The 4400 welcome to the promise city greg cox

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Welcome to the Promise City Greg Cox Traduzido por: VinĂ­cius Fernandes Helena Padim DisponĂ­vel em: brenooficial.wordpress.com


UM − É a hora, pai − disse Kyle. Ele entregou ao pai uma seringa contendo um luminoso líquido âmbar. Tom Baldwin girou a seringa entre o s dedos enquanto contemplava a dose de promicina em suas mãos. Para muitas pessoas, a injeção ilegal oferecia chances de 50% de ganhar uma notável habilidade sobrenatural – o u d e morrer d e uma maneira horrível. Mas Tom estava destinado a sobreviver à dose, ou pelo menos fora o que tinham lhe contado. De acordo com seu filho, o futuro queria que ele desenvolvesse uma habilidade própria. Talvez hoje…? ― Sua identidade, senhor? A voz arrancou Tom de sua lembrança, trazendo-o de volta ao presente. Batidas n a janela d o lado d o motorista d e seu sedan Chrysler azul. Ele baixou o vidro e entregou a identidade a uma dos guardas da fronteira postada na barricada. Uma brisa úmida de janeiro invadiu o carro, assim como o odor de cansaço. Dúzias de veículos formavam uma fila na I-5 enquanto aguardavam permissão para deixarem Seattle. A julgar pelas caixas e malas pressas a o s tetos d o s carros, e pelos grandes trailers U-Haul, muitos deles estavam saindo de vez. Menos de dois meses haviam se passado desde que um surto de promicina que se espalhava pelo ar assolou Seattle, matando mais de 9000 pessoas, e a cidade ainda não tinha se recuperado do desastre. O fato de que outras nove mil pessoas, mais a s q u e haviam sido dotadas c o m habilidades sobrenaturais contra suas vontades, apenas contribuía p a r a essa instabilidade. Sem espanto, milhares de sobreviventes, especialmente pessoas normais sem habilidades especiais, escolheram procurar pastos mais seguros e m outro lugar. Mais de quatro milhões de pessoas viviam e m Seattle; e quase três quartos desse número haviam diminuído. Tom não podia culpá-los. Seattle era um lugar perigoso atualmente. E fica mais ainda a cada momento, ele pensou. A guarda examinou as credenciais de Tom. Um uniforme de colarinho alto, cor de pinho e e m ótimas condições a identificavam como uma das voluntárias Policiais da Paz de Jordan Collier. “NTAC, é?”, a voz da mulher se tornou áspera. O Comando Nacional de Avaliação à Ameaças (National Threat Assessment Command, em inglês) não era exatamente popular entre os seguidores de Jordan Collier, o incontroverso líder do Movimento Promicina-Positiva, que havia tomado, em grande parte, Seattle, conhecida em alguns círculos, agora, como “A Terra Prometida”. Durante o desastre, s e u povo, q u e e r a imune à praga (tendo s e exposto à promicina


anteriormente), havia dado um passo à frente para manter a ordem – e fazer Seattle se render às autoridades. Embora Collier ainda não tivesse declarado oficialmente a independência da cidade, e tivesse impedido-a d e t o m a r qualquer título ou posição formal, ele e seus companheiros estavam no controle do governo e d a infraestrutura d a cidade. A t é onde movimento sabia, NTAC, um divisão da Segurança Doméstica, era parte da velha opressão a qual eles haviam usurpado – e jogado-a nos lixos da história. — Isso mesmo — disse Tom. Ele não conseguia evitar pensar qual o tipo de habilidade que a guarda possuía; todo o povo de Collier havia sido mudado por promicina de um jeito ou de outro, e acreditava que tinha um destino sagrado de mudar o mundo. Até o nome do desastre era controverso. Collier e seus seguidores de referiam a ele como “O Grande Passo Adiante”. A maioria do resto o chamava de “50/50”. Ele manteve a voz neutra, sem querer provocá-la. A guarda não parecia estar armada, mas isso pouco importava no que dizia respeito aos p-positivos. Pelo que Tom sabia, essa mulher podia matá-lo com um pensamento. — Acho que vai ver que meus papéis estão em ordem. A guarda olhou de soslaio para sua identidade. — Acho que sim — concordou ela, com rancor. — No entanto, se eu fosse você, continuaria andando e nunca mais voltaria. Ela jogou os papéis de volta para ele. — Seu tipo não pertence mais a este lugar. Tom sentiu-se tentado a deixar claro que ele nascera e crescera em Seattle e que tinha muito mais direito de viver ali d o que qualquer outra pessoa, mas segurou sua língua. Tinha assuntos mais importantes com os quais lidar hoje, desde que ele conseguisse sair da cidade. — Te vejo mais tarde — disse ele, simplesmente. — No meu caminho de volta. A guarda franziu as sobrancelhas, mas acenou mandando-o continuar. Um portão de alumínio automático elevou-se e o deixou passar. Um par de cones metálicos laranjas cercava a estrada. Embora estivessem desativados agora, os cones eram capazes d e gerar ondas de dores intensas quando ativados. Eram a primeira linha de defesa da Terra Prometida. Tom não se importou em fechar a janela antes de se dirigir para o norte, já que tinha apenas m ei o quilômetro antes d e parar e m u m segundo bloqueio. Este era formado por imponentes soldados empunhando a r m a s automáticas. Seus uniformes e insígnias os identificavam como membros d o exército americano. Um guarda se aproximou do lado do motorista do carro. Lá vamos nós de novo, pensou Tom. Um impasse difícil existia entre o governo federal e a Terra Prometida, os federais dificilmente ficariam felizes em entregarem uma grande cidade americana a u m traficante messiânico c o m u m culto d e perseguidores, m a s a s habilidades extraordinárias d e Jordan Collier e seu povo, assim como a tecnologia futurística em seu comando, faziam a retomada


de Seattle exigir grande empenho. Mesmo antes d a praga, a comunidades d e revolucionários p-positivos conseguira evitar qualquer tentativa d o governo d e levá-los sob custódia. Agora, c o m s e u exército literalmente ganhando milhares de novos recrutas, Collier era muito conhecido – e não somente e m Seattle. Sabia-se que ele possuía agentes; capazes d e gerar tornados, furacões e Deus sabia o que mais, posicionados pelo país inteiro, prontos para causar destruição se os Federais tentassem enviar tropas para retomar Seattle. O que serão obrigados a fazer eventualmente, pensou Tom. Todos sabiam que um confronto maior era inevitável, mas ninguém queria uma nova versão de Waco n a cidade, então a s forças d e ambos o s l ados estavam aproveitando seu tempo e segurando suas respirações. Como o resto de nós. Ele mostrou sua identidade ao soldado, um rapaz jovem aparentemente da mesma idade de Kyle. O guarda relaxou um pouco quando viu as credenciais da NTAC de Tom. Seus parceiros armados s e postavam cautelosamente, segurando firmemente seus rifles de assalto M16. Ele não culpava os guardas por serem tão cautelosos; eles estavam na fronteira de uma evolucionária guerra civil. — Por favor, saia d o veículo — pediu o jovem guarda. Ele deu u m passo para longe da porta. Tom suspirou impaciente, mas não tentou desobedecer. Saiu do carro. Uma jaqueta escura, uma camiseta pólo de gola aberta e calças escuras o distinguiam dos outros. Cabelos loiros arenosos coroavam suas feições enrugadas. Os exaustos olhos azuis entregavam as situações que ele passara nos últimos quatro anos. Abriu o blusão para revelar o coldre pendurado em seu quadril. O guarda olhou desconfiadamente para a arma, mas nada fez. Tom ficou parado enquanto o jovem soldado digitava seu nome em um PDA, comparando com uma enorme lista dos conhecidos como “terroristas” p-positivos. Cães Pastores Alemão checaram o Chrysler para certificarem-se que Tom não estava contrabandeando promicina para fora da cidade. Embora fosse distribuído abertamente e m alguns bairros d e Seattle, o neurotransmissor artificial continuava sendo estritamente ilegal no resto do mundo. A mera possessão de promicina trazia um mandato de prisão, o que não fez Collier e seus discípulos pararem de tentar dar a droga para quem a quisesse, de graça. E segundo ocorrências q u e T o m h a v i a vi st o, Collier est ava conseguindo atingir seus objetivos, exceto com as tais medidas rigorosas que Tom experimentava neste momento. Depois de feita uma boa busca no carro, os cães se aproximaram e também farejaram Tom, n o caso d e ele estar carregando a promicina n o próprio corpo. Ele tentou recuar quando os caninos suspeitos invadiram seus espaços pessoais. Que bom que deixei aquela seringa em casa… Tom estava sentado no sofá de sua sala de estar, com a seringa nas mãos.


