Nick quando se levantaram da mesa. Depois do champanhe e dos Bellinis de antes, Cate estava se sentindo cansada, mas um pouquinho tonta. - Você se importa se formos andando? Pelo menos uma parte do caminho. Eu detesto ir para a cama com a cabeça girando. - Certo. Vamos pegar nossos casacos. Eles se juntaram a uma pequena fila na frente da chapelaria. Na frente deles, um casal ria enquanto pegava longos sobretudos em cabides estendidos por uma morena elegante. O homem era alto e corpulento e sua mão parecia enorme enquanto acariciava a curva das nádegas da loirinha que o acompanhava. A loira platinada soltava gritinhos enquanto os dedos de seu par deslizavam por baixo do elástico de sua saia. - Mas que comportamento mais inapropriado para um estabelecimento tão refinado cochichou Nick no ouvido de Cate, e ela riu. O casal virou-se para trás e, de repente, os dois estavam cara a cara com William Walton e Nicole Valentine. As risadas de Cate imediatamente secaram, e o queixo de Walton caiu. - Catherine Balcon. Hum, oi... - gaguejou Walton, o rosto levemente corado. - William. Nicole. Mas que surpresa - disse Cate, sem emoção nenhuma na voz. - É, bem - disse Walton, limpando a garganta. - Estamos aqui visitando os anunciantes. Para ver se eles se animam com a indicação de Nicole para editora do relançamento da Class, que vai acontecer em breve. Nicole deu um sorriso presunçoso para Cate e inclinou a cabeça para o lado. - Fim de semana prolongado, é? - perguntou a americana com voz melosa. - Na verdade, não. Estamos aqui pelo mesmo motivo que vocês – respondeu Cate com toda a segurança que conseguiu reunir. Nick pousou a mão nas costas dela para incentivá-la. Nós também estamos cuidando de um lançamento. - Foi o que soubemos - disse William, tentando segurar um sorriso de desdém. - Para ser sincero, fiquei surpreso quando soube que vocês haviam conseguido o dinheiro. - Seus lábios estavam repuxados em um sorriso magro e malicioso. Cate olhou nos olhos dele com firmeza.


- Bom, os nossos investidores ficaram impressionados tanto com o produto quanto com a equipe editorial - retrucou ela, com muita objetividade. - Acho que vamos nos dar muito bem. Muito bem mesmo. A arrogância de Walton tinha voltado. Ele olhou para Nicole e voltou a colocar a mão na bunda dela. - Nem pense em tentar roubar algum de seus antigos colegas. – Ele parou para dar um sorriso lupino. - Não que você tenha dinheiro para isto. Os olhos de Cate se apertaram. - Bom, fico feliz de ver que você conseguiu tudo pelo que pagou, William - disse ela. - A lealdade das funcionárias e tudo o mais. Nick colocou-se entre os dois e entregou o casaco a Cate. - Até logo, William. Até logo, Nicole - disse Cate quando se afastaram, sua voz mais firme do que nunca. - Divirtam-se em Milão. - Ela deu o sorriso mais doce possível. - Certamente parece que já estão se divertindo bastante. William e Nicole só ficaram olhando. Soltando fumaça pelas ventas. - Tudo bem com você? - Ao chegarem à rua, Nick abraçou Cate de maneira afetuosa pela cintura, e ela deixou que ele ficasse com a mão ali, orgulhosa de si mesma por ter dado a última palavra com Walton e Nicole, mas, mesmo assim, sentindo-se aborrecida e frustrada. Que vaca! - Você foi muito calma. - Nick sorriu. - Bom, agora tudo faz sentido - retrucou ela, nervosa. - Você acha que ela já estava indo para a cama com ele antes de eu ser demitida? - Tenho quase certeza - respondeu Nick lentamente. - E ele tem um gosto horrível para mulheres. - Mas ela está noiva! - Desde quando isso serviu para impedir alguém de ter um caso? Um luar monocromático iluminava o calçamento enquanto eles percorriam as ruas silenciosas lado a lado. Cate enfiou as mãos nos bolsos e tentou acelerar o passo, ciente do braço que ainda estava lá. Dobraram em um pequeno parque, onde um caminho com pavimentação maluca serpenteava por um gramado. - Eca. Está tudo molhado - disse ela rindo e olhando para os sapatos Manolo de tiras. Meus pés vão ficar encharcados. Vamos voltar para a rua. Com um movimento, Nick se abaixou e tomou Cate nos braços, ela ficou com as pernas balançando no ar. - Ah, pés encharcados são inadmissíveis, não é mesmo, Catherine Balcon? - disse ele, avançando aos tropeções. - Cuidado, você vai arrumar uma hérnia - brincou ela, sentindo-se leve como uma pena no colo dele. Quando ela colocou o braço em volta do pescoço dele, sentiu um choque elétrico entre os dois. Permitiu-se relaxar no calor do casaco dele e aconchegou a cabeça em seu pescoço. O cheiro dele era bom... de loção pós-barba e cabelo lavado. Os lábios dela estavam a um dedo da pele dele. Ele a segurava com força surpreendente, e ela se sentia totalmente protegida, a um milhão de quilômetros de William Walton, das revistas e de tudo o mais. Conforme ia ficando mais relaxada nos braços dele, tudo de repente ia ficando muito claro. A razão por que ela tinha vontade de passar cada hora do dia ao lado dele. A razão por que recuou quando David Goldman quis beijá-la. Ela não queria ficar com David porque, no fundo do coração, era Nick que desejava.


Nick virou a cabeça. Sua boca estava tão próxima que ela quase sentia o gostinho do champanhe que sobrara ali. - Cate - murmurou ele, fechando os olhos ao se aproximar dela. Os olhos dela se fecharam quando ele lhe deu o beijo mais delicado do mundo. Era perfeito. Ela permitiu que seus lábios retribuíssem o beijo e então, com a mesma rapidez, Cate recobrou o juízo. A namorada dele. Nick raramente falava sobre ela, mas Cate sabia que ela existia. Rebecca. Além do mais, Cate trabalhava com Nick. Os dois eram sócios. Aquilo não era profissional. Não era melhor do que William Walton e Nicole Valentine. Estava tudo errado. Ela afastou a cabeça. - Nick. Você tem namorada. Ela conseguiu perceber quando ele se encolheu no escuro. - Mas, Cate. Você está... eu estou... O estômago dela dava cambalhotas enquanto ela, desesperada, esperava para ouvir o que ele diria. Mas ela ficou com medo de que ele confirmasse que ela era a segunda opção. Preferiu fazer um ataque preventivo. - Mas, bem, nós trabalhamos juntos... Não seria... seria... estranho. Ele olhou tão no fundo dos olhos dela que Cate conseguiu enxergar as pintinhas de amarelo nas íris deles. Um longo silêncio, que durou uma eternidade, se instalou. - Talvez você tenha razão. Ele disse aquilo tão baixinho que ela não conseguiu avaliar seu tom de voz. Será que era tristeza? Alívio? O quê? Ele a pousou no chão com delicadeza. A corrente elétrica entre os dois, que segundos antes a queimara e a agitara, dispersou-se com a mesma rapidez com que tinha se instalado. Cate não sentiu nada além de uma decepção esmagadora. - Parece que não está mais molhado - disse Nick lentamente. - Não, parece ótimo. - Caramba, como estamos bêbados. - É, estamos mesmo. E, assim, saíram do parque e voltaram para o hotel.


19 Parado diante da janela da cozinha, observando o jardim, Tom Archer começou a picar as cenouras para seu cozido. As reformas de seu imóvel tinham terminado exatamente dois meses antes, de modo que Tom voltara a morar em sua mansão de Cotswold, depois de retornar do refúgio de Dorothy Whetton à beira-mar. Riu sozinho ao pensar em como aquela era uma mudança absurda em relação à sua vida em Londres. O que eu estaria fazendo agora se ainda estivesse lá com Serena?, pensou consigo mesmo. Sem dúvida, recuperando-se da noite de sábado, bebendo bloody marys e discutindo se iam ou não jantar na casa de algum amigo glamouroso. Talvez estivessem lendo roteiros com um coquetel ou simplesmente conversando sobre trabalho. Era o que normalmente faziam. As coisas agora estão muito diferentes, pensou, olhando para o gramado enfeitado com aglomerados de narcisos. Os passarinhos cantavam no céu claro da tarde, não havia barulho de trânsito veloz pelas ruas e ele estava sozinho, aproveitando sua própria companhia. E mastigava cenouras. Deu risada da vida que levava agora, fazendo pesquisa e escrevendo seu roteiro. A temporada de críquete também estava começando, e ele se tomara sócio do clube local, o Clube Mitchenham de Tênis e Críquete, algo que aparentemente causara furor no vilarejo. Ah, a pressão de estar entre os 11 primeiros, sorriu para si mesmo. Ele estava levemente preocupado com a facilidade com que tinha entrado nessa nova rotina. As pessoas que ficavam olhando para ele, pedindo autógrafos no bar local finalmente tinham desistido, e agora ele era apenas Tom, um dos camaradas do vilarejo, alguém que podia saborear um chope tranquilo e conversar sobre os planos da subprefeitura de tirar o ponto de ônibus da frente da padaria. Seus amigos de Londres, seu agente, seu assessor de imprensa, todo mundo tinha dito que aquela história de viver no interior era só um modismo passageiro, resultado inevitável do rompimento com Serena. Mas depois de dois meses, ele continuava gostando daquilo, adorando a liberdade de fazer o que bem entendesse com seu tempo sem atender às expectativas da turma de Londres. Isso não significava que ele não se sentisse um pouco solitário. Para falar a verdade, tinha começado a aguardar ansioso as visitas de Edna, a faxineira, que ia lá três vezes por semana para dar um trato na casa. Talvez eu seja mais sociável do que pensei, sorriu. E era por isso que não acreditava como não tinha pensado antes em convidar seu velho amigo Nick Douglas para uma visita. Como Rebecca Willard, a namorada de Nick, tinha insistido para ir também, Nick sugerira que também convidassem Cate para o fim de semana. Tom parou de picar as cenouras e largou a faca. Ele estava sentindo várias coisas diferentes em relação à chegada iminente de Cate. Olhou para o relógio e se deu conta de que ela, Nick e Rebecca chegariam dali a quarenta minutos. Sim, ele sempre apreciara a companhia de Cate; os dois sempre se juntavam nas festas de Oswald, sozinhos em um canto, virando martínis e tirando sarro do resto dos convidados da festa. No entanto, Tom não a via desde aquele dia em que ela fora à casa à beira-mar para tentar convencê-lo a se reconciliar com Serena. A separação de Serena tinha sido absoluta; mas uma vozinha irritante ficava lhe dizendo que ele deveria romper todos os laços com a família Balcon. Afinal de contas, era a família dela. Era ela. Mas que diabos, pensou rapidamente, colocando três garrafas de Dom Pérignon 1983 na geladeira e enchendo algumas travessas de madeira de salgadinhos. Abriu as portas envidraça das que levavam ao terraço do jardim e, chegando à conclusão de que estava quente o bastante para um gim com tônica ao ar livre, teve o maior trabalho para montar o guarda-sol cor de creme por cima da mesa do jardim e ajeitar as cadeiras antes de ligar o aquecedor externo para esquentar um pouco mais. De volta à cozinha, jogou as cenouras


dentro de uma caçarola Le Creuset cor de laranja junto com lascas grossas de faisão, pastinacas e cebolas e torceu para que o cozido com purê de batata fosse suficiente para os convidados. Se Serena estivesse presente, exigiria que contratassem o Le Caprice para servir canapés extravagantes e uma refeição rebuscada de cinco pratos... só para um jantarzinho entre amigos. Fechou o forno com um baque. Por que não pensei nisso antes? Sorriu. Cate também tinha pensado muito a respeito de ir ao jantar de Tom ou não, praticamente desde o instante em que aceitara o convite por impulso. Agora, atravessando de carro os vilarejos bonitinhos de Gloucestershire - e cada vez mais perto da casa dele -, tinha ainda menos certeza. Apesar de Tom ter sido um bom amigo nos últimos cinco anos, ela ainda se sentia um pouco sem graça e acanhada de vê-lo. Afinal de contas, sua lealdade era com a irmã. Nem sabia se Tom estava ciente da existência de Michael. Mas, acima de tudo, estava realmente ansiosa por passar o fim de semana com Nick, principalmente porque ele estaria com a namorada a reboque. Desde aquela noite em Milão, quando compartilharam aquele beijo breve, a relação dela com Nick esfriara de maneira palpável. A primeira semana de volta ao escritório tinha sido intolerável para ela. Seus sentimentos por Nick pareciam ter explodido da noite para o dia, a ponto de mal conseguir se concentrar com ele trabalhando na sala ao lado, mas estava claro que a relação deles, apesar de continuar próxima, agora era puramente profissional e muito mais reservada. Não faziam mais aquelas noitadas com bebida no bar, nas quais ficavam falando sobre a revista, mas também rindo e flertando nas entrelinhas. Não tomavam mais o brunch de domingo juntos nem se telefonavam às onze da noite para discutir "ideias" e compartilhar a animação. Caramba, pensou consigo mesma, analisando a coisa em retrospecto: o que Rebecca tinha pensado de tudo aquilo? O Mini sacolejou por cima de um cruzamento de via férrea solitário e passou por um rebanho de gado que espiava curioso, através de uma cerca viva. Dando graças a Deus por ter estado tão ocupada com o trabalho que não tivera tempo de divagar sobre qualquer amor perdido, Cate colocou um CD para tocar. Já era bem crescidinha para reconhecer que sentia falta dele: de seu humor, de sua inteligência, de sua amizade. Bateu na direção com o punho. Ao longo dos anos, as irmãs sempre caçoaram dela, dando risada por ela ser péssima em interpretar sinais, mas tinha certeza que tinha lido tudo direitinho no caso de Nick. As coisinhas que ele dizia, a maneira como olhava para ela, sua disposição de passar cada segundo disponível com ela. A razão tinha de ser Rebecca. Ansiosa com o encontro, Cate passara horas, naquela tarde, resolvendo o que vestir. Toda roupa que fazia com que se sentisse especial também fazia com que parecesse ridiculamente arrumada demais para um jantar descontraído na casa de Tom. Finalmente havia escolhido um de seus jeans preferidos, um suéter de cashmere com gola solta e botas pretas Louboutin de salto - o vermelho da sola nunca falhava em fazer com que ela se sentisse sexy. Prendera o cabelo em um rabo-de-cavalo alto, de modo que os fios balançavam de um lado para o outro quando ela caminhava, e arrematou o visual com um par de brincos de diamante grandes que tinham sido da mãe. Com toda a pressa daquela tarde, tinha se esquecido de pegar uma boa garrafa de vinho para levar para o jantar. Avistou uma loja de bebidas, estacionou na frente e entrou correndo para comprar um presente de última hora: teve que se contentar com um Bordeaux barato, a melhor opção entre a péssima seleção.


Nick e Rebecca já estavam lá quando Cate se aproximou da casa de Tom; o esportivo 1VR prata de Rebecca estava parado todo triunfante diante da casa. Cate sentiu-se levemente enjoada ao bater na porta. Isto aqui pode ser um horror, pensou. Instantes depois, a porta se abriu para revelar Tom segurando dois gins com tônica. - Aqui está ela! - Tom sorriu. - A empresária internacional do ano. Cuidado, Rupert Murdoch! Ele deu um passo à frente, beijou-a na bochecha e colocou um copo na mão de Cate, o que imediatamente acabou com seu frio no estômago. Ele se virou e a conduziu pelo longo corredor até a cozinha bem iluminada. Assim que ela entrou no aposento, avistou Rebecca. Não era o que ela estava esperando, concluiu com rapidez. Ela sabia que Rebecca seria glamourosa, é claro. As poucas vezes que estivera no apartamento dele, vira sapatos Manolo Blahnik no chão e casacos Marni jogados em cadeiras, mas não achava que ela seria assim tão glamourosa. Só Deus sabia como Nick era bonito e charmoso, mais aquilo ali era areia demais para o caminhãozinho dele. Cabelos loiros lisíssimos enquadravam o rosto perfeitamente oval. Seus olhos eram de um verde estonteante, as bochechas eram altas e angulosas, a boca, grande e reluzente. Não havia como negar: Rebecca era linda. Se não estivesse ali, em uma casa rústica em Cotswold, qualquer um diria que o hábitat natural dela era Los Angeles, agarrada a um astro de Hollywood, com sua cinturinha fina de vespa, seus quadris minúsculos e seus peitos grandes e redondos escondidos por uma jaqueta cara da Gucci. Mas com toda a certeza havia uma certa rigidez em seu rosto, pensou Cate, algo liso demais, polido demais. Cate voltou sua atenção para Nick. Ela o conhecia bem o suficiente a esta altura para ver que o sorriso que trazia no rosto não mascarava a ansiedade em seus olhos. - Oi, sócia - disse ele e sorriu com doçura, removendo com sutileza o braço que estava nas costas da cadeira em que Rebecca estava sentada. – Você demorou horas para chegar aqui? Nós levamos um tempão. - É isso que se ganha por morar em Londres - disse Tom, rindo e aproximando- se das portas do terraço. - Perde-se tempo demais em congestionamentos. Falando nisso, vamos lá para fora? - perguntou ele. - O tempo está bom demais para ficarmos presos na cozinha, e o chef precisa tomar um ar. - Ele sorriu. Passaram para o enorme terraço que se localizava acima dos gramados. A noite não estava exatamente quente, mas, para abril, estava bem gostosa e convidativa. O som descontraído do pio dos passarinhos cantando no alto das árvores enchia o jardim, a cerejeira tinha acabado de dar flor e a luz enevoada do início do crepúsculo fazia com que a cena toda parecesse levemente continental. Cate virou um gole bem grande de gim com tônica e ergueu o rosto para o sol, a fim de que ele aquecesse sua pele pela primeira vez naquele ano. - Então, finalmente conheci a famosa Cate - disse Rebecca, deslizando para perto dela enquanto bebericava um kir royale. - É surpreendente que nós nunca tenhamos nos conhecido, não é mesmo? Afinal, você trabalha em revista, e eu sou relações-públicas e tudo o mais - completou. A voz de Rebecca tinha um tom seguro, dissimulado e excessivamente simpático que Cate testemunhara mil vezes na boca de executivos de relações públicas em sua carreira. - É mesmo - respondeu Cate, sorrindo. - Como eu era editora da Class, vivia acorrentada à minha mesa, então não saía nem a metade do que deveria. Mas tenho certeza de que você conhece todo mundo no departamento de moda, não?


- Ah, conheço sim - disse Rebecca, colocando a mão no braço de Cate em um gesto íntimo demais. - Lucy, Cheryl, Susie... são todas uns amores. Sinto muitíssimo pelo que aconteceu com você. Foi um horror. Mas você deve ter ficado contente pelo seu cargo ter sido dado a Nicole Valentine em vez de para alguém de fora. - Sim, fiquei felicíssima. - Cate deu um sorriso apagado, tentando não demonstrar seu aborrecimento. Dava para ver que aquela seria uma noite cheia de provocações disfarçadas, de elogios e conversa infindável a respeito de Rebecca e do que ela fazia. Nick sempre fora muito comedido em suas descrições de Rebecca mas, nos cinco minutos que ela demorou para se apresentar de maneira apropriada, Cate descobriu mais coisas do que nos dois meses de convivência com Nick. Eles tinham se conhecido em Nova York, onde Nick trabalhava em uma editora e Rebecca, em uma empresa de relações públicas. Ela voltara no verão anterior e abrira sua própria empresa de relações públicas de moda, a qual, de acordo com Rebecca, tinha feito sucesso instantaneamente. Depois de dez meses, já tinham conseguido a conta de três das principais grifes, incluindo Roman LeFey e a joalheria internacional Clerc, além de diversos clientes nos segmentos de luxo e beleza. Ela tinha uma equipe de dez funcionários em suas instalações na Bond Street e os negócios só faziam se fortalecer. Cate ficou surpresa por ela não ter oferecido detalhes relativos ao tamanho de sua casa e sobre como sua vida sexual era maravilhosa. Como se tivesse lido seus pensamentos, Tom apareceu com uma travessa de salgadinhos; quando viu que Rebecca não estava olhando, fez uma careta de solidariedade para Cate. - Claro, farei todo o possível para ajudar o projetinho de vocês – disse Rebecca quando Tom voltou para dentro de casa. - Nick e eu somos tão próximos que é quase como se o projeto fosse meu também. O que é dele é meu e tudo o mais - disse ela, olhando para onde Nick examinava uma pilha de CDs. - Mas, bem - prosseguiu ela, tirando uma mecha de cabelo do rosto e se servindo de uma taça de Dom Pérignon que estava na mesinha de ferro fundido -, como foi Milão? - Ela se afastou do campo de audição de Nick e baixou a voz. Eu não pude suportar a idéia de ir até lá encontrar Nick, por mais que ele tenha tentado insistir. Passo tanto tempo naquele lugar desgraçado que teria sido mais uma tortura do que um prazer! O estômago de Cate se contraiu. - Ah, eu não sabia que Nick a havia convidado para encontrar com ele lá... - Ah, convidou, sim - sorriu Rebecca, seus olhos de jade arregalados, a voz, todavia, baixa. - Nós adoramos fazer fins de semana prolongados, embora isso tenha acabado desde que vocês começaram a passar todos os fins de semana quebrando a cabeça. Mas você precisa ter em mente que eu farei qualquer coisa para ver a Sand decolar. É só você me dar um cutucão. Nick não gosta de pedir, ele é mesmo muito gentil. Cate pegou um punhado de pistaches e ficou observando Rebecca se afastar, indo ao encontro de Tom e Nick, que riam alto de uma piada particular. Era engraçado, mas Cate se sentia quase decepcionada com Rebecca. Ela conhecera mil garotas iguais a ela antes. Bonita, sim, até mesmo linda, mas não particularmente espirituosa ou inteligente. Não passava de uma relações-públicas cheia de segurança, que era capaz de falar, de sorrir e de preencher silêncios com papo-furado a respeito de si mesma. Olhou para ela trocando sorrisos com Nick e ficou imaginado o que estava esperando. O jantar foi um negócio barulhento, cheio de calorias e descontraído. Tanto Nick quanto Tom estavam em grande forma. Fazia algum tempo que os dois não se viam, de modo que a


fofoca veio à tona com muita rapidez e nunca faltava assunto entre os dois. A comida estava deliciosa: a carne tinha sido cozida em um molho espesso de caça, que Tom usou para regar os pratos. Tudo bem, o purê com mostarda chegou dez minutos depois, mas Tom levou tudo na esportiva, dando risada de sua falta de coordenação e tremendo com a ideia de preparar a ceia de Natal. O champanhe e o vinho tinto fluíram. E Cate se arrepiou toda quando viu sobre a mesa sua garrafa de porcaria comprada na lojinha da esquina ao lado do Château Lafite trazido por Rebecca. Depois do jantar, estava frio demais e escuro demais para continuar bebendo lá fora, de modo que foram todos para a enorme sala de visita de Tom, onde ele acendeu a lareira e as luminárias, que lançaram um brilho cor de açafrão nas paredes e no tapete cor de creme. Que lugar bonito, pensou Cate, olhando ao redor: é antigo e tradicional, mas, também é sofisticado e moderno. Quando todos paravam de falar, não dava para ouvir nada além da madeira estalando. Cate ficou imaginando como o lugar devia ser solitário para Tom quando os visitantes partissem, o fogo apagasse e os passarinhos parassem de cantar. Talvez fosse por isso que ele tinha um aparador cheio de fotografias, para se lembrar de que ainda existia vida lá fora. Uma fotografia grande em preto-e-branco em um porta-retratos de couro amarelo-castanho se destacava entre as outras imagens de amigos e familiares sorridentes. Era uma foto de Tom e Serena dando risada em um barco. Cate ficou acanhada de estar olhando para eles, quase como se estivesse se intrometendo; desviou o olhar, ciente do fato de que o nome de Serena não tinha sido mencionado a noite toda. - Vai ser muito cafona se eu for preparar um egg-nog? - perguntou Tom, remexendo o fogo com um espeto. - Esta casa é grande e lá fora a noite é assustadora - disse ele, olhando para a lua cheia que brilhava através das janelas. - Mas temos amigos e um fogo bem forte... isto pede um bom egg-nog! - Esperem, o que vai no egg-nog? - perguntou, olhando para Cate, de cenho franzido. Leite, uísque e canela? - Não pergunte para mim - respondeu Cate, dando risada. - Eu sou mais do martíni. - Ô-ou, preparem-se para um desastre alcoólico! - Nick sorriu, preguiçoso. - Bom, eu morei em Nova York três anos - anunciou Rebecca, caminhando na direção da cozinha. - Sei fazer um egg-nog delicioso. Deixe que eu ajudo. Cate e Nick se acomodaram em duas poltronas vermelhas enormes, cada uma de um lado da lareira, e Cate encolheu os pés nas almofadas fofinhas, toda contente. - O que você faria para ter uma casa assim? - perguntou Nick em tom suave, examinando a sala com o olhar, até o teto alto com as vigas à mostra. - Ah, desculpe! - disse ele, num tom meio de piada. - Eu esqueci: você tem uma casa assim. - Ah, pare com isso! - Cate sorriu. - É a casa da minha família... e, de todo modo, é óbvio que você nunca esteve lá. Não é nem a metade tão aconchegante e deliciosa quanto este lugar. - Você vai passar a noite aqui? - perguntou ele, imediatamente assumindo um ar acanhado. - Quer dizer, a casa é ótima, dá vontade de ficar aqui durante o maior tempo possível acrescentou, rapidinho. - Você precisa ver o meu quarto: tem uma porra de uma Jacuzzi no pé da cama! - Meu quarto? - questionou Cate. - Então, vai passar a noite sozinho? - Bem... não - balbuciou Nick. - Ah, então você vai poder aproveitar - disse Cate, arrependendo-se instantaneamente por soar tão maldosa quanto se sentia. - Vai poder compensar por não ter estado com Rebecca em Milão.


Nick olhou para ela, confuso. - Do que está falando? - Mas, bom... - disse Cate, de repente se sentindo nervosa por estar ali sozinha com ele. Ele olhou para ela como se estivesse examinando seu rosto, e ela sentiu o coração dar um pulo. - ... pelo menos não me colocaram no estábulo - arrematou, nervosa. - Fiquei com o sótão, é absolutamente lindo... tem montes de vigas, assoalho de madeira. E a vista é fantástica: dá para enxergar até Stow on the Wold. - Cate... Tom e Rebecca voltaram para a sala, Tom carregando uma enorme jarra de barro com uma bebida fumegante. - Egg-nog é quente? - perguntou Tom. - Mas, bom, parece que fica melhor quente mesmo. Cate deu uma olhada em Rebecca e notou que, em algum ponto entre a sala e a cozinha, ela perdera a jaqueta. Agora usava apenas um top de alcinha minúsculo. - Vamos lá, Tom, confesse - disse Nick, que parecia não ter notado a mudança, dando risada. - O que você está achando de ficar aqui no meio do mato sozinho? Tom recostou-se na ponta da poltrona de Cate e apoiou o braço ao longo do encosto de cabeça. Cate ficou surpresa de perceber que apreciava a presença protetora de Tom, mas também reparou que Rebecca olhava para ela com uma expressão de questionamento. - Na verdade, estou adorando - disse Tom. - Estaria mentindo se não admitisse que às vezes me sinto um pouco solitário, mas eu simplesmente adoro ter um tempo só para mim para fazer o que eu quiser. Dá para acreditar que o Instituto Feminino me convidou para fazer uma palestra sobre escrita criativa? - O seu agente sabe disso? - perguntou Rebecca, num tom tão sério que ninguém na sala soube dizer se ela estava brincando ou não. - Desconfio que o pagamento vai ser em potes de geléia de groselha - respondeu Tom, bebericando o egg-nog. - Não sei bem se o meu agente vai se interessar em receber porcentagem disso. Mas, não, estou adorando. E acho que não vou voltar em breve. - Mas e a sua carreira de ator? Como é que você pode desistir dela? - perguntou Rebecca, solene. Houve um silêncio desconfortável e Tom olhou para Cate de novo, uma sobrancelha levemente erguida. - Ah, acho que Hollywood vai ter que esperar - disse Tom, afinal. - Pelo menos, até eu acabar este egg-nog. Enquanto a noite ia passando, eles conversavam, davam risada e jogavam Pictionary; depois disso, Tom os levou para um passeio pela casa iluminado a lanterna, contando-lhes histórias de fantasma e de espíritos que tinha ouvido dos fofoqueiros do vilarejo no decorrer das semanas anteriores. - Parece que tem um fantasma de um criado de um braço só que mora aqui - disse ele enquanto tropeçavam pela adega de vinhos no porão. - Ai, meu Deus! - Rebecca soltou um grito histérico. - Você não fica apavorado? - Não tenho muita certeza se quero passar a noite lá em cima, no sótão - falou Cate, rindo. - Ah, não se preocupe - disse Tom, colocando a mão no braço de Cate. - Não vi nada desde que cheguei aqui. Os únicos espíritos da casa estão naquela bebida. Não doeu tanto assim, pensou Cate, vestindo o pijama de algodão e deitando-se nos lençóis Pratesi, embaixo da coberta grossa de pena de ganso - uma relíquia da velha vida de Tom


com Serena, disse a si mesma com um sorriso. Desde que não ficassem sozinhos, Nick não se mostrava sem graça nem tímido; aliás, ele havia estado com a corda toda. Também tinha sido ótimo ver Tom. Ela ainda não estava bem certa se ele estava realmente feliz ali no interior ou se estava tentando convencer a si mesmo de que a tristeza que sentia não estava lá. Devia ser muito difícil, pensou, sair de uma vida em um redemoinho incansável de festas e socialização - e ela sabia, de sua época de adolescente, que Serena era espalhafatosa e dominadora - para o isolamento esplêndido de Tom, tendo apenas alguns supostos fantasmas como companhia. Mas, não, as preocupações dela relativas aos homens eram infundadas. E ela tinha conhecido Rebecca e, sob alguns aspectos, sentia-se aliviada. Agora que ela era real, pelo menos não podia simplesmente ignorar a idéia de que Nick tinha namorada. Depois de Milão, ela ainda alimentara uma faísca de esperança de que pudesse existir algo entre ela e Nick, mas agora que o tinha visto como a metade de um casal, sabia que ali não havia nada. A mistura de gim com tônica, vinho tinto e egg-nog a estava deixando sonolenta agora. Só com um pouquinho de medo dos fantasmas, ela puxou a coberta até o queixo, afundou a cabeça nos travesseiros até que lhe tapassem os ouvidos e fez o que pôde para pegar no sono. O campo de Cotswold é cheio de ruídos à noite: corujas piando a distância, folhas farfalhando quando o vento da noite faz cócegas em seus galhos e o tilintar de canos e cisternas através das antigas paredes de tijolos. Tom tinha aprendido a ignorar tudo aquilo enquanto dormia. Mas, às três da madrugada, foi repentinamente perturbado por um som que não conseguiu distinguir: um longo rangido vindo da direção da porta de seu quarto escuro. Sem estar totalmente acordado, ignorou o ruído, virou para o lado e a coberta foi parar longe. De repente, ficou paralisado. Não, desta vez havia alguém mais ali. A roupa de cama se movimentou e ele sentiu outro corpo se esgueirar para dentro dos lençóis ao lado dele. - Mas o que...? Sentindo um calafrio de pavor percorrer-lhe a espinha, virou-se lentamente para olhar de frente para a intrusa. Um dedo comprido, com unha pintada à francesinha, tirou o cabelo da testa dele. - Shhh - sussurrou uma voz. À medida que os olhos de Tom iam se habituando à escuridão, a silhueta ao lado dele começou a tomar uma forma que ele conhecia. - Rebecca - sibilou ele por entre os dentes quando ela pressionou o corpo contra o dele, e ele percebeu, na escuridão cinzenta, que ela estava nua. - Rebecca, mas que diabo...? - Shhhh... - repetiu ela, colocando o indicador sobre os lábios dele. De repente, os pensamentos dele retrocederam até o momento naquela noite em que ela o seguira até a cozinha para ajudá-lo com o egg-nog. Lembrou-se de como ela tinha tirado a jaqueta e roçado nos braços dele com seus braços nus. Na hora, a coisa tinha parecido acidental, mas agora a simpatia dela assumia uma nova perspectiva. Agora, enquanto ela se agitava ao lado dele, a curva de seus seios e seus mamilos se destacavam sob um raio de luar que entrava por uma brecha nas cortinas. Paralisado de pavor, buscando na mente uma maneira de escapar, Tom ficou surpreso ao perceber como os contornos de Rebecca se pareciam com os de Serena. O cabelo loiro comprido caindo sobre os ombros nus, o corpo firme, esbelto e macio pressionado contra o dele.


Ela era tão quente, tão suave, pensou, sonolento. Mas, não. Desesperado, retomando os sentidos, Tom sacudiu a cabeça e afastou o corpo dela. - Olhe, Rebecca, o que está fazendo? - sibilou por entre os dentes, desesperado. - Não faça isso, não... Antes que tivesse tempo de demonstrar mais objeção, a cabeça de Rebecca já estava embaixo das cobertas, seu cabelo roçando o umbigo dele enquanto ela o chupava. Tom gemeu quando sentiu os lábios firmes dela em volta do pau, a boca toda envolvendo a circunferência de seu pênis, até que a ponta encostou na garganta dela. Para cima, para baixo, para cima, para baixo. Durante um segundo, ele gemeu de prazer: fazia mais de três meses que ele não tinha nenhum contato físico com uma mulher... e aquilo fazia falta. De repente, recobrou os sentidos. - Caralho, Rebecca. Saia de cima de mim. Agora. A cabeça dela surgiu em busca de ar, e ela escorregou para fora de sua cama tão sorrateiramente quanto tinha entrado. Ele se virou para observá-la, corroído de tanta vergonha, enquanto seu corpo nu se afastava dele. Completamente inabalada com o que tinha acontecido, ela pegou um penhoar de seda que tinha jogado no chão segundos antes e olhou por cima do ombro para sorrir para ele. - Quando quiser - ronronou, sedutora. - Lembre-se, Tom, quando quiser.


20 Exausto, Diego Bono rolou para o lado sobre os lençóis amarfanhados, gotas de suor brilhando sobre sua pele firme e bronzeada, e olhou para o outro lado do quarto, para seu novo amante. Normalmente, ele nunca se sentia à vontade para levar as diversas conquistas que fazia em bares gays do Soho para seu apartamento, em Camden, mas aquele homem era diferente. Elegante, sofisticado e obviamente muito, muito rico. Agora que estava circulando em ambientes de mais afluência, Diego com toda a certeza precisava se aprimorar. Não queria que ninguém pensasse que Diego Bono era apenas um alpinista social espanhol em formação. Diego Bono tinha futuro. Ergueu o corpo, apoiou-se nos travesseiros de pena de ganso e acendeu um cigarro mentolado. A silhueta de seu parceiro se moveu na direção da janela para abrir a cortina, deixando que um raio fino do sol da tarde entrasse. Diego soprou um anel de fumaça ao admirar a bunda firme e branca do companheiro à luz difusa. - Vou dizer uma coisa - anunciou Diego com seu sotaque europeu levemente arrastado -, você realmente tem uma bunda de arrasar. Jonathon von Bismarck olhou para a cama e começou a vestir a calça de sarja amassada. - É - respondeu com frieza, lançando um sorriso magro e arrogante para Diego. - Eu sei. Venetia examinou os esboços de Diego Bono espalhados sobre sua mesa e sorriu. Caramba, aquele jovem estilista recém-saído do Royal College of Art era mesmo um achado, comemorou consigo mesma. Os modelos eram perfeitos para a linha de vestuário feminino Venetia Balcon que ela planejava lançar em setembro: silhuetas simples e descontraídas com um toque colegial. Jaquetinhas de algodão com cintura marcada, tubinhos com decote acentuado e suéteres leves de cashmere em tons pastel. Tudo junto formava um visual clássico do jet-set, a resposta britânica ao "New York Chic" sensual de Michael Kors... era exatamente o que ela estava procurando. Prendeu um desenho na parede e olhou ao redor do escritório, que ficava no andar mais alto da casa georgiana de quatro pavimentos de Bruton Street, em Mayfair. Os dois primeiros andares eram de varejo: vendiam tecidos refinados, lindos cristais, roupa de cama, cortinas, acessórios delicados e peças maravilhosas, feitas a mão, que ela mandara vir da França. O terceiro andar era o comentado espaço de decoração de interiores. O quarto piso funcionava como o escritório de Venetia, mas seu sonho era transformá-lo no departamento de moda. Ela se recostou na cadeira de couro e observou o caos criativo com um olhar de afeição. A Venetia Balcon Limited estava se tornando um belo império, pensou, contente. Retalhos de tecidos Venetia Balcon cobriam um sofá em uma ponta da sala, latas prateadas de tinta com a nova linha para pintura de interiores Venetia Balcon empilhavam-se em um canto e papéis de parede refinados, cortinas e pilhas de roupa de cama em tecidos macios e luxuosos espalhavam-se por sobre a grande mesa de carvalho no centro da sala. Mas o que mais a animava era a linha de roupas. Junto com Kelly Hoppen e Nina Campbell, Venetia estava se estabelecendo rapidamente como uma das principais decoradoras de interiores do país. Desde sua época de Vogue, a moda sempre fora sua paixão. Ela admirava a maneira como Ralph Lauren e Jasper Conran tinham criado enormes impérios de estilo de vida a partir de uma linha de roupas. Se eles tinham passado do vestuário para os acessórios de casa, por que ela não podia fazer o caminho inverso? Venetia sabia que as mamães antena das e as donas-de-casa entediadas de Chelsea a Clapham estavam desesperadas por um toque da visão de Venetia Balcon em suas vidas, e ela estava mais do que disposta a fornecê-la. A certo preço, sorriu.


Tomou um gole do café forte e resolveu que andava trabalhando tanto que não faria mal nenhum encerrar o expediente mais cedo naquela tarde. Deu uma olhada rápida na agenda para confirmar que estava livre. Droga! Tinha um compromisso marcado. Jack Kidman? Quem diabos era aquele? Pegou o telefone para ligar para sua assistente, Leila. - Leila... Jack Kidman? Não consigo lembrar quem é. Parece que tenho uma reunião com ele daqui a cinco minutos, mas marquei limpeza de pele para daqui a uma hora. - Você pediu que eu marcasse um horário com ele depois da festa de Serena - respondeu Leila, ansiosa. - Acho que é amigo de algum convidado. Venetia soltou um resmungo. Agora estava lembrada. Amanda Berryman, a relaçõespúblicas que cuidava da linha de acessórios para casa Venetia Balcon, havia pedido a ela que falasse com um amigo seu, algum ex-publicitário que comprara uma casa na Espanha e estava atrás de um decorador para fazer o projeto da reforma. Deu uma olhada no relógio. Por que diabos tinha aceitado falar com ele? Não estava exatamente precisando daquele trabalho. Sua agenda já estava transbordando de clientes particulares e corporativos estrangeiros, todos ansiosos para repaginar o estilo da casa ou do escritório. Ela tinha atingido a posição de atender pessoalmente apenas um punhado de projetos selecionados, deixava o resto a cargo de Caroline Rhodes, uma jovem designer de interiores talentosa que ela roubara de Kelly Hoppen. E acho que vai ser Caroline que visitará a residência de férias de Jack Kidman, pensou Venetia. - Leila? - chamou, pegando o telefone novamente. - Você pode ver se Caroline está disponível para participar da reunião comigo? - Acho que não, Venetia. Ela saiu há cerca de meia hora para compromissos externos. E Jack Kidman chegou. Posso pedir para que entre? Xingando a si mesma, Venetia deu uma olhada no enorme espelho veneziano em um dos lados da sala e ajeitou-se atrás da mesa, resignando-se a mais uma reunião maçante. Publicitários. Na maior parte, eram uns pentelhos presunçosos, arrogantes e insolentes. Não reconheciam o bom gosto nem que estivesse na cara deles. Com toda a certeza ela precisaria mesmo daquela limpeza de pele. - Venetia Balcon? Um homem alto e bonito, com 40 e poucos anos e ar descontraído e indecente de quem é muito bem-sucedido, entrou na sala dela. - Sou eu - sorriu ela, levantando e alisando a saia em um gesto inconsciente. Durante um segundo, sentiu-se culpada por medir o cliente de alto a baixo. Ele tinha ombros largos, seu cabelo grisalho contrastava com a pele macia e bronzeada, e possuía um belo par de olhos verde-escuros brilhantes. O nariz levemente torto - teria sido um acidente enquanto praticava esportes? - completava o visual bonito. Ela tomou mais um gole de café para pensar em outra coisa. Jack cumprimentou Venetia com a cabeça, mas caminhou até a porta envidraça da que levava ao terraço do telhado. - Que sala bacana - disse ele. - É mesmo um lugar ótimo para um estúdio. Voltou até onde ela estava, cumprimentou-a com um aperto de mão forte e firme e sentouse rapidamente, batucando na perna com os dedos e absorvendo o espaço com olhos sagazes. Venetia começou a sorrir. - Algo errado? - disse Jack com uma expressão levemente confusa. - Isto aqui é um escritório de decoração, não um consultório dentário - disse ela, sorrindo. Jack Kidman ergueu as mãos e começou a rir.


- Eu sei, eu sei. É que nunca fiz essa coisa de decoração - sorriu. - Fiquei um tanto nervoso, desculpe. - Tudo bem. Então, por que não começamos do começo? – disse Venetia, levantando-se. Diga-me por que veio até aqui. Aceita um chá? Um café? - Um espresso, se tiver - disse Jack, quando Venetia se aproximou de uma máquina de café Gaggia toda preta atrás da mesa. Jack observou-a enquanto ela se ocupava com as pequeninas xícaras e chegou à conclusão de que aquela loira alinhada e bacana à sua frente era exatamente o que ele estava procurando. - Bom, acabei de comprar uma finca bem pertinho de Sevilha – começou ele, limpando a garganta. - Estou vendendo a minha empresa e a idéia é sair de Londres, no começo só por alguns períodos. Depois, quem sabe? Pode ser que eu me mude para lá definitivamente, pode ser que não. De qualquer maneira, é uma construção magnífica. É uma antiga moenda de azeite com alguns estábulos e outras construções funcionais, vinte acres de terreno. Ameixeiras, macieiras, tem tudo. Pegou uma pasta de couro que tinha deixado ao lado da cadeira, tirou dali um punhado de fotografias grandes e espalhou-as em cima da mesa de Venetia. Eram imagens externas e internas de uma construção de pedra caindo aos pedaços, erguida no terreno seco de um sítio espanhol negligenciado. As paredes eram brancas, mas estavam desbotadas, os tijolos desgastados aparecendo por baixo da argamassa. O pátio estava em ruínas, mas tinha alguns arbustos enormes de lavanda. Ainda assim, Venetia assentiu com a cabeça em sinal de apreciação: o lugar tinha um enorme potencial. Personalidade aos montes, pensou, examinando as fotografias. Adoraria ter um lugar assim, divagou, imaginando os raios quentes do sol espanhol queimando sua pele nua... De repente, tossiu. - Hum, os telhados são lindos - disse, levemente corada. - Há vigas em todos os aposentos, é adorável. - Absolutamente - disse Jack, aproximando a cabeça da dela e apontando para as fotografias. - Olhe para este torreão maravilhoso, e a escada – disse ele, passando o dedo sobre as imagens. - Mas está bem destruído - disse Venetia, voltando-se para ele, sem vontade de se afastar muito. - Está, mas contratei um arquiteto espanhol e uma equipe de pedreiros já está trabalhando na reforma - disse Jack. - A estrutura vai estar sólida daqui a algumas semanas. Portanto, agora estou pensando no interior. Nunca fiz um projeto de reforma antes. - Ele fez uma pausa e sorriu. - Mas imagino que você já tenha percebido. Venetia estava fora de si de tanta animação. Sabia que estava olhando para um serviço extenso e caro, porém fascinante. Estava enjoada até não poder mais de dar um trato em hotéis exclusivos e em restaurantes cheios de frescura que fechavam depois de alguns meses. Aquela casa era uma beleza orgânica, e ela também sabia que Jack Kidman tinha dinheiro para fazer jus a ela. Tinha lido na seção de mídia do jornal Guardian sobre a venda da Kidman, a agência de publicidade inovadora que sobrevivera à recessão da década de 1990 e se transformara em uma das protagonistas do setor. Parecia que a Tempest Communication, um enorme conglomerado de mídia francês, estava comprando a empresa por 75 milhões de libras. Ela ergueu o olhar, e os olhos escuros e sorridentes de Jack encontraram os dela. - Interessa? - perguntou-lhe ele, tomando o espresso de um gole que o deixou com um bigode fofo de espuma marrom.


- Pode ser que sim - respondeu Venetia. - Pode ser que sim. Venetia raramente desprezava um tratamento de beleza no Mandarin Oriental de Knightsbridge, mas depois que Jack Kidman saiu de seu escritório, ela de repente se sentiu inquieta, com um nervosismo excitado percorrendo-lhe o corpo. Com a disposição que estava, ela não conseguiria ficar sentada cinco minutos, muito menos passar uma hora deitada, enquanto os melhores óleos da Decleor eram massageados em seu rosto e corpo. Pegou o telefone, desmarcou o horário e dispensou seu carro, tirou os sapatos Yves Saint Laurent e calçou um par de mocassins macios da Tod, que tinham residência permanente embaixo de sua mesa para o caso de emergências assim. Apesar de dispor do luxo de ter um motorista, Venetia gostava de ir para casa caminhando quando queria limpar a mente. Saiu do escritório e serpenteou pelas ruazinhas de Mayfair, passando pelos cassinos, pelos clubes de cavalheiros e pelos salões de cabeleireiro da alta sociedade e evitando a Mount Street para não ter que passar perigosamente perto da Galeria Balcon. Embora Oswald quase nunca estivesse lá, não valia a pena correr o risco; com toda a certeza não estava disposta a falar com ele. O Hyde Park parecia revigorante e enevoado naquele fim de tarde de abril. O gramado estava bonito e fofo, e jacintos ladeavam as passagens cheias de gente fazendo jogging ou andando de patins e de babás empurrando carrinhos. O tempo estava surpreendentemente quente, e Venetia tirou a jaqueta para que o sol fraco esquentasse as mangas de sua camisa. Ao ver um pequeno aglomerado de crianças brincando, parou um instante e se sentou em um banco para observá-las. Uma menininha com sapatos vermelhos de couro lustroso corria atrás de outra criança, as marias-chiquinhas subindo e descendo enquanto ela se afastava, rindo. Um menininho começou a chorar quando a babá tirou-lhe da mão um picolé que derretia em cima do casaco dele. Três crianças um pouco maiores comparavam brinquedos, cada uma tentando impressionar mais a outra. Nenhuma das mães bemarrumadas ali perto, reparou, olhava para as crianças; elas preferiam ficar fofocando com as outras mamães antenadas. Por que não prestam atenção às crianças?, pensou Venetia, com tristeza. O que pode ser mais interessante do que vê-las correr e rir? Uma lágrima escorreu por sua bochecha, e ela a enxugou rapidamente. Então, o dia dela tinha sido ótimo, um projeto de decoração suculento com um proprietário bonitão tinha simplesmente aparecido do nada. Mas Venetia sabia que a razão por que se dedicava tanto ao trabalho não era o desejo ardente de alcançar o sucesso, como acontecia com Camilla, mas sim escapar de sua solidão cotidiana. Em um piscar de olhos, ela trocaria de bom grado as reuniões importantes e os clientes particulares ricos por uma tarde com uma criança, seu filho, brincando no parque. Percorreu o restante do caminho até sua casa andando com rapidez. Estava aborrecida consigo mesma por ter chorado, aborrecida com Jonathon por ser tão insensível em relação à sua infertilidade, aborrecida até com Jack Kidman por tê-la feito pensar que poderia se livrar de toda aquela tristeza. Bateu a porta de entrada, subiu a escada correndo e ficou surpresa ao encontrar Jonathon deitado na cama com seu roupão de banho. O cabelo dele estava molhado e ele cheirava a sabonete almiscarado. - O que você está fazendo em casa tão cedo? - Eu poderia lhe fazer a mesma pergunta - disse Jonathon com frieza, percebendo logo o humor de Venetia. - Você não ia jogar tênis hoje à noite? - Para falar a verdade, eu ia ao salão - respondeu Venetia, irritada. - Eu não estava a fim de ir. - Tirou a jaqueta e jogou-a em cima da chaise longue do quarto. - Mas você não


respondeu à minha pergunta. O que está fazendo em casa tão cedo? - Aquela não era a primeira vez que ela o pegava em casa quando deveria estar no escritório, e estava começando a desconfiar - embora não soubesse bem do quê. - Agora eu não tenho mais permissão para chegar em casa antes das oito, é isso? - latiu Jonathon, levantando-se da cama e indo para o closet, enquanto esfregava o cabelo com uma toalha. Jogou-a sem cuidado no chão e começou a examinar as roupas penduradas; acabou escolhendo uma camisa Charvet cor-de-rosa e uma calça de sarja bege escura. - Eu tinha um jantar com um cliente em potencial, mas ele cancelou, se quer mesmo saber. Parou na frente do enorme espelho de vidro veneziano e examinou alguns pelos nasais rebeldes cheio de nojo. - Mas, bom, podemos aproveitar a reserva. O que você acha de jantar no Cipriani? Venetia suspirou para si mesma, sentindo a raiva ceder lentamente. Foi até Jonathon, repousou o queixo no ombro do roupão branco atoalhado, abraçou-o e começou a soltar o cinto. - Achei que a gente podia ficar em casa - sussurrou ela no ouvido dele. - Estou em um bom momento. - Um bom momento? - disse Jonathon, afastando-se um pouco dela. - Para quê? - Bom, meus óvulos estão maduros - respondeu, um pouco desconfortável. - Querido, eu preciso soletrar? Nós temos que transar! Ele afastou as mãos que o abraçavam e olhou para ela com frieza. - Eu gostaria muito que você parasse de tratar o sexo como uma porcaria de uma operação militar. Não quero exatamente transar sob alguma espécie de comando. A raiva de Venetia repentinamente voltou com tudo. - Não tinha percebido que você era uma porcaria de um romântico! - Ela praticamente cuspiu as palavras, seus olhos soltando farpas. - Não preciso lembrá-lo de que não temos muito tempo. - A voz dela começou a tremer e ela pôde sentir grossas lágrimas quentes escorrendo por seu rosto. - Ai, meu Jesus - resmungou Jonathon, afastando-se dela. Venetia explodiu. Agarrou o roupão e obrigou-o a ficar de frente para ela. - É do nosso filho que estamos falando! - berrou. - Qual é a parte que você não compreende? A médica disse que estou passando por uma menopausa prematura. Meus óvulos estão acabando, tenho no máximo mais três ou quatro meses. Se não começarmos a nos esforçar muito para ter um filho este mês... todo mês... acabou! Não há mais tempo, não haverá mais filho! Agora ela chorava de verdade, rios de lágrimas borravam a base que cobria seu rosto. Mordeu o lábio para tentar deter o fluxo. - Então é isso que vai acontecer nos seus anos de menopausa? – desdenhou Jonathon, cheio de crueldade. - Mudanças de humor repentinas? Lágrimas antes de dormir? Calmamente, foi até o banheiro e borrifou Aqua di Palma no peito. - Então, você não quer sair para jantar? Venetia só ficou lá, de costas para ele, olhando para a rua, os ombros subindo e descendo com as lágrimas silenciosas. - Acho que a resposta é não - disse ele com desdém, ajeitando as abotoaduras Asprey nos punhos da camisa. - É uma pena, porque temos algumas questões de trabalho para discutir. Venetia virou-se para olhar para ele com os olhos vermelhos e indignados. - Você pode me dizer aqui mesmo. Não precisamos ir a um restaurante para falar de negócios - disse ela, em tom gélido.


- Neste caso, é melhor então que eu apresente logo meus planos futuros - respondeu ele, ríspido, assumindo completamente a figura do homem de negócios agora que estava vestido outra vez. - Reparei na agenda que temos mais uma reunião de diretoria da marca Venetia Balcon na segunda-feira à tarde. - É isso mesmo - disse Venetia, dando um gole em sua água Evian para limpar a garganta. No último ano e meio, Jonathon tinha comparecido a todas as reuniões de diretoria da empresa dela, inclusive a várias outras reuniões menores, porém importantes, relativas à marca Venetia Balcon. Ele era o principal consultor comercial da empresa. Afinal de contas, logo depois do casamento ele havia feito um investimento de dois milhões de libras do próprio bolso no negócio dela: foram esses dois milhões que lhe permitiram sair de uma lojinha minúscula em Fulham Road para a linda base de operações georgiana em Mayfair que a marca Venetia Balcon ocupava agora. Depois de Venetia, Jonathon era o maior acionista, com quarenta e cinco por cento da empresa; o diretor financeiro, Geoffrey Graham, tinha três por cento, e Caroline, a decoradora-chefe, ficava com um por cento. - Cheguei à conclusão de que não tenho mais tempo para isso – disse Jonathon, penteando o cabelo na frente do espelho. - A Orion Capital agora está cuidando de um fundo de cinco bilhões de libras, e se quisermos abrir uma filial em Genebra até o fim do ano, não posso me dar ao luxo de ter qualquer distração. Então, não vou mais me envolver com as suas transações comerciais, querida. Venetia sentiu uma onda de pânico. Ao mesmo tempo que achava difícil trabalhar com o marido, que sabia ser exigente, controlador e perfeccionista, ela valorizava a perspectiva de negócio que ele levava para a empresa. Não teria nem sonhado em se expandir assim tão rapidamente com a linha de vestuário feminino, nem em abrir a loja em Nova York, se não fosse a enorme contribuição comercial de Jonathon. Geoffrey era eficiente para fazer contas, mas não chegava aos pés do marido dela em termos de astúcia comercial. - Mas o que você espera que eu faça? - gaguejou ela. - Você faz parte do negócio, o investimento é seu! - Não é exatamente a minha primeira preocupação comercial – disse ele, dando uma risada fria. - No entanto, você tem razão, eu quero proteger o meu investimento, e é por isso que resolvi nomear uma pessoa para ocupar o meu lugar nas reuniões da diretoria, para tomar decisões em meu nome. Alguém que possa tomar decisões racionais e imparciais. Sei que você às vezes se empolga demais. - Quem? - perguntou ela, brincando com a aliança de platina no dedo. - O seu pai - respondeu Jonathon com frieza. Por um instante, ela não soube dizer muito bem se ele estava caçoando dela ou se de fato era uma sugestão séria, até que viu o brilho de triunfo nos olhos dele. - Mas como?... Onde você estava com a cabeça? - Ela tossiu e aproximou-se dele, esfregando as mãos. - Caramba, Jonathon, você sabe como ele é difícil. Ele é briguento, obstrutivo e um pé no saco completo na melhor das hipóteses. Eu não posso... não, eu não vou trabalhar com ele. Você não pode realmente achar que eu vou aceitar! Imitando Venetia, Jonathon começou a mexer no anel de ouro com brasão que usava no mindinho e deu um sorriso cheio de confiança. - Como sócio detentor de quarenta e cinco por cento da sua empresa, querida, eu acho que você vai fazer qualquer coisa que eu sugerir.


21 - Suco de fruta, chá Earl Crey ou será que ainda está apenas um pouco cedo demais para martínis? - disse Serena, acomodando-se ao lado de Roman LeFey no terraço do dúplex impressionante de Michael no Upper East Side. - Apenas um pouco de água mineral seria ótimo - respondeu seu amigo, recostando-se em sua cadeira Adirondack para deixar o sol bater em seu rosto e os olhos vagarem para apreciar a vista. Do terraço, Roman enxergava Manhattan toda, do centro até o outro lado do Central Park e mais para cima, no horizonte, onde a região norte do estado ia desaparecendo, a quase trinta quilômetros de distância. Provavelmente não havia lugar melhor para almoçar em Nova York, e nenhuma companhia mais glamourosa. Ele voltou seu olho crítico de moda para Serena, que não via desde o cruzeiro egípcio tão cheio de drama. Ela, com toda a certeza, tinha se encaixado perfeitamente no papel de loira poderosa de Nova York, pensou, olhando para a calça sob medida justinha dela, a camiseta Proenza Schouler e as sandálias com saltos de picador de gelo penduradas nos pés com unhas cor de carmim. Claro que Serena sempre tinha sido a amiga mais bem-nascida dele, mas havia mudanças sutis definitivas, ele notou e deu um golinho na água Pellegrino. A maquiagem estava um pouco mais pesada, o cabelo, de um loiro um pouco mais claro. E ela, com certeza, tinha perdido muitíssimo peso. A leve curva de seus quadris tinha desaparecido para fazê-la caber em roupas manequim 34. O visual era reluzente, caro e bem-acabado, mas Roman ficou se perguntando se, em busca de sua repaginação novaiorquina, ela por acaso não tinha perdido um pouco da naturalidade inglesa que ele tanto adorava. Uma empregada hispânica entrou no terraço com duas enormes tigelas de salada de camarão e uma jarra de água gelada com fatias de limão flutuando. - Um almocinho leve - disse Serena, depois sorriu e espetou uma folha de rúcula. - Sinto muito por não ter sido possível ir ao Da Silvano ou a algum lugarzinho no Village, mas hoje estou até aqui de compromissos antes da festa. Tenho manicure, pedicure e massagem na Bergdorfs às 2 horas, e ainda nem dei a minha corrida - disse ela com um tremor de pânico na voz. - Mas pelo menos você tem um vestido para hoje à noite – sorriu Roman, todo orgulhoso. Você vai ficar muito mais do que fabulosa. Serena assentiu com a cabeça. Ela sabia que precisava estar o mais linda possível para brilhar no Baile de Gala do Instituto do Vestuário naquela noite. Organizado no museu Metropolitan, o baile era único pela lista de VIPs MA da sociedade nova-iorquina, figurões da indústria da música e astros de Hollywood, isso sem esquecer da turma glamourosa da moda. Oitocentas pessoas, entre as mais badaladas, comemoradas e cobiçadas dos Estados Unidos estariam disputando as atenções na festa mais animada do ano. O assessor de imprensa de Serena, Muffy, dissera-lhe que, se ela conseguisse causar sensação naquela noite, além de Nova York, todos os Estados Unidos também ficariam seduzidos pelo charme de Serena Balcon. Claro que ela teria de causar o tipo certo de sensação. O baile geralmente tinha um tema, e neste ano era "Uma Noite Burlesca". A situação tinha um equilíbrio delicado. Com muita frequência, os convidados levavam o tema a sério demais e acabavam vestidos como alguma tragédia gótica seminua. Por outro lado, ele acreditava que estar totalmente glamourosa e ao mesmo tempo respeitar o espírito da festa certamente faria com que fosse notada. Mas podia deixar a cargo de Roman uma criação assim tão fabulosa, ela pensou, visualizando a peça estendida sobre a cama. Era um vestido


tomara-que-caia com metros e metros de tecido que saíam como ondas na parte de trás, formando uma cauda suntuosa. Tinha sido feito com tiras de chiffon escuro em diversos tons de preto, do carvão ao ébano mais escuro. Um corselete com barbatanas confeccionado por Mr. Pearl agarrava-se ao corpo dela como metal derretido. O modelo de alta-costura tinha sido um presente de Roman, mas é claro que ele tinha segundas intenções. Sabia que, assim que Serena Balcon subisse aquela escadaria, todas as pessoas de Nova York que gastam muito com moda e as garotas que sentam nas primeiras filas dos desfiles iam querer saber quem havia feito o vestido incrível dela. Ele não iria ficar sentado e deixar que Carolina Herrera e Oscar de la Renta vestissem a sociedade americana para sempre. - Mas, bem, conte-me de Nova York - disse Roman, mordiscando um camarão hondurenho com gosto. - Ah, isto aqui é fabuloso - irradiou Serena. - A Town 6 - Country vai fazer um ensaio comigo para a capa do mês que vem. Na casa de praia de Michael, em Southampton. - Férias nos Hamptons - sorriu Roman. - Então, você agora é uma nova-iorquina totalmente convertida, não é mesmo? Ou será que tem saudade da vidinha de Londres? Serena soltou uma gargalhada desdenhosa. - Você tem que estar de brincadeira! Não sei por que não me mudei para cá há anos. Aquela coisa toda de Chelsea agora me parece absolutamente banal. Conheci tanta gente fabulosa... artistas, diretores... e estou falando de diretores importantes de verdade, não alguém que estudou cinema e tem uma câmera - disse ela, quase derrubando o copo de tanta animação. O fato de que Serena se sentia solitária em Nova York era algo que ela tentava deixar para lá. Todo mundo naquela cidade levava tudo tão a sério e, apesar de sempre haver algum lugar fabuloso para se ir (uma festa, um evento beneficente, um vernissage), ela sentia falta de alguém que lhe fosse próximo, para conversar, para compartilhar seus triunfos. Sentia saudade das irmãs. Percebeu tarde demais que Michael era muito viciado em trabalho para ser o parceiro em Manhattan que ela tanto queria ter. A ampla escala de seu império de negócios só ficara claro depois que Serena se mudara para Nova York: trezentos hotéis de diversas categorias, dois cassinos e também uma boa quantidade de imóveis de alto valor. A vida dele tinha uma rotina, e as atividades de Serena tinham de se encaixar nela. Ele trabalhava das sete horas da manhã às sete horas da noite, todos os dias. Serena tinha que encontrar com ele para jantar às 19h30. Só então, e se ele estivesse disposto, eles faziam alguma atividade social juntos. Ele não gostava que Serena fosse a festas sem ele e deixava seu desagrado muito evidente. Normalmente, Serena não teria tolerado esse comportamento em homem nenhum: ela estava acostumada a ditar as regras em seus relacionamentos. Mas, em Nova York, ela não tinha uma rede de apoio de amigos e da família para lhe dar proteção, então, por enquanto, não iria botar para quebrar. E principalmente não com o verão tão próximo, com a casa dele nos Hamptons e os fins de semana em seu iate. Pelo menos eu sou uma mulher prática, pensou, cheia de presunção, com seus botões. - Bem - prosseguiu Serena, esticando as pernas e brincando com o limão que flutuava em seu copo. - Eu agora também não posso mais voltar para Londres, não é mesmo? - É? Por que não? - perguntou Roman com uma expressão de surpresa no rosto. - Bem - respondeu Serena, jogando o cabelo para trás, que parecia de um branco reluzente sob o sol do meio-dia. - Há algumas semanas colocamos a casa de Cheyne Walk à venda. Achei que já estava na hora... tudo está sendo tratado por advogados, é claro. Na primeira semana, já recebemos uma oferta acima do preço que estávamos pedindo. Não é de surpreender, claro. Morar no antigo endereço de Serena Balcon não tem preço, não é


mesmo? Os compradores querem finalizar o negócio o mais rápido possível, e acho que não há nada para impedir que isto aconteça, certo? Eu estou aqui e parece que Tom está gostando de viver como um caipirão. - Mas será que é prudente? - perguntou Roman, dando golinhos minúsculos em sua água. Quer dizer, será que você não devia tentar manter uma base em Londres? - Para quê? - perguntou Serena, com ar inteiramente surpreso. – Minha vida agora é aqui. Se eu quiser ir passar férias lá, posso ficar na casa de uma de minhas irmãs, de preferência Venetia, pelo menos a casa dela é bem bacana. Mas, falando sério - disse ela, suspirando, tirando os óculos escuros com lentes azul-claras do topo da cabeça e examinando a vista fabulosa -, não tenho a menor intenção de voltar para lá em breve. Com o cabelo escovado, o corpo massageado, as unhas feitas, as sobrancelhas depiladas e a maquiagem aplicada, Serena resolveu preparar uma frozen marguerita antes de tentar se apertar dentro da criação original de Roman LeFey. Michael chegaria a qualquer momento, em cima da hora como sempre, observou ao olhar para o relógio. Vestida só com um trapinho de calcinha de renda, um par de Manolos vertiginosos e com um enorme copo de coquetel na mão, Serena se sentiu como uma Bond girl maldosa enquanto atravessava a sala de Michael na direção do CD player. Aliás, todo o apartamento de Michael tinha o clima assassino da tecnologia de ponta. Havia uma sequência de televisões de plasma em uma parede, uma mesinha de centro no meio e mobília tipo pop-art cor de creme dos lados das janelas que iam do chão ao teto, escondidas por cortinas feitas de longos filamentos de pérolas minúsculas. O visual todo era de enlouquecer, sedutor e caríssimo, e fazia a casa de Cheyne Walk que ela dividira com Tom parecer, bem, um tanto banal. Serena pegou um controle remoto que não era maior do que os charutos Cohiba de Michael. Apertou um botão e um jazz ambiente tomou conta do lugar. Engolindo de uma vez o resto da marguerita, sentiu-se sensual e viva. De olhos fechados, deixou que seu corpo fosse levado pela música, colocando os braços acima da cabeça, como uma encantadora de serpentes exótica hipnotizando sua presa. Acompanhando o ritmo com os quadris, passou os dedos do pescoço até os seios e dali até o umbigo naquela sua dança erótica particular. Então, ouviu a porta do lounge fechar. Ela se virou e viu Michael ali parado. Ele jogou seu exemplar da revista Fortune em cima da mesinha de centro e começou a afrouxar a gravata. - Não pare por minha causa - sorriu ele, examinando o corpo bronzeado dela de alto a baixo. - Você não pode dizer que eu nunca lhe dou uma recepção de rei – respondeu Serena, dançando em sua direção e dando um beijinho no pescoço dele. Michael gemeu e tentou passar a mão nela, mas ela o empurrou com ar brincalhão e se dirigiu para o banheiro. - Não temos tempo para brincadeira - disse ela, dando um sorriso maroto. - Preciso ficar lindíssima. Michael abriu as mãos em um gesto de apelo e correu atrás dela. - Então, por que não tomamos uma chuveirada juntos? – perguntou com um tom faminto na voz. - Não, não, não! - disse Serena, soltando gritinhos. Ela fugiu dele e fechou a porta atrás de si. - Eu vou me trocar - avisou. - Espere só até ver o meu vestido! É perfeito! Michael deu de ombros e atravessou o banheiro de mármore e granito, tirando as roupas à medida que se aproximava, enquanto Serena olhava para o tecido delicado do vestido antes de começar a vesti-lo, tomando cuidado para não encostar no cabelo. Orlando Pita tinha


domado a juba dela em um rabo-de-cavalo distinto, e ela prendeu uma orquídea negra na nuca, só para dar um efeito. Virou-se para olhar seu reflexo nos espelhos que iam do chão ao teto e quase engasgou ao ver aquela beleza elegante que olhava para ela. - Pode chorar, Nicole Kidman - disse ela e ficou lá sorrindo para si mesma até ouvir o barulho de pés descalços andando no tapete espesso. Ela se virou e viu Michael, nu, com uma toalhinha branca amarrada na cintura. Os pêlos dos braços, dos ombros e do peito dele brilhavam com a umidade do chuveiro. Ela ficou lá parada, fazendo pose por um segundo, pronta para os elogios sem fim de Michael por sua beleza de tirar o fôlego. - Caramba, Serena! - disse ele finalmente. Ela deu um sorriso sedutor e puxou o rabo-de-cavalo por cima do ombro nu, como se fosse uma jibóia. - Não é fabuloso? - ronronou. - Foi presente de Roman. - É horroroso - disse Michael, sem rodeios. O sorriso de Serena desapareceu e ela alisou o chiffon com as mãos. - Mas é lindo - disse. - Serena, é um pavor da porra - disse Michael, com muita ênfase, largando a toalha no chão. - Parece que você está indo a um enterro. O evento desta noite é supostamente glamouroso. Tire isso já! A ameaça fria na voz dele foi como um tapa na cara de Serena. Nunca ninguém lhe dissera que ela era qualquer coisa menos do que sensacional. Até mesmo o pai, que não perdia tempo para dizer que Cate era gorda ou que Venetia era magricela, sempre a tratara como a Helena de Tróia da família. - Como assim, você não gostou? - perguntou ela, engolindo em seco. - Só porque é em tons de preto não significa que eu pareça uma porcaria de uma viúva - disse ela, mordendo a pontinha do lábio. A resposta de Michael foi cortante, impassível. - Tire isso já - disse. Ele caminhou até o espelho e começou a secar o cabelo com a toalha. - Ponha aquele Valentino vermelho que eu comprei para você – disse ele com descaso, sem nem mesmo olhar para ela. - E tire essa coroa de enterro da cabeça. Por acaso devia ser um toque sexy? - Vá se foder! - disse Serena, enquanto se encaminhava para o banheiro com passos duros e batia a porta atrás de si, deixando uma tirinha de chiffon presa pelo caminho. Ela escorregou até o piso frio de granito e ficou lá sentada, chocada. Nunca na vida tinham questionado sua aparência, nem uma única vez. Nesta noite, tinha se achado incrível. Ela queria ser a garota que estava usando o lindo vestido de Roman LeFey que todas as revistas, da W à Vanity Fair, fotografariam e colocariam como o visual ideal em suas páginas de coluna social. Ela sabia que estava fabulosa e também sabia que não precisava escutar Michael. Podia sair do banheiro, dar o braço para ele, chegar à festa como uma nuvem estonteante de chiffon e se destacar em relação a todo mundo. Mas, por um segundo, ela se sentiu amedrontada, vulnerável e solitária como não se sentia havia muito tempo. O jeito perigoso de Michael, que ela achara tão instigante em Mustique, fazia com que ficasse submissa. Suas instruções constantes sobre onde ela podia ou não podia ir, seus presentes de roupas e jóias que resultariam em um visual específico, a maneira ciumenta como ele monopolizava sua vida social, tudo aquilo lentamente ia rompendo a resistência dela. Cada vez que ela permitia que ele fizesse as coisas de seu jeito, a Serena Balcon que


ela fora em Londres ficava um pouco menor, um pouco mais tímida. E aquilo a assustava. Ela tinha visto aquele mesmo medo de desagradar seu homem nos olhos de Venetia quando Jonathon a rodeava, aborrecido, em alguma festa ou jantar. Nem por uma vez Serena havia achado que se transformaria nesta mulher, sentada em um chão frio, encostada em uma porta, ansiosa, nervosa... apavorada até de voltar para o homem que estava do outro lado. Por um segundo fugidio, a dúvida que vinha crescendo dentro dela nas últimas semanas ressurgiu. Por que ela estava morando com Michael Sarkis? Longe das festas e dos jantares beneficentes, será que realmente gostava de sua companhia? - Caramba, veja se consegue se recompor, Serena! - brigou consigo mesma, levantando-se e olhando-se no espelho. Simplesmente não valia a pena. Não valia a pena estragar a noite e não valia a pena aborrecer Michael. Afinal de contas, estar com ele com toda a certeza estava fazendo com que fosse notada onde era mais importante: nos Estados Unidos. Isso fazia sua posição social se elevar. E não valia a pena emperrar esse movimento por causa de um vestido. Olhando para seu reflexo, ela acariciou a seda do corpete até as pernas, imaginando por um instante como Roman ficaria decepcionado se ela não usasse o vestido que ele passara semanas criando. Mas foi só por um instante. Ela tirou a orquídea negra do cabelo, saiu do banheiro e entrou no quarto, ignorando os olhares de Michael. Tirou o vestido e colocou o modelo de tecido molinho que ia até os pés, completando com uma gargantilha enorme de diamantes que Michael tinha lhe dado. Imediatamente, sentiu-se outra mulher. De sexualidade mais óbvia, ainda que sofisticada, mas sentia que tinha retomado o controle. - Melhor - disse Michael enquanto ela o esperava à porta. - Agora, acho melhor irmos andando. O jantar começa às oito. A Quinta Avenida era um pandemônio quando o carro encostou na frente da enorme fachada do museu Metropolitan na Eighty-Second Street. Uma fila de limusines pretas serpenteava pela rua, cada uma delas parando por vez para entregar sua carga glamourosa no tapete vermelho antes de sumir no meio da noite. A entrada era um túnel coberto de lona, onde fotógrafos de agências de imagens, empresas de televisão e revistas femininas se apertavam atrás das barreiras de contenção para conseguir sua imagem dos convidados VIPs que iam entrando. Ao ver que J-Lo, espetacular em um vestido branco como a neve, tinha entrado segundos antes dela, Serena ficou com medo de ser recebida com entusiasmo arrefecido pelos donos dos cliques. Não precisava ter se preocupado. As lentes se ergueram, os botões foram apertados e todos os paparazzi gritavam seu nome enquanto ela deslizava diante deles, subindo a escada enorme e entrando no prédio, onde o Grande Hall tinha sido decorado com mil velinhas. Serena pegou um coquetel laranja-avermelhado de um garçom e examinou o ambiente. Graças a Deus havia desistido do tema burlesco, concluiu. Amber Thompson, a supermodelo loira platinada mais badalada dos Estados Unidos, usava uma peruca lilás e um vestido longo com corselete, rendado dos ombros até os calcanhares, que expunha um vislumbre de nádega bronzeada quando ela caminhava. Mais Marilyn Manson do que Marilyn Monroe, pensou Serena, desdenhosa. Felizmente, ninguém mais usava vermelho. - Você está estonteante - sorriu Michael ao ouvido dela e mordiscou o lóbulo de sua orelha, passando a palma da mão na bunda dela. Serena deu um sorriso indulgente para ele. Toda feliz sob os holofotes da elite social de Nova York, ela quase tinha esquecido o desentendimento que ocorrera um pouco antes. Figurões da indústria e da sociedade vinham até eles para trocar beijinhos aéreos, elogios e trivialidades. Ela ficou de mão dada com Michael enquanto conversavam com todos, produtores, figurões do museu e esposas


de milionários filantropos. Era uma mistura estonteante e exótica. Os boatos tinham razão: todo mundo estava naquela festa; a alta sociedade de Hollywood, diretores de revistas e o mundo da moda, tudo ali misturado, sem fronteiras. Quando se sentaram, Serena levou um minuto examinando a mesa. Era impressionante. À sua esquerda estava Tyler Sang, o magnata multimilionário do hip-hop, e Sahara, sua esposa de 25 anos com cabelo pretíssimo. Ao lado deles estava o espaço onde Roman LeFey e Patric, que viria de Paris, se sentariam. Petula, a modelo com visual esquisito, estava sentada ao lado do noivo, Zachary, uma estrela do rock. À esquerda de Michael estavam Warren Johnson, o lendário financista de Wall Street e sua quarta esposa, muito mais jovem do que ele, Marissa. Roman e Patric chegaram à mesa no exato momento em que Serena estava lendo o menu em voz alta para todo mundo. O rosto de Roman estava duro como pedra, e ele sacudia a cabeça tão lentamente que mal dava para notar. Quando ele se sentou, a linha determinada e nada sorridente de sua boca exprimia uma infinidade de sentimentos. Durante meia hora, Serena se distraiu conversando com Sahara, que considerou vulgar de um jeito divertido. A beldade meio taitiana a deliciava com suas idéias de fazer jóias e maquiagem para bebês. Só quando já estavam no meio da perna de cordeiro com molho de codorna Serena percebeu, para seu horror, que Sahara tinha passado o tempo todo dando de comer para um cachorrinho minúsculo, um lulu-da-pornerânia cuja cabeça despontava da parte de cima de sua bolsa. - Coitadinho do Rococó, está com sede, não é mesmo, querido? – disse Sahara com vozinha de bebê e levou a taça de champanhe até a boca do cachorro, permitindo que ele lambesse goles afoitos. Desviando o olhar, cheia de nojo, Serena tentou capturar o olhar de Roman, mas ele parecia estar absorto em uma conversa com Petula e Zac, a modelo e o astro do rock. Ao perceber que o havia irritado de maneira definitiva, ela pediu licença a Sahara, levantou-se e deu a volta na mesa, até se postar atrás da cadeira de Roman. Colocou a mão no ombro dele e sussurrou em seu ouvido: - Por favor, não fique chateado comigo. Tive um acidente na porta do banheiro. O chiffon rasgou todo, foi um horror! Eu não queria deixá-lo sem jeito com um vestido menos do que perfeito. - Você rasgou o vestido? - perguntou Roman, erguendo uma sobrancelha, como se não acreditasse numa única palavra daquilo. - Eu sei! - suspirou Serena, toda dramática. - Não rasgou de verdade, foi mais uma desfiada. Sinto muito mesmo, mas vou recompensá-lo de alguma maneira. Prometo. Rornan olhou para Michael, que se debruçava por cima de Sahara, a mão em seu braço nu, compartilhando uma piada só deles dois. Ele simplesmente assentiu com a cabeça. - Eu compreendo, Serena - respondeu com frieza. Caramba, tem gente que é sensível demais, pensou Serena, retomando à sua cadeira para pegar sua bolsinha de mão. Estava desesperada por um cigarro. Onde diabos ela poderia dar uma fumadinha escondida em uma galeria de arte? Provavelmente havia alarmes detectores de fumaça até no telhado. Sem saber muito bem para onde estava indo no meio daquele monte de gente e de mesas, ela se viu de volta ao Grande Hall, onde ficou parada um instante, observando o brilho suave e desfocado de mil velas. - Está se divertindo? - perguntou uma voz sarcástica atrás dela. Ela se virou e seu estômago embrulhou. A voz, uma combinação curiosa de veneno e tristeza, era de Marlena Verboski, a exnamorada de Michael, do iate egípcio. Era uma mulher linda, com cabelo comprido,


castanho tom de cacau, que caía pelos lados de um rosto oval, mas a pele morena mostrava todos os sinais de noites sem dormir e lágrimas. Serena tomou um gole cheio de segurança de seu martíni de tangerina. - Posso ajudar? - Marlena Verboski. Fomos apresentadas no Egito? Serena fez o líquido girar no fundo do copo. - Ah, sim, lembro-me vagamente de você. A mulher soltou uma gargalhada de desdém. - Nós tomamos café-da-manhã juntas, Serena. Tenho certeza de que está lembrada. Mas não é só isso que temos em comum, não é mesmo? - Não sei onde quer chegar - respondeu Serena com frieza, desejosa de evitar o confronto. - Bom, então que tal eu explicar tudo bem direitinho para você? – disse Marlena, marcando as palavras de maneira cortante e precisa com seu sotaque do Leste Europeu. - Mesmo gosto para vestidos. - Fez um sinal com a cabeça para o modelo vermelho Valentino de Serena, depois passou as mãos pelo tecido cor de carmim de seu próprio tomara-que-caia. As festas que frequentamos - prosseguiu, fazendo um gesto com a mão na direção dos convidados. - E, é claro, o mesmo gosto para homens. Mas, bom, como é que eu poderia ter me esquecido disso? Claro que Serena sabia que Marlena Verboski se mudara do dúplex de Michael pouco antes de ela chegar a Nova York. Mas não estava com disposição para pedir desculpas por ter feito a relação de Michael com aquela vagabunda acabar. - Supere, querida. Relacionamentos terminam. As coisas andam para frente. Agora, se me dá licença, eu gostaria de voltar para a festa. Marlena apontou um dedo comprido, com a unha feita, para ela. - Relacionamentos terminam quando aparece uma perua qualquer para roubar o homem da gente bem debaixo do nosso nariz. - Ah, querida - disse Serena, toda presunçosa. - Parece que alguém deixou a educação em casa hoje. Marlena postou-se entre Serena e a saída, colocando o rosto bem próximo do dela. - Ah, eu não estou aqui para ser simpática com você, sua perua arrogante - sibilou ela por entre os dentes. - Quero lhe dizer o que você fez com a minha vida. Você acabou com ela. Eu dei seis anos da minha vida a Michael, e você levou tudo embora em uma tarde. - Em uma tarde? - Serena riu, nervosa. - Espero que você não esteja se referindo à ocasião em que conheci vocês dois no Egito. Pode acreditar, aquilo foi completamente inocente. Eu estava no meio do rompimento com o meu namorado na época, caso não leia jornais. - Você o seduziu no Egito e trepou com ele em Mustique – praticamente cuspiu sua rival, tremendo de raiva. - Eu não sou idiota. Estávamos de férias em Palm Beach, juntos, e daí ele desapareceu. Eu entrei em contato com o piloto dele, por isso sei que estava em Mustique. Sei que você também estava lá. Ele me largou em Palm Beach, ele me largou... A voz dela começou a falhar de tanta emoção. - Você não pode me culpar pelo que Michael lhe disse – respondeu Serena, em tom gélido. - Ele me disse que o relacionamento só fazia piorar e que você não era capaz de encarar o fato de que estava terminado. Estou vendo que o caso foi mesmo esse. A risada de Marlena saiu como um cacarejo. - Foi isso que ele disse? - Ela apontou para o diamante do tamanho de uma uva pendurado no pescoço de Serena e assentiu com a cabeça. – Está vendo esta pedra? Ele disse que foi um presente especial comprado para você? Este diamante estava no meu dedo dois meses


atrás. Ele me deu de presente de Natal. Aprenda duas coisas sobre Michael - disse ela, com frieza. – Nunca acredite em nada do que ele diz e compreenda por que ele tem tanto sucesso nos negócios. Ele nunca desperdiça dinheiro nenhum. Serena colocou a mão no colar para protegê-lo. - Não seja ridícula: este diamante é meu. É uma jóia de família que Michael comprou em um leilão. Para mim. Pare de se comportar como uma louca ciumenta. Eu estava começando a ficar com pena de você. Marlena olhou para a jóia e depois para o rosto de Serena. - Eu conheço cada faceta, cada sombra, cada ponto de cor desta pedra. Eu a adorava. Adorava tanto que a reconheci imediatamente quando a vi pendurada no seu pescoço. Tem uma falha em formato de coração no meio quando se olha contra a luz, não tem? Estou vendo, pela sua cara, que tem... Ela fez uma pausa e Serena reparou que os olhos dela cintilavam. - Eu adorava esta pedra, mas gostava muito mais de mim mesma. Foi por isso que devolvi tudo que Michael me deu quando eu o deixei - sussurrou ela. - Mas, bom. Você merece esta pedra. Bonita. Dura. Imperfeita - despejou. - Devolveu tudo? - Serena soltou uma gargalhada de desdém e deu um gole insolente na bebida. - Não achei que fosse o seu estilo. Marlena deu uma risada fria. - É isso que você pensa de mim? Que sou uma russa querendo dar o golpe do baú? Uma aspirante a modelo? Uma vagabunda? Sou melhor do que isso e sou melhor do que ele. Vocês dois se merecem. - Ah, pelo amor de Deus. Vá para casa. Serena já estava farta e avançou para empurrar Marlena para o lado e passar. - Não, você é que vai para o inferno - disse Marlena, retribuindo o empurrão, mas, ao fazêlo, escorregou e caiu para trás. A cauda de seu vestido foi para o lado e passou por cima da fileira de velas, pegando fogo instantaneamente. - Merda! MERDA! - gritou Marlena, retorcendo o corpo para frente e para trás, tentando fugir das chamas que subiam por suas costas. Ela tropeçou, torceu o pé e caiu com tudo em cima de um joelho. Um garçom esperto veio correndo, puxou a toalha de uma mesa e, numa chuva de metal e vidro abafou as chamas. Serena olhou para a mulher estatelada no chão daquela festa suntuosa, o joelho sangrando, o vestido chamuscado e rasgado, o corpo tremendo enquanto chorava abertamente, e virou-se para o outro lado. Não queria ser relacionada àquela humilhação social. Enquanto se virava, seu olhar cruzou com o de Marlena por um único segundo. - Você é a próxima - disse Marlena baixinho. - Você é a próxima. Serena voltou correndo pelo corredor. Quando já estava bem longe, recostou-se em uma pilastra e respirou fundo, inalando o perfume de angélica que vinha das velas. Foi bem aí que um fotógrafo das páginas de agenda da revista W deu um tapinha em seu ombro e pediu para tirar uma foto. Serena se recompôs e posou para os flashes. - Serena, você pode me dizer de onde são o seu vestido e a sua gargantilha? - perguntou uma jornalista bonitinha com o gravador em riste. - Ah, Valentino... - balbuciou Serena, distraída, seus olhos perdidos no salão onde a nata de Nova York mandava ver em sua sinfonia de sobremesas. - E a gargantilha? - perguntou a jornalista. - Minha gargantilha, minha gargantilha... - começou; as palavras borbulhavam em sua garganta.


Perdida em seus pensamentos, Serena afastou-se da jornalista, que ficou lá, boquiaberta. Voltou cheia de decisão para o salão do jantar e atravessou a multidão de poderosos sem reconhecer ninguém; sua mente era um redemoinho de culpa, raiva e, acima de tudo, choque. Como Michael Sarkis ousava tratar Serena Balcon como uma namorada de segunda linha para quem se dá tranqueiras usadas? Avistou o rosto dele no meio da multidão e sentiu seus dedos se transformarem em garras. Ele podia enfiar aquele diamante de dez quilates ali onde o sol não brilha, pensou, pisando firme em cima dos saltos. Ignorando as pessoas que estavam com Michael, foi até ele, colocou seus olhos no mesmo nível dos globos negros dele e rosnou: - Precisamos conversar. Michael deu uma risada leve e um gole despreocupado no conhaque. - Para falar a verdade, a pessoa com quem você precisa conversar é este homem - disse ele, fazendo um gesto na direção do homem de meia-idade de jaquetão em pé ao lado dele. Serena ignorou-o e continuou encarando Michael, os olhos ardendo de fúria, até que Michael abriu a boca de novo. - Serena - disse em tom condescendente -, quero apresentarlhe Ed Charles. As duas palavras chamaram a atenção de Serena. Ed Charles era o produtor mais poderoso da Broadway, que tinha feito milhões com uma dúzia de musicais fabulosos ao longo dos últimos vinte anos, quatro dos quais tinham se transformados em grandes filmes de Hollywood. Embora não fosse exatamente um Steven Spielberg, Ed Charles tinha o poder de fazer carreiras. Ela respirou fundo para se recompor e virou-se de frente para ele. - Senhor Charles - abriu o sorriso mais amplo que conseguiu. – Mas que maravilha conhecê-lo. - Estendeu a mão para ele, ciente de que estava levemente úmida. Ele abanou uma taça de vinho do Porto na frente dela, bonachão. - Não, o prazer é todo meu - sorriu. - Aliás, estava dizendo agorinha mesmo para este meu velho amigo aqui que adoraria se você pudesse ir à minha casa na semana que vem para conversar sobre um projeto que, acredito, seria de seu interesse. Serena tentou suprimir um sorriso deliciado. Seu agente dissera-lhe que Charles estava produzindo uma versão de Fin de Siecle para ser adaptado para o cinema, com orçamento alto. Diziam que qualquer pessoa que conseguisse sustentar uma nota musical estava cotada para algum papel. Um diretor de videoclipes badalado que tinha se transformado em um dos maiores talentos de Hollywood já tinha sido escalado para a direção. Serena sentiu a garganta ficar úmida de animação e sua fúria foi instantaneamente esquecida. Ela pegou no braço de Ed e lançou um torpedo de sedução. - Nem imagino o que possa ser - sorriu. - Mas pode contar comigo, com toda a certeza. - Moro pertinho de Sutton Place - disse Charles, assentindo com a cabeça. - Marcarei o dia e a hora ainda nesta semana. Mas vai ser adorável se pudermos conversar direito na ocasião. Agora, peço licença, preciso voltar para a minha mesa, para tomar o café. Serena se virou para Michael, que soltava a cintura da calça e sorria como o gato de Alice. - Qual é o seu problema? - brincou ela, esquecendo como pôde ter ficado tão brava. Michael a abraçou pela cintura, puxou-a para perto de si e deu uma lambidinha em seu pescoço com a ponta da língua. - Só não diga que eu nunca faço nada por você - disse.


22 O Grande Prêmio de Two Thousand Guineas em Newmarket era o primeiro clássico da temporada inglesa de corridas de cavalo, e o clima fez jus à ocasião com um céu azul de brigadeiro e um lindo sol da manhã que fazia o gramado da pista brilhar como esmeraldas. Longe do MilIennium Grandstand, onde a multidão reluzente aguardava algumas das melhores disputas da temporada, Oswald Balcon caminhava de um lado para o outro nos estábulos, dando um sermão no treinador de seu cavalo a respeito das táticas para a corrida importante. - É melhor conseguirmos um bom resultado hoje, Broadbent – disse Oswald com sua voz retumbante, dando um tapa no lombo reluzente e castanho de Fierce Temper, seu brinquedinho preferido. Enfiou o salto do sapato na grama, mal deixando qualquer marca. Tem certeza de que Temper tem condições de correr em cima disto aqui? Este piso está um pouco firme demais, não acha? Firme demais, se quer saber a minha opinião. Espero não estar jogando dinheiro fora ao incluí-lo na competição. Barry Broadbent simplesmente inclinou a cabeça e assentiu, em sinal de concordância. Ele era um treinador das antigas; aquele rosto enrugado pelo sol tinha visto tudo que o jogo das corridas tinha a oferecer, e donos superprotetores simplesmente faziam parte do cenário. Bateu na aba de seu chapéu marrom-escuro em sinal de respeito a Oswald e sorriu. - O senhor sabe como as coisas estão competitivas, meu lorde - disse. - Com estábulos como os de Coolmore e Godolphin por aí, precisamos escolher as corridas em que temos mais chance. O solo está mesmo precisando de mais caldo, mas acho que temos ótimas chances hoje. Oswald deu uma gargalhada de desdém e olhou para o jovem jóquei, um rapaz irlandês de 19 anos que tinha sido contratado recentemente por Barry. - É, mas e ele? - disse Oswald. - Você sabe o que eu acho disso. Este garoto é novo demais. Onde é que está a experiência, hein? Por que não arruma alguém como Kieran Fallon ou Dettori para trabalhar com você? Estou pagando bem, quero qualidade! Broadbent deu de ombros, mas não arredou pé. - Finbar pode ser jovem, senhor, mas isso não significa que não possa ser um jóquei campeão. Lembra-se de Walter Swinburn? Ainda era adolescente quando venceu o Derby com Shergar. Veja bem, senhor, Temper é um cavalo fantástico - disse ele, sorrindo de maneira afetuosa, enquanto acariciava a mancha branca no focinho castanho. - Mas precisa de alguém que saiba controlá-lo, não é mesmo, meu garoto. E Finbar faz isso como ninguém. - Veremos - disse Oswald e saiu dali. Desta vez, o mau humor de Oswald escondia o nervosismo real relativo àquele dia. Corridas de cavalo eram a única coisa por que o décimo barão tinha paixão genuína e duradoura. Desde a época em Cambridge, no final da década de 1950, quando faltava às aulas para fazer a curta viagem até Newmarket, sonhava com um dia como aquele, quando estaria ao lado de um campeão no paddock, um campeão que realmente pertenceria a ele. O fato de compartilhar Fierce Temper com Nicholas Charlesworth e Philip Watchorn sob o nome de BWC Holdings Limited era uma fonte de aborrecimento constante para Oswald: ele queria ser proprietário tanto do cavalo quanto da glória. Certo, ser sócio de Charlesworth e Watchorn tinha aliviado o peso financeiro de possuir um cavalo de corrida de primeira classe, mas o que eles tinham trazido à sociedade além do dinheiro? Ele é que era o especialista, ele é que tinha a visão das coisas.