O estranho brilho amarelo da promicina causava arrepios em sua espinha. Ele havia testemunhado de perto o efeito causado naqueles que não tiveram sorte suficiente para fazer história com o 50/50, vendo o sangue brilhoso jorrar de seus olhos e narizes como convulsões violentas que consumiam os últimos momentos de suas vidas. Tomar a dose era como brincar d e roleta russa, m a s c o m o s piores acidentes. S u a própria i r m ã havia s i d o m or t a pela promicina menos de uma semana antes, junto com milhares de vítimas inocentes. Não acredito que estou mesmo considerando isso, ele pensou. — Vá em frente, pai. — Kyle o instigou. Seu filho, um jovem magro com cabelo castanho curto, estava sentado ao seu lado no sofá. Ele estava vestido casualmente, com uma camiseta branca listrada e calças jeans. U m a mochila de ombro, contendo um livro de profecias místicas, estava amarrada ao seu peito. Kyle já tomara a dose, contra a vontade d e Tom, há muitos meses e abandonara a faculdade para se tornar o braço direito de Jordan Collier. Tom não entendia muito bom como funcionava a habilidade de seu filho, mas sabia que ele havia adquirido algum tipo d e dom pré-cognitivo que o havia levado até u m livro misterioso que parecia profetizar a ascensão de Collier e do eventual “Paraíso na Terra”. Tal livro também listava diversos indivíduos q u e estavam destinados a desempenhar importantes papéis na salvação do mundo. O nome de Tom estava nessa lista. Alguns anos antes, ele não teria levado a sério essa conversa sobre profecias e destino. Havia sido um agente federal cético com curta paciência para papo furado sobre ficção científica. Mas isso fora antes de 4400 pessoas desaparecidas aparecerem repentinamente nas cercanias de Seattle com estranhas habilidades e sem memórias de onde haviam estado. Os 4400 viraram o mundo de Tom de cabeça para baixo, mesmo antes de ele descobrir que o retorno deles fora providenciado por agentes do tempo do futuro, como parte de um plano elaborado para impedir uma catástrofe eventualmente. No começo, somente os 4400 “retornados” possuíam habilidades sobrenaturais, m a s u m a v e z q u e o neurotransmissor responsável pelos seus dons fora isolado e replicado—por uma iniciativa patrocinada pelo governo, ironicamente—o gênio da promicina saíra da garrafa. Agora, Tom não sabia n o que acreditar. Nesse cruel mundo novo de viagens no tempo, telepatia, projeção astral, e qualquer outro caso de esquisitice, por q u e u m l i v r o m ofado n ã o p o d i a predizer s e u futuro? Especialmente se ele tivesse sido implantado no passado por agentes do futuro. Mas com que propósito? — Vai dar tudo certo, pai. — Kyle insistiu. Convicção, e um fervor religioso, brilharam em seus gentis olhos castanhos. Diferentemente do pai, ele tinha fé total em Collier e na sua visão do futuro. — O livro diz que você vai sobreviver. — Não sei — replicou Tom, balançando a cabeça. — Não tenho certeza s e estou pronto para isso. Não depois de tudo pelo que passei recentemente. Sua mão foi até sua orelha esquerda, onde os dedos encontraram uma marca em forma de X escondida atrás do lóbulo. A intrigante cicatriz era um lembrete d e que, h á menos d e uma semana, Tom havia sido Marcado por conspiradores d o futuro, que haviam tomado mentes e


corpos de homens e mulheres proeminentes numa tentativa traiçoeira para impedir que Collier e seus seguidores mudassem o futuro. Os Marcados, que pertenciam a uma facção rival aos viajantes d o tempo q u e haviam retornado o s 4400 a o presente, haviam injetado máquinas microscópicas—nanômetros—em Tom que haviam substituído sua personalidade por a de um impostor sem piedade que faria de tudo, até mesmo assassinato, para cumprir a sinistra agenda dos Marcados. Os assassinatos ainda assombravam a memória de Tom, como um pesadelo do qual não se podia acordar. Ele olhou d e relance para mesinha de centro em frente ao sofá. Os rostos de Curtis Peck e de Warren Trask o encaravam. Ele se lembrava de ter matado os dois. A culpa o invadiu. Embora ele soubesse que intelectualmente não havia sido o responsável pelas mortes dos homens, que havia sido literalmente possuído por outra entidade quando cometera os assassinatos, ainda assim não sabia se podia viver com as lembranças. Kyle achava que tomar a dose faria tudo melhorar. Isso justificaria toda a dor e sofrimento q u e To m vinha enfrentando e abriria u m a porta para u m futuro melhor para toda a raça humana. Tom não tinha tanta certeza… — Acabei d e voltar a mim, Kyle. Acabei de… tirar essas coisas d o meu cérebro — Ele colocou a seringa na mesinha, ao lado das fotos acusadoras. Olhou para o filho, esperando que Kyle entendesse. — Não estou pronto para injetar outra poção do futuro no meu corpo. Mesmo que isso não m e mate, não quero mais mudar. Quero ser o simples, comum, Tom Baldwin novamente. — Mas… — Desapontamento tomava o rosto longo d e Kyle. Ele vinha “empurrando” a dose para o pai há meses. — A profecia, o Paraíso na Terra… Você tem que tomar a dose. O futuro depende disso. — Talvez — disse Tom. Ele odiava ter que desapontar Kyle desse jeito. O recém-formado comitê de seu filho para a causa de Collier se punha com frequência entre eles. Ainda assim, ele colocou a seringa numa malinha almofadada e fechou a trava. — Mas não hoje. — Certo — informou o guarda. — Está limpo. Tom entrou novamente no carro e passou pelo bloqueio. Deixando a Terra Prometida para trás, pelo menos por algum tempo, ele dirigiu para o norte na Interestadual 5. O trânsito era intenso para uma tarde de domingo, mas diminuiu assim que ele entrou na 526. Uma curta travessia o levou das docas em Mukilteo para o sudeste de Whidbley Island. De onde estava, era apenas um curto trajeto através da ilha para seu destino: o Parque Estadual Fort Casey. Localizado no topo de íngremes abismos, sobrepondo-se sobre o litoral de Juan de Fuca, Fort Casey fora construído por volta de 1890 para guardar a entrada de Puget Sound de ataques marítimos. Embora tivesse sido u m presente antigo pelo advento d e poder aéreo depois da Primeira Guerra Mundial, a posição imponente d a fortaleza f o r a preservada c o m o um


monumento histórico. Colunas massivas d e concretos encaravam a s ondas abaixo. Artilharia antiga estava montada em carruagens ocultas no topo das paredes cinza encharcadas. Torres de vigilância afluíam das colunas. Escadarias e passarelas dilapidadas haviam servido, antes, para tropas que passavam por ali. Um farol branco alto fora construído um pouco mais acima da margem, apenas a uma pequena caminhada da fortaleza. Sua aparência pálida e aconchegante entrava em contraste com as ameaçadoras ruínas militares. Tom se lembrava ter levado Kyle ali anos atrás. Uma nostalgia angustiante trespassou seu coração enquanto ele se recordava de como o garoto havia gostado de explorar a velha fortaleza. Juntos, eles haviam empunhado a s armas anciãs e fingido atirarem e m navios de guerra imaginários. A vida parecia muito mais simples antes. Agora Kyle e r a u m homem crescido, empenhado nas perigosas ambições d e Jordan Collier, e o s verdadeiros invasores vieram através do tempo, não do mar. Fort Casey era mais obsoleto do que sempre. Um campo gramado separava o estacionamento das colunas. Em dias mais ensolarados, o campo geralmente atraía pessoas q u e gostavam d e empinar pipa que enchiam o céu com elaboradas construções aéreas, mas o inverno desanimador havia espantado os visitantes. Uma névoa úmida cobria o chão. Uma forte garoa caía de um céu nublado. Havia somente mais um carro parado ali perto: um Lincoln Town com placa de Washington. Parece que temos o lugar só para nós, pensou Tom. Provavelmente também, sobre o que quer que o encontro secreto fosse, não era de interesse público. Por que escolher um ponto de encontro tão heterodoxo? A curiosidade, assim como a chuva incessante, o levou através do campo. Ele fez caretas quando a água gelada escorreu pela sua nuca; como muitos nativos de Seattle, ele não seria visto carregando um guarda-chuva. Uma rápida corrida o levou até uma passagem em forma de arco na base da coluna mais próxima. Uma porta de ferro flanqueava a soleira. Ele entrou nos confins d e u m tenebroso armazém de tiros e pólvoras. A sala escura estava vazia com uma cela de prisão. Algas verdes s e esticavam pelas paredes d e concretos. U m a haste vazia de elevador conectava o armazém de pólvoras com as armas amontoadas um nível acima. A água da chuva entrava pela porta, molhando o chão de pedra rígida. Tom balançou a água do cabelo e olhou em volta da sala. A princípio, não viu ninguém e imaginou que talvez houvesse entrado no armazém errado. A velha fortaleza e r a cheia de cantos isolados, o que contribuía para o local ser escolhido para o encontro. As densas paredes de concreto desencorajavam qualquer vigilância eletrônica. Sem chance alguma, como posso ver. Ele estava prestes a sair na chuva quando ouviu um ruído de locomoção às suas costas. Sua mão foi instintivamente para o coldre enquanto ele se virava para ver duas figuras emergindo de um dos armazéns interligados. Uma era masculina, a outra feminina. O primeiro não era alguém que ele estivesse ansioso para ver. — Já era hora de chegar aqui — disse Dennis Ryland. — Você está atrasado.


DOIS O ex-chefe de Tom era magro, tinha cabelos negros e era mais o u menos vinte anos mais velho que ele. Um casaco de lã cinza cobria sua figura magra. Astutos olhos castanhos surgiam em seu rosto traiçoeiro. Depois de ter sido expulso da NTAC por causa de um grande escândalo há três anos, Ryland acabou na Corporação Haspel, uma firma privada de segurança que geralmente trabalhada lado a lado com os federais quando dizia respeito a destruir 4400 e outros positivos. S e duvidasse, Ryl and a t é t i n h a m a i s p o d e r d o q u e antes—e menos supervisão. Isso o fazia um homem perigoso. Muito perigoso, até onde Tom sabia. — Olá, Dennis — disse ele, friamente. Sua mão se afastou da arma. Ryland olhou para um caro relógio de pulso Rolex. A vida num setor privado claramente tinha seus benefícios. — Estava começando a pensar que tinha desistido. — Pensei nisso — confessou Tom. Ele e Dennis haviam sido amigos uma vez, mas havia pouca amizade sobrando entre eles atualmente. Tom ainda julgava p-positivo como pessoas; Ryland os via apenas como ameaças a serem neutralizadas e preferencialmente eliminadas. A amizade deles não tinha sobrevivido a esse confronto de pontos de vista. — É melhor que isso valha a viagem. Um sorriso seguiu-se ao tom hostil de Tom. — Desculpe te fazer vir até aqui — disse Ryland —, mas, como você sabe, eu não sou mais bem-vindo em Seattle. — Imagino — disse Tom. Entre outras coisas, Ryland estivera por trás de um complô para envenenar o s 4 4 0 0 originais c o m u m a dr oga experimental que quase m a t o u t o d o s os retornados, inclusive o próprio sobrinho de Tom. Embora Ryland tivesse recebido apenas uma leve punição devido ao infame Escândalo do Inibidor, Collier e seus seguidores se referiam a ele como “criminoso de guerra”. Banir Haspelcorp d e Seattle era apenas u m dos primeiros itens n a agenda de Collier. Da última vez que Tom ouvira, a empresa estava localizada fora de Tacoma, o que ainda era perto demais para conforto. Ryland observou o tom sarcástico de Tom. Ele gesticulou na direção de sua acompanhante: um jovem asiática vestindo um sobretudo branco com cinto. Seu cabelo era de um corte curto e bagunçado. Apesar disso, um elegante par de óculos escuros ocultavam seus olhos. — Você deve se lembrar de minha sócia, a senhorita Simone Tanaka. — Como poderia esquecer? — disse Tom, ironicamente. Ele e sua parceira haviam prendido Tanaka pessoalmente mais de um ano e meio atrás, depois de expô-la como parte de u m extinto grupo conhecido como “Nova Group”. Ele perdera o rastro dela depois que a National Security a levou sob custódia, e ficou pouco surpreso de encontrá-la trabalhando com Ryland. Filosoficamente, Nova Group e Haspelcorp estavam e m lados opostos; Nova Group