Oswald dera a idéia a Philip e Nicholas um ano antes. Não que tenha tido muito trabalho para convencê-los: colega de apostas, Oswald nem precisara insistir muito com Charlesworth, ao passo que Watchorn logo enxergara as oportunidades de hospitalidade corporativa que vinham atreladas ao fato de ser dono de um animal importante. Assim que os dois toparam, Oswald imediatamente despachara Aidan O'Donnell, um agente de sangue irlandês muito respeitado, para encontrar um cavalo adequado para eles. Tinham escolhido Fierce Temper, filho de Danes Hill, vencedor da Tríplice Coroa, por um preço decente, porque o cavalo tivera uma temporada irregular em seu ano na categoria juvenil e não mostrava nenhum sinal óbvio de que se tornaria campeão. Aidan O'Donnell, no entanto, pensava diferente e contratara Barry Broadbent, treinador e ex-vencedor de Derby, que, depois de ser acometido pelo câncer de próstata dez anos antes, tinha se aposentado. O'Donnell o convencera a voltar às pistas e Fierce Temper transformara-se na jóia da coroa do novo e pequeno centro de treinamento de Barry em Epsom. Aquele era o cavalo mais promissor que via em anos; seria o canto do cisne de sua carreira. Philip Watchorn tinha reservado uma tenda de hospitalidade de frente para o Millennium Grandstand, onde seus convidados poderiam almoçar antes da corrida e lhes proporcionaria um ótimo local para ver a Rowley Mile. Oswald caminhava saltitante, feliz da vida com a sensação de ser proprietário, e não apenas apostador. Sentia-se como se já tivesse vencido. - Oswald! - ribombou a voz de Philip Watchom quando ele entrou na tenda. Watchorn enfiou uma taça de Moét na mão de Oswald e apresentou-o a seus convidados, que, juntamente com Venetia e Jonathon, bebiam champanhe e conversavam com animação sobre as apostas que tinham feito para a corrida anterior, a One Thousand Guineas. Oswald retorceu a boca de desgosto. Será que essa gente não compreendia a importância das corridas? Era mais do que um passeio de um dia com bebida grátis. - Não me diga que você estava lá achacando Broadbent de novo – disse Philip. - Você não pode deixar o coitado em paz? - Espero que tenha tomado a decisão certa com ele – resmungou Oswald, dando um gole no champanhe. - Por que não procuramos um dos grandes supercentros de treinamento de Newmarket, onde todos os proprietários importantes mantêm seus cavalos? - prosseguiu, praticamente falando sozinho. - Bom, corrija-me se estiver enganado - gracejou Philip, servindo-se de um canapé de ovo de codorna -, mas por acaso você não ficava todo radiante quando falava de Barry há nove meses? De acordo com você, ele tinha currículo e reputação fantásticos antes de adoecer... e ele montou um belo centro de treinamento desde que nós o convencemos a largar a aposentadoria, não é mesmo? Achei que você queria que o centro fosse em Epsom, que é muito mais perto de onde todos nós moramos. Não sei você, mas eu gosto de passar lá para ver Fierce Temper treinar. Oswald secretamente sabia que tinha sido prematuro em menosprezar as habilidades de Broadbent. Desde que ele começara a cuidar de Fierce Temper, tinham vencido duas corridas importantes do Grupo Dois e chegado em terceiro lugar na principal corrida juvenil, a Dewhurst Stakes, que era considerada campo de treinamento para os campeões de três anos da temporada seguinte. Oswald olhou ao redor da tenda com amargor e tomou a decisão de evitar a cunhada de Philip, Elizabeth, que estava lá de novo, com aquele olhar predatório de sempre. Ele também não estava com a menor disposição para conversa fiada educada com o diretor de uma empresa japonesa de equipamentos eletrônicos e a esposa, sem dúvida convidados por


Philip para preparar o terreno para algum negócio. Porcarias de japas boca-livre, pensou, amargo, vêm lá do outro lado do mundo e ficam embaixo de um toldo rindo e fazendo mesuras sem nenhuma razão aparente... é de dar nojo. Oswald passou para o lado de fora da tenda e encontrou Venetia e Jonathon debruçados sobre as grades brancas que davam para a pista de corrida, bebericando Pimms e tomando muito cuidado para tentar evitar travar contato visual. Venetia, que estava linda, apesar de um pouco magra demais, em um vestido de tule azul eau-de-nil da Escada e estudava o programa da corrida com muita atenção, encolheu-se quando Oswald se colocou a seu lado. - Ah, olá, papai. Achei que Maria se juntaria a nós hoje - disse Venetia, voltando-se para ficar de frente para Oswald, protegendo os olhos do sol forte. Oswald sacudiu a cabeça de leve. - Não, ela está em Verona neste fim de semana. É uma mulher terrivelmente ocupada. Mas, bem, onde está Camilla? Achei que tivéssemos estendido o convite a ela? Não me diga que ela tem algo melhor a fazer do que torcer para Fierce Temper? - Na verdade, acho que ela está estudando - respondeu Venetia. - Para quê? - gargalhou Oswald, desdenhoso. - Acho que ela tem alguma coisa como o dia de seleção do Partido Conservador esta semana, mas devo dizer que não sei muito bem como se estuda para isso - disse Venetia. Fica-se lendo muito sobre Anthony Trollope? Mergulha-se nas memórias de Maggie Thatcher? - Deu mais um gole em seu Pimms e deixou a fatia de pepino encostar em seus lábios. Reparou, com certa preocupação, que o rosto do pai parecia um mar revolto. - Para que ela vai fazer isso? - resmungou ele baixinho. - Ela ganha um bom dinheiro como advogada. Gastei uma fortuna na educação daquela menina, e agora ela fica desperdiçando o tempo com esses joguinhos. Ela não leva jeito para a política. - Então, como acha que vai ser a corrida? - interrompeu Jonathon, desabotoando o paletó de linho cor de creme. - Eu realmente não entendo todo esse negócio de formulário - disse, abanando o Racing Post. Oswald bateu o pé na grama, aborrecido. - Está bem firme - disse ele -, o que está bom para nós, mas só Deus sabe que tática o nosso suposto treinador vai usar. Ele dita suas próprias leis. - Quanto você apostou no cavalo? - perguntou Jonathon, ansioso para direcionar a conversa para dinheiro, que era uma coisa que ele entendia. - Só uns dois mil - disse Oswald. - Mas como está dez por um, devo levar uma boa soma para casa. - Oswald deu um passo à frente e apoiou os cotovelos do paletó de tweed verde na grade, olhando para a enorme multidão nas arquibancadas. - Hoje não é o dia apropriado, obviamente - disse, sem sequer olhar para Venetia. - Mas realmente precisamos conversar sobre negócios nos próximos dias. - Papai, veja bem, realmente não acho que seja boa idéia... - Obviamente, estou ansioso para me juntar à diretoria da empresa de minha filha prosseguiu Oswald, ignorando os protestos dela -, mas examinei as minutas e a contabilidade recente da diretoria com aquele tal de Geoffreye preciso dizer que fiquei um pouco preocupado com a expansão para Nova York neste ponto. - Tirou um charuto do bolso de cima e cortou a ponta com sua guilhotina Dunhill, como se o assunto estivesse encerrado. Venetia colocou-se em posição ereta, mais alta e com atitude mais determinada. - A expansão para Nova York não está aberta a negociação - disse, nervosa, batendo a palma da mão na grade para dar ênfase. - Já tenho uma pequena concessão na Bergdorf


Goodman que está indo realmente muito bem. Acho que Manhattan está pronta para nossa linha de decoração em maior escala. - Não está aberta a negociação? - inquiriu Oswald, soprando uma nuvem de fumaça - Acho que é melhor eu explicar para você como os negócios funcionam, querida. Qualquer investimento superior a um milhão de libras só pode ser aprovado depois de uma resolução especial. Para tanto, você precisa da aprovação de Jonathon e, como tal, de acordo com a nova combinação, você precisa da minha aprovação. Venetia agarrou a grade com tanta força que suas unhas começaram a afundar na madeira. - Não vou falar sobre isto agora, papai - disse ela, com tom inabalável na voz que disfarçava o verdadeiro medo que sentia. - Mas vou lutar até a fim. Você entrou neste projeto para proteger o investimento de Jonathon, não para destruí-lo - rosnou ela. - Ah, sei que sim - respondeu ele, quase dando risada. - E farei o que for melhor para Jonathon. Disso pode ter certeza. Depois de um almoço generoso e diversas garrafas de champanhe, Philip e Nicholas saíram da tenda para dar uma volta e observar o desfile. Contrariado, Oswald os acompanhou, incapaz de tirar os olhos de Fierce Temper, tão bem cuidado, trotando pelo pátio. Ele era um cavalo magnífico, seus músculos retesados por baixo do pêlo castanho brilhante. Parecia alerta e impaciente, batendo os cascos no chão e agitando a cabeça. Finbar estava sentado cheio de pose na sela com seu uniforme cor de âmbar e vermelho da BWC Holdings, dando tapinhas no pescoço de Fierce Temper e sussurrando em seu ouvido. Oswald não pôde deixar de sentir uma onda de orgulho. Era o cavalo dele. Finalmente sentiria o gostinho do esporte dos reis da área reservada aos proprietários. - Ei, Oswald, meu velho - disse Nicholas, quebrando o encanto. - Você sabe que eu não examinei o formulário. Quais são realmente as chances de Fierce Temper para hoje à tarde? Oswald começou a massagear o queixo com ar superior, deleitando-se com o conhecimento que ele tinha e o amigo, não. - Precisamos tomar cuidado com aquele ali: Warhorse. - Apontou para um enorme potro cor de ébano que dançava nervoso para o lado, o lombo já escurecido pelo suor. - Ele é grande, forte e danado de rápido. E olhe só para o jóquei. Sujeitinho pequeno, mas o controla com pulso de ferro. E acredito que Eastern Promise também vá ser bem útil - disse, apontando com a cabeça para um animal cinza. - Pertence a mais um árabe desgraçado, é claro. Esses supostos xeiques estão tomando conta das corridas, simplesmente porque jogam um monte de dinheiro na pista. Nicholas Charlesworth deu um tapa nas costas de Oswald. - Não diga que os árabes prejudicam o esporte, meu velho. Olhe só para todas as corridas em Dubai: quanto dinheiro! Não vá dizer que você não gostaria de participar daquilo! - Vulgar. É assim que eu classifico o circuito árabe, e não vou deixar Fierce Temper chegar nem perto. Fierce Temper trotava cheio de graça pelo paddock, agitando o rabo bem tratado e balançando o focinho de cima para baixo, com um ar confiante. Satisfeito, Oswald tomou o caminho de volta até a tenda para se preparar para a grande corrida. A pista estava agitada, com um burburinho animado à medida que os milhares de torcedores, proprietários, treinadores e apostadores esperavam para que a corrida começasse. Oswald encontrou um lugar para si junto à grade, pegou seu binóculo e esperou a bandeirada. De repente, os estábulos foram abertos e os corredores dispararam por Rowley Mile. Fierce Temper tinha ficado com o Portão Seis, do lado mais rápido da pista, e Oswald


esticou o pescoço, ansioso para ver sua posição. O barulho trovejante dos cascos batendo na pista foi abafado quando a tenda de Philip explodiu em animação frenética: Fierce Temper tinha alcançado a liderança. - Vamos, vamos! - gritava Venetia, pulando para cima e para baixo com seus delicados saltos-agulha Roger Vivier e agitando os dedos cruzados no ar. Philip Watchorn estava ficando com o rosto levemente vermelho, ao passo que Barry Broadbent permanecia em silêncio, a boca apertada e determinada enquanto observava a ação. - Avance, avance! - resmungava Oswald, sem tirar os olhos do binóculo, a testa franzida em rugas marcadas. Agora havia cinco cavalos embolados em um grupo compacto, que incluía Fierce Temper, Warhorse e Eastern Promise. Com o coração pesado, Oswald levou o binóculo para Warhorse e viu o cavalo forte cor de ébano começar a se destacar dos outros quando só faltavam seiscentos metros para a corrida terminar. A multidão urrou quando Warhorse e Eastern Promise tomaram a dianteira. Oswald viu Finbar erguer o chicote e bater em sua montaria mais uma vez, e mais outra. Oswald lançou um olhar torto para Barry Broadbent, que observava em silêncio a disputa. - Não adianta chicoteá-lo tanto assim - reclamou Oswald. À medida que os segundos iam passando, o desfecho da corrida ia ficando cada vez mais óbvio e o clima de alegria e animação começou a abandonar a tenda. Finbar implorou que sua montaria fizesse um último esforço, inclinando-se sobre o pescoço do cavalo para fazer a última tentativa de alcançar os outros. Mas não adiantou nada. Warhorse agora estava a três corpos de distância e dois cavalos ultrapassavam Fierce Temper quando se aproximavam da linha de chegada. E, então, acabou. Oswald largou o binóculo em uma cadeira ornamentada demais. - Jesus Cristo! Quinto? - berrou. - Nem pegou o pódio! – despejou na direção de Barry Broadbent. - Ah, mas foi muito rápido! - disse Barry, sacudindo a cabeça lentamente. - Vimos um cavalo ótimo em uma corrida brilhante. - Esqueça Warhorse! - berrou Oswald. - O que me diz de Fierce Temper? Eu disse! Eu disse que você ia ferrar com tudo com a porcaria da sua tática! Philip Watchorn aproximou-se e colocou o braço nos ombros do amigo. - Vamos lá, Oswald, quinto lugar em um clássico não é assim tão ruim. É mais do que poderíamos ter sonhado há um ano. - Watchorn virou-se para o treinador para lhe dar apoio. - Ele ainda é novo, não é, Barry? Ainda tem muito o que aprender, suponho? - Eu sei que fiquei satisfeito - disse Broadbent. - Bom, deve ter ficado mesmo - resmungou Oswald, avultando-se sobre ele. - Não lhe pagamos milhares de libras para treiná-lo e depois tomar decisões piores do que as minhas! - berrou Oswald, bebendo um longo gole de Moét. Barry Broadbent deu meia-volta e deixou a tenda, mas Oswald foi atrás dele, pisando firme. - Você nos prometeu resultados, Broadbent, mas, bem - deu uma risada cruel -, já tinham me avisado que a sua época de ouro estava acabada. Barry Broadbent parou e virou-se para Oswald, o rosto tenso. - O senhor sabe tão bem quanto eu que nosso cavalo está melhorando cada vez mais - disse, segurando-se para ser o mais profissional possível. – Há um ano, ele não teria entrado nem em uma corrida do grupo Três. E, agora, mal chega a um corpo de Warhorse! Estou dizendo que teremos um campeão do grupo Um até o fim da temporada.


- Tenho muita confiança no meu cavalo - respondeu Oswald, com a voz demasiadamente elevada, de modo que as pessoas estavam se virando para assistir. - Mas não sei bem se confio em você. Não está lidando com um idiota, portanto, não me trate como se eu fosse um. Para que tanta chicotada? Ele estava tentando matar o cavalo? - Precisa confiar em mim e nos meus jóqueis - disse Barry, sentindo as bochechas um pouco rosadas. - Temper é um cavalo vivaz e inteligente, e não é fácil segurá-lo. - Não me venha com desculpas - sibilou Oswald. - Eu sou o proprietário. Você é só o treinador, lembre-se disso! - concluiu por entre dentes cerrados, apontando o indicador gordinho para Barry. Broadbent apenas sacudiu a cabeça e caminhou até onde Finbar estava, ainda montado em Fierce Temper, com o queixo encostado no peito. - Sinto muito, chefe - disse ele num fio de voz. - Acho que hoje não era o nosso dia. - E pode ter certeza de que não era mesmo, porcaria! - disse Oswald. - Você não devia tê-lo forçado tão cedo. Qualquer um era capaz de ver que ele não sustentaria aquele nível de velocidade. Não é para menos que todos os outros o alcançaram! - Com todo o respeito, senhor - respondeu Finbar, erguendo a cabeça -, este cavalo tem velocidade e energia. Hoje simplesmente não era o dia dele. - É o que todo mundo fica me dizendo! - Oswald soltou uma risada alta e deu um passo ameaçador na direção de Barry Broadbent. Levemente assustado, Barry cambaleou para trás e perdeu o equilíbrio na grama. Foi caindo para trás, e Martin, o tratador de Fierce Temper, correu para ajudá-lo e conseguiu segurá-lo bem quando Barry ia bater a cabeça no chão. O homem de idade colocou a mão na testa e ficou olhando com ar sombrio para Oswald. - Você pode pagar as nossas taxas de treinamento, mas isso não lhe dá o direito de agir como uma criança mimada - disse, erguendo a bengala para apontar para Oswald. Inabalável, Oswald pegou a bengala com um gesto rápido e arrancou-a da mão de Barry. De repente, Fierce Temper relinchou alto e empinou apoiado nas patas de trás; quando desceu, suas patas da frente passaram a poucos centímetros da cabeça de Oswald. - Com os diabos, homem! Não consegue controlá-lo? - berrou ele para Finbar, que fazia de tudo para se segurar na sela enquanto o cavalo dava coices, relinchava e revirava os olhos. Naquele momento, Jennifer e Philip Watchorn chegaram, juntamente com Venetia, que corria ao lado deles em cima dos saltos altos. - Vamos, chega disso - disse Philip Watchorn, aparentemente falando com o cavalo tanto quanto com os dois homens. Venetia foi até Fierce Temper e, com palavras suaves e mãos delicadas, começou a acalmálo. - Você foi ótimo, garoto, não foi? - disse com voz de bebê, afagando seu focinho com ternura - Muitas coisas boas ainda vão acontecer com você, tenho certeza. - Ela ergueu os olhos para Finbar e sorriu para o jóquei, que se sentia contente simplesmente por estar inteiro. - Bom, ainda não subimos ao pódio - sorriu Philip Watchorn, esticando a mão timidamente para dar tapinhas carinhosos no lombo reluzente de seu cavalo. - Mas logo subiremos, não é rapaz, não é mesmo, Barry? - Ele ajudou o senhor de idade a se levantar e entregou-lhe a bengala. - Agora, pessoal, vamos tratar de desarrear este garoto. Depois, vamos todos tomar uma taça de champanhe. Acho que merecemos.


- Ainda não consigo acreditar, droga - disse Oswald mais uma vez enquanto se acomodava no assento de passageiro do helicóptero de Philip Watchorn. Estavam se preparando para voltar para o heliporto em Battersea. - Eu sabia que ele receberia uma suspensão, aquela porcaria daquele jóquei – resmungou para si mesmo. - Será que dá para parar com isso? - disse Jennifer Watchorn, rindo e dando tapinhas simpáticos no joelho dele enquanto ele colocava o cinto de segurança. - Acho que Fierce Temper está sendo incrível, levando-se em conta que a maior parte dos cavalos pertence a árabes ricos e vem dos supercentros de treinamento. - É verdade - concordou Philip. - Você sabe que a gente não estava entrando nisso a sério. Nós temos um cavalo, não trezentos. A intenção era fazer isso pela amizade, como um passatempo, para podermos receber clientes. Está lembrado? As hélices do helicóptero ganharam vida e subiram no ar, deixando Newmarket para trás, e transformando-se em um pontinho preto minúsculo no céu em seu trajeto para o sul, na direção de Londres. O humor de Oswald começou a se acalmar quando sobrevoaram os cinturões verdes de Carnbridgeshire e Bedfordshire na direção da metrópole. Naquela noite, Oswald ficaria em sua casa de Cadogan Garden, em vez de realizar a viagem de duas horas até Huntsford. Epsom realmente é muito mais conveniente, pensou, sacudindo a cabeça enquanto enfiava a chave na fechadura da porta em tom de azul-anil. Entrou, jogou o paletó em cima de uma cadeira chippendale e foi direto para a cozinha; soltou um suspiro de alívio ao constatar que Gretchen, a empregada ucraniana distraída, lembrou-se de que ele chegaria e enchera a geladeira. Serviu-se de alguns pedaços fartos de pão integral e de uma fatia grossa de patê venison e foi se acomodar na sala de visita com uma garrafa de claret. A casa, que só era usada quatro ou cinco noites por mês, parecia amarga e desabitada. Um pouco fria, pensou, colocando mais lenha na lareira. Calçou seus chinelos forrados de pele de ovelha e recostou-se na cadeira de damasco cor de mostrada para ler o Racing Post daquele dia. Era melhor aquele cavalo começar a render algum dinheiro, pensou, sacudindo a cabeça lentamente. Watchorn podia não levar aquilo muito a sério, refletiu Oswald, mas ele com toda a certeza levava. Certo, então ele não era a porcaria de Aga Khan com seus seiscentos cavalos, mas se o único animal que ele possuía fosse um vencedor, ele poderia ficar no mesmo nível dos melhores. Apesar de as taxas do centro de treinamento e de os custos da manutenção serem divididos por três, Oswald ainda sentia o enorme fardo financeiro de possuir "apenas" um cavalo de corrida de classe internacional. Já estava na hora de começarem a ganhar alguns prêmios decentes. Ele sabia que Barry Broadbent não gostava de treinar corredores que não tivessem alguma esperança de vitória. Mas que se dane, pensou, aborrecido, ele lhe diria que inscrevesse Fierce Temper no maior número de corridas possível este ano. Afinal de contas, se você não arrisca, não petisca. E daí que aquela criatura desgraçada poderia chegar acabada ao fim da temporada? Uma boa corrida poderia deixar o caixa da BWC Holdings com crédito de meio milhão de libras. Oswald estava começando a cochilar, depois de tomar a garrafa toda de vinho e acabar com pelo menos duzentos gramas de patê. Foi tirado de seu sono pelo toque irritante do celular. Ele o atendeu e ouviu uma voz baixinha, quase abafada. Será que o sotaque era irlandês, imaginou, quando a pessoa que ligou disse seu nome. - Pois não? Pois não? - disse Oswald ao atender. - Quem é? Houve uma longa pausa, perturbada apenas por um zumbido de interferência na linha.


- Tem alguém aí? - explodiu Oswald, agora irritado, esfregando um olho, sonolento. - Oswald Balcon deveria aprender algumas boas maneiras - disse a voz bem baixinho, mas em tom ameaçador. - Se não... - Se não o quê? - perguntou Oswald, curto e grosso, erguendo a voz até um tom agudo de rachar. - Se não - disse a voz em tom baixo - nós vamos matá-lo.


23 Camilla xingou a si mesma. O que dera nela para pegar estradinhas vicinais solitárias no caminho de volta a Londres em vez de pegar logo a rodovia? Parecera uma boa idéia percorrer a adorável paisagem do Lincolnshire em vez de circular pela MI tão cheia de movimento, mas agora estava ficando exausta; tudo que desejava era voltar para o apartamento, enfiar-se embaixo do edredom de pena de ganso e cair no sono. Essa perspectiva pareceu-lhe muito distante quando parou o Audi cinza-ardósia em um cruzamento solitário e esticou o pescoço para ler uma placa. Droga, até mesmo Bedford ainda estava a quase oitenta quilômetros de distância. Estava ficando escuro, o crepúsculo fuliginoso infiltrava-se pelos campos que se estendiam por quilômetros e quilômetros para todos os lados. Ela abaixou o vidro da janela e uma lufada de vento frio atingiu seu rosto. Que dia, suspirou, olhando para o relógio do painel: 20h35. Parecia muito mais tarde. Camilla estava acostumada com dias longos e estressantes de debates no tribunal, mas isso era muito mais difícil, mais pessoal. O fim de semana de seleção no centro residencial do Partido Tory em Melton Mowbray tinha sido estafante: mais um curso de ataque mental do que um dia longe do cotidiano. Horas de entrevistas e testes psicométricos para avaliar sua capacidade para a aprovação de sua candidatura. Será que parecera ambiciosa ou implacável? Segura ou arrogante? Tinha sido honesta em suas respostas a respeito da Europa, da política externa, da educação; mas será que suas opiniões estavam de acordo com a linha do partido? Aquele era só o primeiro degrau da escada política, e ela realmente não tinha pensado que seria assim tão difícil. Havia tantos representantes burros no Parlamento... como tinham conseguido fazer todos aqueles malabarismos? Sentindo-se cansada e com sede, esticou a mão para pegar uma garrafa de água no banco do passageiro e prendeu-a entre os joelhos para desatarraxar a tampa. Tomou um gole longo e deixou que suas pálpebras se fechassem por um só momento, enquanto o líquido hidratava sua garganta. Ao abrir os olhos novamente, viu uma van grande aproximando-se rapidamente atrás dela, os faróis brilhando no escuro. Tentou tampar a garrafa depressa, mas ela escorregou de sua mão e caiu em seu colo. Neste exato momento, a van mudou de pista, a fim de ultrapassá-la. Mas o motorista calculou mal a largura da faixa e passou a meros centímetros do Audi dela. Por instinto, Camilla virou a direção para o outro lado, tentando colocar o carro mais para o canto da estrada possível. Quando as rodas do carro saíram do asfalto, a garrafa de água rolou por suas coxas, lançando filas frias de líquido sobre seu terninho Comme des Garçons. Merda, pensou, abaixando a mão para tirar a água do tecido caro. Em pânico e distraída, com os olhos ofuscados pelos faróis, já era tarde demais quando ela percebeu que havia uma depressão profunda depois do acostamento da estrada. Camilla pisou nos pedais com tudo, mas não dava mais tempo. O carro entrou direto em uma cerca viva. Em uma fração de segundo, uma lembrança de uma década antes veio à tona na mente de Camilla. Outra noite, outra estradinha interiorana, outro carro descontrolado. Manchas de sangue manchavam os faróis de um velho Renault. O rosto do pai olhando para ela com fúria. Não! Gritou bem alto, o corpo trepidando apoiado na direção, até que o carro parou de escorregar. No começo, ela não sentiu nada. Então, foi sugada de volta para o momento com um solavanco. Fisicamente, estava ilesa. O carro ultrapassara os arbustos na lateral da estrada e estava em um descampado. Mas ela se sentia estilhaçada. A lembrança tinha sido


destravada, uma verdade horrível que, percebeu em um segundo, poderia destruir seu futuro. Uma onda de náusea tomou conta de seu corpo quando ela abriu a porta do carro com um empurrão forte e vomitou no capim violentamente. Ninguém jamais poderia saber o que aconteceu, ninguém. Ela não tinha se esforçado tanto, trabalhado com tanto afinco, para permitir que aquilo a desanimasse. Um carro parou atrás dela, no acostamento, e uma senhora se aproximou de seu Audi amassado. - Tudo bem com você, querida? - perguntou a senhora com muita cautela, dando a volta até o lado do motorista, onde Camilla estava sentada, desolada, com a cabeça entre os joelhos. Ela assentiu com a cabeça com um gesto fraco, depois limpou a boca com um lenço de papel que lhe foi oferecido, respirou fundo e esfregou os olhos, como se pudesse apagar a imagem que não queria enxergar. Olhou para a senhora e então virou a cabeça e ficou olhando para o horizonte, onde o céu ia ficando azul bem escuro. - Vou ficar bem - disse Camilla baixinho, apertando os dedos em um punho. - Vou ficar bem.


24 Simplesmente era impossível enfiar mais qualquer computador, vaso de planta ou recado anotado em Post-it na redação da Sand, pensou Cate, examinando seu novo local de trabalho com uma careta. Cada centímetro do chão e do espaço nas prateleiras estava apinhado de caixas, pilhas de revistas e releases de imprensa. Ela afastou a cadeira da mesa, mas depois de meio metro bateu em um artigo. Cate esfregou os olhos para ganhar um ou dois momentos longe do brilho intenso da tela do computador. Ainda era meio-dia, mas ela já estava exausta. As noites passadas trabalhando até muito tarde e os expedientes de 15 horas por dia estavam acabando com ela. Mesmo assim, valia a pena, pensou, olhando para os layouts da revista que eles haviam pregado em cada centímetro disponível de parede. Aquilo era melhor do que ela poderia ter sonhado, um feito ainda mais notável devido ao fato de ter sido realizado pelas nove pessoas que se apertavam no emaranhado de mesas à sua frente. E pensar que ela havia tido uma equipe de quarenta pessoas na revista Class... e ainda achava que era difícil. - Aqui está o itinerário de todo mundo para a foto de capa - anunciou Sadie Wilcox, andando pela redação e colocando folhas de papel A4 sobre as mesas. Como era estranho estar trabalhando outra vez com sua antiga assistente pessoal, que tinha sido demitida no primeiro mês de Nicole Valentine como editora. Claro que, agora, Sadie não era mais sua assistente: na Sand Publishing não havia luxos desse tipo. Aqui, Sadie era redatora júnior/coordenadora de produção e salva-vidas de maneira geral, tudo em um pacote só, com um salário nada bom. Não que Sadie parecesse se importar; aliás, ela parecia estar feliz da vida naquela redação minúscula. O mesmo parecia valer para toda a equipe da Sand, e Cate ficava emocionada todos os dias ao constatar como toda a equipe trabalhava com afinco e se dedicava à revista. Fez uma anotação mental para se lembrar de comprar um pouco de champanhe rosê para o happy-hour da sexta-feira no final do expediente. O telefone tocou. Era Nick, ligando do luxo de sua sala. - Cate, você pode passar aqui um minuto? - perguntou ele. Cate sorriu. O local de trabalho de Nick ficava do outro lado de uma divisória fina, e ele poderia simplesmente ter batido na parede para chamar a atenção dela. Cate atravessou a redação, um espaço que não era maior do que a sala de armas de Huntsford, e foi até onde Nick estava, sentado atrás de uma mesa, olhando para uma cópia do orçamento da foto de capa feito por Sadie. - O que foi? Nick fez uma expressão que Cate instantaneamente reconheceu como preocupação com dinheiro. - Esta foto de capa vai custar uma fortuna desgraçada - disse ele, fazendo muitas contas em sua calculadora. - É, bom, fotos de capa custam caro - disse Cate. - Principalmente se quisermos que fiquem tão boas quanto as das capas da Vogue. Agius não vai cobrar pela foto; conseguimos o hotel com cinquenta por cento de desconto em troca de uma notinha... e o resto? Bom, o resto custa dinheiro, Nick. Sybil Down é uma das maiores top models internacionais no momento e, quando se faz alguma coisa com ela, a produção precisa ser elaborada. - Claro - respondeu Nick, impaciente. - Mas ela precisa mesmo viajar de classe executiva? Quer dizer, o vôo para Nice só dura mais ou menos uma hora e meia. A diferença da classe executiva é só aquela cortininha e o almoço servido em um prato de porcelana. Não vou pagar trezentas libras a mais por isso! Cate deu um sorriso indulgente.


- O que você quer? Acha que Sybil vai viajar em um vôo barato da EasyJet? Nick abanou a mão e então a pressionou contra a testa. - Certo, já entendi. Só não se esqueça de que o orçamento editorial da revista inteira é mais ou menos igual ao de um ensaio de moda da Class, está bem? Só tome cuidado, sabe como é? Cate olhou para ele e ergueu uma sobrancelha cautelosa. - O dinheiro é meu, o negócio também é meu, sabe como é, Nick. O rosto dele relaxou e ele sorriu. - Eu sei, só estou agindo como o nazista do orçamento. Demorou tanto para a gente conseguir a porcaria deste dinheiro... é horrível ver um centavo que seja desperdiçado. - Ele respirou fundo e empurrou o papel para longe. - Mas, bom, quer ir almoçar daqui a uma meia hora? A gente podia ir caminhando até Borough Market. Lá tem o melhor falafel do mundo. Ela hesitou. Cate ainda estava tentando evitar situações em que os dois ficassem sozinhos, mas o sol entrava pela janelinha e a primeira edição estava quase pronta. - Só vou pegar minha bolsa - respondeu ela. - Antes que você saia, chefe - gritou Vicky Morgan, a editora de moda da Sand, segurando um enorme chapéu branco de abas molengas. - Quer dar uma olhada na seleção de roupas para a foto de capa? Cate foi até onde ela estava e pegou um punhado de minúsculos biquínis, com estampas tropicais fluorescentes da pilha. - Adoro estas estampas da Missoni e da Pucci. É sério, Vicky, muito obrigada mesmo por ter conseguido armar a foto com Sybil. Ela é a garota da capa perfeita para nós. Cate tinha tido muita sorte de conseguir trazer sua velha amiga para trabalhar na Sand. O olho de Vicky para a moda era o melhor do ramo, e os contatos que tinha nas agências de modelos, nos estúdios fotográficos e entre os fotógrafos eram enormes. Do ponto de vista de Vicky, os horários de trabalho flexíveis lhe caíam bem: podia continuar fazendo trabalhos freelancer de produtora para uma longa lista de atores e cantores pop, e sabia identificar uma revista estonteante quando a via à sua frente. - É, bom, eu fiz a campanha da Victoria's Secret com Sybil há seis meses - disse Vicky dando de ombros, cheia de modéstia -, e ela disse que realmente queria trabalhar comigo de novo. Eu liguei para ela e pronto. Vai ser fabuloso! - Ela riu, segurando um biquíni de oncinha na frente do peito e fazendo pose. - Acabou de chegar isto aqui para você - interrompeu Sadie, entregando uma enorme sacola branca amarrada com uma fita preta para Cate. Cate largou um espartilho e sorriu para Vicky. - Podemos não estar mais na revista Class, mas parece que você continua recebendo o lado bom do trabalho - disse Vicky. Cate tirou a fita e deu uma olhada no interior da sacola. Havia uma mensagem em um cartãozinho: "Por toda a sua dedicação. Boa sorte. Rebecca." - Que diabos é isto? - sussurrou Cate, tirando punhados de papel de seda amassado de dentro da sacola. - Rebecca? Não me diga que é Rebecca Willard da Mode RP - disse Vicky, lendo o cartão. - É ela mesmo - respondeu Cate, erguendo a sobrancelha para a amiga. - E também é a namorada de Nick Douglas - cochichou. - Está de brincadeira - disse Vicky, colocando a mão por cima da boca. - Eu nunca teria colocado esses dois juntos, nem em um mês só de domingos. Mas, bom, o que você


ganhou? Ela acabou de conseguir a conta de Alexander Dupont, talvez seja algo dele! Ah, vamos ver! A princípio, Cate só viu uma coisa amarela. Foi tirando a roupa, pedacinho por pedacinho, e avistou um botão dourado espalhafatoso. - Eeca! - Vicky deu risadinhas e fez careta. - Bom, acho que não é uma das peças clássicas dele. Cate ergueu a jaqueta: era uma peça de roupa de extremo mau gosto, uma das mais feias que já vira. Era larga e vulgar, com costuras douradas em destaque e botões superdimensionados pavorosos. E havia bolsos antiquados na parte da frente. - Acho que é o tipo de coisa que ele direciona para os clientes árabes - disse Vicky, diplomaticamente. - Não é bem a sua cara, não é mesmo? - Ela sorriu. - Mas acho que foi simpático da parte dela ter enviado um presente. Caramba!, pensou Cate, colocando a jaqueta nas costas da cadeira de Vicky. Foi bem aí que Nick entrou na sala, vestindo um paletó de terno por cima da camisa com jeans. - O que é isso aí, Cate? Um presentinho? - perguntou ele. - Aliás, foi Rebecca que mandou - disse Cate, erguendo a peça para ele ver. Nick tentou disfarçar uma expressão de pavor. - Ah, é, hummm... a cor é bem, ã-rã, chamativa - disse ele. - Perfeito para o... bem, para o verão, acho. Vicky começou a rir enquanto Cate dobrava a roupa com cuidado e guardava na sacola. - Perfeita para a fogueira... - começou a balbuciar, antes que conseguisse se segurar. Sua reação poderia chegar aos ouvidos de Rebecca com facilidade por meio de Nick, e ela não permitiria que a rival vencesse aquele round. Ela conhecia bem o joguinho daquela mulher. - Foi realmente muito gentil da parte dela - disse Cate a Nick. - Afinal de contas, toda mulher quer ter uma peça de Alexander Dupont. Preciso ligar para ela hoje à tarde para agradecer. Ela captou uma expressão no rosto dele que não conseguiu decifrar muito bem. Seria alívio ou acanhamento? Ou alguma outra coisa? Pegou o casaco e deixou Vicky para empacotar as roupas em enormes malas com rodinhas, prontas para irem para o sul da França na segunda-feira. - Então, falafel? Nick assentiu com a cabeça. - Falafel. Borough Market na hora do almoço de sexta sempre fazia Cate sorrir. Montes de gente faminta enchiam o mercado com cara de galpão, homens elegantes que trabalhavam no distrito financeiro esbarravam em donas-de-casa do East End nas barraquinhas de frutas e verduras orgânicas, enquanto uma centena de cheiros exóticos e diferentes se misturavam no ar. Chouriço com queijo, flores com peixe, bolos com picles. Era um ataque maravilhoso aos sentidos, e Cate sempre voltava com o estômago cheio e os braços carregados de vieiras, doces de confeitaria e baguetes francesas compridas. - Estou animadíssima com os anúncios - disse Cate, enquanto eles faziam fila na barraquinha de comida turca.


Como sempre, ela tentava falar apenas de trabalho com Nick. A minúscula equipe de publicidade da Sand tinha conseguido garantir vinte páginas de anúncios excelentes, de alto nível: isso era vital para que o lançamento fosse bem-sucedido. - É, levando em conta o tempo que tivemos para fechar tudo, são anúncios surpreendentes disse Nick, assentindo com a cabeça enquanto eles pegavam os falafels. - Pena que alguns grandes, como a Chanel, estão esperando para ver as primeiras edições. Mas eu diria que as perspectivas são boas. Portanto, acho que posso ir a Mônaco com segurança, sem medo de ir à falência por enquanto. Cate cortou um pedacinho de pão pitta com os dedos e lançou um olhar cínico para ele. - Muito bem observado, senhor Douglas. Se está tão preocupado com o orçamento da foto de capa, por que vai ao sul da França conosco? Ela reparou que as bochechas dele ficaram um pouco rosadas, mas podia ser o sol. - Pode ser que não tenha notado, senhorita Balcon, mas eu paguei do meu bolso. Uma passagem baratinha da EasyJet para Nice. - Fale sério - riu Cate e deu uma cotovelada de brincadeira nas costelas dele. - É só mencionar uma top model e você já embarcou no primeiro vôo barato para lá. - Eu sou um rapaz cheio de classe, sei disso - disse ele, dando uma risada. Nick ergueu o polegar e limpou uma gota de homus do queixo de Cate. A intimidade daquele gesto a assustou, ela recuou e tropeçou em um barril de maçãs. Recompondo-se, percebeu que, na verdade, não queria que ele fosse à sessão de fotos em Mônaco. Àquela altura, ela já tinha bloqueado em sua mente o que acontecera em Milão, e ter visto Nick e Rebecca na casa de Tom no fim de semana anterior fizera com que ela se desse conta de que qualquer ideia de romance entre eles seria imprudente e fútil. A eletricidade entre os dois tinha desaparecido e a simpatia estava voltando, apesar de Cate continuar sentindo que já não podia conversar com Nick com tanta liberdade quanto antes de Milão. Ao mesmo tempo que tinha conseguido empurrar qualquer sentimento que tivesse por ele para o cantinho mais escuro de seu ser, realmente não queria se colocar em outra situação vulnerável. Autopreservação, este é o nome do jogo, pensou consigo mesma. Quando voltaram para a redação, já estava quase vazia. Apenas Ruth Grey, a editora de fotografia, ainda estava lá, ralando na frente da tela de seu computador. Fazia muito calor naquela tarde; o tempo estava quente mesmo, levando-se em conta que ainda era maio. Cate abriu uma janela para deixar um pouco de ar fresco entrar, sentou-se atrás de sua mesa e borrifou um jato de névoa Evian no rosto. Olhou para o plano da revista à sua frente. Em uma semana, tudo seria entregue para a gráfica e parecia que tudo andava bem de verdade. A única coisa que realmente estava faltando era a foto de capa. Ela detestava ter deixado para o fim uma coisa tão importante, mas valia a pena para conseguir Sybil, a novaiorquina glamourosa que causava o maior furor no mundo da moda desde Kate Moss. Cate ligou o computador, começou a examinar os e-mails recebidos e reparou que havia um da agência de modelos ILF marcado como urgente. Clicou no ícone de envelope com uma careta. Tinha certeza de que Sadie tinha enviado todos os detalhes relativos ao vôo e ao hotel para a agência de Sybil no começo da semana. Ao ler o e-mail, o sangue de Cate gelou. Olá Cate, Desculpe avisar tão em cima da hora, mas Sybil Down não poderá comparecer à sessão de fotos da revista Sand na segunda-feira. Como sabe, ela só pôde acomodar esta sessão


porque estaria no festival de cinema, mas não poderá comparecer porque está doente. Por favor, ligue para mim para conversarmos sobre o assunto. Atenciosamente, Caroline Davis, chefe da agência. - Merda! - gritou Cate, quase derramando a garrafa de água que estava em cima de sua mesa. Ela nunca falava palavrão. Mas, desta vez, não conseguiu se segurar. Ruth ergueu os olhos de sua mesa de luz, onde estava examinando fotos de agências de paparazzi. - Qual é o problema? - A desgraçada da Sybil Down deu o cano na sessão de fotos! - respondeu Cate, amassando seu itinerário e lançando-o na direção do cesto de lixo. - Está de brincadeira! - disse Ruth. - O que aconteceu? - Parece que está doente demais para ir a Cannes - respondeu Cate, já em pé e começando a andar de um lado para o outro na sala. - Mas ela estava ótima ontem, quando confirmaram. Ruth começou a remexer em uma enorme pilha de fotografias em sua mesa. - Que estranho... - murmurou, passando das fotos em papel para a tela do computador, onde examinou mais fotos de celebridades de seus arquivos. - ... Tenho certeza de que eu vi... Isso mesmo! Aqui está. Venha só dar uma olhada, Cate. Cate foi até a mesa deRuth e olhou as fotografias digitais das festas da noite anterior em Cannes. E lá estava Sybil Down, subindo a escadaria do Palais des Festivals de Cannes com um vestido tomara-que-caia branco, toda radiante, feliz e perfeitamente saudável. - Não acredito que está em Cannes! Que vaca! - berrou Cate, correndo de volta para a mesa e tirando o telefone do gancho com violência. Espancou as teclas para ligar para a ILF em Nova York. - Com os diabos, está na caixa postal! - disse Cate, depois de um instante. Não é para menos! - completou e bateu o telefone no gancho. Tinha que pensar rápido. A revista tinha que estar na gráfica dali a dez dias e eles não tinham capa. - Certo, Ruth! - ordenou Cate do outro lado da sala. - Ligue para todas as agências de fotografia e veja o que têm disponível em termos de atrizes importantes e modelos de destaque. Na praia, em um iate, passeando por St. Tropez, não me importa o que estejam fazendo, só tem que ter cara de "férias". Cate prendeu o cabelo em um coque apertado, como sempre fazia quando ficava nervosa. Nick colocou a cabeça para fora da porta. - Está xingando como um marinheiro, Cate - brincou. - O que aconteceu? - Vamos para a sua sala - disse Cate, puxando a manga da camisa dele. Cate rapidamente o colocou a par do que tinha acontecido. - Droga - disse Nick, afundando-se em sua cadeira. - Lá vai o custo de todas aquelas passagens e todos aqueles hotéis pelo cano. - Esqueça o dinheiro por um minuto - disse Cate, irritada. - Não temos capa. Ruth está procurando uma imagem que possamos comprar, mas este é o último recurso. Se a nossa primeira capa não for uma foto exclusiva, então o setor vai achar que somos amadores, que somos só mais uma revista feita às pressas que não vai ter a menor penetração no mundo da moda. Ela andava de um lado para o outro na sala de Nick, de cenho franzido. - Assim que Vicky voltar, ela pode dar alguns telefonemas para outras agências de modelos para ver se vai ter alguém de peso por aí na semana que vem. Vou ligar para alguns amigos


assessores de imprensa, embora, neste momento, eu não consiga pensar em nenhuma britânica que seja certa para a capa. Precisamos fazer uma coisa glamourosa. O que vende, na verdade, são só as atrizes de Hollywood ou as modelos grandes de verdade. - Que tal Serena? - perguntou Nick, erguendo os olhos para Cate. - Ela não vai estar mesmo em Londres e Cannes na semana que vem, ou por aí? Cate começou a assentir com a cabeça, o pensamento longe, olhando através da janela minúscula da sala que dava para um estacionamento. Claro que ela tinha pensado em Serena, que chegaria a Londres no dia seguinte, a caminho de Cannes, mas esta era a última coisa que ela desejava fazer. Todo mundo só ficava esperando que ela colocasse a irmã na capa, e Cate não queria ser previsível. Ela queria mostrar que, apesar de ser uma das irmãs Balcon, era capaz de fazer as coisas do seu jeito; que podia editar a revista de acordo com seus próprios termos, sem recorrer às conexões familiares. - Então... - disse Nick. - Ligue para ela. Cate virou-se para ficar de frente para ele e apoiou as mãos na mesa. - Olhe, eu prefiro não fazer isto - disse ela. - Acho que dá para entender por que não quero colocar a minha irmã na primeira edição. - Caramba, Cate - disse Nick, todo ansioso. - Estamos em um beco sem saída. A gente não quer colocar uma foto minha na capa, quer? Temos menos de dez dias! Você sabe disso. - Olhe, dê-me apenas algumas horas - disse Cate, sem alterar a voz. - A primeira coisa que preciso fazer é entrar em contato com a agência de Sybil. Vou avisar que cobraremos todos os vôos e hotéis dela e que vimos fotos de paparazzi de Sybil em Cannes. Talvez, assim, mudem de ideia. - É uma esperança - respondeu Nick. Dane-se o festival de cinema de Cannes, pensou Cate, batendo o telefone no gancho pela décima vez. Parecia que não tinha ninguém trabalhando naquela sexta-feira à tarde. Tinha deixado inúmeros recados nos escritórios das assessorias de imprensa de filmes em Cannes, mas ninguém retomava. Bom, não é para menos, pensou, acalmando-se um pouco: aquele era um momento frenético para todos no setor. Vicky, enquanto isso, não tinha conseguido nada com as agências de modelos. As três principais agências responderam, com a maior educação possível, que queriam esperar para ver a primeira edição antes de se comprometerem a enviar as moças mais disputadas. Ainda estava cedo demais para ligar para as assessorias de imprensa em Los Angeles, pensou Cate, conferindo o relógio: lá eram só sete da manhã. Mas ela duvidava que fosse conseguir algum milagre vindo de lá. Marcar uma foto com Los Angeles geralmente exigia três ou quatro semanas de organização, não três ou quatro dias. O telefone dela tocou de novo e ela atendeu, ansiosa. - Cate, sou eu, Nick. Quer vir aqui um instante? Rebecca está aqui. Cate resmungou e foi até a sala de Nick pisando firme. Rebecca estava empoleirada no canto da mesa com um vestidinho ínfimo, botas de couro marrom e enormes óculos escuros de aviador, seus lábios cobertos de gloss brilhando. - Olá, querida - disse ela, aproximando-se para dar beijos nas bochechas de Cate, que se encolheu nas duas ocasiões. - Acabei de ligar para Nick - explicou ela, abanando as mãos no ar para obter efeito dramático. - E ele comentou que vocês estavam com um problemão. Eu estava aqui perto, em Covent Garden, então peguei um táxi e vim direto para cá, porque acho que talvez possa ajudar. Mas, bem, você amou ou amou a jaqueta que eu mandei? Cate olhou para ela, tentando estampar um sorriso no rosto. - Claro, eu adorei a jaqueta, muito obrigada mesmo.


- Bem - disse Rebecca, levantando os óculos e colocando-os no topo da cabeça. - Acabo de saber como Sybil Down agiu como uma bruxa, mas acho que tenho a solução. Acabamos de confirmar agorinha mesmo, mas arrumamos uma pessoa maravilhosa para ser a cara de um de nossos clientes, as jóias Flaubert, e ela por acaso vai estar em Cannes na semana que vem, como anfitriã da festa do cliente. Ainda não tenho certeza total, mas acho que consigo duas ou três horas para uma sessão de fotos, desde que ela use algumas jóias da Flaubert. Rebecca sorria, triunfante. Cate limpou a garganta. - Parece ótimo, mas quem é? - Simplesmente Rachel Bamaby! - disse Rebecca, cheia de emoção, virando-se para lançar um sorriso reluzente para Nick. - Ela seria perfeita! Você sabe que a capa dela na Vogue foi a que mais vendeu no ano passado, não sabe? Cate resmungou por dentro. Apesar de saber que aquela seria a solução perfeita para os problemas deles, sentiu o coração apertar quando Nick deu um sorriso agradecido para Rebecca. No confinamento da sala de Nick, ela se sentiu presa pela presunção de Rebecca. Enfiando a unha do polegar na palma da mão, Cate tentou parar de se sentir tão inclemente. Afinal de contas, Rebecca os estava ajudando a sair de um buraco, não estava? Mas por que tinha de ser Rebecca? Nick se levantou e caminhou até onde Cate estava. - Tudo bem com você, Cate? - perguntou ele colocando a mão no ombro dela, cheio de preocupação. - É ótimo, não é? Rachel Barnaby. Ela é boa, até eu sei disso! Cate deu um sorriso fraco. - É, ótimo. Ela é perfeita. E parece que não vamos chegar a lugar nenhum com o pessoal de Sybil. Não, ela vai ser perfeita. Obrigada, Rebecca, muito obrigada mesmo. Quando Nick se virou para voltar para a cadeira, Rebecca lançou um olhar para Cate, com uma sobrancelha erguida e a pontinha do lábio curvada em um sorriso maléfico. Era o rosto de uma criança que tinha conseguido jogar a culpa de uma travessura em um irmão detestado, mas a expressão desapareceu com a mesma velocidade com que tinha aparecido. Cate encheu-se de desconfiança no mesmo instante. Será que Rebecca tinha planejado tudo aquilo? Será que poderia ter sabotado a foto de capa deles só para aparecer como salvadora da pátria? Mas isso seria muito... bom, uma loucura. Cate olhou para Rebecca, que sorria com doçura e já ia colocando a bolsa no ombro, pronta para ir embora. Não, ela estava sendo paranóica. Aquilo não era possível, era? - Bom, vou deixar vocês trabalharem - ronronou Rebecca ao chegar à porta. - É melhor eu me apressar para agilizar tudo para vocês. Claro que o meu cliente vai pagar a viagem e a hospedagem de Rachel, então não precisam se preocupar com isso. E, Nick, querido, eu posso ficar no quarto do hotel com você, não posso? Cate ficou olhando para ela, boquiaberta, repentinamente sentindo que toda a operação tinha sido arrancada de suas mãos. E alguma coisa lhe dizia que sua teoria de conspiração estava certa.


25 Da poltrona 1A, o único assento que Serena aceitaria para viajar em um avião de carreira, ela enxergava claramente o aglomerado urbano de Londres. Observou os campos desaparecerem à sua frente e, além deles, a metrópole extensa, que hoje parecia verde e convidativa, sem aquela garoa misturada com poluição que sempre encobria a cidade quando ela chegava de avião de Nova York. - Dez minutos para o pouso - disse uma voz britânica empertigada no sistema de som enquanto Serena bebia o restinho de seu suco de frutas; ela colocou a poltrona na posição vertical e a almofadinha de cashmere no colo. Ela sentia várias coisas diferentes a respeito de estar de volta ao lar, apesar de só estar dando uma passadinha por lá a caminho do sul da França. Tinha ido até lá principalmente a negócios: era necessário completar a venda da casa de Cheyne Walk e tinha uma reunião importante com a Jolie Cosmetics, já que a renovação de seu contrato estava para ser assinada a qualquer momento, e ela achava que conseguiria mais dinheiro se fosse falar pessoalmente com o executivo-chefe britânico da empresa em sua residência de Eaton Square. Era tudo muito tedioso, mas, para ser totalmente sincera, ela estava mesmo precisando de um descanso da cena de Nova York. Nas últimas semanas, seus dias tinham sido preenchidos com idas infinitas ao salão de beleza; as noites, abarrotadas de tantas festas nova-iorquinas que pareciam se fundir em uma coisa só. Não era nada fácil ser tão glamourosa. Ainda assim, a enxurrada de canapés e beijinhos falsos pareciam estar dando frutos: Serena Balcon era uma atriz badalada mais uma vez. A reunião na casa de Ed Charles tinha sido proveitosa, embora até agora não pudesse acreditar que realmente havia precisado cantar para o produtor da Broadway no estúdio localizado no porão de sua casa antiga de tijolinhos. Não fazia isso desde que estava na sociedade dramática da escola. Mas Ed tinha emitido todos os sons corretos para que ela não só conseguisse um papel em Fin de Siêcle, mas que ficasse com o papel de Letitia Dupont. Era um papel de arrasar - em mais de um aspecto: Letitia era uma showgirl de Las Vegas com um lado assassino, tão glamourosa quanto a personagem de Nicole Kidman em Moulin Rouge e tão espevitada e agitada quanto o papel de Catherine Zeta-Jones em Chicago, que lhe valeu o Oscar. E, para completar, na véspera seu agente ligara para dizerlhe que ela fora chamada para um teste de vídeo para um thriller de ação importante; um thriller de ação importante que, segundo os boatos, seria estrelado por Tom Cruise, ninguém menos. Serena esticou as pernas e agitou os dedos dos pés dentro das meias de cashmere, mais do que satisfeita com seu progresso. Uma indicação para o Oscar poderia ser dela dentro de um ano e meio, sorriu, presunçosa. Aliás, quem precisava de Tom Archer? - Olá, querida, cheguei! - disse Serena com voz meiga, irrompendo na casa de Cate e olhando ao redor com uma expressão levemente desgostosa ao ver o tamanho da casa de Cate. - Diga que as minhas malas chegaram ou eu morro! Cate, usando seu uniforme de sábado à noite de moletom da Juicy Couture e nenhuma maquiagem, aproximou-se da irmã para lhe dar um abraço. - Chegaram, mas por que você precisou enviar por FedEx? São só duas malinhas - disse ela, apontando para as duas malas Goyard em um canto. - Você não podia passar pela alfândega com elas?


- Querida, hoje em dia todo mundo manda a bagagem na frente - respondeu Serena. - De todo modo, essas malas podem ser bonitas, mas são um pouco pesadas. Não quero distender nada. Serena passou por Cate e entrou na sala. A casa de Cate era um antigo estábulo convertido, estreito, com três andares, pintado de rosa-claro, bem perto de Portobello Road. Não era grande, mas Cate o transformara em um lugar claro, bem feminino, cheio de tapetes cor de creme, paredes neutras e enormes vasos para alegrar cada canto, cheios de ervilhas-decheiro e peônias. - Estou preparando um rosbife, espero que esteja com fome - disse Cate, servindo copos grandes de água mineral para ambas. - Eu sei que você gosta mais de dormir do que de comer no avião. - É um amor da sua parte, Cate, mas, na verdade, eu estou meio enjoadinha - respondeu Serena, remexendo na mala para tirar um pote grande de creme facial. - Aqui está - disse ela, enfiando o pacote nas mãos de Cate. - É algum tipo de creme antiidade: achei que era a sua cara. Parece que é a coisa mais avançada que existe, tem pó de diamante na fórmula. Mas não sei por que diabos alguém me mandaria produtos para pele madura. Serena tomou um golinho da água e seguiu Cate até sua cozinha cheia de estilo, em nogueira e mármore. - Tem certeza de que não quer um pouco? - perguntou Cate, enfiando uma faca na carne. Serena sacudiu a cabeça. - Estou fazendo uma dieta estranha neste momento. - Qual dieta? - perguntou Cate, arqueando uma sobrancelha. - A dieta de Não Comer Nada? Você está tão magrinha! - Para você, tudo bem - disse Serena, medindo a irmã de alto a baixo, que exibia suas curvas no moletom aveludado. - Você não trabalha mais com moda... e, de todo modo, você tem a sua personalidade forte e alegre. Não precisa usar manequim 34. Cate sorriu e sacudiu a cabeça, lembrando a si mesma que, na cabeça de Serena, aquilo era um elogio. Não adiantaria nada reclamar, já que a irmã passara para um assunto mais importante: A Vida Fabulosa de Serena. De acordo com Stephen Feldman, o novo empresário de Serena, havia rumores de que ela não seria mais apenas o rosto da Jolie Cosmetics na Grã-Bretanha e na Europa, mas que passaria a ser também o rosto na campanha mundial. Isso significava, segundo ela, um contrato que devia alcançar os quatro ou cinco milhões. E, completou Serena, também não faria mal nenhum para a carreira dela em Hollywood se seu rosto estivesse estampado em todo outdoor e anúncio de revista do mundo como o conhecemos. Enquanto Serena ia despejando as fofocas, Cate começou a observar que ela não mencionara Michael Sarkis sequer uma vez. Havia uma referência constante a "nós", por exemplo: "Quando 'nós' fomos ao baile em prol da restauração de Veneza"; "Quando 'nós' fomos convidados para visitar o dúplex de Henry Kissinger" ou "Quando 'nós' estávamos vendo imóveis nos Hamptons". Mas nada relativo a "ele" ou "eles". E ela nunca se referia a Michael pelo nome. Cate ficou curiosa, mas sabia que não adiantava nada perguntar. Tudo sempre era cintilante e estava certo no Planeta Serena; ela nunca tinha más notícias a respeito de sua própria Vida Maravilhosa, só sobre a dos outros. Mas Cate não pôde deixar de pensar que era estranho. Fazia muito tempo que a própria Cate estivera naquela posição, mas ela se lembrava bem como os três primeiros meses de qualquer relacionamento novo eram cheios de animação, paixão e diversão: a coisa simplesmente transbordava, dava vontade de contar para o mundo.


Como se tivesse lido os pensamentos de Cate, Serena mudou de assunto de maneira abrupta. - Bem - disse ela, chutando para longe os saltos Stephane Kélian e esticando-se em cima do sofá bege. - Quero saber o que anda acontecendo com você. Parece que alguém me contou que você estava a fim daquele tal de Nick Douglas, será? Não me leve a mal, querida, ele é bem fofo. Deus bem sabe que eu me apaixonei pelos encanto rude dos rapazes do norte com Tom, mas ele realmente não é adequado para você. Cate deu um sorriso suave. - Não, não, nós somos apenas sócios. Nick e eu nos damos muito bem e trabalhamos bem juntos. Eu sei que ele é amigo de Tom e que isso pode fazer com que você tenha preconceito em relação a ele, mas, sinceramente, ele é um cara bem legal. - E Venetia? - perguntou Serena, conferindo seu reflexo no espelhinho de um estojo de pó compacto dourado que tinha tirado da bolsa. - Não acredito que ela foi para a Espanha! É a primeira vez que volto, depois de séculos, e Venetia está borboleteando em Sevilha, Camilla está em algum tipo de fim de semana de gerência... e eu preciso acampar aqui! - Bom, é uma pena você achar a minha casa tão aflitiva - disse Cate, finalmente se aborrecendo. - Talvez você devesse ir para o Claridge's ou para algum lugar onde as pessoas compreendam as suas necessidades especiais! Serena ergueu os olhos do espelhinho com ar distraído. - Hã? Desculpe, querida, eu estava longe. O que Venetia está fazendo mesmo? Cate suspirou, percebendo que a bronca não tinha sequer sido registrada pela irmã. - Van está com um trabalho grande, reformando a casa de campo de um sujeito qualquer na Andaluzia. Parece que o lugar é maravilhoso, e ela estava precisando dar um tempo, com toda aquela confusão. - Confusão? - perguntou Serena, fechando o estojinho de pó compacto. Ela até tinha notado que a irmã mais velha parecera preocupada e desatenta na festa de despedida dela, semanas antes, mas tinha achado que era só o estresse de organizar uma festança. - Ela não lhe contou? - perguntou Cate. - Ela está passando por menopausa precoce ou algo assim. É uma coisa muito esquisita. Serena olhou para Cate com uma expressão vaga no rosto, como se mais uma vez não tivesse absorvido a informação. - Ah - terminou por dizer, quase num sussurro. Cate franziu a testa e olhou para a irmã com curiosidade. Era raro Serena ficar sem palavras. - Bem, parece que as reservas de óvulos de Van estão tão baixas que ela precisa engravidar nos próximos meses; depois, não vai mais poder. Ela vai ficar muito magoada se não puder ter filhos. A sala encheu-se de silêncio. Cate ergueu os olhos, a espera de alguma resposta. Serena tirou as pernas de cima do sofá com um movimento exagerado e dirigiu-se para a cozinha. - Tudo bem se eu pegar alguma coisa para beber? Uma Coca Diet ou algo assim? perguntou ela, distraída, olhando para trás. - Claro - disse Cate -, mas eu estava para abrir uma garrafa de vinho. Tem um Sauvignon Blanc bacana na geladeira. Serena sacudiu a cabeça. - Não, não. Acho que vou tomar um chá - respondeu, enquanto abria a geladeira.


Ela realmente pareceu abalada com a notícia sobre Venetia, pensou Cate. Vai ver que, no fundo, ela tem alma. - Tudo bem com você? - perguntou ela, seguindo Serena até a cozinha e colocando o prato em cima da bancada de mármore. - Claro que sim! - respondeu Serena, batendo a porta da geladeira. - Sei que a situação de Venetia é preocupante - disse Cate, estendendo a mão. - Mas ela vai conseguir sobreviver, ela sempre consegue. Passando por Cate, Serena voltou para a sala, enrolou-se no sofá, encostou os joelhos magros no peito e abraçou as pernas. Cate foi até onde ela estava, sentou-se ao lado e colocou o braço em volta de seus ombros. - Sin, tem alguma coisa errada? Conte para mim. Serena ficou em silêncio durante pelo menos um minuto, então soltou todo o ar dos pulmões e enfiou a cabeça entre os joelhos. O peso de seus próprios problemas tinha se acumulado ao longo das últimas semanas; agora, com a notícia sobre Venetia, parecia que ia estourar. Pensou por um instante na época em que estava com Tom: sempre podia contar qualquer coisa para ele ou descarregar todas as suas ansiedades nele, por mais banais que fossem. Mas em Nova York não havia ninguém com quem ela pudesse conversar: não podia falar com nenhum de seus novos amigos fabulosos e certamente não podia recorrer a Michael. E, com toda a agitação relacionada a sua carreira nas últimas semanas, aquele segredinho tinha ficado escondido tão no fundo dela que quase tinha conseguido se convencer de que ele desapareceria. Ela ergueu os olhos para o rosto gentil de Cate. A irmã estava tão preocupada, tão ávida para ajudar... Era disso que sentia falta em Nova York. Da família. Serena respirou fundo. - Acho que talvez eu esteja grávida - disse ela, a voz embargada de emoção. Foi a vez de Cate recobrar o fôlego. Colocou a mão no joelho de Serena. - Mas isso é bom, não é? - disse, tentando avaliar as emoções da irmã. - Não, não é porcaria de coisa boa nenhuma! - respondeu Serena, com uma risada de desdém. - Com certeza não é o que eu quero e também duvido muito que seja o que Michael quer. Minha carreira realmente está decolando, Cate - disse ela, sua voz agora carregada de pânico. - Estou escalada para dois papéis importantes de verdade, e o pessoal de Los Angeles está começando a me reconhecer. Simplesmente não posso dar um tempo, não posso ficar fora de ação. Cate nunca tinha visto Serena chorar com tanto amargor antes, nem no dia seguinte ao rompimento com Tom. Ela, que sempre parecia tão composta e tão controlada... Agora, apesar das lágrimas grossas que escorriam por suas bochechas, Serena ainda tinha pose e elegância, mas Cate percebeu que ela estava a ponto de desmoronar. - Tem certeza? - perguntou Cate, com a maior suavidade possível. - Provavelmente não é nada - respondeu Serena. - Deve ser só uma coisa hormonal. - Mas você foi ao médico? Fez um teste? - Não, nada - respondeu Serena, sacudindo a cabeça. Cate sorriu para si mesma. Era a cara de Serena enterrar a cabeça na areia. Quando ela estava com 6 anos e sua coelhinha de estimação, Marilyn, morreu, ela a escondera em uma caixa de madeira e insistira com todo mundo que tentara demonstrar solidariedade que Marilyn tinha "ido passar o verão na França". - A minha menstruação está atrasada, só isso - disse Serena. - Deve ser estresse, provavelmente. Ando tão ocupada...


- Mas você está obviamente preocupada. Por que não faz um teste? - Quando estiver menos ocupada, vou consultar o meu ginecologista - disse Serena, levantando-se. - Agora, por favor, vamos parar de falar sobre isso. - Não! - disse Cate, puxando-a de volta para o sofá. - Olhe só para você, está com os nervos em frangalhos! - Cate - disse Serena com muita calma. - Você provavelmente não compreende o que é estar terrivelmente ocupada, mas eu não tenho tempo de ir ao médico. Tenho reuniões em Londres, divulgação em Cannes, tenho a festa da Amfar... e, depois, vou com Michael de iate ao grande prêmio de Mônaco. - Certo, então, vamos deixar a sua mente tranquila - disse Cate com firmeza, assumindo modos de editora. - Vou agora à farmácia da esquina comprar um teste de gravidez. Serena de repente ficou apavorada. - Mas e se alguém ficar sabendo que é para mim? Seria um desastre se esta informação vazasse. Cate deu tapinhas carinhosos no joelho dela. - Não seja boba. Eu vou comprar o teste. Ninguém aqui dá a mínima para mim... não sou exatamente a pessoa mais famosa em Notting Hill. Se for deixá-la tranquila, posso colocar um boné! - Meu Deus, isto tudo me parece tão vulgar... - resmungou Serena, abanando-se com um jornal. - Olhe, Cate, por favor, não se incomode, não estamos mais no internato. Quando estiver pronta, vou me consultar com meu ginecologista em Nova York. Mas Cate já tinha vestido a jaqueta e pegado as chaves do carro. - Estou indo. Volto daqui a dez minutos. - Cate, não... Quando a porta se fechou com um dique, Serena colocou a cabeça nas mãos e deixou que os soluços tomassem conta dela, as lágrimas escorrendo-lhe pelo rosto, fazendo com que seus cabelos cortados por Sally Hershberger, por seiscentos dólares, colassem em suas bochechas. Finalmente, assoou o nariz e respirou fundo. Ela não sabia se ficava aborrecida, brava ou simplesmente aliviada por Cate ter arrancado a verdade dela. Talvez fosse melhor assim, pensou, enxugando os olhos e fungando. Sua menstruação não estava simplesmente "um pouco" atrasada: já fazia quase quatro semanas. Quando ela descobrira isso, sentira-se apavorada e sozinha. Michael era a única pessoa que ela conhecia suficientemente bem em Nova York para falar sobre isso, e ela não podia exatamente contar para ele. Como ele reagiria? Será que ficaria contente ou furioso? Será que aceitaria o fato de ser pai ou, Deus não permitisse, fugiria dela? E se ele a largasse? O estilo de vida dele não tinha exatamente lugar para uma criança. E, apesar de estarem felizes agora, a vida social hedonista que os dois tinham podia não ser assim tão fabulosa com uma criancinha a reboque. Ela sentiu um calafrio e derrubou um copo de vinho no chão com o pé, sem reparar no líquido derramado em cima do tapete de Cate. Parecia tão injusto... Por que o bebê não podia ser de alguém como Venetia? Venetia queria tanto ter um pirralho, enquanto essa era a última coisa que Serena precisava em sua vida neste momento. Mas, bem, Serena Balcon sempre conseguia o que as outras pessoas queriam, pensou, com um sorriso lento aparecendo em seus lábios. A porta bateu. - Que rápido! - disse Serena quando Cate voltou com um boné enterrado até os olhos.


- Rápido? Eu tive que ir até Kensal Rise disfarçada. Não queria que ninguém visse uma das irmãs Balcon comprando um teste de gravidez... ah, que escândalo! - completou com uma risada fraca. - Não acredito que você me convenceu a fazer isto - disse Serena, pegando a caixa e lendo a parte de trás. - Quer dizer, que coisa mais primitiva, fazer xixi nesses bastõezinhos... Eu tenho os cuidados médicos mais caros do mundo em Nova York, você sabe. - Bom, paz de espírito não tem preço - disse Cate, afastando-se para ligar o bule elétrico Dualit. - Se você estiver grávida - ela arriscou, cautelosamente -, é de Michael ou de Tom? - Caramba - disse Serena, engasgando-se. - A coisa já é bem ruim sem você me definir como alguma espécie de vagabunda! - Vamos lá, não é nada disso - respondeu Cate, meio sem jeito. - Mas você se envolveu com Michael muito rápido depois que terminou com Tom, não foi? Serena lançou um olhar torto para Cate, pegou a caixa e subiu a escada batendo os pés, na direção do pequeno banheiro em branco e madeira de Cate. Encostada na beirada da banheira de pezinhos de Cate, ficou lá parada por um instante, apertando a caixa nas mãos. Não era a primeira vez que ela se via naquela situação. Lembrava-se da vez que se agachara no banheiro sombrio de Huntsford, com frio e sozinha, apavorada com a possibilidade de o pai aparecer e pegá-la. Na ocasião, o resultado do teste fora negativo, mas, em muitos aspectos, ela preferia que tivesse dado positivo naquela época, e não agora. Afinal de contas, havia algo de decadente e descuidado em uma gravidez adolescente. Jade Jagger tivera filhos cedo e hoje vivia em deliciosa boemia com a família a reboque, de Londres a Nova York, passando por Ibiza. Mas não agora, não quando sua carreira estava a ponto de explodir e se transformar em tudo o que ela queria que fosse. Agora não, Deus, por favor, agora não. Do outro lado da porta, Cate sentou-se no degrau que levava ao banheiro, esperando a irmã e tentando se preparar para qualquer resultado, sem saber qual seria melhor. Finalmente, Serena se esgueirou pela porta e se sentou ao lado dela, com o olhar fixo adiante. Cate pegou na mão de Serena e apertou com força, a superestrela e a editora de revista feminina; apenas duas garotas confusas e ansiosas sentadas na escada. Serena lentamente abriu os dedos para revelar o bastão plástico. - Tem uma linha - sussurrou ela. Cate esticou o braço e puxou a irmã para perto de si. - Essas coisas são confiáveis? - perguntou Serena com a voz fraca, entregando o bastão a Cate. Cate olhou para a linha cor-de-rosa grossa. - São bem confiáveis, acho, mas nunca se sabe - respondeu ela, não muito convincente. Vai dar tudo certo, sabe? - Eu vou ficar gorda - disse Serena com a voz fraca. - Meus peitos vão parecer dois balões e tudo o mais. - Não se preocupe - sorriu Cate. - A Chanel faz roupa até tamanho cinquenta. As duas quase deram risada. - Cate, o que eu faço agora? - suspirou Serena, apoiando a cabeça no ombro da irmã e já sem toda a força e a segurança da estrela de cinema. - Vamos dormir cedo - disse Cate. - Converesamos sobre o assunto amanhã de manhã. Serena não conseguiu dormir. Virando-se de um lado para o outro na cama encaroçada do quarto de hóspedes de Cate, seu dilema simplesmente não ia embora. Nos raros minutos em


que conseguia fechar os olhos e cair no sono, seus sonhos eram cheios de crocodilos, caos e outras coisas que Serena identificava, por causa de artigos de revistas femininas, como sonhos de pura ansiedade. Serena desistiu. Sentada na cama, acendeu um cigarro e imediatamente o apagou. Tinha de encontrar uma maneira de sair daquela confusão. Não havia dúvida de que aquele era o momento errado para ter um filho: seria suicídio profissional. Mas só de pensar em aborto... ela nem queria a palavra em sua mente. Ficou surpresa ao constatar como isso era forte para ela. Sempre tinha considerado o aborto mais um daqueles procedimentos cirúrgicos práticos que a mulher moderna podia manter em seu arsenal, assim como Botox ou lipo. Mas, agora... ela sacudiu a cabeça. Talvez a perspectiva de interrupção da gravidez parecer tão errada tivesse algo a ver com o fato de ela ter perdido a mãe tão nova. Mas havia outra razão. Ela acariciou a barriga rígida e ainda reta, com a pela bronzeada e ainda macia, e um sorriso começou a se formar em seus lábios. O bebê de Serena era o bebê de Michael. Como Michael não tinha filhos, isso o transformava no primogênito e, portanto, no herdeiro de uma fortuna bilionária. Se tivessem um filho homem, isso também significaria que ele estaria na linha de sucessão direta do castelo e do título de Huntsford. O bebê seria rico, teria posição e status. E ela também. E Michael também. Era uma situação em que todo mundo saía vencendo, que com certeza justificava um ano longe dos sets de filmagem e das sessões de fotografia. Ela se aninhou novamente nos travesseiros, sem parar de abraçar a barriga, foi tornada por urna névoa de sono e suas pálpebras se fecharam. Naquela noite, não teve mais sonhos de ansiedade. Jack Kidman já estava na sala executiva da British Airways quando Venetia chegou a Heathrow, bebericando urna garrafa de água mineral e folheando distraidamente seu jornal Financial Times. Quando Venetia se aproximou, ele ergueu os olhos e sorriu, em um gesto que Venetia considerou desconcertante de algum modo. Ela tinha viajado para o exterior inúmeras vezes para realizar serviços de decoração para clientes: hotéis em Dubai, clubes de campo na Flórida, casas de veraneio na Toscana; mas aquilo parecia diferente, mais íntimo. Jonathon nunca parecia tão à vontade, tão descontraído, pensou, avaliando Jack lentamente com os olhos. Com uma camisa pólo em cinza-cimento, jeans escuros, mocassins marrons e uma barba despontando no rosto, ele parecia um executivo rico prestes a sair de férias. Caramba, ele era bonito, pensou Venetia, e ir ao encontro dele com sua malinha para passar a noite parecia algo ilícito. Pare com isto, deu bronca em si mesma. Não era um fim de semana de sacanagem. Era uma viagem curta de negócios. No entanto, isso não impedira que ela mentisse para Jonathon quando ele a interrogara sobre o assunto na semana anterior. - Então, quem vai? - perguntara o marido com frieza durante o jantar. - Eu, o cliente e Nina, uma das nossas auxiliares. O interesse dele parecera absolutamente fingido e a pergunta de Jonathon fora colocada sem o menor traço de desconfiança, mas, ainda assim, ela mentira a respeito da companhia de Nina na viagem. O que dera nela para fazer isso? Era uma visita inofensiva para discutir o projeto. Ela sacudiu a cabeça para afastar aquilo da mente e aproximou-se dele para cumprimentá-lo. - Bom dia, vejo que você trouxe ainda menos bagagem do que eu - sorriu Jack, olhando para uma pequena sacola de mão marrom a seus pés.


- Eu já despachei minhas quatro malas e meu baú de sapatos - disse ela, sem mudar de expressão. - Baú de sapatos? - É piada. - Ah, vós, a Rainha de Gelo, derretestes - disse ele, sorrindo. - Está dizendo que eu não tenho senso de humor? - A frase saiu em um tom levemente rabugento, e Venetia arrependeu-se instantaneamente. Jack era, afinal de contas, seu cliente. - Eu não a conheço muito bem. Ainda... - sorriu ele. Ela percebeu que tinha corado, assim como sempre acontecia desde que era criança, quando o menor dos acanhamentos causava-lhe uma coceira assustadora da altura dos seios até o pescoço. - Bem, isto aqui é o meu material de trabalho - disse ela, sorrindo e erguendo uma pasta de couro preta. - Já tenho algumas coisas para você dar uma olhada. - Estou ansioso. - Ele lançou-lhe um sorriso de flerte. Os cantos de seus olhos, que brilhavam cheios de malícia, encheram-se de ruguinhas. - Mas haverá muito tempo para isto mais tarde, no hotel. Fiz reservas para nós no Casa Delia Flora. Lá vem ele de novo, pensou Venetia, sentindo o vermelhão subir mais uma vez. Ela mexeu ansiosa na aliança que trazia no dedo. Estava absolutamente nervosa. Mal tinha trocado uma centena de palavras com o sujeito, portanto, por que parecia que estavam tendo um caso? Sete horas depois - o mesmo tempo que levaria para ir a Nova York, resmungou Venetia -, o 4x4 prata que Jack alugara no aeroporto parou na frente de sua finca na Andaluzia. Uma enorme casa de sítio em ruínas, ao lado de uma colina banhada pelo sol, com um pequeno vilarejo andaluz aninhando-se como minúsculos cubos de açúcar branco abaixo deles. Venetia não via um lugar de isolamento tão esplêndido havia anos. A casa principal tinha antigas venezianas de madeira que rangiam em janelas arqueadas, emolduradas por trepadeiras que subiam pelas paredes caiadas. O telhado de telhas de cerâmica reluzia ao sol como marcas deixadas na areia pelas ondas, e várias construções secundárias distribuíam-se ao redor de um amplo pátio tomado por pés de lavanda selvagens e ladeado por enormes vasos de barro rachados. Era de tirar o fôlego por sua simplicidade crua e, do ponto de vista de Venetia, transbordava de potencial. - Então, é isto aqui - disse Jack com orgulho indisfarçado. - Eu sei que você deve estar exausta, mas se importa de ter vindo aqui primeiro, antes do hotel? É que já são quatro horas. Eu queria que você visse antes do pôr-do-sol. Ela desceu do carro, seus mocassins Tod's levantando uma nuvem de poeira cor de açafrão no chão de terra. O sol batia com tanta força em sua testa que ela precisou tirar o lenço do pescoço para enxugar gotas de suor. - Não, está ótimo. Eu quero ver o máximo possível com luz natural - disse ela, caminhando na direção da casa principal, absorvendo cada detalhe com os olhos enquanto avançava. Uma boa parte do trabalho estrutural já estava pronta, mas a casa ainda era apenas uma concha. As paredes mal estavam rebocadas, os pisos eram somente uma série de tábuas, mas a antiga torre, completa com um sino centenário, tinha sido recuperada, boa parte do trabalho em madeira original tinha sido restaurado e as paredes de tijolos haviam retomado suas antigas glórias. Até mesmo o ar tinha um cheiro doce de jasmim.


Ela pegou sua câmera digital Nikon e começou a tirar fotos feito louca, inclusive dos tetos, onde vigas rústicas de mogno se estendiam por todo O telhado elevado. Uma enorme prensa de azeite de oliva erguia-se impressionante no átrio. Venetia atravessou uma porta envidraçada que ainda não fora restaurada e entrou em um amplo terraço que dava vista para o vale castigado pelo sol. Assustador, lindo, atemporal. Olhando para aquela paisagem, ela era capaz de se colocar no lugar de um heroína de faroeste italiano ou de uma cigana andaluz. Este é o tipo de lugar em que a gente pode se reinventar, pensou, deixando a imaginação correr solta. Jonathon jamais se mudaria para um lugar como este, concluiu de repente, com tristeza. Mas mudar-se para um lugar como este não tinha nada a ver com dinheiro: tinha a ver com espírito, com aventura. Ao ouvir o avanço lento de passos atrás dela, virou-se. - Então, o que achou? - Adorei - disse ela com suavidade, os olhos fixos na tela da cârnera digital. Ela voltou para dentro da casa com a cabeça cheia de idéias a respeito de como dar vida nova àquele lugar estonteante. - Siga-me. À medida que iam percorrendo cada cômodo, os olhos de Venetia se fixavam na construção, no piso, na luz; ela falava com Jack, mas não olhava para ele. - Com que frequência você pretende vir para cá? - perguntou ela quando chegaram a um espaço enorme que ela imediatamente visualizou como a sala principal. - Ainda não sei. Talvez até nove meses por ano. - O que você vai fazer? Trabalhar, relaxar, receber visitas? - Um pouco de cada - disse ele sorrindo. - O que eu quero mesmo fazer algum dia é abrir uma escola de arte para onde um punhado de gente possa vir para pintar e aproveitar o sítio. Um tipo de pousada artística, acho. - Não tem nada a ver com publicidade - disse ela, depois ficou se perguntando se aquilo não saíra em tom cínico. - Esse é o plano. Sempre foi. Trabalhar até não poder mais durante vinte anos e depois me aposentar. Venetia passou as mãos pela parede como um escultor, sentindo cada irregularidade e rachadura, batendo no reboco como se estivesse em busca de vida. - Casado? - perguntou ela, evitando o olhar dele deliberadamente. - Separado. O divórcio deve sair assim que resolvermos as questões financeiras. Como você pode imaginar, isso fica um pouco complicado quando se acaba de vender uma empresa própria. Venetia teve certeza de sentir uma corrente elétrica percorrer seu corpo quando ele proferiu a palavra "separado". Tentou reprimir a sensação imediatamente. - Então, não é amigável? - Ela fugiu com o personal trainer dela - disse ele lentamente. - O clichê. - Filhos? - Três meninas. - Que idade? - Sete, 9 e 12. - Ele olhou para ela com um ar zombeteiro. - Ei, o que é isto? Algum tipo de questionário? Venetia sentou-se em uma pilha de tábuas no canto da sala e ficou alisando o jeans enquanto tentava adotar a expressão de alguém que não se abalara nem um pouco com a informação que acabara de receber. A verdade era que ela já conhecia as respostas para as


perguntas que fizera a Jack. Antes da viagem, não resistira a fazer uma pesquisa no Google sobre ele: lera todas as entrevistas recentes que ele dera à imprensa especializada. Ficara envergonhada com a quantidade de informação que conseguira acumular, mas aquilo certamente lhe dera uma noção mais clara do homem à sua frente. A imagem que ele escolhera para si, de um sujeito comum que havia se dado bem, causava boa impressão, mas era só fachada: o sotaque descontraído, as roupas esportivas, a atitude ousada e ao mesmo tempo brincalhona. Tudo bem, ele tinha começado sua agência do nada, mas ele vinha de um lugar parecido com o dela. O pai dele era um rico proprietário de terras de Shropshire e sua infância tinha sido complicada: fora expulso da escola particular por fumar maconha e perdera a mãe quando adolescente. Ela também achava que o ímpeto de ser bem-sucedido de Jack derivava de razões parecidas com as dela. - Jack, eu normalmente não me interessaria pela sua vida particular. Mas é assim que eu trabalho - respondeu ela com o maior profissionalismo possível. - Por isso, preciso saber como você quer morar neste lugar e preciso conhecer o seu estilo de vida para que possamos cuidar desta casa do jeito que ela merece. Os olhos dele brincaram com os dela. - Então, o fato de eu ter uma filha de 7 anos significa que nem todo quarto terá vidros, metais cromados e banheiras de hidromassagem? Ela ficou preocupada com o flerte na voz dele. - Algo nessa linha, Jack. De qualquer forma, não sei muito bem se pilhas de vidro e quinas cairiam bem aqui. - Então, o que cairia bem? Não é para isso que estou lhe pagando? Forçando-se a retomar ao modo profissional absoluto, ela virou a cabeça para olhar para ele. - Este lugar tem um charme incrivelmente dissimulado. - Um pouco como o proprietário? - perguntou Jack. Ela o ignorou de propósito. - Este lugar tem charme, e é com isso que eu quero trabalhar. - Jonathon! Não achei que você ligaria. - Venetia sentiu-se agitada ao atender o telefone em seu quarto de hotel, ao mesmo tempo que tentava aplicar uma camada de gloss sobre os lábios. - Agora eu não tenho mais permissão para ligar para a minha esposa? - Ele estava tentando repreendê-la, mas ela pôde detectar a insatisfação em sua voz. - Claro que pode. - O que você está fazendo? Passeando pela cidade? Ela deu uma risada nervosa. - Aqui não é exatamente o Soho. - Ela olhou para o relógio e ficou ansiosa por perceber que devia ter se encontrado com Jack no lobby mais de vinte minutos antes. - Mesmo assim, Nina e eu estávamos de saída para jantar. Ela sentiu o sangue fluir para suas bochechas instantaneamente. E se ele tivesse dado uma passada no escritório ou tivesse visto Nina na rua? - Na verdade, liguei para dizer que acho que vou para Genebra no fim de semana - disse Jonathon. - Sinto muito. - Mas temos reserva para Babington House. - O seu passeio ao spa vai ter que esperar - disse ele com firmeza. - Eu também preciso trabalhar, sabe como é.


Ouviu-se uma batida à porta. Ela ignorou, mas a pessoa insistiu. - Olhe, eu preciso ir... - É Nina? Será que ele estava caçoando dela?, pensou, ansiosa, a pontada de paranóia retomando. - É - murmurou ela baixinho no bocal. - Preciso ir. Já estarei de volta amanhã quando você chegar em casa para jantar. Jack estava apoiado no batente da porta quando ela a abriu. Ele tinha colocado uma calça cor de creme e uma camiseta preta e, apesar de só terem passado umas duas horas no sol naquele dia, dava para ver sardinhas cor de café com leite salpicadas em seu nariz. Ela ficou acanhada de sentir um frio no estômago. - Achei que você tinha me dado o cano - disse Jack. - Agora, vamos. Não é possível vir até esta parte do mundo e não viver uma verdadeira noite andaluz. Entraram no 4x4, que Jack conduziu cada vez mais alto, montanha acima. Quando o céu escureceu e a noite foi se fechando, Venetia sentiu uma estranha onda de liberdade. Ela estava se divertindo de verdade. Jack era ótima companhia, não faltava papo entre os dois e ela se viu dando risada e fazendo piada. As conversas com Jonathon eram tão sombrias que às vezes ela duvidava de ter qualquer senso de humor em si. Mas naquela noite ela se sentia inteligente, engraçada e interessante; sentia ser alguém que valia a pena escutar. Naquela noite, ela se sentia o centro das atenções. Perguntou a si mesma se era assim que Serena se sentia em todos os momentos de sua vida. Dando uma olhada no perfil bonito de Jack enquanto ele se concentrava em curvas e desvios, ela se pegou pensando por que não estava mais se sentindo culpada. Parecia que quanto mais se embrenhavam no interior da Espanha, mais afastada de sua vida em Londres ela se sentia. Era uma sensação de liberdade. Finalmente, pararam diante de uma construção compacta de pedra, envolta na escuridão da montanha. Havia lâmpadas coloridas penduradas em cordões nas janelas e pelo menos quarenta carros (caminhonetes amassadas, calhambeques velhos e até um trator) estavam estacionados em um terreno adjunto. - Onde estamos? - No melhor lugar para se ver uma apresentação de flamenco em um raio de uns 160 quilômetros. Jack conduziu-a para dentro cheio de autoconfiança, com sorrisos e cumprimentos com a cabeça que mostravam que ele conhecia os locais, que viravam copos de cerveja no bar. Sentaram-se a uma mesa próxima a um pequeno palco elevado, onde pratos de tapas foram colocados diante deles: chouriço com molho de pimentão vermelho, cogumelos nadando em óleo e alho, fritadas fumegantes com pimentões verdes e vermelhos. Estavam engolindo aquilo tudo com uma grande jarra de sangria quando um homem magro com calça justa subiu ao palco com um violão. Seu cabelo preto e curto brilhava como uma coroa de couro envernizado enquanto ele observava uma moça muito bonita, de pele morena, serpentear por entre os presentes em direção ao palco. Ela tinha cabelo farto e bem preto; seu corpo firme, com cinturinha de vespa, apertava-se em um vestido de cetim preto e escarlate, e ela caminhava como uma tigresa. A música começou lenta, em dedilhados longos e nítidos das cordas do violão; a dançarina acompanhava o ritmo lento e sensual com movimentos do quadril. - Esta mulher é fantástica - sussurrou Jack, encostando na ponta do joelho de Venetia. À medida que o som ia enchendo o salão, o corpo da dançarina de flamenco se movimentava com maior dramaticidade: aquilo tinha um toque de balé e era gracioso, mas era algo tão


poderoso que assumia um caráter quase animal. Agora a música tinha se transformado em um frenesi, e a dançarina, como se estivesse hipnotizada, deslizava pelo piso de madeira do palco, as curvas e as linhas de seu corpo capturando toda a atenção da platéia. Quando terminou, Venetia sentia o corpo todo pulsando de energia bruta. - Acho que, depois disso, preciso tomar um ar fresco - disse ela, rindo. Neste exato momento um homem com um bigodão branco se aproximou da mesa para cumprimentar Jack. Sem querer interromper, Venetia retirou-se do salão enfumaçado. O silêncio do ar externo quase fez sua cabeça zunir, e ela se afastou do bar até chegar à última fileira de carros. Venetia ergueu os olhos para o céu. Ela nunca tinha visto o céu assim tão escuro, como o preto puro da tinta de impressão. Tentou enxergar figuras nas formações de estrelas: um cachorro, um urso, o rosto de Jack... - Venetia! Ela se voltou para ele com rapidez, bem a tempo de ver Jack se projetando para frente e agarrando a manga de seu vestido. - Tome cuidado - disse ele em tom suave. - Cuidado onde pisa, não caia da beira do penhasco. Seria terrível perdê-la. Mesmo no escuro, ela pôde ver o brilho nos olhos dele. Como a sangria e o calor da música ainda enchiam sua cabeça, ela se permitiu chegar mais perto dele. Tentou dizer a si mesma que era só porque estava muito bêbada, mas a sensação de seus mamilos enrijecendo lhe mostrava que era tesão puro, algo bastante desconhecido para ela. - Vou tomar cuidado. - Tudo bem com você? Virei de costas um segundo e você tinha sumido. Ela sorriu. - Não entre em pânico. Eu continuo aqui. Seus olhos miraram o vale escuro como breu e Jack chegou ainda mais perto dela. - Ouça. Consegue escutar? - perguntou ela. - O silêncio. - Adoro o fato de você ser capaz de escutar o silêncio - sorriu Jack. - Seria simplesmente fantástico viver em um lugar assim. Sem barulho, sem problemas. Ah, meu Deus - ela sorriu. - Olhe só para os meus devaneios. Estou um pouco bêbada. - É uma bêbada de educação impecável - disse Jack. Apesar da calma, ela começou a se sentir irrequieta, perturbada com a presença de Jack em cima de seu ombro. - Acho que deveríamos voltar - Venetia disse, abruptamente. Ele a olhou bem nos olhos. - Tudo bem, se é isso mesmo que deseja. Uma vozinha interior a alertava que estava sendo seduzida. Aquele sujeito era publicitário! Um sedutor profissional. É só levar a decoradora para o seu retiro espanhol para conseguir todos os serviços extras de graça. Ele deu dois passos na direção dela e colocou dois dedos embaixo de seu queixo. - É o que você deseja? - sussurrou ele. Mas a resistência dela se enfraqueceu até virar quase nada. O ar estava tão carregado que Venetia tinha certeza de que iluminaria o vale todo. As pálpebras de seus olhos se fecharam por instinto quando os lábios dele se aproximaram dos dela. - Não, não quero voltar - sussurrou ela. Jack agarrou sua nuca e puxou-a para mais perto, embrenhando as mãos em seus cabelos. - Não pare - implorou ela, sentindo cada instinto sexual em seu corpo sendo despertado de seu estado de dormência. Jack conduziu-a com gentileza até encostá-la na traseira de uma


caminhonete amassada, sem saber se o dono estava por perto ou sem se importar com isso. Suas mãos subiram cada vez mais pelas pernas dela, embaixo do vestido, até que as pontas dos dedos chegaram à parte interna da coxa. Ao ouvi-la engolir em seco, seus polegares deslizaram para dentro da calcinha e puxaram até que a peça de algodão macio escorregou pelos quadris de Venetia na direção do chão. Ela continuava vagamente ciente de que deveria parar com aquilo, mas sentia-se incapaz de fazer qualquer coisa além de puxá-lo mais para perto. Abriu o zíper dele e, totalmente excitada, guiou seu pau pulsante na direção dela. Jack lambeu a ponta dos dedos antes de acariciar as dobras macias dentro dela, mas Venetia não precisava de ajuda para ficar molhada. Depois de meses de frieza de Jonathon e de sessões intermináveis de sexo rotineiro em nome da concepção, que a deixara sentindo-se vazia e inútil, ela finalmente se sentia madura, uma mulher sexualmente pronta para explodir. - Por favor, agora - gemeu ela na curva do pescoço dele, e Jack agarrou sua bunda com mãos firmes e colocou-a em cima do capô da caminhonete. Ela sentiu uma brisa fria nos pêlos púbicos expostos ao abrir as pernas e apoiar os pés no pára-choque. Jack largou todo o peso do corpo em cima dela, metendo seu bastão na quentura dela bem devagar e com tanta doçura que Venetia precisou morder o lábio para segurar um grito de prazer. Os dois se movimentavam juntos, lentamente, com intensidade. Ela sentia o capô do carro ceder de leve sob as estocadas ritmadas do corpo dele. Venetia sentiu o início dos espasmos bem no fundo de si quando Jack acelerou o ritmo. Todas as sensações estavam acentuadas: seu estômago fazia um nó, sua pele formigava, seu clitóris parecia tão inchado de prazer que ela achou que ia desmaiar. Gozou com toda a força quando Jack explodiu dentro dela, desabando imediatamente em cima do metal morno do capô enquanto o sumo quente dele escorria por suas coxas. Não disseram nada. Jack pousou a cabeça nos montes de seus seios enquanto ela esperava ser tomada pela culpa. Mas a culpa não veio. - Caramba, você acordou cedo. São só sete e meia - resmungou Cate, arrastando-se para a cozinha com o cabelo todo amassado e um sorrisinho cínico sonolento no rosto. Serena estava no balcão da cozinha tomando café-da-manhã, bebericando um copo de suco de grapefruit e mordiscando um bagel torrado coberto de mel. Com uma calça preta sob medida Dolce, uma camisa branca bem engomada e sapatilhas baixas, aquele era um visual que Cate raramente via em Serena. Qualquer traço do lado meigo de Serena que ela tivesse visto na noite anterior desaparecera; agora parecia que ela tinha um objetivo em mente. Serena pegou sua bolsa Birkin marrom e tirou lá de dentro um caderninho em que rabiscou uma série de números. - É aqui que vou estar nos próximos dias - disse, em tom profissional. - O estúdio reservou um quarto para mim no Eden Roc, mas eu provavelmente vou ficar na mansão de Michae1. Pode tentar nos dois. Ela olhou para o relógio e descartou o bagel. - Bom, meu carro deve chegar a qualquer momento - disse ela, deslocando-se até a janela e espiando através das persianas. - Não sei bem onde fica o campo de pouso e decolagem Farnborough, mas meu amigo Elmore disse que me daria uma carona até Nice no jatinho dele se eu chegasse lá até as nove. Ele tem casa lá. Cate serviu-se de café da cafeteira e esfregou os olhos sonolentos. - Achei que você só iria para Cannes na quarta-feira, não?