até mesmo tentara assassinar Ryland h á algum tempo. — Uma empresa u m pouco estranha, não é? Para uma ex-radical, quero dizer. Ela deu de ombros. — Os tempos mudam. Dada a escolha entre passar o resto de minha vida trancada numa solitária, dopada pelo inibidor, o u emprestar meus talentos especiais para a s autoridades em troca d e certos privilégios… Bem, você ficaria surpreso como a opinião de alguém pode mudar. Talvez para algumas pessoas, pensou Tom. Ainda assim, ele estava relutante e m julgar Tanaka tão cruelmente. Quem sabia o tipo de pressão que Ryland e seus comparsas exerciam sobre ela para sua cooperação? Sem mencionar o fato de que a linha entre o s mocinhos e os bandidos estava ficando realmente borrada. Tanaka não era a única cujas alianças haviam mudado com o tempo. Às vezes, até mesmo Tom não sabia de que lado estava. — Dispensando as formalidades — disse Ryland. — Vamos nos focar no trabalho? Tom balançou a cabeça. — Ainda não. — Ele encarou os dois suspeitosamente. — Me deixe checar a parte de trás de suas orelhas. — Acha que estou Marcado? — Ryland bufou com a ideia. — Está ficando paranoico, Tom. — Tenho razões para estar. — Tom não estava surpreso que Ryland sabia sobre os Marcados; sem dúvida seus contatos no Comitê de Inteligência haviam lhe contado sobre os conspiradores ladrões de corpos. Ele se postou atrás de Ryland e de Tanaka. — Se não se importam. Ryland suspirou cansado. — Se isso te deixar mais tranquilo. — Ele deixou que Tom olhasse atrás de sua orelha. Para o alívio do agente, a pele sob o lóbulo não continha uma cicatriz no formato de um X. — Percebe q u e i s s o é u m a per da d e tempo, n ã o percebe? — objetou Ryland. — Dificilmente eu precisaria ser possuído por uma sinistra entidade do futuro para querer salvar o país dos 4400 e do movimento revolucionário de Collier. Ele tem razão nisso, admitiu Tom. Marcar Ryland seria redundante; o homem já era obcecado em destruir os 4400. — Acho que você e os Marcados estão na mesma página. — Sabe o que dizem — Ryland respondeu. — O inimigo do meu inimigo, etc. Tom não gostou de como aquilo soou. Era apenas um blefe ou ele estava mesmo tomando lados com o s Marcados? Deus sabe que eles tinham planos parecidos e andavam n o mesmo imponente círculo industrial-militar. Isso poderia trazer grandes problemas. Convencido de que o preconceito de Ryland vinha dele mesmo, e que não fora implantado


por algum dos Marcados, Tom se moveu na direção de Tanaka. Havia mais alguma outra coisa nela que interessava Ryland? — Com licença — disse ele enquanto se postava atrás dela. — Seus óculos. — Vá em frente. — Ryland a instruiu. D e costas para Tom, ela removeu os óculos. Dedos delicados tiraram o cabelo de sua orelha. Uma lufada de perfume fez cócegas nas narinas de Tom. — Faz isso com toda garota que conhece? Faria se eu fosse solteiro, pensou Tom. Ele estivera se envolvendo com sua chefe, Meghan Doyle, havia meses. E, para dizer a verdade, às vezes ele checava por trás da orelha quando estavam fazendo amor ou no chuveiro. Ele tentava ser sutil com isso, mas suspeitava de que Meghan sabia o que ele fazia, mesmo que ela nunca houvesse dito alguma coisa. Meghan entendia o que os Marcados haviam feito com ele. Ela fora umas das primeiras que enxergara através do falso Tom. — Isso não é da sua conta — replicou ele. A pele da mulher provou estar igualmente sem marcas e ele se distanciou dela. Ela colocou os óculos. — Satisfeito? — Ryland perguntou a ele. — Por enquanto. — Tom virou-se para encarar o casal. — No entanto, parte de mim meio que deseja que tivesse encontrado uma Marca em você. Isso explicaria o que aconteceu com o homem que eu conhecia. — E u nunca mudei — insistiu Ryland. — É você quem deixa seu apego sentimental a essas ameaças fazer com que não enxergue o que precisa ser feito. Falando nisso, ouvi q u e você e q u e a Diretora Regional Doyle estão gozando de uma íntima relação incomum no trabalho. — Ele balançou a cabeça, desaprovando. — Primeiro a Mareva e agora mais uma aberração p-positiva? Junto com outros funcionários da NTAC, Meghan havia sido involuntariamente infectada p o r promicina durante o 50/50. E c o m o o s outros sobreviventes, e l a desenvolvera uma habilidade 4400. Isso impusera u m dilema para a NTAC, que ainda estava encarregada de continuar a luta contra promicina. Como resultado, a agência havia adotado uma política “não pergunte, não conte” envolvendo todos o s funcionários que haviam ganhado habilidades contra suas vontades. Todos sabiam o que havia acontecido com eles, mas deviam ser discretos quanto a isso… ou enfrentar um extermínio imediato. — Cuidado com o que diz. — Tom o alertou. Ele ficou tentado a socar Ryland no nariz, mas escolheu não ceder. Afinal de contas, ele ainda não sabia por quê o homem pedira este encontro. — O que você quer, Dennis? — A mesma coisa de sempre — declarou Ryland, indo direto ao assunto. — Evitar que os 4400 e os outros positivos destruam nosso modo de vida e coloquem em risco nossa segurança


nacional. Hoje, isso significa destruir Collier e seu Movimento. Ele levantou um frasco de plástico e colocou dois comprimidos marrons em sua palma antes de jogar as pílulas na boca. Tom reconheceu os comprimidos como ubiquinona, um suplemento nutricional comum que, em dosagem suficiente, podia dar imunidade temporária à promicina. As autoridades vinham estocando “U-pills” há meses, apesar do esforço de Collier de sabotar a iniciativa através de suspeitos terremotos cirúrgicos e tornados. Todos o agentes p-negativos da NTAC recebiam rotineiramente doses de emergência quando estavam e missão. A de Tom estava guardada no seu bolso traseiro. — Infelizmente — continuou Ryland. —, como mencionei antes, meu pessoal não é bemvindo em Seattle, o que significa que são você e seus colegas quem devem destronar Collier, mesmo que isso signifique tirar vantagem da conexão de seu filho com Collier. — Kyle? — Tom se arrepiou com a ideia. — Quer que eu explore meu próprio filho? Ryland não negou. — Como confidente e braço direito de Collier, ele é o único meio que seríamos burros se não utilizássemos. Entendo que isso que t e coloque e m uma posição difícil, mas seu dever com o país é maior do que sua obrigação familiar. — O tom severo lembrou Tom de como Ryland liderava o escritório noroeste da NTAC. — Você ainda é um agente federal, Tom. Não m e diga que aprova Collier transformando Seattle em seu próprio feudo? — Claro que não. — Tom não confiava nem um pouco em Collier, mesmo que eles tivessem sido forçados a trabalharem juntos em uma ocasião. De fato, NTAC já estava fazendo o melhor para ficar de olho em Collier e e m sua organização, dada a situação atual. Mas ele não gostava de receber ordens de gente como Ryland. — Deixe o Kyle fora disso. — Queria poder deixar — disse Ryland. — Eu costumava ir às festas de aniversário dele, se lembra? Pelo que me recordo, ele gostou muito daquele kit de química que dei quando fez onze anos. — Sua voz assumiu um tom de pena. — Mas o Kyle fez seu próprio jogo quando decidiu se juntar a Collier. — Ele não resistia tocar um pouco na ferida. — Você já pensou que você é um mau exemplo por dormir com o inimigo? Tom franziu o rosto. — Você não vai ganhar aqui, Dennis. Por que deveria te ajudar? — Os nomes Curtis Peck e Warren Trask te lembram algo? — O rosto magro de Ryland se tornou rígido. Tom recuou à menção do nome do homem que ele assassinara enquanto estava Marcado. — Odiaria vê-lo pagar por crimes que cometeu quando estava fora d e si, mas não posso evitar que suas atividades extracurriculares me dão certo poder. Simone Tanaka deu um sorriso amargo. — Nossa, isso me soa familiar. — Não tente m e ameaçar. — Tom não tinha certeza s e o outro homem estava ou não


blefando. Agora que começara, usaria o melhor que pudesse. — Não sou o único com roupas sujas. Você quer que o mundo saiba que a promicina que Collier usou para impulsionar seu Movimento foi criada pela Haspelcorp durante sua direção? Pelo que eu saiba, isso o torna indiretamente responsável por tudo o que aconteceu desde então. Incluindo o 50/50. Ryland ficou carrancudo, incapaz de contradizer as acusações de Tom. Collier havia roubado a promicina feita pela Haspelcorp bem debaixo de seu nariz há dois anos. A droga seria usada para criar um exército reforçado de soldados para combater os 4400, mas Collier encontrara outro uso para ela, ou seja, oferecera para o mundo todo. — Touché — disse Ryland, recuando. Tentou outra carta. — Suponha que eu t e diga que Collier está tentando usar promicina como arma para recriar uma versão do vírus lançado no ar por Danny Farrel há alguns meses. Tom estremeceu a menção do nome de seu sobrinho. Danny não queria machucar ninguém quando s e injetou promicina. S ó quis ganhar u m a habilidade como seu irmão mais velho, Shawn, um dos 4400 originais. Mas, para seu terror, e o maior arrependimento do mundo, ele adquirira a medonha habilidade de infectar qualquer u m e m volta dele com uma alta forma contagiosa d e promicina. Como uma Typhoid Mar y moderna1, e l e espalhou a praga por Seattle antes mesmo de perceber o que estava acontecendo. A própria mãe de Danny—a irmã de Tom—fora a primeira a morrer. — Eu vi os laudos — disse Tom, ceticamente. — Muitas evidências médicas apontavam para os Marcados e seus amigos em grande parte. Eles estão tentando provocar as autoridades lançando essa jogada contra Collier. - Aposta mesmo nisso? — Ryland o desafiou. — Além disso, tenho minhas próprias fontes de informação. — Quais? Ryland ol hou p a r a Tanaka. A mulher removeu o s ócul os p a r a revelar um par de penetrantes olhos castanhos. As íris de um bronze escuro tinham uma fina auréola dourada em volta delas, dando aos olhos um estranho brilho sobrenatural. Tom recordou-se de que Tanaka era capaz de ver a longas distâncias, e através de objetos sólidos, com seus chamados “olhos-espiões”. O Nova Group havia usado sua espiã durante o “Vesuvius Affair”. Ryland e seus capangas com certeza haviam usado seus dons oculares também. — Também posso ler lábios — ela o lembrou. Isso está mesmo acontecendo? , pensou Tom. A habilidade Tanaka era valiosa, mas ele estava prestes a fazê-los abrirem a boca. Ela estava interessada em contar a Tom tudo o que seus novos chefes queriam que ela fizesse, e Ryland havia mentido antes para ele. — Se não acredita em mim — disse Ryland. —, veja por si mesmo. Tom curvou-se e tirou um bloco de notas de seu bolso.


1 N. do T.: Uma lenda de espíritos local. Conta a lenda que Typoid Mary infectou grande parte da cidade onde vivia, Irondequoit, uma cidadezinha e m Monroe Country, New York. O termo hoje é usado para descrever pessoas com algum tipo de doença altamente contagiosa. — Como? Ryland sorriu astutamente. — Aqui está uma pergunta para você: o que aconteceu com o s restos mortais de Danny Farrel? TRÊS O prisioneiro geme n o chão d a cela. Sangue escorre d e u m lábio inchado. Ele segura o lado d a cabeça. U m guarda robusto s e posta sobre o prisioneiro. Ele zomba do homem no chão, então chuta fortemente suas costelas. — Gosta disso, aberração idiota? — berra ele. Outro guarda aparece d o lado d e f ora d a cela. Ninguém percebe a garotinha pálida assistindo de um canto. Seus olhos arregalados de horror. O prisioneiro, um negro usando um macacão laranja, tenta se pôr de pé, mas o guarda grande dá um soco em seu rosto. Ele o golpeia nas costas com um cassetete de metal, nocauteando-o de barriga para baixo no duro chão de concreto. — Esperem! — a garota grita, mas ninguém a escuta. Ela é s ó uma observadora aqui. Como um fantasma. O guarda saca uma arma de um coldre. Ele mira o prisioneiro indefeso. — Hora de dizer adeus, Tyler. — Pare! — a garota grita. — Você vai matá-lo! Maia Skouris acordou subitamente. Desorientada pelo pesadelo, demorou um pouco para que a adolescente percebesse que estava a salvo em sua cama. Seus grandes olhos castanhos absorveram o cenário familiar. Seu cabelo liso e loiro estava partido ao meio. Um pôster de Frank Sinatra estava pregado a uma parede. Roupas suj as s e espalhavam p e l o chão. Livros didáticos e lições d e c a s a estavam empilhados sobre uma mesa, ao lado do globo mundial. Seu diário descansava em uma mesinha de canto ao lado de sua cama. A luz da lua era filtrada através das cortinas na janela. Um relógio digital a informava que eram 03h20min da manhã. Meu Deus, ela pensou. Parecia tão real. — Maia? Você está bem? — A porta do quarto se abriu e sua mãe entrou apressada. Diana Skour i s l i g o u a s l u z e s q u a n d o ent r ou. S e u s cabel os castanho-avermelhados estavam desalinhados por causa da cama. Uma camisola azul de algodão cobria seu corpo atlético. —


Eu a ouvi chorando. — Está tudo bem, mãe — respondeu Maia, embaraçada com a confusão. — Só um pesadelo. Diana sentou na ponta da cama. Olhos castanhos preocupados examinaram o rosto da filha. — Só um sonho comum… Ou uma visão? Maia sabia o que sua mãe queria dizer. Desde que ela voltara com o resto dos 4400 há cinco anos, havia sido abençoada—ou amaldiçoada—com ocasionais relances d o futuro. Às vezes a s visões a pegavam quando ela estava acordada; outras vezes vinham em forma de vívidos sonhos perturbadores. Mas elas sempre se realizavam. — É o Richard — ela disse. — Richard Tyler. — Assim como ela, Tyler era um dos 4400 originais. D a última vez que ela ouvira, ele havia sido preso pelo governo. — Eu o vi na prisão. Um dos guardas estava tentando matá-lo. — Ah, não — murmurou Diana. Ela não questionava as visões de Maia. Experiências passadas ensinaram as duas a levar as predições da garota a sério. — Dava para ver quando isso vai acontecer? — Não tenho certeza. — Maia admitiu. — Em breve, talvez. — Ela esperava que não fosse tarde demais. — Temos que salvá-lo! Sua mãe franziu o rosto. — Pode ser mais difícil do que parece. Vou avisar na NTAC agora mesmo, mas a Homeland Security o tem numa prisão de alta segurança em Virginia. Isso está longe de minha jurisdição. Para falar a verdade, não temos acesso ao Richard há meses. Maia frustrou-se com a resposta da mãe. O que havia de bom em ter uma agente da NTAC como mãe se ela não podia usar seu distintivo para salvar a vida de u m homem? Maia não conhecia Richard muito bem, além do fato d e que sua filha maluca uma vez tentara matá-la, mas o s 4400 tinham que zelar u m pelo outro. Era isso o que Jordan sempre dizia, e Maia achava que concordava com ele cada vez mais à medida que ficava mais velha. Mesmo que sua mãe ainda tinha dúvidas com relação a Jordan. — Mas, mãe, você tem que tirá-lo da cadeia. Ele não está a salvo lá! — Queria que fosse fácil assim, querida. — Ela fechou sua camisola. — Mas, goste ou não, Richard atacou soldados americanos e agentes d a NTAC no passado, então o governo o tem como um terrorista perigoso. Eu vou passar o seu aviso para agências relevantes, mas ainda acredito que está fora do meu alcance. Diana tentou dar à sua filha um abraço reconfortante, mas Maia se afastou dela. — Jordan não desistiria assim do Richard — disse ela, mal-humorada. — Não estou desistindo dele. — Sua mãe protestou. Um tom de exasperação saiu e m sua voz. — E nem pense e m contar a o Jordan sobre sua visão. J á conversamos sobre isso antes. Não quero que se envolva com Collier e seu culto. É perigoso demais.


Maia fez uma careta e cruzou os braços sobre o peito. Por que sua mãe não entendia que Jordan Collier estava certo sobre os 4400 e os outros positivos? Nós temos que mudar o mundo para melhor. Por isso estamos aqui. — Não sou mais uma garotinha — disse ela, desafiadoramente. — Posso tomar minhas próprias decisões. Diana balançou a cabeça. — Não sobre isso. Isso é assunto sério de gente grande. — Na verdade, eu sou mais velha que você — assinalou Maia. —, se você olhar no calendário. Nascida em 1938, Maia fora abduzida pelo futuro quando tinha oito anos de idade, então voltara com o resto dos 4400 e m 2004. Tecnicamente, isso a fazia velha o suficiente para a Segurança Social, mesmo que não tivesse envelhecido um dia enquanto estava sumida. — Não faça isso comigo — disse Diana. Ela adotara a garota órfã pouco depois d e seu retorno. — Emocional e fisicamente, você ainda tem treze anos. E isso é muito jovem para se envolver em coisas como essa. — Mas já estou envolvida — argumentou Maia. — Sou uma dos 4400 e não posso ignorar o que vejo. — Eu sei — disse sua mãe, tristemente. Sua voz e expressão suavizaram. — Olhe, não quero brigar por causa de Jordan Collier de novo. — Ela se levantou e esfregou os olhos. — Prometo que farei o que puder sobre o Richard, mas devíamos tentar voltar a dormir. Amanhã tem aula. Se inclinando, ela deitou Maia e a beijou no topo de sua cabeça. — Te vejo de manhã. Bons sonhos. Ela apagou as luzes enquanto saía. Maia esperou até ouvir sua mãe entrando n o seu próprio quarto, então contou até cem só p o r segurança. Assumindo q u e a mulher estava dormindo, ela saiu da cama e pegou seu BlackBerry de cima da cômoda. Sentiu uma pontada de culpa por se esconder assim—o smartphone rosa choque fora um presente de sua mãe—, mas a vida de Richard estava em jogo. O brilho d a tela BlackBerry iluminou seu rosto preocupado enquanto ela mandava uma mensagem d e texto apressada para sua melhor amiga, Lindsey Howard. Também u m a dos 4400, Lindsey havia s e envolvido com o Movimento desde o começo. Maia sabia que podia contar com ela para passar a mensagem a Jordan Collier. Alguém tinha que fazer algo para ajudar Richard! O Centro 4400 fora criado por Jordan Collier antes que ele se tornasse um revolucionário