- Boba - suspirou Serena. - Para o caso de você ter se esquecido das revelações de ontem à noite, preciso resolver algumas questões. Não adianta nada ficar em Londres fazendo compras. - Mas e as suas reuniões... ? - Todo o resto pode esperar - disse ela, ríspida, com uma eficiência do tipo "vamos tomar as providências cabíveis" que Cate não reconheceu. - Depois eu digo como foi tudo. - Mas, Serena... - Ah, o carro chegou - disse ela, toda alegre, já à porta. - Agora, vamos lá resolver a minha vida. Elmore Bryant, estrela do rock envelhecida, bicha histérica e o mais novo Melhor Amigo de Serena depois que sua relação com Roman LeFey azedara, era uma companhia bemhumorada, que lhe serviu de distração no trajeto de oitenta minutos até Nice. Seu cardápio de bordo era luxuoso, mas um perigo para uma mulher grávida, pensou Serena, recusando os bolinhos de camarão e o fluxo contínuo de cosmopolitans trazidos pelo belo comissário de bordo com traços marcantes. Além do mais, com as ondas de enjôo que estava sentindo, principalmente depois que decolaram, a última coisa que ela queria era comer. Generoso até não poder mais, Elmore tinha providenciado um Bentley branco para pegá-la na pista de pouso e levá-la para onde quisesse ir na Côte D'Azur. Quando chegaram ao terminal, Elmore ergueu os óculos escuros incrustados de diamantes e lançou-lhe um olhar penetrante ao se despedirem. - Foi uma viagem curta mas adorável, amorzinho. É sempre um prazer vê-la. Agora, lembre-se - acrescentou ele em tom agourento -, se acontecer alguma coisa e você precisar de um lugar para ficar enquanto estiver aqui... Alguém para conversar? Serena ficou se perguntando se telepatia era um dos vários talentos de Elmore. Ela lhe deu beijos nas bochechas e entrou no carro. - Vou me lembrar disso. O trânsito estava péssimo e eles avançavam a passo de lesma pela estrada litorânea a caminho de Cannes. No céu, os helicópteros que faziam a ponte aérea Nice-Cannes zumbiam como vespas vermelhas. Ela se afundou no assento de couro cor de creme e ficou imaginando como daria a notícia a Michael. Não havia uma maneira fácil de contar; simplesmente teria que ser direta. Para sua surpresa, viu sua mente deslocando-se para vestidos de noiva. Carolina Herrera poderia criar algo maravilhoso: elegante, atemporal, lindo. Mas, bem, John Galliano tinha um toque mágico. Ela não teria os ornamentos cor-derosa do vestido de noiva que ele fizera para Gwen Stefani, mas uma fantasia maravilhosa da Dior em tule e seda duquesa poderia ser o vestido de casamento da década... Cannes estava absolutamente lotada, observou Serena, apertando o nariz contra o vidro fumê da janela. Barreiras de contenção ladeavam a Croisette, turistas enxeridos apontavam câmeras para cada aglomeração de pessoas e a entrada dos principais hotéis - Carlton, Majestic, Martinez - estava vigiada por seguranças cuja única função era impedir que a confusão penetrasse nos lobbys glamourosos. Graças a Deus ela ficaria em um lugar mais civilizado, pensou Serena, dando ao motorista as instruções para chegar à mansão de Michael. O porto, próximo à parte antiga de Cannes, também estava mais movimentado do que ela jamais vira, abarrotado de iates luxuosos, com fileiras e mais fileiras de pintura cor de creme e nogueira brilhando sob o sol forte. Ao passar por ali, ficou se perguntando se Michael estaria a bordo de sua embarcação de cem pés, Pandara. Conferiu o horário:


11h45. Não, cedo demais. Ele geralmente subia a bordo por volta da uma hora para almoçar, fazer uma ou outra reunião e observar o circo da Croisette da segurança do mar. O carro ia subindo pelas encostas íngremes que ficavam atrás da cidade de Cannes e as ruas iam ficando cada vez mais tranquilas à medida que avançavam. Desta vez, a mansão de que se aproximavam não era realmente de propriedade de Michael: ele apenas a alugara para a temporada. O império imobiliário Sarkis ainda não tinha alcançado a Côte D'Azur, embora esta fosse uma das razões por que ele havia resolvido permanecer um período extenso na área. Sim, Michael adorava o brilho, o glamour e as festas tanto do festival de cinema quanto do grande prêmio de Fórmula 1, que aconteceria no fim de semana seguinte em Mônaco, mas na verdade estava ali a negócios. Para ganhar dinheiro. Ele tinha ouvido dizer que uma grande mansão belle époque que pertencia a alguma senhora de sociedade estava à venda depois de sua morte recente - e, segundo os boatos, suspeita -, e Michael a desejava. Ele queria estabelecer um hotel Sarkis na Côte D'Azur para rivalizar com lendas do sul da França como o Ou Cap e o Grand Cap Ferrat. E até o final daquela quinzena, havia se gabado para Serena, a propriedade seria sua. Grandes portões de ferro batido e muros de três metros de altura cobertos por trepadeiras de buganvília rodeavam a casa temporária de Michael. Serena recebera o código de segurança, gesto que a comovera, e digitou o número no teclado do portão. Como queria entrar em grande estilo, ela dispensou o Bentleye atravessou os portões a pé, passando pela fileira de palmeiras e dirigindo-se para a casa, enquanto admirava o imenso telhado de cerâmica, o trabalho em tijolo cor-de-rosa mediterrâneo e as sacadas cheias de floreiras com flores rosadas. Sentiu um pequeno arroubo de animação. A porta da frente estava escancarada. Um senhor com o rosto castigado pelo sol e cabelo grisalho desgrenhado varria o hall de entrada em silêncio, levantando poeira no ar quente. Ele deu uma olhada casual em Serena e prosseguiu com suas tarefas como se estivesse em transe. Seus saltos bateram no mármore quando ela entrou, largando a mala no chão com um baque. A casa toda estava em silêncio, com o ar de abandono da manhã seguinte. - Michael! Cheguei! - gritou ela em direção ao topo da escada, desabotoando a camisa e chutando os sapatos para longe. Nada. Então, o som de um aspirador nos fundos da casa. Uma empregada colocou a cabeça por cima do corrimão e simplesmente assentiu, como se estivesse acostumada a ver mulheres desconhecidas perambulando pela mansão de Michael - Estou... à... procura... de... - disse Serena num inglês deliberadamente lento, mas a mulher já tinha sumido. Serena subiu as escadas lentamente, esticando o pescoço em busca de algum sinal de vida. Respirou fundo e, apesar do ar quente de verão, teve certeza de detectar o cheiro pungente de cigarro e álcool. Sua intuição lhe disse que havia algo de errado. Percorreu um longo corredor pé ante pé na direção dos fundos da casa e, ao ouvir um barulho abafado que vinha de trás de uma grande porta de carvalho, empurrou-a com cuidado e enfiou a cabeça para ver o aposento escuro. Era um quarto de dormir enorme. Apesar de ser quase meio-dia, as longas venezianas continuavam fechadas, uma fina fenda de sol cortando o centro do piso, mas havia luz suficiente para fazer Serena perder o fôlego. Na frente dela, havia uma enorme cama com três corpos se remexendo sobre os lençóis de seda amassados. O corpo de Michael estava nu, coberto apenas por uma fina camada reluzente de suor. Seus lábios estavam bem firmes ao redor do mamilo direito de uma ruiva esbelta, cujos seios firmes se apertavam contra seu rosto. Montada nele, uma loira curvilínea se debruçava sobre seu pau, a boca gulosa cobrindo toda a grande circunferência enquanto os dedos de


Michael brincavam com seu clitóris. Era um emaranhado de pernas e braços, uma massa de carne entrelaçada, os gemidos eram fervorosos e passionais; ainda assim, todo mundo ouviu quando Serena engoliu em seco. De repente, a loira se sentou, aprumando a cabeça em um turbilhão de cabelo. Michael ergueu os olhos e seu queixo caiu. Houve um momento em que seus olhos se conectaram com os de Serena na outra ponta do piso de nogueira, mas logo ele se recompôs e estampou um sorrisinho cínico no rosto. Ela sentiu uma onda de náusea e ficou tonta. - Seu nojento, seu traidor... - A voz de Serena destilava raiva enquanto ela dava passos lentos na direção da cama. Michael recostou-se na pilha de travesseiros com uma perna jogada por cima dos lençóis de seda cor de chocolate, a mão morena e peluda ainda acariciando a perna da loira para cima e para baixo. Agora seu rosto era uma máscara de perfeita arrogância. - Serena. Chegou na hora certa. Por que não vem se juntar a nós? - sorriu ele. A ruiva, nua em pêlo, ostentando apenas um piercing no mamilo, deu um sorriso sedutor e ficou acariciando os próprios seios enquanto chamava Serena para entrar na dança. - Três nunca é demais. - E quatro é uma orgia - sibilou Serena, curvando os lábios em um rosnar. - Agora, suas vagabundas imundas, saiam já da cama do meu namorado... Michael continuava recostado como se nada de mais estivesse acontecendo, como se aquela cena fosse rotineira para ele. - Vamos lá, querida. Estamos em Cannes. Aqui é só festa. Ela sacudiu a cabeça lentamente. - Bom, então por que vocês não continuam aí se divertindo? Ela se virou para a porta e lançou um olhar de comiseração para Michael. Ele começou a sair da cama e caminhar para ela, o pau duro na frente como se fosse uma lança de cavaleiro em riste que o conduzia. - Serena, por favor. É só um pouquinho de diversão - disse ele, esticando a mão em um gesto apaziguador. Ela se virou e apontou o dedo para ele com ódio profundo. - Guarde para as suas putas! - falou. E bateu a porta com toda a força.


26 - Encare a coisa da seguinte maneira - disse Elmore Bryant, ajeitando o calção verdegarrafa florido e entrando na piscina. - Foi só um ménage à trois. Alguns desses executivos ricos de verdade gostam de tudo que é merda esquisita; portanto, poderia ter sido pior. Muito pior. - Elmore, você não está ajudando - respondeu Serena, servindo-se da tigela de frutas no terraço da mansão do amigo em Cap Ferrat. - Obviamente, os bilionários não conseguem ficar com o pau dentro das calças, ponto final - prosseguiu seu amigo, abanando a mão coberta de jóias no ar. - Naturalmente, isso me surpreende; tenho certeza de que o deles todos é minúsculo. O que você acha que os leva a ganhar tanto dinheiro, para começo de conversa? Era pequeno? - perguntou Elmore, começando a espalhar água na piscina. - Estamos falando de salsichinha ou de linguição? Serena enfiou as unhas pintadas à francesinha no pêssego que estava segurando, imaginando por um instante que eram os testículos de Michael e que suas unhas perfuravam a pele. - Se você não se importa, eu preferiria não falar a respeito do tamanho do pênis de Michael - respondeu Serena, indignada. - Como quiser - sorriu Elmore com ar brincalhão, chamando o rapazinho da piscina. - Quer um chá Earl Crey? Serena deitou-se na espreguiçadeira virada para o sul no terraço da mansão de Elmore. A casa dava para a baía de St.-Jean-Cap-Ferrat e tinha uma das melhores vistas do sul da França. - Eu mataria por algo mais forte - suspirou ela, ajustando as alças do minúsculo biquíni cor de turquesa. - Bom, na sua condição, mocinha - disse Elmore, assentindo com a cabeça com ar sábio, de modo que os diamantes ao redor de seus óculos de sol brilharam com a luz de fim de tarde. Elmore, é claro, sabia de tudo. Ele sabia que Serena encontrara Michael Sarkis em um ménage à trois com duas vadias siliconadas. Ele sabia que Serena tinha saído correndo da mansão de Sarkis em Cannes e que, na saída, tinha empurrado um vaso de barro pesado da sacada, que caiu bem no pára-brisa da Ferrari vermelha de seu agora ex-namorado. Ele também sabia que Serena estava carregando o filho de Sarkis. Ela não tinha tido escolha além de contar a ele. Ao aparecer em sua mansão apenas algumas horas depois de tê-lo deixado com tanta animação no aeroporto de Cannes, era natural que Elmore tivesse insistido em saber qual era a fonte de sua recente histeria. No começo, Serena não quisera lhe contar nada, mas estava se sentindo vulnerável, sozinha e emotiva. Ao sair da mansão de Michael, ela havia sido tomada por uma sensação muito forte que não experimentava havia muito tempo: solidão. Serena era uma mulher bonita e famosa, desejada no mundo todo, e agora literalmente não tinha para onde ir. Ela havia telefonado imediatamente para sua assistente, Janey Norris, mandando que lhe arrumasse um vôo para voltar para casa o mais rápido possível. Mas estavam no meio do festival de cinema de Cannes, e nem mesmo a eficiência aterrorizante de Janey foi capaz de tirá-la dali antes das 9 horas daquela noite. Ela também não utilizaria sua reserva no Eden Roc: aquele lugar seria como um aquário. Assim, Serena tinha ligado para seu recurso mais próximo, o motorista do Bentley de Elmore Bryant. Ele ainda estava preso no trânsito de La Croisette e voltara às pressas para conduzi-la até o santuário da mansão de Elmore. Em lágrimas, ela fora acomodada por Elmore sob um pagode ornamentado que dava vista para o mar Mediterrâneo, e as palavras e os segredos simplesmente transbordaram.


Elmore obviamente ficou deleitado com todo o drama daquela história, mas, embora fosse um fofoqueiro inveterado, também tinha um coração do tamanho da lua. Ele lhe assegurara que ela poderia ficar ali todo o tempo que quisesse e colocara-a em uma suíte de hóspedes com uma vista deslumbrante para Cap Ferrat. A mansão era um lugar fabuloso para se encolher e se isolar do mundo; de algum modo, ali enrolada nos lençóis de linho bem passadinhos da enorme cama Luís XV do quarto de hóspedes, com o cérebro em um torpor confortável, Serena se sentira um pouquinho melhor. Mas agora, quase 24 horas depois, o choque e a histeria dela (para ser sincera, a dor e a traição) tinham evoluído para algo mais potente: raiva. Bem quando ela achava que as coisas não podiam piorar, sua assessora de imprensa em Nova York, Muffy Beagle, ligou para dizer que os tablóides Sun e Mirrar estavam planejando publicar artigos sobre ela na manhã seguinte. O Sun apresentaria uma entrevista com as duas putas francesas, que, misteriosamente, tinham conseguido contratar os serviços de Charlie Nolan, o relações-públicas fofoqueiro que passara os últimos vinte anos espalhando boatos desse tipo para os tablóides mais sórdidos. E o Mirror tinha conseguido descobrir algo ainda mais prejudicial: sua gravidez. - Simplesmente não sei como descobriram sobre o bebê - lamentou-se Serena, jogando o pêssego no chão do terraço com um baque abafado. - Foi a porra da minha irmã idiota, não foi? - disse ela. - Meu Deus, você acha mesmo que Cate procurou a imprensa? - Ela ergueu os olhos para Elmore, apavorada, considerando aquela ideia apenas por um segundo, antes de perceber a expressão de desaprovação no rosto do amigo. - Não. Acho que não. Mas ela foi idiota o bastante para comprar aquele teste de gravidez. Ela é tão ingênua e egoísta... Foi correndo à farmácia, sem ter a menor consideração pelo impacto que isso poderia ter sobre mim. Tem que ter sido alguém daquela farmácia. Eles devem ficar de olho em celebridades o tempo todo. - Fez uma pausa na torrente frenética de pensamentos por um instante, pensando em todas as possibilidades. - Ou talvez alguns repórteres tenham revirado as latas de lixo dela. Ou talvez tenham grampeado o meu telefone! Não sei. Como é que a imprensa consegue descobrir essas coisas? Parece a porcaria da Mossad! Elmore puxou uma espreguiçadeira para o lado dela e ajeitou as almofadas brancas fofas para se colocar em uma posição mais confortável. - Querida, aconteceu, não adianta mais nada se preocupar. O que você precisa pensar agora é em como minimizar o prejuízo. Serena já tinha tido aquela conversa específica com seu empresário, Stephen Feldman; ela entrara em contato com ele em Nova York assim que descobriu que os jornais estavam a par de sua gravidez. Feldman não apresentara nenhuma solução milagrosa. Agora o aborto estava totalmente fora de questão, dissera. Indignada, ela negara ter chegado a considerar a opção, sentindo o rosto corar de vergonha ao fazê-lo. Na noite anterior, aninhada no quarto de hóspedes de Elmore, ela ficara acordada durante horas, convencendo a si mesma dos benefícios de colocar fim à gravidez. Era realista o bastante para saber que Michael podia, e provavelmente iria, lavar as mãos em relação a ela e à criança. E onde ela ficava sem Sarkis e sem sua carreira? Será que desejava mesmo ser mãe solteira à custa de tudo o mais? Mas, como Feldman ressaltara a seu modo brutalmente objetivo, o aborto seria o melhor plano de ação se a notícia da gravidez ainda não tivesse vazado, mas como já tinha... Bem, fazer um aborto seria cometer suicídio profissional. Para o norte-americano médio, fazer um aborto era quase a mesma coisa que ser um assassino em série. Aliás, era pior. O público norteamericano - qualquer público que ela estivesse tentando seduzir - simplesmente não engoliria.


Serena se recostou, afundou mais na espreguiçadeira e puxou a toalha branca felpuda enrolada em seu corpo até o queixo, como um cobertorzinho de segurança. Tão magoada quanto glamourosa, ela parecia uma cruza entre uma Bond girl e uma menininha solitária. - Você também pode aceitá-lo de volta - disse Elmore, fazendo uma pausa para dar um golinho em seu champanhe Cristal. - Mulheres já perdoaram homens por crimes muito, mas muito piores. E as pessoas enlouquecem um pouco em Cannes. Serena sacudiu a cabeça com violência. Ela sabia que o que estava vivendo não era uma desilusão amorosa. Aquilo parecia distante demais, entorpecente de menos para ser isso. Ela sabia que era cinquenta por cento fúria, cinquenta por cento tormento que vinha com a traição, e era a traição que ela não conseguia suportar. O ego de Serena nunca permitiria que ela perdoasse qualquer um que lhe fosse infiel. Ela era simplesmente vaidosa demais para aceitar que alguém pudesse escolher outra mulher - principalmente uma puta - em detrimento dela, por mais benéfico que isso pudesse ser em longo prazo. - Não quero voltar com ele. Quero cortar o saco dele fora - disse ela, a voz impassível. Elmore lançou um olhar de viés para ela e sorriu. - Existe mais uma maneira de pelar um rato, querida. Atinja-o onde dói mais. Na carteira. - Não quero o dinheiro daquele cafajeste. Não quero nada dele, a não ser, talvez, sua cabeça em cima de uma bandeja. - Não seja teimosa. - Estou falando sério. Não quero nem um centavo do dinheiro dele. - O orgulho vem antes da queda, querida - disse seu anfitrião com sapiência. - Pode ficar com a sua filosofia barata, Elmore, querido. Não quero nada dele. Michael Sarkis pode apodrecer no inferno.


27 Serena ficou na mansão de Elmore até o final da semana. Elmore tinha proibido deliberadamente que qualquer jornal entrasse na casa, e quando as irmãs dela ligaram freneticamente para saber com ela estava, pediu-lhes veementemente que não lhe revelassem o impacto total da notícia. Esse prazer foi dado à assessora de imprensa de Serena, Muffy Beagle, que insistira em colocá-la a par de tudo. Todos os tablóides do Reino Unido tinham pegado pesado com a história durante dois dias. Apenas o surgimento de fotos de uma supermodelo fumando um cachimbo de crack e um caso entre dois ministros do governo haviam relegado a notícia para a página 11 no terceiro dia. O fato de as putas não terem muito o que dizer para ilustrar a situação também havia ajudado. Uma delas aumentara o incidente de Serena ter derrubado o vaso em cima da Ferrari de Michael afirmando que ela tinha cortado os pneus, mas, como Muffy observou, Fleet Street teria se apegado à notícia durante mais tempo se Michael fosse britânico e tão famoso quanto, digamos, Tom Archer. A notícia da gravidez de fato tinha causado metros de textos solidários em colunas de jornais para Serena, com inúmeros colunistas cínicos discursando a respeito das dificuldades que as mães solteiras enfrentam, por mais ricas e famosas que sejam. Para Serena, no entanto, a comiseração era pior do que as putas. Ela detestava se ver como vítima em qualquer situação, mas como Stephen Feldman tinha dito, esta era exatamente a maneira certa de jogar o joguinho da imprensa. Stephen sabia muito bem que a imagem dela em seu país natal era glamourosa, mas que ela tinha fama de ser uma pessoa difícil, e que este episódio todo poderia ajudar a suavizar bastante sua imagem. Ela poderia selecionar alguns poucos programas de entrevistas de que participar dos dois lados do Atlântico, decidira Feldman. Quem sabe assim Oprah e a Vanity Fair se interessavam... Por mais tentador que fosse permanecer na mansão de Elmore indefinidamente, o lado prático e ambicioso de Serena sabia que precisava voltar a Londres para colocar a vida nos eixos. Londres primeiro, depois Nova York, corrigiu a si mesma, sem disposição para se arriscar no território de Michael por enquanto. De todo modo, havia algumas questões urgentes que precisavam ser resolvidas de imediato: especificamente, a renovação de seu contrato com a Jolie Cosmetics. O agente dela não se importava nem um pouco de tratar das negociações, mas Serena ainda achava que era boa ideia fazer uma visitinha pessoal ao executivo-chefe da marca em Londres, Sidney Parker, raciocinando que ela deveria contar seu lado da notícia cara a cara e seduzi-lo a assinar mais um contrato lucrativo. - Bom, você parece ótima - disse Venetia, esticando as mãos para abraçar Serena. Ela havia acabado de passar rapidamente pela alfândega, depois de o jatinho de Elmore a ter deixado na pequena pista do aeroporto de Luton. A irmã mais velha fizera questão de ir buscá-la e Serena ficou bastante contente por continuar tendo alguém para cuidar dela. - Posso garantir que não estou me sentindo assim - disse Serena, abraçando Venetia e tremendo de maneira dramática para enfatizar a afirmação. - Eu sabia que tinha alguma coisa naquele homem que eu não gostei em Mustique - disse Venetia, entrelaçando o braço no de Serena e conduzindo-a na direção do BMW 4x4 estacionado bem na frente do pequeno terminal. Serena arqueou uma sobrancelha. - Você poderia ter me enganado - respondeu.


Venetia deixou o comentário passar enquanto se acomodavam no banco de couro cor de creme. - Com homens com dinheiro demais, Sin, a gente precisa se perguntar se toda a confusão vale a pena - disse ela bem baixinho. Serena lançou um olhar de viés para a irmã. Raramente permitia que as nuances mundanas dos relacionamentos dos outros a afetassem, mas era óbvio, até mesmo para Serena, que as coisas não andavam bem entre Venetia e o marido já fazia algum tempo. A vibração da irmã diminuíra visivelmente desde o casamento, quase dois anos antes. Venetia nunca tinha sido uma pessoa muito segura, mas estava claro que a vida com Jonathon, por mais rico e bem relacionado que ele fosse, não surtira efeito positivo sobre a auto-estima da irmã. Mas agora havia algo diferente no ar. Roubando um vislumbre do perfil de Venetia, Serena reparou que sua pele estava mais corada e bronzeada do que o normal e que seus olhos tinham um brilho que ela não via fazia muito tempo. - Preciso dizer que você também me parece muito bem - disse Serena, em busca de informações. - Você esteve na Espanha, não esteve? – Venetia tinha virado a chave na ignição e seus olhos estavam fixos à frente através do pára-brisa, mas Serena viu o rubor rosado que tomou conta das bochechas da irmã. Ela simplesmente assentiu com a cabeça. Serena percebeu que Venetia não queria falar sobre aquele assunto; apesar de ser louca por uma fofoca, não estava no clima de se esforçar muito para obter informação. Em vez disso, começou a remexer em sua bolsa Chloé, em busca de seu Blackberry. Tinha uma profusão de recados e e-mails. Desligou o aparelho com a mesma rapidez que havia ligado. Aquilo já serviu como distração suficiente para que a atenção de Serena se voltasse novamente para si mesma. - Então, parece que eu vou ficar na sua casa, certo? - disse Serena, brincando com os botões do ar-condicionado no painel de nogueira como uma criança desatenta. - Se estiver tudo bem para você... - sorriu Venetia. - Não quero nenhum quartinho vagabundo, querida. Gosto daquele que tem closet, Agora, vamos lá, pise fundo, vamos logo para Londres. Apesar de ter nascido em Chicago, Sidney Parker, executivo-chefe da Jolie Cosmetics, passava nove meses por ano em uma casa espaçosa, de seis andares e com fachada de estuque em Eaton Square, por causa de sua esposa inglesa e bem mais nova, Lysette. A senhora Parker era uma loira de farmácia, ex-garçonete, que tinha ido atrás de uma vida melhor com muita determinação desde muito jovem. Em outra vida, Lysette teria sido política ou gângster. Sua mistura altamente equilibrada de ambição implacável com a capacidade camaleônica de seduzir pessoas importantes renderalhe Sidney Parker como prêmio, mas Lysette não parara por aí: estabeleceu-se rapidamente como jogadora social temida e festejada, cuja opinião e bênção eram altamente valorizadas. Se Lysette Parker não comparecesse a um evento beneficente ou não confirmasse presença em uma festa, então o organizador em questão estava morto para a sociedade londrina. Felizmente para Serena, Lysette sempre admirara as lindas irmãs Balcon. Durante sua campanha para abocanhar um marido rico, Lysette devorara a revista Tatler, tornando-se íntima das pessoas que agitavam a cena social e das famílias aristocráticas importantes que apareciam em suas páginas. Serena era tudo o que Lysette havia desejado ser duas décadas antes, durante sua infância em Lewisham, e fora Lysette que convencera o marido a transformar Serena no rosto europeu da Jolie Cosmetics. Educada, privilegiada e


ridiculamente bonita, ela sabia que Serena incorporava aquela fantasia da Rosa Inglesa que tantas garotas britânicas alimentavam em segredo. Sidney teria preferido escolher alguma top model como a garota da Jolie Cosmetics três anos antes, mas ele respeitava o ponto de vista astuto da mulher sobre os negócios e, como se comprovou, a intuição de Lysette estava correta. Nos seis meses que se seguiram à estréia de Serena como o rosto da Jolie, os lucros gerais cresceram 63 por cento e a percepção da marca passou de uma indústria de cosméticos antiquada e tradicional da Europa para algo muito mais fresco, moderno e glamouroso. Na tentativa de fazer um biquinho tão carnudo quanto o de Serena, mulheres dos 15 aos 50 anos procuravam os brilhos labiais em tom de ameixa e pêssego, enquanto as vendas dos produtos de cuidados com a pele triplicaram com as clientes que desejavam ter a tez perfeita de Serena. Serena não sabia, mas devia mais à família Parker do que se dava conta. Com um aceno, Venetia deixou Serena na escadinha que conduzia à enorme porta azulescura da casa de Sidney e Lysette Parker. Era raro Serena ficar nervosa, mas sentiu um friozinho na barriga quando tocou a campainha. Ela normalmente ficava animadíssima com reuniões como aquela, mas só fazia seis dias que o escândalo sobre sua gravidez e Michael Sarkis fora divulgado pelos jornais, e era impossível saber como Sidney encararia a questão. Com isso em mente, ela se vestira para causar furor. Um glamour virginal, sorriu para si mesma: um vestido Chloé bufante cor de creme, sapatilhas baixas douradas, um pouco de blush Jolie nas bochechas. Ela sabia que era a decisão correta fazer uma visita a Sidney com tanta rapidez. Preferia que ele ouvisse os fatos de sua própria boca, em vez de ter os tablóides como fonte de informação. E, de todo modo, o contrato precisava ser fechado o mais rápido possível: com a venda da casa em Cheyne WaIk e a volta para Nova York temporariamente fora de questão, Serena precisava encontrar algum lugar para morar com rapidez... e precisava avaliar o tamanho do contrato antes de tomar qualquer decisão. Uma empregada filipina com uniforme cinza abriu a porta e fez com que Serena entrasse. Um homem alto e robusto de uns 60 anos, vestido com um terno impecável azul-marinho, veio cumprimentá-la no corredor. Sidney, que obviamente fora um homem bonito, tinha aquele tipo de pele enrugada que de algum modo parecia mais limpa e reluzente devido ao seu tom claro de mogno. Cabelo grisalho penteado para trás e óculos dourados de aro fino empoleirado sobre o nariz longo e firme completavam o visual cosmopolita. - Sidney, como vai? - disse Serena, pegando na mão dele e dando-lhe beijinhos nas bochechas. - Ótimo. E você está maravilhosa - respondeu ele, com um sorriso benevolente. - Vamos para o escritório. Ah, Joyce? - disse ele, dirigindo-se para a empregada. - Pode providenciar um chá para nós? Atravessaram a biblioteca ornamentada em silêncio. Era um aposento formal, forrado de papel de parede flocado refinado, painéis de nogueira e prateleiras de livros separados por cor. Aquele lugar lembrava-lhe vagamente o escritório do pai em Huntsford, só que era mais bem-acabado, como uma fantasia criada por Ralph Lauren de como deve ser a biblioteca de um cavalheiro inglês. A sensação de tradição enfraquecia-se ainda mais com as enormes fotografias de mulheres bonitas penduradas nas paredes: retratos de todas as portavozes da Jolie. Serena estava ao lado de Kelly Sanders, uma modelo ruiva estonteante do Texas, que se tomara apresentadora de televisão e era o rosto da Jolie para a América do


Norte, e ao lado delas estava Bay Ling, a modelo chinesa badalada que era a porta-voz no mercado de cosméticos em expansão do Extremo Oriente. Sidney sentou-se atrás de sua enorme mesa de trabalho e se afundou na cadeira, brincando com uma caneta Mont Blanc dourada enquanto Joyce entrava em silêncio e colocava uma bandeja prateada de chá em cima da mesa. Serena fez uma pausa para examinar o aposento. Nunca tinha entrado no escritório; geralmente, quando se encontrava com Sydney, tomavam drinques na sala. Talvez Lysette estivesse recebendo visitas em outro cômodo da casa. - Fico contente por você ter vindo falar comigo com tanta rapidez - disse Sidney, entregando a Serena uma xícara de finíssima porcelana chinesa. Ele ainda tinha um leve sotaque americano, apesar de ter se esforçado para se livrar dele em favor de tons britânicos mais sóbrios. - Bom, sei que temos muito sobre o que conversar - Serena sorriu, dobrando a perna comprida e bronzeada por cima da outra. - Como sabe, ultimamente mal tenho estado em Londres, estou morando em Nova York e tudo o mais - disse ela com a voz mais fofa e cantarolada possível. - O que você acha de Bay Ling? - perguntou Sidney repentinamente, acenando na direção da foto da moça. Serena ergueu os olhos para inspecioná-la. Certamente era a oriental com mais cara de ocidental que ela já vira. A pele era levemente bronzeada em vez de amarelada, o cabelo era curto, com o corte que no momento causava furor em Manhattan, Aliás, ela mal parecia chinesa. A estrutura óssea era perfeita, o rosto estava mais para oval do que para redondo, os lábios eram claros e cheios. - Ela é estonteante, não é? - adiantou-se Sidney. - É a primeira supermodelo da China. - É. Bem, a imprensa chama qualquer mulher de pernas compridas de supermodelo hoje em dia - disse Serena, dando uma leve risadinha. Ela percebeu um músculo da testa de Sidney se retrair. - Mas... ela é extremamente linda - completou rapidamente. - Já vendemos 250 mil unidades de brilho labial China Rose - disse ele, balançando a cabeça lentamente de cima para baixo. Serena pegou-se imitando o gesto. - Já esteve em Beijing? - perguntou ele. Esse era o tipo de pergunta que conduzia a uma oferta. Serena sentiu sua ansiedade diminuir. - Não, nunca estive - respondeu ela com sinceridade. - Mas me hospedei no Amanpuri, em Phuket, no último inverno - disse, séria. - Um resort de férias na Tailândia não é exatamente o novo centro de negócios globais do mundo - respondeu Sidney com um tom de desaprovação na voz. As costas de Serena se enrijeceram. - A cidade é inacreditável - disse ele de repente, coçando a lateral do rosto e prosseguindo em tom mais benevolente. - Quando Bay Ling e eu inauguramos a loja de Beijing, há três meses, juro que a fila era do tamanho da Grande Muralha da China! - Ele deu uma leve gargalhada para si mesmo. - Isso faz com que a abertura econômica da Rússia pareça insignificante. A China é o futuro. Serena teve que segurar um suspiro de tédio. Não estava com disposição para uma aula sobre economia global.


- Bom, quem sabe você não providencia uma visita para mim? Eu adoraria ver tudo de perto - sorriu ela e tomou um golinho delicado de chá. – De todo modo, acho que já está na hora de todos os rostos da Jolie se encontrarem - disse, toda generosa. Sidney deu uma risada um pouco forçada. - Mas, bem - disse Sidney, em tom um pouco mais brusco -, acho que estamos aqui para conversar sobre o seu contrato, não? Serena sorriu e voltou a cruzar as pernas. - Só o grosso - sorriu com ar brincalhão. - Os detalhes, podemos deixar para o meu agente. É para isso que eu pago quinze por cento para ele. - Por dentro, Serena tinha calafrios ao pensar no número. Se ela se tomasse o rosto da Jolie para a América do Norte além da Europa, isso significava um acordo de US$ 5 milhões por ano. Quinze por cento disso era... ela não sabia fazer a conta, mas com certeza era muito dinheiro, pensou, de repente sentindo um certo mau humor. Sidney fez uma pausa e movimentou a cadeira de um lado para o outro. - Lysette e eu andamos pensando muito sobre a renovação do seu contrato nestes últimos dias. - Como vai Lysette? - perguntou Serena com um amplo sorriso no rosto. Sidney assentiu com a cabeça. - Muito bem, muito bem mesmo. Como você sabe, eu confio muitíssimo nas opiniões dela a respeito da direção desta empresa. - Ela é uma mulher muito astuta - disse Serena, assentindo com a cabeça em uma atitude prudente. - E é mesmo - concordou Sidney, esfregando o queixo. - Além de ser minha esposa, é a minha linha de comunicação com o público em geral. Ela estava certa quando me convenceu a contratá-la há três anos, e confio na intuição dela a respeito da sua situação agora. Ter se mudado para Nova York para ficar com Michael Sarkis... Serena intrometeu-se, ansiosa. - E não é? - soltou. - Ter me mudado para lá foi a melhor coisa que fiz em anos. Fez meu perfil nos Estados Unidos crescer enormemente. Dá para entender por que você hesitou no começo em fazer de mim o rosto da América do Norte, além da Europa, mas agora as coisas estão bem diferentes. - Ela sorriu. - Não foi isso que eu quis dizer - afirmou Sidney, sem emoção nenhuma. - Ah... - disse Serena. - Então, não sei se... Sidney inclinou-se para a frente sobre a mesa, fazendo as mangas do paletó azul-marinho subirem. - O seu relacionamento com Michael Sarkis foi prejudicial à marca. O sorriso caiu do rosto de Serena. - Bom, como você sem dúvida já deve estar sabendo - apressou-se em dizer Serena, tentando parecer segura e sob controle -, encontrei meu ex-namorado em situação comprometedora em Cannes e terminarei o relacionamento imediatamente. Achei que era a coisa mais responsável a fazer. - E você está grávida - afirmou Sidney com frieza. - Estou - respondeu Serena com certo aborrecimento. - Homens e mulheres envolvidos com frequência concebem crianças. Sidney reclinou a cadeira para trás o máximo possível, parecendo ansioso para colocar a maior distância possível entre os dois.


- Você é uma mulher muito, muito bonita - disse Sidney, com uma sugestão de sorriso no rosto. - Mas nós a escolhemos porque representava certas coisas. Elegância. Classe. Tradição. Esses são valores básicos para a Jolie Cosmetics. - E eu continuo sendo tudo isso - disse Serena, indignada. Sidney deixou que o silêncio tomasse conta do ambiente durante alguns momentos. - Lysette acredita, e eu concordo com ela, que as revelações desta semana mudaram isso de maneira considerável. Parece a maior confusão, Serena. - Não seja ridículo - disse Serena com desdém. - E daí que Michael se revelou um playboy? Eu tomei a atitude mais decente e me livrei dele. Vou ter um bebê. Estamos no século XXI. Muitas crianças são concebidas fora do casamento. - Nós somos uma empresa tradicional - disse Sidney lentamente, dando ênfase a cada palavra. - Você sabe como o Meio-Oeste americano é um mercado conservador. É fundamental para a nossa empresa projetar os valores adequados. - Ele limpou a garganta. Este, humm, ménage à trois, as prostitutas... - Isso significa que eu não vou ficar com a América do Norte? – perguntou Serena, visivelmente perturbada. - Mas nós conversamos... Sidney pareceu ignorá-la. - Como sabe, seu contrato para a Europa está em época de renovação, e neste momento consideramos que não é apropriado renová-lo. Serena começou a sentir a raiva se acumular dentro dela. - Se isto é porque estou grávida, acredito que saiba que existem leis contra esse tipo de coisa. - O seu contrato está no fim e depende unicamente da nossa empresa renová-lo. Ou não completou ele. - Além disso, Bay Ling fez tanto sucesso para nós na China que achamos que pode ser apropriado reforçar seu perfil no Ocidente. Acreditamos que, assim, as vendas crescerão ainda mais no Extremo Oriente. Serena ficou olhando para ele. - Você vai me substituir por ela? - berrou, a voz trêmula e estridente. - Você vende neste país e na Europa toda por causa da minha imagem de Rosa Inglesa! Ela faz sucesso! Por que me substituir por alguém que se parece, que se parece... com alguém que trabalha em um mercadinho de esquina? - divagou. - Já tomamos nossa decisão - interrompeu Sidney com muita calma. - Foi um prazer trabalhar com você nos últimos anos. Lysette e eu gostaríamos de lhe dar este presentinho em sinal do nosso reconhecimento. - Enfiou a mão na gaveta de cima e tirou dali um estojinho de pó compacto Jolie que, pela maneira como ele segurou, parecia ter sido feito de ouro maciço. - Por favor, dê para Bay Ling - disse Serena, reunindo o máximo de dignidade possível. Parece que ela está precisando. Não há necessidade de me acompanhar até a porta. Sidney simplesmente assentiu com a cabeça quando Serena se levantou, abriu o estojinho e olhou para seu reflexo no espelho, tirou uma mancha de chá do dente com o dedo. Então, fechou-o com um dique.


28 Era um dia perfeito para pólo. Possivelmente, os jogadores não tinham a mesma opinião: o sol quente estava bem feroz para uma tarde de fim de maio, mas, acomodada sob a proteção da grande tenda do Clube de Pólo de Staplehurst, Camilla bebericava seu Pimms e pensava que existiam algumas maneiras melhores de se passar um domingo. Observar algumas botinhas de camurça, almoçar bem e ser vista em um dos eventos sociais mais badalados da estação: isso não exigia assim tanto esforço. Ela não apreciava o calendário social exaustivo da mesma maneira que Serena, mas como acabara de ser aceita na lista de candidatos aprovados do Partido Conservador, Camilla sabia que precisava aprimorar seu perfil. Políticos em potencial não precisavam apenas ser vistos e ouvidos; eles tinham de ser vistos nos lugares certos, e o Dia Beneficente Anual de Staplehurst parecia um lugar tão bom quanto qualquer outro para começar. Principalmente porque ela estava ali devido ao convite especial do dono de clube Josh Jackson, baixista da lendária banda de rock Phoenix. - Então, onde ele está? - perguntou Cate, esticando o pescoço para examinar a tenda toda, onde todo mundo, de atores a membros da aristocracia local, virava taças de champanhe e fingia entender de pólo. Apesar de faltarem dois dias para a revista Sand ir para a gráfica, Cate não pôde recusar o convite de Camilla para acompanhá-la ao Dia Beneficente de Staplehurst como convidada do grande Josh Jackson. Além de a música do Phoenix ser um de seus grandes prazeres - ela estudara para o vestibular ouvindo o álbum multiplatinado Albatross -, o baixista era lindo e ela não conseguiu resistir à possibilidade de ser apresentada a ele. Camilla apontou para uma silhueta comprida montada em um cavalo, trotando pelo campo de pólo verde-esmeralda e balançando um taco de madeira com um braço bronzeado e musculoso. - Ali - disse ela. - Ele vai jogar a partida depois do almoço, então não sei se vai comer. - É uma pena - disse Cate, dando um sorriso. - Quer dizer que eu vim até aqui e não vou poder nem dar um oi? As duas estavam em uma mesa com mais oito convidados, de modo que Camilla virou a cabeça para que ninguém a escutasse. - Só vim para ser educada - disse Camilla bem baixinho, para que ninguém pudesse escutar. - Você sabe que eu jamais gostei muito de pólo, mas quando um cliente convida, a gente precisa se esforçar. - Ah, sim - respondeu Cate, com um sorriso cínico. - E por que mesmo Josh convidou você? - Eu o defendi em um processo recentemente. O contador dele tinha desviado mais de três milhões de libras das diversas contas bancárias dele. Foi um caso clássico de fraude. Nós vencemos. Acho que hoje é um agradecimento. - Não, quero saber por que ele a convidou, de verdade - disse Cate, sorrindo, enquanto uma entrada de aspargo com manteiga e limão apareceu à sua frente. O rosto de Camilla se anuviou. - Não sei do que você está falando. - Bom, por acaso é a advogada principal que está aqui ou apenas a linda advogada assistente preferida de Josh? - perguntou Cate, em tom de brincadeira. Camilla tentou parecer chocada. - Certo, a advogada principal dele não está aqui, mas não fique pensando coisas, certo? Eu venci o processo, ele ficou agradecido. Ponto final.


Embora Cate nunca tivesse criticado nenhum dos namorados das irmãs - jamais comentara com Camilla que considerava Nat Montague um desperdício, um grosso e um galinha -, ela ficaria feliz da vida de vê-la com um dos solteiros mais cobiçados do rock. Com seu corpo ereto e vigoroso, a pele morena e os olhos cinzentos inteligentes, era impossível acreditar que Josh Jackson já estivesse se aproximando dos 50 anos. Duas décadas antes, ele tinha trocado o LSD pela ioga, a bebida por uma dieta de desintoxicação e gastara os direitos autorais de suas músicas em uma mansão jacobina; ao mandar construir um campo de pólo e se dedicar ao esporte com tanto gosto, ele dera um significado todo novo à realeza do rock. - Agora vamos dar início às apostas para alguns dos prêmios fabulosos desta tarde. Com o final do almoço, Rich Clark, cantor de rock e sedutor lendário, levantou-se para iniciar a sua representação de leiloeiro. - Sejam generosos. Vocês sabem por que todos estamos aqui. Peguem pesado. Não vamos dar início a nenhum jogo de pólo até que estejamos com pelo menos 100 mil1ibras no bolso. Nosso primeiro lote é um fim de semana para dois no One&Only resort, Le Saint Céran, gentilmente doado pela Viagens Exit. Podemos dar início às apostas em duas mil libras? Um burburinho animado ergueu-se na tenda enquanto as apostas subiam para quatro, 10 mil e depois 20 mil libras, alimentadas pelo sol, pelo champanhe e pela disputa social. Um jantar em casa preparado por Gordon Ramsay saiu por 10 mil libras, duas semanas no Amanpuri renderam 30 mil libras, cinco noites no hotel Copacabana Palace no Rio saíram pela pechincha de 8 mil libras. Camilla examinou o público na tenda ao seu redor e, vendo o ministro do esporte e da cultura, quatro benfeitores conhecidos do partido Tory e dois editores de jornais, chegou à conclusão de que a viagem seria um desperdício se ela não fizesse com que ela própria e sua filantropia se tornassem conhecidas. Ninguém ali saberia que ela já se juntara a um comitê para financiar um abrigo de mulheres espancadas em Notting Hill nem que se inscrevera para corridas de 15 quilômetros por "diversão" em nome da caridade. Ela estava ali para impressionar e, para conseguir esse efeito, era necessário enfiar a mão no bolso. - Um fim de semana em Nova York com hospedagem em uma suíte-loft no Mercer - disse Rich Clark. - Alguém dá 5 mil libras? Camilla sentiu sua mão subir no ar cheia de animação, mas prontamente foi superada por uma oferta de 6 mil. Ela fez um sinal com a cabeça na direção do leiloeiro de novo e Cate puxou sua manga, de brincadeira. - Para que você quer ir de novo a Nova York? - sussurrou ela. - Oito mil para a adorável Camilla Balcon! - disse o leiloeiro oquelro, reconhecendo-a. Quem dá nove? Com o local cada vez mais bêbado, os lances subiram a 15 mil libras enquanto Camilla ia fazendo sinais com a cabeça, feliz por sua participação ter sido notada. Quando o leiloeiro fez um sinal para o fundo da sala e o martelo bateu em 20 mil libras, Camilla soltou um suspiro interno de alívio por aquela tarde não ter sido desnecessariamente cara. - Essa foi por pouco - sorriu Cate, enquanto os convidados começavam a sair para assistir ao pólo. - Sei que você quer se parabenizar por ter entrado na lista dos aprovados, mas existem maneiras mais baratas de ir a Nova York - disse ela, rindo.


Camilla sorriu, entendendo perfeitamente o que a irmã tinha dito. Cate não sabia que ela já se dera uma recompensa: uma visita à Yves Saint Laurent, onde comprara um par de sapatos, uma camisa e uma jaqueta que complementariam à perfeição o guarda-roupa coordenado com precisão de Camilla, um exercício de vestuário contido, porém elegante. - Caramba, não olhe agora, mas adivinhe só quem vem vindo para cá. Josh Jackson caminhava na direção da lateral do campo com sua calça de montaria branca justa, botas pretas de cano alto, joelheiras e camisa pólo nas cores azul-marinho e branco da equipe Jackson. O sol tinha feito surgir sardas na ponte de seu nariz romano, e as ruguinhas de seu rosto se acentuaram quando ele sorriu sob a luz forte. - Senhoritas. Que bom que vieram. Tenho uma partida daqui a um minuto, mas pensei em passar aqui para dar um oi. Cate sorriu, tentando pensar em algo bem-humorado ou interessante para dizer, mas desistiu quando percebeu que o olhar dele estava inteiramente fixado em Camilla. - Bom, é um ótimo dia para isto - gaguejou Cate. Nem Josh nem Camilla pareciam estar cientes da presença de Cate ou de qualquer outra pessoa. Sentindo-se pouco à vontade, como se estivesse se intrometendo em um momento pessoal, Cate balbuciou uma desculpa e saiu na direção do bar. Quando ela se afastou, Josh pressionou os dedos no antebraço de Camilla. - Gostei de você ter vindo - sorriu ele. Camilla olhou para ele, e então, como se tivesse saído de um transe, deu um passo atrás para que a mão dele desencostasse de sua pele. - Sim, está um ótimo dia para ficar ao ar livre. - Você não precisava ter vindo. Então achei melhor fazer valer a pena. Ela sorriu, tentando não entrar no joguinho dele. - Como assim? - Eu vi você dando lances para o fim de semana em Nova York. Camilla sentiu um friozinho na barriga, que se esforçou para reprimir. - Ah. Achei que estava treinando. Não o vi durante o almoço. - Eu tive que comparecer ao leilão - sorriu ele. - Rich Clark estava lá, só Deus sabe o que ele poderia dizer. - É, bom. Os lances ficaram um pouquinho altos demais para mim – gaguejou Camilla. - De qualquer forma, estive em Nova York pouco antes do Natal, de modo que não faz mal. Ainda assim, farei uma doação à instituição beneficente. - Ah, mas que pena. - O quê? Por quê? - Porque fui eu quem deu o lance vencedor. - Ah, foi você! - E é uma pena, porque eu venci para você. Camilla sentiu a garganta seca. - Não estou entendendo. - Você deu um lance, então achei que queria ir a Nova York. - Josh. Você não precisava... não posso aceitar. - Pode aceitar, sim. Principalmente se me convidar para ir junto... Cate voltou com duas taças de kir quando a buzina tocou para que o primeiro tempo começasse.


- Josh Jackson é gostoso - disse ela para Camilla, sorrindo e observandoo enquanto montava em um cavalo de pólo. - Ele ganhou o lance do fim de semana em Nova York e deu de presente para mim. - Está de brincadeira! - E quer que eu o leve comigo. Cate ficou observando o rosto da irmã, totalmente fixado no campo de pólo. Ela própria deu uma olhada na direção do gramado para ver Josh montado em um cavalo de pólo cor de cobre reluzente. Ele disparou pelo campo para acertar a bola com seu taco. - Você gosta dele, não gosta? - perguntou Cate, sorrindo. - Não gosto. - Por favor, diga que você vai aceitar a viagem. Diga que vai levá-lo com você. - Eu não terminei com Nat para começar a sair com um astro do rock - disse Camilla, virando-se de frente para a irmã. - Simplesmente não preciso de nenhuma distração neste momento. - Mas, Cam, ele é lindo, isso sem falar que é muito simpático e muito, muito cheio da grana! Camilla simplesmente voltou a olhar para o jogo. Para ela, a conversa obviamente estava encerrada. Tinha acabado de rejeitar um dos solteiros mais cobiçados do país sem olhar para trás. Cate ficou olhando para Camilla e balançou a cabeça lentamente. A disciplina da irmã quase a assustava.


29 Cate se equilibrou no assento da privada do minúsculo banheiro das instalações da Sand, tentando calçar um par de sapatos de salto, aplicar brilho labial e passar creme bronzeado r nas pernas, tudo ao mesmo tempo. - Cate? Você ainda está aí? - disse uma voz impaciente, seguida por uma batida à porta. Ande logo, o táxi já chegou! - Só dois minutos, Nick - balbuciou ela, xingando a si mesma ao derrubar um montão de creme bronzeador no chão. Respirou fundo. - Pronta? - suspirou ao se olhar no espelho, mas ficou surpresa de se sentir satisfeita com o que viu. Ela tinha escolhido um vestido de coquetel Donna Karan cor de creme. Sabia que aquela não era exatamente a cor que mais atenuava possíveis imperfeições, mas se você perdoasse a leve flacidez ao redor de suas coxas, ela realmente estava bem bonita. Seu cabelo caía solto e brilhante entre as escápulas e os olhos que, contornados por riscos de cajal e rímel, pareciam arregalados, faiscantes e alertas. Ela tirou uma caixinha de veludo azul da bolsa e abriu-a. Acomodado na almofadinha de cetim, havia um par de brincos grandes de diamante. Tinham sido de sua mãe. Ela não os usava havia anos, sempre à espera de uma ocasião especial. Nenhuma noite jamais parecia suficientemente especial. Bom, se havia alguma ocasião certa para usá-los, era esta noite, na festa de lançamento da Sand. Ela os colocou nos furos das orelhas e sorriu. - Pronta. Quando ela saiu do banheiro e entrou na redação, Nick estava à sua espera, usando um paletó cinza-carvão de um botão com uma camisa azul bem engomada, o cabelo marromareia penteado para trás. Cate quase ficou sem fôlego, desejando que Nick não estivesse assim tão bonito, e colocou a carteira embaixo do braço. Ela sentiu os olhos dele a inspecionando, mas ele não disse nada sobre sua aparência; os elogios tinham deixado de existir havia muito tempo, mas o sorriso em seu rosto revelava aprovação. Afastando os olhos com rapidez, Nick apontou com a cabeça para uma pilha de caixas ao lado da porta. - Quantas revistas devemos levar? - perguntou. - Não sei - respondeu Cate. - Umas cinquenta? - Sovina - caçoou Nick. - Achei que era eu o pão-duro! - É que estou preocupada. Esta festa está saindo cara demais – respondeu Cate. - Bom, pode até ser, mas até vendermos 150 mil exemplares por mês, teremos que nos transformar em especialistas em ilusionismo - sorriu Nick. - Como assim? - Eu sei que tenho sido um tanto severo em relação aos orçamentos, mas nós precisamos saber quando economizar e quando gastar. E, hoje à noite, a última coisa que desejamos é parecer pobres, ainda mais que os principais anunciantes vão estar lá. A nossa revista pode ser pequena, com a redação ao lado de um restaurante de entrega de comida marroquina, mas os outros não precisam ter esta impressão - disse ele, sorrindo. Apesar de tudo, Cate ficou impressionada. Como os dois tinham vivido a mesma jornada relativa ao lançamento da Sand, aprendendo juntos e cometendo os mesmos erros, ela sempre havia visto Nick como alguém que estivesse tomando suas decisões à medida que avançava, que estivesse jogando o mesmo jogo que ela. Mas neste momento, ali na frente dela, ela o viu como ele era: um homem de negócios talentoso, motivado e com visão, um empresário astuto em quem podia confiar para transformar sua revista em sucesso. - Hmm, "Imagem é tudo"? - disse ela com um sorriso cauteloso. - Deve ter aprendido isto comigo.


Ele se abaixou para abrir uma caixa de papelão, tirou um exemplar fresquinho da primeira edição da revista Sand e segurou-o à frente do corpo com os dois braços estendidos. Era difícil para eles não se deixar levar pelo orgulho ao olhar para aquilo, ao pegar naquilo. Na capa, uma imagem suntuosa e sensual de Rachel Barnaby vestindo um maiô dourado, sorrindo sedutoramente, na frente de uma palmeira na Côte d'Azur. Dentro, páginas e mais páginas de imagens reluzentes de pessoas lindas e lugares glamourosos que faziam com que se tivesse vontade de pular para aquele país das maravilhas, rico e caro que eles tinham criado para os leitores. - Quem poderia imaginar - disse ela sorrindo - que isto aqui saiu direto de Borough Market, e não de algum iate de um trilionário? - Está bem boa - disse Nick. - Está bem boa - reconheceu Cate com um sorriso acanhado. – Mas volte a me perguntar daqui a três meses, quando tivermos os números consolidados de vendas. - Às vezes você é péssima - disse Nick, sorrindo e sacudindo a cabeça. - Agora, vamos levar estas revistas para a festa e mostrar para todo mundo como você é boa! - Como nós somos bons - disse Cate. Nada tinha preparado Venetia para imaginar como ter um caso faria com que ela se sentisse culpada e exausta. Ela tinha lido todos os artigos sobre infidelidade que as revistas femininas podiam fornecer; tinha devorado praticamente cada romance glamouroso de rasgar a lingerie disponível nas livrarias de aeroporto. Tinha até escutado, de olhos arregalados, as histórias de suas amigas mais indiscretas e namoradeiras ao longo dos anos. Mas nunca, nem por um instante, imaginara que tais experiências teriam alguma coisa a ver com sua vida. Enquanto tomava uma chuveirada na suíte do último andar do hotel One Aldwych, permitindo que os jatos quentes de água escorressem por sua pele, ela sentia todo o peso daquilo, todo o fardo da culpa e da exaustão de viver uma mentira. Depois de Sevilha, ela conseguira resistir aos telefonemas de Jack durante uma semana inteira. Cada instinto de seu corpo implorava para que ela cortasse aquela aventura de uma noite pela raiz. Mas aquele momento perfeito sob o céu estrelado da Espanha tinha despertado novamente alguma força vital dentro dela, e ela não conseguira ficar longe de Jack Kidman. Quando ele fora ousado a ponto de telefonar para ela em casa, Venetia finalmente concordara em vê-lo, dizendo a si mesma que era só para convencê-lo a parar de ligar. Acabaram fazendo sexo sensacional no Mandarin Oriental, dois corpos entrelaçados à perfeição sobre um tapete felpudo. Foi o início de uma série de momentos fugidios e carregados de sexo em quartos de hotel, no apartamento dele em Westbourne Grove e, em uma ocasião particularmente arriscada, no armário de tecidos da loja Venetia Balcon. No decorrer das últimas três semanas, tinham se encontrado pelo menos uma dúzia de vezes: antes do trabalho, depois do trabalho, entre compromissos... À medida que as mentiras a Jonathon cresciam e sua carga de trabalho dobrava, ela se perguntava, todo dia, se aquilo valia a pena. E valia, apesar de tudo. Pela primeira vez em anos, ela se sentia viva. Jack estava recostado na cama, enrolado em uma confusão de lençóis brancos e terminando um sanduíche de pão de forma encomendado pelo serviço de quarto quando ela saiu do banho e voltou para o quarto. - Tem salada de fruta aqui. Quer um pouco? Venetia sacudiu a cabeça. - Já estou meia hora atrasada para a festa.


- Não sei por que eu não posso ir junto. Eu podia fingir que não a conheço. Venetia olhou para ele com tristeza enquanto sacudia a cabeça, decidida. - Porque vou me encontrar com Jonathon. E, de todo modo, eu não me sentiria bem. Não posso mentir para as minhas irmãs. Ela começou a se enxugar com a toalha vigorosamente, tentando tirar do corpo o cheiro do sexo e da culpa antes da festa. - Acho que você tem razão. Acho que não vou conseguir afastar minhas mãos de você. Aí, nós nos encrencaríamos feio. - Ele deu um sorriso lupino. Venetia olhou para ele intensamente, absorvendo o corpo bronzeado e firme e o sorriso aberto. Ela sabia que precisava fazer uma pergunta que a assombrava desde aquela primeira noite em Sevilha. - Jack, o que você vê em mim? Ele começou a rir baixinho e esticou as mãos para chamá-la para a cama. - O que eu vejo em você? - Ele fez uma pausa, fingindo expressão de dúvida. - Você tem um nariz bonito, acho. Imediatamente, ela pareceu magoada. - Estou brincando, estou brincando! Mas, bom, é verdade que o seu nariz é bonito. Venha aqui - disse ele, dando risada. Ela se sentou na beirada da cama e se deitou nos braços dele. Ele lhe deu um morango e deixou os dedos se demorarem na parte de dentro do lábio inferior dela. - Van, você é sexy, você é linda, você é talentosa. Vai conquistar o mundo com a sua empresa e eu vou continuar apertando a sua bundinha firme e sexy para ajudá-la a chegar lá. Venetia permaneceu em silêncio por um instante. Aquilo tudo era tão errado, mas havia algo em Jack Kidman que a fazia sentir-se incapaz de acabar com tudo. Ele a fazia rir, ele fazia com que ela se sentisse inteligente, ele fazia com que ela se sentisse interessante. Ele era criativo, inteligente, espontâneo: o tipo de homem por quem ela havia procurado a vida toda. Mas simplesmente o havia encontrado tarde demais. Venetia fechou os olhos e forçou-se a pensar em Jonathon. Mas não adiantou nada; ela não conseguia nem imaginar o rosto dele. Jack Kidman a afetara de maneira irresistível, e os princípios morais dela haviam se despedaçado. A caixa de Pandora tinha sido aberta. A festa era na suíte da cobertura do novíssimo hotel Monument, no distrito financeiro, que supostamente era a maior suíte de cobertura de Londres. Como fazia apenas uma semana que havia sido inaugurada, eles tinham conseguido usá-la de graça, em troca de divulgação na revista. O assessor de imprensa ficara babando em cima da lista de convidados: afinal de contas, não fazia mal nenhum para um estabelecimento novo receber uma festa glamourosa poucos dias depois da inauguração. Cate teria preferido um endereço no West End para a festa, mas com o orçamento tão apertado, ela sabia que não estava em posição de escolher. - Caramba, isto aqui é legal - disse Nick quando as portas do elevador se abriram com um chiado para o átrio da cobertura, onde Pete Miller, o diretor de arte, tinha erguido uma ampliação de três metros e meio da primeira capa da Sand. Aliás, o lugar todo realmente parecia impressionante. Funcionários bonitos do hotel com vestes Armani circulavam pelos quartos, dando os últimos retoques à festa: acendiam velas, ajeitavam cinzeiros, asseguravam-se de que os dois bares estavam bem abastecidos. Cate e Nick passearam de quarto em quarto, absorvendo todo aquele luxo. Era admirável, ainda que masculino, em seu design. As paredes eram forradas de madeira de cerejeira


japonesa e longos sofás de couro preto enchiam o enorme lounge, que tinha portas de vidro do chão ao teto que levavam a um enorme terraço com vista para a cidade toda. Era uma suíte fabulosa para recepções, sem dúvida feita para executivos-chefes de empresas importantes que visitavam Londres a negócios. Nick abriu as portas de vidro e os dois saíram para o terraço, trocando sorriso como duas criancinhas. Sentiram o ar quente da noite de junho no rosto quando saíram. A cidade se estendia à sua frente, acesa como uma miniatura do horizonte de Nova York. Dava para enxergar o estranho edifício "Cherkin", com seu rendado impressionante de luzes; dava até para avistar o formato circular da roda-gigante London Eye a distância, e o formato da Tower Bridge, como dois bispos de xadrez de frente um para o outro nas duas margens do Tâmisa. Um homem de meia-idade de terno preto irrompeu na suíte e se apresentou como sendo Willem, o gerente-geral do hotel. - Estamos muito contentes de recebê-los nesta noite - disse ele com um leve sotaque do Leste Europeu. - Se precisarem de qualquer coisa, é só me dizer. Estarei disponível no ramal dois-dois-cinco-três. A sua irmã Serena estará presente? - perguntou a Cate, cheio de expectativa. - Ela virá, sim - respondeu Cate, com um sorriso amarelo para o olhar de triunfo de Willem, que logo saiu para providenciar mais alguns cinzeiros. - Então, Serena virá? - perguntou Nick, servindo-se de uma taça de champanhe. - É claro que sim - respondeu Cate. - Ela é minha irmã. - Mas Tom também vem. Cate olhou com surpresa para ele. - Bom, é claro que ele vem - disse Nick, imitando-a. - Ele é o meu melhor amigo. Isso sem mencionar que é nosso investidor. Aliás, ele vai se hospedar aqui no hotel hoje à noite. Achamos que Serena pudesse vir, então eu disse que ligaria para ele em sua suíte quando ela fosse embora. - Meu Deus, mas que coisa mais infantil - murmurou Cate. – Não acredito que eles até hoje não se falaram. - Com o tempo, vão voltar a se falar - disse Nick. - Mas acho que esta noite não é exatamente o momento certo para uma reconciliação, diante de 150 pessoas mais os cavalheiros da imprensa. - Não posso dizer a ela que ele virá - disse Cate, brincando distraída com os brincos. - Ela já está estressada demais. Simplesmente vai se recusar a comparecer. - Ah, Cate, você está fantástica! - disse Vicky, a editora de moda da Sand, que se aproximara e passava os dedos pelo tecido do vestido Donna Karan de Cate. Nick balbuciou um pedido de licença e se afastou para dar uma olhada na lista de convidados, enquanto os primeiros começavam a entrar aos poucos na suíte. - Quantas pessoas você já viu? - perguntou Cate, ansiosa. - Algum dos convidados VIPs chegou? Secretamente, ela se preocupava de que o endereço no distrito financeiro tivesse sido um erro, por mais econômico que fosse organizar a festa ali. Vicky fez uma careta e entregou uma taça de Moét a Cate. - Temos champanhe demais para levar de volta para a redação se o pessoal não aparecer. Não havia necessidade de se preocupar. Às oito horas, a cobertura já estava lotada de corpos glamourosos. Representantes seniores de todos os principais anunciantes estavam


presentes e folheavam ansiosos as páginas dos exemplares da Sand espalhados pela suíte. O jazz suave que tocava ao fundo teve que ser colocado no volume máximo para poder ser escutado acima do barulho da multidão risonha, e Cate, mais descontraída depois de alguns drinques, permitiu-se regozijar na atenção que estava recebendo de todos. - Estou tão orgulhosa de você - disse Lucy, sua velha amiga da revista Class, dando-lhe beijos nas bochechas. - Você vai acabar com a Class - sorriu ela. - E espero que acabe mesmo. Nicole Valentine transformou-se na maior vaca. - Transformou-se? As duas riram. Nesse ínterim, Camilla e Venetia tinham chegado, maravilhosas de Marni e Prada, respectivamente, e desempenhavam um trabalho fantástico ajudando Cate a circular entre os anunciantes banhando-os de atenção. O pessoal da publicidade parecia não se importar nem um pouco com o fato de as irmãs não terem envolvimento ativo com a revista Sand: simplesmente ficavam felizes de conversar com uma das irmãs Balcon, enquanto um fotógrafo do jornal Evening Standard, animadíssimo, fazia imagens e mais imagens dos convidados. Os investidores da revista compareceram em peso, bebendo champanhe e parecendo muito contentes consigo mesmos jubilando-se com a glória que lhes era atribuída. David Goldman fora muito esperto ao compreender que, na verdade, estavam investindo em noites como aquela, em que circulavam entre celebridades em uma suíte de cobertura, e não exatamente na revista em si. Cate fez uma pausa e parou em um canto para examinar a cena. Nunca tinha se sentido mais segura, mais viva e mais no controle do que naquele exato momento. Do outro lado da sala, avistou Nick conversando com um grupo de relações-públicas; Rebecca pairava ao lado de seu ombro. Ele tinha aberto o botão do paletó e estava bonito e à vontade. Ela sentiu uma sombra de tristeza, mas rapidamente a empurrou para o lado. Ela e Nick podiam não ser um casal, mas certamente eram ótimos parceiros de negócios, e com toda a certeza já estava na hora de ela parar de pensar que aquilo poderia se transformar em algo mais. Naquele momento, ela vislumbrou David Goldman, que conversava com um dos investidores. Depois de alguns instantes, Cate se deu conta de que, enquanto falava, os olhos dele se deslocavam na direção dela, acompanhados de um sorriso sedutor. Depois de três taças de champanhe, ela com certeza tinha de reconhecer que ele era charmoso. Seu cabelo tinha crescido um pouco desde a última vez que haviam se visto, e o terno cinza-aço que estava usando combinava com seus olhos faiscantes, pensou, sorrindo para si mesma e começando a desejar que ele se aproximasse para dar um oi. - Catherine, mas que noite mais agradável. Cate ergueu os olhos, surpresa por ver o pai. Então, ele comparecera. Uma grande parte dela realmente não queria que ele estivesse ali. Continuava furiosa com o que ele tinha feito em relação a Nigel Hammond, o investidor que ele recomendara que conversasse com William Walton em busca de referências, o que quase havia colocado a perder todo o processo de arranjar investidores já no nascimento. Por outro lado, ela não tinha sido exatamente capaz de demonstrar toda a sua insatisfação referente ao assunto, sempre com um pouco de medo das consequências de não o convidar. Papai era um homem rancoroso. Portanto, simplesmente enviara um convite para a galeria e esquecera o assunto, torcendo para que ele simplesmente não se desse ao trabalho de ir.


- Estava acabando de dizer para esta mocinha aqui – disse Oswald, puxando-a na direção de uma jornalista ansiosa que não parava de rabiscar em um bloquinho - como eu a apresentei ao primeiro grande investidor e fiz esta coisa toda acontecer. A jornalista ergueu os olhos radiantes, a caneta posicionada para anotar mais informações relativas ao assunto. - É, Cate, acredito que você deva se sentir muito grata com todo o apoio de seu pai. Ela segurou uma gargalhada irritada. - Apesar de eu ter perdido minha esposa há tantos anos – prosseguiu Oswald, voltando-se para a jornalista com olhar sério -, sempre fiz o melhor que pude para garantir que as meninas tivessem tudo o que desejavam e que lhes fossem dadas todas as oportunidades para perseguir seus sonhos. - Serena já chegou? - perguntou a jornalista, examinando a sala com os olhos. - Seria fabuloso se fizéssemos uma foto de família. Todas as irmãs com o pai? - Ela deve chegar a qualquer momento - disse Cate, perguntando a si mesma onde Serena tinha se metido. Para evitar o aglomerado de paparazzi na frente do Monument, Serena providenciara para que entrasse discretamente no hotel pela cozinha. Um concierge com expressão gentil a acompanhou até a suíte de cobertura por um elevador de serviço. Quando Cate implorara para que ela fosse à festa, prometera que só haveria um fotógrafo lá; no entanto, a multidão de paparazzi na rua era tão grande quanto uma torcida de rúgbi. Ela sabia que estava sensacional com um minivestido de jérsei marrom-chocolate que acabava, provocador, no meio da coxa, mas, pela primeira vez que podia se lembrar, a presença dos fotógrafos lhe causou um pavor tão grande que sentiu a pele úmida de suor. As portas do elevador se abriram com um chiado no último andar e, por um instante, Serena ficou lá parada, observando a festa. Ao lado da janela, viu Cate rodeada de pessoas, rindo, enquanto seu pai estava perto do bar. - Tenha uma boa noite, senhorita Balcon - sorriu o concierge, esperando que ela saísse do elevador para a festa. Serena virou-se para agradecê-lo e uma emoção desconhecida tomou conta dela: pânico. De repente, seu coração começou a bater com tanta violência que ela precisou apertar o peito, ela começou a ofegar e suas mãos começaram a tremer. Apertou o botão das portas do elevador com força, para que se fechassem antes que alguém visse que ela tinha chegado. Respirou fundo para se acalmar e virou-se de frente para o concierge. - Ainda não estou pronta - disse ela, sorrindo e esfregando as mãos suadas, nervosa. Acho... acho que primeiro gostaria de me acomodar em um quarto do hotel. Com discrição, é claro - acrescentou, colocando a mão no braço dele para enfatizar o pedido. - Bom, esta suíte obviamente está ocupada. Qual recomendaria depois dela? O concierge ajeitou o paletó e tossiu para limpar a garganta, que repentinamente ficou seca. - Eu recomendaria a suíte Fenchurch no piso abaixo, mas acredito que esteja ocupada esta noite. No entanto, temos uma suíte júnior maravilhosa logo ao lado. Posso levá-la até lá agora mesmo e depois providenciamos o check-in formal. - Excelente - disse Serena com falsa compostura - Vamos. A suíte Threadneedle era pequena em comparação com a da cobertura, mas tinha uma enorme cama imperador, com um edredom branco fofo, uma colcha de couro preto e almofadas de mangusto cor de creme. Era surpreendentemente aconchegante. - Fico com ela - disse Serena.


Quando o concierge se foi, Serena chutou os sapatos de salto para longe, sentou-se no colchão e aproximou os joelhos do queixo, como uma criança vulnerável. Ela se sentia melhor assim, sozinha, despercebida. Apertou a mão na testa, como se estivesse sofrendo de uma dor de cabeça especialmente teimosa, mas isso não foi suficiente para impedir que gordas lágrimas escorressem por suas bochechas. Enxugou-as, aborrecida, mas sentiu-se incapaz de fazer parar os soluços que faziam seus ombros subirem e descerem. Pensou como seria entrar naquela festa, em que todos os olhos frios e enxeridos estariam em cima dela, julgando cada pensamento seu. Serena era uma mulher que se deleitava com a atenção dos outros, mas naquela noite sua armadura não bastava. Depois de tudo o que havia acontecido, ela não estava pronta. Cate deveria saber que ela não estava pronta. Um violento ataque de inveja percorreu seu corpo quando pensou na irmã no andar de cima, circulando como uma borboleta frenética, deleitando-se no resplendor dos elogios. Cate nunca fora a irmã bem-sucedida, pensou, aborrecida, erguendo os olhos para o teto, através do qual o som do jazz podia ser ouvido. Era Serena que deveria ser festejada e adorada. E era mesmo, lembrou a si mesma - mas simplesmente não era como se sentia naquele momento. Apertou os joelhos com mais força quando pensou nos acontecimentos dos últimos dias. Ela era capaz de superar o fato de o contrato com a Jolie Cosmetics não ser renovado; de todo modo, era uma empresa idiota e antiquada: nada a ver com Estée Lauder. Mas a bilheteria de Ladrão de casaca estava péssima; o filme não entrara nem na lista dos dez mais assistidos no fim de semana de estréia, depois de a crítica ter sido unânime em sua destruição. "Colocar Serena Balcon no papel que foi de Grace Kelly, além de imprudente, foi uma imbecilidade sem par", declarara um crítico especialmente maldoso. Seu agente lhe dera notícias ainda piores. Ed Charles, produtor de Fin de Siecle, ligara para ele no fim de semana para informar que tinha escolhido outra pessoa para o papel de Letitia DuPont. Não houvera menção a um papel menor na produção; aliás, ele não oferecera papel nenhum. - É porque estou grávida, não é? - berrara para o agente pelo telefone. - Como ousam? Como ousam? Precisamos fazer esta informação vazar em todo lugar; isso simplesmente não é justo! O agente salientou que não havia nenhum contrato assinado em relação ao papel, que ela estava apenas sendo cogitada. Mas aquele papel era dela, pensou Serena, dando socos inúteis de punho fechado nas panturrilhas. Ela sabia que seu encontro com Ed Charles tinha ido bem e que seu teste de vídeo obtivera reação muito positiva em Los Angeles. Era Michael. Michael Sarkis tinha destruído sua vida. Agora as lágrimas caíam em enormes soluços e ela acariciava os próprios braços, como uma mãe tentando acalmar a filha. Durante um segundo, sua mente começou a pensar em Tom Archer. A distância de quatro meses tinha suavizado seus sentimentos em relação a ele. Lembrou-se de uma ocasião no verão anterior que tinham estado no cassino em Monte Carlo. Parada ao lado da mesa da roleta, seu número apareceu no mesmo instante em que Tom se colocou a seu lado. "Sou o seu talismã da sorte", sussurrara ele em seu ouvido. Talvez ele tivesse razão, levando-se em conta tudo o que havia dado errado desde que os dois tinham se separado. Talvez Tom Archer fosse seu talismã da sorte. Ela de repente se sentou com as costas eretas e enxugou as lágrimas do rosto. Isso não é modo de pensar, disse a si mesma. Levantou-se de um pulo e ligou o sistema de som do quarto para abafar o barulho da festa no andar de cima, então foi até o banheiro e passou uma água no rosto, olhando para seu reflexo no espelho com ar determinado. Estava na hora de andar para frente, não para trás.


- Que perfume você está usando hoje? - perguntou Jonathon, cheirando o pescoço de Venetia mais ou menos de bom grado. Ela se esquivou um pouquinho dele. Era o mesmo perfume que ela sempre usava, mas por tê-lo borrifado à vontade para mascarar qualquer vestígio de Jack Kidman ou do quarto de hotel, tinha chamado a atenção para a fragrância. - Chanel Número Cinco. O mesmo de sempre - ela sorriu para ele, sem olhar exatamente em seus olhos. - Você geralmente não repara. Mas a atenção de Jonathon já tinha se desviado dela. - Preciso dizer que ela se deu muito bem - disse ele, examinando a sala com olhar crítico. - Quem? - Cate. Quando ela comentou que estava tentando levantar fundos para uma revista, não achei que tivesse uma chance em um milhão. Claro que eu não investiria nem um centavo do meu dinheiro nisto. Certamente vai estar falida antes do Natal, mas é preciso parabenizála por esta noite. - Bom, se quer saber minha opinião, parece que está muito bem frequentada - respondeu Venetia na defensiva. - Ah, olhe. Ali está Diego. Vamos cumprimentá-lo. Diego de Bono, estilista-chefe da linha de vestuário feminino de Venetia, estava no terraço usando óculos escuros, embora a luz já estivesse desaparecendo do céu londrino. Venetia olhou para a silhueta macérrima dele e para seu cabelo preto como breu e concluiu que ele parecia um francês viciado em heroína. - Na verdade, acho que vou pegar uma bebida - disse Jonathon, movimentando-se na direção contrária à que ela o puxava. - Não seja bobo. Você é sócio da empresa. Vamos cumprimentar o homem que ganha para nos dar mais lucro. Venetia sentiu a resistência do braço dele e largou, aborrecida por mais um sinal de desprezo casual pela vida e pelo trabalho dela. Lançou-lhe um olhar furioso e puxou seu braço novamente. Ela cumprimentou Diego com um abraço e deu-lhe beijos nas bochechas. - Diego. Mas que surpresa. Eu não sabia que você viria. - Fui jantar com um amigo que insistiu em me arrastar para uma festa de revista. Não sabia que era da sua irmã. - Nós nos viramos - disse Venetia, rindo. - Diego. Já foi apresentado ao meu marido, não é mesmo? Os olhos dos dois homens se prenderam. - É, acho que sim - disse Diego, sorrindo para Jonathon. Venetia observou que seu olhar se perdeu pela sala. - De qualquer forma, esta é uma boa oportunidade para dar uma circulada - completou Diego, com um sorriso lânguido. - As editoras de moda do Times e do Guardian estão aqui, portanto vou sair por aí falando da linha de roupas Venetia Balcon. Ele fez um sinal com a cabeça e se afastou, enquanto Venetia se irritava com Jonathon. - Você é totalmente grosseiro, caramba. Eu sei que estilistas não são exatamente do seu gosto, mas não há motivo para fazer essa cara de tédio. - Eu simplesmente detesto ficar falando de trabalho – respondeu Jonathon. - Mesmo que o trabalho seja do meu interesse. Venetia suspirou e afastou o braço quando ele tentou pegar nela. - Não sei por que nos damos ao trabalho... - Querida, desculpe. Deixe-me pegar um champanhe e vamos para o terraço.


Ela sentiu o comportamento de Jonathon fazer uma volta de 180 graus quando a curva de seus lábios se suavizou e ele acariciou o antebraço dela com as pontas dos dedos. O velho truque. Ele a testava, fazia com que caísse na armadilha, deixava-a enfurecida, depois, no último instante, ficava carinhoso com um arroubo de charme controlado. Ela cedeu e deixou seu corpo ceder contra o dele. - Eu só gostaria que você se esforçasse um pouco mais com os meus amigos e os meus colegas. Jonathon colocou o braço atrás do pescoço dela, puxou-a para perto de si e plantou um beijo seco em sua testa. - Desculpe, querida, ando um pouco distraído. O trabalho está difícil. O escritório de Genebra... mas isto não é desculpa. - Ele colocou a mão no rosto dela e acariciou sua bochecha. - Por que não abandonamos esta festa, pegamos uma suíte e ficamos aqui até amanhã de manhã? O gesto pegou-a completamente de surpresa. Ela se contorceu por dentro, mas tentou não se retesar no abraço dele. Pouco tempo atrás, ela teria dado qualquer coisa para que Jonathon injetasse um pouco de paixão e espontaneidade na vida deles, mas agora parecia que era um pouco tarde demais. E ela tinha certeza de que não seria capaz de encarar duas suítes de hotel no mesmo dia. - Acho que estou ficando com dor de cabeça. Não estou me sentindo bem o dia todo. Jonathon ficou olhando para ela com seus olhos azuis penetrantes e conduziu-a até a saída. Tentando apagar todos os pensamentos sobre Jack Kidman da cabeça, ela olhou para ele, seu marido, e permitiu que pegasse em sua mão. - Dor de cabeça? - disse Jonathon, aliviado. - Neste caso, que tal nos despedirmos de todo mundo e irmos para casa? Cate confinou-se no terceiro dormitório da cobertura, um quartinho minúsculo, e tentou ligar para o celular de Serena. A festa estava lotada de jornalistas, com uma multidão de paparazzi do lado de fora. A presença de Serena na festa renderia divulgação para a revista, mas ela precisava reconhecer que talvez não fosse uma boa ideia ela estar ali, afinal de contas. Ninguém atendeu. Onde ela estaria? Cate estava acabando de deixar um recado quando ouviu a porta do quarto deslizar e se abrir. Virando-se, viu David Goldman ali parado. Ele estava bem vestido, com um temo cinza-aço feito sob medida e uma camisa branca engomada que destacava seu bronzeado. - Desculpe - disse ela, dando uma risada nervosa. - Vim para cá para descansar uns minutos. Já retomo para a socialização estonteante em um instante. - Bom, se você realmente queria ficar sozinha, devia ter trancado a porta - disse David com ar lupino, fechando a tranca atrás de si. - Você se importa se eu lhe fizer companhia? - Você não devia estar lá fora bajulando os investidores? - disse Cate, sorrindo, enquanto aceitava o champanhe da mão dele. David deu de ombros. - Parece que os investidores não precisam de babá, e Nick está com Rebecca. Cate sentiu seu coração apertar por um instante. - Portanto, a única pessoa que eu conheço aqui é você - disse ele, empoleirando-se na beira da enorme cama de mogno. Os saltos 12 a estavam matando, de modo que Cate deu de ombros e se sentou ao lado de David. Ele imediatamente partiu para cima dela, deixando que a manga do paletó ficasse


encostada na pele nua de seu braço. Ela sentiu uma onda de excitação; mas não sabia bem se era devido ao sucesso da festa, ao champanhe ou à proximidade de David. - Você realmente fez um trabalho fantástico. Eu estava agora mesmo dizendo para todo mundo que mulher incrível você é. - Ele fez uma pausa. - Uma das mulheres mais impressionantes que já conheci na vida. Cate sentiu os nervos de todo o seu corpo formigarem. Achava mesmo que ele atacaria assim que trancasse a porta do quarto, e de repente pegou-se pensando que, afinal de contas, até que aquela não era uma má perspectiva. - Ah, tenho certeza de que você está acostumadíssimo a conhecer mulheres impressionantes - disse Cate, em tom brincalhão, acabando com o champanhe da taça e colocando-a sobre o tapete. - Você está caçoando de mim? - sorriu Oavid, finalmente colocando a mão no joelho de Cate. Agora a cabeça de Cate estava começando a girar, e ela não se afastou quando ele tirou uma mecha grossa de cabelo do ombro dela, apesar de ser capaz de sentir a sedução-clichê dele manipulando seus sentidos. - Que tal um beijo de comemoração? - sussurrou ele. Os lábios dele baixaram sobre os dela. Embora um alarme de alerta tenha soado em alguma parte distante de seu cérebro, ela se pegou retribuindo. David enroscou a mão no cabelo dela, empurrando-a de leve na direção da cama. Parte dela queria resistir; a outra parte só queria beijá-lo com mais ardor. Caíram sobre o edredom fofo cor de creme, os dedos de Oavid descendo pelo pescoço de Cate até tocar um de seus mamilos através do tecido fino e fluido do vestido. Ela engoliu em seco e pegou o rosto dele com as duas mãos, puxando-o para um beijo cada vez mais ardente. - O que estamos fazendo? - perguntou ela, finalmente aprumando o corpo em busca de ar. A mão dele se deslocou pelas dobras cor de creme do tecido do vestido dela e chegou até a parte de cima de sua coxa. - Finalmente, estamos nos divertindo um pouco. - Finalmente! - Nick deu uma risada e jogou um braço ao redor dos ombros de Tom Archer. Tom retribuiu o sorriso. Ele se sentiu feliz por estar com o velho amigo, desfrutando a cena social de Londres mais uma vez. Fazia muito tempo que não se aventurava até a cidade para uma noitada e queria aproveitar ao máximo. Claro que não tinha gostado nada de ficar esperando no andar de baixo, na suíte Fenchurch, principalmente depois que alguém no quarto ao lado começara a tocar música em volume muito alto. Mas quando Nick ligou para dizer que parecia que Serena não apareceria, ele se sentiu pronto para entrar na diversão, embora uma pequena parte dele estivesse ansiosa para vê-la. Tom pegou uma bebida e virou de um gole só. - Então, é minha vez de ficar um pouco com o cara do momento? - brincou Tom. - Não é minha culpa se de repente todo mundo quer conversar comigo - respondeu Nick com um sorriso amplo. - De todo modo, demorou 35 anos para alguém reparar em mim; portanto, deixe que eu aproveite meu momento. - Onde está Cate? - perguntou Tom. - Não sei - respondeu Nick, olhando mais uma vez ao redor da sala apinhada de gente. Mal a vi na última hora. Já estava em tempo de fazermos um brinde para comemorar. - Ah é? - disse Tom com ar de brincadeira.


Nick cutucou-o nas costelas. - Não, não é nada disso. Tom não se convenceu completamente, e os olhos de Nick continuaram a examinar a sala, à procura de Cate. - Aliás, acho que preciso comentar uma coisa - disse Tom, puxando o amigo pelo cotovelo para um canto onde ninguém pudesse escutá-los. – Eu estava falando com Marion Doherty; você conhece, ela é a dona da agência de modelos ILF. Não sei se este é o momento adequado para tocar no assunto, mas ela me contou uma coisa que você e Cate precisam saber. Nick olhou para Tom e percebeu que ele não estava nada à vontade; trocava o peso do corpo nas pernas e já havia afrouxado um pouco a gravata. - A mulher estava completamente cheirada, então não sei se dá para acreditar em tudo o que ela disse, mas... Nick pegou um enroladinho de salmão defumado de uma bandeja que passava e gesticulou para o amigo. - Prossiga - pediu com ênfase. - Bom, obviamente ela não sabia que somos amigos, nem que eu tinha investido na Sand, então provavelmente não tinha razão para mentir. – Tom fez uma pausa e deu um gole nervoso em sua segunda bebida, finalmente olhando Nick nos olhos. - Olhe, acho que você precisa dar uma palavrinha com a sua namorada - disse ele em tom sério. Nick enfiou o canapé na boca aberta. - Como assim? O que aconteceu? Tom desviou o olhar. - Vamos, o que foi? Conte logo! - De acordo com Marion, a primeira capa de vocês deveria ser Sybil Down... sabe quem, a top model? Ela é uma das garotas de Marion, certo? - É isso mesmo, ela desistiu no último minuto. Foi por isso que Rebecca nos ajudou e conseguiu Rachel Barnaby. Deu tudo certo e foi melhor assim, no final das contas. Tom olhou para o amigo, sem jeito. - De acordo com Marion, Rebecca ligou para ela e disse que Sybil não deveria trabalhar para a Sand. Disse que vocês eram uma empresa de fundo de quintal e que iriam fechar com a mesma rapidez que abriram. Fez algum tipo de ameaça velada de que se Sybil aceitasse o trabalho, não seria contratada por um de seus clientes mais importantes. Parece que agora Marion viu a primeira edição e achou a revista fantástica, mas vocês passaram semanas como persona non grata na ILF, amigo. Nick olhou para Tom em descrença. - Por que diabos Rebecca faria isso? Ele deixou que seus olhos se perdessem na paisagem londrina. Não fazia sentido. Por que Rebecca sabotaria a capa da Sand, só para tirá-la do buraco logo depois? Cate tinha marcado a sessão de fotos com Sybil Down e ficara desconcertada quando tudo deu errado. De repente, ele se lembrou de ter ignorado um comentário de Cate, comentário que ele considerara grosseiro na hora: ela havia dito a ele que achara estranho Rebecca ter arrumado Rachel Bamaby para salvar a primeira capa da Sand. - Ela simplesmente quer acabar com Cate - disse Nick baixinho para Tom, como se a idéia estivesse lhe ocorrendo pela primeira vez. - Então, Cate e Rebecca não se dão bem? - perguntou Tom, erguendo uma sobrancelha desconfiada.


- Que porra, Rebecca - resmungou Nick sem abrir a boca. Ele avistou o cabelo loiro platinado dela em um canto da sala e afastou-se de Tom, dirigindo-se para onde ela estava. - Rebecca. Rebecca deu meia-volta, jogou os braços ao redor do pescoço de Nick e apertou seu peito contra o dele. Ela estava maravilhosa, as curvas de seu corpo bem encaixadas dentro de um vestido frente-única em tom metálico, na altura da metade da coxa. Seu hálito cheirava a uísque, os olhos estavam arregalados de cocaína. Quanto mais ele olhava para ela, menos enxergava sua beleza e mais se dava conta de como sua alma era feia. Será que Rebecca sempre tinha sido assim ou será que ele é que havia demorado todo aquele tempo para perceber? Era mesmo um idiota. - Que festa fabulosa - sussurrou ela no pescoço dele. - Apesar de eu ter recebido duas sacolinhas de brindes e não ter encontrado nada decente dentro delas. Ele a afastou com força. - Eu sei o que você disse a Marion Doherty. - A respeito do quê, querido? - disse ela, dando risadinhas e o arrastando para o terraço. - Que você a aconselhou a não permitir que Sybil Down fizesse a foto de capa. - Ele parou para olhar para ela com desprezo. - Porra, como é que você teve coragem de fazer isso? Rebecca apertou as mãos atrás do pescoço dele e tentou puxá-lo para mais perto. - Quem anda contando mentirinhas? Eu não fiz nada desse tipo – falou ela com uma voz enrolada, roçando os lábios na curva do pescoço dele. - Alguém em quem eu confio - respondeu Nick, impassível, tirando os braços dela de perto de si. - Alguém em quem confio mais do que em você. - Nick, eu não falei nada - disse ela, fazendo bico. - É mesmo? - perguntou ele, sarcástico. Ciente de que tinha sido pega no pulo, ela deu um passo atrás, para longe dele, e apoiou as mãos no quadril magrinho. - Mas tudo deu certo, no final, não deu? - sibilou Rebeca por entre os dentes, na defensiva. Quando as coisas ficam a meu cargo, e não de Cate Balcon, tudo acontece. Da maneira correta. - Deixe Cate fora disto - estourou Nick. - De todo modo, ela estava com tudo sob controle. Você pode ter acertado as coisas, Rebecca, mas foi você quem criou a porra do problema, para começo de conversa. - Ouça só o que diz - desdenhou ela, jogando o cabelo para trás. - Você é ridículo. Sempre a defendendo. Vamos lá. Faça uma surpresa. Diga que está indo para a cama com ela. Está, não está? - Não, não estou. - Está indo para a cama com ela sim, porra - berrou ela, apontando o dedo comprido para o peito dele. - Isto aqui não tem a ver com Cate, Rebecca. Tem a ver com você. Por que fez isso? É assim tão insegura? Ele olhou para ela, seu rosto estava tão contorcido de veneno que anulava sua beleza. - Não, não me insulte com uma resposta. Estou fora - sussurrou ele. - Vá - gritou ela, virando uma dose de vodca enquanto ele saía do terraço. - Vá falar com a sua cadelinha de estimação. E nem se dê ao trabalho de voltar para casa hoje.


Seus punhos de apertaram de fúria enquanto ele se afastava dela, sentindo-se ridículo por ter desperdiçado tanto tempo com ela; tolo por ter se deixado seduzir por sua beleza superficial e por ter confundido a adoração de Rebecca por diversão com simplesmente estar bem ao lado de alguém. Ainda assim, Rebecca estava certa a respeito de uma coisa. Ele queria achar Cate. Examinando a sala mais uma vez, viu com o canto do olho quando a porta do dormitório pequeno deslizou e Cate olhou ao redor nervosa. Ele suspirou de alívio e se pegou começando a sorrir quando ela foi saindo do quarto. Precisava ir até ela, contar-lhe a respeito de Rebecca, Marion, Sybil. Mas agora a multidão era enorme. Atravessou um grupo de convidados e derrubou uma taça de champanhe da mão de alguém. Olhou para baixo, balbuciou um pedido de desculpa e, quando voltou a erguer os olhos, ficou paralisado. David Goldman estava saindo do quarto, centímetros atrás de Cate, a mão ao redor de sua cintura com ar de proprietário. Estavam se dirigindo para o elevador. Estavam indo embora. Juntos. Nick respirou fundo pelas narinas e pegou um coquetel de um garçom que passava. Virou tudo de um gole só e devolveu a taça à bandeja com força.


30 Em comparação com a mansão de Mustique, o dúplex de Nova York e a casa de praia nos Hamptons, a base londrina de Michael Sarkis era pequena, uma construção discreta enfiada em um canto de Belgravia para uso esporádico. No entanto, ainda assim era um lugar suntuoso, com fachada de estuque branco, átrio de mármore e uma escadaria imponente que conduzia ao mezanino. Serena estacionou seu Aston Martin na frente e olhou ao redor, em busca de paparazzi, completamente ciente de que eles adorariam esta notícia. Serena visita o cafofo de Sarkis para pedir dinheiro! Bom, para variar estariam certos, pensou. Quase certos. Ela ainda não sabia muito bem o que queria de Michael... e passara a noite anterior à reunião em claro, tentando chegar a uma conclusão. Ela pedira para que se encontrassem, depois de ter evitado os telefonemas dele desde Cannes. Enquanto parte dela não queria o dinheiro daquele canalha, para ser brutalmente honesta, ela estava precisando. O contrato com a Jolie Cosmetics já era, seu agente não estava exatamente lhe acenado com qualquer boa perspectiva de trabalho (com toda a certeza teria de ser demitido), e sem Tom nem Michael para pagar seus gastos corriqueiros, ela mal podia acreditar como a vida era cara, porque precisava pagar tudo do próprio bolso. Era um acinte! Bem, ela é que não ia começar a mendigar centavos. Uma casa nova, babá, contas do hospital Portland, modelos de alta-costura. Tudo custava caro. E ela ia fazer com que Michael pagasse. - Serena. Ela entrou na recepção e colocou a bolsinha na mesa. Michael estava acomodado em um sofá de couro preto e metal cromado, usando jeans, um cinto Herrnês e uma camisa vermelha aberta no pescoço. Serena olhou para ele e sentiu uma descarga elétrica percorrendo sua espinha. Tinha passado horas repetindo mentalmente o que diria a ele quando o visse, mas não tinha levado em conta o tesão incontrolável que sentiu ao vê-lo em seu covil de luxo. Só de entrar naquela sala, suas defesas baixaram, e ela logo percebeu que tinha começado com o pé esquerdo. Tentou organizar suas ideias, mas não conseguiu tirar os olhos dele, e um pensamento indesejado se infiltrou em sua mente, uma ideia que passara a semana anterior inteira tentando abafar. Será que tinha se precipitado ao cortá-lo de sua vida? Talvez devesse deixá-lo sofrer por mais alguns dias e então aceitá-lo de volta. Aceitar tudo isto de volta, pensou, avaliando a decoração cara do apartamento. Para dois indivíduos que eram a definição da segurança, a tensão entre eles era tão forte que quase dava para enxergar. A enorme presença de Michael parecia rodeá-la, e ela imediatamente se arrependeu de ter concordado em se encontrar com ele em seu território. Graças a Deus, tinha escolhido um modelo McQueen justíssimo. - Posso lhe oferecer uma bebida? - perguntou ele, dirigindo-se a um pequeno bar no canto da sala. - Vou tomar um bloody mary. Quer um suco de tomate? Ela ergueu a sobrancelha e então sacudiu a cabeça, observando enquanto ele despejava o líquido vermelho em um copo. Ele voltou a se acomodar no sofá e fixou-a com o olhar. - Eu gostaria de ter sido informado sobre o bebê por você, não pelos jornais - disse ele. Serena cruzou as pernas longas, alisando a pele bronzeada com os dedos. - Você não me deu oportunidade. Ficaram se encarando em silêncio e Serena sentiu os mamilos incharem quando os olhos pretos como carvão dele penetraram nos dela. Ela se lembrava da última vez que estivera


naquela sala. Depois de Mustique. Nua sobre o tapete grosso. Michael deslizando por cima dela, puxando seu cabelo e metendo dentro dela. Paixão explosiva. Os dois juntos. A cada segundo que passava, Serena sentia sua raiva se esvair e ser substituída por outra emoção potente. Saudade. Ficou imaginando se ele sentia a mesma coisa, então lutou consigo mesma para continuar brava, controlada, senhora de suas emoções conflitantes enquanto Michael a observava. - Michael, eu só queria dizer... Sarkis ergueu um dedo. - Só um instante. Estamos esperando mais uma pessoa, então poderemos começar. - Começar o quê? - perguntou Serena, confusa. Uma campainha tocou e Michael apertou o botão do interfone a seu lado. Um homem baixo e forte entrou. Usava temo escuro e carregava uma pasta executiva de couro. - Quem é este? - perguntou Serena, repentinamente se sentindo nervosa. - Este é Jim Berger, meu advogado, com quem você vai falar depois de hoje. - Que diabo é isto? - berrou Serena. - Michael! Diga-me o que está acontecendo? - É muito simples. Quero um exame de paternidade - respondeu Michael, na lata. - O quê? - berrou Serena. - Você me humilha com aquelas putas e agora vem me pedir um exame de paternidade? Ele olhou para ela com frieza, largado em cima do sofá, um sorrisinho cínico nos lábios, o verdadeiro homem de negócios em cada centímetro do corpo. - Se este filho for meu, poderemos falar sobre pensão e você poderá fazer as negociações com Jim. Mas e se não for? Bom, claro que eu sei por que você está aqui, Serena, e posso garantir que não vai ver nem um único centavo.


31 Aquela era uma das semanas de junho mais quentes já registradas. O verde dos gramados tinha atingido seu auge e cada folha de grama havia começado a amolecer preguiçosa sob o sol quente. As árvores ao redor dos campos pareciam selvagens, frondosas e quase tropicais, e o lago no meio do térreo estava começando a secar, deixando um anel marrom ao redor da água, como se fosse água suja de um banho que sumira ralo abaixo. Oswald estava acomodado à sombra no terraço de Huntsford, depois de fazer uma refeição leve no almoço. Rolinhos de presunto de Parma, nacos de abacate bem verdinhos e rúcula salpicada com seu vinagre balsâmico preferido, que tinha importado especialmente de um pequeno vilarejo nos arredores de Modena. Engoliu tudo com uma bela dose de gim com tônica que ficara meio morna naquele ar quente. Sentindo-se repentinamente cansado, deu uma olhada no relógio e resolveu acabar com a reunião da hora do almoço o mais rápido possível e dormir para escapar do calor daquele dia. - Então, senhor Loftus - disse ele ao homem sentado do outro lado da mesa. - Se puder deixar amostras de seu trabalho comigo, posso dar uma lida e podemos voltar a conversar no início da semana que vem. No entanto, o senhor precisa ter em mente que também estou conversando com outros escritores. David Loftus, um homem sorumbático de 40 e poucos anos, enfiou a mão na pasta e colocou uma pequena pilha de livros e de revistas na frente de Oswald, que foi deliberadamente ignorada. - Vou deixar meu cartão também, assim pode me ligar se precisar de qualquer outra informação. - O homem olhou para Oswald com sinceridade. - Faz vinte anos que espero a oportunidade de poder trabalhar em memórias como a sua. Oswald deu um sorriso magro. Apesar da performance bajuladora de David durante o almoço, ele já se decidira a usar Loftus como ghost-writer para escrever suas memórias. Ele fora muito bem recomendado pelo agente, suas credenciais eram decentes: Oxbridge, diversas biografias históricas no currículo, alguns romances policiais bem recebidos escritos com pseudônimo. O mais importante era que ele morava ali perto, além de ser rápido - e Oswald precisava agir enquanto era tempo. Oswald despertara um interesse morno nos editores em relação às suas memórias no passado, mas depois das revelações recentes a respeito de Serena, um frenesi de interesse irrompera em relação ao homem por trás das irmãs mais glamourosas do Reino Unido. O editor queria que o livro ficasse pronto o mais rápido possível, e apesar de Oswald se considerar um escritor eloquente, mais do que capaz de fazer tudo sozinho (isso sem mencionar o fato de que estava ansioso por uma oportunidade de roubar os holofotes das filhas), escrever um livro dava muito trabalho. Ele precisava de um sujeito como Loftus, que ficaria com uma pequena parte do adiantamento dos direitos autorais e faria o grosso do trabalho. - Eu ligo para você - disse Oswald, olhando para o cartão de visitas de David e dispensando-o. - Vou esperar - respondeu Loftus. - Isto pode ser bom para nós dois. Quando Loftus saiu, as portas envidraçadas se abriram e Zoe Cartwright irrompeu no terraço. Oswald tinha contratado a moça como produtora do evento musical em Huntsford. Ela parecia estar morta de pressa, segurando com força uma pilha de arquivos em papel pardo contra o peito como se fosse uma mãe amamentando um bebê. Oswald gemeu. Uns dois meses antes, ele a contratara para facilitar sua vida: estava disposto a admitir que não


apreciara em nada a carga de trabalho que o planejamento de um evento na escala que ele tencionara fazer exigia. Zoe tinha um currículo excelente - ela tinha planejado dois eventos enormes em Richmond Park no verão anterior - e nos primeiros dias fora indispensável. Ela simplesmente tinha passado a cuidar de tudo e deixara Oswald livre para cuidar de coisas mais importantes: pólo, cortejar Maria Dante, dar uma voltinha com seus carros. Mas agora, com a aproximação da data do evento - faltavam apenas quatro dias para a Noite Musical, que aconteceria no sábado -, Zoe parecia um albatroz pendurado em seu pescoço. Ela tinha deslocado as operações de seu apartamento em Chelsea para o salão azul de Huntsford, sob o pretexto de que seria vantajoso em termos de tempo e de custos ter uma base no local do evento em si. Apesar de Oswald ter achado que aquilo fazia sentido, agora Zoe o atordoava praticamente de hora em hora, exigindo enormes relatórios diários e incomodando-o constantemente para que tomasse decisões relativas a minúcias do evento. E nem era agradável tê-la por perto. Garota acanhada de classe alta, Oswald considerava sua meninice CDF enfurecedora. Zoe sequer era bonita. Ela o lembrava as amigas que Cate costumava trazer da escola: virgens de semblante amarelado cuja personalidade combinava com a aparência. Não eram como as amigas de Serena, pensou ele, repentinamente animado com a lembrança: um desfile de lindas meninas de 16 anos com suas saias curtas demais e suas camisetas rebeldes decotadas. Oswald sorriu ao tomar o último gole de gim com tônica. Zoe sentou-se, preparando-se para uma briga. De sua parte, tinha motivos de sobra para se arrepender do dia em que aceitara organizar a Noite Musical de Huntsford. Sim, ela era ambiciosa; sim, seria uma maravilha ter aquilo no currículo de sua empresa de eventos nova no mercado, mas ela não era tratada daquele jeito desde os tempos de escola. Lorde Oswald Balcon era um arruaceiro mesquinho e cheio de si, que se mostrara um empregador apavorante. Já fazia mais de duas horas que ela estava esperando para repassar com ele os últimos custos e balancetes, quando foi informada por Collins que Oswald tinha a intenção de tirar uma soneca depois do almoço. Dormir! Isso era algo com que Zoe só podia sonhar. Nas últimas seis semanas, ela havia trabalhado 18 horas por dia para transformar a Noite Musical em sucesso, enquanto a avareza de Oswald e sua aversão à divulgação ameaçavam minar todo o seu trabalho. Ela já tinha deparado com tipos assim: desesperados por glória social, mas preguiçosos e arrogantes demais para realmente fazer acontecer. - Lorde - disse ela, com um certo tremor na voz. - Espero que não se importe com a minha intromissão, mas acredito que seja de fundamental importância conversarmos. Faltam quatro dias para o evento e tenho muitas preocupações que precisamos discutir. - Muito bem! - disse Oswald, limpando os cantos da boca com um guardanapo de linho e olhando para a moça com desaprovação. - Sejamos rápidos. Em silêncio, ela abriu as pastas e começou a espalhar diversas planilhas e projeções sobre a mesa de ferro batido, enquanto Oswald fazia um sinal para Col1ins para que removesse os restos do almoço. - Então, quando é que o circo chega? - perguntou Oswald. - Achei que já estaria me incomodando com a algazarra do equipamento a esta altura. Não estão deixando para erguer o palco muito em cima da hora? Zoe limpou a garganta e sacudiu a cabeça. - Não, o senhor deve se lembrar de que já conversamos sobre isto. O aluguel do equipamento é cobrado por dia, e o senhor foi muito enfático ao exigir que chegasse o mais tarde possível para evitar custos extras. Vem amanhã, mas me garantiram que não demora mais de um dia para ser montado, se o clima ajudar, é claro.


Ela olhou para Oswald por cima dos óculos e respirou fundo, ciente de que ele não apreciaria o próximo item de sua agenda. - Não estou muito preocupada com o palco - começou ela, com muito tato. - O que me preocupa é que Johnny Benjamin, o sujeito que está cuidando das finanças do evento, acabou de me mandar uma planilha com a previsão de lucros e perdas. A menos que as vendas de ingressos melhorem muito - ela hesitou -, parece que o evento vai apresentar prejuízo substancial. O canto da boca de Oswald se curvou em um rosnado. - Entramos nesta para ganhar dinheiro, não para perder. - A voz dele era baixa, controlada e ameaçadora. Deixou Zoe mais nervosa do que se ele tivesse lançado sobre ela uma torrente de xingamentos. Zoe ajeitou melhor os óculos em cima do nariz, tentando se recompor. - Com todo o respeito, lorde, cada gasto foi aprovado pelo senhor. Zoe passou o dedo pela planilha, encolhendo-se a cada número. Ela sabia que Oswald faria com que ela se sentisse culpada pelo fato de o evento ter saído de controle, mas era a maneira como Oswald abordava o gerenciamento da Noite Musical que ameaçava seu sucesso. Ao mesmo tempo que se mostrava disposto a economizar em relação às necessidades, como o palco, ele queria que tudo fosse o melhor do melhor para dar a ilusão de grandeza. Se Glyndebourne tinha dois restaurantes no local, então, raciocinava Oswald, Huntsford também deveria ter. Zoe tinha conseguido chegar a um meio-termo, fazendo com que um dos restaurantes servisse churrasco de javali, o que ela achara que seria divertido e eficiente em relação aos custos, mas Oswald insistira para que o restaurante principal ficasse embaixo de uma tenda das mais refinadas, e isso pesara uma centena de milhares de libras no orçamento, sem contar a contratação de Mark Tennant, o chef executivo do San Paulo, para supervisionar todos os alimentos servidos. Zoe tinha tentado argumentar que a proposta de Glyndebourne era levemente diferente: tratava-se de um evento estonteante, que já fazia parte do calendário de eventos havia muito tempo e que atraía altos níveis de patrocínio corporativo; por isso era capaz de arcar com os custos de encenações de óperas completas como Figaro ou Madame Butterfly. Ela sempre considerara a Noite Musical de Huntsford como um evento mais informal, mais ou menos na linha das noites de verão em Kenwood House no norte de Londres, onde uma orquestra e vários artistas faziam apresentações curtas para a diversão do público que fazia piquenique. Ela não via necessidade para black-tie, instalações de restaurantes completos e banheiros químicos de último tipo, principalmente se ele queria economizar no número de funcionários e no marketing. Oswald deixou seu olhar pousar no fim da planilha e começou a vociferar. - Ah, este número não pode estar certo! - berrou. - Creio que esteja - disse Zoe com segurança. - E, obviamente, boa parte disso já está comprometida. Oswald mal podia acreditar no que estava ouvindo. Por acaso aquela burguesinha desprezível o estava tratando com condescendência? Ele pegou a planilha com um gesto brusco e começou a absorver os números com muito mais atenção do que antes. - Eu sempre disse que o número de funcionários contratados para esta coisa beirava o ridículo - disse ele com frieza, listando os diversos custos com salários. - Gerente de palco, técnico de iluminação, controlador da bilheteria, chefe do bufê! Quer dizer, esta lista é infinita, diabos!


- Para o tamanho deste evento, o número de funcionários está no mínimo possível respondeu Zoe, cheia de paciência. - Sem qualquer uma dessas pessoas, o evento simplesmente não andaria. O senhor sempre quis que a Noite Musical de Huntsford tivessevulto e prestígio. Não se trata de uma produção amadora local. Oswald fez uma pausa para absorver as palavras de Zoe, sem tirar os olhos dos números agourentos da planilha. De mau humor, que ela tinha razão. Mas não permitiria que ela percebesse. Oswald tinha rejeitado o envolvimento de Venetia meses antes porque ela argumentara que a Noite Musical de Huntsford deveria ter escala bem menor. Mas a vaidade de Oswald não permitiria que isso acontecesse. Ele tinha visto como a família Christie havia transformado Glyndebourne de um pequeno evento ao ar livre na propriedade da família na década de 1940 em uma marca internacional de renome, adorada por milhões de pessoas. Ele queria para si um pedaço dessa ação e não estava preparado para esperar sessenta anos até que acontecesse. Não podia ser muito difícil organizar algo para rivalizar com os grandes festivais de ópera, pensara consigo mesmo. Tinha sido fácil conseguir um empréstimo substancioso com o banco para cobrir os custos prévios, e seu círculo social tinha abraçado a ideia com entusiasmo. Agora, nuvens de preocupação iam se instalando em sua mente. Ele já tinha ficado um pouco preocupado com o elenco de artistas que Maria mobilizara: parecia um pouco... como poderia colocar? Um pouco improvisado. Sim, havia alguns bons nomes internacionais no programa, mas nenhum dos grandes: ninguém da estatura de Pavarotti ou Dame Kiri. Depois, havia a questão espinhosa do cachê polpudo de Maria. Ela havia argumentado que o evento a estava afastando de um trabalho bem pago em Dubai. Mas essa questão se apequenou quando ele refletiu sobre a ideia de estar com um desastre financeiro nas mãos. O empréstimo era enorme, os juros eram altos; aquela coisa toda poderia arruinálo. - Existe uma solução - disse Zoe lentamente, tomando um golinho do chá que Collins trouxera. - Prossiga - disse Oswald com frieza. - As vendas de ingressos estão... digamos... um pouco lentas. - Ridículo - praticamente cuspiu Oswald, os olhos fixos no ferro batido da mesa. - Um evento fabuloso como este deveria estar com todas as linhas ocupadas, com pessoas desesperadas atrás de ingressos devolvidos. - Lorde, eu sinalizei há várias semanas que deveríamos ter destinado mais recursos para a questão do marketing e da divulgação - disse Zoe. - Bobagem! - vociferou. - Esta noite contará com a presença de todo mundo que eu conheço! Zoe sabia que precisava pisar em ovos. - No seu círculo de relacionamentos, é possível que sim. Mas para o grande público britânico, não tem exatamente o mesmo perfil de um Glyndeboume. Era exatamente aí que tudo tinha dado errado, pensou Zoe consigo mesma, cheia de tristeza. Ela se lembrava da conversa que haviam tido, tantas semanas antes, quando Oswald desprezara sua idéia de contratar uma agência de relações públicas como "vulgar". Ele também vetara a ideia de contratar uma agência de ingressos para cuidar da bilheteria: Oswald fora veemente em sua recusa de pagar dez por cento do preço do ingresso para uma agência. Em vez disso, as vendas estavam sendo coordenadas por um universitário no salão azul que dispunha de um único telefone.


O sol tinha se deslocado para a lateral de Huntsford, de modo que lançava longos raios de calor no terraço, fazendo com que Oswald se sentisse ainda mais desconfortável. - Então, qual é a grande ideia, mocinha? - Precisamos vender mais dois mil ingressos para minimizar as perdas. Se mais pessoas ficarem sabendo do evento, a multidão vai vir e poderemos contar com vendas de ingresso no dia do evento. No entanto, para chegar até essas pessoas, precisamos de muita divulgação. Oswald olhou para sua jovem funcionária sob nova luz. - E como propõe que façamos isto? - perguntou, cético. - Asua filha - disse Zoe. - Serena. Ela ainda não apareceu em público desde as revelações dos tablóides, há três semanas. Oswald se remexeu na cadeira. Preferia não pensar a respeito do comportamento sórdido da filha mais nova naquele momento específico. Embora Serena raramente fizesse algo errado aos olhos de Oswald, ele tinha ficado muito aborrecido com a gravidez de um filho de Michael Sarkis. Não seria tão ruim se ela ainda estivesse envolvida com o norte-americano: ele podia ser um colono cafona, mas Oswald era capaz de apreciar sua imensa fortuna. Mas a última coisa de que a família Balcon precisava no momento era de uma criança bastarda para manchar sua reputação. No entanto, com a ideia das dívidas criadas pela Noite Musical de Huntsford acima de tudo em sua mente, ele estava pronto para ouvir a idéia de Zoe. - Ninguém acha que Serena estará presente no sábado - disse Zoe, acelerando o ritmo das palavras. - Afinal de contas, houve uma reportagem de jornal falando a respeito do desentendimento que vocês dois tiveram em relação à gravidez dela. Oswald se arrepiou. Ele ainda precisava descobrir como a porcaria dos tablóides tinham ficado a par da discussão que ele e Serena haviam tido apenas dez dias antes. - Se o senhor pudesse convencer Serena a ser a anfitriã da noite, ou pelo menos a apresentar Maria Dante, isso levaria a montes e montes de divulgação prévia. Oswald sentiu sua raiva esfriar antes de começar a levantar objeções. - Sim, mas como é que algumas reportagens aleatórias naqueles jornal ecos de última linha vão ajudar a vender ingressos para o calibre de convidados que comparecerão a Huntsford? - O senhor se surpreenderia - respondeu Zoe, erguendo uma sobrancelha por cima do aro de tartaruga de seus óculos. - Só precisamos de um hype na mídia. Já trabalhei com marketing e garanto que vai lotar se oferecermos ao público o primeiro vislumbre de Serena. Talvez possamos providenciar até para que ela dê uma pequena entrevista solidária para o Telegraph na sexta-feira. O senhor sabe que ela não deu nem um pio à imprensa desde que os problemas vieram à tona. Zoe sentiu que tinha despertado alguma coisa. - Parece que de fato é necessário - disse Oswald, azedo, desviando os olhos de Zoe e demorando-se na visão do lago que brilhava prateado à sua frente. Tinha que admitir: era uma boa ideia. Mas não podia imaginar como Serena reagiria à sugestão. Ela provavelmente ainda demonstraria hostilidade em relação a ele; no mínimo, agiria com volatilidade. Muito ciente de que os dois eram capazes de manipular um ao outro, decidiu que valia a pena correr o risco, principalmente porque essa era a única opção à ruína financeira. Ele dispensou Zoe Cartwright com suas planilhas e pegou o telefone.


32 Um homem corpulento usando jeans sujos deteve o motorista de Serena nos portões de Huntsford enfiando a mão carnuda no pára-brisa do Mercedes. O motorista, com muita calma, baixou a janela e, com muita educação, perguntou qual era o problema. - Tem pulseira? - perguntou o gorila, acudindo uma prancheta. Serena apertou um botão e deixou que seu vidro elétrico descesse com um ruído surdo. - Eu moro aqui - disse ela em tom severo, cansada demais para abrir seu sorriso de artista de cinema para o homem. O segurança reconheceu Serena imediatamente, pediu desculpas e deixou que o carro seguisse seu caminho. - Que ridículo - sibilou ela por entre os dentes, olhando para trás, para o homem inconveniente. Quando se virou para a frente de novo, ficou boquiaberta com a transformação por que Huntsford passara. Apesar de ainda estar a uns oitocentos metros da construção principal, ficou estupefata com a escala da operação. No horizonte, avistava-se um enorme palco com cobertura abobadada, com uma estrutura de andaimes que pareciam uma teia. A entrada para carros estava ladeada por grades de ferro, homens sem camisa e vestindo jeans ajeitando placas que indicavam banheiros, estacionamento e restaurante; do outro lado do lago, enxergava-se um desfile de vans, caminhões, geradores e trailers. Pelo menos sessenta pessoas andavam de um lado para o outro, puxando cabos, segurando pranchetas ou carregando enormes travessas para dentro das tendas do serviço de bufê. Tudo aquilo era imenso: impressionante, pensou, com um sorriso se formando nos lábios carnudos. Ela tinha feito uma negociação difícil com o pai quando ele ligara para ela, dois dias antes, para convencê-la a participar. Sua intuição a alertava contra o envolvimento. Continuava se sentindo vulnerável e traída, principalmente depois do encontro com Michael, e com toda a certeza ainda não estava pronta para se expor aos olhos do público. Depois que a notícia de sua gravidez fora divulgada, algumas garras realmente tinham sido colocadas para fora. A sugestão de que ela era notícia velha, ou de que não tinha apelo na nova era mais cosmopolita, deixara-a magoada de verdade. Se ela ia voltar para o foco dos holofotes por iniciativa própria, então isso ia ter que valer a pena. Assim, tinha pedido uma parte da renda. Dissera ao pai que queria sete por cento da bilheteria, e a negociação implacável de Oswald baixara a participação para três por cento. Não era o ideal, pensou com seus botões, mas recompensaria a viagem até o interior. Aquilo com certeza também surtiria impacto positivo sobre seu currículo: a filha prestativa que ajuda o pai em seu evento musical. Até mesmo seus detratores adorariam esta notícia. - Diria que o lugar sofreu uma certa transformação, não? - disse Oswald para a filha quando o carro dela parou na frente da porta dupla, enquanto a ajudava a descer do carro e lhe dava um abraço cauteloso. - É uma mudança e tanto - disse Serena, sorrindo e puxando o microshort um pouco para baixo, para cobrir mais as pernas e parecer mais respeitável. - Está igualzinho a Glastonbury. Oswald se encolheu de pavor. - Aquele festival horroroso do povão? Acho que não - respondeu, curto e grosso. Serena deixou a bolsa Mulberry balançar no braço e entrou na casa, saltitante. - Só estava brincando, papai. Dá para ver que vai ser fabuloso.


Ela permitiu que um silêncio se instalasse entre eles, esperando para ver se ele tocaria no assunto da discussão que tinham tido algumas semanas antes. Mas Oswald pareceu satisfeito em deixar aquele incidente - além da questão mais ampla da gravidez dela passar em branco. - Maria vai chegar às cinco - informou ele, despreocupado. - Acredito que vá jantar conosco, certo? Talvez possa se esforçar um pouco para conhecê-la melhor. Até parece, pensou ela, sombria. Não tinha falado com aquela mulher desde sua festa de despedida em abril - e não tinha a menor intenção de oferecer um ramo de oliveira agora. Ela ficara torcendo para que a italiana intrometida não fosse nada mais do que um capricho passageiro do pai, assim como todas as outras mulheres em sua vida nos últimos 15 anos: divorciadas, aeromoças, modelos envelhecidas e socialites de meia-idade que não duravam mais do que um frasco de xampu. Mas estava incomodada de perceber que a ligação parecia estar ficando um pouco mais séria. Os dois tinham sido vistos em todos os evento sociais nos últimos três meses. A coluna Mail, de Richard Kay, até tinha começado a se referir a Dante como namorada de Oswald. Aquilo a deixava enojada, mas não sabia dizer exatamente por quê. Acalorada e suada, resolveu ir para seu quarto trocar de roupa. Logo escolheu uma minissaia jeans Sass & Bidê, um top sem mangas e um par de chinelos de dedo metalizados Gina. A gravidez por enquanto só provocara mudanças ínfimas em sua silhueta esbelta, pensou, feliz, admirando seu reflexo no espelho ao lado da janela. De todas as irmãs, Serena tinha, de longe, o melhor quarto da casa, com duas enormes janelas sextavadas com vista para o lago, um visual muito mais maravilhoso do que o que tinha dos prédios de Manhattan ou do rio Tâmisa. Era especial, natural, estonteante. Foi invadida por uma sensação de pertencer ao abrir as janelas e deixar a brisa gostosa acariciar seu rosto. Aquele era o lar da família, por isso ela sempre teria uma ligação especial com o lugar, mas naquele dia ela se sentia ainda mais conectada, até envolvida, com as paredes de pedra, o terreno e a atmosfera. Um exame de ultra-som no dia anterior revelara que seu feto era menino. Ela teria que investigar o título de Huntsford em caráter prioritário, torcendo para que não existisse alguma lei incômoda que impedisse um filho nascido fora do casamento de herdar o título. Com certeza não existia: aquele era o século XXI. Sorriu ao pensar em seu filho como o décimo primeiro barão de Huntsford. Isto lhe garantiria prioridade sobre o terreno que se estendia à sua frente. Ela poderia fazer tanta coisa com aquilo: não seria como o pai, que deixara a vaidade e a cobiça anuviarem suas decisões. Com Serena no controle, Huntsford poderia se transformar em uma das grandes propriedades inglesas, para rivalizar com Longleat. Ela tinha plena certeza de que sua carreira ressuscitaria, mas era realista o suficiente para saber que a fama era transitória e que não poderia depender da beleza para sempre. Além do mais, ela já tinha consultado um advogado para arrancar uma pensão enorme daquele canalha do Sarkis para sustentar o filho. Serena ia tirar dele cada centavo que pudesse. Sentindo-se energizada por tantos pensamentos que envolviam dinheiro, Serena resolveu dar uma volta para examinar o circo armado do lado de fora. Para tentar se disfarçar um pouco, colocou enormes óculos escuros Chanel e prendeu o cabelo com um lenço Breton azul-marinho e branco. Como agora tinha interesse financeiro no sucesso do evento, não queria que todos os operários que estavam com a mão na massa se distraíssem. Quando saiu ao sol, Serena precisou reconhecer que a jovem que estava organizando o evento, aquela pobre garota de aparência comum, Zoe Cartwright, tinha feito um trabalho excelente. O Lady Penelope Carvery, o principal restaurante, que transbordava de camadas voile e


recebera o nome do Rolls-Royce 1922 que Oswald tanto adorava, estava tão espetacular quanto qualquer tenda que ela já tivesse visitado; Zoe ainda tinha lhe dito que, no dia seguinte, enormes arranjos de flores tropicais chegariam para dar ao lugar uma atmosfera de estufa botânica. Ao entrar naquela montagem impressionante, Serena repassou o pequeno discurso que preparara para fazer na tarde seguinte, na abertura do evento. Aquilo seria agradável, pensou. A roupa que escolheria, no entanto, seria um desafio maior. Seu baú de viagem estava lotado de vestidos maravilhosos que, Serena sabia, causariam impacto: mas qual escolher? Pela primeira vez na vida, percebeu que estava disposta a usar algo simples. Um vestido marrom escuro com um broche estonteante de topázio no fim do decote acentuado em V nas costas. Muito menos revelador que o vestido preto brilhante e diáfano que também tinha trazido e menos chamativo que o Versace grego que, ela sabia, lhe caía de maneira fabulosa. Mas, ainda assim, era de tirar o fôlego e apropriado, e era um vestido que mostrava como ela era uma mulher poderosa e de sucesso que queria ser levada a sério. - Está se preparando para amanhã? - perguntou uma voz atrás dela. Serena se virou e deparou com um homem muito bonito de jeans claro e camisa branca de manga curta desabotoada, revelando um crachá plastificado em cima de uma barriga de tanquinho bem dura e bronzeada. O cabelo dele era bem sexy, todo despenteado, e seus olhos azuis brilhavam para ela convidativos. - Nós nos conhecemos? - perguntou Serena em tom presunçoso, desconcertada pelo efeito que o homem exercera sobre ela. - Miles Roberts - respondeu ele, enfiando um livro de capa dura embaixo do braço e estendendo a mão para cumprimentá-la. - E o que você faz, Miles? - perguntou Serena, incapaz de segurar o tom de gozação. - Sou o gerente de relações artísticas. Serena tirou os óculos escuros e abriu um sorriso para ele. - E o que isto significa? - perguntou ela. - Ah, achei que uma mulher do seu ramo conhecesse muito bem a minha profissão - disse Miles, com um sorrisinho. - Então, você vai ter o prazer de atender a cada capricho de Maria Dante amanhã? - Mais ou menos - respondeu Miles. - Espero que esteja recebendo bem por isso - disse ela, dando um sorriso sacana. - Você se importa se eu a acompanhar? - disse Miles, colocando-se ao lado dela. - Cheguei há uns dois dias e ainda não estou muito familiarizado com o terreno. O lugar é enorme, não é? Serena sorriu. - Você logo se acostuma - disse ela, rindo e sentindo seus poderes de sedução lhe voltarem. Depois de Michael Sarkis, Serena tinha jurado que deixaria os homens para lá, pelo menos durante o verão, mas sempre valia a pena brincar um pouco com um homem lindo. Ele não passava de um operário de um festival, afinal de contas, mas era bonito como um modelo, pensou, olhando para o perfil dele. Ela poderia se dar ao luxo de alguns minutos de diversão, pensou, colocando os óculos em cima do nariz mais uma vez. Além do mais, era melhor circular com alguém da organização. Ela sabia muito bem que alguém poderia estar escondido por ali para fazer fotos, e a última coisa que desejava era estragar seu gesto filantrópico de participar do evento de Huntsford com uma foto dela tropeçando em cabos ou discutindo com os seguranças. - Então, para onde você está indo? - perguntou Miles, esperançoso.


- Acompanhe-me até o palco - disse ela, roçando a mão nele bem de leve. - Preciso ir lá dar uma olhada, para ver como ficou. - Por quê? - perguntou Miles. - Você vai mesmo ser a anfitriã do evento? Ouvi boatos. - Não vou ser exatamente anfitriã, vou apresentar - disse ela, com um sorriso coquete. - É uma diferença sutil. Minha intenção é estar na cama às nove horas. Festivais de ópera realmente não são o meu negócio. - Ah, sim, imagino que esteja se cansando com facilidade, por causa da... - Miles de repente ficou com o rosto todo contido, pois percebeu que dera um passo em falso. Ele não pôde evitar olhar para a barriga bronzeada de Serena que aparecia abaixo do top de algodão. - Então, você já engravidou? - Ela riu. - É, querido, estou naquela fase conhecida como "exausta o tempo todo". - Bom, acho que não vai ser muito fácil ter uma boa noite de sono amanhã - sorriu ele. - A menos que o seu quarto seja um abrigo nuclear à prova de som. - Ah, então você sabe do abrigo nuclear? - Serena riu. Miles ficou com cara de quem não estava entendendo nada. - Meu pai construiu um abrigo nuclear na década de 1980. Bem atrás do jardim de rosas, nada menos. Dá para acreditar na paranóia dele? Isso sem falar no desperdício de dinheiro! Mas você tem razão, imagino que não vá ser minha melhor noite de sono. Talvez eu deva voltar para Londres... - sua voz foi sumindo. - Ah, mas achei que passaria alguns dias aqui - disse Miles, cheio de decepção na voz. Fez mais uma pausa, acanhado por saber detalhes da vida de Serena. - Bom, pelo menos é o que o pessoal anda dizendo - deu de ombros. - Todo mundo ficou bem animado. - É mesmo? - flertou ela. - Quanto? - Muito. - Que bom - disse ela, sorrindo. - Eu estava mesmo querendo causar sensação. - Ah, vai causar - disse Miles. - Vai, sim. A última coisa que Maria queria naquele exato momento era estar se preparando para o desprezível festival de Huntsford. Oswald estava de péssimo humor desde que ela chegara, três horas antes, resmungando e reclamando sem parar dos custos cada vez mais elevados da noitada. Desde que os jornais informaram que Serena faria uma aparição pública, as vendas de ingresso tinham crescido muitíssimo, mas ela duvidava que seria o suficiente para aplacar a gulodice de Oswald em relação ao lucros que desejava. E a previsão de chuva torrencial para o dia seguinte certamente faria com que muita gente desistisse. Não que ela quisesse que ele perdesse dinheiro; de que ele lhe serviria sem dinheiro? Mas o principal era que ela estava furiosa porque a atenção dele tinha passado dela para Serena. Quando alguns dias antes, Oswald lhe dissera que a filha mais nova estaria envolvida na Noite Musical, Maria ficara enlouquecida. Ela estava bem certa de que aquela vagabundazinha sem talento estaria fora da cena pelo menos por um tempo. O estilo de vida escandaloso dela fizera Oswald ficar roxo de raiva por causa da vergonha que aquilo refletia no nome da família; e agora, no entanto, além de permitir que Serena capitaneasse o evento e se transformasse em sua estrela principal, ela ainda receberia por este privilégio. Maria poderia até admirar o descaramento de Serena pela negociação implacável com o pai, se isso não comprovasse a clara influência que ela tinha sobre ele. Bom, isso ia ter que acabar. Enquanto Serena fosse capaz de manipular o pai, ela teria o controle de Huntsford, e Maria não ia aceitar isso. Ela queria eliminar a influência de Serena de uma vez por todas.


Enfiando os saltos na grama, Maria disparou, furiosa, em direção ao trailer que usaria no dia seguinte. O sol tinha se posto atrás das árvores verde-escuros, de modo que a luz do anoitecer era parecida com a que se vê durante um eclipse parcial; os passarinhos ainda cantavam naquele cenário cinzento e etéreo. Maria deu uma olhada no relógio: 19h40. Xingou de novo. O jantar seria servido às oito horas, e ela precisaria de quinze minutos para voltar até lá. O trailer dela era uma caixa de fibra comum da Portakabin de sete metros e meio de comprimento, com uma mesa em uma ponta e uma fileira de cadeiras e de espelhos na outra. No meio, havia araras cheias de roupas, enfeites de cabeça e vasos de flores. Ela sabia que era melhor não acender os enormes espelhos rodeados de lâmpadas ao estilo de Hollywood e, em vez disso, apertou o interruptor da pequena luminária do teto, que encheu o lugar com uma luz suave. Havia um homem sentado à mesa, fumando. - Ah, você está aqui - disse Maria, abrupta, olhando para o relógio de novo. - Bem pontual, muito bem. - É melhor que isto seja rápido - disse o homem. - Ainda há umas cinquenta pessoas circulando pelo palco. Não vamos parar até a meia-noite. - Ele empurrou um envelope por cima da mesa com um gesto de jogador de pôquer que desiste da partida. Maria pegou-o e começou a contar as notas novinhas de cinquenta libras que havia lá dentro com as pontas dos dedos. A sensação de ter grandes quantidades de dinheiro nas mãos nunca falhava em lhe dar um arrepio de cunho sexual, e a menininha de Puglia que existia dentro dela tinha vontade de tocar em cada uma das notas. Sentindo o olhar frio do homem à mesa, ela se deteve e guardou o envelope na bolsinha de mão de veludo preto. - Certo, ouça - disse ela. - O jantar começa daqui a quinze minutos. Oswald nunca permite que o jantar demore menos de duas horas. Ele gosta de se deleitar com cada prato e insiste para que seus convidados façam o mesmo. Só há três empregados na casa toda, então vai ser fácil evitá-los. - Ela jogou um envelope pardo na mesa, que caiu com um baque abafado. - Aqui está a chave da porta dos fundos. Para chegar ao quarto dela, basta subir a escada principal. É a terceira porta do corredor comprido que dá para a frente da casa. Tenho certeza de que vai encontrar tudo de que precisa lá. - Tem certeza? - perguntou o homem. - A garota cheira cocaína. Eu vi com meus próprios olhos na festa em março. É quase certo que ela tenha um pouco de droga consigo. Também não me surpreenderia se estivesse consumindo álcool e tomando bolinha. Ela é a maior vagabunda irresponsável. - A palavra "vagabunda" soou bem estranha com o sotaque italiano de Maria. O homem sorriu na escuridão. Estava ficando excitado só de pensar na briga gloriosa de rasgar roupas entre aquelas duas mulheres lindíssimas e dominadoras. - Bom, é melhor encontrarmos o que estamos procurando - disse ele por fim, jogando o cigarro dentro de um copo plástico, onde se apagou com um chiado. O jornal está pagando bem caro por isto. - Ah, você vai conseguir o que deseja - disse Maria Dante, fazendo movimentos tão vigorosos com a cabeça que uma mecha de cabelo caiu sobre seus olhos castanhos. - Serena Balcon nunca fala em decepcionar. Oswald Balcon estava sentado à cabeceira da mesa Luís XV no Salão Vermelho com Maria e Serena, uma de cada lado, como duas concubinas, cada uma delas escolhendo com delicadeza seus aspargos no prato. - Oswald Balcon - repreendeu-o Maria com rudeza, erguendo seus brilhantes olhos cor de chocolate para ele. - Acho que este é o jantar com menos gente de que já participei em


Huntsford. O que aconteceu com as outras meninas? Achei que teríamos uma reunião de família esta noite. Oswald pousou o garfo e a faca de prata em um gesto deliberado, parecendo mais do que exasperado. - Cate, Camilla, Venetia e Jonathon só chegam amanhã - disse ele, apertando os lábios em sinal de desaprovação. - Como você bem sabe, nunca posso depender do apoio da família para nada. O comentário ecoou na sala, que de fato estava vazia, já que tinha lugar suficiente para acomodar vinte pessoas. A atmosfera gelada entre as duas mulheres não ajudava em nada. Elas faziam questão de não olhar uma para a outra, a não ser quando passavam condimentos. Dava para ouvir o estrondo de trovões ao longe, como um rugido que saía do fundo da terra. O som causou um olhar ansioso no rosto de Oswald, que ele imediatamente tentou disfarçar. Collins entrou pela porta empurrando um carrinho de prata cheio de pratos cobertos. Colocou o jantar de Serena à sua frente e tirou a cobertura com um floreio. Era um filé de atum grelhado acompanhado de um sortimento de batatas e legumes. - O que é isto? - perguntou Serena para Collins, brava, jogando o guardanapo. - Olhe só, está praticamente cru! - Mas é assim que a senhorita sempre gostou dos seus filés, senhorita Serena - disse Collins, um pouco corado. - Isso foi antes de eu ficar grávida - suspirou Serena, sem esconder a irritação. - Serena! Pare de fazer tanta confusão - disse Oswald, batendo a mão na mesa. - Hoje fez tanto calor que pedi para Collins servir alguma coisa leve. - Bom, é óbvio que você também nunca engravidou - disse Serena, lançando um olhar gélido para ele e afastando a cadeira da mesa. Estava cansada e de mau humor. Exausta, aliás. Sentia-se como se pudesse derreter e se fundir com o piso a qualquer momento. Só podia pensar em ir para o quarto dormir um pouco. Com toda a certeza não suportaria mais duas horas maçantes com o pai e Maria fazendo gracinha um para o outro. - Não, nenhum de vocês vai entender o que eu estou sentindo - acrescentou, levantando-se e colocando o guardanapo ao lado do prato. - Mas posso dizer que é bem ruim. - Fixou o olhar no pai. - Se eu quiser estar bem para fazer um serviço decente amanhã, preciso ir dormir. Então, por favor, me dêem licença. Ciente de que seria prudente que Serena estivesse no melhor dos humores no dia seguinte, Oswald assentiu com a cabeça e abanou com a mão, da maneira como sempre fazia para informá-la de que estava dispensada. Maria deu uma olhada no relógio de pêndulo atrás de si: 20h45. Levantou-se de um pulo. - Serena, por favor - disse Maria, lançando-lhe o sorriso mais sincero possível. - Eu me sentiria muito ofendida se você fosse para a cama agora. - Abriu os braços como uma Madonna. - Por favor, fique. Agora precisamos nos conhecer muito melhor. Collins pode lhe preparar um bom filé bem passado, não é mesmo, Col1ins? Assim você pode ficar à mesa, descansada. - Como eu disse - Serena sorriu, fazendo o que podia para parecer graciosa -, realmente acho que não compreende como uma mulher no terceiro mês de gravidez fica cansada. Papai, será que podemos nos reunir pela manhã para repassar meu discurso de apresentação? A essa altura, Serena já tinha atravessado o tapete oriental da sala de jantar e estava entrando na sala de estar. Maria saltou da cadeira e foi atrás dela, quase correndo porta afora para alcançar Serena.


- Serena - disse ela baixinho -, seu pai me disse mais cedo como este jantar era importante para ele... quer que nós nos entendamos. Serena deu meia-volta sobre os saltos. - Ele supera - despejou. - E, no futuro, sugiro que você se esforce um pouco mais como a dona da casa. Maria ficou parada, observando com ansiedade enquanto Serena subia a enorme escadaria, pisando em cada degrau cabisbaixa. - Que vaca italiana imbecil - disse Serena sem abrir a boca, já tirando os sapatos para pisar no carpete felpudo do corredor descalça. O andar de cima da casa estava silencioso de dar medo. A maior parte das luzes estava apagada. Ela tinha visto Collins mais cedo apagando, metodicamente as lâmpadas, sem dúvida em uma tentativa desesperada de economizar. A economia de alguns centavos com eletricidade certamente não iria encher os cofres de Huntsford, pensou Serena, irritada. Ao passar por uma janela que dava vista para o lago, sentiu um calafrio quando a iluminação do palco com cobertura abobadada se acendeu, afogando o terreno em luzes fortes e estéreis. Graças a Deus ela tinha fechado as cortinas de seu quarto, pensou. Não queria que estivesse iluminado como um estádio de futebol. Ela virou a maçaneta dourada de seu quarto e entrou. Imediatamente, percebeu que havia algo errado. Uma presença. Por instinto, agarrou o sapato Jimmy Choo que trazia na mão com o salto dez em riste, como se fosse um machado. Com a outra mão, tateou a parede em busca do interruptor. Com toda a certeza havia alguém dentro do quarto: dava para sentir. Finalmente, encontrou o interruptor e o ligou. A primeira reação foi berrar, mas o som de sua voz se transformou em uma exclamação quando ela imediatamente reconheceu o intruso. - MILES! Que diabos você...? Ele segurava uma lanterninha com uma das mãos e remexia na bolsa de viagem dela com a outra. - Você não vai achar nada aí - disse ela devagar, quase presa ao chão de tanta descrença. - Serena, eu... veja bem... Ao perceber que tinha sido pego, ele disparou na direção da porta. A reação de Serena para impedir que passasse foi lenta demais, e ela ficou lá abanando o salto do Jimmy Choo por cima da cabeça, frustrada. Quando o transe passou, ela berrou, mas ciente de que o barulho estridente precisaria chegar muito longe para que alguém escutasse, saiu em disparada pelo corredor, berrando o mais alto possível. Entre os gritos, escutava o som de passos frenéticos descendo os degraus da escadaria aos pulos, seguidos logo depois pelo ronco de um motor de motocicleta acelerando na frente da porta de entrada. Oswald irrompeu no hall enquanto Serena olhava lá para baixo. - Mas que confusão é esta? - gritou para ela. - Já que resolveu não jantar, pelo menos permita que nós comamos em paz! - Um intruso! Tinha um intruso na casa! - berrou Serena. Oswald correu até a porta e viu a luz vermelha da traseira da moto desaparecer enquanto Serena se largava lentamente no chão. Apoiando a cabeça no corrimão, ela começou a soluçar. Camilla entrou na suíte Real do hotel Claridge e encontrou Serena de cabeça para baixo no chão, com o corpo curvado em um V invertido.


- Mas que diabos você está fazendo? - perguntou, inclinando a cabeça para olhar para a irmã. - O cachorro olhando para baixo, o que você acha? - suspirou Serena, aprumando o corpo. Meu guia espiritual está em Capri, meu terapeuta desapareceu e meu agente não serve para porra nenhuma. Isto aqui é basicamente a única coisa que me deixa sã no momento. - Posso fazer alguma coisa por você? - perguntou Camilla, solícita, ajeitando-se no sofá. - Pode me arrumar um revólver? - respondeu Serena, apertando os lábios. Serena desaparecera durante 24 horas depois que o intruso fora encontrado em Huntsford. Simplesmente desaparecera. Faltara à Noite Musical sem falar nada nem deixar recado nenhum para ninguém. Apenas quando Camilla recebeu uma mensagem de texto de Serena na manhã seguinte ao evento o mistério relacionado ao seu paradeiro foi esclarecido. A suíte real do Claridge era um dos buracos de avestruz preferidos de Serena quando o mundo parecia se fechar sobre ela: deliciosamente decorado em chintz, totalmente isolado, tinha até o antigo piano de Gilbert e Sullivan. Não que ela soubesse tocar. - Quer me contar o que aconteceu? - perguntou Camilla, servindo-se de uma uva da fruteira. A raiva era inconfundível no rosto de Serena. Camilla ficou chocada: a irmã nunca parecia nada menos do que linda, segura e totalmente sob controle. - Eu aguento muita coisa, sabe? - disse ela, cheia de ódio. - Paparazzi que me chamam de vagabunda na rua. Repórteres que remexem o meu lixo. Meus telefones grampeados. Mas encontrar alguém na minha casa... no meu quarto. - Ela esfregou as têmporas e sua voz se suavizou muito. - Vim para cá para me esconder. Foi horrível, Cammy. Foi mesmo. Ela dobrou os joelhos e ficou largada no tapete da suíte luxuosa do Claridge. Camilla fez uma pausa, acostumada aos dramas da irmã, antes de reparar que lágrimas de verdade escorriam pelas bochechas de Serena. Abaixou-se para abraçar a irmã. - Tudo bem, vamos lá. Tanto estresse não é bom para o bebê - sussurrou ela. - Você está segura. O intruso não a machucou nem nada. - Mas não está tudo bem, não é mesmo? - disse Serena, secando o canto do olho com a ponta do dedo. - Ouvi dizer que a noitada foi um certo desastre. Foi horrível mesmo? - Foi bem ruim - disse Camilla com uma careta. Aliás, "bem ruim" era uma descrição bem amenizada. A noite anterior tinha sido um desastre sem precedentes, que sem dúvida custara milhares de libras ao pai. - O problema principal foi o tempo - disse Camilla. - Estava tão ruim ontem que muita gente não compareceu por causa disso. Daí, o sistema de som ficou desligado durante uns vinte minutos e, para ser sincera, foi um verdadeiro banho de lama. As pessoas ainda estavam fazendo fila para ir embora às quatro da manhã. - E como foi a apresentação? Quem abriu a noite? - perguntou ela, sentindo-se culpada porque era sua função fazer isso. - Quem você acha? Papai. Ele ficou falando tanto tempo que foi vaiado. Iam começar a jogar garrafas se não estivessem todos segurando guarda-chuvas. - Ah, que maravilha - disse Serena, revirando os olhos. - Acho que a culpa é minha também. Pode culpar o meliante... é o que todo mundo faz - disse Serena. Ela se jogou no sofá vermelho-rubi e segurou os joelhos contra o queixo. - Como assim? - perguntou Camilla. - Olhe os jornais. Você não leu nada hoje de manhã? Camilla pegou uma pilha de jornais de domingo que estava em cima do piano de cauda da suíte. O Sunday Reporter exibia a manchete: "Serena abandona a família por amante."


- Vamos lá, pode ler - suspirou Serena. - De acordo com eles, a noite foi um desastre por minha causa. Parece que era para eu ser a principal atração e deixei papai na mão. Camilla seguiu o texto do jornal com a ponta do dedo. - "Serena, grávida, faltou com as obrigações familiares quando abandonou o evento para um encontro regado a álcool com o amante." - Camilla ergueu os olhos. - Que amante? - Exatamente, mas isto eu não aguento - respondeu Serena, a boca transformada em um traço fino e cheio de determinação. - Não gostei nada dessa coisa sobre a família. Não gostei da insinuação de que eu não me importo. - A voz dela foi ficando pequenininha, até ficar frágil. Camilla olhou para a irmã, jogada no sofá como uma heroína de filme no ir. Enquadrada pelo fundo glorioso da suíte real, ela não pôde deixar de pensar em como a desgraça caía bem em Serena. Mas ao mesmo tempo que ela era capaz de conduzir sua fossa com elegância, sua perturbação óbvia realmente não fazia o seu estilo. A casca grossa de Serena geralmente era à prova de balas, mas Camilla desconfiava que a sequência de acontecimentos recentes estivesse começando a desgastá-la. Tom, Michael, a loucura dos tablóides, a gravidez, o intruso. Quanto uma única pessoa era capaz de aguentar no decorrer de poucos meses, mesmo que fosse Serena? - Tem mais uma coisa - disse Serena, o rosto sombrio. Esticou-se por cima de uma mala jogada no chão, da qual escapavam montes de roupas e sapatos tirou um saquinho com fecho do tamanho de uma caixinha de fósforo e colocou-o em cima da mesa. Camilla pegou-o com a ponta dos dedos e sentiu o pó branco dentro do saquinho. - Que merda, Sin. Cocaína? - perguntou, erguendo os olhos, surpresa. A irmã assentiu com a cabeça, lentamente. - É sua? - arriscou Camilla, temerosa, ciente de que a irmã já tinha usado aquela droga no passado. - Não! Não é minha! - explodiu Serena, tomando o saquinho das mãos dela. - Estou grávida, lembra? - Então, de quem é? - Não sei, caramba. Achei na minha mala de mão - disse Serena, sua voz já retomando o fogo. - E se o intruso que peguei remexendo nas minhas coisas tivesse ficado lá mais um segundo, ele teria encontrado. - Então, o que você está dizendo? - perguntou Camilla, sentindo que a irmã estava dramatizando de novo. - Que ele colocou lá? Serena sacudiu a cabeça com vigor. - Não, não acho que ele tenha plantado a droga. Acho que foi Maria; aliás, tenho certeza. Aquele intruso, Miles, tenho certeza de que era repórter. Maria deu a dica para ele porque queria que encontrasse a droga. Camilla não conseguiu segurar uma risada incrédula, imaginando se a cocaína não era mesmo de Serena e se não a deixara paranóica. - Fale sério, Sin... - Eu sei o que isso parece, mas Miles não estava na lista de empregados de Zoe Cartwright para o evento, eu perguntei. E do jeito como ele disse que era responsável pelos artistas, a maneira como sabia onde ficava o trailer de Maria e tudo que ela faria naquele dia... - Imaginemos que você esteja certa. Por que diabos Maria faria uma coisa dessas? perguntou Camilla, incrédula. - Porque ela é a maior vaca, Cam. Ela quer que eu perca toda a minha credibilidade. Caramba, tudo isso é tão estressante... - Tirou um espelhinho da bolsa e começou a


inspecionar o rosto, agitando os dedos freneticamente sobre a pele. - Estou um horror, porcaria. Você acha que eu devia fazer uma aplicação de botox? Camilla olhou para ela, desconfiada. - Então, você não usa cocaína, mas vai tomar uma injeção de botox? - Não tem a menor graça - disse Serena, jogando-se em cima de uma almofada. - Estou dizendo, Maria Dante é muito prejudicial a esta família. - Bom, então, quer saber? - disse Camilla. - Acho que ela e papai realmente se merecem.


33 O verão de Venetia passou voando. Trabalho, Jack, trabalho - com um intervalo de duas semanas no hotel Cala Di Volpe, na Sardenha, com Camilla, que insistira no fato de que Venetia precisava de umas férias. Venetia passara a quinzena toda na maior tristeza, com tanta saudade de Jack que se obrigara a consultar uma terapeuta na volta. Sua conversa com a renomada psicoterapeuta dra. Margaret MacKenzie, em seu consultório em Marylebone, havia feito com que viessem à tona várias questões pessoais dificílimas que ela teria preferido varrer para baixo do tapete, tais como o aborto na adolescência e as relações sexuais subsequentes. Mas aquilo não tinha funcionado com tanta eficiência e rapidez quanto Venetia gostaria. A dra. MacKenzie explicou que não era sua função fornecer qualquer resposta a Venetia; ela só a guiaria na direção de encontrar as respostas sozinha. - Como você descreveria sua vida sexual com seu marido? – perguntara a dra. MacKenzie a Venetia do conforto de seu sofá da B&B Italia. - Risível - respondera Venetia, antes de dizer que, no último ano e meio, era comum fingir orgasmos com Jonathon em nome das obrigações carnais. - E por que você acha que isso acontece? - replicara a terapeuta. - Engravidei aos 17 anos. Meu pai me forçou a interromper a gravidez, e passei muito tempo achando que sexo era sujo, culpado, errado. - É assim que você se sente agora? Venetia encolheu-se pensando na culpa que sentia em relação a Jack Kidman. - Culpa, sim. - Culpa em relação ao ato sexual? - perguntara a dra. MacKenzie depois de Venetia lhe falar sobre o caso. - Culpa a respeito de como eu me sinto - respondera Venetia. E este era o X da questão, pensou ao sair do consultório. O caso com Jack Kidman já não era mais só paixão pura; era uma conexão muito mais profunda e mais espiritual do que isso. A infidelidade deveria ser algo ilícito, perigoso e destrutivo, não é mesmo? Não era para parecer algo seguro, protegido e importante. Venetia não precisava dos serviços caros de Margaret MacKenzie para dizer-lhe que seu relacionamento com Jack caminhava para algo mais sério. Dez dias depois disso, Venetia estava na cama do amante, com um raio de sol matutino entrando pela janela e banhando seus corpos nus. - Sobre o que você está pensando? - perguntou Jack com voz delicada e curiosa, afastando com os dedos uma mecha de cabelo que caíra no rosto dela. Venetia acomodou o corpo contra o dele. - Só estava pensando que preciso ir trabalhar. O desfile é daqui a dez dias e tenho muito o que fazer. - Você devia ter ficado aqui ontem à noite. Achei que Jonathon tinha viajado a negócios. - Eu sei - respondeu Venetia. - Mas... Ela ainda não se sentia tão corajosa assim. E se Jonathon telefonasse para casa tarde da noite? O que a empregada, Christina, teria pensado quando fosse servir o café-da-manhã e não encontrasse ninguém? E se, e se, e se? Simplesmente era arriscado demais. - Será que podemos nos ver hoje à noite? - provocou Jack, puxando-a mais para perto com o braço. - Você está me fazendo morrer de falta de atenção. Pensando no retorno de Jonathon de Genebra naquela tarde, ela de repente se viu no maior mau humor, aborrecida com a injustiça da situação toda. - Você é uma porcaria de um egoísta - explodiu ela, afastando o corpo comprido dele.


- Egoísta? - perguntou Jack, surpreso. - Para você, não faz diferença. É aposentado, não tem emprego, não mora com ninguém, está separado da esposa. Pode ir e vir como bem entender. Eu também gostaria que as coisas fossem assim para mim, mas não são. No meu mundo, as coisas são diferentes. Não posso me dar ao luxo de ser assim tão egoísta, caramba. Ela balançou as pernas para fora da cama, vestiu um quimono de seda e saiu batendo os pés na direção do banheiro adjacente para jogar um pouco de água no rosto. A irritação dela o atingiu e Jack se recostou na cama para observá-la passando fio dental nos dentes com gestos furiosos diante do espelho. Venetia saiu pelo enorme apartamento de Jack em Westbourne Grove, entrou na cozinha high-tech de aço inox e abriu a geladeira para se servir de leite gelado em um copo de cristal. Apoiou os cotovelos no balcão de tomar café-damanhã e permitiu que o líquido frio escorresse por sua garganta. Ouviu passos atrás de si e dois braços fortes envolveram sua cintura. Por um instante, não olhou para trás, deleitando-se com a sensação dos dedos dele tocando sua pele através da seda do quimono. Ela também sabia que ele estava nu, pois sentia o contorno de seu pênis roçando suas costas. - Então, largue-o - sussurrou Jack. Venetia virou-se para trás, estupefata. - Não posso largar Jonathon - respondeu de maneira direta. - Por que não? Você me disse que não gosta da maneira como ele faz você se sentir; vocês não têm filhos. Você pelo menos o ama? Ela tirou o cabelo do rosto com raiva e pousou o copo no mármore, percebendo que sentia o ímpeto incontrolável de defender seu casamento. - Amor não tem nada a ver com isso. Jonathon é meu marido. - Amor tem tudo a ver com isso, Venetia. - Ele olhou para ela e sacudiu a cabeça. Estava perdendo a paciência, o que era muito raro para ele. – Você realmente está fodendo com tudo. - Como assim? - Quero dizer que você arranja desculpas para os outros e permanece fiel aos outros, por pior que a tratem, porque é assim que você espera ser tratada: mal. Você nunca vai ser feliz enquanto não aprender a dizer não, enquanto não aprender a deixar as coisas para trás e enquanto não aprender a ser um pouco mais egoísta. As palavras dele foram tão cruas, verdadeiras e brutais que ela sentiu dor física. - Se o meu pai fosse o seu, você compreenderia - disse ela baixinho, magoada demais para responder com raiva. Jack se aproximou e segurou o queixo dela entre os dedos. - Você merece ter tudo o que deseja, Venetia. Não deixe seu pai fazer você achar que não é digna. Porque você é. Ela assentiu. - Eu te amo - disse ele baixinho. Venetia tentou respirar, mas parecia impossível. Parecia que sua garganta estava fechada, enquanto uma onda de pânico tomava conta de seu corpo. Ele a amava. Parecia que aquela noite sob as estrelas de Sevilha, quando eles tinha se beijado pela primeira vez, havia sido dois minutos atrás. Agora ele estava sugerindo que ela rompesse com tudo o que conhecia como vida até então. Ela apertou os dedos contra as costas dele e puxou-o para o mais perto possível. Ela sabia o que queria. Ela queria Jack Kidman. Mas não sabia se tinha força suficiente para ficar com ele.


Eram 12h30 quando Venetia voltou para a loja. Brix Sanderson a esperava no terraço do telhado, bebericando uma xícara de chá Earl Crey (sem leite, mas com um pedaço grosso de limão). Brix era a principal assessora de imprensa de moda de Londres e uma das lésbicas mais fabulosas da capital. Tinha uma juba comprida de cachos castanhoavermelhados, uma plástica no nariz da década de 1980 e os gestos urgentes das pessoas que sempre dão conta de tudo. - Que belo bufê - disse Brix com um sorriso maroto quando Venetia chegou ao terraço. - Desculpe, não entendi - disse Venetia. - Isto aqui! - disse Brix, apontando para a mesa. - O seu gosto realmente é um arraso! Até mesmo uma mera xícara de chá era um evento na loja de Venetia Balcon. A mesa de ferro batido estava coberta com uma toalha de linho cor de ébano. A porcelana era branquíssima, em estilo art déco. Saquinhos coloridos de chá estavam arranjados em uma travessa redonda de porcelana, enquanto guardanapos branquíssimos e bem engomados estavam dobrados como figuras de origami em cima da mesa. - Obrigada por vir até a loja - disse Venetia, puxando uma cadeira. – E peço desculpa por ter cancelado o almoço; estou ocupada demais até para pensar em ir a qualquer outro lugar que não seja aqui ou a minha casa - disse, sentindo-se levemente culpada por ter tido tempo de sobra para passar a manhã inteira na cama com o amante. Ela sabia que Brix estaria igualmente ocupada às vésperas da Fashion Week. A agência dela, Blue Monday, prestava assessoria de relações públicas para diversas marcas de moda que não tinham serviço próprio, além de muitas outras marcas de destaque, como uma grande fabricante de champanhe e uma montadora de carros de luxo. Venetia estava felicíssima por ter conseguido contratar os serviços de Brix para o lançamento da linha de vestuário feminino Venetia Balcon. Já com quase 50 anos, Brix tinha na bagagem três décadas de experiência no mundo da moda. Também não fazia mal nenhum o fato de a companheira dela ser Ginger Foxton, a jornalista de moda mais influente do país. Venetia serviu-se de uma xícara de chá, separando as folhas cor de tabaco com uma peneirinha de prata. - Então, o que achou de Nova York? - perguntou a Brix, ciente de que ela acabara de voltar de Manhattan naquela manhã, onde assistira a um desfile de um de seus clientes na New York Fashion Week. - Estava lindíssimo - disse ela, jogando uma cortina de cachos ruivo-escuros por cima do ombro. - Eu geralmente fico muito mais animada com as coleções de outono, mas este ano... bom, vamos colocar assim: você fez a aposta certa. - Como assim? - perguntou Venetia, confusa. - Bom, pelo que eu vi por lá, o próximo verão vai ter tudo a ver com vestidinhos comportados, alfaiataria bem-feita e tons pastel adoráveis. Venetia pensou, nervosa, sobre a coleção que estava preparando para desfilar na quartafeira da semana seguinte em Londres. Roupas brancas com cara de uniformes de tênis, cashmere com brilho, acessórios discretos, calças-pijama compridas e tops com jeito de lingerie com ar de antigamente. - Ah, parece que estas são as minhas influências - disse ela, revelando sua decepção na voz. - Não se preocupe, querida. - Brix riu da ingenuidade de Venetia em relação ao mundo da moda. - É ótimo pensar na mesma linha que os outros nomes importantes. Você não vai querer vender estilo militar se Marc Jacobs resolver que tudo vai ter jeito de boêmio este ano. Demonstra bom tino comercial o fato de você estar alinhada com todos os outros


grandes estilistas, apesar de a linha Venetia Balcon ter, de fato, suas características únicas, o que é ótimo. Mas, bem - disse Brix, toda animada, tirando a jaqueta Fendi e ajeitando-a nas costas da cadeira -, adivinha quem vai assistir ao seu desfile? - Quem? - Ninguém menos do que Miranda Seymour! - disse Brix, radiante, pousando a xícara na mesa com um tremor. - Não! Meu Deus, mas que coisa! Miranda era a editora de revista feminina mais influente dos Estados Unidos. Temida e admirada na mesma medida, ela tinha o poder de fazer a fama de qualquer estilista, bem como de destruí-lo. Com toda a certeza tinha força suficiente para tirar uma iniciante da obscuridade e transformá-la na próxima Donna Karan. Apesar de Miranda ser inglesa, raramente aparecia na semana de moda de sua cidade natal; preferia ir direto dos desfiles de Nova York para os de Milão, que ocorriam uma semana depois. Na cabeça dela, Londres simplesmente não era uma capital da moda assim tão importante para se dignar a recebê-la. - Mas por que diabos ela vai ao meu desfile? - perguntou Venetia, visivelmente chocada. - Eu sabia que você ficaria contente - disse Brix, rindo, claramente deleitada. - Geralmente, ela não se incomoda com Londres, mas parece que vem receber algum prêmio de uma universidade qualquer. A assistente dela me ligou e pediu uma entrada para o desfile de Venetia Balcon, já que ela estaria na cidade. Se quer saber a minha opinião, a mulher simplesmente é obcecada pela coisa toda da aristocracia inglesa. Quer dizer, você se encaixa em todos os quesitos, não é mesmo? - disse Brix, forçando de propósito o sotaque do sul de Londres. - Você é filha de um lorde, é irmã de Serena Balcon e tem esta vida glamourosa de esposa de administrador de fundo multimercado. Pode ter certeza de que ela viu a sua casa na Vogue dos Estados Unidos. Faça um bom desfile, mocinha, e escreva o que estou dizendo: ela vai virar sua maior defensora. Brix tirou um caderno grande com capa de pele de crocodilo da bolsa Mulberry e começou a repassar suas anotações com Venetia. - Como sabe, o horário do seu desfile, às dez da manhã, é considerado uma espécie de cemitério - começou. Venetia estava ciente daquilo, mas precisara falar com todos os contatos que tinha no British Fashion Council só para conseguir fazer seu desfile de estreia durante o evento, para começo de conversa. Uma marca tão desconhecida quanto a dela tinha sorte de conseguir entrar na lista dos desfiles. - No entanto, o retorno tem sido fenomenal - disse Brix. - Todas as editoras de revistas femininas do Reino Unido estarão presentes. Todos os principais jornalistas especializados, além das celebridades que geralmente comparecem a esse tipo de coisa. Imagino que Serena estará lá, certo? Venetia assentiu. - O Times quer fazer uma entrevista com você, a revista de sábado do Telegraph quer falar com Diego, isso se conseguirmos fazer a foto dele esta semana. - Vou ligar para ele agora mesmo - disse Venetia, já pegando o celular. Leila Barnes, a assistente de Venetia, entrou no terraço com uma expressão bastante desconcertada. - Venetia, posso falar com você um instante? - perguntou. Venetia imediatamente pressentiu a ansiedade na voz dela, pediu licença a Brix e atravessou as portas envidraçadas que conduziam ao interior da loja. - A polícia está à sua procura.


A primeira coisa que Venetia pensou foi que tinha acontecido alguma coisa com seu Range Rover, estacionado em uma vaga com parquímetro na frente da loja. Será que o tempo já tinha acabado? Ela entrou em seu escritório, onde dois policiais - um homem e uma mulher - estavam sentados, muito agitados, nas cadeiras de couro. - Senhora Von Bismarck? - perguntou a policial, levantando-se. - Sim, sou eu - respondeu Venetia tão calma quanto possível. – Por favor, sentem-se. Em que posso ajudar? A policial tinha cerca de 30 anos, expressão inteligente e cabelo castanho preso com cuidado para trás. Apresentou-se como sendo a sargento Gillian Finch, limpou a garganta e esperou enquanto Venetia se acomodava atrás de sua mesa. - Infelizmente, trago más notícias - disse ela com suavidade, sem fazer rodeios. - Parece que houve um acidente... um incêndio no apartamento de Diego de Bono, na zona norte de Londres. Venetia sentiu o sangue gelar. - Ele está bem, não está? - perguntou, as palavras praticamente lhe saltaram da garganta. Quer dizer, quando foi? Onde ele está? O que aconteceu? Os dois policiais se entreolharam por um instante, e logo a sargento Finch prosseguiu. - Sinto informar que o senhor de Bono morreu no incêndio... - fez uma pausa hesitante, enquanto o choque se registrava no rosto de Venetia, que levou a mão à boca -, mas não é exatamente por isso que estamos aqui, senhora Von Bismarck. - Não compreendo - disse ela, sua voz tremendo de ansiedade. - Temos razões para acreditar que seu marido também estava na residência na ocasião do incêndio. - Finch fez uma pausa, dando tempo para que ela absorvesse toda a gravidade da situação. - Encontramos um corpo que, acreditamos, seja do seu marido, e gostaríamos que viesse conosco para identificá-lo. Agora ela estava histérica. - Jonathon morreu? É isso que está me dizendo? Na casa de Diego? - disse Venetia, apertando o peito. - Isto é ridículo. Meu marido mal conhecia Diego. O que estaria fazendo no apartamento dele? Por que vem até aqui me dizer tal coisa? - O corpo está parcialmente queimado - disse o outro policial, sem olhá-la nos olhos. - Mas havia identificação nas roupas, como cartões de crédito etc. Todos trazem o nome do seu marido. - Não, não está certo, não pode ser. - Ela começou a sacudir a cabeça lentamente. - Acho que é melhor a senhora nos acompanhar - disse a sargento Finch. - Para que possamos esclarecer a situação o mais rápido possível. Acho que é melhor vir na nossa viatura - completou ela com gentileza, pousando a mão no ombro trêmulo de Venetia. Venetia abanou a mão na frente do rosto. - Sim, sim, humm, eu vou, sim, só preciso... só preciso dizer à minha colega. Deu passos lentos e deliberados na direção do terraço, a cabeça baixa, apertando as têmporas com os dedos. - Qual é o problema? - perguntou Brix, levantando-se. Venetia respirou fundo, tentando pensar de maneira racional. Apoiou uma das mãos na toalha preta, tentando se equilibrar enquanto olhava para Brix; seu rosto estava pálido. - Houve um incêndio - gaguejou ela, os olhos enlouquecidos. - Diego morreu. Ela viu quando a boca de Brix se abriu em horror, como um filme em câmara lenta. - Jesus, ai meu Deus, ai meu Deus - disse Brix, depois de alguns instantes.


- E talvez Jonathon também - disse Venetia; sua voz era um sussurro desafinado. - Estão dizendo que Jonathon também estava no apartamento. - Ela ergueu os olhos para Brix, tentando dar sentido àquilo. - Mas não sei como pode ser... Eles mal se conhecem... Quando ergueu os olhos para Brix, Venetia viu algo sombrio passar por seu rosto. Compreensão... acanhamento? Brix não olhava nos seus olhos. Apesar do choque, Venetia não deixou aquilo passar em branco. - Brix, o que foi? Brix sentou-se outra vez e ficou olhando atentamente para a xícara de chá; mergulhou a colher de prata no líquido e ficou observando enquanto girava, formando espirais de líquido. - Brix, me diga! Você sabe de alguma coisa, eu já percebi! – disse Venetia, com muita seriedade na voz. - Não, não sei... - respondeu Brix, baixinho. - Pode contar! Tem a ver com Diego e Jonathon? Brix ergueu os olhos e o olhar das duas se encontrou. - Jonathon e Diego se conheciam. Eles eram... amigos. Eu os vi juntos por aí durante o verão. Brix tinha feito uma leve pausa na palavra "juntos", e Venetia havia percebido. Um pensamento feio passou por sua cabeça e ela tentou expulsá-lo. Juntos? Será que ela estava falando que eles estavam juntos? Ela sabia, no fundo do coração, que Jonathon tinha tido casos durante o tempo que ficaram juntos. Recibos misteriosos de floriculturas e hotéis, gente que ligava e desligava o telefone sempre que ela atendia, boatos de que ele tinha sido visto em uma daquelas festas de sexo de alta classe em que os ricos e decadentes exploravam o lado mais negro do desejo. Mas ela tinha se especializado em ignorar qualquer coisa na vida de Jonathon que não visse com seus próprios olhos. Sabia que Brix tinha mais informações, mas, naquele momento, não queria saber. - Vou acompanhar a polícia - disse baixinho. Brix assentiu com a cabeça. - Quer que eu faça alguma coisa? Quer que eu vá junto? Venetia sacudiu a cabeça e virou-se para seguir a sargento Finch. O Range Rover dela estava estacionado na rua, mas ela não tinha como dirigir: suas mãos sacudiam como um liquidificador em baixa velocidade. Acomodou-se no banco traseiro da viatura policial: isolada, vulnerável, olhando para a frente sem enxergar nada. No piloto automático, ligou para Camilla pelo celular e esperou que tocasse. Camilla, com sua calma e sua tranquilidade. Ela precisava dela. - Alô, aqui é Camilla Balcon. - Sou eu. - Venetia? Tudo bem com você? - Não exatamente, eu... eu... - a voz na linha era baixinha e esganiçada. - Ouça, Camilla, onde você está? - Estou trabalhando em casa. - Cam, preciso da sua ajuda. Agora a voz dela estava começando a tremer, as lágrimas começavam a escorrer. - Van, onde você está? O que aconteceu? Silêncio.


- Olhe, diga onde você está - disse Camilla, com urgência na voz. - Vou pegá-la. Venetia nunca tinha entrado em um necrotério. A morte da mãe tinha sido a única que ela vivenciara, e na época tinha 10 anos. O mais próximo que chegara do corpo fora ver o caixão de nogueira no velório da fileira da frente da igreja, enfeitado com tílias e rosas do tamanho de pires. Mas ela tinha assistido a seriados policiais suficientes para saber o que encontraria pela frente. Um edifício com iluminação de lâmpadas fluorescentes, como uma escola comprida e deserta. Venetia e a sargento Finch foram recebidas por um legista que as conduziu em silêncio até uma sala fria e parca. Os ombros dela se retesaram quando o legista a conduziu até uma mesa estreita, sobre a qual um contorno comprido se delineava embaixo de um lençol. - A inalação de fumaça foi fatal - disse a sargento Finch, tentando consolá-la de algum modo. - O rosto quase não sofreu queimaduras. Ela agarrou a alça da bolsa de couro com as mãos úmidas enquanto Gillian Finch puxava o lençol que cobria a parte superior do corpo. Por instinto, Venetia se encolheu e desviou o olhar. Repreendendo a si mesma, ela se forçou a olhar para o rosto do cadáver. Os olhos estavam fechados, formando duas luas crescentes abaixo da testa, mas ela reconheceria o formato do rosto de Jonathon em qualquer lugar: as bochechas altas, o nariz europeu, o lábio rígido. Segurou o ímpeto de engasgar. - É ele - disse ela, voltando-se para a policial. O legista voltou a cobrir o rosto e fechou aquele capítulo da vida de Venetia em silêncio. Camilla estava sentada na cadeira de plástico cinza na área da recepção. Quando viu Venetia, levantou-se e caminhou lentamente até ela, estalando os saltos sobre o chão nu. - Sinto muito, Van - disse Camilla, dando um abraço na irmã. - Vamos, eu a levo para a minha casa. Camilla olhou para a sargento Finch. - Há mais alguma coisa que ela precise fazer? A policial olhou para Venetia com ar de solidariedade. - Não. Estou com o telefone da senhora Von Bismarck e com o seu endereço. Passarei por lá hoje mesmo, mais tarde, para fazer algumas perguntas. Venetia olhou para ela. - Que outras informações vocês têm? O que mais sabem? Por favor, me diga - disse ela com a voz embargada. - Segundo a primeira avaliação dos bombeiros, provavelmente o incêndio começou com um cigarro que deve ter caído atrás do sofá. Havia várias garrafas de vinho no lugar que o fogo começou. Acho que os dois tinham bebido. - Onde foram encontrados? A sargento Finch evitou o olhar dela. - Onde foram encontrados? - repetiu Venetia, sua voz trêmula. Ela sabia qual seria a resposta. Previu as palavras que sairiam da boca da policial antes que ela as proferisse. - Na cama - disse Gillian Finch, baixinho. - Sinto muito. Venetia agarrou-se ao braço da irmã enquanto caminhavam pelo estacionamento até o Audi de Camilla. Garoava, o sol da hora do almoço dando lugar a nuvens de tom cinza-chumbo. Acomodaram-se nos bancos da frente do carro. O único som que se ouvia era o tamborilar da chuva enquanto o interior do carro ia embaçando. Venetia olhava para o colo, examinando um fio solto da costura da calça e tentando se lembrar de qual tinha sido a


última coisa que Jonathon dissera a ela. Deu risada. Não conseguia se lembrar. A risada saiu cruel, como de alguém que acabara de fazer uma maldade. - Nós dois estávamos tendo casos, sabia, Camilla? - disse Venetia. – Os dois com outros homens, aliás. Camilla permaneceu em silêncio. - Eu sei que as coisas entre Jonathon e eu não eram perfeitas, longe disso. Mas o que eu fiz de tão errado? Por que ele estava saindo com Diego? Um homem? - Ela respirou com dificuldade e sua compostura desabou, a cabeça se afundando no peito enquanto ela soluçava. - O que eu fiz? Camilla estendeu o braço e pegou sua mão trêmula. - Não é sua culpa, não é sua culpa - repetiu baixinho. Venetia respirou fundo e se esforçou para se recompor. Ficou olhando fixamente para a frente e tentou contar os pingos de chuva que caíam no vidro. - Agora não importa mais, não vou mais me encontrar com Jack Kidman. Camilla sabia exatamente o que a irmã estava tentado fazer. Queria se castigar por Jonathon, por tentar encontrar afeto fora de um casamento sem amor. - Van, você não precisa... - Também preciso cancelar o desfile - disse Venetia, friamente. - Tem certeza? - perguntou a irmã. - Mas você se esforçou tanto... - É preciso - disse Venetia, baixinho, puxando o fio solto até desfazer toda a costura. Tenho que fazer isso por Diego. Camilla olhou para ela, sem compreender sua lealdade. - Mas ele estava saindo com o seu marido. Ela se segurou e não disse mais nada. Venetia deu uma risada triste. - Não faz sentido, não é mesmo? Nada faz sentido. O desfile não foi cancelado. Oswald insistiu para que não fosse. - Até que o inventário de Jonathon esteja finalizado, eu ainda tenho voto com peso de quarenta e cinco por cento nesta empresa - dissera a ela, esmagando suas melhores intenções, até que, finalmente, ela cedeu, fraca demais para resistir. O momento para lançar sua coleção de estreia não podia ser pior: no dia seguinte ao enterro do marido. Seu mundo, que já tinha sido tão calmo, ordenado e simples, afundava-se sob seus pés como areia movediça. Venetia não conseguia passar nem um segundo com a mente vazia, que logo se transformava em um enxame de culpa, dúvida e dor. Não era a tristeza o que não suportava, era a traição. Será que o marido realmente morrera queimado? Será que estava mesmo tendo um caso com outro homem... o próprio estilista dela? Será que era tudo sua culpa, alguma vingança distorcida por sua própria infidelidade com Jack? E Jack: ela não podia permitir que ele se infiltrasse em seus pensamentos. Não agora. À medida que o desfile se aproximava, o famoso porte altivo de Venetia desaparecia. Sua pele andava cinzenta e flácida, o cabelo estava desgrenhado e as roupas, amassadas. Estava sem energia nenhuma, e a única coisa que a fazia seguir em frente era a idéia de que a coleção poderia receber críticas negativas. Escolha de modelos, provas de roupas, todos os preparativos frenéticos de sua coleção de estreia foram conduzidos em meio a uma névoa de entorpecimento e de energia desesperada. Ela não podia falhar nisto, não depois de ter estragado tudo o mais.


No dia do evento, a tenda da London Fashion Week estava lotada. A morte de Diego era a melhor divulgação que se podia esperar para o desfile. As fofocas do mundo da moda não paravam de falar sobre a maneira como tinha morrido, e Venetia se sentia uma tola. Brix Sanderson abafou boa parte do escândalo, dizendo a todo mundo que Jonathon e Diego estavam reunidos para falar de negócios. Se a verdade viesse à tona - se as pessoas soubessem que os dois homens estavam transando -, Brix sabia que Venetia se isolaria do mundo completamente, e não permitiria que isso acontecesse à amiga. Na ponta da passarela, o efeito elaborado de cachoeira, montado pela Flower Productions, fora substituído por uma fotografia em preto-e-branco de Diego. Venetia simplesmente assentiu ao ver a imagem, conseguindo engolir a bile que sentiu subir por sua garganta. Mas, como o produtor-chefe do desfile tinha ressaltado, precisavam causar impacto. E deu certo. Metade das pessoas na primeira fila chorava enquanto as modelos desfilavam na passarela com aquela seleção tão linda de roupas. O desfile foi aplaudido de pé. No camarim, Venetia não conseguia se mexer de tanta gente que se acotovelava para lhe oferecer palavras tanto de condolências quanto de parabéns. Miranda Seymour entrou no camarim vestindo uma jaquetinha justa de cashmere com uma enorme gola de pele de raposa prateada e deu-lhe beijinhos nas bochechas. - Se conseguir dar continuidade a esta visão, está pronta para Nova York na próxima temporada. Ligue para mim - completou ela, depois desapareceu. No salão, Oswald tomava conta do espetáculo, feliz da vida com toda a atenção que recebia e com o deleite da realeza da moda, que ele, na verdade, não compreendia muito bem, mas que queria entender. Fora de cena, escondida atrás de uma enorme arara de roupas, Venetia ouvia as risadas, os aplausos e os sons de prazer. Nunca se sentiu tão desesperada.


34 - Viva Fierce Temper! - disse Philip Watchorn, erguendo mais uma taça de Dom Pérignon 1975. Acomodados na suíte presidencial do Hôtel de Crillion, seis outros homens, todos com as faces rosadas, efeito de um dia inteiro de bebida, inclinaram as taças na direção dele. O treinador de Fierce Temper, Barry Broadbent, desacostumado a tanto luxo, recostou-se e enxugou o copo de um só gole. Reclinando-se na chaise longue de seda como um senhor feudal, o jóquei Finbar O'Connor, que parecia pequeno demais para suportar tamanha quantidade de álcool, fazia sinais de positivo com a cabeça, contente com a cena, enquanto Philip e Nicholas Charlesworth papeavam com animação, parabenizando-se mutuamente por aquele dia esplêndido. Apenas Oswald parecia mais sóbrio, examinando a cena da porta, passando a mão no copo, pensativo, enquanto refletia sobre os acontecimentos do fim de semana. De fato, aquele tinha sido um dia e tanto. Ele ainda não conseguia acreditar que seu cavalo havia vencido o primeiro prêmio da Europa. Não fazia muito tempo que classificara aquele puro-sangue árabe de jumento. Talvez tivesse sido um pouco severo demais com Barry Broadbent depois do quinto lugar no grande prêmio de Newbury em abril. Nossa, como aquilo parecia distante! Seis meses depois, Fierce Temper vencera o Prix de l'Arc de Triomphe em Longchamp. Assim, conquistavam três vitórias consecutivas, dois segundos lugares e quase um milhão de libras em prêmios do Grupo Um. Que temporada! A emoção de ver o pescoço comprido de Fierce Temper passar a linha de chegada em primeiro lugar naquele dia tinha sido como o efeito de uma droga poderosa. A única mancha era a presença diminuta e perversa de Oeclan O'Connor, irmão e "agente" de Finbar, que não largara do pé deles o dia inteiro. Que sujeitinho com cara de mau, pensou, observando-o acomodado em atitude protetora ao lado de Finbar na chaise longue, bebendo todo o champanhe deles. Não tinha dito quase nada o dia todo, a não ser para mencionar algo sobre um "bônus" para Finbar. Quando Oswald ressaltara que a BWC Holdings recompensava seu jóquei com muita generosidade, ele sorrira com a boca torta e só dissera: "Estou apenas cuidando do meu irmãozinho." Apenas cuidando do meu irmãozinho. Foi o jeito astucioso e carregado como ele dissera as palavras. E havia algo de muito familiar em sua voz. Já a tinha ouvido antes, em algum lugar. O cérebro de Oswald fez uma lenta conexão: será que tinha sido a voz que o ameaçara ao telefone no dia do grande prêmio de Two Thousand Guineas? Será que tinha sido Oeclan? Mas por que aquele homenzinho desprezível se incomodaria com ele? Afastou suas desconfianças quando Nicholas Charlesworth bateu no copo para chamar a atenção dos homens e fazer com que ficassem quietos do outro lado da sala. - O que precisamos agora, cavalheiros - anunciou ele -, é sair deste hotel e aproveitar Paris. Temos reserva para jantar no George V e depois eu conheço uma boatezinha maravilhosa no sexto, que vai ficar aberta o quanto quisermos. O carro está à nossa espera na frente do hotel, por isso, peguem seus casacos, camaradas! Uma forte sensação de déjà vu percorreu o corpo de Oswald. Era como se tivessem voltado à década de 1960. Lá estavam eles, todos homens poderosos e de sucesso, com a perspectiva de mais poder e mais sucesso à frente; bastava esticar a mão e pegar. Naquela época, Oswald teria sido o primeiro a se juntar ao grupo para fazer um tour pelas boates de Mayfair ou de Paris, mas não naquela noite. Pegou seu paletó de camelo e fez o braço deslizar pelo forro de seda vermelha. - Acho que esta noite já foi animada demais para mim, cavalheiros. Se vocês não se importam, vou me retirar. O fim de semana foi longo.


- O que deu em você? - disse Philip, dando um tapinha de amigo no ombro de Oswald. Mas se vai mesmo ser um desmancha-prazeres, assegure-se de que vai acordar na hora certa amanhã. O carro vem nos buscar às oito. Esteja pronto, certo? Oswald lançou um sorrisinho para os amigos, saiu pela porta e percorreu os corredores até a suíte do andar inferior. Depois de diversas tentativas frustradas de fazer a porta abrir com o cartão, Oswald finalmente conseguiu entrar, sem acender a luz. A suíte era pequena, mas a vista para a Place de la Concorde era espetacular. Sentiu-se envolto pela escuridão; as formas vazias do quarto atrás de si com a noite inteira à sua frente, salpicada de luzes cor de açafrão que se borravam na garoa outonal de Paris. Parado ali, observando a cidade de cima, ele se sentia como o mestre de algum tipo de universo negro. Um sorrisinho se abriu em seus lábios. Ainda estava embriagado pelo sabor da vitória e, apesar de o álcool ter tirado a agudez de seus instintos, de repente o futuro lhe pareceu claro. Estavam sentados em cima de uma mina de ouro. Aquele tolo do Watchorn podia ficar falando sobre o "esporte dos reis" o quanto quisesse, e é claro que fora uma grande emoção ver Fierce Temper levar um dos mais importantes prêmios das pistas de corrida. Mas o negócio não tinha mais nada a ver com as corridas: estava centrado no marketing. Ele aprendera isso com o desastre da Noite Musical de Huntsford e nunca mais cometeria o mesmo erro. Os verdadeiros lucros hoje estavam em usar garanhões premiados para cruzar com éguas de qualidade e dar origem a potros promissores. Os melhores centros de treinamento do mundo todo faziam isso havia anos: cavalos premiados, cavalos como Fierce Temper, podiam cobrar cinquenta, cem mil libras por vez para cobrir uma égua. Teriam a oportunidade de ganhar milhões, fazendo com que o dinheiro recebido com prêmios nesta temporada parecesse troco. O prazer quase sexual da ansiedade que corria pelo corpo de Oswald era delicioso. Ele não podia confiar nas filhas para manter o legado dos Balcon da maneira adequada; sabia que isso estava a cargo dele e que dependia da astúcia com que fizesse seu jogo. Olhou para a cidade abaixo de si cheio de cobiça. Sob as luzes da rua, pôde apenas vislumbrar o contorno de Nicholas Charlesworth, Finbar e Declan desaparecendo dentro de um Bentley para uma noitada frívola na cidade. Todos se achavam muito inteligentes, mas é claro que era Oswald quem tinha as grandes ideias por ali. E estava tendo uma naquele exato momento. Um pensamento surgiu em sua mente, fez seu corpo se contorcer e ele sentiu enjôo de tanta animação. Sim, era uma boa idéia. Daria certo. E aquele ano seria dele.


35 O Bentley branco de Elmore Bryant serpenteava pelo interior de Oxfordshire, percorrendo um labirinto de estradinhas vicinais sinuosas tão estreitas que mal dava para um carro grande passar. Era uma linda tarde para um casamento. Levando-se em conta que era outubro, o clima estava muito mais ameno do que deveria estar. Elmore voltou-se para Serena e apertou a mão dela, que repousava sobre o estofamento de couro a seu lado. - Será que posso dizer mais uma vez como você é um amor de aceitar ser minha linda acompanhante hoje? - disse ele sorrindo e apertando os lábios em um beijinho. - Não acredito que Horatio me deu o cano no último minuto. Mas acho que é bem feito para mim, por me envolver com brasileiros indignos de confiança. Serena sorriu. - Bom, ele é lindo de morrer - disse ela. - A gente precisa fazer algumas concessões por isso. - De qualquer forma, nós vamos nos divertir mais - disse Elmore, abanando o convite branquinho na mão. - A mistura de pessoas lá vai ser exata, então vai ser fabuloso só de ficar olhando. Estavam a caminho das núpcias de Melissa D, amiga de Elmore, com o namorado banqueiro. Melissa D, uma modelo/atriz/sei-lá-o-quê canadense que morava em Notting Hill, tinha ficado muito amiga de Elmore depois que os dois se conheceram, dois anos antes, na clínica Water Meadows. Ela tinha ido para lá para se tratar do vício em heroína, que vazou para a imprensa como "exaustão", ao passo que Elmore estava lá para tentar se livrar do péssimo hábito de tomar champanhe Roederer Cristal demais. Melissa era bem conhecida das páginas de festas britânicas, mas, assim como muitas modelo/atriz/sei-láoquê, tinha renda própria muito pequena, e resolvera percorrer o caminho das garotas da hora que se abria à sua frente e arrumar um bom casamento. Tinha conseguido colocar Robert Charles Baker no saco, um ex-aluno de Eton e banqueiro de sucesso no mercado de títulos que ela conhecera no bar gastronômico The Cow, em Westbourne Grove, um ano antes. A vida de Robert Charles tinha sido bem cinzenta até conhecer Melissa, e ele ficara mais do que feliz em atender ao desejo dela de que a revista Hello! fizesse uma grande reportagem sobre o casamento. O casal havia ficado mais do que deliciado quando Elmore lhes dissera que levaria Serena Balcon como companhia, o que aumentaria a cota de celebridades no casamento de maneira substancial e, esperava-se, também o dinheiro que Melissa poderia pedir para a revista. Serena, por outro lado, não tinha exatamente compartilhado o entusiasmo deles quando Elmore a convidara: no começo, havia dito não, afirmando que casamentos de celebridades com cobertura da imprensa simplesmente eram cafonas. Mas não tinha sido necessário muito esforço para persuadi-la. Durante todo o verão, à exceção da catástrofe que tinha sido a Noite Musical de Huntsford, Serena ficara na moita de propósito. Além de ter apreciado o retiro para lamber as feridas, sua ausência da cena obtivera o efeito bem-vindo de deixar as pessoas mais desesperadas por fofoca, fotos e informações sobre sua vida. Mas agora estavam em outubro e, à medida que as semanas iam passando, o interesse da imprensa ia arrefecendo. O que era ainda mais preocupante era a nova fornada de moças que tinha tomado as páginas das publicações. Ela havia instruído sua assessora de imprensa a recusar tantas entrevistas para capas de revista que os jornalistas simplesmente haviam parado de ligar.