em seu próprio estilo e um messias. O Centro agora era comandado pelo sobrinho de Tom, Shawn Farrel. Um dos 4400 originais, ele ficou sumido por três anos antes de retornar. — Olá, Diana. Tio Tommy. — Shawn cumprimentou os dois agentes quando eles entraram no seu enorme escritório, que fazia o escritório de Tom na sede parecer um guarda-roupa. Um jovem atraente na casa dos vinte anos, Shawn estava usando u m terno Armani costurado que ficava bem n a sua silhueta bem construída. Se u curto cabelo loiro estava impecavelmente aparado. Tom tinha orgulho d o homem confiante e d e atitude que ele s e tornara. Não podia evitar desejar que Kyle tivesse se tornado um pouco mais parecido com seu primo. Embora Shawn houvesse brevemente caído sob o feitiço d e Collier, ele era um homem independente agora. — É bom ver você — disse Tom. Embora eles estivessem ali a trabalho, ele abraçou seu sobrinho amigavelmente. Shawn havia perdido a mãe e o irmão para a praga, então Tom queria que o jovem soubesse que ele não estava sozinho, que ele ainda tinha uma família que se importava com ele. — Obrigado por nos colocar na sua agenda. Shawn riu ironicamente. — Acredite, não é mais tão difícil quanto antes. Agora que minha carreira política se encerrou, eu tenho muito mais tempo sobrando. Aposto que sim, Tom pensou. 50/50 havia acabado com o cargo de Shawn na assembleia da cidade. A cidade estava muito dividida entre positivos e negativos para apoiar um candidato que tentava unir os dois lados, sem contar que ele era o irmão do homem que desencadeara a praga, para começo de conversa. — Pelo menos ainda tem o Centro — disse Tom. — Acho que sim. — Shawn apontou para uma caixa vazia. — Embora seja no Movimento de Jordan que a ação está, nós providenciamos ajuda e serviços para os positivos q u e se sentem inconfortáveis c o m o s planos radicais d e Jordan. A maioria é pessoas q u e se infectaram durante o surto, mas, para ser honesto, parece não haver muita audiência como antes. Não tenho certeza se o Centro ainda é influente hoje em dia. — Não desanime — disse Diana. Seu cabelo castanho-avermelhado estava preso num rabo-de-cavalo. Ela vestia um colete d e couro preto sobre uma blusa laranja de gola alta. — Você é a principal cara dos 4400, e uma alternativa sã para Jordan Collier. Isso é mais importante do que nunca. — Talvez. — Shawn não parecia convencido. — Sobretudo, estive me concentrando em praticar minha cura, que o Jordan só tolera porque é bom para os 4400. — Isso é importante, também — lembrou-o Tom. A notável habilidade do sobrinho de curar todos os tipos de ferimentos e doenças salvara muitas pessoas, incluindo o próprio Tom. Shawn desempenhara u m importante papel a o libertar Tom dos Marcados. E havia acordado Kyle de um coma aparentemente sem fim. — Nunca se esqueça disso. O sorriso de Tom retornou.


— Obrigado pela confiança. Eu aprecio isso. — Ele sentou atrás d e sua mesa organizada. Uma pintura a óleo na parede atrás dele retratava a brilhante bola de luza branca que trouxera os 4400 do futuro. — Como posso ajudá-los hoje? Tom hesitou. Isso ia ser embaraçoso. — Danny — disse ele, por fim. — Danny? — Uma expressão de dor trespassou o rosto de Shawn. Ele fora obrigado tirar as forças do irmão para impedir que a praga se espalhasse. Tom podia imaginar como isso fora difícil para ele. — O que tem ele? Diana poupou Tom de ter que soltar tudo de uma vez. — Gostaríamos de sua permissão para exumar o corpo de Danny. — O quê? — Shawn ficara visivelmente chocado com o pedido. — Por quê? — Temos razões para suspeitar de que alguém possa tentar replicar uma versão da promicina transportada pelo ar que Danny soltou depois que tomou a dose — explicou Tom. Ele não mencionou que Ryland era a fonte de tal rumor; Shawn não tinha razões para confiar num homem que tentara matá-lo. — Pode não ser nada, mas temos que nos certificarmos. Shawn afundou-se nas costas de sua cadeira. — Nã o s e i — e l e disse. Olhos sofridos e úmidos brilharam. S u a v o z ficou rouca de emoção. — Não podemos simplesmente deixá-lo descansar em paz, ao lado da mamãe? Danny fora enterrado no Cemitério Emerald Harbors, ao lado da irmã de Tom. — Queria que pudéssemos — disse Tom. Ele sentia-se péssimo por envolver Shawn nisso logo depois de ele ter perdido sua família. — De verdade. — Se necessário, eles podiam conseguir um mandato para exumar o corpo, mas ele preferia o consentimento d e Shawn ao invés disso. Além d o que, qualquer procedimento legal com certeza alertaria Collier d e suas intenções; muitos dos juízes e advogados de Seattle se reportavam diretamente com ele. Tom tirou um documento de dentro de sua jaqueta e o arrastou pela mesa na direção de Shawn. — Mas não podemos correr o risco. Ninguém quer outro 50/50. Shawn balançou a cabeça, aceitando a verdade relutantemente. Procurou por uma caneta. Diana saiu do escritório para deixar Tom consolar seu sobrinho a sós. Ela sabia como a discussão fora difícil para os dois, mas estava aliviada por terem conseguido o consentimento de Shawn para a exumação. Antes de entrar para a NTAC, ela trabalhara por pouco tempo no Centro de Controle de Doenças em Atlanta; se fosse por ela, os restos mortais de Danny teriam sido cremados imediatamente após sua morte, mas, no caos que se seguiu ao desastre, isso não aconteceu. Espero que não tenha sido um grande erro, ela pensou. Enquanto seu parceiro estava ocupado com Shawn, ela foi atrás de outra ponta solta. Uma breve caminhada a levou até a enfermaria do Centro, onde ela encontrou o Dr. Kevin Burkhoff


trabalhando arduamente num laboratório interligado. O cientista renegado estava agachado sobre u m microscópio quando ela entrou no laboratório. Concentrado na sua tarefa, ele não ouviu quando ela se postou atrás dele. Um saco aberto contendo sementes de girassóis descansava no balcão ao lado do microscópio. Escâneres de cérebros estavam pendurados em um quadro brilhante. U m zumbido d e centrifugação a o fundo. U m cheiro d e medicina permeava o ar. — Dr. Burkhoff? Kevin? Assustado e surpreso, ele virou-se. Nesse momento, cortou o dedo na ponta de um tubo de ensaio. Uma linha vermelha apareceu brevemente no dedo machucado, então foi refreada por sua habilidade de cura acelerada e voltou para dentro. Sua expressão alarmada relaxou quando ele reconheceu a visitante. — Oh, Diana! — Ele apertou o peito, onde o coração devia estar batendo rápido. Secou o sangue no balcão. — Não te ouvi entrando. Me deu um belo susto. Quando Diana encontrara Kevin pela primeira vez há três anos, ele estava confinado em um hospício. Embora tivesse recuperado sua sanidade com a ajuda dos 4400, ele continuava sendo agitado e cheio de energia. Seu fino cabelo liso e negro estava precisando ser penteado. Uma franja oleosa caía por sua testa enrugada. Queimaduras d e ácido estragavam seu jaleco branco de laboratório. Reagentes químicos manchavam as pontas de seus dedos. — Sinto muito. — Ela apontou para o microscópio. — Alguma coisa interessante? Ele olhou em volta furtivamente, como se tivesse medo de ser ouvido. — Não diga a ninguém — disse. —, mas estou tentando aperfeiçoar o meu teste de compatibilidade à promicina. — Certo. — Diana lembrava-se de Shawn apoiando a s tentativas de Burkhoff d e tornar a dose d e promicina menos perigosa e fatal, a ideia de desenvolver um teste que determinaria com antecedência se a promicina daria ou não uma habilidade a quem tomasse. Antes do 50/50, Shawn alertara o público para parar de tomar a promicina até que o teste estivesse pronto, mas Diana não ouvira mais nada sobre o teste desde então. — Como está indo? Burkhoff afastou as sementes de girassóis do balcão; lanchinhos sem sal eram seu vício. — Está indo, mas poderia ter progredido muito mais se tivesse suporte das autoridades. Nem Collier e nem o governo quer que eu continue meu trabalho, por suas próprias razões, e sei que eles têm pressionado Shawn para me fazer desistir. — Ele despejou várias sementes em sua palma. — Eu tenho que ficar me ocultando durante a noite como um ladrão para que possa fazer meu trabalho. — Isso é ruim — disse Diana, entendendo a frustração do cientista. Ela não se surpreendera a o ouvir q u e s e u trabalho n ã o agradava a todos. Certamente, o governo não ficaria feliz com qualquer teste que tiraria o risco de tomar promicina; isso só traria mais positivos à ativa. Collier, no entanto, queria que o mundo todo tomasse a dose; ele queria o


sacrifício de metade da humanidade no altar do seu novo bravo mundo. — Imagino se o teste tornaria a decisão mais fácil para as pessoas. Mesmo se soubesse que sobreviveria, você não saberia que habilidade iria ganhar. E, francamente, algumas delas não são muito bonitas. Diana estivera lidando com positivos h á anos, e vira como ganhar uma habilidade podia destruir a vida de uma pessoa. Para cada indivíduo que adquiria um novo bom talento, como a habilidade de curar os doentes, havia alguém como Danny Farrel que era amaldiçoado com uma aflição que fugia ao seu controle. Ou Jean Delynn Baker, q u e havi a s e tornado involuntariamente o receptáculo d e um vírus mortal como o Ebola. Enquanto isso acontecia, Diana tinha uma imunidade à promicina, mas ela não sabia s e tomaria uma dose mesmo que isso fosse uma opção. E se eu acabar como Danny ou qualquer um dos outros? — Bem pensado. — Burkhoff concedeu. — Mas muitas pessoas estão se arriscando todo dia. E muitas delas estão morrendo porque meu trabalho está sendo suprimido! — Kevin? — chamou uma voz da enfermaria. — Está tudo bem? Uma jovem magra adentrou o laboratório. Olhos castanhos obcecados davam graça às suas feições delicadas. Cabelos ondulados d e u m castanho-claro caíam pelos seus ombros. Uma blusa de caxemira e uma saia de tamanho médio a davam uma aparência sem época definida. Demorou u m momento para que ela percebesse que Burkhoff não estava sozinho. Um olhar preocupado surgiu em sua cara de duende. — Diana? — Olá, Tess — disse Diana, firmemente. El a tentou conciliar seu desconforto c o m a presença d a outra mulher. U m a d o s 4 4 0 0 originais, Tess Doerner possuía a inquietante habilidade de forçar as pessoas a fazerem o que ela pedisse. A própria Diana fora controlada por ela anteriormente. Não era uma experiência que ela queria reviver tão cedo. — Kevin e eu estávamos apenas conversando. Suas palavras pareceram não convencer Tess, que se postou protetoramente entre Diana e Burkhoff. O cientista de meia-idade e a mulher muito mais jovem eram um casal estranho, que haviam s e conhecido quando eram pacientes n o Hospital Psiquiátrico Abendson, m a s eram inquestionavelmente devotados um ao outro. Diana não duvidava que Tess faria qualquer coisa para defender Kevin da NTAC ou de qualquer outra pessoa que quisesse tirar vantagem de sua inteligência. — O que está fazendo aqui, Diana? A agente foi direto ao assunto. — Você cuidou de Danny Farrel nos seus últimos momentos. Quero saber o que aconteceu a qualquer amostra de sangue ou de tecido que você tirou dele. Burkhoff desviou o olhar dela. Agitou-se nervosamente com seu saco de sementes. — Shawn pediu-me para destruir todas as amostras depois que Danny morreu. Diana conhecia o cientista muito bem para acreditar nisso. Burkhoff nunca deixara algo atrapalhar sua curiosidade científica.


— Sim, mas o que você realmente fez com elas? — Não sei o que quer dizer — fingiu. Dando as costas a ela, ele voltou-se ao microscópio outra vez. — Já não respondi a sua pergunta? — Deixa disso, Kevin — ela o pressionou. — Você descobriu a promicina. Qu e r m esm o q u e e u acredite q u e v o c ê n ã o f i cou intrigado p o r u m espécime que transpirava a coisa pelos poros? Burkhoff suspirou e deu as costas ao balcão. — B e m , p o s s o t e r f i cado c o m algumas amostras p a r a pesquisa, m a s elas estão perfeitamente e segurança. Segui cada protocolo para guardá-las. Agora estamos chegando a alguma coisa, Diana pensou. — Preciso ver com meus próprios olhos. — Certo — concordou ele. — Siga-me. Tess foi atrás quando ele levou Diana n a direção d e uma porta metálica fechada com um aviso. Uma placa de risco biológico estava afixada nela. Um teclado estava posicionado acima da maçaneta. Burkhoff tampou o teclado com seu corpo enquanto digitava um sequência de quinze dígitos. — Sou a única pessoa que conhece a combinação — ele insistiu. —, ou que pode lembrarse dela. Nem mesmo Tess conhece. A n ã o s e r q u e e l a peça, pensou Diana. A controladora d e mentes estava parada perto quando Burkhoff abriu a porta. Uma lufada de ar gelado saiu pela câmara refrigerada quando o tranca da porta se abriu. Passando pela soleira, Diana avistou um gabinete biológico Classe Três implantado no fundo da limitada sala de contenção. Um ventilador cantarolava no topo da sala d e aço impecável. Filtros HEPA mantinham qualquer bactéria o u vírus d o lado d e fora. Luvas de borracha penduradas em ganchos permitiam a manipulação dos materiais fechados. Uma pequena camada de gelo cobria a vista transparente da janela. — Vê? — disse Burkhoff, defensivamente. — Tomei toda precaução razoável. Até aqui tudo bem, Diana admitiu, convencida pela vista do equipamento. Burkhoff parecia não ter economizado dinheiro para proteger as amostras. Devíamos confiscá-la de qualquer jeito. As amostras precisavam ficar sob os cuidados de autoridades responsáveis, não alguém tão excêntrico como Kevin Burkhoff, que tinha boas intenções, mas geralmente deixava sua paixão pela ciência interferir na sua sanidade, como na vez em que usara Diana como cobaia contra sua vontade. Ela estava imaginando como ia pegar as amostras de Kevin, apesar da habilidade de Tess, quando ele deu um passo à frente para limpar o gelo da janela. Talvez devêssemos voltar quando Tess não estiver por perto. Um grito assustado escapou dos lábios de Kevin.


— Não! — sobressaltou-se ele, praticamente apertando o nariz contra o vidro. — Não é possível! Diana ficou tensa, alarmada pelo som ansioso de sua voz. — O que foi? Ele se virou para encará-la. A expressão arrasada no seu rosto era a última coisa que ela queria ver. Ele estava pálido como um fantasma. — As amostras — proferiu ele. — Elas sumiram!


QUATRO Richard Tyler não conseguia dormir. Deitado n a cama, o prisioneiro encarava o teto d e s u a cela vazia. Luzes fluorescentes entravam pelas barras de aço verticais do corredor vazio do lado de fora. Um homem negro esguio com trinta e poucos anos, ele não usava nada além de um macacão de prisão laranja há meses. Sua cabeça raspada descansava em um travesseiro amassado. Seu cavanhaque estava impecavelmente aparado. Embora o toque d e recolher tivesse sido dado h á horas, ele ainda permanecia acordado, ouvindo aos sons noturnos daquele bloco de celas. Soluços e roncos abafados vinham das celas próximas; parecia que a cada dia que passava mais e mais positivos eram trazidos para a prisão de alta segurança. Havia rumores de que Collier e o Centro 4400 vinham lutando arduamente para a libertação de Richard e de seus companheiros “prisioneiros políticos”, mas sem muito sucesso. Richard nem mesmo vira um advogado desde que fora apreendido em Seattle meses atrás. Pelo que parecia, ele ia apodrecer naquela cela pelo resto da vida. É isso o que eu ganho por brigar com governo dos Estados Unidos, pensou ele. Mesmo que não me deram muita escolha. Não pela primeira vez, e l e imaginou como teria sido s u a vida s e e l e não tivesse sido abduzido pel o futuro e m 1951. Quando partiu p a r a a Coréia, certamente não imaginara terminar atrás das grades no século 21. Boa parte dele desejava que aqueles intrometidos viajantes do tempo o tivessem deixado em paz. Mas se ele não tivesse sido levado de sua época, nunca teria conhecido Lily. Seu olhar virou-se para algo pendurado n a parede. A foto colorida retratava uma linda mulher loira segurando uma criança sorridente em seu colo. A pele escura da garota parecia com a do pai. A mãe e a filha sorriam alegremente. Lily. Isabelle. A garganta de Richard se encolheu quando ele se lembrou de quando tirou aquela foto na cabine, antes de Lily morrer e tudo se tornar um inferno. Havia sido um dia bonito de verão nas montanhas. Céu azul. Pássaros cantando nas árvores. A fotografia e r a s e u b e m mais precioso e mais querido. A sagrada foto e r a uma lembrança de que uma vez ele não fora apenas mais um habitante, mas sim um pai e um marido amado. Por um breve período, eles haviam sido felizes. A luz turva tornava difícil ver os rostos de suas amadas. Sentindo uma necessidade súbita d e ver sua família mais d e perto, ele levantou a mão e estendeu-a na direção da foto. Sua mente instintivamente alcançou-a… Nada aconteceu. A fotografia continuou pendurada na parede a vários passos de distância. Nem mesmo tremera. Ah, sim. Ele sorriu tristemente. Engraçado o quão rápido você pode se habituar a mover as


coisas com a mente. E o quanto você sentia a eficiência disso quando não mais podia fazê-lo. Doses diárias d o inibidor haviam diminuído sua telecinese. Onde antes ele podia arremessar pesados objetos só pensando, agora ele não podia levantar uma pluma, a não ser que o fizesse do jeito antigo… usando seus próprios dedos. Suspirando cansado, ele levantou-se da cama e começou a andar pela cela. O piso de cimento estava frio sob seus pés descalços. Aparentemente, o administrador não queria investir em aquecimento. A julgar pela qualidade recente das refeições, houvera um corte d e custos n a cozinha também. Ele nem queria imaginar o tipo de carne que havia no ensopado da noite anterior. Estava na metade do caminho para a parede quando passos pesados ecoaram pelo corredor. Eles pararam bem em frente a sua cela. — Você aí! — desafiou uma voz áspera. — O que está fazendo acordado, Tyler? Não sabe que já passou da hora de dormir? Richard grunhiu para si mesmo quando reconheceu a voz. Virando-se para a porta, ele viu um par de guardas uniformizados parado do outro lado das barras. E não os seus guardas favoritos. Que sorte a minha, ele pensou. Grogan e Keech. Ele não tinha nada contra a maioria dos guardas ali. Só estavam fazendo seus trabalhos. Mas Grogan e seu comparsa eram diferentes. Eles se moviam sadicamente tocando o terror e dificultando para os presos. Ditadores insignificantes com ódio dos 4400. Eram a última coisa que Richard precisava essa noite. — Só estou esticando as pernas. — Ele voltou para sua cama. Esperançosamente isso seria suficiente para espantar os guardas. Não era. — É mesmo? — disse Grogan, com sarcasmo. Ele tinha um pescoço grosso como o de um boi e uma barriga de cerveja grande e flácida. Um bigode cobria seu lábio superior. Um corte escovinha mal cobria sua cabeça. Uma pistola Colt estava pendurada em um lado d a cintura. Um cassetete do outro. Ele observou Richard suspeitosamente. — Como vou saber que você não estava aprontando, Tyler? Planejando uma fuga tarde da noite? Queria, Richard pensou. — Não vou a lugar nenhum. — É claro que não vai! — Ele riu da própria piada, então olhou para o seu parceiro. — Acredita na ousadia desse cara? Pensa que pode nos enganar. Com u m rosto pálido, magro e semelhante a o d e u m roedor, Keech era como Laurel e Grogan como Hardy, de o gordo e o magro, só que nenhum dos dois era engraçado. — Muita ousadia — ele concordou, amargamente.