Era um sentimento estranho e deturpado, mas Serena sentia falta de sua linha de celular entupida de ligações aleatórias dos tablóides e dos paparazzi sorrateiros com suas lentes de longo alcance acampados na frente de sua casa. Serena Balcon nunca seria esquecida, mas naquele momento simplesmente havia uma breve brisa gelada de preocupação soprando sobre sua vida. Sim, fora dela a decisão de ficar um tempo fora dos holofotes, mas ela sabia jogar aquele jogo muito bem, e a última coisa que desejava era que sua próxima foto a circular fosse uma imagem de paparazzi dela bem grávida e com peitos enormes. Ela queria fazer seu retiro e então reaparecer, como uma borboleta, em janeiro, depois do parto. Mas talvez um pouco de notícias bombásticas não fizesse mal nenhum nesse meio-tempo. Quase como se estivesse lendo seus pensamentos, Elmore lançou-lhe um olhar enviesado e deu um sorriso. - Você sabe que Melissa é uma moça bonita, mas acho que hoje à tarde ela vai ficar na sua sombra. Você está absolutamente maravilhosa. Apesar de ser um pouquinho maldosa por estar de branco. Serena abaixou os olhos para seu vestido de seda maravilhoso, tão fino que dava para ver uma sugestão da lingerie La Perla que usava por baixo. O decote era bem acentuado, com botõezinhos perolados por toda a parte da frente, sendo que Serena deixara metade deles meio abertos para mostrar um pedaço da perna de pele macia. Sua silhueta estava um pouquinho mais cheia, o volume da barriguinha aparecia, de modo que suas curvas enchiam o vestido como uma urna grega deliciosa, com o tecido a envolvê-la. O visual foi arrematado com um par de sandálias de salto alto cor de bronze com tiras que lhe subiam pelas canelas e uma pulseira grossa de ouro no pulso. Parecia uma deusa grega em sua melhor forma. - Mas, bem, não estou de branco; é beginho. - Você é terrível - disse Elmore. E os dois caíram na risada. O Chateau d'or era um dos hotéis/restaurantes mais badalados da Inglaterra; sua lareira de mármore chegava a envergar com o peso de tantos prêmios gastronômicos que recebera nos dois anos que haviam se passado desde que fora reformado. No passado, tinha sido uma residência grandiosa e antiga, de arquitetura inspirada em um dos imponentes castelos do vale do Loire, na França; recentemente, tinha sido transformado em um restaurante de luxo com estrelas no guia Michelin. Mas a fama do castelo estava ligada, da mesma forma, às suítes charmosas e suntuosas que salpicavam a propriedade. Era o destino número um na lista de pessoas de toda a Europa que buscavam um fim de semana romântico, e o casamento de Melissa e Robert ocupara o lugar todo naquele dia. Limoeiros ladeavam a longa entrada coberta de cascalho, enquanto o chateau de pedra em tom de cinza-pomba tinha quatro torreões magníficos que apontavam para o céu muito azul de outono. A cerimônia em si teria lugar na ampla estufa atrás do prédio principal, que tinha sido decorada com flores tropicais e esculturas de gelo - que iam se derretendo - no formato das iniciais da noiva e do noivo. Não foi nada difícil descobrir qual era o lado da noiva e qual era o do noivo, pois um lado estava lotado de Roberto Cavaili, estampa de oncinha Dolce & Gabanna, chapéus emplumados Philip Treacy e o cheiro exótico das fragrâncias marcantes, enquanto o outro era composto de britânicos tradicionais e discretos, que envergavam ternos para o dia em diversos tons de cinza, kilts e gravatas antigas de escola. Os fotógrafos da Hello! entraram em ação quando Serena passou pela porta, só se ouviam os motorzinhos funcionando enquanto ela fazia poses experientes. Apesar de não ser realmente amiga, muito menos de


fazer parte da família, Serena recebeu um lugar na segunda fileira e todos os olhos se voltaram para ela, inspecionando sua roupa com avidez. Desesperada para dar uma boa olhada no lugar e ver quem mais estava lá, mas ciente de que não deveria parecer ansiosa demais, Serena ficou olhando para o folheto da missa até a música anunciar que a noiva estava entrando. De canto de olho, Serena examinou Robert Charles Baker com olhar crítico. Era um rosto na faixa dos 30 anos, agravado pela expressão séria e pelo corte de cabelo de jovem advogado, com olhos aquosos e queixo fraco. O físico de jogador de hóquei tinha sumido depois de tantas horas atrás de uma mesa. Deve ter achado que tirou a sorte grande ao conhecer Melissa, pensou Serena, sorrindo para si mesma. Era um caso clássico de compromisso no código postal Wll de Londres, em que modelos exuberantes com histórico para lá de baixo e sem nenhum talento real cediam seus genes de qualidade para o pessoal sem graça de pele pálida da classe média: homens cuja arrogância adquirida na escola particular os fazia acreditar que mereciam mulheres fabulosas em vez das moças de família criadas para cuidar da casa que lhes seriam mais adequadas. Finalmente, todas as cabeças se voltaram quando os primeiros acordes de ''You Do Something To Me", de Paul Weller, encheram o salão de vidro e Melissa apareceu flutuando pelo corredor de igreja improvisado. - Que vestido é este? - sibilou Elmore, esforçando-se para olhar. – Ela me disse que ia fazer o estilo "noiva boêmia". O vestido de Melissa era solto e esvoaçante; metros de organza branca como a neve despencavam da cintura império; as mangas eram volumosas, em formato de sino, feitas do voile mais transparente possível; pareciam as vestes de alguma princesa medieval. O cabelo castanho-escuro estava solto e repartido no meio, caindo em cascatas de cachos compridos, pré-rafaelitas, pelas laterais do rosto e por cima dos ombros. Em vez de tiara, ela usava uma faixa de cabeça fina e dourada. - Está tudo muito Ali McGraw - sussurrou Elmore, com a cabeça virada quase 180 graus. - Está mais com cara de Ali Babá - murmurou Serena, dando risadinhas e voltando-se para a frente mais uma vez. - Que negócio dourado é aquele na cabeça dela? Veio fantasiada de Flash Gordon? Satisfeita por ser, de longe, a mulher mais bonita e mais bem vestida do salão, Serena acomodou-se para aproveitar a cerimônia. Claro que aquela não era a ideia que ela fazia de casamento dos sonhos: para ela, a idéia de se casar em um lugar que era, essencialmente, um hotel lhe parecia mais do que um tanto estranho. Apesar de não ter nenhum tipo de convicção religiosa, continuava achando que o jeito certo de fazer as coisas era em uma catedral, com uma cauda do tamanho de uma piscina olímpica se arrastando atrás de si. Mas até mesmo Serena achou difícil manter seu ceticismo por muito tempo. Tentou soltar uma gargalhada quando o casal fez suas juras de amor escritas de próprio punho, mas, secretamente, ficou emocionada quando Robert e Melissa se beijaram pela primeira vez como marido e mulher e uma onda calorosa de aplausos encheu o recinto. Quando Robert e Melissa saíram de mãos dadas e a multidão encheu a estufa com uma onda de comemoração calorosa, as mãos de Serena, de maneira inconsciente, começaram a acariciar sua barriga grávida. Só por um segundo, sentiu o vazio da solidão. Sacudindo a cabeça, ela pegou Elmore pela mão. - Vamos sair daqui - sussurrou, ciente de que todo mundo estava começando a olhar para ela. - Faz três meses que eu não bebo nada, mas hoje vou me permitir abrir uma exceção.


- Olá, cunhadinha. Bem, possível cunhadinha. Serena, sentada à sua mesa no salão de banquete, voltou-se e viu David Goldman parado à sua frente, segurando uma taça de champanhe com cara de alguém para quem a sobriedade não passava de uma memória distante. Sorrindo, ela se levantou e ficou da altura dele com suas sandálias gregas com salto dez. - Cunhadinha? - disse ela. - Sei que não ando vendo Cate muito ultimamente, mas tem alguma coisa que você queria me contar? David riu. - É só um apelido carinhoso - disse ele, dando um gole longo no Moét rosê. - Deixe-me adivinhar - disse Serena, permitindo que o garçom que passava enchesse sua taça. - Amigo do noivo? - Ai! - David fez uma careta. - Esta doeu, senhorita Balcon. Não sou, devo ressaltar, integrante tradicional da comunidade financeira. Serena o examinou por um instante e foi obrigada a concordar. O terno azul escuro era elegante e lhe caía bem, o brilho da camisa branca se fazia ressaltar com a pele bronzeada, o cabelo preto estava despenteado na medida certa e os olhos - ela reparava pela primeira vez - eram de um cinza-chumbo impressionante, como um céu noturno de tempestade. Aliás, David tinha glamour suficiente para pertencer ao lado da noiva no salão. Mas ela é que não lhe diria isso. - Então, onde está Cate? Já devia fazer quase quatro meses que Cate e David estavam juntos, pensou Serena, desde a noite da festa de lançamento da Sand. Apesar de ela só ter encontrado David uma ou duas vezes durante o verão todo, sabia que o casal não passava tanto tempo assim junto. Parecia que Cate estava trabalhando o tempo todo, ao passo que David ficava fazendo suas negociações no distrito financeiro. Ainda assim, ficou bastante surpresa de não ver a irmã com o novo namorado naquele casamento. - Ah, você sabe como ela é - suspirou David. - Está sempre fazendo uma coisa ou outra com aquela porcaria de revista. Neste fim de semana, é a foto de capa. Mas, bem - ele deu um sorriso vagaroso -, já que estou sem companhia hoje, ficaria deliciado de passar algumas horas com outra das irmãs Balcon. - Ele fez uma mesura de piada. Ela sorriu e admirou a coragem dele. Serena sempre achava que os homens se sentiam intimidados com mulheres como ela. - Espero que, com isso, você não queira dizer que sou a segunda opção, certo? Eu nunca toco o segundo violino. - Serena estava bem consciente que sua voz carregava um certo tom de flerte. - Não duvido - disse David com um sorriso sacana. - Então, posso convidá-la para dançar? Apesar de não ser sua intenção, Serena estava se divertindo. Elmore a abandonara; tinha desaparecido para fazer um número no piano, que era seu presente para o feliz casal. Jogada para a companhia de David Goldman, Serena descobriu que realmente gostava do estilo dele. David ficou bem feliz de fofocar sobre roupas de casamento equivocadas e de desviar a atenção de banqueiros bêbados que queriam conversar com Serena; também ria em todos os momentos certos enquanto ela falava e a fez rodopiar pela pista de dança, fazendo com que se sentisse leve como uma fadinha, e não grávida de seis meses. Claro que ele não era o tipo dela. David Goldman não era uma estrela como Tom Archer nem um empresário bilionário como Michael Sarkis, mas ela estava começando a perceber o que Cate via nele. David tinha olhos que pareciam estar sempre pensando em uma travessura e um charme que fazia o flerte parecer uma forma de arte. Começou a se perguntar o que


David Goldman via na irmã. Certo, Cate era doce, inteligente e bonitinha a seu modo, mas Serena conhecia o tipo de David: homens que se sentiam atraídos por beleza, glamour e mulheres com perfil que pudessem exibir como um troféu. Homens assim simplesmente não se interessavam por mulheres como Cate. A festa ia arrefecendo. Um punhado de convidados agitava-se na pista de dança ao som de sucessos cafonas da discoteca da década de 1970; do outro lado do salão, taças de vinho vazias se enfileiravam aos montes sobre as toalhas manchadas. A noiva, já sem a faixa na cabeça e sem os sapatos, e o noivo, já sem o paletó e sem a gravata, se retiraram, acenando com as mãos e dando risadinhas, em direção à suíte de lua-de-mel no primeiro andar do chateau. Da última vez que Elmore tinha sido avistado, estava desaparecendo com o DJ assistente, um moreno jovem com a bunda firme como uma alface americana. Em um canto, a madrinha de Melissa, cantora de um grupo feminino em decadência, dava amassos ardentes em um contador de terno cinza. David olhou ao redor, pegou uma garrafa de Moét e, decepcionado porque estava vazia, declarou que a festa tinha chegado ao fim. - De todo modo, eu bebi demais - disse ele, esfregando as têmporas. - Então, onde você vai ficar hoje à noite, senhorita Balcon? Com Elmore? Ou será que posso acompanhá-la até algum lugar? - Acredito que eu vá ficar hospedada em um lugar chamado Dovecote - respondeu Serena. Não sei muito bem onde fica. - É depois do jardim de ervas, se estou bem lembrado. Meu quarto não fica longe - disse David, que se levantou para puxar a cadeira de Serena para ela. - Que bom - respondeu Serena. - Pode ser que eu precise de um braço para me firmar. Faz séculos que não bebo nada, e três taças de champanhe me fizeram passar dos limites. - Ela se sentia bamba em cima dos saltos, mas quando penetraram na noite, o ar frio a despertou de supetão. Lâmpadas penduradas nas árvores lançavam uma iluminação suave, como se fossem vagalumes, de modo que ela conseguia delinear a silhueta dos casais que se dirigiam para suas suítes pelo gramado. Seus saltos afundavam na grama. Ela se abaixou para soltar as correias das sandálias, apoiando-se em David para se equilibrar até ficar descalça no gramado úmido, coberto de folhas outonais e de confete. Ela não largou o braço dele no caminho até o chalé Dovecote e, quando chegaram à porta, David não precisou pedir para entrar. A construção era dúplex, como uma colméia gigantesca, e subiram um lance de escadas de pedra até o primeiro andar. O luar azul-prateado entrava pelas janelas, iluminando a cama com dossel como se fosse um holofote. - Que quarto lindo, não é mesmo? - disse ela em tom suave e nervoso. - É lindo, sim - disse David, incapaz de desviar os olhos dela. Seu vestido tinha ficado quase totalmente transparente sob aquele luar estranho, conferindo- lhe um brilho bruxuleante e surreal. A menos de um metro dela, David esticou a mão para pegar a ponta se seus dedos. - O que você faria se eu tentasse beijá-la? Ela fez uma pausa de vários segundos até David dar um passo mais para perto dela e tocar em sua bochecha com os dedos. - Eu deixaria - fraquejou ela, aproximando a cabeça da dele até sentir sua respiração quente no pescoço. Quando o lábio macio de David encostou em sua pele, Serena sentiu arder o fogo da saudade. Fazia tempo demais que ela não sentia ninguém encostar nela. Os dedos ágeis dele acompanharam os contornos do decote dela e foram desabotoando lenta e deliberadamente, um por um, os botõezinhos perolados, até que o tecido


simplesmente deslizou de seus ombros e caiu no chão como uma pluma. Ele abriu o sutiã de renda cor de café e baixou a cabeça para tomar entre os lábios, com força, o mamilo marrom duro. Incapaz de se deter, os dedos dela começaram a remexer na fivela do cinto dele e logo ela o arrancou dos passadores, fazendo com que parecesse uma cobra dando o bote. Uma imagem fugidia de Cate lhe passou pela mente, mas ela a desprezou. Cate não tinha nada sério com David, refletiu, eles mal se viam... pensou e forçou a imagem da irmã para dentro de uma garrafa, como se fosse um gênio. David tirou a calcinha fio dental minúscula de Serena pelas coxas e ela o empurrou de costas para a cama. Não o queria por cima, por causa da barriguinha, e os dois desabaram sobre o edredom de penas de ganso. - Assim - sussurrou ela. Totalmente nu, à exceção de uma camisinha que se apertava por cima de sua enorme ereção, Goldman se deitou e Serena montou em cima dele, suas coxas firmes pressionando seu corpo submisso. Ela pegou o pau dele e enfiou a pontinha na umidade dela, então deixou que entrasse tão devagar que ele começou a gemer, agitando as mãos, ansioso, em busca dos peitos dela. Balançando, jogando os quadris para cima dele, com os músculos pélvicos se apertando ao redor da vara grossa que tinha dentro de si, viu o rosto dele se contorcer de prazer, de olhos fechados, deixando escapar um murmúrio de êxtase por entre os lábios. Controlando tudo completamente, e feliz com a sensação de poder, ela ergueu o corpo até quase deixá-lo sair, só para voltar com tudo, acariciando o saco dele com a mão livre. - Puta que o pariu, isto é demais - gemia ele. O corpo dele se arqueou na direção dela antes de voltar para o colchão, enquanto Serena sentia seu próprio orgasmo intenso. Ela olhou para baixo, para ver o rosto exausto e lindo dele, com os cantos dos lábios voltados para cima, e sentiu mais uma onda de prazer percorrer seu corpo. Sorriu, satisfeita e segura. Serena Balcon não tinha perdido a mão. Às 12h30 de domingo, David Goldman bateu à porta do apartamento de Nick Douglas em Highgate com muito barulho, na esperança de que o amigo já estivesse acordado e desperto. Estava precisando de ajuda. Tinha se esgueirado para fora da cama de Serena horas antes, fizera o check-out do Chateau d'or às pressas - antes que esbarrasse com alguém - e sem dúvida havia colecionado várias multas por excesso de velocidade em seu trajeto frenético de quase duzentos quilômetros de volta a Londres, enquanto se torturava com a dúvida sobre o que deveria fazer a seguir. Será que se arrependia de ter ido para cama com Serena Baleon? Sinceramente? Não. Serena era a conquista que ele esperava havia vinte anos. Caramba, ela era sexy, linda, cheia de tesão; nunca tinha ido para a cama com uma mulher grávida e, tudo bem, no começo a barriga protuberante pareceu meio estranha, mas, meu Deus, a mulher não se saciara até as primeiras horas da manhã. David Goldman tinha ido para a cama com muitas mulheres, mas as modelos glamourosas, as atrizes menores e as loiras de cabelos fartos de Londres foram todas imediatamente esquecidas depois que ele ficou com Serena Balcon. Tirando a irmã dela, Cate, é claro. De repente, sentiu a ansiedade bater de novo. Cate Balcon. Ela era bonitinha, sim, mas não era a mulher mais bonita com quem ele já tinha saído. Tinha o corpo um pouco curvilíneo demais para o seu gosto, mas ela era engraçada, inteligente, refinada. E, com aquela inocência doce e cheia de confiança que ele achava faltar em tantas mulheres, ela tinha conseguido conquistá-lo de verdade. David Goldman nunca tinha considerado com seriedade a ideia de se amarrar, mas cada vez mais ele achava que a adorável Cate talvez


fosse a mulher para... bem, não para domá-lo exatamente, mas pelo menos para fazê-lo desejar permanecer no mesmo lugar por um período um pouco mais longo que o normal. E era por isso que, parado à porta do apartamento de Nick Douglas, ele se sentia absolutamente péssimo. Não queria mais pensar sobre a noite anterior, mas tinha que pensar. O champanhe, o Pimms, o uísque: tudo aquilo ainda corria em suas veias, fazendo seu corpo parecer gelatina e sua cabeça, uma nuvem de algodão. Ele sabia que tinha duas opções: contar a Cate o que tinha acontecido ou ficar quieto. Claro que a segunda opção era muito mais atraente, mas será que Serena era do tipo de confessar para a irmã mais velha? Neste caso, ficar calado seria muito pior do que tentar controlar os danos por conta própria. Resolveu recorrer à pessoa que conhecia Cate melhor: Nick. O interfone fez um ruído, ele entrou e encontrou Nick prostrado no sofá, rodeado por jornais de domingo e um prato exibindo os restos de um café-da-manhã inglês completo: rios coagulados de ovos, restos de bacon e cascas de tomate. David sentiu-se ainda mais enjoado. - Está aí aproveitando a vida? - disse David, tirando uma pilha de revistas de uma cadeira para se sentar. - Igual a um porco na lama - sorriu Nick. - Não subestime o amor que um homem tem por ficar à toa em um domingo de manhã. É uma ótima tradição britânica. - Que sorte desses homens - disse David, apoiando um pé na mesa de centro. - Acabo de voltar a toda velocidade de Oxfordshire. - Ah, é? - disse Nick, levantando-se e tomando o rumo da cozinha. - Você não estava em um casamento ou algo assim? Quer chá? - Café. Forte. - Já está saindo. Vai começar um jogo de futebol daqui a pouco, se estiver a fim de passar a tarde aqui. Cate só volta à noite, não é mesmo? - É, só volta mesmo à noite... - repetiu David, distraído. Ele se remexeu na cadeira até ficar bem na pontinha, passando as mãos pelo cabelo num gesto nervoso. Respirou fundo e, por um segundo, desejou não ter ido à casa de Nick. Ao ver o apartamento do velho amigo, que tinha sido um lugar de decoração impecável quando ele o dividia com Rebecca Wiliard, mas que agora se transformara em uma toca de solteiro desarrumada, cheia de livros, CDs e até uma caixa de pizza da noite anterior, percebeu o quanto tinha se afastado de Nick ao longo dos últimos meses. De repente, não soube dizer muito bem onde a lealdade de Nick residiria. A verdade nua e crua era que Nick passava muito mais tempo com Cate e que provavelmente era mais íntimo dela do que David. Mas David tinha que apostar na força daquela amizade de 15 anos. Além do mais, os homens se apoiavam nessas coisas, não é mesmo? - Não vim aqui para assistir ao futebol nem para tomar um café-da-manhã anti-ressaca, mas obrigado pelo café - disse Oavid, erguendo a caneca fumegante que Nick colocara à sua frente. Fez uma pausa. - O que foi? - perguntou Nick. David respirou fundo. - Fiz uma coisa que não deveria ter feito. - Caramba, o que foi? - perguntou Nick, de repente preocupado com a atitude séria de David. - Você se envolveu em algum acidente? - Não, nada desse tipo - disse David, erguendo a mão para abrir o colarinho, como se ele o estrangulasse. - Como você sabe, ontem à noite fui ao casamento do meu amigo Robert. Eu não conhecia quase ninguém lá.


- Não é do seu feitio. - Nick deu um sorriso cínico. - Bom... Serena estava lá. David deixou o silêncio pesar entre os dois, esperando que Nick mordesse a isca e que ele não precisasse proferir aquelas palavras. - E daí? David só ficou olhando para o chão. - Não vá me dizer que você... - disse Nick, seus olhos arregalados. - Ela estava lá, eu estava bêbado - disse David, sua voz um pouco esganiçada. - Você sabe como ela é, com aquele jeito dela de "ai, olhe para mim, não conheço ninguém aqui". Ela se aproveitou de mim. A voz de Nick soou dura. - Acho muito difícil de acreditar. David começou a relaxar um pouco. Dava para ver que Nick estava furioso, mas pelo menos não ia bater nele nem jogá-lo pela janela. - Você é um imbecil do caramba! - disse Nick, baixinho, tentando conter a raiva. - O que Cate vai pensar? Como ela vai se sentir? Não pense, nem por um segundo que você pode trocar uma irmã pela outra! Vou dizer isto agora: Serena não vai dar a mínima para você. Provavelmente já nem lembra mais qual é o seu nome... você não é exatamente assunto para a coluna das estrelas, não é mesmo? - Ela não é assim tão má - sussurrou David. - De qualquer forma - disse Nick, pousando a xícara, enojado -, não estamos falando de Serena, mas sim de Cate. - É por isso que estou aqui - disse David, agora um pouco irritado. - Você que a conhece melhor, o que acha que eu devo fazer? - Devia ter pensando nisso antes de enfiar... Meu Deus! A mulher está grávida de seis meses! - Olhe - disse David -, eu sei que você está louco da vida comigo e que é muito amigo de Cate, mas foi por isto que eu vim até aqui, para pedir a sua opinião. Acha que devo contar a ela? - Ah, mas qual é a outra opção? - perguntou Nick, azedo. - Jogar tudo para baixo do tapete e torcer para que suma? David parecia um pouco impotente, mais com cara de garotinho confuso do que de investidor astuto do mercado financeiro. - Nunca se sabe - disse David, dando de ombros. - Acho que Serena não vai contar para Cate, vai? E se eu não contar... - Conhecendo você como eu conheço, aposto que abraçou Serena na frente de todo mundo ontem. E por acaso aquele lugar não estava latada de jornalistas da Hello!? - Todos já tinham ido embora - disse Oavid, petulante. Nick se esforçou para manter um certo nível de compostura na voz. - Olhe, cara, você vai ter que contar para ela. E vai ter que arcar com as consequências. Você fez sua cama, por assim dizer. David recostou-se na cadeira e soltou todo o ar dos pulmões, como se um peso enorme lhe tivesse sido tirado de cima do peito. Repentinamente resignado a seu destino, sentiu-se um pouco menos perdido, um pouco mais como costumava ser. - Bem, vou pensar sobre o assunto - disse, irritado. Nick chutou uma pilha de jornais para baixo do sofá.


- Você é de fato um canalha, não é mesmo? - disse, sacudindo a cabeça. - Ela realmente não merece ficar com alguém como você. David levantou-se para ir embora e pegou as chaves do carro no braço da poltrona com um gesto brusco. - Isso é questão de opinião, Nick - disse ele, sua autoconfiaça quase totalmente restaurada. Obrigado pelo café. - E saiu para a rua. Cate sofria com o fuso horário, mas, fora isso, estava de bom humor. Tinha ido tomar caféda-manhã no Wolseley de Piccadilly com Nick e Jenny Tyson, sua assessora de imprensa preferida, uma mulher animada e direta que adorava fazer fofoca, e estava cansada, mas feliz. E com fome: Cate logo acabou com seus waffles americanos cobertos de rios de calda de bordo, acompanhados de uma xícara de chá Earl Grey. Jenny tinha mordiscado seu bagel, mas estava com pressa de ir embora logo. - Beijos para vocês dois - disse ela, fazendo um gesto no ar por cima das bochechas de Cate. - Preciso estar de volta ao escritório às dez; do contrário, ninguém faz nada. - Sei do que está falando - respondeu Cate. - Só vou terminar o meu suco - disse, apontando para o copo -, depois nós também vamos embora. Quando Jenny desapareceu através das portas giratórias, Nick pegou um folheto de um hotel nas ilhas Maldivas que Jenny deixara para eles. - Bom, isso foi bem útil - disse ele. - Não posso acreditar que fui tão severo com os assessores de imprensa no passado. Por acaso ela disse que este hotel vai deixar que nós levemos uma celebridade para lá, passemos a semana inteira fazendo fotos e ainda vão nos pagar por tudo? - Algo do gênero - respondeu Cate, em tom divertido. - É música para os seus ouvidos, hein, seu sovina? Cate tomou um gole de suco de laranja e relaxou em cima da banqueta, esticando-se para deixar o corpo um pouco mais desperto. - Mas vou lhe dizer uma coisa: este foi o último fim de semana que eu trabalhei neste mês. Essas viagens para Los Angeles deixam a gente morta por alguns dias. Acho que já está na hora de eu viver um pouco a vida em vez de ficar o tempo todo na revista. O que você fez no fim de semana? - Nada importante. - Nick deu de ombros, começando a se sentir um pouco desconfortável. - Só dei umas voltas, li os jornais, assisti a um vídeo. Foi tranquilo. Cate assentiu. - Eu tinha um casamento para ir com David neste fim de semana, mas tive que dispensar. Aquela modelo, Melissa D? Não vou muito com a cara dela, mas não teria achado ruim ir para o Chateau d'or: parece que é lindo. Talvez David me leve para lá um fim de semana destes - disse Cate, sorrindo e esticando a mão para pegar o casaco. - Espero que ele não tenha achado muito mim ficar sozinho, mas ele é tão sociável... não é? Você falou com ele? - Não. Falei. Hum, não - disse Nick, abaixando-se para pegar a pasta do chão. - Você falou? - Bom, mas você falou com ele ou não? - perguntou Cate, sem entender nada. Ele olhou para a porta giratória, fingindo não ter ouvido. - Vamos? A intuição de Cate, apesar de adormecida pelo fuso horário, percebeu que havia algo errado. - Nick, qual é o problema? Você falou com David? - perguntou, Cate dessa vez mais séria. - Não - respondeu Nick, aborrecido. - Agora, vamos. Tenho uma reunião às onze.


Cate sentiu um cheiro estranho no ar. Durante a reunião ele tinha se portado da maneira alegre e tagarela de sempre, mas assim que a conversa passou para David, ele se transformara em um monge trapista. - Nick Douglas - disse Cate, mais uma vez em tom cortante. - Há algo que você não esteja querendo me dizer? - Não! - respondeu Nick. - Bom, você é um péssimo mentiroso - disse Cate, colocando a bolsa na mesa com um baque. - Você falou com David? - Certo. Para falar a verdade, falei sim, brevemente, ontem à tarde. - E aí? - E aí nada. Cate apertou os olhos para ele. - Vamos lá, Nick, o que você não quer me dizer? - Olhe, tenho certeza de que o David vai contar tudo sobre o casamento pessoalmente disse ele, de repente arrependido por ter tocado no assunto. - E existe alguma coisa para contar? - perguntou Cate de novo. Intuitivamente, ela sabia que havia algo errado. A perspectiva de David ir a um casamento sem dúvida lotado de mocinhas glamourosas com certeza não era nada que a enchesse de segurança. Ela não era boba. As coisas estavam bem entre os dois, mas ela não se deixava iludir: sabia que David vivia de olho em mulheres bonitas e, apesar de ela não ter visto nenhuma prova em contrário nos quatro meses que estavam juntos, por acaso haveria lugar melhor para testar sua lealdade do que um casamento assim? - Tem algo que eu precise saber em relação a David e ao casamento? - perguntou Cate, tentando olhar nos olhos de Nick. Ele só sacudiu a cabeça. Ela soltou um resmungo. - Eu poderia simplesmente perguntar a David, mas quem pode dizer se algum homem diz a verdade? - disse ela, sem rodeios. - Acho que vou pedir a Serena para perguntar ao amigo dela, Elmore. Sei que ele foi ao casamento. - Bom, por que você não pergunta direto para Serena? - disse Nick. - Ela também estava lá. - É, vou perguntar mesmo - disse Cate, juntando suas coisas. Nick deu um sorriso amarelo e ficou xingando a si mesmo por ter falado muito mais uma vez. Ele tinha certeza de que David Goldman já teria falado com Cate. - Deixe para lá, Cate - disse Nick, tentando parecer mais relaxado. - Não tem nada para contar. Você está exagerando. - Bom, perdoe-me por você ter me deixado paranóica, Nick - disse ela, cheia de sarcasmo. - Vamos voltar para a redação - disse Nick, colocando a mão no ombro dela em um gesto apaziguador. - Você só está sofrendo com o fuso horário. Cate o repeliu e se virou para a porta. - Veremos, não é mesmo? De volta à sua mesa, Cate estava irrequieta. Só via David umas duas ou três vezes por semana, mas eles se falavam o tempo todo e era estranho o fato de ela já estar de volta havia 24 horas e não ter recebido nenhum sinal dele. Nick com certeza demonstrara preocupação em relação a alguma coisa durante o café-da- manhã. Ele era um péssimo mentiroso. Pouco tempo depois de se conhecerem, em fevereiro, ela tinha notado a maneira como os olhos dele brilhavam quando tentava não dizer algo a ela.


Incapaz de se concentrar, ela pegou o casaco e saiu do prédio. Pegando um táxi, deu o endereço de Serena em Chelsea ao taxista. O tempo estava virando: gotas gordas de chuva escorriam pelo vidro da janela, onde ela encostava a cabeça de leve, enquanto assistia a Londres passar em uma névoa. De repente, seu celular tocou. Pegou o aparelho e olhou o número. Era Nick. Guardou-o de volta na bolsa. Da segunda vez que tocou, ela o ignorou e, na terceira vez, simplesmente o desligou. Sua primeira idéia fora confrontar David, mas sabia que ele seria capaz de enrolá-la. Seria mais fácil arrancar a informação de Serena, caso ela tivesse visto ou ouvido algo. Se tinha uma coisa certa sobre a irmã, era o fato de ser uma fofoqueira das maiores. Serena tinha os dois andares mais altos de uma casa branca maravilhosa com frontão paladino em The Boltons. Cate tocou o interfone três vezes antes que uma voz sonolenta atendesse e ela pudesse entrar. Cate se perguntava, em ritmo frenético, como abordaria a questão. Blefar, pensou. Fingiria que sabia mais do que sabia. Era a maneira de fazê-lo. Serena atendeu à porta ainda bocejando. Usava uma camisola branca de algodão, seu cabelo louro e comprido estava desgrenhado como o de uma surfista e tinha uma máscara de dormir de seda bordada no topo da cabeça. - Cate. O que você quer? - resmungou. - Estou de folga. - De quê? - perguntou Cate, sem conseguir se segurar. Serena fez bico e olhou para o relógio. - Bom, você tem meia hora. O Clube da Pedra da Lua vem aqui às três. - Clube da Pedra da Lua? - Elmore achou uma vidente incrível, que tem PhD e tudo. Ela lidera reuniões em que todo mundo fala de espiritual idade e tal. Nós somos umas dez pessoas e é simplesmente fantástico. É como o novo... clube de livros. Cate não acreditava que Serena algum dia tivesse participado de um clube de livros. Por um instante ela observou o apartamento novo de Serena, para onde tinha acabado de mudar, depois de dois meses de estada no hotel Claridge. Não era todo decorado, como a casa de Serena e Tom em Cheyne Walk, mas tinha um ar bonito de indiferença, uma tela em branco com piso de nogueira encerado, cheio de coisas bonitas e glamourosas para uma pessoa bonita e glamourosa, e vista para a igreja de St. Mary. Devia estar lhe custando uma fortuna. - Como foi que você encontrou este lugar? - perguntou Cate, curiosa. - Lembra o xeique Kolum, com quem eu saía o tempo todo quando frequentava o L'Equipe Anglais? Antes de Tom, Serena passara por uma fase em que nunca saía das casas noturnas de música de Londres. - Mais ou menos - mentiu. - Bom, esta é a casa dele em Londres. Ele quase nunca vem para cá; anda sempre em Paris ultimamente, então disse que eu posso ficar aqui até pelo menos o ano-novo. Aliás, posso oferecer alguma coisa a você? - Ela bocejou e abanou a mão na frente do rosto, como se não tivesse absolutamente intenção nenhuma de pegar qualquer coisa para ela. Cate sabia que podia passar meia hora jogando conversa fora, até o Clube da Pedra da Lua chegar, ou ir direto ao ponto, já que sua curiosidade a respeito de David a corroía por dentro. - Como foi o casamento? - Tudo bem, nada de especial - respondeu Serena, despreocupada.


Pronto. Cate a pegara no pulo. Ela conhecia a irmã tão bem que era capaz de distinguir sua indiferença arrogante do tom de voz que usava quando queria fugir de um assunto. - Quero saber o que aconteceu - disse Cate, depressa. - E você vai me contar tudo, porque Nick já me contou. Parecia que Serena tinha sido acordada com um choque, como se tivesse recebido uma dose de adrenalina. - Ah, e o que foi que Nick contou? - disse ela, com desdém. - Ele me contou de David. - O que Nick Douglas sabe a respeito de qualquer coisa? - disse Serena, apertando a camisola de algodão em volta do corpo de maneira protetora. Serena era atriz. Sabia mentir bem: manipuladora, convincente, natural. Mas Cate via um olhar de culpa pura pintado em seu rosto. Não era óbvio, era suave e sutil, como uma aquarela, mas, ainda assim, estava lá. - David passou na casa de Nick ontem depois do casamento. E contou para ele - disse Cate com a voz falsa de quem sabe tudo. Serena olhou para os dedos esticados à sua frente. Por alguns instantes, a sala foi tomada por um silêncio completo. - Ele deu em cima de mim, sabe como é - disse ela, erguendo os olhos ardentes de desafio de repente. A enormidade do que acabara de ser dito encheu a sala. A respiração de Cate se acelerou. Seis palavras simples: "Ele deu em cima de mim." Mim se referia a Serena. A irmã dela. Cate sentiu-se como se tivesse levado um chute no peito. - Foi você? - sussurrou ela. O rosto de Serena estava pálido de tanta culpa. - Cate, falando sério. Não aconteceu nada - disse rapidinho, tentando parecer despreocupada. - Não acredito! - disse Cate, as palavras a princípio num sussurro, mas depois crescendo em sua ferocidade, até que ela estava berrando. - Você foi para a cama com ele, não foi? praticamente cuspiu, erguendo-se do sofá de um salto. Serena deu um passo atrás, começando a sair da sala. - Cate, não fui. Juro - gaguejou. - Pelo menos tenha a coragem de não mentir para mim - berrou Cate, esforçando-se para recuperar o fôlego. Ela olhou para o rosto pálido de Serena e quis colocar uma barragem de ódio na voz, mas não conseguiu. Em vez disso, deu as costas para a irmã e começou a caminhar de um lado para o outro na sala, segurando as lágrimas com fúria. Sentia cada músculo de seu corpo retesado. - Catey, sinto muito. Sinto mesmo. Ela se aproximou de Cate para tocá-la, mas a irmã recuou com tanta violência que quase tropeçou. - Saia de perto de mim - disse ela, depois começou a soluçar. – Saia daqui. - Afundou-se no sofá, seu corpo parecendo uma boneca de pano. - Por que, Serena, por que você fez isso? - Cate. Estou me sentindo péssima. Eu estava bêbada. Você sabe que não ando bebendo. Não pensei... - Não me importa que estivesse bêbada - disse, feroz. - Não ligo que estivesse bêbada o bastante para agarrar todos os homens da festa. O que me importa... - Cate sentiu a voz falhar. - Por que ele? Se você podia ficar com qualquer um, por que escolheu logo ele?


Serena sentou-se na ponta da cadeira e deixou as mãos lhe caírem sobre o colo. - Porque ele me quis - disse baixinho. Sua voz era grave, calma e controlada. Cate não sabia dizer se era de culpa ou de arrogância. - Sua vagabunda - sussurrou Cate, sentindo as unhas se cravarem na palma das mãos. - Sua vagabundazinha egoísta, mimada e ensimesmada. - Não teve importância nenhuma - gaguejou Serena. - Não teve importância nenhuma? - disse Cate, incrédula. Abanou a mão no ar de tanta frustração. - Bom, para mim tem importância sim - disse, sua voz rouca. Cate abaixou a cabeça, mordeu o lábio para manter o controle, pegou a bolsa e se dirigiu para a porta. - Cate, não vá embora. Por favor, vamos conversar sobre isso. Cate olhou para trás, seus olhos simplesmente cheios de tristeza. - Não tem nada sobre o que conversar - disse ela, depois abriu a porta. - Catey, espere, não... Mas Cate já tinha ido embora; descera as escadas correndo e saíra para a rua, sentindo-se como se seu mundo todo tivesse explodido e estivesse desabando em cima dela em uma nuvem grossa, escura e sufocante.


36 Sentado na cadeira de couro de espaldar alto no escritório da firma de contabilidade mais prestigiosa de Mayfair, o sangue de Oswald começou a ferver. Estava começando a duvidar seriamente que o rapazote à sua frente fosse capaz de encontrar o traseiro com as duas mãos, muito menos que fosse capaz de gerenciar seus negócios. Seis meses antes, Lionel Davenport, contador de Oswald desde a década de 1960 e sócio majoritário da empresa Davenport Davis, tinha se aposentado e entregado a direção do escritório para Peter Cable, que Davenport havia anunciado a Oswald como "o futuro dinâmico da empresa". Desde então, Oswald não ouvira nada além de péssimas notícias relativas à sua situação financeira, e parecia que aquele dia não seria exceção. - Então, o que podemos fazer? - desafiou-o Oswald, cada vez mais irritado. - Lionel disse que você era criativo, então vamos lá. Preciso levantar cerca de dois milhões e meio de libras até o final do ano. Quarenta e cinco por cento da empresa da minha filha está à venda. O marido dela morreu naquele incêndio terrível, sabe? - Uma sugestão de sorrisinho sacana surgiu em seus lábios. - E preciso de liquidez para comprar. - Bom, pode ser que demore um pouco - disse Cable, hesitante, examinando os números à sua frente. - Demorar? Não temos tempo - desdenhou Oswald. - Minha filha está falando em expandir para os Estados Unidos e não duvido que o valor da ação vá subir se ela o fizer. Então, preciso arrumar o dinheiro logo. O que faremos? Folheando uma pilha de papéis diante de si, pouco à vontade, Peter Cable apoiou os cotovelos na mesa com tampo de couro. Estava se esforçando para encontrar as palavras certas para dar a notícia que precisava transmitir a seu cliente. - Preciso aconselhá-lo, lorde, que não deveria tentar levantar fundos para expandir seus interesses financeiros neste momento específico. Em vez disso, eu recomendo com veemência que reforcemos as contas da família Balcon e até pensemos em um plano de contingência. - Como assim, "plano de contingência"? - desdenhou Oswald, recostando-se na cadeira. Há trezentos anos que as propriedades dos Balcon só fazem florescer, e certamente não vejo como a situação possa mudar em um futuro próximo. Peter Cable, um homem normalmente eficiente e controlado, teve de se segurar para não soltar um suspiro ruidoso na frente do cliente. Tinha sido avisado de que Oswald Balcon era o cliente mais difícil da firma, mas era um cliente de prestígio, até mesmo para a Davenport Davis. Valia a pena aguentar as variações de humor dele para ter um cliente com relacionamentos tão bons quanto lorde Balcon. Era melhor manter o sujeito calmo, por mais que tivesse a cabeça quente. - Em termos financeiros, faz um ano e meio que as coisas não andam bem - disse Cable. - E acho que podemos prever certo prejuízo até o fim do ano-base. Vamos conseguir pagar os impostos territoriais do ano passado, que vencem em breve, por pouco. Mas no que diz respeito à alíquota do ano que vem, bom, pode ser que prejudique toda a propriedade. Oswald soltou um suspiro alto e deliberado. - Eu lhe pago altas comissões para dar jeito neste tipo de coisa. Acredito que seja capaz de apresentar uma solução, ou será que devo buscar auxílio em outro lugar? - Lorde Balcon, só posso trabalhar com o que tenho nas mãos - disse Cable, começando a se irritar. Folheou uma pilha de planilhas, erguendo as sobrancelhas como um personagem de desenho animado. - Sinceramente, todos os seus pilares de rendimentos em potencial estão desmoronando neste momento. Manter Huntsford, custa uma fortuna, e a galeria


também está sofrendo. Não conheço muito o mercado de arte, mas, olhando para os números, acredito que seus investimentos não estejam trazendo o retorno necessário. Oswald desviou o olhar para que Peter Cable não visse a centelha de ansiedade que acendeu dentro dele. Finalmente estava começando a perceber o que o gerente de sua galeria, Mark Robertson, tentava lhe dizer havia meses: que a decisão de Oswald de investir em bronzes flamengos do século XVIII não viera em boa hora. Eram lindos, é verdade. E, naquele momento, eram muito baratos, mas só porque o mercado tinha perdido o interesse neles. Tinham comprado peças que ninguém queria. - Além do mais, o fundo de pensão está baixo. É o resultado de vinte anos de investimentos que talvez não tenham sido... como posso colocar?... imensamente bem-sucedidos completou Peter, tentando ser o mais diplomático possível, já que havia percebido que as bochechas de seu cliente estavam começando a ficar rosadas. Em um instante, Oswald se lembrou da reportagem do Daily Telegraph, publicada meses antes, quando descreveram os interesses financeiros dele como "tramóias desmioladas" e "investimentos mal planejados". Como ousavam!, pensou mais uma vez. Ele só tentara especular para acumular. Era um bom capitalista, e o que recebia em troca? - O que mais me incomoda - disse Peter, perguntando a si mesmo se a seriedade da situação finalmente estava começando a penetrar na cabeça de Oswald - é o acordo de empréstimo que o senhor assinou para levantar fundos para a Noite Musical de Huntsford. - Ele pegou mais uma pilha de papéis de um arquivo. - Apesar de a Davenport Davis não ter sido responsável pela contabilidade do evento, recebi as informações relativas a ele e... bem... está claro que as perdas foram consideráveis. - Foi um negócio novo em seu primeiro ano! - esbravejou Oswald, abanando a mão na frente do rosto para dispersar a idéia. - Qualquer empreendedor lhe dirá que é necessário sofrer um golpe inicial para aumentar o nível e lucrar no ano seguinte. É uma prática básica de negócios. - Ah, então o senhor pretende organizar outro evento no ano que vem? - perguntou Peter, verdadeiramente surpreso. Oswald ignorou-o e continuou a olhar ao redor de si, como uma criança que já estava perdendo a concentração. - Mas, bem - prosseguiu Cable com muita delicadeza -, havia uma cláusula nas condições do empréstimo que coloca sua residência em risco caso haja atraso no pagamento das prestações. - Huntsford é um fundo - disse Oswald em tom arrogante. - Está seguro. - Não exatamente - disse Cable bem devagar. - E acredito que o senhor já tenha atrasado uma parcela, não? Oswald suspirou bem alto. - Uma parcela; não vão exatamente baforar no meu pescoço por enquanto, não é mesmo? Peter deu uma olhada no relógio. Já estava com Oswald havia duas horas, e fazia questão de não desmarcar o almoço com a namorada nova. Inclinou-se para a frente e estalou os dedos. - É muito simples, Oswald. Precisamos aumentar o dinheiro que entra em seu patrimônio... e rapidamente; do contrário, seremos forçados a reconsiderar nossas opções. - Fez uma pausa. - Será que consegue algum recurso adicional com suas filhas? Acredito que a situação financeira delas seja boa. - Não vou aceitar caridade de ninguém, menos ainda delas - respondeu Oswald, presunçoso, claramente irritado.


Cable resolveu tentar outra abordagem. - O que poderíamos fazer... e permita-me ressaltar que foi isso o que outros proprietários de sua posição fizeram quando precisaram pagar dívidas... é arrendar Huntsford por um contrato de, digamos, cinquenta anos. Existe pelo menos uma dúzia de empresas de hotelaria e lazer que fariam qualquer coisa para ocupar uma propriedade tão magnífica. Poderiam arrendá-la para uso comercial. Como conferências, por exemplo, e Huntsford continuaria oficialmente sendo parte do patrimônio Balcon. O senhor até poderia continuar morando lá, em uma construção separada. Aliás, na semana passada mesmo, fomos abordados por um representante do grupo Sarkis, um conglomerado hoteleiro muito grande, e os números mencionados foram bem impressionantes. Oswald tinha ficado bem vermelho. - Sarkis? - berrou. - Arrendar Huntsford? Como ousa sugerir que tais coisas sejam soluções viáveis? - Bem, precisamos pensar em alguma coisa - disse Peter, aturdido pela gravidade da reação de Oswald. - Tem razão - disse Oswald, pegando a pasta e se levantando. - E como você não vai ter nenhuma idéia criativa, é óbvio que sobrou para mim. Saiu da sala pisando firme, sem proferir mais nenhuma palavra, e bateu a porta atrás de si.


37 Cate deu uma olhada ao redor de si, observando o coquetel organizado em comemoração à entrega dos Prêmios da Associação Britânica de Revistas, que acontecia todo ano no hotel Crosvenor House, em Park Lane, e mais uma vez não pôde deixar de se perguntar como é que estava concorrendo a alguma coisa. A Sand era uma revista minúscula em comparação com os figurões do setor que passeavam pela sala: havia quinhentos representantes de empresas que cobriam todo o espectro do setor, da Vogue à CQ, passando pela Colr World e pela Country Lire.Desde o número um, as vendas da Sand tinham sido surpreendentemente fortes. Uma revista cheia de roupas lindas e de lugares exóticos tinha acertado o público em cheio naquele longo verão quente, e grandes empresas de vestuário e cosméticos, que pagavam pelos anúncios mais caros, tinham começado a se interessar pela revista. Mas editar e publicar uma revista própria continuava parecendo uma espécie de passatempo, de modo que a indicação Editor de Lançamento do Ano a deixara estupefata. Olhando para o salão da recepção, Cate se sentia uma fraude, indigna de estar ali, como uma criança que saiu do playground, entrou na festa dos adultos e poderia ser descoberta a qualquer segundo. - Então, quem você conhece? Quem são os figurões aqui? – perguntou o diretor de arte da Sand, Peter Miller, que estava todo desajeitado em um terno formal alugado e tênis sujos, tomando um drinque com refrigerante. Cate ficou contente por Nick ter insistido para que toda a equipe comparecesse, apesar do preço descomunal da mesa. Ela esticou o pescoço para examinar o mar de ternos e vestidinhos pretos. - Algumas pessoas. E há outras que eu gostaria de evitar. Então, se eu lhe der uma cotovelada, veja se me esconde. Ela não sabia o que a deixava mais enjoada: a ansiedade relativa à possibilidade de ganhar um prêmio ou a ideia de esbarrar com William Walton. Apesar de já ter se recuperado da demissão da revista Class havia muito tempo - aquilo parecia estar há uma vida inteira de distância -, a briga recente com Serena trouxera à tona todos os seus sentimentos de rejeição, vergonha e inadequação. Tinha passado as três últimas semanas mergulhada no trabalho, em longas horas na redação, tentando afastar da mente a dor absoluta de traição que Serena lhe causara. Tinha ficado surpresa ao constatar que a mancada de David não a afetara em nada. Na verdade, ele simplesmente tinha sido eliminado de sua vida, apesar de todas as flores caríssimas que mandara entregar. Mas Serena era outra questão. Cate continuava se sentindo tão frágil e ferida que preferia ter deixado toda aquela cerimônia de premiação de lado para passar mais uma noite solitária em casa com uma garrafa de vinho, onde ninguém podia tocá-la ou magoá-la. Cate pediu licença a Pete, que tinha dado início a uma tentativa canhestra de seduzir Ruth, a editora de fotografia, e foi dar um tempo no banheiro. Retocou o brilho labial e demorou-se um instante conferindo seu reflexo no espelho. Um vestido de noite verde-esmeralda de seda, assinado por Matthew Williamson, ajeitava-se perfeitamente sobre suas curvas; o cabelo comprido estava penteado por cima dos ombros; pinceladas de blush faziam suas bochechas parecerem altas e arredondadas: pelo menos estava bonita. Entrou em um reservado, trancou a porta e respirou fundo algumas vezes. Aos poucos, foi percebendo as vozes no reservado ao lado. - Parece que ela está concorrendo ao prêmio de Editor de Lançamento - disse a primeira voz, seguida pelo som baixinho de uma fungada de pó branco. Outra voz respondeu, azeda:


- Quer dizer, todas nós ganharíamos prêmios se o papai nos desse um monte de dinheiro para brincar de fazer revista, só por termos sido demitida. Cate subiu na tampa da privada e ficou nas pontas dos pés para olhar do outro lado da divisória de plástico, sem coragem de respirar e desejando que pudesse simplesmente bater os saltos de suas sandálias Jimmy Choo e ser transportada diretamente para casa. O jantar ainda nem tinha começado. Talvez ela pudesse fugir discretamente, sem ninguém notar, e antes das oito já estaria em casa. Até parece que ganharia alguma coisa, de todo modo. - Alguém parece péssima, apesar de estar prestes a receber um prêmio - sorriu Nick Douglas, juntando-se a ela à porta do banheiro. - Por onde você andou? - perguntou ela, forçando um sorriso no rosto. - Deveria estar aqui ao meu lado, para me dar apoio na minha vitória. - Estava olhando a disposição do pessoal na mesa com Vicky e Marie. Cate sentiu uma pontada de ciúme ridícula. Nick tinha direito total de socializar com as integrantes da equipe - até as mais bonitas, pensou. Ela se lembrou de como todas as garotas da Sand ficavam flertando com ele quando faziam happy hours na redação. Embora os sentimentos dela por Nick tivessem arrefecido nos últimos meses, ou até mesmo sido suprimidos com David em cena, agora que estava sozinha de novo, mais uma vez ela sentia aquela emoção conhecida quando entrava na redação. Ela ainda passava um tempinho a mais se arrumando de manhã para estar sempre o mais bonita possível. Aquilo a irritava, mas não conseguia se impedir de fazê-lo. - Você vai ficar animadíssima de saber que estamos na mesa dez – disse Nick. - Não fica longe do palco, e tomo isso como bom sinal. - Hummm - respondeu ela, distraída. - Tudo bem com você? Ela forçou o corpo a ficar ereto. - Tudo. Só estou nervosa, acho. - Eu sei que você vai ganhar - disse Nick, chegando um pouquinho mais perto dela, de modo que o espaço entre os dois parecia excluir qualquer outra pessoa. - Você é a melhor do ramo e comprovou isso com esta revista. – Ele sorriu, seus olhos cor de avelã ternos e cheios de incentivo, e ela sentiu seu humor melhorar um pouco. Estava acostumada a ouvir o pai lhe dizer como era lerda, mestre na arte da mediocridade; assim, escutar tanta confiança em suas capacidades de uma voz masculina fez uma luz se acender dentro dela. - Venha, vamos lá ganhar uns prêmios. A 65 quilômetros de distância dali, no coração de Surrey, Camilla Balcon também tentava impressionar, mas não podia se esconder atrás de nenhuma capa de revista feminina. A tarefa que precisava cumprir era convencer os integrantes da Associação Conservadora de Esher de que seu passado, sua ideologia e sua paixão eram suficientes para que ela fosse escolhida como a próxima candidata da região ao Parlamento. Ela olhou para um mar de rostos naquele salão gelado, observou as expressões que iam de entediadas a desafiadoras e tentou se recompor. Camilla nunca ficava nervosa daquele jeito no tribunal; mas, bem, no tribunal, tinha o escudo da lei. Se ela vencia ou perdia dependia de sua manipulação da lei para servir seu cliente da melhor maneira. Tinha regras e precedentes em que se apoiar e era boa: era a melhor. Mas, naquela noite, ela se sentia mais exposta. As pessoas a julgavam quanto à sua capacidade de ser a próxima representante parlamentar da região, e não quanto à sua capacidade de apresentar um conjunto de fatos.


Ainda assim, achava que seu discurso para os membros do comitê da associação tinha ido bem. Camilla era, afinal de contas, uma ótima oradora, uma pessoa que fazia discursos com naturalidade, e surpreendera até a si mesma com a força de suas opiniões e a profundidade de suas crenças. Era uma pessoa com opinião formada, sim, mas política? Aquele era o desafio. Morar 18 anos em Huntsford e ser forçada a engolir as opiniões arrasadoras do pai a haviam ensinado a lutar pelo que era seu, mas ela nunca tinha sido especialmente política, apesar dos debates infindáveis e circulares na mesa de jantar. E sua falta de filiação política havia sido o que mais a preocupara nas semanas anteriores, enquanto estudava os planos de ação do partido: será que suas opiniões pareceriam suficientemente apaixonadas, genuínas e sérias? Postada perante o partido na sede da Associação Conservadora de Esher, um salão de atos que mais parecia um clube de cavalheiros superdimensionado, ela se perguntava se tinha feito o suficiente para convencê-los. Depois de sofrer um ataque de vinte minutos de perguntas da plateia a respeito de tudo, do euro à educação, ela deu uma olhada final nos membros do partido que decidiriam seu destino, olhando fixamente para eles com um sorriso de despedida que, ela esperava, transmitia a dose certa de autoridade, competência e graça. Gillian McDonald, presidente da associação e esposa de Charles, o chefe de Camilla, levantou-se para agradecê-la e fazer o discurso final antes que os membros dessem seu voto. - Não vai demorar - sussurrou ela para Camilla enquanto uma salva de palmas tomava conta do salão. Camilla desceu do palco e foi para um corredor mal iluminado onde seus dois rivais, Gerald Lawrence e Adam Berry, estavam sentados na companhia das esposas em uma fileira de cadeiras encostada na parede. Ela deu um sorriso fraco para eles e na mesma hora percebeu como queria conquistar aquela oportunidade, enquanto se perguntava qual dos três seria escolhido. Eles já tinham feito um bom trabalho ao chegar até aquele ponto, peneirados de uma lista de 65 possíveis candidatos da lista de aprovados pelo Escritório Central Tory. Olhou para o homem mais próximo de si. Gerald Lawrence era um advogado local; estava ficando careca, tinha o corpo atarracado e estava na casa dos 50 anos. Além de suas visões serem verdadeiramente de direita - o que sempre vencia entre o grande número de pessoas acima de 50 anos do público, ele também tinha morado em Esher a vida toda e servira como conselheiro local durante cinco anos. Isso era algo contra o que, Camilla sabia que não podia competir: ela sabia que uma boa porcentagem do público acolheria bem um representante local, e não alguém que fora trazida de Londres. O segundo candidato representava rivalidade ainda mais perigosa. O empresário local Adam Berry tinha virado milionário no varejo. Era um homem que se fizera sozinho, um sonho Tory que também era bonitão, tinha menos de 40 anos, vestia-se bem e tinha um quê de charme thatcheriano que sem dúvida o ajudara a fazer sua fortuna. Ele não tinha os modos ponderados e inteligentes de Camilla - ela o vira e considerara seus pontos de vista um tanto capengas e vagos -, mas, entre os três, Berry provavelmente era o que atendia a mais requisitos. Ele era a imagem clássica do candidato Tory e tinha forte apoio local. - Agora não tem mais volta - disse Berry quando eles foram chamados de volta ao salão principal. Os três candidatos ficaram lado a lado na frente do palco. Camilla ficou com as mãos entrelaçadas à sua frente, coladas com o suor nervoso que as deixava úmidas, enquanto Gillian McDonald se levantava para falar.


- Nós nos sentimos honrados por ter três pessoas tão maravilhosas que estão dispostas a representar Esher no Parlamento - começou ela. - No entanto, só podemos convidar uma pessoa para brigar pela vaga da região nas próximas eleições gerais. - Gillian fez uma pausa. Para Camilla, foi uma agonia. - E, nesta ocasião, o comitê decidiu que Camilla Balcon será a candidata que lutará por nós. O cérebro de Camilla ficou paralisado quando ela ouviu o anúncio, incapaz de apreender o significado. Era ela? Ela tinha conseguido? Confusa por um instante, ela olhou para Gillian, que lhe sorria ternamente. O público explodiu em aplausos e vivas, enquanto Gerald e Adam se aproximaram para cumprimentá-la em um gesto cortês. Em um segundo ela já estava rodeada por integrantes do partido que queriam apertar sua mão e parabenizá-la. - Vai ser fantástico ter uma jovem forte representando Esher – disse uma senhora radiante, apertando a mão dela com ternura. - Votei porque admiro suas opiniões modernistas - disse outra. – O partido precisa lutar pelo terreno central. Um homem na casa dos 60 anos com rosto enrugado e cabelo ralo prateado foi diretamente até Camilla e colocou a mão de leve em seu ombro. - Parabéns, senhorita Balcon. Tem o meu voto. Não que precise dele - disse, com uma piscadela. Ela sorriu para ele também, grata por receber apoio de todos os setores: os jovens, as pessoas de idade, os tradicionalistas e os ativistas; todos viam nela um futuro mais liberal para o partido. - Conheci seu pai no tempo em que ele trabalhava como político - disse o senhor de cabelos prateados. O sorriso de Camilla evaporou à menção do nome de Oswald. - Foi por isso que o senhor votou em mim? - indagou ela, torcendo para que seu triunfo não fosse minado pela sombra de favores prestados por Oswald. Ela sabia que se o pai soubesse que uma única pessoa tinha votado nela por causa do período que ele passara na Câmara dos Lordes, ele nunca a deixaria esquecer disso. Mesmo que Camilla se tornasse primeiraministra por seus próprios méritos, Oswald continuaria achando que era tudo obra dele. O senhor de idade sacudiu a cabeça, com um leve sorriso nos lábios. - Eu votei em você apesar do seu pai, não por causa dele – respondeu ele, antes de se perder no meio da multidão. Camilla tentou detê-lo, desesperada para saber quem era e o que sabia a respeito do pai, mas ele já tinha desaparecido. Passou a meia hora seguinte recebendo cumprimentos e elogios de todos os presentes e se sentiu agradecida. Mas nenhum elogio foi mais bemvindo do que aquele que o senhor de cabelo prateado havia feito. Cate e Nick entraram no salão para o jantar. O teto estava todo enfeitado com tecido preto e luzinhas piscantes, como um mar de estrelas. O lugar se enchia com o zunzunzum e os tapinhas nas costas dos rivais editoriais. Determinada a se divertir, Cate continuava tão nervosa que mal tocou o lombo de cordeiro e, em vez disso, virou quase uma garrafa inteira de Sauvignon Blanc da Nova Zelândia. Quando Simon Patterson, o irreverente apresentador de TV que era o mestre-de-cerimônias da apresentação do prêmio, subiu ao palco, Cate estava se sentindo um pouco tonta e cansada. - E agora chegamos à categoria de Editor de Lançamento do Ano - disse Patterson, depois de dez minutos de piadinhas do setor. Meia dúzia de capas de revista apareceu na tela atrás dele, forçando Cate a acordar com um sobressalto. À medida que cada capa era exibida, as


revistas publicadas por grandes editoras eram recebidas com muito barulho. Quando apareceu a capa da Sand, as dez pessoas da mesa de Cate fizeram o maior barulho possível, inclusive Pete Miller, que bateu na mesa com uma garrafa vazia de vinho, mas a comemoração pareceu pequena naquele salão enorme. Atrás de si, Cate ouviu gritos de incentivo e de apoio, e agradeceu por dentro pela gentileza, viessem de quem viessem. - Gostaria de convidar Hugo McElvoy, presidente das Revistas Alliance e patrocinador da categoria Editor de Lançamento do Ano, para entregar o prêmio - disse Simon Patterson, enquanto um senhor robusto, de cabelos grisalhos, na casa dos 60 anos, subia lentamente ao palco. - Ai, não - gemeu Cate. - Meu ex-chefe. Quanta ironia. Ao chegar ao púlpito e ajustar a cintura da calça, ele leu o nome dos indicados no cartão à sua frente. - Este ano, a competição foi tão acirrada que também resolvemos conferir um prêmio de menção honrosa - disse McElvoy, olhando para o público, que tinha ficado paralisado. Este prêmio vai para a revista que realmente agitou o mercado e que encontrou um nicho dentro da concorrência. Cate sentiu a mão de Nick apertar a sua. Será que somos nós? Será que somos nós?, pensava Cate, brincando com a haste da taça. - E o prêmio de menção honrosa vai para... Greg Davies, editor da Men's Style Weekly! Cate sentiu os ombros se retraírem quando aplausos tomaram conta do salão ao seu redor. - Quem quer ficar em segundo lugar? - disse Nick, inclinando-se para a frente e dando um apertão no ombro dela. - A vencedora desta categoria - prosseguiu Hugo McElvoy, lutando com o microfone que começara a produzir um som terrível, de perfurar os ouvidos - é uma publicação que causou enorme impacto em um período muito curto de tempo. Os juízes descreveram a revista como inovadora, sexy e um sopro de vida no setor, e sua editora como talentosa, dedica da e ousada. O prêmio de Editor de Lançamento do Ano vai para... Cate Balcon, da revista Sand! Ouviu-se um estrondo alto de aplausos. Quando ela se levantou para ir até o palco, Nick a puxou e lhe deu um abraço tão forte que ela sentiu o calor das pontas dos dedos dele através do tecido fino do vestido. Depois da premiação, Cate teve que se esquivar da multidão que se juntou ao redor da mesa para lhe dar os parabéns. A antiga amiga de Cate, Laura Warren, editora de reportagem da Class, deu-lhe beijos na bochechas e desejou-lhe sorte. - Você deve estar mesmo muito contente - sorriu Laura. - Muito obrigada - disse Cate. - Mas que ano bem engraçado, não? - completou, rindo. - A vingança não é doce? - disse Laura, acenando com uma taça e claramente desequilibrada em cima dos saltos. - Como assim? - perguntou Cate, servindo-se de um pouco de café preto e quente, em uma tentativa inútil de ficar sóbria. - Você não está sabendo? - disse Laura. - William Walton e Nicole Valentine foram demitidos na segunda-feira. Foi a maioooor vergonha – soltou ela, feliz da vida por estar fazendo uma fofoca bem quente. - Nicole recusou-se a deixar o posto dela... quer dizer, seu. Praticamente teve que ser carregada para fora pela segurança, e depois descobriram que tinham sumido dez mil em mercadorias do acervo de moda. Claro que ela pegou tudo. - Nicole foi demitida por roubo? - disse Cate, a boca aberta de descrença.


- Não, boba! - Laura riu e precisou se sentar. - Os dois foram demitidos pelo chefão. Por Hugo McElvoy em pessoa, acho, pelo relançamento que eles "planejaram" há três edições. Você não viu os números de circulação? Caiu uns cinquenta por cento. Parece que estava tão ruim que McElvoy fez questão de mandar os dois embora. A visão realmente era péssima: os anunciantes detestaram. Foi uma loucura tentar transformar a Class na Glamour. - Ai, meu Deus - riu Cate, radiante. - Parece - prosseguiu Laura, aproveitando todas as fofocas que tinha à disposição - que não ajudou nada o fato de Hugo estar na comissão julgadora desta premiação, pois ele quis saber por que a editora da Sand não estava trabalhando na empresa dele. Quando descobriu que Walton tinha demitido você... bem, foi a gota d'água. Cate só ficou lá sentada, acariciando o troféu de acrílico, e sorriu. Ela não era uma pessoa vingativa, mas aquela noite começava a ter um doce sabor. - Não se surpreenda se em breve receber uma ligação pedindo para que você volte para a Class. É o que todo mundo está dizendo. Cate sacudiu a cabeça de bom humor. - É verdade que sinto falta de todos vocês - disse ela, servindo uma xícara de café para Laura. - Mas por que eu voltaria se fui demitida no começo do ano? Laura esfregou o polegar e o indicador. - Dinheiro, querida. Peça o dobro do seu antigo salário, e tenho certeza de que vão aceitar. Sentindo-se esgotada, emotiva e mais do que um pouco bêbada, Cate resolveu ir para casa enquanto estava na crista da onda. Esticou o pescoço por cima da multidão à procura de Nick, que estava a várias mesas de distância, conversando com um sujeito de cabelo escuro na casa dos 50 anos, que olhava intensamente para ele através de óculos em forma de meialua. Nick notou que ela estava olhando para ele, pediu licença e foi até Cate, serpenteando entre corpos e cadeiras e carregando uma garrafa de champanhe. - Aqui está ela, a nossa vencedora - disse ele, pegando uma taça que encheu de Moêt, - Você não vai acreditar. - Ei, você não vai acreditar! Os dois falaram ao mesmo tempo e ficaram lá sorrindo. - Certo, você primeiro - disse Nick. - William Walton e Nicole Valentine foram demitidos! - Que notícia velha - disse Nick, rindo. - A fofoca mais quente, senhorita Balcon, é que, nos últimos vinte minutos, não um, mais dois executivos me abordaram, querendo marcar reunião para comprar a nossa revista. E uma das empresas interessadas é a Revistas Alliance. Hugo McElvoy disse, e eu repito: "Seria um prazer ter Cate Balcon de volta aos nossos quadros, com o cargo de editora executiva." Eu seria o diretor de produto e a Sand faria parte do portfólio de revistas femininas. Eles nos amam! Cate começou a dar risadinhas, mas a coisa foi crescendo na garganta dela, até que saiu como uma gargalhada escancarada. Era difícil acreditar que apenas algumas horas antes estivesse se sentindo tão arrasada. - Qual é o problema? - disse Nick. - Ah, é só que esta noite está mesmo muito engraçada. Acho que bebi champanhe demais. Continuou a rir e só parou quando foi acometida de um ataque de soluço. - Então, o que vamos dizer aos homens de terno? - perguntou Nick depois que ela retomou o controle.


Havia ofertas de bandeja para comprar a Sand. Cada um deles era dono de vinte e cinco por cento da empresa. Eles receberiam um monte de dinheiro. - Eu digo que se danem - falou Cate, desafiadora, fazendo um brinde com a taça na garrafa de Nick. - Eu também, Cate Balcon - disse ele, depois sorriu e colocou o braço ao redor dos ombros nus dela. - Eu também. Nós dois estamos juntos nesta. A Sand é a nossa filha e acho que precisamos cuidar dela mais um pouquinho.


38 Camilla sentou-se no pára-lama do Land Rover azul-escuro usado para transportar todos até o local da caçada e observou o pai erguer sua espingarda Holland and Holland no ar. Um estampido profundo ressoou pelo céu úmido e cinzento, seguido pelo som de um pássaro caindo no chão. Oswald virou-se radiante para o grupo que o observava: Philip Watchorn, Nicholas Charlesworth, Maria Dante e três empresários japoneses que Watchorn trouxera consigo para amaciar um negócio. Vestido com um paletó marrom-escuro de Huntsford, calças justas de tweed, pulôver amarelo-canário e boina inclinada sobre a cabeça, Oswald parecia um caçador do século XVIII. O pai ficava em seu elemento durante a temporada de caça, pensou Camilla, mantendo-se afastada do grupo. Mais do que tudo queria voltar para a casa. Não era particularmente contrária à caça, como Cate e Venetia. Ela bem que gostava do cheiro de cordite perfurando-lhe as narinas e a sensação de esquentar o corpo com doses de chá Earl Crey, uísque e bolinhos grossos com manteiga que eram sempre servidos no chá depois das caçadas. Mas naquele dia ela estava cansada, e a visão de Maria Dante com seu casaco impermeável impecável e sua maquiagem pesada, paparicando o pai, a deixava pouco à vontade. Uma matilha de spaniels pulava e latia, disparando na direção dos pássaros abatidos. - Caramba, machuquei o ombro - disse Oswald, caminhando na direção da filha e esfregando o local dolorido com a mão carnuda. Apesar das reclamações, Camilla sabia que ele estava se divertindo como nunca. Oswald percebeu a expressão emburrada de Camilla. - Qual é o seu problema? Está aí cabisbaixa a tarde toda. Ou se junta a nós ou volta para a casa. Parece uma porcaria de uma ingrata, toda amuada aqui ao lado do carro. - Mas não vamos demorar muito, não é mesmo? - perguntou Camilla, levantando-se para ficar olho no olho com ele. - Vamos embora quando a caçada terminar - respondeu Oswald, curto e grosso - e não quando você atingir o seu limiar do tédio. Oswald virou-se para olhar para a longa extensão de campina que ia até a beira do bosque de Huntsford, onde os cachorros corriam de um lado para o outro em busca de faisões. Pendurou a espingarda no ombro esquerdo e começou a bater a lama das botas. - Fiquei decepcionado por você não ter conseguido convencer Catherine a vir passar a noite aqui - disse ele, sem encontrar o olhar de Camilla. - Eu pedi para que toda a família estivesse aqui hoje, mas está bem claro que ninguém dá a mínima para o que eu digo. - Você sabe qual é a situação - disse Camilla, fechando o zíper do casaco de camelo para que a gola lhe chegasse até o queixo. - Cate e Serena simplesmente não querem se encontrar. - Patético! - explodiu Oswald, carregando a espingarda com gestos petulantes. - Isto ainda tem a ver com aquela discussão por causa do tal rapaz? Você sabe muito bem que não fiquei nada feliz com parte do comportamento de Serena este ano, mas depois de tudo por que ela passou, Cate devia deixar a irmã ser feliz um pouco. Quando se trata do sexo oposto, Cate realmente não consegue achar que pode rivalizar com Serena, não é mesmo? Sem querer se envolver naquela discussão específica, Camilla achou que a melhor atitude seria permanecer em silêncio, na esperança de que o pai seguisse em frente. Maria Dante tinha monopolizado suas atenções o dia todo, de modo que aqueles eram os primeiros cinco minutos que ela tivera para falar com ele. Era a primeira vez que conversavam cara a cara desde que ela fora nomeada candidata parlamentar por Esher. Ainda não tinha tocado no


assunto com ele; parecia que as ambições políticas de Camilla deixavam o pai todo eriçado, de modo que se mantivera em silêncio, na esperança de que ele tocasse no assunto ou oferecesse alguma migalha de elogio. No começo, ela havia achado que a notícia de algum modo não tinha chegado até ele, apesar da imensidão de notícias locais e da ampla cobertura dos jornais, da TV e do rádio que sua indicação recebera, mas, como o silêncio entre os dois permaneceu, ela logo viu que não haveria nenhum reconhecimento à sua conquista, por menor que fosse. Ficou se perguntando por quê. Sentiu um nó de tensão no estômago enquanto refletia sobre o motivo e rapidamente tentou se livrar das ideias que lhe passavam pela cabeça. Sentada no quarto de Serena em Huntsford, Venetia olhava a paisagem através da janela e assistia ao céu de aquarela arroxear como um hematoma. - Vai ter um chá no local da caçada quando terminarem. Não quer ir até lá? Você sabe como papai fica aborrecido quando não nos esforçamos. Serena deitou-se em sua enorme cama com dossel, apoiada sobre alguns travesseiros. Fez um gesto com a cabeça na direção do criado-mudo de nogueira, sobre o qual repousavam uma xícara de chá e um bolinho com uma mordidinha mínima na ponta. - Não quero ir. Já tomei chá - disse Serena amuada, esfregando a lateral da barriga com as mãos. - De todo modo, estou grávida. Ela fez um gesto na direção de um jornal dobrado ao pé da cama. - Você leu isso? - Não - respondeu Venetia. - Tom foi indicado para um Globo de Ouro. Venetia não sabia muito bem como responder. - Isso é uma boa notícia, não é? Serena parecia desconcertada. Não precisara de um jornal para tomar conhecimento da indicação de Tom. Pelo menos cinco pessoas tinham ligado para ela assim que as indicações tinham sido anunciadas, e cada conversa a dilacerara com uma emoção diferente que era incapaz de reconhecer. Mas não permitiria que Venetia se desse conta disso. - Claro que é uma boa notícia, no ano que o meu filme foi detonado e em que eu tive que colocar minha carreira toda em estado de suspensão - disse, tentando soar sarcástica. Mas sua voz só saiu esganiçada. Venetia tinha certeza de que Serena estava prestes a chorar. Olhou para a irmã com rara preocupação, feliz por ter encontrado uma distração de seus próprios problemas. Em 27 anos, Venetia nunca tinha se preocupado com Serena. Pelo menos, nunca tinha tido uma preocupação séria. É verdade que, quando criança, Serena fora uma dor de cabeça constante depois da morte da mãe, e Venetia adotara o papel de mãe na família. Tinha se preocupado quando Serena ficava fora de casa até tarde da noite, quando foi expulsa da escola, quando foi pega roubando doces do mercadinho local. Mas Venetia sempre sentia, no fundo, que ficaria tudo bem com Serena, independentemente do que a vida lhe jogasse no colo ou do que ela fizesse consigo mesma. A irmã mais nova não tinha a força interior de, digamos, Camilla, mas tinha uma espécie de brilho dourado protetor que zelava por ela e lhe garantia uma existência abençoada. Mas naquela tarde Venetia não tinha assim tanta certeza. A pele de Serena continuava perfeita, como as curvas de uma estátua de alabastro, mas ela não emitia luz nenhuma: nem o famoso brilho das mulheres grávidas nem a aura estelar que ela normalmente emitia. Estava amuada, truculenta, quieta. Estava linda, mas era uma beleza do tipo "tão frágil que parece que vai quebrar". Parecia magra, a clavícula se destacava e a


barriga era uma protuberância desajeitada, como se não pertencesse ao seu corpo. Venetia tinha certeza de que a irmã estava deprimida. Durante o período em que Venetia desejara engravidar desesperadamente, quando ficava imaginando, em frenesi, o que havia de errado com seu corpo, Venetia tinha lido milhares de palavras em livros e na internet a respeito da gravidez e se considerava especialista no assunto. Depressão pré-natal era muito mais rara do que depressão pós-parto, mas estava certa de que a irmã mais nova sofria disso. - Qual é o problema? - perguntou Serena, petulante, olhando para a expressão preocupada da irmã. - Quer saber a verdade? Acho que você está deprimida - disse Venetia sem rodeios. - Não estou deprimida - suspirou Serena pesadamente. - Só estou muito cansada. Venetia não se convenceu. - Sabe o que você precisa fazer? - insistiu. - O quê? - perguntou Serena, irritada. - Precisa fazer as pazes com Cate. Serena ergueu o corpo e se apoiou na cabeceira, evitando o olhar dela de propósito. - Pode me passar o chá? - Tomou um gole e se voltou de novo para a irmã. - Quem você acha que Tom vai levar ao Globo de Ouro? Era uma tradição dos Balcon que, na noite de sábado da caçada, Oswald organizasse um jantar de gala para saborear os animais que tinham sido abatidos. A função começava com bebidas no Grande Salão, ao redor da escadaria. Os cavalheiros, felizes com a oportunidade de tirar as roupas de tweed úmidas e ásperas, vestiam casacas e sapatos de ópera de verniz, ao passo que as damas tinham a oportunidade perfeita para usar vestidos de noite refinados, que sempre combinavam bem com o cenário grandioso de Huntsford. Apesar de não estar disposta a se socializar, Serena se esforçara para brilhar mais do que todo mundo, principalmente com a presença de Maria. Uma bata Ossie Clark da moda, cinza-prateada e transparente escondia todos os vestígios da gravidez, e o cabelo estava preso em um coque tipo bailarina. Ela sabia que parecia uma linda hostess de sociedade de uma outra época. Aliás, quando as meninas desceram as escadas e se reuniram no Grande Salão, Camilla comentou como Serena se parecia com a mãe, Margaret Balcon, no auge da beleza. Mas o elogio se dissolveu quase que imediatamente, quando viram Maria Dante deslizar escada abaixo com jeito de quem era dona do lugar. Serena achou que ela parecia uma grande dama de pantomima, pronta para entrar no palco para seu grand finale. Sim, ela era uma mulher bonita, pensou de mau humor, mas era uma beleza datada e exagerada, seu vestido de veludo escarlate longo e pesado demais, seu cabelo preto puxado para trás sisudo demais. Serena sempre acreditara que o pai algum dia encontraria outra parceira, mas nem por um instante imaginara que outra mulher tomaria seu lugar nas afeições de Oswald como Maria tomara. Ela se perguntou se era coincidência o fato de sua relação com o pai ter esfriado desde que Maria entrara em cena. Sem dúvida ele estava decepcionado com sua gravidez, mas ao longo dos últimos 27 anos, Oswald permitira que Serena saísse impune do que quer que ela fizesse: ser expulsa da escola, namorar o xeique, tornar-se atriz... nunca dissera nada. Serena sempre fora poupada da desaprovação mordaz, da rejeição esmagadora, da indiferença patente que todas as irmãs tiveram que suportar; até agora. Quase dava para sentir o gosto da rejeição na boca, como metal. Ela detestava aquilo. Não queria aquilo. Não suportaria aquilo.


Venetia pegou um Campari com soda da bandeja que Collins oferecia, tentando ganhar tempo. Nunca era fácil discutir qualquer assunto delicado com o pai, mas depois da caçada e na companhia de pessoas educadas, com o humor levemente amaciado pelo uísque, aquele era um momento tão bom quanto qualquer outro. Pegou-o desprevenido, bem quando ele estava começando um papo com Nicholas Charlesworth e procurando Collins para que lhe trouxesse mais um aperitivo. - Como está seu ombro? - perguntou Venetia. - Camilla disse que você se machucou na caçada. - Ah, não há nada com que se preocupar - desdenhou Oswald, abanando a mão no ar. Aliás, por que você não participou da caçada? Sei que tem uma objeção ridícula à caça, mas poderia ter participado do chá. - Estou tentando passar um fim de semana relativamente calmo – respondeu Venetia. - Vou voltar para Londres amanhã cedo. Tenho muito trabalho a fazer porque, como sabe, vou para Nova York no final da semana. - Não, eu não sabia - disse Oswald com frieza, enquanto o bom humor ia visivelmente abandonando seu rosto. - O que vai fazer lá? Gastar mais a herança de Jonathon, acredito? Ela se ofendeu. - Você sabe por que eu vou para Nova York. Já lhe disse pelo menos meia dúzia de vezes. Ele fez a bebida rodar no copo de cristal. - Ficar me desafiando não vai levá-la a lugar nenhum. Não haverá expansão nenhuma para Nova York; não sem a aprovação da diretoria. O seu desejo ridículo de ficar correndo atrás dessa ideia foi exatamente a razão pela qual Jonathon me deu a procuração, para início de conversa: para proteger seus interesses. Ciente de que precisava manter o tom de voz baixo, as palavras de Venetia saíram em um sussurro rígido. - Só não compreendo qual é sua objeção à expansão para Nova York. Encontramos um ponto comercial ótimo, nossas encomendas na Bergdorf nunca estiveram tão altas e, depois do perfil na US Vogue, o escritório recebeu muitas consultas... - Como expliquei em detalhes na reunião da diretoria semana passada - interrompeu Oswald -, a empresa precisa de uma resolução especial para que você coloque em prática seus planos relativos a Nova York, e vou usar meu poder de voto para detê-los. Não estou apresentando obstáculos. Só acredito que a empresa precisa crescer devagar. A expansão para os Estados Unidos vai custar mais caro do que os recursos que temos disponíveis no momento. Venetia sacudiu a cabeça com veemência. Tinha passado um pente-fino na situação da empresa e tinha, sim, recursos para expandir. Estava convencida de que o pai tinha algum plano subliminar, e que nenhuma racionalização ou súplica faria com que ele mudasse de ideia. Então, desesperada, tentara resolver o problema por conta própria e comprar as ações de Jonathon. Ficara arrasada semanas antes, quando o testamento de Jonathon tinha sido lido e ela descobrira que, embora ele tivesse deixado a casa e uma quantidade considerável de dinheiro para ela, deixara os quarenta e cinco por cento das ações da Venetia Balcon Ltda. para o irmão Stefan, na Áustria. Jonathon tinha sido um canalha impossível e agora tentava prejudicá-la do túmulo. Dar as ações para Stefan era a pior coisa que Jonathon poderia ter feito. Ele sabia que Venetia e Stefan von Bismarck não se davam bem; na cabeça de Venetia, ele não passava de um misógino imaturo, que não tinha nem um pouco da ética de Jonathon no trabalho, mas que tinha toda a arrogância possível. Assim, ela fora a Viena para tentar convencê-lo a vender


as ações para ela, mas sem muita esperança. Como esperava, Stefan se deleitara com o desespero dela: passara a reunião toda agitando uma cenoura diante de seu nariz, e ela sabia que não conseguiria abocanhá-la. - Eu poderia vender-lhe por um bom preço - dissera ele em seu tom rígido, teu tônico, do castelo da família nos arredores da capital austríaca. - Mas isto não estaria de acordo com os desejos de Jonathon. Venetia havia voltado para casa sem nada além de muita tensão no corpo, raiva e um pacote de bolo alemão que comprara no aeroporto e que não tinha intenção de um dia comer. Agora, sem a cooperação de Oswald, a empresa estava em um impasse, e seu pai com toda a certeza não faria um acordo naquela noite. Oswald afastou-se e Venetia ficou escutando, sem prestar atenção, o som das vozes no salão. O grupo japonês tinha ido embora, de modo que Philip Watchorn estava mais relaxado. Enquanto Collins circulava por entre os convidados, enchendo as taças de champanhe com o néctar amarelo-claro, houve um tilintar súbito quando Oswald bateu na taça de cristal com uma colher. - Gostaria de fazer um pequeno anúncio antes do jantar - disse ele, cortando o murmúrio da conversa com a voz ríspida. - Estava em pé no segundo degrau da escada, e Maria Dante foi juntar-se a ele, pendurando-se em seu braço em um gesto possessivo. - Deleito-me ao anunciar a todos vocês, minhas filhas e meus amigos mais próximos, que pedi a mão de Maria em casamento e, fico surpreso em dizer, ela aceitou. Ouviram-se aplausos, e Philip até gritou vivas. Portia Charlesworth pousou a mão no ombro de Serena. - Você deve estar deliciada! - ronronou. Serena estava tão chocada que mal conseguia respirar. - Deliciada não é bem a palavra - conseguiu dizer depois de um segundo, com um sorriso forçado de dentes cerrados. Disparou pelo corredor até Venetia, que ainda estava de queixo caído. - Então, finalmente arranjamos uma madrasta bruxa. Mas que final de conto de fadas para a história. Venetia sacudiu a cabeça, tentando forçar um sorriso. - Se assim ele largar do nosso pé, só pode ser bom. - Ela não conseguia convencer nem a si mesma. - Então, não vão parabenizar seu pai? - disse Oswald, aparecendo ao lado delas e estendendo um braço coberto de veludo bordô. Serena preferiu ficar quieta e pegou o braço dele, sem jeito. - Então, quando vai ser o enlace? - No ano que vem, o mais rápido possível - respondeu Oswald. – A recepção será aqui em casa, é claro, e nós nos casaremos na igreja do vilarejo. As duas garotas pensaram a mesma coisa: a mesma igreja em cujo terreno os restos mortais da mãe estavam enterrados. - Parabéns, papai - disse Venetia com frieza, apertando a bochecha contra a dele. - É uma surpresa, mas é óbvio que estamos todas felizes. Agora, se me dão licença, vou dizer o mesmo a Maria. Maria continuava no pé da escada, alisando a gola do vestido como um pavão. Quando viu Venetia se aproximar, deu vários passos em sua direção e chegou tão perto que Venetia se sentiu sem equilíbrio, como se Maria estivesse invadindo seu espaço pessoal. Dava para ver os poros abertos no nariz de Maria e as veinhas vermelhas de seus olhos.


- Bem-vinda à família - disse Venetia, tentando parecer sincera. - Ah, é tão importante para mim ouvi-la dizer isso - sorriu Maria, dando-lhe beijos nas bochechas e apertando seus braços com força. - De repente, a voz de Maria assumiu um tom mordaz sutil. - Deve ser um alívio para você. É a senhora da casa há tanto tempo, sem nunca ter de fato sido Lady Balcon. Deve estar se sentindo bastante libertada. - Não é exatamente o que eu diria - respondeu Venetia, imediatamente erguendo a guarda. - Bem, eu gostaria de agradecer - disse Maria, pegando as mãos de Venetia com seus dedos de unhas vermelhas. - Você fez um trabalho excelente em forrar o ninho para mim. Há muito a se fazer nesta casa, é claro - sussurrou, em tom conspiratório. - Convenci Oswald da necessidade de reformar a casa toda. Tenho um amigo em Paris, um dos maiores decoradores da Europa, que mal pode esperar para começar. - A curvatura do sorriso de Maria era de superioridade. - Talvez possamos nos reunir todos para almoçar. Tenho certeza de que vocês dois têm muito o que conversar. Venetia ficou absolutamente chocada. Tinha passado os últimos dez anos tentando convencer o pai de que Huntsford precisava de uma repaginada total e que ela com certeza era a pessoa certa para fazê-lo, Ela conhecia aquela casa e sua história de maneira muito íntima, e seu estilo era exatamente certo para aquele tipo de projeto. Sentia-se como se tivesse levado um chute. - Acho que é importante que eu tome as rédeas do projeto, você não acha? Para imprimir meu gosto ao lugar - prosseguiu Maria, em um sussurro de boca de palco. - Afinal de contas, sou bem mais nova do que Oswald. No início, Venetia não compreendeu muito bem o que ela estava dizendo, mas Maria apressou-se em preencher as lacunas. - Vai chegar o dia em que serei apenas eu caminhando por esta casa, então preciso que ela esteja exatamente como quero. - Apenas você? - perguntou Venetia. - Na posição de Lady Balcon, a propriedade será de meu uso enquanto eu viver, caso meu marido venha a falecer. Aliás, Oswald já está tomando providências em seu testamento no que diz respeito a esta questão. - A voz dela pingava de superioridade, e ela respirava cheia de dramaticidade. - Claro que eu nem quero pensar na vida sem Oswald, mas é necessário ser prática e eu preciso adorar morar aqui. No momento está um tanto, bem, antiquado. Venetia estava paralisada no lugar, incapaz de processar todas aquelas informações. - Esta é uma residência familiar - afirmou Venetia, ainda se sentindo tonta. - Não sei bem se Huntsford deveria ser reformado de acordo com a visão de uma pessoa de fora. Maria desdenhou. - Mas quanta ingenuidade, não é mesmo, querida? - disse com voz de bebê. - Não vai dar para fazer uma reunião de família cada vez que eu quiser trocar as cortinas. Collins aproximou-se e fez menção de encher a taça de champanhe de Venetia. Ela aceitou e virou tudo de uma vez só. A situação da família dela, seu lar, suas raízes... tudo que conhecia havia quase quarenta anos... estava prestes a mudar com rapidez. E ela se sentia absolutamente impotente para deter a mudança.


39 Cate sentia-se péssima. Nem mesmo as fitinhas metálicas espalhadas pela sala ou o fluxo constante de presentes de Natal que começava a chegar das grifes de roupa eram capazes de animá-la. Sua cabeça latejava, seu nariz escorria, e ela não tinha conseguido comer nada o dia todo. Como todo mundo tinha saído para almoçar, ela tomou um gole grande de água e pousou a cabeça na mesa com um gemido. Ah, se pelo menos tivesse conseguido dormir um pouco, pensou, deixando as pálpebras se fecharem apenas por um momento. Ajeitou-se na cadeira de um salto quando ouviu passos. Nick Douglas entrou na sala, largou um saco de papel pardo na mesa à frente dela, cruzou os braços e ficou olhando para ela com ar fingido de seriedade. - Não fique achando que eu não estou ouvindo os seus espirros, a sua tosse e as suas fungadas da minha sala. Está parecendo uma velha. - Você me faz parecer tão glamourosa... - balbuciou ela, sarcástica, esticando a mão para pegar mais um lenço de papel. - Na verdade... estou me sentindo um horror. Nick puxou uma cadeira para perto da mesa dela. - Vai ver que isto está relacionado ao fato de você não ter tirado nem um dia de folga em quatro meses. - A voz dele era em tom de piada, mas era óbvio que ele estava preocupado. De qualquer forma, chamei um táxi para você. Vai chegar a qualquer minuto, e tudo de que você precisa deve estar dentro deste saco de papel. Agora, ande logo. Saia daqui. Você parece péssima. Se quiséssemos que Rodolfo, a rena do nariz vermelho, fizesse uma participação especial na redação, teríamos falado com o Papai Noel. Cate abriu o estojinho de pó compacto que estava em cima da mesa e se olhou no espelhinho. Ele tinha razão: ela estava péssima. Doente, com os olhos cheios de água, o nariz descascado de tanto assoar. Então deu uma olhada dentro do saco. Havia uma caixa de remédio para gripe Lemsip, dois bolinhos de chocolate tipo brownie, uma pilha de revistas de fofocas e uma caixa grande de lenços de papel Kleenex. - Seu kit de sobrevivência - disse Nick. - Agora, por favor, pode ir embora? Acomodada em casa, enrolada no sofá debaixo de um cobertor de cashmere cor-de-rosa, bebericando uma xícara grande de Horlicks para ajudá-la a relaxar, Cate continuava se sentindo culpada. Também estava um pouco irrequieta. Aquele era um universo desconhecido de sua semana de trabalho de sessenta horas. As ruas de Notting Hill por que passara de táxi estavam cheias de mães glamourosas com carrinhos de bebê, salto alto e cabelo recém-tingido. A televisão estava cheia de programas de culinária, filmes em pretoe-branco e programas de entrevistas meigos, em vez dos dramas noturnos que estava acostumada a assistir quando chegava em casa da redação. Gemendo por causa dos músculos doloridos, perguntou a si mesma se já estava na hora de tomar mais um Lemsip. Será que podia tomar a cada duas horas, ou seriam quatro?, pensou, desejando não ter jogado a caixa fora. Desistiu e abriu um exemplar da revista Heat. Sorriu e se recostou no travesseiro. Apesar de tudo, não conseguia resistir: queria saber quem estava indo para a cama com quem, bem como ficar a par de todas as fofocas de Hollywood e olhar as fotos de paparazzi de atores e atrizes saindo de casas noturnas aos tropeços. Depois de devorar as páginas, passou para a OK! e a Hello!, antes de pegar a Splash, a revista de celebridades mais sórdida e mais escandalosa do Reino Unido. Folheou as páginas cheias de celulite de celebridades e vestidos minúsculos no tapete vermelho, até chegar ao especial de Natal: "Os Bem-sucedidos e os Fracassados do Ano." Virou a página


e teve um sobressalto tão grande que a caneca virou um pouco e derramou algumas gotas de Horlicks no cobertor. As páginas centrais da revista anunciavam: "Fracassada Número Um do Ano: Serena Balcon." A manchete em cor-de-rosa fosforescente vinha acompanhada de uma montagem de fotos nada lisonjeiras de paparazzi, do tipo que Cate reconhecia como as fotos recusadas, tiradas quando a celebridade estava espirrando, ou piscando ou quando o cabelo tinha levantado por causa de uma rajada de vento. Os jornais geralmente as dispensavam, mas eram perfeitas para ilustrar alguém que estivesse passando por maus bocados. Cate conhecia a irmã bem demais: Serena nunca choraria em público nem ficaria bêbada em um festa muito pública, mas aquelas fotos enganosas contavam outra história. O texto que acompanhava as imagens catalogava o rompimento de Serena com Tom, seu relacionamento com Michael Sarkis, a gravidez e as prostitutas no sul da França. Também havia detalhes sobre como ela fora dispensada de papéis importantes em Hollywood, como perdera contratos importantes de trabalho como modelo e sobre o intruso em Huntsford. Pior ainda, davam a entender que ela bebia, usava drogas e tinha problemas mentais. Apenas um ano antes, essa mesma revista tinha dedicado oito páginas para "O Estilo de Serena", e agora era ela quem desejava ser outra pessoa. Estava louca, detonada, perturbada, à beira do colapso total. A primeira reação de Cate foi ficar furiosa. Aquilo acendeu todos os instintos protetores que ela tinha dentro de si, e foi tomada por um desejo repentino de falar com a irmã. Não sabia se Serena lia ou não revistas como a Splash, mas sabia que, se Serena visse aquilo, iria se sentir como que crucificada. Serena bem que estava precisando descer um pouco do pedestal - Cate ainda não tinha esquecido a petulância com que ela dissera "ele deu em cima de mim" quando ela a confrontara a respeito de David Goldman. Mas pelo que Venetia tinha dito a respeito da irmã mais nova no fim de semana da caçada, não era o ego dela, mas sim seu espírito, que estava se erodindo lentamente pelos acontecimentos dos dez meses anteriores. Antes que tivesse oportunidade de pensar mais a respeito do assunto, já tinha jogado a revista longe, pegado o casaco e as chaves do carro e se dirigido para a porta, a caminho de Chelsea. The Boltons, onde Serena morava, era basicamente uma praça circular formada por imóveis multimilionários que rodeavam uma área oval de jardins comunais e o terreno de uma antiga igreja. Ela estacionou seu Mini na frente do apartamento de Serena, pegou o saco de papel pardo do banco do passageiro e bateu a porta do carro. Tocou a campainha uma dúzia de vezes. Nada. Tentou ligar para o celular dela, mas caiu direto na caixa postal. Preocupada, Cate ficou imaginando onde ela poderia estar. Não era provável que Serena tivesse ido muito longe no oitavo mês de gravidez. Parada ali no frio, Cate enrolou o cachecol no pescoço duas vezes e espiou pelas janelas para ver se tinha alguma luz acesa. - Onde diabos ela se meteu? - balbuciou, voltando para o carro. Apoiou-se no teto do Mini e tentou ligar para o celular de novo. Havia um nó de ansiedade na boca do estômago de Cate. Durante um segundo, ficou imaginando se deveria ligar para a polícia, então desprezou a ideia como algo ridículo. À sua esquerda, viu uma senhora elegante com dois cocker spaniels presos em coleiras entrando no jardim; seus olhos acompanharam a mulher sem prestar muita atenção, enquanto ela escutava a mensagem de Serena de novo. Estava quase voltando para dentro do carro quando avistou uma mulher loira muito pequena sentada sozinha em um banco do jardim. Foi até a grade e espiou. Com certeza se parecia com Serena, pensou, chegando mais perto e apertando os olhos. Cate achou um portão destrancado e entrou, seus sapatos se arrastando pelo tapete de folhas cor de cobre que cobriam o caminho. Serena não ergueu os olhos quando Cate se


aproximou; continuou sentada rígida no banco, os olhos focados em algum ponto distante, com um enorme poncho mesclado bem apertado em volta do corpo. Parecia pálida, com os olhos fundos e o cabelo... Cate ficou paralisada por um instante. O que tinha acontecido com o cabelo dela? Estava todo espetado em chumaços curtos, como se tivesse sido atacado por um tesourão. Sentiu uma onda de culpa e tolice ao se aproximar da irmã. Deveria ter ficado ao lado de Serena. Sim, Serena a magoara, mas a raiva cedera, então não tinha ligado para ela nas últimas semanas por pura teimosia. Cate não disse nada quando se sentou ao lado da irmã no banco frio e Serena continuou imóvel como uma estátua. As duas ficaram observando os cocker spaniels pulando de um lado para o outro, correndo atrás de um graveto que a dona atirava. - Achei que um destes aqui lhe faria bem - disse Cate, baixinho, depois de alguns instantes. Enfiou a mão no saco de papel pardo, tirou de lá um brownie de chocolate e colocou-o com gentileza em cima da perna da irmã. Serena o pegou, partiu um pedacinho e jogou na direção de um grupo de pombos que cobria as pedras do calçamento. Finalmente, virou-se de frente para Cate. - Espero que não tenha vindo até aqui para me fazer sermão - disse. - Vim aqui trazer um brownie para você - sorriu Cate, cheia de esperança. Cate observou quando os lábios de Serena lentamente começaram a se voltar para cima. - Você não devia estar no trabalho? - Estou doente. - O seu nariz está todo vermelho - disse Serena, esticando a mão para tocá-lo com a ponta dos dedos. Outro silêncio cresceu entre as duas; só se ouviam os latidos dos cães ao longe. - Então - começou Cate -, o que você acha de Maria entrar para a família? - Estou obviamente deliciada com a notícia. O calor e o humor mordaz da velha Serena estavam começando a retomar à sua voz. - Então, isso quer dizer que você vai ao Baile de Huntsford na semana que vem? - Você vai? - contrapôs Serena, hesitante. Cate assentiu. - Senti saudade de você - murmurou Serena, depois de mais uma pausa. - Eu também. Aquilo soou alheio, nada sincero, como responder a "eu te amo" com "eu também". - Sinto muito, Cate, sinto muito - disse Serena, olhando para a irmã com os olhos arregalados. - Tudo bem. Agora não tem mais importância. - Tem importância, sim. Eu não saí por aí com a intenção de seduzir David, sabe? Simplesmente aconteceu. Cate ficou olhando fixo para a frente, lembrando-se da dor brutal que havia sentido na última vez que vira a irmã. Voltou-se para olhar para ela e percebeu que seus olhos brilhavam. Cate sentiu um nó na garganta. - Eu estava me sentindo solitária - prosseguiu Serena. Cate ficou se perguntando se o discurso era ensaiado. Tinha pensado tantas vezes a respeito do que diria a Serena. Mas nada do que pensara parecia certo. - Houve um momento em que eu poderia ter colocado fim a tudo. Mas eu não parei... - As palavras saíam roucas enquanto ela se lembrava da noite no Chateau d'or. - Eu estava com inveja de você, Cate. Pensei em você na sua festa de lançamento. Você com uma empresa,


com um homem bonito ao seu lado, com um monte de gente lhe dizendo como é fabulosa e bem-sucedida. Fiquei com tanta inveja que quis tirar um pouco de você. Cate ficou estupefata com a honestidade e o autoconhecimento dela. - Você ficou com inveja de mim? - disse ela, sacudindo a cabeça lentamente, quase dando risada. - Sin, você tem tudo. Você é linda, famosa, faz sucesso. Olhe ao redor de si. Só tem sucesso à sua volta, e você está bem no meio. Serena virou a cabeça para olhar para as enormes casas brancas, algumas do tamanho de embaixadas, que as rodeavam. - É mesmo? - disse Serena com a voz vazia. - O cara que é dono da minha casa, o cara que me deixou ficar aqui? Provavelmente está achando que vai para a cama comigo. Agora lágrimas escorriam pelas bochechas de Serena, e ela as enxugou com a ponta do poncho. Cate chegou mais perto dela e colocou o braço em volta de seus ombros. A raiva e a traição evaporaram como água sobre pele quente. - Vamos lá, não pense assim. - Eu mereço, Catey. Eu sou uma vagabunda. Você tinha razão. Sou uma vagabunda mimada e obcecada. Joguei tudo fora este ano: amigos, carreira, amor. Cate apertou o ombro dela. - Não é verdade. - Roman me mandou flores - disse ela devagar, sorrindo de leve, como se aceitasse a idéia um pouquinho. Cate pareceu surpresa: sabia que Serena e seu velho amigo, o estilista, não se falavam havia alguns meses. - Bem, não foram flores. Na verdade, foi uma planta - disse Serena. - Uma poinsétia linda com um cartão de Natal adorável. - Sua boca estava rígida de vergonha. - Eu não mereço. - Não é tarde demais para começar a remediar as coisas - disse Cate com firmeza. - Ligue para Roman, ligue para o seu agente. - Fez uma pausa. - Ligue para Tom. - Talvez - disse Serena baixinho, olhando no olho da irmã. Cate puxou a cabeça da irmã para mais perto de si. Enquanto acariciava o cabelo dela, percebeu que tinha sido mal cortado, com crueldade. Recolheu a mão como se tivesse levado um choque. - Sin, o que aconteceu? - Eu cortei. Cate sentiu os olhos se enchendo de lágrimas ao olhar para irmã, ali tão vulnerável e triste naquele banco de praça, o rosto lindo emoldurado pelo cabelo destroçado e uma barriga enorme saltando do corpo magrelo e pequeno. - Catey, eu cortei todo errado. A voz de Serena tinha começado forte, mas começou a falhar e logo ela não conseguiu mais segurar uma enxurrada de soluços. Cate a abraçou bem forte. - Está tudo bem. Está tudo bem - disse, tentando acalmá-la. Agora as lágrimas rolavam soltas. - Eu detestei, Cate. Eu detestei. Cate deixou a cabeça de Serena deitar em seu ombro e apertou seu braço através do tecido grosso do poncho. - A primeira coisa que vamos fazer é entrar para tomar uma boa xícara de chá para combinar com os brownies - ela sorriu, sentindo Serena rir no tecido do casaco. - E depois vamos dar um jeito neste cabelo. Com certeza conseguiremos fazer com que John Frieda arranje um horário para Serena Balcon antes da véspera de Natal.