— Ei! — Grogan fingiu se alarmar. — Sentiu isso? — Senti o quê? — perguntou Keech. — Essa pressão. — Grogan tirou um cartão magnético de seu bolso da camisa. Ele rodou entre seus dedos carnudos quando fingia não conseguir segurálo. — Ele está atraindo o cartão com a mente. Está tentando nos puxar para mais perto. Que engraçado, Richard pensou, sem achar graça na palhaçada do guarda. Claro que ele não estava fazendo nada do tipo. — Ah, sim — concordou Keech, entrando no jogo. — Agora eu sinto. Ele caiu na direção na porta, como que empurrado por uma força invisível. Um sorriso malicioso torceu seus lábios. — Filho da puta arrogante. Grogan tirou o cassetete do cinto. — Acho que temos de ensiná-lo uma lição. — Sorrindo, ele passou o cartão por um escâner ao lado da porta. A fechadura eletrônica soltou um clique e a porta deslizou para o lado. Grogan entrou na sala, brandindo o cassetete, batendo-o contra a palma d e sua mão. — Não podemos deixar essas aberrações pensarem que podem usar seus truques contra pessoas decentes. — É isso mesmo — disse Keech. Ele acompanhou Grogan até a cela. Sentado na ponta de sua cama, Richard ficou tenso enquanto os guardas se aproximavam. Sua memória voltou até aquela época na Coréia, antes de ele ser abduzido, quando vários de seus colegas d a Força Aérea o surraram por ousar namorar uma mulher branca… A avó de Lily, na verdade. Essa cena parecia tão familiar. Ele levantou as mãos. — Olha, não quero nenhuma confusão. — Quem se importa com o que você quer, sua aberração terrorista? — Grogan bateu ainda mais forte. — Desde que o seu tipinho voltou sabe-se lá de onde, ninguém no país esteve em segurança. Acha que esquecemos o 50/50? Nove mil americanos estão mortos por culpa de pessoas como você e Jordan Collier! Richard considerou avisar que ele nada tinha a ver com o desastre, que ele estivera trancafiado naquela mesma cela quando o surto devastou Seattle, mas percebeu que seria uma perda de tempo. Grogan não estava interessado em ouvir a razão. Richard segurou-se. Valeria a pena revidar? Ele estava em menor número e desarmado. Grogan olhou para a foto de sua família a parede. — Que coisa mais bonita. — Ele arrancou a foto do seu lugar e segurou no alto para que Keech pudesse ver. — Dá uma olhada na Sra. 4400 aqui. Tenho que admitir, Tyler. Você pode


ser um radical inútil, mas tem bom gosto para filés. — Ele olhou para a foto de Lily. — Não me importaria em ter um pedaço desse. — Nós dois. — Keech lambeu os lábios. — Aposto que ela também gostaria. Nós dois — ele repetiu, caso alguém não tivesse escutado a insinuação óbvia. — Ao mesmo tempo. Richard olhou para os homens. Só de ver a foto de Lily nas mãos sujas de Grogan faziam seu sangue ferver. — Largue isso. — Ou o quê? — Grogan o desafiou. — Vai contar ao Jordan Collier? Ele rasgou a preciosa fotografia em duas e jogou os pedaços ao chão. — É uma pena que ela está a sete palmos abaixo da terra. Caipira idiota! A raiva o tomou e ele pulou na direção de Grogan. Deu apenas dois passos antes de Keech o acertar com o cassetete ao lado da cabeça. Richard caiu a o chão, sua cabeça zunindo. Su a visão ficou borrada momentaneamente. Sentiu o gosto de sangue em sua boca. — Você viu isso! — exclamou Grogan. — O maluco pulou em mim. Ele chutou Richard violentamente nas costelas. — Gosta disso, aberração idiota? Sinta o gostinho de legítima defesa! Tossindo com dor, Richard tentou se postar de pé, mas Grogan o socou no rosto forte o suficiente para quebrar um dente. O sangue jorrou de seus lábios. Keech o golpeou nas costas, nocauteando-o de barriga para baixo no chão. A sala girou em volta dele. — Ei! — uma voz irritada gritou do outro lado do corredor. Levantando a cabeça, Richard v i u outro prisioneiro parado atrás d a s portas d e u m a d a s celas opostas. Um hispânico musculoso com a cabeça raspada segurava as barras de sua jaula. — Deixem-no em paz! Ele não merece isso! O preso protestante e r a novo naquele bloco, for a preso u m pouco mais cedo naquele mesmo dia. Qual era o nome dele mesmo? Sanchez? — Vá cuidar da sua vida! — rosnou Keech, mas a atenção parecia fazê-lo sentir-se inconfortável. Saindo da cela, ele deu uma olhada pelo corredor. Agitou-se com seu cassetete. — Certo, chega de brincadeiras. — Ele disse a Grogan. — Vamos terminar logo com isso. Grogan agiu como se seu amigo tivesse perdido o juízo. — Está brincando? Só estou me aquecendo! — Não subestime nossa sorte. — Keech olhou em volta furtivamente. Secou a palma suada nas calças. — Acabe com ele logo, certo?


As palavras sinistras do guarda penetraram o crânio zonzo e dolorido de Richard. O terror se misturou com a dor. Não era só uma surra, ele percebeu. Eles querem me matar! E não havia nada que ele pudesse fazer para impedi-los… — Tudo bem, tudo bem — disse Grogan, de má vontade. — Não perca o controle. — Ele virou-se para Richard, visivelmente infeliz por sua diversão ter sido cortada. — Hora de dizer adeus, Tyler. Ele pisou nos pedaços da fotografia no chão e tirou a pistola do coldre. — Dê um beijo na loirona por mim quando a encontrar no inferno. Ele ergueu a arma. Richard imaginava se Lily estaria mesmo esperando por ele do Outro Lado. Já cruzamos o tempo para nos encontrarmos… — J á chega! — gritou Sanchez d e s u a cela. El e chacoalhou o s pulsos na direção dos guardas. — Esses cabróns pediram por isso! Ele deu um soco na própria mandíbula… muito forte. Seu comportamento bizarro distraiu os guardas brevemente de sua missão assassina. — Mas que diabos? — murmurou Grogan. — Ficou loco, Sanchez? Ignorando a pergunta do guarda, Sanchez enfiou os dedos na boca e tirou um molar solto d e sua gengiva. Ele jogou o dente sangrento pelas barras d e sua cela. Caiu ruidosamente no chão do corredor antes de ele se quebrar com um som peculiar que mais parecia porcelana do que esmalte se quebrando. Não é um dente de verdade, percebeu Richard. É um implante. O dente se quebrou em dois para revelar uma pequena bola de energia, mais ou menos do tamanho de uma ervilha, que inchou com u m brilho sobrenatural. Havia algo de estranho no brilho emanando da bola, que parecia com as luzes n u m negativo d e fotografia, jogando sombras a o invés d e luz nos rostos pasmos dos guardas. Eles olhavam boquiabertos aquela pequena esfera cintilante de luz. Richard piscou confuso. Não entendo, pensou ele. O que está acontecendo? Então a luz se abriu como uma flor florescendo em movimentos rápidos. A textura era tão real que parecia s e dobrar e s e contorcer diante dos olhos de Richard. Um flash que cegava iluminou o corredor, forçando-o a desviar o olhar. Ele fechou as pálpebras contra o clarão repentino. Grogan praguejou obscenidades. — Puta que pariu! — exclamou Keech. O clarão sumiu n u m instante. M a s quando Richard abriu o s olhos novamente, ficou surpreso ao ver quatro estranhos parados no corredor no lugar onde o orbe estivera h á apenas alguns segundos. Todos os quatro—dois homens, uma mulher e um garoto—estavam vestidos de preto, como gatunos ou espiões.


Máscaras d e esqui ocultavam seus rostos. U m d o s homens respirava com dificuldade, como s e tivesse acabado d e correr u m a maratona. A mulher esticava as pernas, como se tivesse ficado confinada num lugar apertado por muito tempo. — Graças a Deus! — disse ela. — Não estava mais aguentando. — O quê? — perguntou o homem cansado. — Muito confortável para você? — Calados! — gritou Grogan. Deixando o choque de lado, os guardas apontaram as armas para os invasores. Não sei quem são vocês, ou de onde vêm, mas não movam um músculo! O segundo homem, um perceptível afro americano, olhou para as armas. — Cuidado com isso. — Ele não pareceu preocupado com a s pistolas apontadas para ele. — Estão brincando com fogo. — O qu…? — guinchou Grogan. A arma d e metal s e tornou vermelha em sua mão. A carne chiou. Berrando, os guardas soltaram os revólveres. As armas derretidas caíram ao chão. Gr o g a n aper t ou s u a m ã o queimada e K e e c h chupou seus próprios dedos. Os dois choramingavam pateticamente. O negro virou-se para a mulher. — Sua vez. Ela forçou seu pescoço a virar-se ruidosamente. A princípio, Richard pensou que ela estava se aquecendo, mas então os guardas viraram seus próprios pescoços em resposta. Sues rostos se contorceram em choque. Eles caíram moles ao pi so. Grogan c a i u a apenas alguns centímetros de Richard. Somente sua respiração irregular assegurou Richard de que o guarda inconsciente ainda estava vivo. Sanchez acenou em satisfação. Ele cuspiu sangue no chão da cela. Olhou para o garoto, que parecia ter mais de doze anos. — Billy? — Estou nessa — disse o garoto. Ele usava óculos por cima da máscara de esqui. Andou um pouco e procurou no corpo de Keech até que achou o cartão magnético. — Bingo! Correndo até a cela de Sanchez para libertá-lo, ele teve que ficar se estivar um pouco para alcançar o escâner. — Aposto que está ansioso para sair daqui! — Não faz ideia. — O prisioneiro saiu d a cela. Deu u m tapinha amigável nas costas do garoto. — E espero que nunca faça. Enquanto isso, a mulher deslizou para a cela de Richard. Passando pelo corpo estatelado de Grogan, ela ajudou Richard a se levantar. — Está bem, Sr. Tyler? — Eu… Eu acho que sim. — Seu cérebro confuso, que quase morrera há alguns momentos atrás, lutava para entender o que estava acontecendo. — Quem são vocês?