Serena assoou o nariz, deu de ombros e abriu um sorriso maroto. - Se ele nĂŁo arranjar para mim, para quem arranjarĂĄ?


40 Nova York tinha sido tomada por uma onda de frio. Estava quase nevando, o sol não conseguia penetrar a grossa coberta de nuvens brancas e o vento cortante era daquele tipo que congelava até os ossos. Era o clima perfeito para usar pesados gorros de lã, mas parecia que os nova-iorquinos do Upper East Side nem se davam conta disso. Só tinham puxado a gola dos casacos pesados um pouco mais para cima e caminhavam em um ritmo um pouquinho mais acelerado. Venetia passara o dia inteiro enfurnada no hotel, o St. Regis, aproveitando ao máximo o quarto (a suíte Christian Dior): pediu comida no quarto, tomou chocolate quente e simplesmente ficou ali naquele espaço cinza-pombo, confortável demais para sair dali sequer para fazer compras. Claro que havia muitas coisas que ela queria comprar: o Natal estava chegando. Queria pegar velas perfumadas da Henri Bendel, bugigangas da Tiffany, brinquedos para os filhos das amigas na FAO Schwarz, mas tudo teria que esperar até amanhã. Hoje só havia uma coisa em sua agenda além de se esquentar: tomar as providências para que sua filial de Nova York acontecesse. Uma imagem do pai, desdenhando de suas ideias, querendo minar todo o seu trabalho tão duro, veio-lhe à mente. Ela não permitiria que ele a paralisasse, pensou, a boca apertada em um traço fino e determinado. Estava ali para fazer as coisas acontecerem. Às 15h30 em ponto, Venetia pegou um táxi até a rua Cinquenta e Sete. O carro parou na frente de um prédio de tijolinhos altos, com uma placa de bronze acima do frontão, anunciando que ela chegara ao escritório de Katz, Lloyd e Bellamy. Christopher Bellamy, formado em Cambridge, bem-sucedido no mercado financeiro londrino e irmão de um dos colegas de Venetia, tinha se mudado para Nova York cinco anos antes, depois de se casar com uma mulher rica de uma família importante de Connecticut. Ele tinha feito os exames da Ordem dos Advogados dos Estados Unidos, entrara para um escritório de advocacia de Nova York e agora era sócio de uma imobiliária próspera em Midtown. - Venetia - disse Christopher, saindo de trás de uma mesa larga para cumprimentá-la. Você veio de muito longe só para esta reunião, mas é sempre um prazer vê-la. Na casa dos 30 e tantos anos, mas com aparência de ser dez anos mais velho, o cabelo de Bellamy ia rareando e seus olhos pareciam cansados de tantos dias de 16 horas de trabalho; seu rosto, no entanto, era aberto e honesto, irradiando uma integridade em que Venetia confiava. Ela tirou o sobretudo de cashmere, acomodou-o no espaldar de uma cadeira de couro e se sentou na frente de Christopher enquanto ele abria uma pasta de papelão azulescuro e algumas cartas escapavam lá de dentro. - Então, vejo que não houve avanços na possibilidade de o seu pai permitir que a diretoria aprove o aluguel do imóvel na Madison, certo? – disse Christopher, seco. - Chris, é muito frustrante - respondeu Venetia, remexendo os dedos no colo. Ela não estava nervosa, apenas agitada. - Bem, recebi mais uma carta da imobiliária Zuckerman hoje pela manhã, perguntando quando vamos assinar o contrato de aluguel – disse Christopher, tomando um gole de café. - Nem é preciso dizer, Venetia, que se a empresa não deu autorização para a liberação dos fundos para a transação, vamos ter que desistir. - Mas eu preciso de mais tempo - disse Venetia, implorando. - A localização é tão perfeita para nós, simplesmente não quero perdê-la.


- Pode ser que seja obrigada a abrir mão dela - disse Christopher com gentileza, mas também com firmeza. - Podemos voltar a procurar no começo do ano, se seu pai se mostrar mais, digamos, maleável. Que tal? Venetia fez careta. - Ajuda se eu pagar as luvas com o meu próprio dinheiro? Ela não tinha uma quantidade enorme de capital líquido à disposição, mas sabia que assim que o inventário de Jonathon fosse finalizado, o que aconteceria a qualquer momento, ela seria uma mulher muito rica de fato. Apesar de ele ter deixado as ações da empresa para o irmão, a residência em Kensington Park Gardens, 5 milhões de libras em dinheiro e uma pequena coleção de arte moderna tinham ficado para ela. - Eu sei como você está desesperada para ficar com o ponto – disse Christopher, olhando para ela com solidariedade -, mas meu papel é aconselhá-la da melhor maneira possível. Para começo de conversa, não tenho certeza se os proprietários vão querer alugar para uma pessoa física. A maior parte das empresas prefere fazer contratos comerciais. Venetia passara a última quinzena pensando em alguma estratégia. - Mas então eu poderia sublocar para a empresa por uma quantia que não exija resolução especial para ser liberada da conta da empresa, não poderia? - Humm, a sublocação geralmente não é permitida nos contratos-padrão de aluguel comercial - disse Christopher, admirando a maneira de pensar dela. - Mas eu marquei uma reunião com um representante da Zuckerman para amanhã, de modo que podemos ir até lá ver se encontramos uma solução. No mínimo, quem sabe conseguimos ganhar um pouco mais de tempo? Nesse ínterim, pode ser que o inventário do seu marido seja finalizado e o novo proprietário das ações, o irmão dele, acredito, possa usar seu direito ao voto para permitir que a transação em Nova York seja fechada. Venetia sacudiu a cabeça. - Não. Stefan já me disse que quando receber as ações de Jonathon da Venetia Balcon, meu pai vai continuar como seu procurador, até ele decidir o que fazer. Basicamente, Stefan não quer se incomodar com as ações da empresa, mas com toda a certeza não quer que eu fique com elas. - Isto é um problema - disse Christopher, lentamente. - Mas tenho outra idéia - disse Venetia, colocando as mãos no tampo da mesa. - Prossiga - disse Christopher. - Stefan se recusa a vender as ações para mim, mas e se um terceiro as adquirisse? Um consórcio ou algum indivíduo rico que talvez seja favorável à minha expansão para os Estados Unidos? - Caramba, Venetia - disse Christopher, rindo. - Nunca pensei que você fosse assim tão astuciosa. - Estou desesperada - disse Venetia, sem rodeios. - Sei que esta é a coisa certa a fazer para a empresa. - Bom, mas posso ver alguns contratempos no seu plano. Para começar, vai demorar demais... Você não disse que o inventário de Jonathon ainda não foi finalizado? E, além do mais... na verdade você estaria... como posso colocar, brincando nas limitações da lei, digamos? Venetia percebeu que corava um pouco enquanto Christopher prosseguia. - Se o seu pai não está disposto a cooperar, então você precisa torcer para que ele saia de cena de algum modo. Ouvi dizer que ele vai se casar. Talvez perca o interesse na empresa.


Por outro lado, na pior das hipóteses, ele pode estar interessado em comprar as ações de Jonathon pessoalmente. Aí, sim, estaremos em apuros. - Duvido que ele tenha dinheiro para isso - disse Venetia, sacudindo a cabeça. - Acho que as finanças dele não estão muito saudáveis no momento. - Bom, você vai ter que pensar em alguma coisa. E se não quiser que a propriedade de Madison Avenue lhe escape por entre os dedos, sugiro que tenha alguma ideia bem rápido. Quando os saltos de suas botas Gucci bateram na calçada do lado de fora do escritório de Christopher, Venetia simplesmente continuou caminhando. Quarteirão após quarteirão ia passando, enquanto ela seguia na direção de Uptown. De vez em quando, fazia uma pausa para olhar uma vitrine de alguma de suas lojas preferidas. Admirou as jóias sobre almofadas de veludo da Bulgari, as jaquetinhas de tweed com penas da Chanel. Estava escurecendo, e aquele era o momento em que Nova York ficava mais bonita, com o hotel Plaza todo iluminado como um bolo de casamento glorioso e casais alegres pelas ruas, bem agasalhados, passeando nas carruagens que trotavam na direção do Central Park. Era uma cena romântica, com muito frio e ar cortante, que fez Venetia pensar em Jack. Não conseguira tirá-lo da consciência desde que acabara com o caso entre os dois, depois da morte de Jonathon. A pura força de vontade geralmente a impedia de pensar nele, mas momentos como aquele lhe traziam à mente a imagem de seu rosto e a sensação de seu corpo junto ao dela, tão forte que parecia real. Ela se deteve. De repente, sentiu frio e apertou as mãos com mais força dentro das luvas de couro marrom. Seguiu em frente cheia de determinação. Depois de 45 minutos de caminhada, chegou ao seu destino. Uma lojinha em Madison Avenue, entre a rua Setenta e Oito e a rua Setenta e Nove. A loja dela. Embora ficasse bem perto de diversos pontos favoritos do Upper East Side - Vera Wang, Cartier, Gucci - parecia um pouco mal-amada. Um letreiro escrito com tinta-spray branca na vitrine anunciava que o último dia de funcionamento tinha sido apenas na semana anterior, mas o lugar já parecia frio e abandonado. Para Venetia, no entanto, brilhava de tanto potencial, da mesma maneira que acontecera na primeira vez que colocara os olhos sobre ela, dois meses antes. O ponto era perfeito, o prédio de tijolinhos era pequeno, mas tinha caráter marcante, com vitrines compridas e elegantes e um toldo branco que ia até a rua. Encostou os dedos no vidro e uma nuvem de respiração fria lhe escapou dos lábios, deixando a vitrine embaçada. Ficou ali parada alguns minutos, tentando espiar o interior, mas seus olhos não se focavam, de tanta raiva que sentia do pai. Vamos ver no que vai dar a reunião na Zuckerman, disse a si mesma. Nem tudo estava perdido, ainda. Ela deu um passo atrás e viu o reflexo de um homem no vidro, observando-a. Venetia deu meia-volta e ficou paralisada ao ver seu rosto. - Luke... Luke? É você? - gaguejou ela. Era ele. Era, sim. O passado jorrou sobre ela como um tsunami, as lembranças tomando conta de sua mente de maneira tal que Venetia mal conseguiu tomar fôlego. Luke Bainbridge fora o amor de sua vida; ou pelo menos era o que ela achava na época. Eles tinham se separado três anos antes; pouco depois, ela conhecera Jonathon e se casara. Eles eram um casal de opostos: ela, a aristocrata refinada; ele, o fotógrafo desleixado; mas era uma combinação que funcionava. Durante os dois anos que ficaram juntos, tinham gostado da companhia um do outro, tinham se complementado, tinham se entendido. Ele fora aos poucos derrubando as defesas de Venetia, ajudara a fazer com que ela voltasse a confiar nos homens, ajudara-a a gostar de transar e ajudara-a a construir sua empresa do zero. Acima de tudo, ele a ensinara


a não levar a vida tão a sério. Ela teria se casado com ele em um piscar de olhos - e estava certa de que ele estava prestes a pedir sua mão -, quando recebera um telefonema do nada e ele lhe dissera que conhecera outra pessoa. Ela nunca sentira uma dor tão brutal. Seu coração doeu tanto que acabou por ficar entorpecido. Parado ali na frente dela, Luke parecia acanhado e um tanto chocado, como se no mesmo instante tivesse se arrependido de parar naquela vitrine. - Achei que era você - disse ele lentamente. - Eu vi o seu rosto de perfil. Ele colocou a mão no próprio queixo, como que para dizer a ela que a reconhecera por um pedacinho minúsculo do corpo. Ela sentiu um frio na boca do estômago. O menor gesto ou movimento ainda era capaz de acender alguma coisa dentro dela. Fisicamente, ele continuava o mesmo: o cabelo castanho-claro agora estava um pouco mais comprido, a pele, um tom mais morena, e continuava incrivelmente sensual; mas as roupas tinham se tomado irreconhecíveis. Jeans, camisa, mocassins caros, um visual muito refinado: nada do desleixo que fora sua marca registrada em Londres. E ela não pôde deixar de notar o brilho de uma aliança de ouro no dedo anular, tão brilhante que quase com certeza era nova. - Nova York combina com você - disse ela por fim. Ele assentiu com a cabeça em um gesto imperceptível. - Então, o que faz aqui? - Estou aqui para tratar de negócios - respondeu ela, com ar despreocupado. - Vou embora amanhã à noite. E você? A atmosfera estava grossa e tensa, como a corda de um violoncelo. - Agora eu moro aqui - disse ele sem muita convicção, percorrendo a calçada com os olhos. - Já faz um tempinho. - Por causa da fotografia, imagino? - Mais ou menos - respondeu Luke. Agora estava com um leve sotaque da costa do Atlântico dos Estados Unidos. - Na verdade, tenho um estúdio. Dois, aliás. Um em Chelsea, o outro no Meatpacking District. Finalmente ele sorriu, e aquilo fez Venetia se lembrar do sorriso de Jack, torto e cheio de segurança, mas com um leve quê de acanhamento. Os dois ficaram lá parados na calçada, sem jeito; os segundos pareciam minutos. Venetia simplesmente queria que ele fosse embora. Com toda a certeza sentia que a vontade de Luke era sair berrando pela Madison Avenue. Mas havia muitos assuntos pendentes para deixá-lo sair assim. E ela não queria que sua ida a Nova York fosse inteiramente inútil. - Quer beber alguma coisa? A expressão de Luke ficou paralisada, então se suavizou. - Certo. O Carlyle fica logo ali na esquina. Ela sorriu para si mesma. O hotel Carlyle era chique; o bar era uma espécie de bebedouro para as mulheres que não tinham nada a fazer além de almoçar com as amigas. Não era de jeito nenhum o estilo de Luke. No passado, a piada corrente era que Luke representava o "lado tosco" de Venetia. Aquele fotógrafo charmoso e adorável era capaz de arrastá-la para qualquer buraco e fazer com que ficasse até muito tarde em festas. Na época, ela era a mesma pessoa de hoje: Venetia, uma mulher elegante e cheia de pose, mas ele despertava um outro lado dela, mais relaxado e mais à vontade. Tomaram o rumo da rua Setenta e Seis e entraram no bar do Carlyle. Era um lugar aconchegante e íntimo, com decoração cara ao estilo art déco, bem no clima do resto do hotel. Não era de surpreender que muitos encontros secretos ocorressem ali: segundo os boatos, aquele era o local escolhido para as escapadelas de Marilyn Monroe e JFK.


Ela se sentiu como se estivesse na mesma situação. - Quer dividir uma garrafa de tinto? - perguntou ele quando se acomodaram em uma banqueta marrom-chocolate. Ah, igualzinho a antigamente, pensou ela com tristeza. - Tudo bem. Luke chamou o garçom, relaxando visivelmente ao tirar o casaco. - Que belo bronzeado - disse Venetia, sorrindo. - Não é bem um bronzeado de Nova York. - É das Ilhas Maurício, para falar a verdade - respondeu ele, dando de ombros. - Acabo de voltar de lá. - Ah, sei - perguntou Venetia. - Algum trabalho? Ele abaixou os olhos, ficou remexendo o botão do casaco. - Na verdade, foi minha lua-de-mel. Não sentiu o soco no estômago que estava esperando, a sensação foi mais a de uma picada. Afinal de contas, ela já tinha visto a aliança dourada no dedo dele. - Parabéns. Quem é? Ele ficou em silêncio por um instante, olhando intensamente para a borda da taça de vinho. - Fernanda - respondeu baixinho. - Ela é da América do Sul. Ela é legal, você ia gostar dela. Que maravilha, pensou Venetia, formando uma imagem na cabeça. Uma modelo de 23 anos desfilando pelas ruas do Upper East Side com pernas da altura de escadas e cabelo castanho balançando ao vento. - Modelo? - perguntou ela, já sabendo qual seria a resposta. - Às vezes. A família dela mora em Nova York. Ela trabalha um pouco nos negócios da família, com marketing e tal. - Ah, é? Que tipo de negócio? Luke limpou a garganta. - Na verdade, eles têm algumas empresas. Papel, madeira, jóias. São donos da Lempika. Venetia quase engasgou com o vinho. A família brasileira DeSantos, ridiculamente rica. Fernanda era herdeira. Luke tinha dado o golpe do baú. Ela se acomodou na banqueta e ficou ouvindo o piano do bar. Conversaram um pouco sobre a vida. Ela lhe falou das ideias que tinha para a loja de Nova York, omitindo as objeções do pai; falou sobre o que as irmãs estavam fazendo, até mesmo sobre a morte de Jonathon, três meses antes, com o que Luke pareceu verdadeiramente triste e abalado. A vida estava bem mais cor-de-rosa para Luke. Recém-casado com Fernanda, morando na casa da rua Oitenta e Quatro - dinheiro dela -, e com dois estúdios perto do centro que não eram quaisquer estúdios: eram os Banana Studios, dois entre os mais prestigiosos de Nova York, onde campanhas publicitárias de peso eram fotografadas e top models posavam para as capas das revistas mais importantes. Como diabos ele tinha conseguido tudo isso? Em Londres, não passava de um fotógrafo freelancer. Luke encheu sua taça e contou-lhe outra história. Feitos e reminiscências saíam com a mesma facilidade com que o vinho descia. Continuava sendo divertido conversar com ele, ela pensou: era isso que sempre amara nele. Mas havia uma questão que continuava sem ser abordada e, à medida que os minutos iam passando, a coisa ia ficando mais óbvia. Ela tinha que perguntar. Ela tinha que saber. Ela estava em Nova York para confrontar questões, para fazer as coisas retomarem o passo, e não perderia a oportunidade. - Você me largou por Fernanda? - perguntou quando as últimas gotas de Merlot foram servidas em sua taça. Luke olhou nos olhos dela e logo voltou-se para a mesa mais uma vez.


- Eu não a abandonei por causa de ninguém, Venetia - disse ele baixinho, depois de alguns instantes. Ela olhou para ele, confusa. - Mas foi o que você me disse. Naquele dia que ligou para terminar tudo. Ele limpou a boca com as costas da mão e pigarreou. - Sinto muito pela maneira como as coisas aconteceram - disse ele, a voz mais controlada. Não me orgulho daquilo, mas o que aconteceu, como eu fiz a coisa, na época achei que era o melhor. Ela se viu dando gargalhadas de desdém. - O melhor? Foi como uma daquelas lendas urbanas: estrelas de cinema que terminam casamentos por fax. Aquilo ainda doía, desgraçado. Dois anos de alegria absoluta tinham se dissolvido em nada no espaço de uma ligação em que ele lhe dissera que conhecera outra pessoa durante um trabalho em Paris. Ela passara 48 horas inteiras chorando, mas quando as lágrimas cessaram, ela pegara o carro e fora até o apartamento dele, decidida a não permitir que Luke Bainbridge fosse embora sem lutar por ele. Mas ninguém atendeu à porta. O telefone tinha sido cortado, o celular tinha mudado. Os vizinhos disseram que não o viam fazia uma semana. Ele desaparecera da vida dela como um fantasma. Houve mais uma longa pausa antes que Luke voltasse a falar. - Há quatro anos, se você me perguntasse se algum dia eu permitiria que o seu pai se intrometesse entre nós, eu teria dito que não, de jeito nenhum. Nem em um milhão de anos. Venetia de repente se sentiu enjoada. Aquela palavra de novo. Pai. Luke prosseguiu, em um arroubo: - Mais ou menos uma semana antes de aquilo acontecer... Venetia não precisava que "aquilo" fosse especificado. - Está lembrada? Quando fomos jantar com o seu pai em Huntsford? Ela assentiu com a cabeça, distraída. Ela não se lembrava, na verdade, mas permitiu que ele prosseguisse. - Era tarde, você já tinha ido deitar. Eu me lembro de ter pensado que devia ficar acordado e tentar conversar um pouco com o seu pai. Sabe como é... beber alguma coisa, dar um pouco de risada. - Ele suspirou, suas bochechas incharam com um ruído. - Mas, bem, acontece que ele tinha algo parecido em mente. Ele me puxou de lado e perguntou como estava indo a nossa relação. Eu disse a ele o quanto a amava e a respeitava. Achei que era isso que a gente devia dizer ao pai da namorada. A voz dele baixou alguns tons. - E claro que era verdade, de todo modo. Eu realmente amava você. Os olhos de Luke encontraram os dela por uma fração de segundo e então dispararam em outra direção. - Disse a ele que iríamos morar juntos naquele mês. Você se lembra de como tínhamos planejado tudo? Agora parece estranho que, depois de dois anos, nós ainda estivéssemos morando em casas separadas. Mas nós estávamos sempre ocupados, acho, não é? Quando ele dizia "nós", Venetia sabia que estava falando dela. Ela tinha resistido às tentativas dele de comprarem uma casa juntos, enchera-o de desculpas relativas ao trabalho e à agenda lotada: queria esperar até ter certeza absoluta. - Achei que ele ficaria contente - disse Luke, olhando para Venetia com ar de súplica, examinando o rosto dela em busca de algum registro de emoção, mas sua expressão continuou vazia, impassível. - Luke respirou fundo antes de lançar a bomba. - Seu pai disse que não me queria na sua vida. Que eu não estava à sua altura. Disse que todo mundo sabia


disso, principalmente você... - Luke examinou o rosto de Venetia mais uma vez antes de prosseguir. - Ele me pediu para pensar por que você estava enrolando para nós irmos morar juntos. Claro que eu já tinha refletido sobre o assunto... Ele disse que você tinha lhe dito que não via futuro no relacionamento. Que eu não servia para marido. - Não é verdade! - explodiu Venetia. - O que você queria que eu pensasse? - perguntou Luke, o rosto contorcido. - E daí, o que aconteceu? - perguntou Venetia. Na verdade, ela não queria saber de mais nada, mas precisava conhecer aquela verdade mórbida. - Eu mandei ele se foder. Parte de mim não queria acreditar. Daí... - mais uma longa pausa ... ele me ameaçou. Meu apartamento foi invadido dois dias depois. Eu nunca contei para você, porque sabia que era obra dele. Todo o meu equipamento fotográfico, milhares de libras em equipamento, foi tudo destruído e despedaçado. Daí comecei a reparar nos sujeitos mal-encarados que me seguiam por todos os lugares, que sempre estavam por perto, sempre me encarando. Fiquei com medo e fui falar com ele na galeria. Ele disse que poderia transformar a minha vida e a sua em um inferno. A nossa vida. Eu não queria que o nosso futuro fosse assim. - Então, você simplesmente colocou fim em tudo, sem mais nem menos? Sem nunca me contar a verdade... ? - a voz de Venetia tinha se transformado em um quase suspiro. O rosto de Luke ficou vermelho de vergonha. - Ele me ofereceu dinheiro para desaparecer. Muito dinheiro. Eu aceitei e vim para Nova York. Achei que seria melhor para todo mundo. - Luke deixou o queixo cair no peito e esfregou a testa com a palma da mão. - Quanto eu custei? Luke era capaz de escutar a raiva na voz dela. - Van, não foi assim - disse ele, tentando pegar a mão dela do outro lado da mesa. - Bom, então como é que foi, diabos? - disse Venetia, esforçando-se para falar com ele com a voz alta e firme. - Foi o suficiente para me tirar da sua vida. Ela ergueu os olhos e viu quando ele se virou para o lado e levou a ponta do dedo ao canto do olho. - Ah, sim - despejou ela. - O bastante para você abrir um estúdio no centro e se transformar no rei de Nova York. A aliança de ouro reluzente brilhou com crueldade para ela mais uma vez. Sem se dar conta, ela olhou para a própria mão, sem aliança. Tinha tirado o anel semanas depois da morte de Jonathon, colocado em uma caixa e deixado lá. - Achei que nós éramos felizes, achei que estávamos apaixonados – disse ela finalmente, muito devagar. - Poderíamos ter sido felizes juntos. - Oswald não teria permitido que nós fôssemos felizes - disse ele, simplesmente. - Será que você não percebe? Ele não queria que você ficasse com uma pessoa como eu, e quem pode culpá-lo? Um fotógrafo freelancer sem dinheiro nem reconhecimento não tinha nada a acrescentar ao legado dos Balcon. Ele me fez perceber que eu não podia lhe dar o que você merecia na vida. Vi a notícia de que você havia se casado com Jonathon von Bismarck. Você precisava de alguém como ele. Oswald precisava de alguém como Jonathon. Ela fechou os olhos, relembrando. O pai a apresentara a Jonathon pouco depois da partida de Luke. Solitária, deprimida e magoada, ela se permitira envolver em um relacionamento que nunca deveria ter passado de alguns beijinhos; altar então, nem se fala. E agora, lá estava ela: viúva, sem filhos, frustrada na vida profissional e sujeita às restrições do pai.


Com ou sem Luke, ele conseguira fazê-la infeliz. Ela se sentia derrotada, fraca demais para ficar brava. - Sinto muito, Van. Venetia só ficou olhando para ele, sem enxergar nada. Não estava mais apaixonada por Luke Bainbridge. Ele era um covarde, um oportunista, que a vendera no meio do caminho e que agora tinha a mulher certa, a casa certa, o trabalho certo, a vida dourada certa. Luke tinha a vida que ela devia ter tido. Ela se sentiu enganada, roubada. Manipulada. Mas uma emoção acima de todas as outras crescia a cada segundo, como um vírus. Era ódio. Ela odiava Oswald por se meter em sua vida e empacotá-la em caixinhas que contavam com sua aprovação. Ela o abominava, ela o desprezava. Agora sabia que precisava escapar das garras dele a qualquer custo. E era o que faria: só precisava de um tempo.


41 O castelo de Huntsford estava espetacular; era uma luz forte que brilhava em contraste com o céu negro de inverno. Tochas acesas ladeavam a entrada, as janelas compridas da casa brilhavam como lanternas feitas de abóboras no Dia das Bruxas e velinhas flutuavam no fosso como uma gola angelical. Eram oito da noite da véspera de Natal. Os convidados ainda estavam chegando, alguns traziam presentes embrulhados em pacotes extravagantes, outros só vinham com seu ar de privilégio e sofisticação. Apesar de sempre acontecer na véspera de Natal, todo mundo sempre se dava ao trabalho de ir ao Baile de Huntsford de lorde Balcon. Ex-ministros de gabinete, banqueiros, habitantes da propriedade, socialites, artistas, até um pequeno número de pessoas do entorno de ópera de Maria: todo mundo que recebia um convite se esforçava para comparecer, por pior que tivesse sido o comportamento de Oswald durante o restante do ano. E todos eram recompensados com um espetáculo no momento em que entravam pela porta. O fogo estalava no Grande Salão, o jazz enchia o ar que cheirava a especiarias e a pinheiro, a escada estava tão lustrosa que brilhava como o pêlo de um cavalo bem cuidado, os mosquetes pendurados nas paredes com painéis de nogueira reluziam. Huntsford estava em exibição... e nunca estivera tão bonito. No andar de cima, em seu antigo quarto, Venetia não estava com espírito para a festa. O som das risadas, da música e da conversa subia pela escada, mas não era nem de longe suficiente para fazê-la entrar no clima. Desde que voltara de Nova York, tinha se corroído de raiva, sentimento que se agravava ainda mais porque ela não sabia o que fazer em relação a isso. A atitude mais fácil seria cortar Oswald de sua vida completamente. Não aparecer no baile. Não aparecer correndo cada vez que ele pegava o telefone. Não fingir que a crueldade dele era um comportamento aceitável. Mas as coisas não eram tão simples assim, não é mesmo? Agora ele fazia parte da empresa dela, e não havia como simplesmente bloquear sua existência. Algum tipo de confronto era necessário, inevitável. Então ela compareceu ao baile sem nenhum plano de ação específico a respeito do que faria ou diria, só com a determinação de que precisava fazer alguma coisa. Seus olhos se deslocaram para uma pilha de presentes que espiava para fora de sua bolsa de couro Mulberry em cima da cama. Presentes para Cate, Serena, Camilla, o senhor e a senhora Collins. Mas nada para Oswald. Era uma pequena marca de sua provocação, mas já era um passo adiante. Nunca tinha brigado com o pai, mas a perspectiva do confronto a enchia de uma noção de poder estranhamente perversa. Olhando para si mesma no espelho comprido da penteadeira, resolveu trocar de roupa no último minuto: substituiu o vestido elegante de organza cor de creme por um visual muito mais forte. Tirou o modelo esvoaçante e se apertou dentro de um vestido de noite justo da Prada, em tom cinza-ardósia, arrematando com os sapatos de bico fino mais altos que tinha. O cabelo estava preso para cima em um coque, uma pulseira de diamantes balançava cheia de confiança em seu pulso. Ela se sentia protegida por uma armadura, forte, sob controle. Soltou a respiração devagar, olhando para seu reflexo. Durante um instante, meio que ficou esperando enxergar Jonathon atrás de si, sentado na cama, ajustando os punhos da camisa ou calçando um sapato pesado com a ajuda de uma calçadeira. Fechou os olhos e ficou escutando a própria respiração durante um instante, então apagou a luz e foi se juntar à festa.


- Ah, aqui está você - disse Cate, aparecendo no patamar da escada diante do quarto de Venetia. - Eu vim aqui para buscá-la. A festa está começando a encher, e papai queria saber onde nós todas estávamos. Um olhar de leve acanhamento passou pelo rosto de Cate. - E tem mais uma coisa - disse ela, cheia de hesitação. - O que foi? - perguntou Venetia, dirigindo-se para o topo da escada. Cate demorou um pouco para responder. - Espero que não vá ficar brava comigo, mas... - ela fez uma pausa cheia de culpa - eu convidei Jack Kidman. Cate viu o rosto da irmã se iluminar à menção do nome de Jack, mas sua expressão de repente ficou raivosa e alvoroçada. - Você fez o quê? Venetia sentiu o coração disparar. Não tinha visto Jack desde a morte de Jonathon. Por mais que tivesse tido vontade de se encontrar com ele nos três últimos meses, de ficar aninhada em seus braços, de ser reconfortada e incentivada por ele, não conseguia juntar forças para entrar em contato, sempre lembrand a si mesma da promessa que fizera ao ver o corpo queimado e sem vida de Jonathon no necrotério. Jonathon podia não ter sido o amor de sua vida, mas ela tinha ficado de luto, mesmo assim, e sabia que não conseguiria suportar a culpa de dar continuidade ao caso com Jack em combinação com os sentimentos de perda e solidão. Ela tinha perdido Luke, Jonathon, a chance de ter um filho, e depois perdera Jack também. De uma vez só, o ano todo passou diante de seus olhos, desdobrandose como uma apresentação de slides macabra. Havia um tema dominante: tudo estava ligado a perda. Ela não queria ver Jack e se lembrar disso. - Como você pôde fazer isso? - perguntou Venetia, quase engasgando com as próprias palavras. As duas mulheres se retiraram para as sombras da ala oeste para que ninguém as visse e para que as vozes exaltadas não fossem ouvidas pelos convidados. Cate deu de ombros, como se pedisse desculpas. - Sinto muito, mas... - Na verdade, Cate não estava nem um pouco arrependida. Ela sabia que a irmã precisava de alguma coisa para acabar com aquela culpa que lentamente a esmagava. Pegou-a pelos ombros e olhou bem nos olhos dela. - Van, será que você pode parar de dar uma de mártir e falar com ele? Você precisa dele. - Não preciso de ninguém, Cate. E com toda a certeza não preciso da sua interferência. - Só fale com ele. Venetia virou para o outro lado, sacudindo a cabeça, já percebendo que estava animada com a perspectiva de Jack Kidman estar logo ali ao lado. - Então, onde ele está? - disse ela, em tom gélido. - Está lá fora. Acho que só vai entrar se você o convidar pessoalmente. Vá, ande logo. Venetia assentiu com a cabeça de maneira tão sutil que aquilo mal podia ser chamado de movimento. Desceu a escadaria, segurando o corrimão lustroso com a mão delicada com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos. Ainda tinha gente entrando pelas amplas portas duplas, entregando convites para os seguranças vestidos a rigor e aceitando uma taça de champanhe de um dos vários garçons vestidos com casacas brancas. Enquanto atravessava a multidão, pessoas chamavam seu nome para cumprimentá-la, algumas a beijavam na bochecha, outras ofereciam condolências constrangidas. O ar frio da noite bateu em sua pele quando ela olhou para a escuridão; a fileira de tochas acesas se estendia por toda a entrada, até se transformar em pontos alaranjados indistintos. Os saltos dos sapatos de cetim azul-pavão iam afundando no cascalho: ela perdeu o equilíbrio e torceu a


canela de leve. Cambaleou mais um pouco nas pedras soltas, segurando a taça de champanhe longe do corpo, e olhou ao redor. Flanqueando ambos os lados da casa, havia longas fileiras de carros caros que tinham levado os convidados até lá. Rolls-Royces, Bentleys, BMWs, Range Rovers. Mais perto da casa, viu um perfil conhecido, apoiado no pára-choque do Rolls-Royce 1922 de Oswald: o rosto do homem estava iluminado pelo brilho da chama de uma das tochas. O coração dela deu uma cambalhota dentro do peito quando percebeu que era Jack. Ele usava uma casaca preta feita sob medida e seu cabelo estava um pouco mais curto. O queixo estava abaixado, mas os olhos estavam voltados para cima, sensuais e brilhando à luz da chama. Ela tomou um gole rápido de champanhe para se firmar. Tinha ido até lá naquela noite para ser forte, não fraca. Jack Kidman representava fraqueza. - Feliz Natal, Van - disse ele baixinho, e sua voz quase se perdeu no zunzunzum da conversa de fundo. Ela permaneceu imóvel, tentando encará-lo com frieza. - Eu quase não vim prosseguiu ele. - Eu também - disse Venetia. Silêncio. Dava para ouvir o crepitar da tocha ao lado de Jack. - O que você está fazendo aqui, Jack? - perguntou Venetia finalmente. - Cate me convidou. - Não, de verdade. O que você está fazendo aqui? Ele deu uma risada suave para si mesmo. - Este realmente não é o meu estilo habitual - disse ele, tentando deixar o clima entre os dois mais leve. - Quando me dizem para ficar longe, eu geralmente entendo o recado. - Bom, então por que não ficou? - disse ela, sem rodeios. Qual era o problema dela? Estava com saudade dele. Podia ter dito para ele não entrar mais em contato com ela, mas uma parte de si vivia desesperada para que ele aparecesse à sua porta. - Às vezes, eu não consigo me segurar - disse ele em tom grave. Ela olhou para a expressão dele. Era sincera, cheia de esperança. - Passei os três últimos meses tentando descobrir por que tudo terminou assim entre nós completou ele. Ela precisa ser forte. Mas seu aristocrático nariz empinado não se sentia muito empinado naquele momento. Ela mordeu o lábio com tanta força que sentiu o sangue escorrer da pele. - O que não ficou claro, Jack? - perguntou Venetia, endireitando as costas. - Nós estávamos tendo um caso, eu traí meu marido. Agora ele morreu. Talvez você não consiga entender como esse fato mudou as coisas, mas está na cara. - Van, por que você faz isto consigo mesma? - perguntou Jack de repente, olhando-a diretamente nos olhos. - Você está arrasada, você se sente culpada, tudo bem, isso eu entendo. Mas será que não pode se permitir ser feliz? - Não venha aqui me julgar - explodiu ela, agitando a mão para dar ênfase e derramando champanhe. - Ouça só o que diz! Você não é assim! - disse Jack, aprumando o corpo. - Você está se comportando como a pessoa que eu conheci em Sevilha. Brava, oprimida, sobressaltada, sem se permitir ser quem é de verdade. Você não é essa pessoa, Van. Solte-se! Bem no fundo, ela sabia que ele tinha razão, mas não podia aceitar aquilo: não agora, não depois de ter se armado para ser forte diante do pai. Afetada pelo amargor, ela não se permitiria deixar convencer a nada nem ser manipulada por qualquer homem de novo. - Permita-me dizer de novo, Jack - falou ela, com frieza. - Meu marido morreu. Isso mudou as coisas, isso mudou tudo. Eu não sou mais a mesma pessoa.


- Você nunca o amou de verdade. - A voz de Jack era grave, ousada, sem saber se tinha ultrapassado um limite inaceitável. - Eu nunca disse que não o amava - Venetia disse, com a voz trêmula e lágrimas começando a escorrer pela bochecha fria. Jack ficou em silêncio por um momento para observá-la ali parada com o champanhe sendo entornado, como uma loira de Hitchcock, frágil e magoada. Começou a se aproximar dela sem mexer os braços, em passos lentos, cautelosos, como um homem se aventurando mar adentro para resgatar um bote à deriva. Venetia não se mexeu; só ficou olhando para algum ponto desfocado, deixando as lágrimas caírem. Quando ele estava a apenas alguns centímetros de distância, as mãos dele se estenderam e a puxaram com delicadeza para perto de si. Como se estivesse flutuando, Venetia se deixou ir na direção dele. O abraço dele ficou mais apertado ao redor de seu corpo esbelto e ela deixou que o peso de sua cabeça desabasse sobre o ombro dele. Agora ela soluçava e deixava uma mancha úmida no tecido preto do paletó dele. - Eu amo você. Estou com saudade de você, quero ficar com você. Deixe para lá, deixe tudo para lá - disse ele, sussurrando no cabelo claro dela. - Desculpe - disse Venetia, erguendo a cabeça para poder olhar nos olhos dele. - Eu não quero me sentir assim, eu não quero ser assim, mas ele me fez assim. - Quem? Jonathon? - perguntou Jack. - Meu pai. Meu pai. Os olhos de Jack se apertaram de raiva. - Ele está tentando acabar com a minha empresa, quer me controlar e me manipular. Quer tirar tudo que eu desejo de mim. - Agora ela chorava mesmo, em enormes soluços ruidosos. - Conte-me o que aconteceu - disse Jack baixinho, conduzindo-a até o capô do carro. Bem aninhada no braço quente de Jack, Venetia contou-lhe o que descobrira em Nova York. Como Oswald a traíra, como pagara Luke para ficar longe dela. - Preciso descobrir por quê - disse Venetia, virando-se para olhar para ele, mais uma vez e repentinamente pronta para confrontar o pai. - Preciso perguntar para ele; preciso descobrir a verdade. - De que adianta a verdade se só vai fazer você ficar mais triste? - perguntou Jack, falando devagar. - Vamos entrar na festa, vamos nos divertir muito, e amanhã vou levá-la de volta a Londres e nós vamos ser felizes. - Mas eu preciso fazer isto - disse Venetia baixinho. - Você não precisa fazer nada - disse Jack, puxando-a mais para perto. - Além de me beijar. Apesar dos oito meses de gravidez, Serena continuava linda. No alto da escada, acima dos convidados, seu vestido escarlate esvoaçante com cintura império tinha um decote que destacava seios fartos. Um enorme anel de água-marinha no dedo médio parecia um ovo de pato que brilhava à luz amena. Até o cabelo curtinho tinha sido resolvido com alguns apliques sutis, de modo que agora emoldurava seu rosto lindamente, caindo por sobre os ombros como uma cortina brilhante de ouro. Ela respirou fundo ao descer a escadaria do Grande Salão e percebeu que era a primeira vez em cinco anos que comparecia à festa desacompanhada. Esfregou a barriga, melancólica: não, não estava sozinha. - Serena. Que bom que a encontrei. Serena respirou fundo ao ver a silhueta alta de Roman LeFey ali parado, sorrindo para a velha amiga. - Roman. Você veio - respondeu ela, iluminando o rosto com seu sorriso de megawatts.


Ela caminhou na direção dele com sensações conflitantes de alívio e acanhamento. Ela não o via desde o baile de gala do Met, quando não vestira o modelo que ele criara especialmente para ela, e a amizade dos dois se deteriorara por conta disso. Na época, ela desprezara o assunto. Roman não passava de uma bicha tendo um chilique, lembrava-se de ter dito a Michael. Mas quando recebera a ponsétia escarlate dele, aquilo foi mais um lembrete de como ela permitira que a mesquinharia se interpusesse entre ela e as coisas que realmente importavam. Cate tinha toda a razão quando lhe dissera naquela tarde em The Boltons que nunca era tarde demais para remediar as coisas. Ela retribuíra o presente de Roman com uma enorme coroa de azevinho enviada para seu ateliê na Rue Cambon, junto com um convite para o Baile de Natal dos Balcon. - Claro que eu vim - disse Roman, sorrindo. - Patric e eu íamos mesmo passar o Natal em Londres. E Patric estava louco para conhecer Huntsford. Roman olhou-a de alto a baixo e aprovou. - Continua sem usar os meus modelos. Durante um segundo, ela se encolheu de vergonha, até perceber que o amigo estava brincando. - Bom, eu não sabia que você fazia roupas para grávidas. Quase nada mais me serve. Estou uma baleia. - Nem de longe - disse Roman. - Para quando é? - Oficialmente, daqui a três semanas. Vai ser cesariana por opção. Sou fresca demais para fazer força, sabe como é. - Mas pode chegar a qualquer momento! - disse ele, fingindo pavor. - Vamos ter que levá-la de helicóptero até o Portland! - Não diga isto. Os dois riram e se abraçaram, a amizade recobrando a vida a cada gesto, a cada frase, a cada expressão. - Desculpa, eu fui idiota - disse Serena baixinho. Roman pegou na mão dela e sacudiu a cabeça lentamente sorrindo. - Não precisa nem dizer. No salão de baile, onde a Tempest Jazz Band estava no meio de um poi-poum de Cole Porter, Cate Balcon flutuava contente pela pista de dança, alheia ao fato de que parecia ter luz interior. O vestido Chloé rosa-claro deslizava por cima de suas curvas e o pescoço comprido se destacava na gola redonda. O cabelo estava preso para trás com mechas soltas em volta do rosto, os lábios pintados com um gloss vermelho e um sorriso tão largo quanto o rio Tâmisa. Ela se deleitava por estar nos braços de Nick Douglas, que agira de maneira sedutora e adorável a noite toda. Era a primeira vez que Cate levava alguém a um dos bailes do pai. Cate estar solteira no Natal era sua própria piada interna pessoal que se repetia, pensou enquanto se lembrava do número de vezes que tinha levado o pé na bunda em dezembro. Sua mente retrocedeu às conversas maçantes que tivera naquela provação anual, discutindo o déficit do mercado com homens ou escutando fofocas de sociedade com as mulheres, quando, na verdade, estava se matando de solidão e tomando a decisão de ter alguém ao seu lado para a próxima véspera de Natal. Não era para menos que o Baile de Huntsford sempre lhe parecera uma obrigação sofrida. Mas aquela noite era diferente. Pela primeira vez, não sentia ciúme do fato de Nick estar atraindo tanta atenção: simplesmente se sentia orgulhosa por todos o verem com ela. Lá no


fundinho, ela tinha a expectativa cautelosa de que algo poderia acontecer entre eles naquela noite. Eram amigos, sim, e amizade era uma coisa maravilhosa, mas era certo que nem toda amizade era daquele jeito, refletia de vez em quando. Eles não se beijavam, não faziam amor, não acordavam um nos braços do outro, mas, nas últimas semanas, andavam muito próximos, muito íntimos, como se a amizade tivesse crescido tanto que estivesse transbordando. Mas no que se transformara? Ela ergueu os olhos para ele, que a segurava nos braços, tentando acompanhar a levada rápida da música. Aquilo era amor, pensou ela de repente, a ideia se acendendo em sua mente como uma lâmpada. Longe do trabalho árduo, da preocupação e do estresse de tocar uma empresa, longe de tudo aquilo, envolvida por uma bolha de alegria na pista de dança, agora ela podia admitir o fato para si mesma. Ela o amava. A música terminou. Nick pegou dois copos de um garçom que passava e os dois se jogaram em uma chaise longue em um dos lados do salão. - Ainda não vi Venetia e Jack entrarem - disse Nick, olhando através das portas do salão de baile para o corredor, que estava lotado de gente. - Humm, espero não ter dado uma mancada - disse Cate, parecendo preocupada e tirando uma mecha de cabelo da bochecha. - Ah, você só está espalhando um pouco do amor do Natal - riu Nick. - Não se preocupe, você fez a coisa certa, com toda a certeza. - Ele pegou um tomate seco de cima de uma bruschetta e colocou na boca. - Não sei por que você estava achando tão ruim vir aqui. A festa está ótima... e eu achando que o seu velho estava duro. - Eu também achava - resmungou Cate. No entanto, precisava reconhecer que a festa daquela noite estava maior e melhor do que nunca, e que isso não estava relacionado apenas ao seu bom humor. Pegou uma folhinha espinhuda de azevinho, parte de uma coroa que decorava uma mesinha, e pinicou Nick de brincadeira. - Mas, bem - disse ela, observando enquanto ele bebia Diet Coke e ela virava sua taça de Krug -, eu queria saber por que você não está bebendo. - Vou ter que dirigir - respondeu Nick, surpreso. - Achei que você sabia disso. Cate estava se sentindo um pouco corajosa naquela noite. - Mas eu falei que você podia ficar aqui - disse ela, sentindo as bochechas corarem levemente, na esperança de que o blush cor de pêssego servisse para disfarçar. - Ninguém vem ao Baile de Natal de Huntsford e fica sem beber. - Então, o que toda essa gente vai fazer? - perguntou Nick, olhando para o salão. - Amanhã é Natal. Todo mundo vai querer voltar para Londres ou para onde for depois da festa, não vai? - Querido - disse Cate com a voz mais melosa possível -, é muito simples: todo mundo aqui tem motorista. - Ah, claro que sim! - disse Nick sorrindo. - E aí, o que você vai fazer? - pressionou Cate. - Temos 17 quartos aqui. Tenho certeza de que cabe mais um. Merda, será que ela parecera atirada demais? Estava cansada de tratar mal os homens, de ficar esperando ser seduzida quando ela podia tomar uma atitude. De repente, lembrou da noite deles em Milão e se encolheu. - Tem certeza? - perguntou Nick. Cate soltou um suspiro de alívio. Ainda não tinha sido rejeitada. - Quer dizer, o seu pai não ficaria furioso de me encontrar aqui na manhã de Natal?


- Ah, é, eu esqueci - disse Cate de bom humor. - Ele provavelmente o esfolaria vivo com a faca de fatiar peru. - Bom, neste caso, eu fico, desde que possa fugir rapidinho de manhã. Cate sentiu uma pontadinha de esperança no coração. - Maravilha! Bom, é melhor eu ir pegar duas taças de champanhe para comemorarmos. - Você não tem a menor noção, não é mesmo? - repreendeu Oswald, agitando o dedo para o chefe dos garçons, que tremia visivelmente. - Neste ritmo, vamos ficar sem champanhe às dez da noite. Já deve ter notado que os meus convidados bebem sem parar; portanto, você precisa demonstrar um pouco de iniciativa. Oswald olhou para o homem de meia-idade e cabelo escuro ali parado todo sem jeito no meio da cozinha, suando dentro da casaca preta, e apontou para as vinte caixas brancas arrumadas no fundo do aposento em que se lia "Cava". - Quero que você encha as garrafas vazias de Moét com aquela coisa ali. Todo mundo vai estar bêbado demais para reparar, de todo modo. Coloque também nas taças das bandejas. Ande logo, homem, o que está esperando? - berrou. Todos os garçons olharam nervosos para Oswald e aceleraram o ritmo de trabalho em cinquenta por cento. Oswald virou-se para sair da cozinha, ajeitando o coletinho branco de seda e permitindo-se um sorrisinho de satisfação. Que noite, que festa, pensou com seus botões. Que presenças! Dois juízes do Tribunal Superior, 12 integrantes da Câmara dos Lordes, um punhado de compradores americanos importantes do mundo das artes; esperava que Mark Robertson os estivesse seduzindo de maneira satisfatória. Sem dúvida, precisaria intervir em algum ponto: não podia confiar em ninguém para fazer as coisas do jeito certo, muito menos em Robertson. Ainda assim, aquela era uma noite e tanto. Quando saiu ao corredor, esbarrou em Venetia, que vinha na outra direção. Venetia entrou em pânico. Tinha se esforçado muito para evitar o pai a noite toda. Principalmente depois que voltara para a festa com Jack. Só tinha se aventurado até a cozinha para ver se encontrava a senhora Collins, a fim de dizer-lhe que tinha presentes para ela e para o senhor Collins. E agora, lá estava ele, cara a cara com ela. - Veio ajudar os empregados? - perguntou Oswald, sarcástico. - Não - respondeu Venetia com frieza, tentando se afastar dele. Tinha deixado Jack no salão de baile, conversando com Cate, Nick e Camilla, e desejou que ele estivesse ao seu lado para fortalecer sua determinação. - Então, quem é o seu amiguinho? - perguntou o pai em tom jocoso. - Não demorou muito, não é mesmo? - Como assim, "não demorou muito"? - Bom, Jonathon ainda nem esfriou na cova, não é mesmo? - disse Oswald com dureza. - E você claramente já fez a fila andar. O que é desta vez? Escritor? Garçom? Vagabundo? Venetia sentiu algo arrebentar dentro de si, como um elástico esticado demais. - Por quê? - perguntou Venetia, respirando fundo. - Você também vai tentar pagá-lo para se afastar? Uma nuvem passou pelo rosto de Oswald. - Pagar? Por quê? Ele é garoto de programa? Isso também não me surpreenderia. - Na verdade, eu estava me referindo a Luke Bainbridge - disse Venetia, tentando parecer o mais composta possível. - Do que você está falando? - perguntou Oswald em tom arrogante. - Você sabe exatamente do que eu estou falando - sibilou Venetia. - Encontrei Luke em Nova York e ele me contou tudo.


Durante um segundo, Oswald de fato pareceu atordoado. - Eu sei de tudo, papai - sibilou ela, esforçando-se para ser forte e decidida. - Eu sei que você pagou para que ele ficasse longe de mim. Eu sei que você, ou alguém que você contratou, entrou no apartamento dele e destruiu tudo, que você mentiu para Luke e disse que ele não estava à minha altura. Oswald agarrou-a pelo braço, mas depois largou com desdém, como se tivesse mudado de idéia repentinamente. - E você prefere acreditar nele? - caçoou. - A sua estupidez e a sua ingenuidade às vezes me surpreendem. - Não sou assim tão estúpida, porque não vou permitir que me manipule mais uma vez, papai. - Ela praticamente cuspiu as palavras. - Você é ridículo. Quer controlar todo mundo só para se sentir superior. Dava para ver que Oswald não sabia qual emoção sentir primeiro: raiva ou choque. Era a primeira vez na vida que Venetia levantava a voz para ele; retrucar daquela maneira então, nem pensar. - O que eu fiz para merecer você? - disse Oswald, sacudindo a cabeça, as mãos na cintura. Você realmente é uma ingrata, não é mesmo? Sempre tirando sem me dar nada. Tudo bem, tem razão. Eu me livrei de Bainbridge. Porque tinha conhecido Jonathon e achei que ele era muito mais adequado para você. Venetia começou a espumar de raiva. Sim, ela tinha sido apresentada ao marido pelo pai, mas não tinha, nem por um segundo, imaginado que a coisa fora tão calculada. - Você nunca teria se tornado nada se eu não a tivesse ajudado - prosseguiu Oswald, desdenhoso. - Eu a apresento a um homem decente e por isso eu sou o quê? Um ogro? - Não, um cafetão - respondeu Venetia, os dentes cerrados. Ele lançou um olhar condescendente para ela. - Como é fazer sempre a escolha errada, Venetia? Por que nunca consegue fazer nada certo? Você realmente teve uma oportunidade com Jonathon, mas a desperdiçou, não foi? Será que alguém realmente ficou surpreso por ele ter precisado ir para a cama com homens para trazer um pouco de animação à vida? Ela sentiu seu corpo tremer de raiva. Por instinto, jogou o braço para trás, e a taça de champanhe em sua mão virou, derramando o líquido no tapete persa atrás de si. - O que está acontecendo? - Jack apareceu atrás de Venetia e segurou o braço dela bem a tempo. - Está tudo bem, Van? - perguntou ele, abaixando a mão dela com delicadeza. Ficou olhando para Oswald com frieza. - Por que não dá um tempo para a sua filha? - disse, em tom severo. - Ah, acalme-se, rapaz. - Oswald deu risada e olhou para trás, percebendo que muitas cabeças apareceram à porta para ver o que era toda aquela confusão. - Não na frente dos criados. - Bom - disse Jack, inflando bem o corpo. - Isso significa que gostaria de ir lá fora resolver a questão? - Fez um gesto na direção da porta de estábulo no fundo da cozinha. Oswald deu uma gargalhada e lançou-lhe um olhar condescendente. - Duvido que um duelo esteja a sua altura, não é mesmo, rapaz? Além do mais, eu não trouxe o meu florete. A taça de Venetia fez um ruído ao cair no chão; ela a largou como se estivesse exausta demais para continuar a segurá-la. - Está orgulhoso de si? - rosnou Jack, olhando para Oswald. - Está orgulhoso por ter deixado sua filha assim?


- O quê? Como vou ter orgulho de uma filha que acabou de tentar atacar o próprio pai? Estou muito orgulhoso - zombou. - Ela é sua própria pior inimiga, a Venetia. Vai descobrir isso bem rapidinho - completou Oswald, dando uma risada soturna. - Não preciso de você para me dizer nada a respeito dela - disse Jack. - Não, imagino que tenha razão, rapaz - disse Oswald, ajeitando o paletó. - Imagino que já tenha visto tudo. Agora foi a vez de Venetia se interpor entre Jack e Oswald. Ela pegou a mão dele, antes que se fechasse em um punho. - Jack, não faça isto. Não vale a pena. - Como ousa me desrespeitar em minha própria casa? - disse Oswald com frieza, alisando a casaca. - Não sei quem você é nem de onde veio, mas sei para onde quero que vá: para longe daqui - disse, apontando a porta da cozinha. - Ande logo, saia. Jack ficou olhando com frieza para ele e começou a puxar Venetia com delicadeza. - Venha, vamos embora - disse. Mas Venetia simplesmente apertou a mão dele, então se virou para o outro lado e saiu correndo. Correu pelo corredor, para longe dos dois. Virou-se, olhou para Oswald com ódio e então correu escada acima, para seu quarto. - Senhorita Balcon. Posso falar-lhe um instante? Serena olhou na direção da voz e viu um dos seguranças da porta fazendo um sinal. - Tem alguém aqui que quer entrar sem convite - sussurrou o homem. - Não posso permitir se a senhorita não autorizar. - Quem é? - perguntou Serena, impaciente, imaginando se Elmore tinha resolvido comparecer, no final das contas. - Diz que se chama Michael Sarkis. Se estivesse de salto alto, Serena tinha certeza de que teria caído. - Tem certeza? - Ela sentiu toda uma gama de emoções: apreensão, animação, ultraje. Como ele tinha coragem de ir a Huntsford? Naquela noite, além do mais? Por outro lado, pensou, sentindo um calafrio na espinha, o que ele ia querer com ela na véspera de Natal? Parte dela desejava deixá-lo no frio durante pelo menos uma hora - a noite toda, de preferência. Mas sua curiosidade era grande demais. Não o via desde o verão. Tinham se falado por telefone uma ou outra vez, mas tinham se comunicado principalmente por meio de advogados, tentando chegar a um acordo razoável quanto à pensão do bebê. Finalmente haviam se aproximado de um valor que Serena considerava quase generoso, mas ela queria arrancar cada centavo que pudesse dele. Nos últimos meses, Michael Sarkis se tomara uma pessoa maligna em sua mente, a razão de todos os seus fracassos e problemas: o rompimento com Tom, a carreira destruída. Ela o culparia por dar uma topada com o dedão do pé, se tivesse algum pretexto. - Pode deixar entrar - disse Serena. - Diga-lhe que vá para o escritório. Ela queria mantê-lo fora da vista do pai, que teria um ataque se o visse ali. Apesar de Oswald ter ficado bem furioso por Serena ter sido "idiota a ponto de se deixar engravidar", a principal válvula de escape de sua frustração era Sarkis. Ele nunca tinha conseguido atacar o sucesso do homem - Serena tinha certeza de que a riqueza imensa de Michael enojava Oswald tanto quanto a gravidez -, mas dissera tudo o que pudera a seu respeito: gentalha, alpinista social, ladrão, putanheiro.


Serena acomodou-se no escritório, fingindo estudar um livro pesado, e esperou que ele chegasse, desesperada para se lembrar de todas as frases desdenhosas que passara os últimos meses compondo. A batida à porta pareceu temerosa. Por ter tido apenas alguns minutos para se preparar para o encontro com ele, ficou estupefata de ver como sua compostura gelada desapareceu quando o viu à porta. Caramba, ele estava bonito, pensou, absorvendo a maneira como o smoking azul escuro Armani lhe caía sobre os ombros fortes. O cabelo dele estava mais curto, cinza-chumbo nas laterais, mas o visual lhe caía bem. Estava bronzeado, de modo a sugerir que estivera em outros lugares além de Nova York. Comparado à horda de convidados esnobes e elegantemente ingleses de Oswald, Sarkis era uma dose cosmopolita de sex appeal. Ela o encarou com olhar gélido. - Olá, Serena. - Michael - cumprimentou-o com a cabeça. Ele se sentou em um sofá de couro na frente dela e ficou brincando com uma pulseira de prata que trazia no pulso. Fez-se um silêncio quando o olhar dos dois se cruzou; a eletricidade ricocheteava o teto. - Eu estava em Londres - disse ele finalmente. - Não, não estava - respondeu ela, seca. - O que quer aqui? - Como você está? - Nada de rodeios, Michael. Por que está aqui? - Serena, vamos lá. Vamos pelo menos nos tratar com civilidade. Ela ficou olhando para ele em silêncio. - Quer uma bebida? - disse finalmente, tirando a tampa de cristal do decantador de conhaque. Ele assentiu com a cabeça. - Jim Berger disse que você recusou a minha última oferta de dinheiro para o bebê. Serena era capaz de sentir os olhos dele a examinando cheios de gula, focando-se no decote acentuado. - Sinceramente, foi um insulto - respondeu, azeda. - Insulto? - disse Michael, franzindo o cenho. - Eu achei que seria suficiente para ter uma vida de luxo. Até para você. - Depende de qual é a sua ideia de luxo, Michael - respondeu Serena, aborrecida consigo mesma por se sentir atraída por ele. - Seja como for. Não acho que seja necessário... O dinheiro, quero dizer - disse lentamente. Aquilo a pegou de surpresa. - Como assim? - perguntou, cheia de cautela. - Quer dizer, eu fui um tolo. - Acho que se pode dizer que sim... Michael se sentou e deixou as mãos penderem no meio das pernas. - Fui um tolo por deixar tudo isso sair do controle, Serena. Depois do que aconteceu em Cannes, eu deveria ter me esforçado mais para impedir que o nosso relacionamento desmoronasse. Ela respirou fundo, despreparada. - Mas não se esforçou. Pediu um teste de paternidade. Como achou que eu me sentiria? Lisonjeada? - Você não atendia aos meus telefonemas, não queria me ver... - Eu estava passada! Você foi um merda, Michael. Um merda completo.


Michael virou a bebida toda em um gole. - Como você acha que eu me senti quando fiquei sabendo do bebê pelo National Enquirer? Eu pensei, ela que se foda. - Os olhos escuros dele brilharam de arrogância, mas imediatamente se suavizaram. - Bom, sinto muito por tê-lo magoado - disse ela, cheia de sarcasmo. Estava prevendo um pedido de desculpa humilhante e estava determinada a se deleitar com ele. - Ajude-me agora, Serena. Vim aqui para pedir desculpa. Vim dizer que fui um canalha de marca maior. E que quero recompensá-la. Os olhos dela de arregalaram de maneira dramática, incrédulos. - Faz meses que você nem pega o telefone para me ligar, nós temos conversado por intermédio do seu advogado, e agora você quer "me recompensar"... ? - Minha mãe morreu há três semanas. Ela se deteve e não lançou mais hostilidades na direção dele. - Sinto muito. Ela sabia que os dois eram ligados. - Câncer de pulmão. Foi diagnosticado em setembro, morreu em dezembro. Pensei que pelo menos pôde ver o filho vencer na vida. Pelo menos ela pôde se orgulhar de mim. E sabe o que ela me disse? Serena sacudiu a cabeça. - Ela me disse para entrar nos trilhos. Dar um jeito na vida. Eu não acreditei. - Deixou o queixo cair sobre o peito, cheio de tristeza. - Ela disse: "Onde está a sua base?" - prosseguiu ele, a voz falhando - "Onde está a sua âncora? O que faz você voltar para casa?" Serena sentiu vontade de responder que eram as putas dele, mas mordeu a língua bem a tempo. - Michael, para onde isto vai? Ela não sabia muito bem o que pensar: se ele merecia a solidariedade dela ou se aquilo era só mais uma encenação brilhante para conquistá-la. - Eu posso ter uma família - disse ele, com suavidade. - Está bem aqui. Este é o nosso filho - disse, levantando-se para se aproximar dela, apontando para sua barriga. Serena deu um passo para longe dele. - Não, Michael, este filho não é nosso. Você abriu mão deste direito quando trepou com aquelas putas e depois me cortou da sua vida. - Por favor, Serena. Eu sei o que eu fiz. Eu sei que foi errado. A morte da minha mãe me mostrou isso. Eu só quero voltar a fazer parte da sua vida. Da vida do nosso filho. Dê uma chance para mim. - O que deseja que eu diga? - perguntou ela baixinho. - Diga que vai ser minha mulher. Ele enfiou a mão no bolso e tirou uma caixinha de anel, abriu a tampa e revelou um diamante enorme em corte esmeralda - tem pelo menos dez quilates, pensou Serena, apreciativa -, ladeado por duas pedras menores. Ela esticou o dedo para tocar a jóia. Estava louca para colocá-lo na mão e vê-lo dançar e brilhar sob a luz suave do escritório. Ela ficou vidrada. Não era só a jóia, ela já tinha usado muitas peças lindas antes: era tudo que vinha atrelado a ela. Ele estava lhe oferecendo sua antiga vida de volta: aviões particulares, casas lindas, bilhões no banco, um legado para o filho. Havia tantas razões para agarrar a oferta dele com unhas e dentes -, e tantas outras para fugir correndo e berrando dela. Ela olhava para ele e suas entranhas ardiam pensando no sexo maravilhoso que já tinham feito. Então,


uma ideia desagradável lhe passou pela cabeça. Será que era só aquilo mesmo? Sexo e dinheiro? Por acaso isso não fazia com que ela fosse quase a mesma coisa que aquelas mulheres em Cannes? Nem quis refletir sobre o assunto. - Preciso pensar, Michael. Posso dizer que você me pegou meio de surpresa. - Claro que sim. Mas, por favor, pense a respeito do assunto. Ela assentiu lentamente. - Preciso voltar para a festa. Michael Sarkis não estava acostumado a desistir assim com tanta facilidade. - Meu avião está na pista de pouso de Famborough. Podemos ir para o meu hotel em Vegas. Podemos casar no ano-novo. Posso mandar levar suas irmãs. Seu pai... - Michael. Calma. - Posso falar com você amanhã? - Michael, por favor. - Quando? - implorou ele. - Eu ligo para você quando estiver preparada. Oswald saiu para tomar um pouco de ar fresco, sentindo-se um pouco enfastiado da mistura de conhaque, champanhe e atenção que lhe fora dispensada pelos convidados agradecidos de sua festa. Tragou seu Cohiba e exalou um anel de fumaça cinzenta no ar frio da noite, feliz por ter alguns minutos para recobrar as energias. - Eu vi aquela ceninha na cozinha mais cedo. Uma voz veio de uma sombra e um rosto se iluminou com o brilho de um cigarro. - Declan O'Connor - disse Oswald, reconhecendo o irmão de seu jóquei. - Não me lembro de tê-lo convidado. - Vim com Finbar. É claro que você convidou o jóquei campeão de Fierce Temper, não é? - Parece que sim - respondeu Oswald, aborrecido por ter sido pego desprevenido por aquele homem desprezível. - Mas você poderia pelo menos ter se esforçado um pouco prosseguiu, olhando para o paletó de linho puído e o jeans preto de Declan. - Isto aqui é um baile, não uma festa caipira. Mas, bem, do que está falando? Que ceninha na cozinha? - Você é tão grosso com seus funcionários, que trabalham com tanto afinco. - Declan tragou o cigarro que protegia com a mão em concha. - Oswald Balcon realmente deveria aprender algumas boas maneiras. A raiva apertou a garganta de Oswald quando ele se lembrou da ameaça de morte que recebera na noite da corrida de Newmarket. - Foi você - vociferou ele, reconhecendo com muita clareza a voz da pessoa misteriosa ao telefone. - Seu merdinha, você me ligou e me ameaçou. Declan jogou o cigarro fumado pela metade no chão e começou a rir. - Não seja tão sensível - desdenhou. - Foi só um pouquinho de diversão e brincadeira. Você não devia ter incomodado Finbar naquela tarde, não é mesmo? Deixei você preocupado, foi? Oswald não acreditava na petulârrcia daquele homem, que não parecia ter mais de 25 anos. - Além de eu poder mandar prendê-lo, também poderia arruiná-lo - disse ele, em tom altivo, tentando retomar o controle da situação. - Não faça assim, Oswald - sorriu Declan, sem nenhuma sinceridade. - Você sabe que eu e você temos muita coisa em comum... - De jeito nenhum.


- Você se surpreenderia. Sabe, não costumo frequentar festas. Não é a minha cena. Mas queria falar com você sobre uma ideiazinha de negócio que tive. - Não estou interessado, O'Connor - disse Oswald, virando-se para retomar à casa. - Uma maneira para que nós dois pudéssemos ganhar um pouquinho de dinheiro. Como havia convidados que começavam a circular perto deles, Declan baixou a voz para contar seu plano a Oswald. O homem mais velho soltou uma risada cheia de superioridade quando ele terminou. - Saia da minha frente, O'Connor - disse Oswald. - Eu não sujaria minhas mãos com nenhuma das suas tramoiazinhas sórdidas... não que você tenha uma chance no inferno com isto aí. Ele jogou o charuto no chão e apagou-o deliberadamente com o salto do sapato. - E, de todo modo, quando se trata de ganhar dinheiro, tenho vários planos meus. - Tudo bem com você? Camilla havia flutuado através das portas duplas do escritório parecendo Helena de Tróia. Seu cabelo estava preso por duas fivelas art déco; o vestido, comprido e esvoaçante em lilás-clarinho, parecia deslizar por cima de seu corpo com tanta suavidade que o tecido mal parecia encostar na pele. Seus olhos cor de turquesa, no entanto, estreitaram-se instantaneamente ao ver Serena sentada em uma cadeira, olhando pela janela para a escuridão. - Serena? - Michael Sarkis acaba de me fazer uma visita. - O quê? Na festa? - perguntou Camilla, incrédula. - Bom, espero que você o tenha expulsado. - Ele me pediu em casamento - disse ela devagar, sem tirar os olhos da janela. Camilla quase cuspiu toda a bebida. - Caramba. Mas foi meio do nada, hein? O que você disse? - perguntou, cheia de cautela. - Não disse nada. Não sei muito bem por que ele acha que pode simplesmente aparecer depois de meses sendo o maior canalha e achar que eu vou pular de alegria com um pedido de casamento. Depois do jeito como ele me tratou... Camilla olhou para a irmã, examinando seu rosto. Ao longo dos últimos meses, Serena tinha mudado; tinha ficado mais meiga, mais suave: todo mundo percebera. Mas ela continuava sendo a mesma mulher, e uma parte da irmã se sentiria atraída pelo ímã poderoso da riqueza e do poder dele. O pedido de casamento de Sarkis ainda seria algo atraente para ela, então Camilla sabia que precisava ser cuidadosa. Todo mundo tinha ficado feliz de ver Sarkis pelas costas - homens como ele sabiam ser egoístas e prejudiciais -, mas ela conhecia Serena. Quanto mais se falava mal dos namorados dela, mais atraída ela se sentia por eles. - Então, você não está considerando a ideia com seriedade? O rosto de Serena brilhou enigmático. - Mas você tinha que ver o anel. - Seu pai já deu alguma indicação de quando vai ser o casamento do ano? - perguntou Jennifer. Jennifer Watchorn se esgueirara para perto de Camilla e Serena assim que as duas voltaram para o salão de baile. Fez um gesto na direção de Maria Dante, que desfilava com ar de proprietária pela festa.


- Não sei bem se isso é da nossa conta - respondeu Serena, com vontade de acrescentar que, para ela, não fazia a menor diferença. Mas fazia diferença sim. Fazia muita diferença. Tinha ficado surpresa ao saber que o casal de pombinhos estava pensando em se casar tão cedo quanto em fevereiro. Realmente não conseguia ver para que tanta pressa, e aquilo a apavorava mais do que ela estava pronta para admitir. Será que não tinha nada a ver com filhos? - Então, como estão as duas adoráveis irmãs Balcon? - disse Philip Watchorn, de bom humor, aproveitando a oportunidade para dar beijos nas bochechas das moças. - Não tive muita oportunidade de conversar com você na caçada do fim de semana passado, Camilla, mas estamos todos animadíssimos com a sua escolha para Esher. Philip era um doador bem conhecido para os fundos do Partido Conservador e transitava pela beirada da política ele mesmo, usando seus contatos importantes para ajudar a fazer seu império de negócios prosperar. Camilla já tinha ouvido o pai falar com desdém sobre as conexões de Philip com o partido, dizendo que não passavam de vaidade. - Você precisa marcar uma reunião com a minha secretária se quiser discutir a sua campanha - disse Philip, com muita gentileza. Camilla se aprumou. Seria muito bom se tivesse gente poderosa ao seu lado, especialmente com o assunto das eleições gerais pairando no ar nos próximos 18 meses. - Creio que o dinheiro fala mais alto, mocinha - disse ele, dando-lhe tapinhas nas costas. Se eu fosse você, conversaria com o seu pai o mais rápido possível para organizar um evento de arrecadação de fundos em Huntsford. Eu sei que ele perdeu a cadeira que tinha na Câmara dos Lordes - adotou uma expressão grave -, mas você precisa fazer com que o nome da família fique em evidência... E quem não ia querer vir a uma festa aqui? - Fez um gesto apontando o salão de baile e virou meio copo de uísque de um só gole. - É, na verdade, é algo sobre o que estou querendo falar com papai - respondeu Camilla. Ela não sabia por que, mas só de tocar naquele assunto, já sentia um certo enjôo no estômago. Jennifer deu uma olhada no relógio Cartier incrustado de diamantes. - Não se esqueçam dos fogos de artifício daqui a 15 minutos - disse, toda animada. - Você vai para a entrada ou para a amurada para assistir? - Não sei ainda, mas sei que vou pegar algo para me cobrir - sorriu Camilla. - A noite está fria, e o vestido é fino! Ela pediu licença e subiu a escadaria até seu quarto, onde pegou uma pashmina fina cor de creme para colocar nos ombros. Estava quase à porta quando escutou a voz inconfundível de Maria Dante bem na frente do quarto dela, no corredor. Parecia estar falando com algum de seus amigos da ópera. Algo fez com que Camilla se detivesse e não abrisse a porta que não estava totalmente fechada. Em vez disso, ficou ali na fresta, escutando por um segundo com atenção. - Claro que este lugar todo está precisando de uma reforma - disse Maria com seu sotaque italiano cantado. Camilla ouviu batidinhas na parede, como se Maria estivesse examinando o reboco em busca de pontos mofados. - Os ingleses não têm o menor estilo, nest-ce pas? - disse uma voz masculina com inclinação francesa. - Acho que a maior parte da mobília pavorosa desta casa precisa ser queimada com os fogos de artifício. - Obviamente, não posso mudar tudo imediatamente - disse Maria; sua voz agora tinha se transformado em um sussurro conspiratório, de modo que Camilla precisou chegar bem perto da porta para escutar. - Contudo, vou ter a vida toda para fazer o que bem entender


com esta casa - disse ela com uma risada baixa e séria. - E esta casa precisa começar a se pagar. Poderíamos ganhar uma fortuna alugando-a para este tipo de evento. Não que Oswald esteja disposto a escutar esta ideia no momento - ela disse, aos suspiros. - Por que não? - perguntou o francês. - Ele é tão teimoso que não pensa direito. A Noite Musical não forrou os bolsos dele, então agora não quer saber de ouvir falar em nenhum evento comercial em Huntsford. - Então, como é que você vai fazer? Ela deu risada. O som se ergueu no ar como um cacarejo. - Eu tenho meus métodos, cara. Eu tenho meus métodos. - É melhor irmos andando - disse Cate a Nick, puxando a manga do paletó dele de leve, temerosa de ser ousada demais e pegar sua mão. - Para onde vamos? - perguntou Nick, olhando ao redor de si. A festa não parecia ter terminado. - Vamos ver os fogos de artifício da meia-noite, bobo - disse Cate. - É tradição da família. O melhor lugar para assistir é da amurada do castelo. Pode ser até que você se divirta. - Na verdade, eu tenho uma tradiçãozinha familiar - disse Nick, retribuindo o sorriso dela. Não que eu vá muito à casa dos meus pais, mas é uma tradição que eu gostaria de conservar. - O que é? - Bom, nós trocamos presentes ao badalar da meia-noite na véspera de Natal. E eu estou com o seu aqui - disse ele, dando tapinhas no bolso. Cate voltou-se para ele, surpresa. Não tinha imaginado que Nick fosse do tipo de dar presentes, apesar de basear sua impressão unicamente na maneira como ele economizava os recursos da empresa, mas agora se sentia feliz por ter comprado uma lembrança para ele. Na semana anterior, fizera compras tarde da noite e, apesar de ter tido vontade de comprar algo especial que ele adoraria, como um isqueiro Dunhill bem bonito ou um terno distinto de Savile Row, ela se segurara. Dar presentes extravagantes significaria se expor, e ela não podia, de jeito nenhum, se abrir para isso, já que ele não registrara nem uma única fagulha de interesse. Em vez disso, escolhera um livro que sabia que ele apreciaria: uma biografia de David Niven com capa dura; era um de seus atores preferidos. Ela estava contente com a escolha; achava que tinha encontrado otom perfeito: um presente decente, mas não pessoal demais, que pudesse revelar seus sentimentos mais profundos em relação a ele. - Então, quer que eu vá pegar o meu presente para você? - perguntou ela, fazendo menção de subir a escadaria. - Bem, só se você for me dar alguma coisa - disse ele, em tom de piada. Cate assentiu com a cabeça e disparou escada acima para pegar o presente, ciente de que as pessoas tinham começado a se dirigir para a porta ou para a escada que levava à amurada. Pegou o presente rapidinho, que estava embrulhado em papel metalizado prateado com um laço preto grande, colocou-o embaixo do braço e voltou para Nick. - Certo. Agora podemos ir. - Para os fogos de artifício? Certo, mas vamos para algum canto mais tranquilo, só por alguns minutos - disse Nick, sacudindo a cabeça e afastando a da multidão. Mais tranquilo? Cate engoliu em seco. O que ele queria dizer com aquilo? Estranhamente, viu-se ficando ansiosa. Desejou ter feito alguns ajustes na frente do espelho quando estivera em seu quarto. Tinha certeza de que seu cabelo devia estar parecendo o de um espantalho a esta altura.


- Que tal o jardim-de-inverno? - disse Cate. - Não fica longe, e papai geralmente o fecha para a festa. Também é todo de vidro, então vamos poder ver os fogos de artifício sem pegar pneumonia. Serpentearam pelos longos corredores até chegarem aos limites do lado leste da casa. Finalmente, Cate abriu duas portas duplas com uma chave que encontrou embaixo de uma urna chinesa. Não era grande, mas tinha uma parede e o teto de vidro, que davam para a escuridão total. No verão, explicou Cate, o lugar ficava cheio de plantas e trepadeiras, mas agora parecia um pouco negligenciado. À esquerda havia algum tipo de planta tropical grande, com pontas amarelas e frondosa; do outro lado havia um laguinho, rodeado por algumas banheiras vazias. - Então... - disse Cate, ciente do nervosismo que crescia dentro dela. - Então, são 23h55 - disse Nick. - Hora do presente! - Acho que é melhor eu dar primeiro - disse Cate, tirando o pacote de sob o braço. - Espero que você ainda não tenha - começou a balbuciar. - Eu sei que você gosta dele... - Não entregue o jogo - disse Nick, que ainda puxava o papel prateado. O rosto de Nick se abriu em um sorriso genuíno quando viu o livro e ele começou a folhear as páginas. Cate ficou feliz por ter resistido ao ímpeto de escrever algum recadinho idiota na página de abertura. - Isto é fantástico, obrigado - disse ele, sorrindo e batendo na capa do livro. - E, agora, o presente de Cate - sorriu. A mão de Nick desapareceu dentro do bolso e ele tirou uma caixa de lá. Ela tinha certeza de ter visto o rosto de Nick se anuviar de ansiedade e acanhamento ao entregá-la a ela. O embrulho era surpreendentemente bonito para um presente dado por um homem, pensou Cate ao desfazer o laço, quando o presente piscou para ela por baixo do papel branco imaculado. Ela ficou lá segurando um exemplar antigo de O mágico de Oz, com a lombada um pouco rachada e trazendo na capa um lindo desenho em preto-e-branco. Era uma primeira edição. - Eu me lembrei de que você adorava. Você disse que a sua mãe costumava ler para você... Ela o deteve, sentindo-se emotiva demais. - Eu sei - disse, a voz falhando. - Estou acanhada - prosseguiu, olhando para o livro de capa dura barato que tinha comprado para ele. Ele sorriu. - Não se sinta assim. Você merece. Cate ergueu os olhos para o rosto de Nick: ele realmente estava com uma expressão que ela não reconhecia. A segurança fácil dele parecia ter se evaporado em um desconforto tímido. Ele deu um passo à frente, aproximando-se mais dela. - Cate, eu... Cate sentiu desejo de dissipar a tensão que de repente se instalara entre os dois. Começou a balbuciar desatinos, como que para desmanchá-la. Pare com isso, mulher, repreendeu a si mesma. Pare com isso. Não era o que você queria? Finalmente, ela respirou fundo e abriu um enorme sorriso para Nick. - Como teria sido este ano se nós não tivéssemos nos conhecido? - disse ela lentamente, ciente de que o corpo dele agora estava a meros centímetros do dela. - Uma chatice - respondeu Nick baixinho. De repente, não eram mais amigos trocando presentes na véspera de Natal, mas quase dois desconhecidos, sem saber muito bem o que dizer um para o outro. Lentamente, Nick levou a mão à bochecha dela. Estava tão próximo que Cate sentia o calor que se desprendia da pele dele. Ela via como os cílios dele eram compridos, seus olhos cor de avelã escura


presos aos dela, e de repente sentiu vontade de beijar suas pálpebras, seu pescoço, sua bochecha, a curva suave de seus lábios. Então a porta se abriu com um ruído, os dois se viraram e viram Serena emoldurada pela porta do jardim-de-inverno. Nick pulou para trás, sobressaltado com a interrupção, e Cate quase tropeçou nos saltos dez, na pressa de colocar uma certa distância entre os dois. - Ah, é aqui que vocês dois estão! Procurei por todo lugar! Papai quer nós todas juntas na amurada. Ah, desculpe! Cheguei em má hora? - Serena sorriu, de repente ciente do que tinha feito. - Então, a gente se vê lá em cima daqui a um minuto? Serena fechou a porta atrás de si com a mesma rapidez com que a abrira. Ficou brava consigo mesma. Estava desesperada para perguntar a Cate o que ela achava do pedido de Michael, mas também torcia para que não tivesse estragado tudo para Cate. Deteve-se, surpresa consigo mesmo. Ela queria que a irmã fosse feliz... e realmente gostava de Nick Douglas, embora ele a lembrasse Tom de uma maneira irritante. A voz de Tom tinha se amaciado com os três anos na Royal Academy of Dramatic Arts, mas o sotaque subjacente continuava o mesmo, assim como o senso de humor impetuoso, levemente bobo. Droga, Michael acabara de pedi-la em casamento, então por que ela estava pensando em Tom? Já começava a escutar o som dos fogos de artifício assobiando, urrando como um fantasma, e apressou o passo. Huntsford era um labirinto de corredores e passagens; tinha até um túnel secreto que datava da época eduardiana, para permitir que criados circulassem pela casa sem incomodar. Serena e as irmãs conheciam cada centímetro da casa, pois haviam usado as passagens com freqüência para que pudessem se esconder do pai ou circular sem despertar sua ira. Ela foi em direção à biblioteca, porque sabia que havia uma porta lá, atrás de uma estante de livros, que levava diretamente para a amurada. - Serena. Espero que esteja se dirigindo à amurada neste momento - disse Maria Dante, que apareceu no corredor à sua frente. Serena ficou aturdida ao vê-la ali. - Não está com papai? - perguntou, com um quê de acusação na voz. Ainda havia algo relacionado a Maria Dante que a incomodava. - Não somos exatamente unidos pelo quadril - disse ela, sorrindo. - Bom, eu vou por aqui. Quer me acompanhar? - disse Serena, ciente de estar fazendo um gesto benevolente. Serena esticou a mão, pegou em uma maçaneta dourada logo abaixo de uma pilha de livros e uma porta se abriu. - Uma passagem secreta - disse Maria, cheia de sarcasmo. - Mas que coisa de história de detetive! - Não é bem Agatha Christie - disse Serena, levemente irritada. - Basicamente, é apenas um corredor que liga a cozinha à porta dos quartos. Parece que o meu trisavô o instalou para fazer com que os criados não precisassem falar com o dono da casa. - Ah, vocês, seus ingleses antiquados - disse Maria, seguindo Serena pela passagem estreita. Não era exatamente uma catacumba. Serena nunca superara sua decepção infantil de ter descoberto que as passagens secretas de Huntsford não tinham nada a ver com a caverna de uma história dos Famous Five, era somente mais um corredor, apesar de ficar escondido. Ainda assim, tinha iluminação fraca e era silencioso, e a escuridão ficava ainda mais opressora pela fileira de retratos sombrios de família pendurados na parede de pedra. O


rosto pálido de diversos ancestrais Ba1con observavam Maria e Serena como bichospapões. Maria caminhava atrás de Serena, o veludo comprido de seu vestido chiando quando ela andava. - Você sabe como estou ansiosa para passar o Natal com a família, não sabe? - disse Maria. Serena não conseguia mais continuar fingindo. - É mesmo? E o que você vai fazer nesta reunião em família? Vai colocar mais drogas na minha mala e repórteres enxeridos no meu quarto? Ou será que vai fazer algo mais sutil? Bombas nos banheiros? Quem sabe cobras nas camas? - De que diabos está falando? - disse Maria, sobressaltada. - Não finja que não se lembra da Noite Musical de Huntsford. O seu gerente de relações artísticas, Miles, xeretando no meu quarto. - Serena, não seja idiota. Não estávamos muito preocupados com a segurança e um intruso entrou na casa. Como pode pensar uma coisa assim de uma integrante da sua própria família? - Ainda não, Maria - soltou Serena. - Bom, logo vou ser - prosseguiu Maria, presunçosa. - Embora, a esta altura no ano que vem, talvez Oswald e eu já tenhamos uma família nossa. Claro que vocês, meninas, não deixarão de fazer parte da família - completou, como se aquela fosse a última coisa em que acreditava. Serena parou e se virou de frente para a futura madrasta. Ela sorria no escuro, de modo que Serena só enxergava as sombras de seu rosto e a brancura de seus dentes. - É mesmo? - disse Serena, provocadora, sem conseguir se conter. - Mas, você ainda consegue engravidar? - Acabei de completar apenas 40 anos, mia cara - respondeu Maria com mais do que uma sugestão de sarcasmo. - Eu sei que posso parecer uma velha para você, mas temos muito tempo para conceber. Serena sentiu-se incapaz de responder; aliás, incapaz de respirar. - Está tudo bem com você? - perguntou Maria, cheia de presunção. - Precisa compreender que Oswald quer tentar ter um filho. O filho que sempre quis. - Claro que sim - respondeu Serena, baixinho. - Você não pode imaginar que ele vai querer que o seu filho bastardo herde Huntsford, não é mesmo? Serena sentiu as costas se arquearem como as de uma gata pronta para atacar. - Como assim? - sibilou Serena. - Seu filho ilegítimo. Só estou ressaltando o óbvio - sorriu Maria com doçura. - Uma criança bastarda não vai herdar... não pode herdar... Huntsford. Nosso filho, de Oswald e meu, será o herdeiro do título, da casa... de tudo. Oswald ergueu os olhos para o céu, os braços cruzados sobre o peito e os pés afastados, parecendo um bulldog inglês protegendo seu território. Fitas de luz enchiam o céu e explodiam em grupos enormes de chamas finas e delicadas, como dentes-de-leão cor de âmbar. Camilla apertou a pashmina com mais força em volta dos ombros. Quando se aproximou do pai, um relâmpago vermelho explodiu no céu e se abriu em um leque colorido de luz vermelha, verde e azul lá no alto. - Está muito impressionante este ano, papai - disse Camilla, notando que ele não se virara para olhar para ela.


- Maria pagou pelo show - disse ele, com um leve sorriso. - É o presente de Natal dela para a família. - Quanta generosidade - disse Camilla com frieza. Havia cerca de setenta pessoas reunidas na amurada, a mais de trinta metros acima do terreno de Huntsford. Todos os pescoços estavam esticados para assistir ao espetáculo. - Acho que a noite está correndo extremamente bem - prosseguiu Camilla, enquanto Oswald resmungava para ela, desdenhoso. - Claro que sim - zombou ele, ainda sem olhar para ela nos olhos. - Sempre foi um dos pontos altos do calendário social. Olhe ao redor de si: está todo mundo se divertindo a valer. - Eu estava aqui pensando... - começou Camilla, fazendo uma pausa para refletir sobre sua tática mais uma vez. Ela sabia que não manipulava o pai com a mesma habilidade que Serena, mas sabia que o segredo era fazer com que parecesse que ela, na verdade, não estava pedindo a ajuda dele, mas sim que o estava elogiando para que ele se sentisse poderoso e indispensável. - ... Eu estava aqui pensando: já que você consegue organizar eventos assim tão fantásticos, será que não poderia me ajudar em um evento de arrecadação de fundos que vou promover no começo do ano que vem? Um sorriso desdenhoso formou-se nos lábios de Oswald. - Arrecadação de fundos exatamente para quê? - perguntou. Ela respirou fundo. - Deve estar sabendo que eu acabo de ser selecionada para Esher. Sou a candidata parlamentar deles. - Ela teve o cuidado de fazer a afirmação de modo a sugerir que ele talvez ainda não estivesse a par da notícia. - Preciso arrecadar fundos para a campanha. Achei que seria uma boa ideia organizar um evento aqui. O que acha? Oswald não respondeu. Em vez disso, esticou o pescoço ainda mais para observar os fogos de artifício. - O Baile de Huntsford não é um evento de arrecadação de fundos, Camilla - terminou por dizer. - Deve levar em conta que, depois da Noite Musical, estou um pouco menos inclinado a convidar desconhecidos completos para qualquer tipo de empreitada: comercial, beneficente ou seja lá o que for. Camilla já tinha percebido que aquela seria uma batalha montanha acima. - Mas eu não sou uma desconhecida. Sou sua filha. - É, quando isso lhe convém. - O que quer dizer com isso? - perguntou Camilla. - Achei que daria apoio às minhas iniciativas de entrar na política. Para ser sincera, estou mesmo muito surpresa, caramba, por você não ter tocado no assunto antes. Recebi parabéns de todo mundo, menos do meu próprio pai. Um foguete gritou no céu e explodiu em uma chuva de estrelas. Oswald finalmente virou a cabeça para olhar para ela. - O motivo pelo qual eu negligenciei a discussão relativa ao seu ingresso na arena política não foi por não ter ficado a par do seu pequeno "triunfo" - ele disse a palavra com muito sarcasmo -, mas porque esta não passa de mais uma empreitada equivocada desta família. - Mas você esteve na política durante anos - respondeu Camilla. - E adorava. Por que seria diferente para mim? Por que isso de repente é "equivocado"? Oswald virou a cabeça, de modo que ficou olhando apenas para a escuridão à sua frente. - O fato, Camilla, minha querida, é que você não leva jeito para a vida no Parlamento. Camilla o atacou, brava.


- Que argumentos você pode dar para justificar tal observação? Tenho todas as credenciais necessárias... - Ah, é? Tem mesmo? - disse o pai, sorrindo com malevolência. - E os esqueletos que você tem no armário? Camilla ficou paralisada. Apertou os braços em volta do corpo em um gesto protetor e ficou olhando para as amuradas diante de si, sem ver o que vinha pela frente, mas sim o que havia ficado para trás, no seu passado. Oswald soltou uma risadinha cruel, insensível e sombria. - É, muitos políticos têm segredinhos obscuros, não é mesmo? Mas acho que talvez o seu seja mais obscuro do que a maioria. - Aquilo foi há muito tempo - disse ela, com frieza, tentando mascarar o pavor que corria por suas veias. Oswald abaixou o queixo e abriu as narinas em um gesto arrogante. - Só porque foi há muito tempo, não quer dizer que não aconteceu. Por sorte eu sou a única pessoa que sabe do fato. Por enquanto, pelo menos. - Papai. Isso já ficou no passado. Por favor, vamos deixar lá - disse Camilla, tentando controlar a voz. - O passado tem a mania de vir à tona - disse Oswald, os olhos fixos em um arroubo de chamas no céu negro. - Agora, sugiro que você dê um basta em todas essas fantasias tolas e retire a sua candidatura. Um interruptor se ligou na mente de Camilla quando ela se deu conta de qual era a raiz da objeção dele. - Está com inveja, não é mesmo? - disse, virando o corpo na direção dele para desafiá-lo. Com inveja por eu ser a integrante da família com chance de fazer carreira na política. A maior parte dos pais ficaria feliz de ver a filha tentando conquistar alguma coisa. Mas não você. Ninguém pode ser melhor do que você, não é? - desdenhou ela. A expressão do rosto dele disse-lhe que ela havia acertado na mosca. - Com inveja? De você? Ficou olhando para a filha que o observava com desprezo no escuro. - Está, sim - respondeu ela, desafiadora. - Perdeu a cadeira na Câmara dos Lordes e, por isso, eu tenho que abandonar a minha chance de fazer carreira na política. Meu sonho. Minha ambição. Bom, eu realmente quero fazer isto e não vou abrir mão da oportunidade por sua causa. - Não vai? - perguntou Oswald, sorrindo com crueldade. A voz de Camilla se suavizou, ciente de que a teimosia de aço de pai e filha estava em confronto direto. - Acho que vou ser boa - disse ela baixinho, olhando nos olhos dele com tanta firmeza que conseguia enxergar nas pupilas o reflexo dos fogos de artifício explodindo. - Acho que posso ser uma ótima política. E se eu me tornar representante parlamentar, considere isso uma vitória da família. - Até que você se transforme em uma das formadoras de opinião deste país, o que, tendo em vista o que nós dois sabemos, não vai acontecer, eu realmente não me importo com o que você pensa, querida. Camilla sentiu o rosto perder a cor quando se deu conta do poder que ele tinha sobre ela. - Retire sua candidatura - disse ele, curto e seco. - Não vou retirar - respondeu Camilla, apertando os olhos felinos para o pai.


- Ah, vai, sim - sorriu Oswald, enquanto mais um foguete explodia no céu. - E vai fazer isso logo no início do ano, a menos que queira que o mundo todo saiba do nosso segredinho sórdido.


42 Cate não sabia dizer se tinha sido a luz forte que se esgueirava pela fenda comprida nas cortinas de veludo ou a cabeça latejante, acompanhando uma ressaca daquelas, que a acordara. O que quer que tivesse sido, estava desperta e gemeu quando voltou a afundar a cabeça no travesseiro de penas de ganso. Podia ser dia de Natal, mas ela precisava de mais meia hora de sono antes de voltar a se sentir vagamente humana. Mas então ficou paralisada. Tinha certeza de ter ouvido um rangido mínimo do assoalho, o som da respiração de alguém no ar. Sentindo-se um pouco apreensiva, virou-se na cama para ficar de frente para a porta. - Cate, sou só eu - sussurrou uma voz, rouca de sono e por causa da bebida. Os olhos dela se esforçaram para abrir até que ela viu Nick ali parado, tentando atravessar o quarto na ponta dos pés. A camisa social branca da noite anterior estava aberta no colarinho e para fora da cintura da calça. Havia uma sombra de barba no queixo e uma vermelhidão no branco dos olhos. Um sentimento de amor, tesão e desespero se agitou na boca de seu estômago quando ela olhou para ele. Ela se lembrou dos acontecimentos da noite anterior e se encolheu toda. O que tinha lhe dado na cabeça para convidá-lo para dormir lá? Para dar o braço para ele enquanto assistiam aos fogos de artifício? Para flertar com ele? Sim, com toda a certeza ela tinha flertado. Certo, tinha havido aquele momento no jardim-de-inverno. Ela podia jurar que ele estava prestes a beijá-lo quarido Serena irrompeu porta adentro. Mas nada tinha acontecido depois disso, nem durante o resto da noite. Ela tinha prometido para si mesma que se ela e Nick não ficassem juntos no baile, ela não desperdiçaria nem mais um minuto pensando no que podia vir a acontecer, independentemente de primeiras edições de contos de fadas ou de quase-beijos provocadores. O livro de Nick Douglas agora estava fechado. Finalmente. Mas o que ele estava fazendo ali agora? Nick chegou mais perto da cama e Cate puxou o lençol de algodão branco mais para perto do queixo. - Acho que é melhor eu ir andando - disse ele, com um sorriso cheio de gentileza. - Já estou ouvindo uma agitação lá embaixo. - Já? Deve ter gente limpando o andar de baixo desde que a festa terminou. Papai detesta descer e ver que está tudo parecendo Hiroshima - disse ela, sorrindo. - Mas, bom, espero que tenha se divertido ontem à noite. - Foi ótimo. - Nick aproximou-se ainda mais da cama e depois se sentou, o corpo rígido, na beirada do colchão. - Eu também achei. Obrigada por ter vindo. De algum modo, Cate sentia que ele não queria ir embora. - Então - disse ele, cheio de hesitação. - A gente se vê antes do anonovo? Quando você volta para Londres? Ela sentiu um frio no estômago. Ele queria vê-la antes do ano-novo? - Geralmente fico aqui mais um dia depois do Natal - disse ela, com a guarda armada. - Se quiser marcar de a gente se ver, dê uma ligada depois. Vou ligar. - Então, tchau. - Tchau. Ele se inclinou para a frente, esticando-se por cima do corpo dela, com os lábios direcionados para sua bochecha. Cate se esticou para dar um beijo na bochecha dele e, ao fazê-lo, o lençol soltou do queixo e a alça fina da camisola escorregou do ombro para expor um pedaço de pele macia.


Naquele momento, pareceu que Nick mudou de direção. Seus olhos se prenderam aos dela, o alvo de sua boca passou da bochecha para os lábios dela. Ela ficou estupefata, mas a maciez dos lábios dele a prenderam como um ímã poderoso e ela correspondeu ao beijo com ânsia. - Eu passei a noite inteira querendo fazer isto ontem - disse ele, sorrindo, com voz suave e salpicada de acanhamento. - Então, por que não fez? - sorriu ela, pensando que todos os seus presentes de Natal tinham chegado juntos. O indicador de Nick acariciou seu pescoço. - Bom... De repente, um grito cortou o ar. Era um grito gutural, de gelar o sangue, que no começo pareceu vazio, mas logo se ergueu e se encheu de pavor. Nick se levantou de um salto. - Caramba, que diabos foi isso? - disse, ele, correndo até a janela. Cate pulou da cama e pegou o penhoar. - Parecia vir de trás da casa - disse ela, ansiosa, instantaneamente se esquecendo do momento que acabavam de compartilhar. Os dois correram para fora do quarto. Camilla apareceu à porta de seu quarto, na frente do deles. Por um segundo, pareceu surpresa e interessada no fato de ver os dois tropeçarem para fora do quarto de Cate apenas meio vestidos. - Vocês ouviram aquilo? - perguntou Camilla. - Não tinha como não ouvir - disse Cate, ainda brigando com os chinelos. Outra porta de quarto se abriu e Venetia se juntou ao grupo para ver o que estava acontecendo. Quando chegaram ao patamar da escada, a porta da frente estava aberta, deixando entrar um vento gelado. Parada ali, emoldurada pelo dia branco leitoso lá fora, estava Serena, o rosto pálido, uma das mãos no peito, tentando controlar a respiração. - Caramba, o que aconteceu? - berrou Camilla do topo da escada, e desceu de dois em dois degraus até alcançar a irmã. À medida que foi chegando mais perto, Camilla percebeu que o lábio superior da irmã tremia, enquanto pequenas lágrimas em formato de diamante escapavam de seus olhos e rolavam pelas bochechas. - Chamem uma ambulância - disse ela com a respiração entrecortada. - É papai. O corpo dele. Está no fosso. Ele não se mexe. O fosso, apenas parcialmente escavado, estendia-se ao longo da parte de trás da casa. Todo mundo correu para fora, descalço, com os pés congelando sobre a camada de neve que caíra à noite. Deitado de bruços na água preta gelada havia um corpo. Só dava para ver a nuca, mas com toda a certeza era Oswald. - Nick - berrou Camilla, correndo até a beira d'água. - Ajude aqui, rápido. - Droga - resmungou ele sem abrir a boca, percebendo que ia ter que se molhar. Deu uma olhada rápida para Cate e pulou dentro do fosso. O frio grosso e opressor envolveu seu corpo. Algas colaram em seu paletó; a água gelada fez seus olhos arderem. Pegou o braço de Oswald e o corpo se virou lentamente, empapado e saturado daquela água gelada. De repente, o corpo saiu da água, apenas a centímetros de Nick, enquanto ele o puxava para a beirada. - Merda - disse ele, engolindo em seco, quando o rosto roxo e congelado de Oswald olhou para ele, os olhos grotesco e a boca aberta. - É melhor ir chamar Maria - disse Cate a Venetia, e juntas tentaram puxar o corpo para cima do gramado. - Alguém telefonou para o médico? A ambulância. Rápido.


Cate ajudou Nick a sair do fosso. Ninguém precisava tomar o pulso para confirmar o que todos estavam pensando. - É tarde demais para uma ambulância. - Nick fez uma careta ao se inclinar sobre o corpo sem vida e ergueu os olhos, com expressão paralisada, na direção das irmãs. - Ele está morto. A delegacia local do vilarejo de Huntsford raramente via alguma ação naquela época do ano, muito menos uma morte importante no dia de Natal. Como o último grande crime da temporada de festas de fim de ano - o roubo de um ganso - o sargento Danner não esperava ser chamado para nada além de alguma briga no bar ou algum incêndio caseiro menor causado por um bife esquecido no fogão durante o feriado. Para ser sincero, o policial estava querendo era passar o Natal com os pés para cima, de modo que Danner não ficou nem um pouco contente por precisar entrar na única viatura da delegacia e se dirigir para o castelo para inspecionar um corpo. Pelo menos seu colega, PC Browning, estava ansioso para ver Serena Balcon: afinal de contas, a foto dela estava pendurada em seu armário. - Parece que é um caso para o Departamento de Investigação Criminal em Lewes - disse o sargento Danner, contorcendo o rosto de traços magros com jeito de fuinha, enquanto caminhava pela beira do fosso, onde Venetia tinha colocado um cobertor por cima do corpo do pai. - Departamento de Investigação Criminal? - perguntou Serena, preocupada. - É o procedimento - disse ele, com frieza. - Morte acidental. Suicídio. É impossível dizer neste ponto. Vamos ter que chamar o pessoal. Ligaram para um médico? - Sim, para o doutor Tavistock - respondeu Camilla. - Deve chegar a qualquer minuto. Camilla apertou o penhoar em volta da cintura e olhou para ele, desconfiada. A academia de polícia era uma lembrança tão distante para o sargento Danner que ela duvidava que ele fizesse alguma ideia de qual era o procedimento em casos como aquele. Quando finalmente chegou, o doutor William Tavistock, também aborrecido por ter sido importunado durante o café-da-manhã de Natal em família, revelou que achava que Oswald tinha morrido afogado, coisa que, como Nick ressaltou, qualquer um deles poderia ter dito sem o benefício de vinte anos de experiência médica. - Mas só posso ter certeza depois da autópsia - completou ele, com descaso. Foi só quando o detetive chefe inspetor Paul Cranbrook chegou, uma hora depois, que as irmãs começaram a pensar que a morte do pai estava nas mãos de alguém competente. Muito mais impressionante que todos os integrantes da força policial local, Cranbrook passara rapidamente ao posto de inspetor depois da academia de polícia e não devia ter mais de 35 anos. A namorada dele lia revistas de celebridade com voracidade, de modo que, embora pudesse passar bem sem ter que se deslocar até Huntsford no dia de Natal, valia a pena dar uma xeretada no castelo de Huntsford e conhecer as famosas garotas Balcon. Dentro da casa a atmosfera estava tão morta quanto o corpo que agora era fotografado pela equipe de investigação forense. Todo mundo tinha se reunido na sala de visitas. Cate olhava pela janela, o rosto sem expressão, enquanto Nick se empoleirava no braço da poltrona dela, acariciando suas costas com suavidade. Collins pairava perto da porta, sem saber o que dizer ou fazer, enquanto sua esposa chorava em um canto. Serena ocasionalmente emitia uma fungada ruidosa, enquanto Camilla e Venetia só permaneciam sentadas em um sofá de veludo com as costas eretas, como se estivessem na sala de espera de um


consultório médico. O ruído mais alto da sala vinha da direção de Maria Dante, que chorava em uma almofada de tapeçaria. - Mio caro, mio caro - murmurava ela, vez após outra, a voz completamente abafada pelo tecido. Ciente de que ninguém dizia nada havia vinte minutos, Cate foi se sentar ao lado dela. - Vamos lá, Maria. Está tudo bem - disse ela baixinho, colocando a mão no joelho da mulher, em um gesto de compaixão. - Tudo bem? - Maria praticamente cuspiu as palavras, repentinamente se voltando para Cate com fúria. - A morte do seu pai pode não ser nada de mais para você, mas com certeza é algo muito importante para mim. As irmãs se viraram para Maria, chocadas com a força de seu veneno. - Não foi isso que Cate quis dizer - respondeu Camilla, partindo firme em defesa da irmã. Ela só estava tentando ser solidária. Maria não estava no clima de ser acalmada. - Vamos, podem se defender. Vocês, garotas, sempre se ajudam. São sempre vocês contra seu pai. Agora, são vocês contra mim. Apesar de Maria ter feito um resumo bem razoável da relação disfuncional entre as garotas e Oswald, Camilla de repente sentiu a necessidade de proteger a ligação entre filha e pai. - Como ousa! - explodiu ela, também irritada com a insinuação de que Maria de certa forma o substituíra na dinâmica da família. Cate ergueu a mão para tentar dissipar a atmosfera de tensão. - Vamos nos acalmar todos. Maria só está abalada. Todos estamos. - É mesmo? - acusou Maria. Agora, até Cate tinha ficado furiosa. - Maria, você está na nossa casa. Não nos insulte. - A casa de vocês? Oswald era meu noivo. Camilla e Venetia se entreolharam. O que ela queria dizer? Serena olhou para ela da janela, cheia de ódio. Ela não gostava nada de Maria e desconfiava dela, e o sentimento se transformou em hostilidade patente. - Sim, Maria. É nossa casa. Não sua. Nossa. O ar estalava de ressentimentos e conflitos entre Maria e as garotas; Nick se remexia no braço da poltrona, desconfortável. - Acho que vou embora - disse ele, olhando na direção do investigador Cranbrook -, a menos que deseje que eu fique. Mas acho que, neste momento, a família precisa de privacidade. Cate assentiu com a cabeça, sem nem olhar para ele. - Certo, é melhor que você vá. - Sinto muito - disse ele, abaixando-se para lhe dar um abraço. - Telefone se precisar de alguma coisa. - Se vai para Londres, quero que me leve com você, Nicholas - saltou Maria, levantando-se repentinamente. - Acho que é melhor mesmo - disse Serena, ácida. Nick pareceu pouco à vontade, mas alguns segundos depois assentiu. Cranbrook o deteve à porta. - Antes que vocês dois saiam, preciso do endereço e do telefone de ambos, para poder contatá-los no decorrer da investigação. Vamos precisar colher depoimentos de todo mundo que esteve aqui.


- Por quê? Por que me perseguem? - choramingou Maria. - Meu noivo está morto e querem fazer com que eu me sinta uma criminosa. Cranbrook abafou um suspiro. - É só o procedimento padrão, senhora. - Procedimento? Você não tem coração? Não tem alma? Preciso de tempo para viver o meu luto, não para ser interrogada. - Claro, claro que sim - disse Nick, tirando um cartão da carteira e rabiscando alguma coisa na parte de trás. - Voltarei daqui a alguns dias - fungou Maria. - Preciso ficar um tempo sozinha. Depois que os dois foram embora, Cranbrook se voltou para as irmãs. - Então, o que vai acontecer agora? - perguntou Venetia, expirando lentamente. - Acho que vou precisar colher o depoimento de vocês quatro também. Sei que houve uma festa ontem à noite. Vamos ter que pegar o nome e o endereço de todos os convidados e das pessoas que trabalharam no evento. É importante que eu converse com o maior número de pessoas possível. O detetive-delegado Lane vai me ajudar... ele é da minha equipe. Venetia fez um gesto na direção do terreno do castelo, onde mais policiais desciam de uma van. - Quanto tempo vai demorar? - Acho que precisaremos esperar até que o legista chegue de Londres. Ele está a caminho, então não deve demorar muito, e parece que os ICCs também chegaram. - ICCs? - perguntou Venetia. - Investigadores de cena de crime. Eles tiram digitais, amostras, ajudam a formar um quadro. Mas a porcaria da neve não ajudou em nada - disse ele, olhando para o fino tapete branco do lado de fora. - Vão ter dificuldade para obter o que precisam com este tempo. - Será que podemos prosseguir com as entrevistas, por favor? - perguntou Venetia, de repente agitada com a história de legistas e impressões digitais. Conduziu Cranbrook para a biblioteca e foi acendendo alguns abajures pelo caminho, para fazer com que a sala parecesse um pouco menos sisuda, depois se sentou no sofá de couro Chesterfield, pronta para as perguntas dele. Cranbrook abriu seu bloquinho de anotações. Estava acostumado a lidar com a escória da sociedade: criminosos, drogados, brutamontes; precisava confessar que se sentia um tanto intimidado por estar no luxuoso castelo de Huntsford, na frente daquela mulher refinada, mas de ar um tanto quanto frágil. - Então - começou Venetia, ansiosa. - Já faz alguma ideia do que aconteceu? Cranbrook quase sorriu. - Acho que esta é uma pergunta um tanto prematura. Em primeiro lugar, minha equipe precisa levantar o máximo possível de informações sobre a noite passada: os movimentos do seu pai, a última vez que foi visto vivo. Depois, a autópsia, que deve ser feita amanhã ou depois, deve nos dar um quadro mais claro do que devemos investigar. - Em que aspecto? - Nosso objetivo é descobrir o que aconteceu. Vai ajudar se pudermos determinar se estamos tratando de morte acidental, suicídio ou má intenção. Acredito que não tenham encontrado um bilhete, estou certo? - Para ser sincera, inspetor, nem procuramos - respondeu Venetia, bastante estupefata. Todas nós achamos que foi um acidente. É por isso que estou um pouco chocada com toda esta conversa de depoimentos e investigadores de cena de crime. O senhor não acha que tudo isso é um tanto suspeito?


Ciente de que estava conversando com uma filha em luto, Cranbrook tentou se solidarizar ao máximo e ter muita paciência. - Tudo o que estamos fazendo é o procedimento padrão quando se trata de uma morte violenta ou repentina. - Ele não quis completar dizendo que aquele provavelmente seria um caso de destaque, que poderia determinar o rumo de uma carreira, e que ele iria fazer tudo de acordo com as regras. - De toda forma, acredito que esteja familiarizada com o processo, não? - Como assim? O que quer dizer? - perguntou Venetia, um tanto sobressaltada. - O seu marido, senhorita Balcon. Ele morreu em um incêndio há alguns meses, não foi? Tenho certeza de que o procedimento foi similar na época. Cranbrook reparou que o rosto de Venetia ficara ainda mais tenso. Ele torceu para que não tivesse soado acusatório demais: não queria aborrecer as irmãs Balcon e fazer com que recorressem a um dos amigos do papai para que interferisse. Além do mais, ele teria que lidar com aquela mulher de maneira especialmente cuidadosa, pensou. Tinha lido que o inquérito relativo à morte de Jonathon von Bismarck concluíra que fora morte acidental, mas parte dele não podia deixar de pensar que Venetia tinha tido quase azar demais no decorrer de alguns meses. Podia ser coincidência, mas onde há fumaça há fogo. Ele precisou segurar um sorriso maroto ao pensar no trocadilho inconsciente. Na frente dele, Venetia simplesmente assentia com a cabeça e tirava alguma sujeirinha do joelho. - No entanto, já descobrimos uma coisa peculiar - disse Cranbrook, lentamente. - A porta que leva até a amurada estava trancada por dentro, o que me faz imaginar como diabos o seu pai pode ter chegado até a área de onde caiu. - Aí não há mistério nenhum - respondeu Venetia. - Ela geralmente é trancada depois da exibição de fogos de artifício. Sabe como é, para que pessoas que beberam demais não subam lá e caiam... - Ela se deteve, ciente da ironia de sua afirmação. - No entanto, há outro caminho. Um corredor de empregados atravessa a casa toda, e é possível ir até lá sem precisar usar a porta. Meu pai conhecia o caminho. - Quem mais sabia de sua existência? - A família, a criadagem. Cranbrook fez uma nota curta no bloquinho. - E quando foi a última vez que viu seu pai? - Eu o vi na amurada à meia-noite, olhando os fogos de artifício com todo mundo. Acho que ele estava com minha irmã Camilla. Depois, todo mundo voltou para dentro de casa. Devo tê-lo visto pela última vez mais ou menos à uma da manhã, conversando com Maria. Daí eu fui para a cama. Só acordei hoje de manhã, quando Serena encontrou o corpo dele no fosso. - O seu pai estava bebendo muito na noite passada? Agia de forma estranha? Discutiu com alguém? Venetia tinha certeza de que não devia lhe contar sobre sua discussão com Oswald na cozinha. - Meu pai era um homem difícil, que gostava muito de discutir, inspetor Cranbrook. Ele gostava que tudo corresse de uma certa maneira em seus eventos sociais, e certamente deve ter havido alguma palavra mais agressiva para as pessoas que estavam trabalhando em algum momento. Mas ele era assim. Não fiquei sabendo de nada fora do comum. E, sim, é quase certo que estivesse bêbado. A bebida corre solta nas festas de Huntsford. Venetia ergueu os olhos e reparou que Cranbrook olhava para ela com muita atenção. - Ele estava deprimido?


- De maneira nenhuma - respondeu, sem pensar. - Longe disso, aliás. Tinha ficado noivo de Maria fazia pouco tempo; Maria Dante, a cantora de ópera. - E como diria que a senhora e suas irmãs se sentiam a respeito da perspectiva da senhorita Dante se juntar à família? - Os sentimentos são bastante ambivalentes, para ser sincera - respondeu ela, cautelosa. Como pode imaginar, ninguém pode substituir nossa mãe, mas se Maria o faz feliz... - Li recentemente que seu pai podia estar passando por problemas financeiros - disse Cranbrook, sem parar de escrever no bloquinho. - É verdade? Venetia assentiu lentamente, pensando sobre a noite musical. - Houve alguns problemas de fluxo de caixa, sim. Mas o senhor certamente não está sugerindo que tenha sido suicídio está? - Neste momento, não tenho muita certeza a respeito de como a morte do seu pai se deu. Neste ínterim, por favor, não saia da casa sem me avisar, senhorita Balcon. O dia de Natal desapareceu em um turbilhão de neve, lágrimas e atividades estranhas. Investigadores de cena de crime caminhavam pela amurada e pelo fosso com seus aventais brancos, colhendo amostras do chão; pareciam homens espaciais naquele cenário nevado. Cranbrook completou seus interrogatórios. Um carro preto do necrotério chegou para levar o corpo de Oswald embora. O telefone não parava de tocar com ligações de jornalistas. Cate ligou a televisão por dois minutos e viu que a morte do pai tinha sido promovida a terceira notícia mais importante do jornal das seis. Um repórter com ar sóbrio entrevistava um morador local que afirmava ter estado na festa da noite anterior. - Ah, por quê? - resmungou Serena, apertando um botão no controle remoto com um dedo de unha feita. - Dá para pensar que foi o papa que morreu ou sei lá o quê. - Hoje é Natal, não tem muita coisa acontecendo - respondeu Cate. - Quero ir para casa - choramingou Serena, acomodando-se no assento junto à janela na sala de visita. - Tanto estresse não pode me fazer bem. Cate olhou para a irmã para dar apoio. - Tenho certeza de que não, Sin, mas acho que devemos ficar todas aqui até recebermos notícias da polícia. A senhora Collins entrou na sala. - Senhorita Cate, tem alguém no telefone querendo falar-lhe. Quer atender ou devo anotar o recado? - Quem é? - David Loftus. Diz que é importante. Cate fez uma careta. - Nunca ouvi falar dele. - Ele vem aqui às vezes - respondeu a senhora Collins. - Vinha - emendou, a voz sumindo. Ele vinha falar com seu pai. Cate saiu para o hall, bastante curiosa. Colocou o fone antiquado no ouvido. - Alô, aqui é Cate Balcon. - Aqui é David Loftus. Amigo do seu pai. Em primeiro lugar, gostaria de oferecer minhas sinceras condolências. - Muito obrigada. - Em segundo lugar, gostaria de marcar uma hora para poder falar com vocês. As quatro.


- Como pode imaginar, senhor Loftus, este é um momento um tanto difícil para todas nós disse Cate, ao mesmo tempo com firmeza e educação. - No momento, desejamos ficar a sós, em família. - Realmente acredito que precisamos conversar. Ela limpou a garganta, irritada. - Realmente, não é muito... - Não me dispense, senhorita Balcon. Acho que gostaria de saber por que preciso falar com vocês. Cate estava começando a ficar um pouco apavorada. Havia algo de arrepiante na voz dele. - Certo, então, por que deseja conversar conosco? - Quero falar sobre a morte de seu pai - disse Loftus com frieza. - Como deve saber, faz alguns meses que estou escrevendo as memórias dele. Acho que sei por que ele morreu. Ela sentiu o coração pular dentro do peito. As palmas das mãos começaram a suar, ela segurou o telefone com força e falou baixinho no bocal: - Neste caso, senhor Loftus, é melhor vir até aqui.


Parte Dois


43 David Loftus tinha sido um homem sem sorte até o dia que seu agente marcara uma reunião com Oswald Balcon. Desde que fora indicado na revista Granta como jovem talento promissor, quando tinha 20 e poucos anos, David Loftus esperava que algo de grandioso acontecesse com sua carreira, mas quando o sucesso previsto não se materializou, isso serviu para transformá-lo em um homem ressentido e amargo, que tinha desprezo quase patológico por qualquer pessoa que tivesse algo parecido com sucesso, riqueza ou privilégio. Em consequência, Oswald Balcon deveria ser o tipo de pessoa que David Loftus detestava; no entanto, quanto mais tempo passava com o irascível lorde Balcon, mais aprendia a usar a relação em seu benefício. Logo ficou claro que Oswald se sentia solitário morando na propriedade sozinho e, à medida que os meses foram se passando, ele começou a depender de Loftus para amizade e conversa cotidiana, além de suas obrigações como escritor. Loftus tinha aceitado na hora a proposta de Oswald para que ele se mudasse para um dos chalés da propriedade um mês antes, e agora o homem estava morto... Bem, Loftus começava a ver os verdadeiros benefícios de seu laço profissional: poder e conhecimento. E agora, lá estava ele, sentado perante as quatro belas filhas de Oswald em sua linda residência, Huntsford. Ele ficava de pau duro só de olhar para elas. E agora que tinha todas as suas atenções, estenderia a situação ao máximo. - As senhoritas sabem que muita gente queria ver o pai de vocês morto? - perguntou Loftus às irmãs, tomando um longo gole de seu uísque. - Ele podia ser um tanto difícil, se é isto o que quer dizer, senhor Loftus - respondeu Cate, ácida. - Mas não é exatamente a mesma coisa. - Difícil. - Ele deu uma gargalhada alta de desdém. - É assim que o classifica? - Acho que já basta - disse Venetia, começando a assumir um tom ríspido. - Creio que já esteja na hora de se retirar. Loftus ignorou-a. - Seu pai era desprezado pela metade das pessoas que o conheciam - disse Loftus, ciente de que tinha prendido a atenção das moças com sua narrativa. - E digo mais. Apesar do que a polícia está dizendo, não acho que seu pai se jogou nem caiu do telhado. Ele fez uma pausa e observou como Camilla parecia nervosa, remexendo o topázio no dedo. - Acredito que foi empurrado. Deliberadamente. - Fez uma pausa para encarar cada uma das irmãs. - Acho que seu pai foi assassinado. O fogo na lareira ardia e crepitava ao fundo, enquanto as irmãs olhavam para ele sem ousar dizer nada. - E acho que uma das filhinhas do papai o matou. Serena atacou-o como uma gata selvagem. - Como ousa vir à nossa casa para fazer uma insinuação destas? Ele se recostou na cadeira para observá-la, uma sugestão de sorriso nos lábios. Parecia um homem que tinha todas as cartas na mão. Para Camilla, já bastava. - Minha irmã lhe fez uma pergunta, senhor Loftus - pressionou-o. - O que o leva a fazer alegações tão graves? O que sabe que nós não sabemos? Loftus não seria desencorajado assim com tanta facilidade. - Devem saber que conheço seu pai muito bem. Eu o estava ajudando com suas memórias. Oswald não era um homem abençoado pelo tom reservado das classes mais altas. Ele falava com bastante liberdade sobre seu passado. As coisas que vieram à tona são engraçadas. Muito engraçadas.


- Não tente nos ameaçar, senhor Loftus - disse Camilla, friamente. - Algumas das anedotas irreverentes de meu pai não são exatamente motivo para assassinato. - Parece ter muita segurança sobre o que diz. - Tenho mesmo. - Humm. Muito bem, fico aqui só imaginando o que a polícia vai achar. - A voz dele tinha um tom presunçoso que deixou todas elas exasperadas. - Então, está mesmo nos ameaçando. - A voz de Serena estava cheia de raiva. David Loftus sorriu de novo, feliz de obter alguma reação. - Não é ameaça, senhorita Balcon. Simplesmente sei de coisas que, tenho certeza, a senhorita preferiria que eu não soubesse. - Ele está blefando - disse Venetia, sem se abalar. Ele deu uma risada áspera. - Sinceramente, Venetia. O seu relacionamento com seu pai não tem sido ideal no decorrer do último ano, não é mesmo? Não que algum dia tenha sido. O rosto dela ficou pálido. Loftus se levantou e começou a andar de um lado para o outro na frente da escrivaninha. - Oswald me contou tudo a respeito da sua empresa. Eu, pessoalmente, não sou muito chegado em mobília, mas parece que dá um bom dinheiro. Ele é diretor, não é? - Duvido que possa entender alguma coisa de decoração - respondeu Venetia, com muita calma. - Sim, diretor - prosseguiu Loftus, ignorando-a. - Um diretor que usava seu direito ao voto para deter sua expansão para o mercado norte-americano; um diretor prestes a comprar a participação do seu ex-marido na empresa. Sim, ele me disse como você ficou realmente zangada com isso. - Está sugerindo que este seja meu motivo? - disse Venetia com um ar de diversão na voz. - Você discorda? - Ele deu um sorriso arrogante. - Sua vida ficaria muito mais fácil com ele fora do caminho, não é mesmo? - Perdoe-me - disse Serena, sarcástica, encarando-o com seu olhar mais frio. - Por acaso não pedimos para que se retirasse? - Está ficando nervosa? - Não por sua causa, não. - Você sempre foi a mais esquentadinha, não é mesmo, Serena? Esquentadinha o suficiente para empurrá-lo do telhado do castelo em um ataque de raiva, talvez. Afinal de contas, você era a única para quem Oswald dispensava um pouco de tempo. O castelo não está atrelado ao título, e ele teria deixado o castelo para você em seu testamento, do modo como as coisas estavam. Acho que não ficou muito feliz quando descobriu que Oswald e Maria tentariam ter um filho. Então, como é mesmo que a coisa funciona... ? - Fingiu se concentrar, batendo os dedos de leve na boca. - ... Se Oswald produzisse um herdeiro homem antes de morrer, então você não ficaria com coisa nenhuma. Acredito que seja um belo motivo para empurrar alguém do telhado... não é? A essa altura, Cate tomou plena consciência de que aquele teatro tinha um objetivo bem claro. David Loftus não era apenas um homem desagradável: ela estava com a impressão de que ele também era um oportunista. - O que o senhor deseja? - perguntou ela, direta. - Ah, Cate Balcon, a mais inteligente. Boa garota. Não acredito que deseje que eu continue, não é? Para lembrá-la de como Oswald quase sabotou a sua revista? Como ele a culpou


pela morte de sua mãe? Esse tipo de coisa é capaz de afetar a cabeça de uma menina de 7 anos de modo considerável. Ele se voltou para Camilla. - Está tão orgulhosa da sua indicação para as eleições parlamentares, não é mesmo? Eu votaria em você - desdenhou. - Mas será que votaria mesmo? Oswald disse que você tem um segredo. É por isso que ele a controla, não é, Camilla? Tenho certeza de que a polícia ficaria bem interessada. Talvez eu possa dar alguma indicação. - O que o senhor deseja? - repetiu Cate com a voz controlada, encarando-o da mesma maneira que ele as encarava. Loftus sentou-se na beira da escrivaninha e olhou para ela. - Acho que é o que nós todos desejamos, senhorita Balcon. Vocês não querem que a polícia saiba o que eu sei. E eu quero que valha a pena. - Canalha - soltou Serena. - Possivelmente. Pragmático, certamente - retrucou ele. - Não é o que ele deseja, é quanto ele deseja. Não é verdade, senhor Loftus? - disse Camilla. Ele olhou para ela com ar de aprovação. - Também ouvi dizer que a senhorita era uma mocinha inteligente. Venetia se levantou da cadeira e caminhou até a porta com passos duros. - Saia daqui agora, ou vou chamar a polícia - disse. - Foi exatamente o que eu quis dizer - disse Loftus, rindo. Olhou para cada uma das irmãs com expressão impassível. - Um milhão de libras e a coisa toda desaparece. - Um milhão - desdenhou Serena. - Oswald era... digamos... meu ganha-pão. Agora que ele morreu com as memórias inacabadas, preciso recuperar a renda em algum lugar. - Bem, não vai ser aqui - disse Camilla. - E será que preciso ressaltar que chantagem é crime? - Que, no entanto, só pode ser julgado se for denunciado, senhorita Balcon. E acho que isto não vai acontecer - disse Loftus, num tom que transbordava superioridade. - Saia daqui - repetiu Venetia. - Sei que estão todas um pouco emotivas no momento - sorriu ele, erguendo-se e ajeitando as roupas. - Então, vou lhes dar um tempo para pensar sobre o assunto. - Quando? - perguntou Serena, o rosto pálido. - O inquérito não será feito durante o feriado, então que tal eu voltar dia primeiro de janeiro? Assim, comemoramos o ano-novo juntos. Eu entro em contato. Ele ficou parado à porta, um sorriso de superioridade aberto no rosto. - E, senhoritas, feliz Natal.


44 - Liguem para a polícia - disse Cate, depois de ouvir a porta da frente bater. - E você acha que é boa ideia? - perguntou Serena. - Não temos nada a esconder. Portanto por que pensar na possibilidade de sermos chantageadas? Como Camilla disse, isso é crime. Serena parecia ansiosa, distraída. - Olhe, está é a última coisa de que eu preciso. No decorrer deste ano meu nome foi totalmente arrastado na lama. Jornais, escândalos, merda no ventilador... - Sua boca se contorceu ao pensar naquilo tudo. - Eu... minha carreira não vai aguentar muito mais, para ser sincera. Cate não acreditava no que estava ouvindo. Foi até Serena, que acariciava a barriga com uma careta. - Compreendo que você passou por maus bocados, Sin, mas está disposta a pagar um milhão para um mentiroso oportunista que não tem a menor prova contra nós? - Eu me dou conta disso - respondeu Serena, sua voz começando a tremer. - Mas não posso deixar que a minha vida seja toda exposta de novo... pela polícia, pela imprensa. Você não sabe o que é isso. Eu não sei se consigo aguentar mais disso. Ela começou a soluçar baixinho. Venetia foi até a irmã para abraçá-la e Cate pressionou: - Sin, você sabe de alguma coisa? - Não! - berrou Serena, seus soluços cada vez mais altos. - O que você está insinuando, caramba? Que eu matei papai, como ele disse? Não matei, não matei. Ela respirava aos soluços; rastros de rímel escorriam por suas bochechas. Cate chegou mais perto. - Ninguém está dizendo isso - falou baixinho. - Eu só quero que tudo volte a ficar bem - soluçou Serena. - Mas ele tem razão. Tudo parece muito suspeito. Suspeito no que diz respeito a mim. - A você e a mim também - disse Venetia. - Ontem à noite, quase quebrei um copo na cabeça de papai. Jack precisou me segurar. Metade dos empregados viu. Serena olhou para cada uma das irmãs e deu de ombros. - Vamos ser sinceras, todas nós parecemos um pouco culpadas. - Mas não somos - disse Venetia com firmeza, acariciando o cabelo de Serena. - Ninguém matou papai. Foi só um acidente horrível. Cate tinha ficado olhando a paisagem através das compridas portas envidraçadas, observando a neve formar um rendado na borda dos vidros. - E se não foi? - disse ela baixinho, passando os dedos pelo veludo macio da cortina. - E se alguém o matou? - Espere aí, será que podemos nos acalmar? - disse Camilla, abruptamente. - Se Loftus está certo a respeito de alguma coisa, é que neste momento estamos todas um pouco emotivas. A polícia não parece achar que haja algo suspeito. - Vamos ter que esperar o inquérito - disse Venetia. A senhora Collins enfiou a cabeça na abertura da porta. - Está tudo bem? Que tal se eu preparar um bule de chá? Também sobrou um pouco de bolo de Natal... Venetia sorriu. Era a solução da senhora Collins para tudo: chá e bolo. - Obrigada, senhora Collins. Seria adorável. - Quando vai ser o inquérito? - perguntou Cate, na esperança de que Venetia tivesse todas as respostas relativas aos procedimentos desagradáveis relacionados à morte do pai.


- Logo depois do ano-novo, imagino. Precisamos começar a pensar no enterro também. Não faço ideia de quantas pessoas vão querer comparecer. Suponho que papai fosse querer alguma coisa mais para grandiosa. - É melhor telefonarmos para tia Sarah - disse Camilla, folheando um álbum de fotografias pesado a esmo. - Será que ela já sabe que ele morreu? Ela vai querer vir. Tia Sarah, a irmã da mãe delas, era a única parente próxima que tinham, apesar de não tomar parte da vida das garotas havia mais de vinte anos. De vez em quando, mandava um cartão de aniversário ou de Natal, acompanhado de algumas notas de dez libras. As meninas achavam que a relação era assim frouxa porque ela morava em Cingapura, depois em Riad, depois em Paris: era difícil manter contato quando se vivia sempre mudando. Mas quanto mais velhas iam ficando, mais fraca aquela desculpa parecia. Tinham certeza de que tinha algo a ver com Oswald; era certo que não havia nenhuma relação – nem por educação entre Sarah e o cunhado. - Quem vai ligar para ela? Todo mundo olhou para Cate. - O quê? Agora? O que devo dizer? - Acho que basta convidar para o enterro - sorriu Venetia. O telefone dela estava em uma agenda antiga. O toque do telefone pareceu vazio e rascante. - Bonjour - disse uma voz suave e elegante. - Bonjour, c'esi Cate Balcon. O sotaque mudou do francês perfeito para o inglês da rainha. - Ah, Cate. Mas que surpresa. - Ela fez uma pausa. - Sinto muito pela morte de Oswald. Fiquei sabendo pelo Serviço Mundial. - Então, já está sabendo - disse Cate, baixinho. - As coisas não estão muito fáceis por aqui neste minuto. - Já sabem o que aconteceu? - perguntou Sarah. - Dei uma olhada no noticiário e só se fala disso. Parece que existe algum tipo de sugestão de que seja uma morte suspeita. Cate ficou surpresa. Ela mal tinha ligado a televisão nem o rádio e não fazia ideia de como a imprensa estava tratando a notícia. - Nós mesmas não sabemos muita coisa. Vai haver um inquérito, depois o corpo será liberado e poderemos organizar o enterro. Claro que entraremos em contato para avisá-la sobre quando vai ser. - Vai ser adorável vê-las - disse a tia baixinho, apesar de Cate ter ficado com a sensação de que ela não ia querer ir ao enterro de Oswald. Um longo silêncio instalou-se entre as duas. - Para dizer a verdade, eu ia ligar para vocês - disse Sarah, ainda em voz baixa. - Para falar sobre a morte. Sobre o fato de os repórteres estarem dizendo que é suspeita... - Prossiga - disse Cate, curiosa. - Não, pelo telefone, não. Acho que o melhor é conversarmos pessoalmente. - Mas você está em Paris, não está? - respondeu Cate, um pouco atordoada. - Poderia vir até aqui? - Quando? - Quando pode vir? Aquilo era ridículo: por que ela se daria ao trabalho de fazer uma viagem até Paris em um momento como aquele? Mas Cate se viu concordando. - Hoje não vai dar. Acho que amanhã deve ter algum trem... - Muito bem. Avise-me quando vai chegar.


Cate ficou olhando em silêncio através da janela enquanto Sarah e ela se despediam. De repente, teve a certeza de que o assunto que a tia queria tratar com ela, fosse lá qual fosse, não a agradaria em nada.


45 O trajeto de táxi da Gare du Nord até o verdejante sétimo arrondissement de Paris demorava vinte minutos. Passava pela Opéra Garnier, pelo Hôtel de Crillion e pela majestosa Place de la Concorde, atravessava a Pont de l'Alma sobre as águas do Sena que escureciam ao crepúsculo e deixava para trás a torre Eiffel, toda cheia de luzinhas para o Natal na margem esquerda da cidade. Aquela era uma parte refinada da cidade, pensou Cate quando o táxi estacionou na pequena rua de Parc du Champ de Mars. Árvores negras com espinhos ladeavam a rua, cachorrinhos trotavam atrás dos donos chiques, praticantes de jogging passavam pela frente do prédio cor de creme com pórticos a caminho de espaços mais abertos e mais verdes. Cate conferiu o endereço anotado em sua agenda e dispensou o táxi. Cansada por causa da viagem a bordo do Eurostar, respirou fundo e apertou a campainha ao lado de uma minúscula placa de bronze que dizia "Holden-Jones". A porta se abriu com um estalo e ela entrou no elevador pequenininho com sua porta sanfonada antiquada e uma banqueta de veludo encostada em um canto. Espero que não esteja perdendo tempo, pensou enquanto o elevador subia aos sacolejos, no meio de uma escada em espiral, até alcançar o andar mais alto do prédio. A porta pesada de madeira do apartamento de tia Sarah estava levemente aberta quando Cate a alcançou. Ela empurrou a porta e entrou em um corredor com cheiro de lírios. - Bonjour - gritou ela. - É Cate. Estou na sala - disse uma voz fraca. - É só seguir em frente. Acomodada ao lado da janela de guilhotina comprida que dava vista para as luzinhas piscantes de Paris estava Sarah Holden-Jones, com um cocker spaniel inglês cor de creme e cobre a seus pés. A única lembrança que Cate tinha da tia era de uma senhora extremamente chique de cabelo escuro, que estava sempre fumando e tinha os dedos longos de pianista cobertos de anéis de diamante. Ela havia mudado, é claro. Cate pensou que devia estar com mais de 70 anos. O cabelo agora estava completamente branco, preso para trás com uma fivela de tartaruga em um coque apertado, ao passo que as camisas de chiffon parisienses de que Cate se lembrava tinham sido substituídas por tricôs soltos de cashmere e chinelos de couro macios e baixos. O rosto de Sarah abriu-se em um sorriso deliciado quando viu a sobrinha. Ergueu-se da poltrona Luís XV com a ajuda da bengala. - Não, fique sentada - disse Cate, apressando-se até a janela. - Não se levante por minha causa. A senhora voltou a se acomodar no assento e fez um gesto para a cadeira à sua frente. - Bom, então venha se juntar a mim aqui - sorriu e acariciou a cabeça do cachorro. Catherine, este aqui é Charlie. O cachorro apressou-se até onde Cate estava parada e começou a lamber suas botas. - Que simpático - sorriu Cate. - É um bom companheiro. Houve uma longa pausa. O que se diz a uma parenta que só se viu duas vezes e que não demonstrou praticamente nenhum interesse em conhecê-la?, pensou Cate, pouco à vontade. - Deve estar cansada - disse Sarah, começando a servir duas taças de Bordeaux de uma garrafa na mesa. - Será que uma bebida ajuda? Cate assentiu com a cabeça e tomou um golinho. - Sinto muito pelo seu pai - disse Sarah, depois de mais uma pausa. Cate ergueu uma sobrancelha. - É mesmo? - Ninguém deseja a morte de ninguém.


A sobrinha deu de ombros. - Bom, eu sei que ele nunca foi seu preferido. Do contrário, teríamos tido mais contato disse Cate. - Ficou difícil - disse Sarah, olhando através da janela e passando o dedo nodoso pela borda da taça. - Eu simplesmente não quis mais vê-lo depois da morte de sua mãe. Eu fiquei amargurada por ele ter tornado a vida dela tão triste e achava que se voltasse a me encontrar com ele... - A voz dela foi sumindo. - Bom, digamos que eu achava que, de algum modo, seria uma traição a Maggie. - Compreendo - disse Cate, reparando pela primeira vez como Sarah se parecia com fotos antigas da avó de Cate. - Mas poderia ter tentado nos ver quando saímos de casa... Sarah deu uma cutucada no pêlo de Charlie com a bengala e ele disparou pela sala. Lentamente se levantou e foi até uma escrivaninha de nogueira, sacudindo a cabeça no trajeto. - A beleza de se morar em Paris, minha querida, é que este se tornou o meu mundo. Fica bem próximo do que eu conheço e, ao mesmo tempo, bem distante... Eu me sinto conectada à minha antiga vida, mas, ao mesmo tempo, posso esquecer. - Ela se virou para olhar nos olhos de Cate. - Houve tantas ocasiões em que tive vontade de pegar um avião para Londres para ver vocês, as meninas - disse. - Ainda não me acostumei ao Eurostar... um trem por baixo do canal da Mancha? Non, non - sorriu, com um brilho maroto nos olhos. Deu as costas para se debruçar por cima da escrivaninha e, ao fazê-lo, tirou uma pilha de papéis e envelopes da gaveta. Retomou lentamente à poltrona e começou a ajeitar o conteúdo em uma pilha organizada em cima da mesa. - Só porque eu não vejo minhas sobrinhas, isso não significa que eu não sei o que vocês aprontam. Ela olhou com orgulho para Cate e entregou-lhe uma pilha de recortes de jornais e revistas. Havia fotos da Paris Match das garotas em festas glamourosas, resenhas dos filmes de Serena e dos livros de decoração de Venetia do The Times, além de páginas das revistas de Cate com sua assinatura ou sua fotografia, cada uma delas recortada com cuidado e amor. Cate devolveu-as à mesa e olhou para a tia. - Nunca pense que eu não me preocupo com vocês, Cate - disse ela com voz suave. Cate queria lhe dar um abraço, mas, sentindo-se pouco a vontade, simplesmente tocou de leve as costas de sua mão. - É bom vê-la - disse. Sarah sorriu, abriu os braços e puxou Cate para um abraço. Desarmada pelo gesto, Cate falou com a voz mansa, no ombro da tia. - Estamos encrencadas. Não sei o que fazer. Sarah olhou para ela com ar de quem entendia muito bem e assentiu. - Estamos sendo chantageadas. - Prossiga - disse Sarah. - Você sabe que meu pai morreu. O corpo dele foi encontrado no fosso... - Cate parou, sem querer pensar em tudo aquilo de novo. - Claro que tudo isso já nos abalou bastante, até que um amigo de meu pai, um escritor chamado David Loftus, apareceu em casa para nos dizer que Oswald fora assassinado. - E como é que ele sabe disso, se a polícia não pensa assim? – perguntou Sarah, seus olhos inteligentes brilhando. Cate baixou os olhos e começou a sacudir a cabeça.


- Loftus estava trabalhando em um livro com as memórias de papai e andou lendo nas entrelinhas. De algum modo, acha que nós todas tínhamos motivo. Ele diz que vai procurar a polícia com essas informações se não lhe dermos muito dinheiro. - Percebo. Mas isso só seria problema se vocês tivessem algo a esconder - observou Sarah. - Mas não temos! - berrou Cate, de repente. Então começou a corar, envergonhada de sua reação. Deu uma olhada para o rosto aberto e curioso de Sarah e respirou fundo. - É verdade que todas nós tínhamos uma relação difícil com nosso pai? É. Será que as memórias dele sugerem isso? É bem possível que sim. – Cate parou. - Mas matá-lo, absolutamente, não. Eu não matei, e acredito que minhas irmãs não tenham matado. Sarah reparou que as mãos da sobrinha tremiam de leve e esticou o braço para tocá-la e colocar fim ao tremor. - Nunca é tão simples quanto não ter nada a esconder, não é mesmo? - disse Cate, depois de uma pausa. - Claro que todo mundo é inocente até que se prove o contrário, mas a menor sugestão de escândalo que for não vai nos fazer nada bem. Temos carreiras. Nossas vidas estão sempre em evidência... - a voz dela foi definhando; pela primeira vez apareceu uma lágrima em seus cílios. Sarah deu tapinhas no ombro da sobrinha para reconfortá-la. - Não se preocupe, querida - disse. - Parece que o grosso do que esse tal de Loftus diz é claramente conjectura oportunista. No entanto... – pegou Cate pelo braço e conduziu-a através das portas duplas até seu quarto. Cate desejou que aquele quarto fosse dela. Jaquetinhas Chanel minúsculas estavam penduradas em cabides acolchoados; as superfícies estavam cobertas por porta-retratos de moldura prateada e grandes frascos de vaporizadores de perfumes. As paredes eram forradas de seda cinza-pombo e uma cama dourada dominava o centro do quarto. - Desculpe a bagunça - disse Sarah, sem prestar muita atenção, gesticulando na direção de uma pilha de roupas lindas e delicadas nas costas de uma cadeira. - Preciso pegar uma coisa. Cate sentou-se no edredom e ficou com os pés pendurados na beirada da cama, observando enquanto a tia remexia no fundo do guarda-roupa até finalmente tirar de lá uma caixa grande de madeira cor de creme. Sarah colocou a caixa na cama ao lado de Cate e suspirou. - Eu sabia que tudo isso viria à tona cedo ou tarde - murmurou, em seguida tirou uma camada de poeira de cima da caixa e abriu-a. - Era sobre isto que eu queria falar. Cate ficou em silêncio, esperando que ela prosseguisse. - Éramos chegadas, sua mãe e eu. Ela era a bonita. Eu era a sensata, a típica irmã mais velha; sempre me intrometendo para ver se ela estava se comportando. - Deu risada, feliz com a lembrança. - Mas quando vocês eram menininhas, sua mãe e eu mal nos víamos. Como sabe, Marcus, meu marido, era do corpo diplomático, e era enviado para todos os cantos do mundo, o que significava que eu tinha de ir com ele. Agora ela passava os dedos por pilhas de cartas escritas em um arco-íris de papéis coloridos. - Mas Maggie, sua mãe, adorava escrever cartas. Onde quer que eu estivesse, em Cingapura, Honduras, Lagos, pelo menos duas vezes por mês eu recebia alguma coisa pelo correio. E sempre sabia que era dela - sorriu. - Maggie nunca escrevia em papel branco. Dizia que era tedioso demais. – Deu mais risadinhas enquanto lia trechos aqui e ali, os olhos disparando de uma carta a outra. Sarah finalmente chegou a um envelope lilás desbotado e o colocou no colo.


"No começo, o casamento de Maggie e Oswald era bom. Ele sabia ser sedutor de verdade quando queria. No entanto, depois que Venetia nasceu, o relacionamento se deteriorou com rapidez. A vida deles juntos no jet-set estava acabada. Nada mais de uma viagem de última hora para Marrakech... pelo menos não para Maggie. Foi difícil para a sua mãe perder o peso que ganhara com a gravidez... era difícil naquele tempo, quando as mães não amamentavam, e seu pai a menosprezava e caçoava dela. Oswald adorava a vida luxuosa; acho que se ressentiu do fato de a família e as responsabilidades afetarem seu estilo. Começou a beber muito e depois a jogar em todos aqueles clubes refinados de Mayfair. Aquilo era tentador demais para um homem fraco e teimoso como Oswald. - A voz de Sarah transbordava de desprezo. "Ele ficava em Londres a semana toda, saindo com aquele grupo de amigos: Philip Watchorn, Nicholas Charlesworth, Jimmy Jenkins. Os jornais achavam que eles formavam um grupo muito glamouroso, e imagino que formariam, sim, se fossem jovens, livres e solteiros. Mas seu pai não era solteiro e começou a fazer com os amigos todas as coisas emocionantes que devia estar fazendo com sua mãe. Ele a negligenciou completamente... e também negligenciou as filhas.” Sarah tirou a carta do envelope e entregou a Cate, que passou as pontas dos dedos pela tinta azul-marinho com a caligrafia característica da mãe, cheia de redemoinhos. - Foi um período de muita solidão para a sua mãe - prosseguiu Sarah. - Oswald passava dias a fio fora de casa, eu estava em outro país e, àquela altura, nossos pais já tinham morrido. Em Huntsford, era difícil ter muitos amigos. Cate ergueu os olhos. - Então, mamãe teve um caso. Sarah assentia com a cabeça, lentamente. - Alguns, acredito. Um cavalheiro era amigo de seu pai. Alistair Craigdale. Oswald, sua mãe e os amigos dele estavam sempre no castelo de Craigdale, onde ele morava. Era um lugar maravilhoso para caçar, pescar, dar festas. Imagino que uma coisa tenha levado à outra. Alistair era terrivelmente sedutor... Cate soltou uma risada amarga. - O Assassino Craigdale? Ai, meu Deus. Ela se recostou para absorver tudo aquilo por um instante. Apesar de o assassinato de Gordy Spencer, um cavalariço do castelo de Craigdale, ter ocorrido antes de Cate nascer, aquele era um pedaço da história criminal que sempre a fascinara. Apenas o episódio de lorde Lucan o eclipsava como o maior escândalo das classes mais altas na década de 1970. Segundo os relatos, Alistair Craigdale, conde de Loch Lay, atirara no cavalariça e o matara a queima-roupa depois de desconfiar que ele tinha um caso com sua esposa. O fato de Oswald e Maggie estarem entre os visitantes do castelo naquele fim de semana só servia para deixar o caso ainda mais intrigante para Cate: não que a mãe ou o pai algum dia tivessem falado sobre aquele fim de semana, a não ser em termos vagos. - Foi uma época péssima - disse Sarah baixinho, tomando mais um gole de vinho. - Minha mãe teve um caso com Craigdale? - repetiu Cate, lentamente refletindo sobre os fatos. - Mas Alistair estava apaixonado pela esposa, não estava? Certamente o suficiente para matar um homem por ela. Sarah foi até a cozinha arrastando os pés e trouxe um prato de porcelana branca cheio de biscoitos adocicados de chocolate nas cores verde, rosa e marrom-clarinho. - Macaroon?


Cate sacudiu a cabeça, sem fome nenhuma. Sarah acomodou-se e prosseguiu com sua história. - Todo mundo achou que Alistair matou Gordy Spencer porque ele tinha um caso com Lama, sua esposa. Não foi o que aconteceu. Ele o matou porque o pegou com Maggie. - Ela fez uma pausa, lutando com as palavras seguintes. - Acredito que os pegou em flagrante. O copo de vinho na mão de Cate tremeu de leve e derramou uma gotícula mínima de vinho, como uma gota de sangue, no edredom de seda cinza. Agora Sarah tirava mais cartas da caixa branca e as entregava a Cate. Estive na casa de Craigdale de novo esta semana. Cada fim de semana lá parece melhor do que o anterior. O cavalariça lá é muito sedutor e lindo de morrer. Acho que estou apaixonada de novo. Pegou outra carta, datada de um mês antes do assassinato: Vou terminar tudo com Alistair. Sempre que os homens saem para caçar, vou para o estábulo com Gordy. Eu sei que é errado, cara Sarah, não me julgue, mas não consigo me conter. Gordon é tão gentil e bom, ele faz com que eu me sinta viva. Cate sacudia a cabeça. Que liberdade nos anos 1960 que nada: os integrantes do grupo de amigos dos pais obviamente iam para cama uns com os outros o tempo todo! - Chega, por favor, pare. - A ideia de um caso para manchar a memória sagrada da mãe já era bem ruim, mas dois casos? - Meu pai sabia? – perguntou Cate, nervosa. - Sobre Alistair? Ele descobriu pouco antes do assassinato. Maggie me ligou, histérica. Oswald havia descoberto. Ele a empurrara escada abaixo e parece que tinha ameaçado Alistair com bastante violência - disse ela baixinho. - Ele sabia ser mau. Cate viu quando a senhora de idade cerrou os dentes. Cate desceu da cama, foi até a janela e apertou as palmas das mãos contra o vidro. Olhou para o horizonte, focando-se levemente no contorno da torre Eiffel. Apesar de aquilo ser chocante e fascinante de uma maneira perversa, ela duvidava que tivesse alguma relevância em relação à morte do pai. - Está se perguntando por que eu pedi para que viesse me ver – disse Sarah, atrás dela. Cate virou-se e deu de ombros. - Bom, achei que tinha a ver com a morte de meu pai. O que aconteceu em Craigdale... não vejo relação, porque foi há muito tempo. Minha mãe morreu, Alistair morreu... - Será que ele morreu? - perguntou Sarah em tom suave. Cate olhou para ela, confusa. - Mas eu já ouvi a história uma centena de vezes - disse ela. – Depois que Alistair atirou em Gordon Spencer, desapareceu. O carro dele sumiu e reapareceu quatro dias depois, perto do lago Ness. Todo mundo pressupôs que ele tinha tomado a atitude mais honrosa e se afogado. - O lago foi todo examinado. Não encontraram nada - disse Sarah. - Mas o lago tem mais de quatrocentos metros de profundidade. Não conseguiram nem encontrar o monstro com todo o equipamento multimilionário que tinham - retrucou Cate, sem forças. - Provavelmente porque o monstro também não está lá. Cate se deixou cair na poltroninha ao lado da janela, confusa e cansada. Sarah juntou-se a ela e prosseguiu com sua história. - Alguns meses depois do assassinato de Gordon Spencer, seu tio Marcus e eu chegamos a Londres para passar alguns dias. Nós morávamos em Cingapura na época e estávamos a caminho do novo posto de Marcus, em Honduras. Como deve imaginar, eu estava


desesperada para ver Maggie. Sabia como as coisas tinham sido difíceis para ela. Primeiro Gordon morto, depois Alistair também. Cate olhou para Sarah com muita atenção, sentindo que uma reviravolta estava por vir. - Maggie foi até o meu quarto de hotel quando Marcus estava fora. Parecia sobressaltada, nervosa. E finalmente consegui arrancar tudo dela. - Arrancou o que dela? - Algo que ela nunca me contaria em uma carta. Cate continuou olhando fixamente para ela. - Maggie tinha recebido uma carta de Alistair. De Belize. Depois de seu desaparecimento. Era curta, em código, mas basicamente dizia que ele estava vivo e bem, mas que não poderia voltar a entrar em contato com ela por motivos óbvios. Cate ficou encarando a tia, tentando achar sentido em tudo aquilo. - Então, Craigdale não se matou? Sarah sacudiu a cabeça. - E isso significa que é bem possível que esteja vivo até hoje - disse ela. Cate mordeu o lábio. De repente, tinham um suspeito.


46 Cate apoiou o cotovelo na janela ao lado de sua poltrona da primeira classe no Eurostar. Agora disparavam túnel adentro e ela olhava a escuridão quase hipnotizada. Seu corpo parecia entorpecido, seus olhos secos de lágrimas. Tinha passado a noite na casa de tia Sarah, recostada na cama dourada antiga, ouvindo o ruído do trânsito parisiense, as buzinas desaparecendo até silenciarem na noite de inverno. Não tinha dormido nem por um instante. Sua cabeça estava cheia demais. Piscou quando o trem saiu do túnel do canal da Mancha e o cinza da paisagem inglesa apareceu. O telefone dela começou a tocar imediatamente, perdido no fundo da bolsa. - Cate? É Nick. Ela balbuciou um alô, incapaz de demonstrar qualquer entusiasmo, até para ele. - Liguei só para saber como você está... Ela sentiu a tentação de simplesmente desligar, mas, em vez disso, disse a ele: - Estive em Paris para resolver alguns assuntos. - Em Paris? O que aconteceu? - perguntou Nick, percebendo no mesmo instante que havia algo de muito errado. - Está tudo bem com você? Ela queria mentir para ele, mas já sentia as lágrimas quentes se acumulando em seus olhos. Olhou ao redor de si. Felizmente o vagão estava vazio e ninguém podia ver as lágrimas que lhe escorriam pelas bochechas. - Está tudo bem - disse ela, de repente com vontade de contar para alguém. - Mas agora realmente não posso falar. Ligo para você quando chegar em casa - disse baixinho. - Quando o trem chega? - perguntou Nick, ansioso. - Daqui a uns quarenta minutos. Olhe, eu ligo mais tarde. - Sabe de quem eu não gosto? - disse Camilla, chutando um monte de grama congelada com a bota de montaria. - De Michael Sarkis. - O que você tem contra putanheiros de idade avançada? – sorriu Venetia, enfiando as mãos mais fundo nos bolsos de seu casaco Barbour. As duas irmãs tinham ido dar um passeio pelo terreno de Huntsford para arejar a cabeça, mas estava tão frio que só conseguiram ficar com os dedos congelados. - Sabia que ele pediu a mão de Serena em casamento? - disse Camilla. Venetia ficou olhando para ela com os olhos arregalados. - Não! Quando? Caramba, por que não me contou? - Foi na véspera de Natal. Ele chegou a bordo da limusine dele com uma pedra gigantesca e chamou Serena para ir a Las Vegas. Cheio de classe - respondeu, sarcástica. - Acho que, depois do que aconteceu, ela não quis fazer alarde. - Não acredito - disse Venetia, lentamente. - Eu acredito - disse Camilla, erguendo uma sobrancelha. - Por quê? - Se Sarkis se casar com Serena antes de o bebê nascer, o filho deles vai ser herdeiro de Huntsford. - Fez um gesto com o braço ao redor das duas, na direção da casa e das centenas de acres de terreno com cara de cartão-postal inglês que se estendia diante delas. - De tudo isto. - Só se papai e Maria não tiverem um filho - retrucou Venetia, distraída. Camilla olhou para a irmã. - Bom, acho que agora isso não vai acontecer, não é mesmo? Venetia deu de ombros. Ainda não estava acostumada a falar do pai no passado.


- Então, o que você está dizendo? - Pense bem - disse Camilla, seu cérebro sagaz a toda. - Sarkis mata papai, casa com Serena e, efetivamente, assume o controle de Huntsford. Li em algum lugar que ele estava querendo se expandir na Grã-Bretanha e que esse lugar seria um hotel inglês interiorano perfeito. Ele esteve em Huntsford naquela noite. Tinha motivo e teve oportunidade. Venetia soltou uma gargalhada vazia. - Cam, você perdeu a cabeça? Michael pode ser muitas coisas: é impiedoso, com toda a certeza, mas não é assassino. Camilla virou-se para olhar para ela. - Como é que podemos saber? - Cam, você realmente precisa ler os jornais diários antes de começar a enfileirar suspeitos. - Como assim? - Michael Sarkis está no Daily Mail de hoje. Há uma enorme foto dele em alguma festa refinada em Londres na véspera de Natal. Não sei quanto tempo ele passou aqui tentando seduzir Serena, mas nas primeiras horas da madrugada, ele estava em Mayfair. Como pode ter matado papai se estava desfilando para as câmeras a quase cento e cinquenta quilômetros daqui? Camilla bateu o pé na grama congelada. - Que pena - disse, cheia de sarcasmo. - Eu realmente queria que tivesse sido ele. Nick já estava esperando no fim da plataforma quando o trem adentrou a estação. Enrolado em um casaco marrom de tweed e com um sorriso triste no rosto, ficou lá esperando até que Cate o alcançasse. Deu-lhe um abraço, envolvendo-a com o tecido do casaco. Pegou a malinha de roupas para uma noite dela e entregou-lhe um café para viagem enquanto caminhavam até o estacionamento em silêncio. Nick tinha um MG britânico antigo de corrida, verde. Os bancos eram baixos e apertados, e as pernas dos dois quase se encostaram quando eles se acomodaram nos bancos de couro preto. Enquanto Nick tomava seu cappuccino, Cate simplesmente ia lhe contando o que acontecera com David Loftus e o que descobrira em Paris. - O que você quer fazer agora? - perguntou ele, limpando um bigode de espuma branca do lábio. - Quero ir para casa. Você fica comigo? Serena sempre tinha gostado da idéia de fazer o papel de alguma detetive glamourosa em um filme de sucesso de Hollywood, e agora lá estava ela, recebendo a chance de ser a estrela de seu próprio mistério de assassinato. Mas é claro que havia motivos menos extravagantes para ela estar xeretando no escritório do pai. Precisava de outro suspeito. David Loftus podia ser uma cobra e um aproveitador, mas Serena tinha que aceitar o fato de que não parecia exatamente inocente devido ao recente desencadeamento de fatos. A polícia devia saber muito bem que a metade dos assassinatos era cometida por um integrante da família. Tinha que haver alguma coisa ali que afastasse as suspeitas dela e das irmãs. Mas as coisas não pareciam nada promissoras. Não havia quase nada nas gavetas da escrivaninha dele: canetas, papéis, catálogos de leilões de arte, uma pasta de correspondência relativa à Noite Musical de Huntsford, uma antiga fotografia em preto-ebranco de Oswald e sua mãe em um iate, amassada nas pontas e manchada de tinta azul. Serena pegou a foto e ficou pensando sobre o relacionamento dos pais. Sempre havia


suposto que devia ser frio e sem amor, mas aquela fotografia feliz e íntima parecia bem amada e manuseada. Ela deu de ombros: as idas e vindas e os altos e baixos do casamento de Oswald e Maggie Balcon era algo sobre o que nunca saberia. Serena olhou ao redor de si, examinando o resto do escritório. O único lugar que não tinha examinado era o baú de nogueira perto da janela. Ergueu a tampa pesada e tossiu quando uma nuvem de poeira subiu. Lá dentro havia coisa velhas de verdade: cadernos amarelados, contratos, cartas. Examinou os papéis e separou-os em pilhas, mas nada parecia interessante. Mas então, já perto do fundo, deparou com um envelope manchado e amassado com um endereço escrito à mão, incongruente entre todos aqueles documentos oficiais. Serena aprumou o corpo e tirou a carta do envelope. Só precisou ler algumas linhas para ver que era algo importante. Seu coração começou a bater mais forte e ela sibilou por entre os dentes. Caralho! Aquele cara realmente odiava o pai dela, pensou, virando a página para ver de quem era a carta. Apertou os olhos para decifrar a assinatura rabiscada e quase caiu dura. Era de Alistair Craigdale. Era do Assassino Craigdale. A viagem até Huntsford demorou um par de horas. As estradas estavam quietas e, dentro do carro, Cate e Nick estavam ainda mais quietos. A neve tinha parado, mas trechos de gelo revela dores espalhavam-se pelas laterais da estrada como espelhos despedaçados. Quando saíram da estrada principal e entraram na estradinha estreita que dava no centro do vilarejo de Huntsford, os olhos de Cate caíram no torreão alto da igreja que se projetava no céu de chumbo, encoberto por nuvens pesadas. Cate deu um tapinha no joelho de Nick. - Você se importa se pararmos um pouco? - perguntou. O MG ronronou no acostamento e ela apontou para o cemitério. - Minha mãe está enterrada aí, sabe? Será que a gente pode... Abotoaram bem os casacos enquanto caminhavam lentamente pelo terreno, esmagando a grama congelada. Cate parou na frente de uma lápide, onde havia um buquezinho de rosas amarelas ainda frescas. Cate ficou imaginando quem tinha ido até ali tão recentemente. Agachou-se e encostou nas pétalas, envergonhada por não ter ela mesma levado alguma flores para o túmulo da mãe. Apertou a mão contra a pedra fria. - Ele lhe deu uma vida horrível. Eu compreendo - sussurrou ela. - Não foi sua culpa. Nick colocou a mão no ombro de Cate e ela soltou um suspiro profundo, suas bochechas incharam como duas bolas de golfe cor-de-rosa. Foram até o muro que delimitava o perímetro do terreno da igreja e se sentaram em um banco. Cate podia sentir a pedra fria mesmo através do casaco grosso. A distância, ouviu-se o ruído de uma porta pesada se fechando. Na entrada da igreja estava uma senhora de casaco vermelho, carregando uma escova comprida. Quando a figura se aproximou, Cate reconheceu quem era. - Achei mesmo que era você - disse a senhora, aproximando-se do banco. Ela tinha cerca de 75 anos; seu cabelo era quase azul e estava preso em dois chumaços desajeitados, o rosto ancião era doce, mas todo enrugado. - Que estranho - prosseguiu a senhora. - Estava mesmo indo falar com você. Sinto muito por seu pai. Cate voltou-se para Nick. - Esta aqui é a senhora Graham - apresentou. - O marido dela foi o guarda-caça de Huntsford durante muitos anos. - Olhou para a senhora Graham. - Não esteve na festa de Natal, não é mesmo? Achei que os veria lá.


Uma nuvem de tristeza encobriu o rosto da senhora Graham. - Leonard morreu. Já está fazendo mais de um ano. - Oh, sinto muito - disse Cate. A senhora Graham fez um gesto na direção da igreja. - Sinto falta dele, mas eu me ocupo. Cuido da limpeza aqui. Trocaram sorrisos educados, percebendo que o assunto estava acabando. Ainda assim, a senhora Graham prosseguiu. - Eu ia passar na sua casa, mas você poderia vir até a minha. Seria melhor. Acho que deveria vir. Cate olhou para Nick, imaginando do que a senhora estava falando. - Tenho algo que preciso lhe entregar - disse a senhora Graham, sem dar detalhes. - Venha comigo, minha casa fica logo ali. Cate ficou apreensiva. - O que é? - Venha até minha casa. Eu lhe direi quando estivermos lá. Tenho certeza que uma boa xícara de chá faria bem a todos nós. Em silêncio, caminharam até a casa, um chalezinho cinzento com três janelas e uma porta de entrada azul bem reluzente, em uma fileira de casinhas cinzentas quase idênticas. No interior, era pequena e aconchegante. Um gato ruivo aproximou-se da senhora Graham e esfregou o pêlo contra o náilon marrom de sua meia-calça. Metade da sala estava tomada por uma árvore de Natal enfeitada com bolas douradas. Havia pelo menos cinquenta cartões de Natal pendurados com fitas por todo o lugar. - Posso oferecer-lhes algo para beber? - perguntou a senhora, tirando o casaco e pendurando-o em um gancho de madeira. - Não, está bem assim - respondeu Cate, ansiosa para ouvir o que a mulher tinha a dizer. A senhora Graham não ia se apressar. Foi para a cozinha para preparar uma xícara de chá para si, antes de se acomodar na frente deles em uma cadeira de palha. Cate reparou que ela tinha um pequeno envelope no colo. - Não sei o que é isso - disse, sacudindo a cabeça. - Apesar de eu quase ter aberto o envelope uma centena de vezes, devo dizer. - A senhora Graham deu um sorriso fraco para Cate e inclinou-se para a frente para lhe entregar o envelope. - Leonard passou um bom tempo doente antes de nos deixar - disse a senhora Graham em tom grave. - Cerca de uma semana antes de morrer, ele me deu isso e disse que era para eu cuidar da carta até que chegasse o dia em que tanto ele quanto Oswald Baleon estivessem mortos. Então, eu deveria entregá-lo a uma das filhas dele. - A senhora Graham sorriu. – Eu queria entregar para você, Cate. Sempre foi minha preferida - disse ela com muita gentileza. Cate passou alguns minutos conversando educadamente, então pediu licença para partir, e a senhora Graham fez questão que levasse consigo um pouco de geléia caseira. - As coisas vão ficando cada vez mais estranhas - disse Cate, quando ela e Nick pisaram na calçada. Estava começando a escurecer; o céu tinha um tom de azul-escuro e a silhueta das árvores se destacava. No MG de Nick, Cate rasgou o envelope e desdobrou a carta que estava lá dentro; datava de um ano e dois meses antes. À medida que cada palavra se desdobrava, os olhos azuis dela foram se arregalando, cheios de confusão e choque.


Se alguém está lendo esta carta, significa que tanto eu quanto lorde Oswald Balcon estamos mortos. Por favor, perdoe minha covardia por deixar a revelação desta informação só para agora. Talvez eu seja mesmo um covarde, mas isto é algo que preciso dizer. Só me sinto mais seguro fazendo esta revelação agora que não estou mais aqui. Pelo menos na morte, posso me livrar do meu fardo. Há 11 anos, eu enterrei um corpo. Meu patrão, Oswald Balcon, pediu que eu o fizesse. A filha dele, Camilla Balcon, tinha atropelado um homem com seu carro, e o homem morrera. A vítima era um velho andarilho que às vezes passava pelo vilarejo. Oswald disse que a vida dele não importava e que deveríamos esconder o corpo para proteger a vida de sua filha. Eu tinha medo de Oswald, por isso concordei em ajudá-lo. Isso não é algo de que me orgulhe. Arrependo-me do que fiz mais do que de qualquer coisa na vida. As palavras de Oswald pesaram sobre mim durante todos esses anos. Nenhuma vida não vale nada. Toda vida significa muito, seja a pessoa pobre ou rica. No entanto, Oswald foi bom para mim e para a minha família desde aquela noite. Por isso eu sou grato, e por isso não quis contar para ninguém antes que lorde Balcon também estivesse morto. Mas com a aproximação da minha própria morte, preciso relatar o acontecido a alguém. Faça o que bem entender com esta informação. Tenha misericórdia com Camilla Balcon. Ela era jovem, foi um acidente, e o pai insistiu para que fosse encoberto. Camilla estava desesperada para procurar a polícia, mas Oswald insistiu para que se calasse. O que ela podia fazer? O que qualquer um de nós dois podia fazer? Este é um segredo terrível, que carrego comigo para a cova. Mas, por favor, acredite que estou dizendo a verdade. Espero que as pessoas possam entender o que eu fiz. Com sinceridade, Leonard Graham O papel tremia na mão de Cate quando ela o entregou para Nick ler. - Meu Deus - disse ele baixinho, sibilando por entre os dentes. Cate dobrou a carta e guardou-a no bolso. - Acho que é melhor mostrarmos para Camilla.


47 Camilla estava sentada à escrivaninha de mogno ao lado da grande janela sextavada de seu quarto; a meia-luz do fim da tarde a banhava de sombras. Havia uma pilha de arquivos à sua frente, junto com um caderno aberto, e ela segurava uma caneta, pronta para escrever. Quando ouviu a porta abrir, virou-se e viu Cate. - Olhe só para mim, tentando trabalhar - disse ela, levemente acanhada. - Viciada em trabalho - disse Cate, dando um sorriso fraco. Camilla largou a caneta e fez a cadeira girar para ficar de frente para Cate. - Então, o que aconteceu em Paris? - perguntou ela. - Achei que você telefonaria. Vamos chamar Serena e Venetia? Cate ficou parada à porta, pouco à vontade, e sacudiu a cabeça, sem saber muito bem se devia entrar ou não no quarto. - Não - disse baixinho. - Vamos conversar nós duas. Camilla franziu o cenho ao detectar uma expressão de ansiedade inconfundível no rosto da irmã. - Qual é o problema? - perguntou. No caminho do vilarejo até o castelo, a confusão de Cate se transformara em raiva. Quando lera a carta pela primeira vez, tinha sido tomada pelo pânico. Mas examinando-a mais de perto, a ideia de que Camilla estivesse por trás daquilo tudo simplesmente lhe parecia ridícula. Obviamente era mais provável que Leonard Graham tivesse atropelado o pobre homem pessoalmente e agora simplesmente quisesse culpar outra pessoa, jogando uma década de culpa na cabeça de algum pobre inocente. Mas por que Camilla? Por que escolhê-la? E será que ela sabia algo a respeito do assunto? Cate avançou quarto adentro e sentou-se na cama. Queria que Nick estivesse ao seu lado para ajudá-la, mas sabia que precisava fazer isto sozinha. Olhou para Camilla sentada à escrivaninha, tranquila e refinada até mesmo de jeans e camiseta, e de repente a confiança na irmã vacilou. Camilla tinha, sim, um ar de estrela. Não da maneira óbvia de "olhe só para mim" de Serena, mas uma presença marcante, calculada e poderosa que combinava perfeitamente com uma carreira de respeito, como a de política ou advogada: exatamente o tipo de carreira que desabaria à menor sugestão de escândalo. As dúvidas tomaram conta dela em um jorro. Talvez tivesse sido por isso que Camilla havia sido favorável a pagar Loftus. Não tinha exatamente se oferecido para entregar o dinheiro, mas, pensando em retrospectiva, ela não o enfrentara nem lhe dissera para se danar com seu plano de chantagem. Cate sentiu-se enjoada. - Cam, acho melhor ler isso aqui. Ela se inclinou e entregou-lhe o envelope velho. - O que é isso? - perguntou Camilla, desdobrando a carta e começando a ler. - Encontramos a senhora Graham - disse Cate, apressada, repentinamente com vontade de explicar logo tudo. - Ela me entregou a carta. Tenho certeza de que não passam de mentiras, Cam. Não sei o que Leonard Graham tinha contra nós, mas achei que era melhor você ver isso. Enquanto observava a irmã lendo, viu a cor e a segurança se esvaírem do rosto de Camilla. O coração de Cate ficou pesado como chumbo. - Ah, Cam, você não... Camilla dobrou a carta e colocou-a com cuidado em cima da escrivaninha. Ficou olhando para o chão, concentrada no redemoinho vermelho do tapete. Demorou alguns minutos até que ela falasse.


- Era sexta à noite, eu estava voltando de Oxford - começou, devagar. - Você estava nos Estados Unidos na época. Venetia tinha se mudado para Londres e Serena ainda estava na escola. Papai tinha pedido para que eu viesse para casa por algum motivo. Ia dar uma festinha e queria que uma de suas filhas não tão preciosas assim estivesse presente, provavelmente. Eu me lembro de que era o último dia de aula do primeiro bimestre. Eu queria ficar na faculdade, mas papai insistira para que eu voltasse para casa. - Fez uma pausa e olhou para a janela. - Eu ainda nem tinha me afastado muito de Oxford quando começou a chover forte. Ficou ruim mesmo... era uma noite horrível. Estava escuro e eu corria, porque estava atrasada. - Os olhos de Camilla começavam a se encher de lágrimas, sua pose altiva foi se dissolvendo. - Eu já estava quase chegando a Huntsford quando aconteceu. Eu me lembro de que os limpadores de para-brisa não estavam funcionando muito bem e deixavam o vidro todo manchado. A luz estava ruim, acho, e eu também estava cansada... Quando me dei conta, ouvi uma batida. - Ela se virou para Cate, com olhos suplicantes. - Eu juro que não o vi, Cate, não vi. Saí do carro. Eu tinha subido em um barranco, lá no fundo do terreno, sabe, em Greenbank Lane. Era aquele homem, aquele mendigo que às vezes víamos no vilarejo. Nós o chamávamos de Velho Tom. Cate assentiu. Ela se lembrava. Era um velho com um casaco sujo que estava sempre bêbado e que parecia se deleitar assustando crianças. - Ele estava no chão, do lado da estrada. Eu sabia que estava morto. - Agora a voz de Camilla tremia de verdade. - Tinha sangue no farol e escorrendo da orelha dele. Camilla levou a mão ao rosto, como que para demonstrar. Cate reparou que seus dedos tremiam violentamente. - Eu não sabia o que fazer - disse ela, agora já aos soluços, sem compostura nenhuma. Liguei para casa do telefone público no fim da alameda. Os convidados de papai não tinham chegado, e ele apareceu vinte minutos depois com o senhor Graham... naquela época, ele ainda era o guarda-caça. Papai me mandou entrar no carro e ir para casa de uma vez, que ele resolveria o assunto. - Você não ligou para a polícia? - perguntou Cate, já conhecendo a resposta. - Fiz essa pergunta a papai quando ele voltou para casa, cerca de uma hora depois. Ele disse que faria a situação desaparecer. - Então, você não ligou? O queixo de Camilla afundou no peito, como se todo o seu corpo estivesse consumido pela culpa. - Eu queria ligar. Mas eu estava com tanto medo, Cate... Com medo de tudo. Com medo de papai. Ele disse que eu precisava pensar na família, que eu estragaria tudo para todo mundo. E eu quis acreditar nele, quis acreditar que tudo ficaria bem se eu não dissesse nada. - Ela terminou de falar bem baixinho, as lágrimas escorrendo pelas bochechas. Cate foi até ela e deu-lhe um abraço sem muita convicção. O gesto fez com que ela se sentisse culpada, mas nunca tinha visto Camilla chorar. - O que você vai fazer? - Camilla perguntou, erguendo os olhos e buscando os de Cate. - Não se preocupe - sussurrou Cate. - Vamos resolver tudo. Camilla de repente aprumou as costas e seus olhos voltaram a ficar alertas ao perceber a implicação mais ampla de sua confissão. - Ah, Cate, eu sei o que isto parece, mas eu não matei papai. - Eu sei - respondeu Cate, tentando desesperadamente não pensar em como aquilo fazia a irmã parecer culpada. Ao ver a dúvida de Cate, Camilla a agarrou pelo braço.


- Cate, você tem que acreditar em mim - disse ela, com urgência na voz. - Esta coisa me crucifica todos os dias e, de algum modo, eu mantive o segredo. Mas eu nunca mataria alguém para que continuasse assim. Eu não mataria o meu pai. Eu juro. Cate acreditava nela; queria acreditar nela. Por um segundo, pensou no que teria feito na situação de Camilla, uma adolescente apavorada e confusa que, em um momento descuidado, destruíra a promessa de sua vida, e a quem fora oferecida uma saída, se ela mantivesse tudo em segredo. Era um dilema moral sobre o qual Cate nem queria pensar. Finalmente, envolveu a irmã com um abraço apertado. - Eu pareço tão culpada, Cate, eu pareço tão culpada - soluçou ela. - Não se preocupe - disse Cate, surpresa com a imposição da própria voz. - Vamos chegar até o fundo disso, vamos mesmo.


48 - Espero que isto não seja uma perda total de tempo - bocejou Camilla, acompanhando um mapa de estrada com o dedo. - Espere. Acho que deveria-mos ter pegado à esquerda há uns três quilômetros. - É você que está dando as indicações, estou confiando em você – disse Venetia, irritada, de detrás do volante de seu 4x4 azul-marinho. As duas estavam bem irritadiças, pois estavam na estrada desde as sete da manhã para fazer o longo trajeto até Derbyshire. A beleza árida de Peak District combinava com o humor delas, com suas encostas verde-oliva, os campos vazios, os muros de pedra cobertos de geada, a neve cobrindo os picos distantes como um véu católico. Depois da confissão de Camilla e das revelações sem fôlego de Serena a respeito da carta de Alistair Craigdale, Cate tinha convocado um conselho de guerra entre as quatro irmãs para examinar as evidências. Além de Craigdale possivelmente ainda estar vivo, a carta que Serena encontrara parecia sugerir que o conde assassino nutria um ódio quase mortal por Oswald. Escrita com a mão trêmula e cheia de ameaças e promessas feias, a carta de Craigdale confirmava o que tia Sarah contara a Cate em Paris: que Oswald tinha descoberto que Maggie e Craigdale estavam tendo um caso e confrontara Alistair a respeito do assunto, alertando-o a se afastar da esposa. Pelo tom ameaçador da carta, Craigdale não tinha gostado daquilo nem um pouquinho. O carimbo do correio datava de pouco depois de Craigdale ter matado o cavalariço. Cate ficou imaginando se o amor de Alistair por Maggie e o ciúme o haviam levado a tomar atitudes extremas naquela ocasião também. Depois de um pouco de discussão, as garotas resolveram que precisavam saber mais a respeito do caso Craigdale, ainda que fosse apenas para desviar o dedo da suspeita de cima delas. Entraram em uma onda de atividade frenética. Camilla sugeriu que falar com o investigador de polícia responsável pelo caso seria um bom ponto de partida. Nick tinha um amigo na editaria de cotidiano do Sunday Times e, em duas horas, elas já tinham um nome inspetor Jim Dalgleish -, agora aposentado em Great Asquith, Derbyshire. Às dez da noite, já tinham ligado para o inspetor de polícia aposentado; ele pareceu irritado por ter sido tirado da cama, até descobrir que era uma irmã Balcon que estava ligando e queria conversar sobre Craigdale. Ele as convidou para uma visita imediatamente. - Deve ser aqui - disse Carnilla, apontando para a placa, enquanto o 4x4 de Venetia fazia uma curva bem fechada. Great Asquith era pouco mais do que uma rua de casinhas, e a de Jim Dalgleish ficava no fim da fileira de imóveis geminados. A casa era construída de pedra cor de mel, uma coroa de azevinho estava pregada à porta vermelho-bombeiro e um espiral de fumaça escapava da chaminé para o céu pesado. O inspetor aposentado Jim Dalgleish atendeu à porta. Devia ter mais ou menos a mesma idade de Oswald, mas tinha envelhecido de maneira bem mais acentuada. Calças desbotadas de tweed penduravam-se em um corpo magricela, com meias marrons esgarçadas despencando sobre os chinelos xadrezes. Um pequeno vira-lata latia alegremente para as novas visitas enquanto ele as convidava para entrar. Ele desligou a televisão e ofereceu um sofá puído para as moças sentarem. - Ficamos surpresas de encontrá-lo assim tão ao sul - disse Venetia, feliz pela viagem só ter durado quatro horas, não dez. - Achamos que estaria na Escócia. Dalgleish sorriu. - Por causa do nome? Não, eu sou mesmo desta região. Minha mulher também é daqui. Fazia sentido voltar depois da aposentadoria. Aceitam um chá?


As moças sacudiram a cabeça. Andavam tomando muito chá. Dalgleish recostou-se em sua poltrona com ar oficial, os olhos brilhantes e observadores. - Então - começou ele, abruptamente. - Querem saber mais a respeito de Craigdale? Suponho que seu pai lhes tenha contado a história ao longo dos anos. Sinto muito, aliás disse ele, apontando para a tela apagada da televisão. - Eu vi no noticiário. Parece que não falam de outra coisa no momento. - Obrigada. E, sim, conhecemos um pouco a história de Craigdale - disse Camilla, com cuidado. - Só queríamos saber qual era seu ponto de vista. - Por que querem saber sobre Craigdale agora? Aquele senhor de idade ainda era astuto. Camilla olhou para Venetia: nenhuma das duas sabia o quanto deviam revelar ao desconhecido. Dalgleish era um policial aposentado, mas sem dúvida ainda teria conexões na força. - Só queríamos descobrir tudo sobre o passado do nosso pai – disse Venetia, ciente de que seu argumento parecia fraco. Dalgleish pareceu compreender que ela estava escondendo alguma coisa, mas deixou passar. - Não sei o quanto vocês já sabem - disse ele, os olhos começando a faiscar, como se fosse um imenso prazer contar aquela história mais uma vez. Tomou um gole de chá e limpou o lábio superior. - Lorde Alistair Craigdale era um dos aristocratas mais glamourosos da Escócia. Desapareceu depois que Gordon Spencer foi assassinado em sua propriedade residencial, o castelo de Craigdale... meu Deus, faz quase trinta anos - relembrou ele, olhando as duas mulheres nos olhos. - Craigdale era um ótimo anfitrião. Naquele fim de semana, toda a turma dele, inclusive as esposas, estava lá para um fim de semana de caça. Naquela tarde, os homens estavam terminando a caçada e voltando para a casa, mas Craigdale se adiantara ao grupo. A moça que trabalhava no estábulo tinha visto Alistair e Gordon discutindo; então, cerca de trinta minutos depois, Spencer foi encontrado morto no estábulo com uma bala bem no peito. A bala correspondia exatamente às balas disparadas pela espingarda de caça de Craigdale. Não havia dúvidas de que o responsável tinha sido ele. Spencer estava tendo um caso com a mulher dele, Laura. Levado pelo ciúme enlouquecido, Craigdale matara Gordon. Estava tudo muito claro. Venetia deu uma olhadela de viés para Camilla. Até então, Dalgleish não tinha lhes contado nada de novo: sua história encaixava com tudo que tinha sido escrito sobre o caso na imprensa. - Então o caso ficou mais obscuro - prosseguiu Dalgleish, em tom mais grave. - Craigdale desapareceu quase imediatamente depois do assassinato. Antes que alguém tivesse tempo ou... devo dizer... antes que alguém se desse ao trabalho de chamar a polícia. - Como assim, "se desse ao trabalho"? - perguntou Camilla. - A questão nunca foi realmente quem matou Gordon Spencer: isso estava bem claro e definido - disse Dalgleish. - A questão era: O que aconteceu depois? O carro de Craigdale foi encontrado nas margens norte do lago Ness, dias depois. As águas foram examinadas, é claro, mas nunca encontramos nada. A profundidade lá é de mais de quatrocentos metros, sabiam? Todo mundo achou que ele tinha cometido suicídio. - E o que o senhor achou? - perguntou Camilla, ciente de que ele pensava diferente. - Eu nunca tive nenhum fato para corroborar o que contarei a vocês... nada além da minha intuição de policial - disse ele, com um sorriso torto. - Mas sempre fiquei achando que os amigos dele sabiam muito mais do que declararam nos interrogatórios. Demoraram tanto


para chamar a polícia que tem de ter havido algum tipo de acobertamento. Acredito que os amigos o esconderam e o protegeram por muitos anos depois do acontecido. Possivelmente, isto ainda está acontecendo. - O que lhe deu tal impressão? - perguntou Venetia, curiosa. - Como eu disse, é intuição de policial. Peguei o depoimento de todos, mas sempre achei que não estavam tão aborrecidos quanto deveriam estar se um amigo íntimo tivesse acabado de cometer suicídio. No começo, achei que era apenas a presunção típica da aristocracia, mas a coisa simplesmente ficou me incomodando. Então descobri que alguns dos amigos de Craigdale lhe deviam muito; possivelmente o suficiente para arriscar a própria reputação para ajudá-lo. - Como assim? - perguntou Venetia. - Sabiam que Philip Watchom e Craigdale eram amigos em Oxford? Watchom não tem família rica, como finge ter, e Craigdale deixou que morasse com ele sem pagar aluguel quando foram morar fora do alojamento estudantil, no segundo ano de faculdade. Ele era quase um benfeitor de Watchom, e dava para ver que Watchom era imensamente grato a ele. Craigdale também foi um dos primeiros investidores no clube de Nicholas Charlesworth em uma época em que o jogo era considerado um empreendimento arriscado e salvou a empresa de Jimmy Jenkins quando estava quase indo à falência. Na época em que Craigdale desapareceu, todos os três eram poderosos, ricos, bem-sucedidos e bem conectados. Estavam todos em posição propícia para tirá-lo do país. Para mim, foi a hora da recompensa de Craigdale. Camilla e Venetia não deixaram de notar que o pai não fora mencionado, apesar de fazer parte do coração do grupo social de Craigdale. - E o nosso pai? - perguntou Camilla, imaginando que tipo de favor ele poderia dever a Alistair Craigdale. Oswald Balcon agia como se não devesse nada a ninguém. - Oswald? Não sei dizer - respondeu Dalgleish, pensativo. - Tive a impressão de que ele não era tão próximo de Craigdale quanto os outros. Ou, para ser mais exato, ele tinha menos motivo para estar em dívida com ele. Venetia teve que morder a língua para se segurar e não contar para ele que Maggie Balcon estava tendo um caso com Craigdale. - O senhor acha que algo nisso tem a ver com a morte do nosso pai? - perguntou ela. - Ah, então foi por isso que vieram aqui - sorriu Dalgleish. - Não, para ser sincero, nem considerei esta possibilidade. O pai de vocês não escorregou do telhado e caiu, pura e simplesmente? - Sim - respondeu Camilla, ríspida. - Foi um acidente terrível. Mas Venetia queria arrancar mais informações dele. - O senhor acha que o Assassinato Craigdale pode ter alguma relevância hoje? - Relevância? - repetiu Dalgleish, franzindo a testa. - Bom, aconteceu há tanto tempo que eu não sei dizer se "relevante" é a palavra mais adequada a se usar, querida. O único impacto que posso imaginar pode ser sobre os amigos de Craigdale. Se eles realmente o acobertaram, e se algum dia foram descobertos... Bom, homens ricos daquele jeito, importantes daquele jeito, não querem fantasmas desse tamanho para voltar a assombrá-los. O toque estridente do celular acordou Serena de sua soneca leve da tarde. - Alô? - atendeu, sonolenta, ajeitando a manta de cashmere na qual estava enrolada. - É Michael - disse a voz.


Serena deu um leve suspiro. Ela estava tentando apagar a reaparição dramática dele na festa, ciente de que deveria dispensá-lo de cara, mas sem ser capaz de lidar com aquilo naquele exato momento. - O que você quer? A intenção dela não era ser grosseira, mas simplesmente não estava com ânimo para aquilo. - Um carro vai chegar a Huntsford daqui a cerca de vinte minutos. Quero que entre nele e venha me ver. - Michael, por favor. Estou grávida de oito meses. Estou exausta... - Vamos lá, Serena, acho que você vai gostar. Ela abriu os olhos: a curiosidade a despertara. - O que é? - Só entre no carro que eu lhe mostro. Estavam se dirigindo a Londres; pelo menos disso ela sabia. Mas o motorista do Mercedes não quis dizer exatamente onde ela se encontraria com Michael. Serena recostou-se no banco de couro macio e ficou alisando o tecido do vestido escuro de jérsei. Ela tinha se vestido em reconhecimento ao código do luto, para o caso de ser avistada por paparazzi. Estola de mink cor de ébano, bolsa Chanel preto-carvão, brincos de pérolas negras nas orelhas, o cabelo preso para cima com uma fivela de madrepérola. Estava bonita, mas continuava se sentindo cansada. A luz do dia ia sumindo do céu e nuvens rosadas pairavam lá em cima. Então a rodovia se transformou em subúrbio, e eles já estavam às margens do Tâmisa. - Estamos quase lá, senhorita - disse o motorista. Para onde estamos indo?, pensou Serena, olhando através da janela com vidro fumê. O carro estacionou na frente de um prédio de apartamentos praticamente todo de vidro, com aparência cara e vista para Chelsea Harbor. Serena tinha vagamente tomado consciência do empreendimento imobiliário prestigioso enquanto estava sendo construído. Discreto, seguro, exclusivo, agora era a residência de diversas celebridades e dos superricos de Londres. O motorista digitou um código de segurança na porta e fez um gesto para que ela entrasse. - Último piso - disse a ela. Aquele era um homem que não desperdiçava palavras, pensou Serena, sorrindo para si mesma ao entrar no elevador prateado. A porta se abriu com um chiado para um lobby espaçoso com paredes forradas de couro cor de chocolate. Uma porta na outra ponta do lobby estava levemente aberta. Serena empurrou-a com delicadeza e entrou em um enorme espaço residencial. Era só uma casca, sem mobília, mas que casca! Tapetes grossos cor de ostra, enormes portas de nogueira, uma enorme cozinha americana em tons de creme e cromado, e uma parede de vidro do chão ao teto que tinha uma vista esplêndida para o rio e para Chelsea. Ao ouvir passos atrás de si, ela se virou e viu Michael usando um terno cinzaescuro, segurando duas taças de champanhe. - Gostou? - É fantástico - disse Serena, ainda olhando ao redor de si para absorver cada detalhe. O apartamento ocupava toda a largura do prédio e, pela aparência da escada em espiral no canto, era dúplex. - É seu - disse Michael. O pulso de Serena acelerou. - Meu?


- Bom - respondeu Michael, pousando as taças no balcão da cozinha e se aproximando para abraçá-la. - É seu se você se casar comigo. Serena tomou fôlego. Já devia ter adivinhado. Michael estava acostumado a conseguir tudo o que queria nos negócios e na vida. Ela não tinha aceitado seu pedido de casamento na festa, e esta era a maneira dele de subir a oferta. - Michael - disse ela em tom suave, sacudindo a cabeça. - Você não pode me subornar para casar com você. É uma decisão importantíssima, e precisamos fazer o que for melhor para o nosso filho. - Isto aqui não é suborno, é presente de casamento - disse Michael, abrindo os braços em um gesto que mostrava a grandiosidade do apartamento. - Eu sei que você não estava feliz de verdade em Nova York, então achei que podíamos morar aqui parte do ano. Quero mesmo expandir minhas operações na Europa. Serena, nós podemos fazer isto dar certo. - Ele colocou os braços ao redor dela e passou as mãos pelas curvas de seu corpo, enviando choques de desejo que a transpassavam. Apesar de ela ter tentado ignorar o pedido de Michael no decorrer dos últimos dias, era uma ideia que se recusava a ser suprimida. Aquele ano tinha sido terrível para ela, e passara meses colocando toda a culpa em Michael. Mas ela não era nada além de prática, e sabia que se Michael tinha sido a razão de todos os seus problemas - a separação de Tom, a gravidez não-planejada, a carreira afundada -, também poderia ser a solução. A raiva incontrolável que sentira em Cannes amainara lentamente e tinha sido substituída por outra coisa: medo. A ideia de que sua vida podia continuar na mesma trajetória descendente a apavorava. Serena queria ser alguém, não uma ninguém. Não podia suportar a idéia de viver no ostracismo. Michael puxou a cabeça dela para seu ombro. O cheiro dele era bom: de limão e almíscar. - Vamos lá, Serena. O helicóptero está no heliporto de Battersea. Podemos pegar o jatinho e ir para Las Vegas. Vamos fazer isto agora - disse ele, apertando as mãos dela. - Michael, meu pai acabou de morrer - disse Serena, afastando-se com delicadeza para olhar nos olhos escuros dele. - O enterro é daqui a uma semana. E, de todo modo, ainda preciso pensar sobre o assunto. - Vamos só casar e pronto - repetiu ele. - Oswald morreu, mas isso não pode impedi-la de viver a sua vida. - Michael, por favor. - Serena, quero você. Para sempre. - A voz dele era suave, mas tinha um tom de aço. Estava fazendo uma oferta que ela não podia recusar. Uma montagem de imagens dos últimos dez meses passou por sua mente: perda, tristeza, traição. Ela acariciou a barriga. Vida nova. - Diga que sim, Serena. Ela respirou fundo. - Sim - sussurrou. Tom Archer pegou o telefone de novo. Durante os últimos 15 minutos, ele tinha ficado pairando por cima do aparelho: pegava o fone, olhava para o teclado e então colocava no gancho de novo, incapaz de realmente fazer a ligação. Xingou a si mesmo e então se preparou: - Vamos lá, Tom, vamos lá - resmungou. Pegou o telefone e rapidamente digitou o número do castelo de Huntsford. Ele já tinha tentado ligar para o celular de Serena, que aparentemente não estava mais em uso.


- Por que estou fazendo isto? Por quê? - perguntou a si mesmo em voz alta. Talvez fosse a encheção constante de Nick para que ligasse para Serena ou talvez fosse o Natal que realmente o estivesse amolecendo. De todo modo, havia mil razões para nunca mais entrar em contato com Serena... e um único motivo para fazê-lo: ele queria escutar a voz dela. Apesar de tentar evitar, acompanhara as notícias sobre a morte de Oswald de maneira frenética, desde o início. A imprensa tinha enlouquecido com a história - não parava de mencionar teorias absurdas sobre suicídio, assassinato e decadência alcoólica -, e Tom se perguntava como a ex-namorada estaria lidando com mais aquele trauma em sua vida. Oswald tinha sido um canalha difícil, mas Serena o amava, e disso ele sabia. Caminhou de um lado para o outro, o telefone colado à orelha. Seu estômago dava piruetas enquanto ele escutava, pacientemente, o telefone tocar. Finalmente, ouviu uma voz. Era a senhora Collins. - Ah, alô. Será que posso falar com Serena? A voz da senhora Collins era reservada: tinha passado os três últimos dias dispensando ligações da imprensa. - O momento não é adequado. Quem está falando? - É Tom. Tom Archer. Como vai, senhora Collins? - Ah, Tom. Claro - disse a senhora Collins, feliz da vida por estar falando com o astro novamente. - Creio que a senhorita Serena foi há pouco para Londres. Um carro veio buscá-la. Não a pegou por um minuto. - Ah. Sabe quando ela volta? - Não faço ideia. Mas posso deixar um recado para dizer que ligou, e tenho certeza de que ela retomará assim que possível. - Não. Não vou deixar recado - disse Tom. - Mas, bem, feliz Natal para a senhora. Tom desligou o telefone com cuidado, imaginando para onde ela tinha ido, e com quem, perguntando a si mesmo se algum dia ela se daria ao trabalho de retornar a ligação dele, conjecturando se não tinha demorado demais para fazer alguma coisa. O Mercedes serpenteou ao longo de Cheyne Walk, passando pela longa fileira de casas de tijolinhos vermelhos enquanto avançava a passo de lesma. Já tinham feito um desvio até o apartamento de Serena para que ela pegasse o passaporte e uma mala pequena com suas coisas, e Michael estava ficando impaciente. - Serena, por favor, apresse-se! - explodira Michael, nervoso, enquanto Serena remexia no guarda-roupa. - Podemos comprar todas as roupas que você quiser quando chegarmos a Las Vegas. De volta à margem do rio, o trânsito estava parado como sempre e tinha começado a chover. Michael fechou o punho de frustração quando o carro ficou preso em um engarrafamento. - Vamos lá, ande - rosnou ele. Serena apoiou a cabeça na janela e, olhando através dos pingos de chuva, viu, surpresa, que tinham parado bem na frente de sua antiga casa em Cheyne Walk. Havia luz acesa na janela da frente, o contorno de uma árvore de Natal e uma guirlanda de azevinho farta na porta da frente. Parecia uma casa aconchegante, cheia de vida, feliz. E também tinha sido assim quando ela morava lá, pensou, repentinamente tomada por uma onda de arrependimento. Tom Archer. Desta distância, dava para ver como as coisas tinham azedado entre Tom e ela já para o fim, como tinham se tornado complacentes. Os dois haviam deixado de levar o outro em


consideração e tinham negligenciado os cuidados com a chama do relacionamento, de modo que permanecesse sempre acesa. Mas tinha havido muitos momentos felizes naquela casa: lendo roteiros na cama, migalhas de croissant e geléia sujando os lençóis, ou simplesmente deitados juntinhos à noite, enroscados, vendo a ponte Albert piscar. E houvera ainda as festas lendárias, com as margueritas horrorosas de Tom e o karaokê ainda pior. Ela sorriu e ficou imaginando onde ele estaria agora. E com quem. Aquela ideia a deixou enjoada. O motorista virou o carro para um lado e começou a costurar no meio do trânsito, encontrando um caminho com muita destreza no meio do engarrafamento; dez minutos depois, já estavam no heliporto. Michael tomou o braço dela e conduziu-a para um pequeno terminal, até a base de pouso e decolagem de concreto, onde as hélices do helicóptero azulescuro da Sarkis Corporation já giravam. Michael saiu correndo na frente, abaixando a cabeça para se proteger do vento das hélices, e abriu a porta do helicóptero para falar com o piloto. Serena hesitou e ficou parada. - Serena! Venha! - gritou Michael para ela. - Está na hora de partir! - Michael, eu... Sarkis virou-se para ela com um sorriso cheio de segurança no rosto. - Vamos, quando voltarmos a Nova York, daremos uma festa enorme - disse ele, gritando para se fazer escutar sobre o ruído das hélices. - Você vai amar! Ela ficou olhando para a silhueta dele em contraste com o céu noturno. O sobretudo de cashmere esvoaçava com o vento das hélices, o braço a chamava. - Será que podemos só fazer umas margueritas horríveis e cantar karaokê? - berrou ela em resposta, apertando as mãos na cabeça para impedir que o vento a despenteasse toda. Michael olhou para ela, completamente perplexo. - O quê? Por que diabos você quer fazer uma coisa dessas? - Você gosta de ver a ponte Albert piscando? - berrou ela, agora sorrindo devido ao pensamento de enorme clareza que se abatia sobre ela. - Serena, não estou entendendo. Ela sacudiu a cabeça e deu risada. - É, eu sei. Você nunca entendeu, Michael. Michael abriu a porta do helicóptero. - Será que pode entrar logo? - Não - gritou ela, afastando-se dele e apertando o casaco ao redor do corpo o máximo possível. - Não, não posso, e acho que nunca vou poder. - Adeus, Michael. Serena deu as costas para ele e saiu correndo pelo terminal. Enquanto Camilla e Venetia estavam no Derbyshire, Cate ficou irrequieta. Estava cansada por causa da viagem a Paris, mas continuava querendo se sentir útil; queria fazer algo, qualquer coisa, que pudesse ajudar a resolver a confusão. Fez o que sempre fazia em momentos de crise: trabalhar. Recrutou Nick como seu assistente de pesquisa e foi até St. Pancras, em Londres, para fazer uma visita ao monólito modernista da Biblioteca Britânica, convencida de que em algum lugar de seus depósitos haveria informação sobre o caso que lhes daria uma pista sobre aonde ir. Mas depois de três horas examinando livros, jornais e revistas, Cate achou que não estavam chegando a lugar nenhum. Havia muito pouca coisa nos milhares de palavras escritas a respeito do Assassinato Craigdale que eles ainda não soubessem.


- Não tem nada, não é mesmo? - disse Nick, esfregando os olhos, embaçados de tanto olhar para a tela do microfilme. - Quer almoçar? - Acho que sim. Cate sentiu o celular vibrar no bolso e ergueu um dedo para Nick. - Um minuto - disse, percebendo que ligações telefônicas não receberiam muita aprovação na Biblioteca Britânica. - Oi, Van - disse ela, dirigindo-se para a área comum para falar. Como está Derbyshire? - Interessante - respondeu Venetia, do outro lado da linha. – Jim Dalgleish, o policial responsável pelo caso, não acredita que Alistair Craigdale tenha se matado. Acha que os amigos o ajudaram a fugir do país e que o estão escondendo desde então. - Quem o esconderia durante todo esse tempo? - perguntou Cate, incrédula. - Philip Watchom, Nicholas Charlesworth e Jimmy Jenkins. Talvez até papai. Se Dalgleish estiver certo e Craigdale ainda estiver vivo, ele pode muito bem ter matado papai e desaparecido de novo! Cate não tinha tanta certeza disso. A teoria da volta de Alistair dos mortos rodava em sua cabeça desde que visitara o apartamento de tia Sarah. Mas por que ele voltaria depois de trinta anos? Porque sentia falta da Inglaterra, pensou Cate de repente. Pedaços aleatórios de pensamentos começaram a se juntar. Obviamente, o exílio de Craigdale seria bom para lorde Balcon, mas por que Craigdale ficaria afastado durante tanto tempo? Seu lar e sua família ficavam aqui. Depois de tanto tempo, ele podia ter retomado ao Reino Unido com facilidade, para viver com discrição entre os amigos. Mas só se os amigos cooperassem. Oswald saberia se Craigdale voltasse. Ele detestava Craigdale: era a cara dele guardar rancor a vida toda. Ele poderia ter causado todo tipo de problemas. Examinando a coisa por esse ângulo, Oswald era o único homem que se interpunha entre Craigdale e seu retorno à Inglaterra. Cate encerrou a ligação com Venetia e encontrou Nick à sua espera. - Está pronta para almoçar? - perguntou ele, vestindo o casaco. – Estou morto de fome. - Não, venha. Vamos voltar lá para dentro - perguntou Cate, puxando a manga dele. Ela o conduziu até um cantinho. - Para onde você está me levando? - disse Nick, com um sorriso de quem não está entendendo nada. - O inspetor Dalgleish acha que os amigos de Craigdale o esconderam. - Ela estava com uma expressão esforçada e concentrada que fez Nick sorrir. - Isso combina direitinho com o que tia Sarah disse a respeito de minha mãe ter recebido uma carta de Craigdale de Belize. - Prossiga - disse Nick. - É só que... - ela fez uma pausa, agora já sem tanta segurança. – Tem uma coisa que Jennifer Watchorn me disse no começo deste ano. Eu estava falando a respeito de fazer um ensaio de fotos na Costa Rica e Jennifer ficava dizendo como a América Central é linda. Era como se ela já tivesse estado lá. Tenho certeza de que li algo em uma revista antiga há anos... - A voz dela foi sumindo, ela sacudiu a cabeça e começou a puxar Nick escada acima. - Philip e Jennifer se casaram há cerca de 35 anos. Vamos dar uma olhada em todas as revistas de sociedade da época. Aposto que foram entrevistados. Sei que li algo em algum lugar - balbuciou ela. - Então, que revistas estamos procurando? - perguntou Nick, correndo atrás de Cate para acompanhar o passo.


- A Tatler; na época, chamava The Tatler. Debutante, Talk, todas essas. Você não conhece nada sobre revistas? - sorriu ela. - Mas o que estamos procurando? - sussurrou ele quando encontraram um canto na sala de pesquisa. - Veja se encontra qualquer coisa sobre Philip ou Jennifer Watchom: perfis, notícias, entrevistas. Eu sei que está aí em algum lugar. Eu simplesmente sei. Os dedos dela pararam na página 84 de uma revista Talk antiquíssima. Era uma entrevista de apenas uma página, mas isso era compreensível: Philip Watchorn era só um personagem dos agitos da sociedade naquele tempo, não o empresário internacional no qual se transformara. Jennifer Watchorn sorria na foto com um vestido de tafetá, o cabelo loiro preso em um coque-banana bem alto. Ela era absolutamente linda naquela época, pensou Cate, lembrando-se do rosto repuxado, cheio de plásticas, de Jennifer hoje. A entrevista era curta, mas cheia de exibição e indiscrição. Ali estava alguém que não podia acreditar na sorte grande que tirara: de aeromoça para esposa de sociedade em um ano: ela estava louca para anunciar aquilo ao mundo. Cate percorria o texto com o dedo enquanto lia. A entrevista era toda sobre o casamento próximo de Jennifer com o "belo financista" Philip Watchorn. O vestido de Ossie Clark, a recepção no Savoy, a lua-de-mel na América do Sul. Ela leu a citação, percorrendo cada palavra com vagar. "Vamos passar uma semana no hotel que meu noivo adquiriu recentemente em Belize. É isolado e selvagem e lindo." - Na mosca - sussurrou Cate.


49 A festa de ano-novo de Philip Watchom era como se fosse o braço urbano do baile de Natal de Oswald. Organizada na enorme mansão de Philip no final de Hampstead Heath, a festa atraía um povo parecido; aristocratas do interior e empresários astuciosos, bem como o pessoal de sociedade com quem sua mulher andava, princesas estrangeiras, ex-modelos de meia-idade e veteranos do circuito da caridade. A casa era ampla, branca e georgiana, a paisagem se estendendo para trás dela como um carpete negro grosso; as janelas brilhavam em tons de âmbar quando o Aston Martin de Serena parou na frente dos portões duplos. A parte da frente da casa zunia de tanta atividade, com acrobatas e engolidores de fogo dançando ao redor de um abeto imenso no gramado da frente, enquanto manobristas se apressavam para guardar uma procissão de carros prestigiosos e caros e para ajudar seus proprietários roliços a adentrar a residência. - Diga de novo: Por que simplesmente não ligamos para Philip Watchom e perguntamos o que ele sabe? - perguntou Serena, ajustando as alças do vestido de seda. O tema da festa do ano era branco, e Serena tinha aproveitado a oportunidade para se assegurar de que parecia uma rainha da neve perfeita, com um longo vestido cor de marfim e uma estola de pêlo branco polar. - Ah, claro - respondeu Cate, toda cínica. - Vamos simplesmente ligar para ele e perguntar se ele contrabandeou Craigdale para a América Central há trinta anos. Ah, falando nisso, por acaso você o viu recentemente? Quem sabe matando o nosso pai? Ah, certamente ele vai responder que "sim". A verdade era que Cate não sabia dizer muito bem o que a levara a ir àquela festa nem o que conseguiria com isso. Tinha menos a ver com o que Dalgleish chamara de "intuição policial" e mais a ver com o desejo de sentir que pelo menos estavam fazendo alguma coisa. Ela elaborara diversas teorias, mas nem sabia com certeza se o Assassinato de Craigdale estava conectado à morte de Oswald. No entanto, aquela certamente parecia uma avenida a ser explorada, principalmente porque a reunião com David Loftus estava marcada para o dia seguinte. Dois seguranças à porta reconheceram Serena imediatamente, e as duas irmãs foram logo recebidas, onde multidões rodeavam uma fonte composta de centenas de baldes de champanhe e garçons de casaca branca enchiam as taças de todo mundo com Krug. - Então, agora que estamos aqui, o que você sugere que façamos? - perguntou Serena, como uma criança impaciente. - Se quer saber a minha opinião, estamos perdendo tempo. A porcaria da Maria é com quem deveríamos falar. Você não acha estranho não termos ouvido nem um pio dela? Não é exatamente o comportamento adequado para uma viúva de luto, é o que eu digo. - Olhe - disse Cate, de maneira bem direta, um pouco cansada da obsessão de Serena com Maria. - Provavelmente estamos desperdiçando nosso tempo aqui, mas vamos dar uma olhada por aí, pode ser? Não sei o que estamos procurando. Mas pode ser que descubramos quando virmos. - Ah, então viemos aqui xeretar? Ah, eu adoro xeretar - sorriu Serena. - E quem vai suspeitar de uma mulher grávida meio enxerida? A maior parte dos aposentos da casa estava aberta aos convidados, e por todos os lados havia pessoas glamourosas vestidas de branco circulando, comendo canapés, dando risada e conversando ao som de copos tilintando. - Falando nisso, a mulher grávida precisa de um banheiro. De novo - disse Serena, quando entraram no salão de baile, onde uma banda de suingue tocava.


- A gente se encontra de novo aqui - disse Cate, perscrutando o lugar com os olhos. Algumas pessoas a reconheceram e pararam para lhe dar os pêsames. Ela pegou um coquetel - um White Russian, achava -, experimentou sua cremosidade e atravessou um par de portas que davam para um terraço. - Catherine Balcon, é você? Mas que surpresa agradável. Cate virou-se e viu Jennifer Watchorn vestida com o vestido de tafetá prateado mais claro possível, com diamantes enormes pendurados nas orelhas. Ela abraçou Cate e deu-lhe beijos nas bochechas; Cate sentiu o cheiro da base grossa e de perfume de rosas. - Sinto muito por tudo o que aconteceu - disse Jennifer, cheia de tristeza. - Realmente achei que você não viria. Cate deu um sorriso fraco e ficou pensando como a presença delas ali devia parecer estranha. Jennifer fez um gesto com as mãos, indicando a festa. - Eu insisti para que seguíssemos em frente e déssemos a festa hoje - disse Jennifer, parecendo um pouco culpada e acanhada. - Philip se opôs, naturalmente, já que Oswald era um de seus amigos mais íntimos e tudo o mais, mas eu realmente acho que o show deve continuar. - Tenho certeza de que meu pai teria apreciado - respondeu Cate, educadamente. Jennifer conduziu Cate para o terraço, onde luzinhas vermelhas davam um brilho escarlate às pedras. Jennifer entrelaçou um braço no de Cate e, com o outro, ergueu sua taça de Krug para tomar um gole. - Você precisa me dizer se há algo que eu possa fazer. Estou aqui para ajudá-la. Cate sabia que era a hora de atacar. - Bem, tenho tentado simplesmente me manter ocupada – respondeu ela. - Com o trabalho e tudo o mais. Depois do enterro, vou viajar para fazer um ensaio de fotos - mentiu. - Vamos para Belize para fotografar a capa. Você já não esteve lá? Jennifer examinava os convidados da festa e parecia distraída. - Onde? Ah. Estive sim, querida. Mas faz muitos anos. Antes mesmo de você nascer, creio. Philip tinha um hotel lá, mas vendeu há anos. Na verdade, nunca cheguei a ir até lá, Philip disse que era isolado demais. De qualquer forma, prefiro o México... - Mas quando esteve em Belize... Jennifer agarrou-a repentinamente pelo braço, sua atenção desviada para outro pensamento. - Bem, não sei com quem você veio - disse Jennifer, em tom conspiratório -, mas não vai acreditar em quem está aqui hoje como convidado de meus amigos Dickie e Ann Browning. - Quem? - perguntou Cate, decepcionada com o fato de Jennifer não ter revelado informação nenhuma. - Tom Archer! - respondeu ela, sorrindo com triunfo. - Por que não vai falar com ele? Montamos um minicirco logo ali. E, com isso, ela a abandonou. Camilla estacionou seu Audi na frente da casa de Maria Dante em Onslow Square e olhou para as janelas arqueadas em busca de algum sinal de vida. Ela sabia que devia ter ligado antes de aparecer sem avisar, mas tinha ido até lá por impulso, quando passava pela praça a caminho da casa de Venetia. Olhou para as janelas de novo e confessou para si mesma que aquele não era o único caminho para chegar à casa de Venetia. Ela queria falar com Maria. James Willoughby, o


advogado da família, ligara para Camilla mais cedo naquele dia para implorar a ela que fizesse Maria parar de achacá-lo pelo telefone com perguntas sobre o testamento de Oswald. "Ela me ligou três vezes, exigindo saber quando será a leitura do testamento", disse o advogado, tentando ser educado, mas claramente aborrecido por ser interrompido em sua folga de Natal. "Tentei explicar-lhe que eu informaria os beneficiários depois do enterro, mas ela nem quis saber. Acho que alguém deveria falar com ela." Quando Camilla desligou o motor do carro, Onslow Square estava em silêncio. Através das janelas acesas ao redor da praça, ela via silhuetas de pessoas erguendo taças e jogando a cabeça para trás com risadas. Feliz ano-novo, pensou, imaginando em silêncio o que o novo ano teria reservado para ela. Estremeceu, apesar da quentura de seu casaco de cashmere cor de creme, e subiu apressada a escadinha até a porta de Maria. Bateu com força. Camilla sempre tivera sentimentos ambivalentes a respeito de Maria Dante; ela realmente não se importava sobre como ou com quem o pai encontraria felicidade. Mas ao saber que Maria andava fazendo perguntas sobre o testamento do pai, Camilla se surpreendera com o sentimento de proteção que de repente tivera em relação à família; até mesmo em relação ao pai. A porta se abriu com um rangido e um homem alto e magro, de uns 45 anos, com cabelo curto e grisalho e expressão sombria e retesada, atendeu Camilla. Ela olhou para baixo e viu pernas nuas e peludas aparecendo por baixo de um penhoar de seda na altura dos joelhos. - Posso ajudar? Durante um segundo, Camilla ficou se perguntando se aquele era o endereço certo. - Quero falar com Maria Dante - disse ela, esticando o pescoço para olhar dentro da casa. Viu uma silhueta descendo a escada, desdobrando-se em seu campo de visão como uma sanfona. Primeiro os pés, os joelhos, cortinas de cabelo preto caindo por sobre os ombros, o rosto... Maria Dante. - Jean-Paul? Quem está aí? Camilla! Camilla deu um passo para dentro da casa. - Maria, sinto muito, eu... Ao avançar, viu que Maria usava um quimono vermelho curto que mal lhe cobria as coxas. Parecia pálida. Desbotada. Durante um segundo, Camilla achou que fosse uma expressão de luto, até perceber que ela simplesmente não usava sua maquiagem pesada de sempre. Era o rosto de alguém que acabara de sair da cama, com um rubor nas bochechas de pele pálida que indicavam atividade sexual indubitável. - Quem é este, Maria? Um criado? - perguntou Camilla, apontando com o dedo em riste para Jean-Paul, que se afastou dela, subindo a escada. - O que está sugerindo? - explodiu Maria, parecendo atabalhoada. - Jean-Paul é um amigo meu de Paris. Meu novo decorador, agora que Venetia anda tão ocupada com moda. A arrogância dela acendeu o pavio de Camilla. Ela se aproximou de Maria, olhando para ela com ferocidade, desafiando-a a dar continuidade a sua farsa. Ao perceber que tinha sido pega no pulo, Maria soltou a respiração cheia de dramaticidade e sua expressão de acinte instantaneamente se transformou em algo mais agressivo. - Acredito que esteja adorando a situação, Camilla. Adorando me ver aqui com Jean-Paul sibilou por entre os dentes. - Bom, sinto muito. Sinto muito por ter me encontrado assim. Mas a vida continua. Oswald morreu. - Meu pai, seu noivo, acabou de morrer! Como pode ir para a cama com seu decorador se seu noivo acabou de morrer?


- Ele teria feito a mesma coisa - sussurrou Maria, seus olhos preto-azeviche fuzilando Camilla. - Vocês e suas irmãs estão loucas para me pegar aprontando alguma desde o segundo que nos conhecemos. Eu amava o seu pai, mas vocês só tentaram sabotar o nosso relacionamento, desde o início. Camilla sentiu um arroubo de raiva. - Vamos falar de sabotagem então, que tal? - Camilla praticamente cuspiu as palavras, chegando ainda mais perto de Maria. - O enorme cachê que você obrigou meu pai a pagarlhe pela Noite Musical. A cocaína que plantou na mala de Serena. O repórter que mandou para xeretar no quarto dela. E já que estamos falando de subterfúgios, há quanto tempo está dormindo com Jean-Paul? Eu diria semanas, meses; não dias. O que acha? Você não amava Oswald, Maria. Você amava o que achava que ele tinha. Maria era casca-grossa, mas não estava preparada para a ferocidade do ataque de Camilla. Apertou os braços em volta do corpo em um gesto de defesa. - Você me culpa? - Ela ergueu uma sobrancelha para desafiá-la. - Você sabe como ele era. - Sim, eu sei - disse Camilla, mais calma. - Eu sei exatamente como ele era. Ficou encarando a mulher que quase se tornara sua madrasta com desprezo completo. - E agora eu sei exatamente como você é. Você é uma vagabunda diabólica, manipuladora e sedenta de poder que traiu o meu pai e a minha família. Sei que falo em nome das minhas irmãs quando digo que nunca mais queremos vê-la. - Terminou? - perguntou Maria com frieza, sem olhar nos olhos da mulher mais nova. - Não - respondeu Camilla, tentando olhar no olho dela. - Hoje, para dizer a verdade, vim aqui lhe falar sobre o testamento, mas nem vou me incomodar. Porque se chegar a pensar em tentar tirar da minha família cada centavo que você erroneamente acredita ser seu, juro que acabo com sua vida. Vou arrastá-la pelos tribunais durante tanto tempo e com tanta dureza que você não vai mais ter dinheiro para comprar nem sequer um pincel, muito menos os serviços de Jean-Paul. E com um olhar de comiseração dirigido ao homem de penhoar, Camilla deu meia-volta em cima dos saltinhos e voltou para a praça. Quando a porta bateu, ela teve certeza de ter ouvido um berro. A casa de Philip Watchorn era realmente espetacular, pensou Serena, afastando-se do local onde se dava a ação principal. Pessoalmente, ela não pensaria em morar em Hampstead: ficava muito ao norte do Tâmisa para o gosto dela. Mas aquela casa realmente era tão chique e grandiosa quanto uma antiga embaixada de um filme da década de 1950. Era menos sufocante do que Huntsford, mais cosmopolita, mais a cara dela. Lambeu os lábios diante da perspectiva de possuir uma casa daquele tamanho e sentiu o gosto do gloss de melancia que tinha passado em sua visita ao banheiro. Já que estava mesmo daquele lado da casa poderia muito bem procurar uma biblioteca, ou um escritório ou alguma coisa, pensou, e dobrou à esquerda em um corredor silencioso. Nem todos os quartos deste lado da casa estavam abertos. Serena experimentou duas maçanetas de porta: uma estava trancada, a outra conduzia a uma sala de jantar. Com as luzes apagadas, a mobília de mogno lançava sombras assustadoras na escuridão. Ela fechou a porta com cuidado e foi avançando mais e mais, seus saltos estalando sobre o chão de mármore preto-e-branco. Ela dobrou uma esquina e viu uma única porta à esquerda. Ao abri-la com um rangido, viu que do chão ao teto as paredes estavam cobertas por pesados livros encadernados em couro.


A biblioteca. Examinando os dois lados do corredor para conferir que não tinha ninguém por ali, esgueirou-se para dentro e fechou a porta atrás de si. Como não fazia a menor ideia do que estava procurando, foi na ponta dos pés até uma mesa grande com tampo de couro. Estava arrumada e organizada. Tinha um relógio de ouro: Asprey, reparou. Um peso de papel de cristal, um abridor de cartas de prata, folhas de papel e uma pilha de correspondência, algumas abertas. O pesado abajur de mesa Lalique pedia para ser aceso, mas ela chegou à conclusão de que era melhor ficar na escuridão e usar a luz fraca que entrava pela fresta da porta para enxergar. Ela se sentia como um dos integrantes da turma de detetives mirins de um livro infantil. Serena passou os dedos pela correspondência, curvando bem a cabeça para ler algumas linhas. Cartas de agradecimento a Philip de organizações de caridade, correspondência do banco Coutts, outras cartas de bancos nas ilhas Caimãs, em Genebra e em Jersey. Examinou todas elas, mas não havia nada de muito interessante. Aliás, havia pouquíssima coisa que ela realmente compreendia. Tentou abrir as gavetas da escrivaninha e viu que uma estava trancada; as outras estavam cheias de mais papéis e uma pilha de envelopes. De repente, parou ao reconhecer um carimbo em um envelope grande: Huntsford. A caligrafia era inconfundível: iniciais exageradas, grandes voltas em tinta preta. Era do pai dela. Não ia doer se ela olhasse, pensou Serena, tirando algumas folhas de papel do envelope. Era um contrato, com apenas três ou quatro páginas, sem assinatura e sem data, entre Oswald Balcon, Nicholas Charlesworth e Philip Watchom, atuando coletivamente como a BWC Holdings; quanto ao resto, era grego para ela. Serena examinou as palavras, mas continuou sem entender nada: por que insistiam em usar uma linguagem tão arcaica? Desejou que Camilla estivesse ali: o cérebro de advogada dela decifraria aquilo em um segundo. Aparentemente, era um "documento de transferência" e, até onde ela tinha entendido, a BWC estava transferindo alguma coisa para Oswald. Ela releu o documento mais devagar, decifrando-o como um quebra-cabeça. Papai, parecia, queria que Nicholas e Philip transferissem suas ações de Fierce Temper para ele, pela soma de uma libra. Ela ergueu os papéis, tentando focar os olhos naquela luz fraca. Ela compreendia o suficiente sobre contratos, por causa de suas negociações com os agentes, para saber que uma libra era o valor nominal necessário para validar um contrato, mas continuava confusa. Se ela estivesse certa, Philip e Nicholas estavam entregando Fierce Temper a papai em troca de nada. Mas não podia ser: a temporada do cavalo tinha sido brilhante. Ela não entendia muito de corrida, mas até ela se dava conta de que, depois de vencer quatro corridas importantes na temporada, Fierce Temper devia estar valendo uma fortuna. Então, por que entregá-lo assim? Por quê? Porque eles eram obrigados a fazê-lo, foi a única coisa que conseguiu raciocinar. Será que Oswald estava obrigando os dois a fazer aquilo? Será que era isso? De repente, ela ficou nervosa, ali parada no escuro, segurando uma coisa que, tinha certeza, era importante. Precisava sair dali, mostrar aquilo para Cate. O contrato não caberia em sua minúscula bolsinha de mão, de modo que ela o enfiou embaixo do braço e olhou para o relógio. Merda! Cate devia estar se perguntando o que tinha acontecido com ela. Ao se dirigir para a porta, Serena ficou paralisada. Ouviu duas vozes papeando e entrando na sala. Por instinto, agachou-se atrás da escrivaninha. Sua barriga estava grande demais para caber no buraco reservado às pernas, de modo que ela se sentou desajeitada no chão. Agora estava escutando Philip Watchorn e Nicholas Charlesworth com bastante clareza.


- Você precisa experimentar este conhaque excelente - disse Philip a Nicholas - é de 1873. Comprei em um leilão há uns dois anos. Acho que devíamos fazer um brinde a nós mesmos, você não acha? Ela ouviu o tilintar de copos de cristal fazendo um brinde. - Eu preferia aquele claret de 1847 que sei que você tem na adega - disse Nicholas. Serena não precisava enxergar os dois homens para saber que estavam de bom humor. Agora os dois caminhavam pela biblioteca e ela sentia as mãos umedecerem. Suas pernas estavam começando a ficar com cãibras com ela lá agachada no chão, rezando para que não se aproximassem da mesa. - Viu que Serena e Cate Balcon estão aqui? - disse Nicholas, com um tom de voz constrangido e ansioso. - Eu sei - respondeu Philip, obviamente nada contente de vê-las também. - Certamente não me lembro de ter convidado as irmãs Balcon. - Então, que diabos estão fazendo aqui? - explodiu Nicholas. – Não deviam estar de luto em vez de estar indo a festas? Acha que elas sabem de alguma coisa? - Relaxe. Serena adora uma festa, independentemente do clima. Serena quase conseguia ver o sorriso sacana no rosto de Philip. Mas Nicholas não se acalmou nem um pouco. - Mas Cate é mais esperta. Se Cate está aqui, talvez elas desconfiem de alguma coisa - disse ele. - Desconfiem de quê? - disse Philip, seu tom de voz bem mais baixo. - Coitado de Oswald, sofreu um acidentezinho terrível. O que isso tem a ver conosco? - É, acho que sim... - disse Nicholas, parecendo muito menos seguro do que o amigo. - A polícia já falou com você? - Falou, falou, sim - respondeu Philip, sem dar muita importância ao assunto. - Eu simplesmente lhe disse tudo o que havíamos combinado. Posso garantir que a polícia não está fazendo nada além do procedimento padrão. Realmente não há nada que faça com que desconfiem que foi qualquer coisa além de Oswald ter enchido a cara e caído do telhado. De qualquer forma, a neve teria contaminado qualquer evidência. Deus abençoe a falta de equilíbrio causada pelo álcool e Deus abençoe o clima inglês - caçoou. Embaixo da mesa, Serena ficou de queixo caído. Nicholas não precisava explicar mais detalhes. Eles tinham empurrado Oswald da amurada. Tinham matado o pai dela. Sentindo o contrato de Fierce Temper embaixo do braço, de repente pensou em David Loftus. Será que aquilo era chantagem? Será que Oswald estava chantageando Philip e Nicholas? Finalmente, ouviu os copos sendo pousados e passos caminhando na direção da porta. Graças a Deus, graças a Deus. Sua perna tinha ficado dormente de cãibra sob o peso de seu corpo grávido. Ela tentou se mover um pouco e, ao fazê-lo, o salto do sapato escorregou e seu pé virou no chão com um baque abafado. - O que foi isso? - perguntou Philip. Ao ouvir passos voltando para o centro da sala, Serena contorceu o corpo até encostar o bumbum no chão, mantendo a cabeça enfiada no meio dos joelhos. Não precisava olhar para cima para ver as duas figuras avultando-se por cima dela. - Serena Balcon! Mas que diabos está fazendo? - resmungou Philip. Sua boca sorria, mas seus olhos estavam sérios de matar. Nicholas agarrou o braço dela e puxou-a para que se erguesse. Ela caiu na cadeira de couro atrás da escrivaninha, a mão de Nicholas firme em seu braço, apertando a carne com um pouco de força demais. - O que está fazendo aqui? - quis saber ele, seus olhos enlouquecidos.


Serena tentou dar um sorriso cheio de segurança, apesar de suas mãos estarem tão molhadas quanto cola. - Ah, sabe como é estar grávida e tudo o mais - gaguejou ela – Eu realmente não devia ter vindo a esta festa. Estava me sentindo péssima, então saí para procurar algum lugar escuro e silencioso para descansar um pouco. Philip simplesmente assentiu com a cabeça. - No chão. Atrás de uma mesa. - Serena, o que está fazendo aqui? - perguntou Nicholas, sacudindo o braço dela. Ouviu-se um farfalhar de papel quando o contrato caiu no chão. Philip abaixou-se para pegá-lo e mostrou ao amigo. Os dois trocaram um olhar frio, de quem já tinha entendido tudo. Serena tentou se levantar, mas de repente se deu conta de uma dor forte na lateral da barriga. Sentou-se novamente. Colocou a cabeça entre os joelhos e fechou os olhos por um segundo. De repente, a situação lhe pareceu cristalina de tão clara. Ergueu a cabeça e olhou para os dois homens, depois para o contrato, e de repente as peças se encaixaram. Craigdale tinha ficado hospedado na casa de Watchom na América Central. Oswald sabia do fato, talvez até tivesse ajudado. Agora Oswald precisava de dinheiro. Estava chantageando os dois. Oswald oferecia seu silêncio em troca de Fierce Temper. Estava claro que Philip e Nicholas não estavam a fim de simplesmente lhe entregar um cavalo multimilionário, de modo que o haviam matado. Eles tinham matado papai. Venetia olhou para a biblioteca de sua residência em Kensington Park Gardens, afundada em sua poltrona de couro preferida, e resolveu que, por mais fabuloso que o imóvel fosse, simplesmente precisava ser colocado à venda. Para ela, a casa tinha a mesma atmosfera de Huntsford: era fria, vazia e solitária; apenas sua decoração era mais cara. No ano-novo, com toda a certeza iria para um lugar menor. Esperaria menos de sua casa, de sua vida, de suas ambições. Ela reduziria suas expectativas devido ao que aquele ano lhe mostrara: decepção e traição por todos os lados. Do marido, do pai, do próprio corpo, que lhe negara o direito de ter filhos; até mesmo de um homem que amara no passado: Luke. Tudo o que ela algum dia quisera ou desejara lhe havia sido tirado. E, então, havia Jack. Ela própria fora a arquiteta daquela falha, reconhecia, mas isso não a deixava menos triste. Serviu-se de uma dose de vodca da garrafa ao seu lado. Depois de Oswald praticamente ter expulsado Jack do baile, ela fugira, incapaz de lidar com o conflito entre os dois homens. Tinha se sentido como se lhe tivessem pedido para escolher entre o amante e a família... e permitira que Jack partisse. Quando ela retomara à festa, Jack não estava mais lá e, com ele, pensou, mais uma parte de sua vida também tinha ido embora. Tomou um gole de vodca: o destino obviamente decidira que o relacionamento deles não era para acontecer. E agora, o que o novo ano lhe reservava? Primeiro, teriam de tratar de David Loftus. Ela gemeu. Tinham mais uma reunião marcada com ele para o dia seguinte e ela não fazia idéia do rumo que a conversa tomaria. Camilla devia chegar a qualquer minuto; ela esperava que trouxesse alguma ideia brilhante, embora, depois das revelações da carta de Leonard Graham, Camilla tivesse algumas preocupações ainda maiores. A distância, ouviu alguém bater na porta da frente. Olhou para o relógio e xingou. Tinha convidado Camilla para jantar, e os filés de tamboril ainda estavam no pacote da Harrod's Food Hall. - Espere um pouco, Cam. Estou indo - disse ela ao abrir a porta.


Parada ali no frio estava uma silhueta que fez o coração de Venetia saltar. - Jack! Apesar de estar com medo, a atitude de Serena foi desafiadora. Sabia que estava em situação perigosa, mas a ira rapidamente se sobrepôs ao medo e ela olhou cheia de ferocidade para Philip e Nicholas. - Não foi um acidente, não é mesmo? - sibilou ela por entre os dentes, pensando no corpo do pai estirado, encharcado e sem vida, no fosso de Huntsford. - É o cavalo - disse ela com a voz trêmula. - É tudo por causa da porcaria daquele cavalo, não é? É tudo por causa de dinheiro! - despejou. Philip pegou o rosto dela. Sua pegada era firme, ameaçadora. Seus lábios se abriram para dizer algo, mas Nicholas falou primeiro. - Seu pai sempre foi insuportavelmente arrogante! - disse ele. – Mas nunca foi corajoso. Em vez de encarar as dívidas dele e sair do próprio buraco, preferiu tentar extorquir o que era nosso por direito. Philip colocou a mão no braço de Nicholas para detê-lo, mas Charlesworth estava com a corda toda, como se uma abertura tivesse se rasgado em sua armadura de frieza. - Quando lhe convinha, ficava bem feliz de nos ter ao lado dele. Ah, sim, ficou bem contente de permitir que tirássemos Alistair do país para que ele pudesse ficar com as mãos limpas. Está vendo? Sem coragem! - deu uma risada cruel. - E, depois, ele ainda quis sair por cima e ameaçou contar à Scotland Yard, a menos que déssemos Fierce Temper para ele. Bom, isso nós não iríamos fazer, não é mesmo? - Onde está Alistair Craigdale agora? - sussurrou Serena. Nicholas sacudiu a cabeça em um gesto contido e deliberado. - Craigdale morreu anos trás. E foi melhor assim - deu um sorriso presunçoso. - Estava se tornando um fardo terrível. Com o querido Alistair morto e Jimmy Jenkins a caminho, seu pai era o único que sabia o que tinha acontecido. Agora podemos deixar tudo para trás. - Mas como puderam fazer isso? - perguntou Serena, sua voz baixa e grave. - Vocês eram amigos... Philip, que tinha ficado em silêncio até aquele momento, finalmente falou. - Foi um acidente - disse ele com firmeza. Colocou a mão no ombro de Serena e começou a apertá-lo com suavidade na direção do braço da poltrona de couro. - Estávamos na amurada discutindo a transação. Era um lugar calmo, onde dava para pensar - falou, como se explicasse algo óbvio a uma criança. - Não diga besteiras! - Serena praticamente cuspiu, - Por que levá-lo até a amurada para conversar? - Acredite no que quiser - disse Philip, de modo a dissipar o assunto. - Para nós, o que você pensa não faz a menor diferença. Oswald estava bêbado. Tenho certeza de que os relatórios de toxicologia vão confirmar isso. Ele simplesmente escorregou. Ninguém precisa saber de nada diferente disso. - Seu mentiroso - disse Serena, tentando fazer com que sua voz não tremesse. Tentou se levantar da poltrona, mas Philip fez mais pressão, para que ela ficasse onde estava. - Solteme! - sibilou ela. Philip e Nicholas trocaram um olhar. Foi só por um segundo, mas Serena viu que estava em perigo. Tentou se levantar de novo, agora apavorada. Eles tinham matado pelo menos um homem, e talvez também tivessem dado fim a Craigdale, quando ele se tornara um


inconveniente muito grande para eles, Quem poderia dizer o que fariam com ela? Fez o que pôde para se libertar, mas Philip era um homem grande e ele a segurava com muita firmeza. Com a mão livre, Philip enfiou a mão no bolso da casaca branca e tirou um celular. - Dimitri? - disse Philip ao telefone. - Preciso que venha ao escritório o mais rápido possível. Serena sentiu o coração pesar. Estava com a sensação de ter se metido em uma enrascada. A vista do terraço era espetacular. Havia uma tenda enorme em forma de gazebo e, ao seu redor, gramados imensos que brilhavam com luzinhas em tons pastel. Ela avistou vários brinquedos de parquinho de diversões, com palhaços distribuindo pipoca, cachorro-quente e maçã do amor. Parado embaixo de um aquecedor externo, ela também distinguiu uma silhueta conhecida: Tom Archer. Ele conversava com um grupo de mulheres ricas na casa dos 40 anos e parecia um tanto entediado. Ela deu um tapinha no ombro do smoking branco Armani dele e, quando se virou, ele lhe deu um sorriso de surpresa. - Cate! Mas que diabos está fazendo aqui? - perguntou, dando um passo à frente e abraçando-a calorosamente. - O seu pai... Sinto muito. Recebeu as flores que eu mandei? Eu estava mesmo para ligar para você. - Desculpe, foi tudo muito confuso, ainda não consegui absorver a coisa direito - disse ela, um tanto envergonhada por não ter tido tempo de ler nenhum dos cartões e cartas de condolências que ela e as irmãs haviam recebido, acompanhados de flores, depois da morte do pai. Tom parecia preocupado. - Você não devia estar em casa? - Eu precisava sair um pouco. Mas, bem - apressou-se em dizer, para mudar de assunto -, com quem você veio? - perguntou, fazendo um gesto com a cabeça na direção do grupo. - Com Dickie Browning e a esposa. Browning era um dos produtores mais respeitados da Grã-Bretanha, dono da Limelight Pictures, empresa de muito prestígio. - Lembra aquele roteiro que eu estava escrevendo em Dorset? Bom, Dickie vai produzir, e eu vou dirigir. Insistiram para que eu os acompanhasse - disse Tom, com um sorriso cansado. Ele pediu licença ao grupo e os dois foram até uma carrocinha toda coberta de lâmpadas. Uma moça bonitinha, vestida de Branca de Neve, entregou-lhes dois sacos de pipoca. - Então, com quem você veio? - perguntou Tom, mastigando um punhado de pipoca crocante. - Na verdade - respondeu Cate lentamente -, com Serena... Tom assentiu com a cabeça em silêncio, mas ela teve certeza de que viu um esboço de sorriso em seus lábios. Sabia que não havia nenhuma outra mulher na vida de Tom. Se houvesse, certamente teria lido alguma coisa nas colunas de fofocas. Ainda havia esperança, pensou Cate. Tom sorriu, meio sem jeito. - Tentei ligar para Serena outro dia, em Huntsford. Ela não estava em casa. - Bom, então vamos procurá-la agora - disse Cate, olhando para o relógio. - Ela foi ao banheiro há uma meia hora. - Serena é assim mesmo - disse Tom, visivelmente mais relaxado. - Vamos, eu a sigo.


O homem que Serena supôs ser Dimitri entrou no escritório de Philip minutos depois de ter sido chamado. Seu pescoço era grosso como um toco de árvore e seus músculos deixavam o temo preto todo esticado. - Quem é este? - despejou Serena. - Um segurança? - Algo assim - respondeu Philip. Serena sentiu a pele formigar de medo. Tentou não parecer intimidada: devia ter algum jeito de ela conseguir sair daquela situação na conversa. - Olhem, Philip e Nicholas. Tenho certeza de que foi um acidente - apressou-se em dizer. É mesmo muito perigoso lá na amurada à noite. E havia gelo no chão. - Sabe, Serena? - disse Philip. Ele deslizou o braço por cima dos ombros dela e chegou tão perto que ela pôde sentir o cheiro azedo de conhaque no hálito dele. - Não vamos estragar a festa com essa conversa sobre o acidente de Oswald. Acompanhe Dimitri para se acalmar, e depois discutiremos a questão. - Não vou a lugar nenhum com Dimitri - disse Serena, soltando-se do braço de Philip. Quero voltar para a festa. - Não torne as coisas difíceis - disse Philip. Ele fez um sinal com a cabeça e Dimitri pegou Serena pelo braço. - Solte-me! Dimitri pressionou o corpo contra o dela e, de repente, ela sentiu um cilindro de ferro frio contra sua pele. Abaixou os olhos e viu o coldre duro preto e azul de um revólver que se destacava contra a seda branca de seu vestido; sentiu a bile lhe subindo à garganta. Respirou fundo, mas parecia que não havia ar na sala. - Vá por ali - disse Philip a Dimitri, fazendo um gesto com a cabeça para as portas envidraçadas. - Você e Dimitri vão dar um pequeno passeio de carro, mas como o carro está estacionado do outro lado do nosso parquinho ali fora, você vai ter que se comportar muito bem - acrescentou Philip. Dimitri apertou o cano do revólver ainda com mais força contra O corpo dela e forçou Serena a avançar. - Não vou a lugar nenhum - uivou ela, olhando cheia de fúria para Nicholas. - Ah, vai, sim - disse Philip, sem se abalar. - Vai atravessar o jardim todo sem dar um pio e, se começar a se agitar, vamos procurar Cate e trazê-la para a nossa festinha também. - Faça isso e eu o mato - rosnou ela, arqueando as costas para longe dele. - Comece a andar - disse Dimitri. Cate se perguntou se devia ou não contar a Tom o verdadeiro motivo pelo qual estavam na festa, mas achou que era melhor deixá-lo totalmente fora daquilo. Assim que encontrassem Serena, ela iria dar uma olhada por ali por conta própria. Eram só 10 horas, afinal de contas: ainda havia muito tempo. Moças bonitas - e mulheres mais velhas querendo parecer moças bonitas - formavam filas compridas nos diversos banheiros espalhados pela mansão de Philip. Mas nenhuma delas era Serena. - Onde diabos ela está? - resmungou Cate, começando a ficar um pouco ansiosa. - Ela deve ter ido para casa - disse Tom, dando risada. - Ela tem uma mania terrível de fugir de fininho das festas. Estar grávida de oito meses não deve ser muito divertido, não é mesmo? Ou então vai ver que ela me viu e resolveu cair fora. Cate ergueu os olhos para o rosto dele e, por um instante, sua ansiedade diminuiu, pois percebeu que Tom estava bem animado com a perspectiva de ver sua irmã.


A casa era ampla, com salas enormes e longos corredores vigiados por câmeras de circuito interno de televisão, observou Cate. Esses ricos vivem preocupados com segurança, pensou Cate, de mau humor, imaginando quem os estaria observando. Afastaram-se bastante da festa e se viram sozinhos. As salas estavam escuras e o som dos saltos dos sapatos deles batendo no mármore fazia um eco lúgubre ao redor. - Bom, acho que ela não vai estar por aqui, não é mesmo? - disse Tom, virando-se para trás. Cate hesitou, mas depois assentiu com a cabeça. - Certo, vamos voltar lá para fora. Tenho certeza de que ela vai me procurar - disse ela, sentindo uma sensação de desconforto cada vez maior. As portas envidraçadas davam para a escuridão completa. Serena limpou o suor das palmas das mãos no tecido do vestido ao entrar na noite. Tomaram um caminho que serpenteava pela lateral da casa. À medida que avançavam, o barulho da festa ia ficando cada vez mais alto, até que fizeram uma curva e o parque de diversão armado explodiu em luz à sua frente. Hordas de gente conversando, dando risada, bebendo, dançando. Serena ainda não tinha visto este lado da festa: os amplos gramados nos fundos da casa tinham se transformado em um parque de diversões, uma orgia de luz e som. Palhaços com braçadas de balões adicionavam explosões de cor ao branco que era o tema da noite. Apesar do frio, a metade dos convidados estava agora aglomerada naquele espaço aberto, fazendo com que a proximidade do corpo de Dimitri ao de Serena não parecesse nada estranha. As pessoas olhavam para Serena quando ela passava, ansiosas para roubar uma olhadela da festeira glamourosa, completamente alheias ao fato de que ela estava sendo conduzida pelo meio da festa com um revólver nas costas. - Continue sorrindo - sussurrou Dimitri, enquanto quem passava não conseguia parar de olhar para ela. Ela estampou um sorriso rígido no rosto, os músculos duros de medo. Seus olhos examinavam a multidão em um frenesi, em busca de Cate. Sua garganta parecia bloqueada quando tentava engolir. Imaginou, desesperada, o que aconteceria se simplesmente tentasse sair correndo, mas sentindo o círculo frio de metal contra a curvatura de suas costas, percebeu que não conseguiria escapar de um tiro. - Por favor, Dimitri. O que você quer? Dinheiro? Você sabe quem eu sou? Eu sou rica. Posso lhe dar o quanto quiser se me deixar ir embora - sussurrou ela, sem sequer ousar virar a cabeça. Dimitri apertou a cabeça dela contra a dele, tão perto que ela sentiu a umidade dos lábios dele na orelha. - Quem sabe mais tarde você me dá alguma coisa - riu ele baixinho. Um calafrio de pavor se espalhou por sua pele quando ela sentiu a ereção dele contra seu vestido. De repente, sentiu uma pontada forte na barriga. Durante um segundo, achou que talvez tivesse levado um tiro, até perceber que a dor era interna, que vinha de seu útero. Parou e segurou a lateral da barriga, seus olhos enchendo-se de lágrimas. - Por favor. É o meu bebê. Dimitri permaneceu em silêncio, aumentou a pressão do revólver contra a pele dela, como que para lembrá-la de qual era a situação, e a empurrou para a frente. - Cate, qual é o problema? Você parece um pouco pálida - sorriu Tom, servindo-se de uma patinha de caranguejo de uma bandeja. - Serena é adulta... ela sabe se cuidar em uma festa.


Cate sabia que precisava contar para ele por que precisava encontrar a irmã naquele momento. - Viemos aqui por um motivo, Tom - disse Cate, saindo para o terraço. - Philip e Nicholas estão envolvidos em uma coisa... Olhe, é uma história muito comprida para contar agora, mas seria a cara de Serena ir lá confrontá-los, e eu acho que seria uma ideia muito, mas muito ruim mesmo. - Envolvidos em quê? - perguntou ele, perplexo. Do outro lado do parque de diversões, Cate avistou uma cortina de cabelos loiros bem conhecida, serpenteando por entre a multidão. - Lá está ela - disse, aliviada. - Eu disse que ela estaria bem - disse Tom, sorrindo também avistando a parte de trás da cabeça de Serena. O coração dele pesou quando sua visão se deslocou um pouco para o lado e ele viu a figura de um homem alto caminhando atrás dela em uma posição tão íntima que tinham de ser amantes. - Parece que ela está acompanhada - disse ele, voltando-se para Cate com um dar de ombros. Ao ver que se aproximavam do final do parque de diversões e a fileira de carros de Philip estava à vista, Serena percebeu que tinha pouquíssimo tempo para fazer alguma coisa. Qualquer coisa. Gritar por ajuda parecia bem simples, mas o cano do revólver estava colado nela. Virou a cabeça o máximo que pôde para examinar a multidão. Luz, cor e rostos se borravam em uma câmara lenta surreal enquanto ela passava, até que seus olhos cruzaram com os de alguém conhecido, que lhe dava segurança: Tom. Cate não reconheceu o homem enorme com o corpo pressionado contra o de Serena, e imediatamente sentiu que havia algo errado. Serena obviamente tinha visto Tom e ela ficou observando enquanto o olhar da irmã disparava de um lado para o outro, até cruzar com o seu próprio olhar. Mesmo a distância, dava para ver que o maxilar dela estava tenso, e que sua pele estava pálida; os olhos e a ruguinha na testa registravam uma coisa: medo. - Tom, vá buscá-la - disse Cate de repente, empurrando-o para a frente. - Qual é o problema? - Faça isto. Tom tentou abrir caminho pela multidão, mas havia muita gente, e um monte de balões bloqueou sua visão formando um mar de cor-de-rosa, amarelo e vermelho. Serena viu que Tom vinha em sua direção e sentiu uma onda de força: seus instintos diziam-lhe que aquele era o último segundo em que poderia agir. Berrou bem alto, e o barulho deixou a multidão assustada e silenciosa. Ela se desvencilhou de Dimitri e empurrou-o com toda a força. Ele perdeu o equilíbrio e tentou agarrá-la, jogando-a no chão, enquanto Tom, enlouquecido, tentava em pânico abrir caminho pela multidão para chegar até ela. Os joelhos de Serena se dobraram, ouviu-se o estampido forte de um tiro, e então tudo ficou em silêncio.


50 - Como está se sentindo? - perguntou Venetia, acariciando a mão de Serena, que repousava em sua cama de hospital. Como estava ferida além de em trabalho de parto, ela havia sido levada para o hospital Royal Free, e não para o Portland, onde seu parto estava marcado. - Serena, ele é tão lindo... - disse Venetia. Ela olhou com ternura para o bebê minúsculo em seus braços, com sua cabeleira castanha e seu rostinho cor-de-rosa amassado. Serena baixou o olhar e sorriu: o sorriso caloroso, orgulhoso e protetor de uma mãe que acabara de ter bebê. Seu rosto estava cansado e exausto, mas continuava lindo. Ela parecia tão pequena e frágil, nada a ver com uma grande estrela de cinema, pensou Venetia. Venetia mal tinha conseguido entender a situação quando Cate ligou, pouco antes da meianoite, para dizer que, no espaço de algumas poucas horas, Serena tinha sido sequestrada e ameaçada com uma arma, além de ter entrado em trabalho de parto. Ela saíra de casa imediatamente e atravessara Londres às pressas, com um sentimento de pavor na boca do estômago. Não fazia ideia de que ferimentos Serena sofrera com o acontecido, se é que sofrera alguma coisa. Só conseguia pensar que não queria perder também a irmã, além do pai, do marido e do amante. Por favor, Deus, rezara, ela não. Venetia virou-se ao ouvir o som de passos leves entrando no quarto particular de Serena. Tom estava à porta, segurando bebidas e revistas da lojinha do hospital. Como um dia faz diferença, pensou Venetia com seus botões, ao ver os olhos de Serena e de Tom se cruzarem a distância. - Vou deixar que você cuide dela. - Venetia sorriu, levantando-se e dando um apertãozinho no braço de Tom ao passar. Tom sorriu para ela, agradecido pelo gesto. Enquanto disparava com Cate para o hospital, seguindo a luz da ambulância que piscava e cortava a escuridão, ele havia sentindo um certo desconforto. Afinal de contas, será que ainda fazia parte da vida de Serena? Não era da família, não era o parceiro dela... não era sequer seu amigo, pensou, com tristeza. Mas parecia tão correto estar ao lado dela... - Você acordou - disse ele baixinho. Os lábios de Serena estavam rachados e secos, mas, mesmo assim, ela conseguiu dar um sorriso fraco. - O trabalho de parto foi dificílimo: nunca faça isso. - E como está o resto de você? - Só torci a canela quando caí. Estou me sentindo bem. Tom sentou-se na beirada da cama, meio sem jeito, e olhou para o bebê. - Já escolheu algum nome? - Quero ver a personalidade dele primeiro. Acho que gosto de Toby - disse Serena, sorrindo e olhando para a trouxinha. - Nada de nome de artista - brincou Tom. - Elmore vai ficar terrivelmente decepcionado - sorriu Serena. Tom não podia acreditar que aquela era a mesma mulher que ele vira pela última vez no cruzeiro pelo Nilo em fevereiro. Ainda não fazia nem um ano que aquilo tinha acontecido, mas ela parecia uma pessoa completamente diferente. Seu corpo estava magro, sem as curvas típicas das mães recentes que ele vira em suas voltas pelo hospital. Embora ela claramente tivesse passado por uma provação, havia algo de suave e frágil nela. Aquele tinha sido um ano de muitas dificuldades para Serena, e aquilo estava começando a aparecer, pensou Tom, sentindo um desejo fortíssimo de tentar dar um jeito nas coisas.


Serena sentiu os olhos dele sobre ela. - Você está pensando que eu pareço péssima, não está? - perguntou ela, com um tremor de pânico na voz. Tom encostou na mão dela de leve. - Na verdade, estava pensando como isto combina com você – respondeu ele, sorrindo. - A maternidade combina comigo? Eeeca! - disse Serena, com uma fagulha de seu velho eu se acendendo por um instante. - Não acredite em tudo que você lê no jornal: eu não sou uma louca completa, sabe? Este ano não foi dos melhores para mim em muitos aspectos ela olhou para o bercinho -, mas em muitos outros, foi. E, no ano que vem, vou fazer tudo voltar aos trilhos. - Mas, primeiro, divirta-se com o seu bebê, hein? - disse Tom com gentileza, sentindo seus dedos acariciarem os dela em um gesto inconsciente. Serena ergueu os olhos para ele. Não queria parecer cansada e inútil, não na frente dele. - Vou conseguir fazer as duas coisas - afirmou. - Muita gente combina maternidade e uma carreira de sucesso. Olhe só para Catherine Zeta Jones ou Julia Roberts. Tom sorriu ao ver aquela energia tão conhecida que brilhava nos olhos dela. - Engraçado você dizer isso - falou Tom devagar. - Desde a última vez que nos vimos, andei trabalhando em um roteiro. Recebi o sinal verde. Dickie Browning vai produzir, você acredita? - Ele sorriu. - Acho que tem um papel ótimo para você nele. Serena sentiu seu corpo se agitar na cama. - Não sinta pena de mim, Tom - disse ela, afastando a mão. - Ah, eu não sinto pena de você, Sin. Eu a admiro - disse ele, como quem atesta um fato. Serena sentiu uma dor surgindo de algum lugar em seu corpo. Não era uma dor pós-parto, nem de ter ficado com um revólver pressionado contra a pele, mas a dor lancinante de seu coração. Ficou olhando para ele ali sentado na cama dela, tão lindo, tão preocupado, tão decente. Ele não estava ali para julgá-la ou condená-la, nem para espezinhá-la ou ficar com pena dela. Ele estava li porque se importava com ela. O ano pareceu repassar em câmara lenta quando ela pensou no tempo que havia passado com Michael Sarkis, até em sua noite com David Goldman. Nenhum deles era a metade do homem que Tom era, mas ela o rejeitara por aqueles fracotes - e, no entanto, Tom só fazia admirá-la. Ela olhou para o bercinho onde seu filho dormia e não pôde deixar de desejar que os três estivessem em casa, como uma família. Tom seguiu os olhos dela. - Ele é um homenzinho e tanto - disse. - Eu sei - disse Serena bem fraco, sua voz baixa e rouca. Os olhos deles se encontraram e ele apertou a mão dela com um pouco mais de força. Será que ele tinha pensado a mesma coisa? Será que ele queria a mesma coisa? - Eu não vou decepcionar você de novo - sussurrou Tom, passando os olhos do rosto de Serena para o bebezinho. - Eu não vou decepcionar nenhum de vocês dois. Cate tinha passado tanto tempo com a polícia, dando depoimentos e sendo interrogada, que quase perdera o nascimento do sobrinho. Camilla tinha ido à delegacia para exigir que Cate fosse liberada, citando todo tipo de legislação e determinação policial confusa. Cate desconfiava que Camilla fora inventando seus argumentos à medida que avançava, mas tinha dado certo, e agora ela estava na lanchonete do hospital, sentada em uma cadeira de plástico, tomando café preto e sentindo as pálpebras pesadas como chumbo. Fazia mais de 24 horas que não dormia, percebeu ao olhar para seu reflexo no vidro. Ainda usava o vestido branco Ungaro da noite anterior. Dormir, dormir: ela precisava dormir.


Quando deixou as pálpebras fecharem por um instante, os acontecimentos da noite anterior lhe vieram à mente em uma enxurrada. Depois de o tiro ter soado, a polícia fora chamada imediatamente. Dimitri tinha tentado fugir em um dos Bentleys de Philip, mas fora pego na estrada Al trinta minutos depois, sangrando muito devido a um ferimento a tiro no braço. Philip e Nicholas tinham negado tudo, mas com Serena berrando suas acusações a respeito de seu sequestro e do assassinato de Oswald, os dois tinham sido levados à delegacia para serem interrogados. Mas Cate não fazia ideia se as alegações a respeito da morte do pai estavam sendo levadas a sério. Era preciso ser realista: se não houvesse confissão, o assassinato do pai seria muito difícil de provar. Além do mais, Philip não confessara exatamente ter matado Oswald, não é mesmo? Ele tivera o cuidado de insistir: "Foi um acidente." Cate deu uma gargalhada de desdém. Duvidava muito. Mas homens como Nicholas e Philip, cheios de conexões, poder e dinheiro suficiente para conseguir os melhores advogados, dificilmente seriam condenados por qualquer coisa. Ela sentiu uma pontada de culpa quando pensou mais uma vez no corpo de Oswald jogado no fosso, imóvel. De algum modo, depois de tudo que tinha acontecido nas últimas 48 horas, a morte dele lhe escapara da mente e ela se sentiu culpada por não estar com um sentimento de luto mais forte. Ela não sabia dizer muito bem se o luto fora adiado por outros acontecimentos ou se o torpor que sentia em relação à morte de Oswald era um desapego que advinha do fato de ela não se importar nem um pouco com aquilo. Papai era um encrenqueiro, era difícil, transformara a vida dela em um inferno. Mas era o pai dela. Quando Cate segurara o bebê de Serena nos braços, na noite anterior, recebendo uma nova geração dos Balcon, havia percebido que a família era o que realmente importava. Apesar de tudo pelo que tinham passado, as quatro garotas ainda tinham umas às outras. Nem os segredos, as mágoas, as tragédias... nem mesmo papai: nada era capaz de romper a ligação entre elas. Aquilo era o que valia. Cate amassou o copo de isopor e se levantou; o vestido plissado brilhou com a iluminação fluorescente. Estava na hora de ir para casa. Jack Kidman estava à espera de Venetia na frente do quarto de Serena. Seus olhos pareceram uma fonte de vida para ela, do outro lado do piso de linóleo. Quando ele aparecera na casa dela na noite anterior, seu corpo todo se derretera em uma poça de alívio. Deitados juntos na cama dela, ele havia lhe dito que tinha entendido suas reações no baile de Natal. Ele não achava que ela deixaria a festa de família; só queria ir para algum lugar para esfriar os ânimos. Ele lhe disse que queria estar lá para lhe dar apoio, mas que isso não significava necessariamente estar do lado dela o tempo todo. Agora, no corredor do hospital, ele estendeu a mão e a puxou para perto de si. - Quer ir para casa? - perguntou. Venetia assentiu com a cabeça. - Kensington ou Westbourne Grove? O coração dela teve um sobressalto, imaginando se ela tinha deduzido coisas demais daquelas palavras. - Você quer dizer a minha casa ou a sua? O corredor estava em silêncio, a não ser pelo som distante de um carrinho sendo empurrado por uma enfermeira. - Este ano, acho que deveria haver uma "nossa" - disse Jack bem baixinho. Agora o coração de Venetia começava a disparar. - Nossa? Jack segurou o rosto dela em suas mãos quentes.


- Quando você estiver pronta - disse ele. - Eu sei que você acabou de perder o pai e o marido e que tem responsabilidades para com a sua família, isso sem falar da sua empresa. Ele parecia acanhado e pouco à vontade ao prosseguir, lentamente. - Mas eu fiquei aqui pensando, bem, acho que tem uma coisa sobre a qual você precisa pensar... - O que é, Jack? - perguntou ela, com um sorriso se formando no rosto. - Bom, como você sabe, a casa em Sevilha está terminada, e eu estava pensando se você não gostaria de ir para lá comigo. Ele examinou o rosto dela, em busca de algum lampejo de emoção. - Não quero ficar morando lá o tempo todo - completou. - Não por enquanto, pelo menos. Mas pensei em passar o verão deste ano lá. Jade, minha filha mais velha, vai passar as férias de verão lá, e eu quero que você também esteja presente. Sei que ainda demora muito, mas se planejarmos desde agora... Ela olhou para ele enquanto ele falava sem parar, nervoso, e seus olhos foram se enchendo de lágrimas. De repente, uma vida nova se descortinando à sua frente. Ela tinha se esforçado muito para fazer sua empresa dar certo – e sempre teria orgulho dessa conquista -, mas amor, filhos e companhia era tudo o que ela realmente desejava, e agora estava tudo ali, à sua disposição. Os olhos de Jack, suaves e daquela cor marrom-chocolate como os de um cachorrinho, só queriam que ela dissesse sim. Ela sabia quais eram suas prioridades. A vida que Jack sempre delineara para si em Sevilha era a ideia dela de utopia: transformar sua casa em escola de arte, passar o tempo sendo criativa, cozinhando com tomates frescos e laranjas colhidas no pé, correndo de um lado para o outro com os três filhos de Jack. Afinal de contas, ela ainda poderia ter uma família: só o tipo de unidade familiar é que seria diferente. - Então, a resposta é sim? - perguntou ele, cheio de esperança. Ela o puxou para mais perto, para beijá-lo, um beijo cheio de esperança, promessa e paixão. E então suspirou. - Ah, é sim, definitivamente. O Audi de Camilla disparava pela estrada de mão dupla, passando por barrancos cobertos de capim e placas para lugares que ela nunca visitaria. As nuvens eram pesadas, o céu, cinzento, lentamente passando para o azul duro do crepúsculo. As luzes do poste passavam por cima de sua cabeça como laranjas penduradas, desenhando uma linha reta pela estrada, como flechas apontando para seu destino. Percorrendo a estrada A23, ela sabia que chegaria lá em cerca de vinte minutos: tinha uma reunião marcada com o inspetor Cranbrook. Duas vezes tinha saído da estrada, enrolando, dividida entre a mentira e sua consciência. Mas a cada vez sua determinação retomara e ela retomara a estrada principal para dar continuidade à sua jornada. Estava na hora de ser forte, de encarar o que tinha feito. Camilla sempre achara que a ambição era o que a movia, mas no decorrer dos últimos dias tinha percebido uma emoção ainda mais forte tomar conta de si. Culpa, moralidade, uma noção de decência: o que quer que fosse, era mais forte do que sua vontade de vencer. Agora, dirigia-se ao sul para contar a Cranbrook a respeito do atropelamento ocorrido anos antes. Ela sabia que isso seria um suicídio profissional. Com Oswald e Douglas Graham mortos, o atropelamento poderia ter morrido com eles. Não havia ninguém, nenhuma testemunha; apenas a carta de Leonard Graham. Mas as irmãs e Nick Douglas a tinham lido: como podia permitir que carregassem aquele fardo? Não era justo fazê-los protegê-la de algo que ela fizera.


Suspirou. Nesta mesma época, no ano anterior, ela tinha tudo: carreira, namorado rico, casa bonita, dinheiro e respeito. Daqui a um ano, podia ser que não tivesse mais nada. Será que iria para a prisão? Mesmo que escapasse desta sina, era quase certo que perderia seu ganhapão. A licença da Ordem dos Advogados, a política... tudo lhe escorreria por entre os dedos como areia quando a informação se tomasse pública. Vozes em sua mente tentaram convencê-la mais uma vez a dar meia-volta e retomar para Londres. Mas ela não podia fazer isso. Parou em um estacionamento atrás da delegacia de polícia de Sussex. Caminhou até a recepção e olhou, nervosa, para a jovem policial loira atrás do balcão. Ela pegou um telefone a seu lado e ficou encarando Camilla com expressão impassível. - O inspetor Cranbrook a receberá agora - disse a mulher, sem a menor emoção. Os olhos de Camilla estavam fixos em algum ponto à sua frente e a boca formava uma linha determinada enquanto ela caminhava pelo corredor frio e pálido. A mão se apertou ao redor da carta de Leonard Graham, dobrada em seu bolso. Estava na hora de remediar as coisas. Cate não conseguia dormir. Nem a coberta fofa de plumas, nem a calça de abrigo de cashmere, nem o silêncio das ruas desertas do ano-novo eram capazes de fazer com que Cate pegasse no sono. Ela podia estar exausta fisicamente, mas sua mente não conseguia parar de processar todas as revelações que tinham se desdobrado nos últimos cinco dias. Deu uma olhada no reloginho prateado em cima de sua mesinha-de-cabeceira: eram 20hl0. Provavelmente não tinha sido uma boa ideia tentar dormir antes de comer alguma coisa: lembrou-se de que só tomara uma xícara de café o dia todo. Forçou-se a levantar do colchão grosso e correu até a cozinha, no andar de baixo; ao passar pela sala, acendeu as luzinhas da árvore de Natal: pareciam sementinhas de romã reluzentes contra o verde escuro do pinheirinho. Ao entrar na cozinha, chutou os chinelos para longe, para sentir a quentura que vinha de sob o piso de calcário aquecido. Abriu a enorme geladeira de aço com um barulhinho. Ai, meu Deus, pensou: frango com a data de validade vencida, espinafre esbranquiçado, uma caixa de verduras orgânicas que pareciam prontas para voltar à terra. Não tinha nem leite para uma xícara de chá. Estalando os lábios em sinal de desaprovação, ela fechou a porta e voltou para a sala. Empoleirou-se na ponta do sofá de couro marrom e ficou olhando para as luzinhas e as bolas da árvore de Natal, imaginando se era capaz de reunir a energia para ir atrás de um mercadinho aberto. Ouviu uma batida de leve à porta e levantou-se, apertando o penhoar em volta do corpo. Talvez fosse Camilla. Ela implorara à irmã para que fosse contar à polícia a respeito do corpo, a história toda. Tinha se oferecido para ir com ela, mas Camilla não aceitara. Não a surpreenderia nem um pouco se Camilla tivesse desistido de ir. Prendeu a correntinha da porta e abriu alguns centímetros para enxergar o visitante parado na ruazinha calçada de pedras na frente de sua casa. - Nick! - disse ela, surpresa, abrindo a porta. Ele estava ali parado com jeans escuros, suéter preto, o sobretudo comprido cor de caramelo e um cachecol azul jogado por cima de um ombro como um universitário. Embaixo do braço, trazia duas sacolas grande que pareciam cheias de compras. - Se você disser que é comida, dou um beijo em você - sorriu Cate, fazendo-o entrar. - Sabia que o seu celular está desligado? - disse Nick, tirando o casaco e largando os sacos no sofá. Olhou para ela com um misto de prazer e preocupação. - Eu não tinha como falar


com você - disse baixinho. - No fim, falei com Tom. Ele está no hospital com Serena, sabia? Cate respondeu com um sorriso terno. - É, eu sei, e fiquei muito feliz com isso. - Mas, bem, ele me disse que você tinha ido embora, então achei que estava em casa. Você parece acabada. - Obrigada - sorriu Cate. - Você sabe mesmo seduzir as mulheres, não sabe? - Mas está tudo bem? - perguntou ele, com os olhos cheios de preocupação. - Eu queria ter estado ao seu lado ontem à noite. - Não se preocupe - respondeu ela, sorrindo. - Tom estava comigo, e ele é mesmo um herói da ação. Eu me senti como se estivesse em Duro de matar ou qualquer coisa do tipo. Imediatamente se arrependeu da piadinha, imaginando se Nick acharia que ela preferiria estar ao lado de Tom. Mas Nick estava pensando nela, não em si mesmo. - Você dormiu? Ela suspirou. - Ainda não. Ele se levantou e pegou-a pelo braço. - Vá lá para cima, tome um banho quente ou deite-se um pouco, tanto faz. Vou preparar a melhor refeição que você já comeu - sorriu ele. - É mesmo? - disse ela, tentando espiar dentro das duas sacolas de compras que ele trouxera. - O que você conseguiu arranjar no mercadinho da esquina? - Hummm, bom, pode ser que se surpreenda, senhorita Balcon – disse ele, provocando-a de brincadeira. - Agora, vá lá para cima. Dou um grito daqui a mais ou menos uma hora. No andar de cima, Cate se afundou no confinamento macio como uma nuvem de sua coberta, cobriu os olhos com um braço e gemeu baixinho. Amizade. Era por isso que ele estava ali. Ou será que estava com pena dela? Tudo parecia tão certo, pensou com tristeza: Nick à beira de um fogão quente, luzinhas de Natal acesas, Cate andando de um lado para o outro na casa. Conforto fácil e íntimo. Era como se os dois fossem certos um para o outro, mas o beijo na manhã de Natal parecia distante demais. Sim, tinham passado horas na companhia um do outro desde então, mas não houvera o menor lampejo de nada romântico entre eles. Longe disso. Nick tinha sido um amigo prestativo que lhe dera apoio: nada mais, nada menos. Pensou nos dois no limiar do ano-novo e de repente se sentiu triste. Podiam estar passando o ano-novo juntos, apesar de ser só por pena da parte de Nick, mas dali a 12 meses a coisa seria bem diferente. Nick sem dúvida encontraria outra namorada e a proximidade entre os dois se desfaria. Ficou imaginando se devia fazer uma última tentativa de dizer-lhe como se sentia, mas, por algum motivo, ela se sentia desesperançada. Tinha se esforçado tanto para ser charmosa e sedutora na festa da véspera de Natal, para se apresentar como uma coisinha mais glamourosa e sexy na frente de Nick... mas qualquer frisson que tivesse se acendido entre eles fora apagado logo no dia seguinte, com a mesma velocidade. À medida que cheiros deliciosos iam subindo para O quarto pelas escadas, ela olhava com tristeza para o teto. Não era justo, não era justo, pensava consigo mesma, quando finalmente caiu no sono. - Está pronto - gritou Nick, e ela acordou. Cate tirou o penhoar, vestiu um suéter cor de caramelo fino e soltou os cabelos do rabo-decavalo. Pelo menos vou me esforçar um pouco, pensou, dando uma conferida em sua imagem no espelho.


Ao entrar na sala, descobriu que o lugar todo brilhava. A mesa tinha sido posta com muito refinamento, enfeitada com azevinho, guardanapos, taças de cristal e um desfile de velas que lançavam uma luz glamourosa em toda a peça. Nick estava ali parado segurando duas taças de champanhe, as mangas de seu suéter puxadas até o cotovelo, uma mancha de farinha na bochecha. - O que é tudo isto? - perguntou Cate, quase sem acreditar naquela transformação. - Achei que íamos comer uma pizza esquentada no microondas. Nick fez um brinde com Cate e virou-se para ligar o som, que logo começou a tocar os primeiros acordes da canção de Sinatra preferida dela. - Eu queria fazer isto do jeito certo - balbuciou ele, limpando a bochecha e fazendo os grãos de farinha caírem como flocos de neve. De repente, ele pareceu pouco à vontade e o ar entre eles ficou pesado. - Eu não sabia bem se esta noite era o momento certo, depois de tudo por que você passou, mas... - ele fez uma pausa, parecendo desconfortável. - ... Mas, Cate, eu não podia esperar mais. - Ele se aproximou dela. - Eu queria terminar o que tentei começar na manhã de Natal. O coração de Cate deu um salto. - Do que você está falando? A hora certa para o quê? - sussurrou. - A hora certa para nós dois deixarmos de ser amigos - disse ele, puxando-a para mais perto e dando um beijo suave e demorado em seus lábios. Foi algo familiar e emocionante, terno e apaixonado. Ela nunca tinha experimentado um beijo mais gostoso. - Devíamos ter feito isso dias atrás - sussurrou ela. Os dedos de Nick acariciaram os dela. - Não, devíamos ter feito isto meses atrás - disse ele. - Mas depois de tudo que você me disse em Milão... - O quê? - disse Cate, erguendo a cabeça em um gesto brusco, surpresa. - Você me disse que não devia acontecer nada entre nós porque trabalhávamos juntos. - Eu nunca disse isso! - respondeu Cate, indignada. - Se me lembro bem, você disse que tinha namorada, e tinha mesmo. - Não, você disse... - começou Nick, com um sorriso se abrindo em seu rosto. - Você disse... - e os dois começaram a rir. Nick colocou as mãos nos ombros dela e olhou-a direto nos olhos. - Eu teria largado Rebecca por você em um segundo - disse ele, acariciando a bochecha dela com o polegar. - Você é minha melhor amiga, minha parceira no crime... - Ele parou e tomou fôlego. - Você é a mulher que eu amo. Cate sentiu uma lágrima escorrendo pela bochecha. - Eu também amo você - disse, olhando bem no fundo dos olhos cor de avelã dele. - Case comigo, Cate - disse ele, colocando seus lábios sobre os dela mais uma vez, de modo que ela sentiu a efervescência leve do champanhe. Sinatra cantava ao fundo, o cheiro do frango assado enchia o ar, a chama das velas estalava. Sensação de pertencer. De estar em casa. Ela afastou seus lábios dos dele só o suficiente para conseguir falar. - Casar com você, Nick Douglas? Mas nós acabamos de nos beijar pela primeira vez - disse ela, enquanto sua boca se curvava em um sorriso vagaroso. Nick pegou a mão dela e olhou para o relógio. - Sua viciada em trabalho, quando precisamos estar de volta ao escritório? - caçoou ele.


- Só na segunda-feira - respondeu ela e colocou as mãos na nuca dele. Nick a apertou com força, como se nunca fosse deixá-la ir embora. - Humm, três dias. Sabe como eu chamo isto? - perguntou ele, passando a mão por seus cabelos. - Não - sorriu Cate no ombro dele. - Muito tempo.


Epílogo Duzentas pessoas se apertaram na igrejinha do vilarejo de Huntsford para o enterro de Oswald. Qualquer pessoa que passasse por ali e escutasse as conversas sobre o falecido e as condolências dirigidas a suas filhas teria achado que o homem era um santo. Maria e as irmãs se sentaram em lados opostos da igreja. Serena foi quem falou sobre o pai, usando um modelo preto Chanel, e levou metade da congregação às lágrimas com sua melancolia cortante. Foi a maior performance de sua vida. O Serviço da Promotoria da Coroa não achou que houvesse evidências suficientes para indiciar Philip Watchorn e Nicholas Charlesworth pelo assassinato de Oswald Baleon. As pegadas deles foram encontradas no túnel secreto que levava à amurada, juntamente com as de Serena e de Maria Dante, mas as demais evidências eram circunstanciais e duvidosas. Simplesmente não tinham força suficiente para fazer jus a um processo longo e dispendioso, para a tristeza das irmãs. No entanto, Watchorn e Charlesworth foram indiciados pelo sequestro de Serena Baleon; Dimitri Vlodanov testemunhou contra eles. O circuito fechado de televisão da residência de Philip também forneceu imagens incriminadoras contra seu proprietário: a imagem granulada mostrava bem quem instruíra Dimitri a levar Serena embora. Os dois receberam pena de 12 meses em prisão aberta. As ações da empresa de Philip desabaram - mais de 100 milhões de libras em desvalorização em uma única semana. As pessoas mais refinadas da sociedade pararam de frequentar o clube de Nicholas, que acabou sendo vendido para um empresário árabe rico por um preço bem baixo. Fierce Temper foi comprado por um norte-americano rico do setor do petróleo e, depois de mais uma temporada de sucesso, aposentou-se como cavalo de cobertura na Irlanda. Como Oswald previu, havia muita demanda para que ele cruzasse com éguas do mundo todo. Declan O'Connor foi investigado pelo Jockey Club por alegação de dopping de cavalos, acerto de resultados e ligações com criminosos de Hong Kong. Finbar, por sua vez, tornouse campeão do Derby. Cate desenvolvera uma fixação pelo desaparecimento de Alistair Craigdale e enviara um jornalista investigativo à América Central para descobrir o que tinha acontecido com ele. Moradores locais do vilarejo em Belize, onde Watchorn havia tido um hotel, lembravam-se vagamente de um homem que se parecia um pouco com uma fotografia de Craigdale. Ele tinha barba, o cabelo era de outra cor e usava o nome Andrew McKinney, mas todo mundo tinha certeza de que era o mesmo homem. Ele tinha desaparecido, supostamente afogado, 15 anos antes, quando seu barco de pesca fora destroçado por uma tempestade. O corpo, no entanto, nunca foi encontrado. Com as novas evidências, Cate fez pressão para que o caso Craigdale fosse reaberto pela Polícia Metropolitana e Philip e Nicholas ainda estão sendo investigados por seu envolvimento. Podem vir a ser condenados por outros crimes. Oswald não elaborara um novo testamento para acomodar Maria, e ela não recebeu nada. Mudou-se para Paris, onde passou o verão nos braços de um conde de 69 anos rico e com dois casamentos, que era dono de uma extensa vinícola no departamento da Champagne e tinha paixão pela ópera. A imprensa da sociedade francesa prevê casamento. O apelido que lhe deram é La Croqueuse de diamants.


Venetia retornou a Sevilha com Jack depois do casamento de Cate, onde passou um verão perfeito na finca, pintando, nadando e andando a cavalo com a filha de 12 anos de Jack, Jade. Jack comprou as ações de Jonathon na empresa de Venetia de Stefan von Bismarck por um preço inflacionado. A loja em Nova York será inaugurada em breve. O testamento de Oswald deixou Huntsford para Serena, que, por sua vez, transferiu-o para Venetia. - Você vai amar a casa - dissera-lhe ela durante o almoço no Le Caprice. - Você vai fazer muito mais jus a ela do que eu jamais seria capaz de fazer. Venetia chorara em cima de sua salada Caesar. A reforma que Venetia fez em Huntsford ficou estonteante e deu vida nova à antiga residência. Quando não estão em Sevilha, Jack e Venetia vivem lá. As filhas de Jack os visitam nos fins de semana e nas férias. Quando o casal está na Espanha, o castelo fica aberto ao público. Camilla retirou sua candidatura por Esher em meio a um burburinho de controvérsia e tirou licença do escritório de advocacia. Pelo atropelamento ocorrido 11 anos antes, ela foi indiciada e se declarou culpada por não prestar auxílio à vítima e por não relatar o acidente. A polícia resolveu não indiciá-la pela infração mais grave de homicídio culposo por dirigir de maneira imprudente. Ela recebeu a sentença de cem horas de serviço comunitário. Camilla se considera uma mulher de sorte. Sua vida está tomando outra direção, mas todo mundo que testemunhou sua força, sua coragem e seu talento sabe que, independentemente do que resolva fazer a seguir, Camilla Balcon será bem-sucedida. Nat Montague se casou com uma modelo escandinava de roupa de banho, de quem se divorciou dez meses depois. Camilla relatou as ameaças de David Loftus ao inspetor Cranbrook durante a conversa que tiveram. Seguindo as instruções da polícia, Cate e Venetia se reuniram com Loftus em Huntsford no dia 2 de janeiro. Alheio à investigação de Watchorn e Charlesworth em relação ao assassinato de Oswald, Loftus repetiu suas exigências. A biblioteca estava grampeada, as ameaças foram gravadas. Ele foi indiciado por tentativa de chantagem e se declarou culpado; depois sofreu um ataque dos nervos durante o cumprimento de sua pena de 12 meses de prisão. O livro com as memórias de Oswald ainda não foi finalizado. Serena ligou para Michael Sarkis no dia 10 de janeiro para lhe contar sobre o nascimento do filho e para reafirmar, se é que restara alguma dúvida naquele dia no heliporto de Battersea, que recusava seu pedido de casamento. - Agora que a criança nasceu, a oferta está retirada, de qualquer modo. Eu só queria Huntsford - respondera ele, cheio de audácia. Mas de fato mandou um cheque de cem mil dólares para o sustento da criança, que foi imediatamente devolvido. A tentativa de sequestro de Serena foi manchete em todo lugar. O agente e empresário dela em Nova York, que ficara surpreendentemente silencioso durante sua gravidez, não mais largava o telefone. O filme de Tom, Campbell, foi um enorme sucesso. Serena recebeu


críticas fantásticas e Hollywood finalmente quis chamá-la, depois de ela sair na capa da Vogue norte-americana... duas vezes. Mas até que Toby, seu filho, entre na escola, ela se limita a dois ou três projetos por ano. Está decidida a ser uma boa mãe e, na segunda chance que teve, uma namorada melhor para Tom. A Sand ganhou o prêmio de Revista do Ano. O Grupo de Publicações Sand está lançando uma nova revista feminina, com investimento de uma empresa de capital do distrito financeiro. William Walton continua desempregado. E, em um dia quente de julho, naquele verão, Cate e Nick se casaram. O casal fez questão de que a comemoração fosse discreta e íntima; a única extravagância foram os diamantes avaliados em 4 milhões de libras que Serena tomara emprestado em nome da noiva. Não que Cate precisasse de ajuda para brilhar em seu grande dia enquanto flutuava pela igreja do vilarejo de Huntsford, estonteante com um tubinho tomara-que-caia Valentino em seda cor de baunilha. Venetia a entregou a Nick Douglas, que, muito emocionado, a esperava no altar. O Rolls Royce 1922 de Oswald, sem capota e enfeitado com fitas brancas, levou os recém-casados para Huntsford, onde os convidados da festa no jardim de inverno saborearam um jantar com vichyssoise, carré de cordeiro e, de sobremesa, torrone. Depois, foram todos para o terraço tomar Pimms e saborear porco assado. Elmore Bryant fez um set de uma hora no piano de cauda de Huntsford. Todos disseram que foi o casamento do ano. David Goldman não foi convidado. O título de barão de Huntsford está em suspenso, à espera de um herdeiro homem legítimo para a propriedade. - O que você acha de ser pai de um lorde? - perguntou Cate durante a lua-de-mel, voltandose para o marido no terraço da suíte em Partofino. - Eu sou só um pobretão de Sheffield - sorriu Nick, dando um golinho em seu Beilini e abraçando Cate enquanto observavam o sol preguiçoso deslizar no horizonte. - É melhor ir se acostumando com a idéia - sorriu Cate, batendo na barriga lisa que não permaneceria assim por muito tempo. - Está brincando! - Ele olhou para a mulher, brilhando à luz do crepúsculo, e percebeu que nunca a amara mais do que naquele momento. - Lorde Balcon - sorriu ela, pousando a cabeça no ombro de Nick. Ela sabia que tudo daria certo.

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