— Seus anjos da guarda — respondeu a mulher. — Desculpe-nos por chegarmos em cima da hora. Ficamos sabendo há pouco tempo que corria perigo. Ela tirou um pequeno estojo de sua roupa. O objeto se abriu para revelar uma seringa com um líquido verde-amarelado. Promicina. Ela desencapou a ponta da seringa e esguichou um pequeno jato do líquido. — Espere um segundo — disse Richard. — O que vocês…? Antes que ele pudesse terminar, a mulher impulsionou a seringa contra seu braço. A dor aguda tirou a tontura de Richard. Ele agarrou o braço ferido quando ela retirou a injeção. — Para que isso? Eu já sou um p-positivo! — Só um empurrãozinho — explicou ela, jogando o recipiente vazio para o lado. — Para ajudar a tirar o efeito do inibidor. Isso era possível? Talvez, penou ele, lembrando-se d e como uma dose parecida acordara Shawn Farrel de um coma ano passado. Era só imaginação dele ou j á podia sentir um formigamento no fundo de seu cérebro, como um membro adormecido começando a ser usado depois de muito tempo inativo? Seus olhos ofuscados captaram as metades da foto rasgada ao chão, e ele tentou levantá-las com a mente. Mais uma vez, nada aconteceu, mas a sensação de formigamento crescia cada vez mais. Curvando-se, ele pegou os pedaços com os dedos. Ainda estava tentando descobrir de onde haviam vindo seus salvadores. — Como…? O que foi isso com o dente? Sanchez gesticulou na direção de um dos homens. — O Adams aqui consegue dobrar o espaço d e maneiras engenhosas, o suficiente para colocar quatro pessoas em algo pequeno demais para aguentá-las. Como uma cabine dentária, talvez. — Ele massageou a mandíbula machucada. — Pense nisso como um dente troiano. Isso era possível? Richard estava ficando confuso ao se recompor com a ideia de que toda a equipe de resgate estivera se escondendo dentro do dente de Sanchez. Então, novamente, quando se pensa nisso, quantas coisas estranhas ele já não testemunhara nos últimos anos? Como Isabelle s e transformando d e um bebê e m uma mulher adulta d a noite para o dia. Ou Jordan Collier voltando dos mortos. — Lembre-me de não fazer isso novamente — queixou-se a mulher. — Nunca mais vou reclamar do meu apartamento apertado. — Chega de conversa — disse Sanchez, assumindo a liderança. Ele puxou Richard para fora da cela. — Precisamos tirá-lo daqui rápido. Agora o bloco todo estava um alvoroço. O som de sirene invadiu os ouvidos de Richard. Todas as luzes se acenderam. Acordados pelo distúrbio, todos os outros prisioneiros correram para as portas das celas, pedindo para serem libertados também. Eles s e apertavam contra as


barras, desesperados para chamar atenção dos invasores. — Por favor! — chamou Orson Bailey. O empresário de meia-idade fora um dos primeiros 4400 a ser detido contra sua vontade. — Me levem com vocês! Os choros inquietantes tocaram o coração de Richard. — E eles? Sanchez balançou a cabeça. — Outra hora. Estamos aqui hoje apenas por você. Não está a salvo aqui… obviamente. Richard não podia debater isso. Sua cabeça e costelas latejantes mostravam a verdade nas palavras de Sanchez. Tentando ignorar as tristes súplicas de seus companheiros de prisão, ele se postou atrás da equipe de resgate enquanto eles andavam pelo corredor. A adrenalina estimulava suas pernas, apesar da surra recente. Uma pesada porta de aço, com uma inquebrável janela de vidro embutida, bloqueava o caminho. Sanchez tentou o cartão magnético de Keech, mas não deu certo. — Que droga! — exclamou ele. — O alarme nos trancou. Olhou para Adams, que parecia ter se recuperado de seu cansaço. — Pode fazer isso, cara? — Posso tentar — voluntariou-se o outro lutador da liberdade. Ele deu um passo à frente e encostou as mãos contra a porta de aço. Um grunhido escapou de seus lábios enquanto ele concentrava sua habilidade na barreira firme, que no mesmo momento tomou aquele mesmo efeito d e negativo d e fotografia. O aço sólido pareceu virar-se do avesso, soltando-se das dobradiças, enquanto a porta se compactava numa bolinha d e gude luminosa, deixando o caminho diante deles livre. Adams pegou a bolinha. Ele respirava com dificuldade. — Abre-te, Sésamo. Porém ainda não haviam saído. Um esquadrão inteiro de guardas veio na direção deles, carregando rifles automáticos. — Parados! — ordenou um policial uniformizado. — Para o chão com as mãos na cabeça! — Não atirem! — gritou Billy, por cima do alarme. Ele se postou diante da equipe. — Sou apenas uma criança! Os guardas hesitaram, relutantes em atirar em uma criança, o que foi todo o tempo que Billy precisou. Sua mandíbula s e abriu e u m som agudo escapou de sua boca. O s guardas recuaram, segurando seus ouvidos. O s rifles começaram a atirar. Os tiros abafavam seus gritos, mas Richard podia ver como o grito inumano os estava afetando. Eles cambalearam em agonia. Mesmo postado atrás d e Billy, com as ondas sonoras indo para o lado contrário, Richard sentiu o que os guardas estavam enfrentando; os ecos se impulsionavam contra seus tímpanos. Colocou as mãos para tampar os ouvidos. Os outros membros da equipe se juntaram ao ataque. Os guardas que conseguiam levantar


suas armas para atirar de repente ficaram quentes como carvões em brasa. A mulher estalou o pescoço novamente e uma massa de guardas caiu a o chão, como marionetes cujos barbantes fossem cortados. Adams arremessou a bolinha brilhante nos guardas cambaleantes. Outro clarão de luz de cegar os olhos precedeu-se ao súbito reaparecimento da massiva porta de aço enquanto ela caía ao chão entre os fugitivos e os perseguidores. A porta arrancada formava uma barricada improvisada no corredor estreito. Essas pessoas são boas, percebeu Richard, impressionado pelas suas técnicas de trabalho em equipe. Os guardas não souberam o que os atingiu. Para o alívio de seus ouvidos, o grito supersônico de Billy cessou. O garoto virou-se para seus colegas de equipe. Seu orgulho e excitamento eram visíveis através da máscara de esqui. — Viram isso? O que eu fiz com eles. — Muito bem, Billy. — Sanchez o encorajou. O líder do grupo ainda não havia mostrado a sua habilidade; sem dúvida havia sido dosado com o inibidor, também. Ele apontou para um corredor à direita. — Andando agora, todo mundo! Eles correram pela prisão, passando a lavanderia e as academias. Sanchez parecia mesmo saber aonde estava indo, o que fez Richard acreditar que toda a sua tentativa d e fuga fora planejada detalhadamente. Mas mesmo com o s notáveis dons de seus aliados, ele não sabia como sairiam da prisão. Alarmes os seguiram pelos corredores. Luzes d e emergência se acendiam. Agora, percebeu Richard, todos o s guardas d o turno haviam s e mobilizado, com reforços já a caminho. Se eles não saíssem logo, ele voltaria para sua cela em pouco tempo. Se eu não levar um tiro antes… Para a surpresa dele, eles não seguiram para os portões de entrada, mas para a parte de trás da prisão. Ainda grogue por causa da surra, ele perdeu a noção de onde estavam até que Adams fez outra porta trancada desaparecer. Uma brisa fria de inverno atingiu seu rosto enquanto eles saíam no enorme pátio de exercício da prisão. Altos muros de concreto, com arame farpado em seus topos, cercavam o espaço aberto. Torres de vigília observavam a cena do alto. O chão irregular o fez desejar ter colocado os sapatos antes de sair de sua cela. O que estamos fazendo aqui? Ele conhecia cada centímetro do pátio de cor. Não havia saída a não ser para cima. Holofotes iluminaram os fugitivos. Richard levantou as mãos para cobrir seus olhos. — E agora? — perguntou ele a Sanchez. — Espere. A mulher fez seu truque do pescoço novamente e as sentinelas nos muros desmaiaram. Exausta, ela se se encostou ao muro mais perto. O resto da equipe de resgate parecia cansado também. Billy gritou para a s torres d e vigília, mas seu grito soou mais rouco do que antes. Richard imaginava qual era seu limite. — Olhem! — gritou Sanchez. — Bem na hora! U m lustroso helicóptero negro descia d o céu. Richard estava surpreso de como eram silenciosos a hélice e o motor d a aeronave, e pela total ausência de faróis. Ele escondera


helicópteros na Coréia, mas esse tipo de tecnologia sigilosa o surpreendia, mesmo sendo do século 21. Se não estivesse vendo, ele não saberia que a aeronave se aproximava. Quem são essas pessoas? Imaginou ele, novamente. E no que eu estou me metendo exatamente? As hélices girando levantavam poeira e provocavam uma ventania enquanto o helicóptero pousava no meio do pátio. Uma porta automática abriu-se, revelando o compartimento dos passageiros, que parecia grande o suficiente para transportar toda a equipe e Richard. Ele entendia agora porque libertar os outros prisioneiros não era uma opção. Eles precisariam de uma frota de helicópteros para resgatar todos os presos. — Nosso voo está partindo! — gritou Sanchez. — Subam! Ele empurrou Richard à sua frente. — Estamos ficando sem… U m tiro o impediu d e terminar a frase. Seus olhos s e arregalaram e ele caiu a o chão. Sangue jorrou no rosto e no peito de Richard quando ele viu o atirador parado na porta atrás de onde Sanchez estivera há pouco. O guarda levantou o rifle na direção de Richard. Agindo por instinto, ele levantou o braço como se conduzisse uma orquestra. Uma onda de telecinese atingiu o homem armado, jogando-o ao chão e quebrando-lhe um osso com o impacto. Richard viu mais guardas entrando no pátio vindo d e dentro d a prisão. E l e os derrubou com mais uma onda de energia psíquica. De uma só vez, sentiu-se como se fosse ele mesmo novamente. Mas e Sanchez? O sangue formava uma poça ao redor da cabeça do líder da equipe enquanto ele permanecia deitado imóvel no chão. Richard moveu-se para olhá-lo, mas a mulher o puxou. — É tarde demais — disse ela apertando se braço, urgentemente. Olhos violetas piscaram marejados de lágrimas. — Ele se foi… Ela tinha razão, droga. Por mais que odiasse deixar Sanchez para trás, ele deixou a mulher arrastá-lo na direção do helicóptero. Poeira e cascalho voavam em seus olhos enquanto ele subia no compartimento de passageiros e colocava o cinto e o resto do time entrava depois dele. A porta da aeronave se fechou. — Todos prontos? — O piloto olhou para trás por cima dos ombros. Ele franziu a testa. — Cadê o Sanchez? Richard s e sobressaltou a o ver que o s olhos d o homem eram encobertos com cataratas brancas como leite. As pupilas eram firmes e não se moviam. Espere um pouco, pensou ele. O piloto é cego? — Perdemos o Sanchez! — gritou a mulher. — Decole… Agora! Tiros e passos apressados do lado de fora dera mais ênfase ao pedido dela. Sem argumentar, o piloto virou-se para o painel de controle. O motor soltou um zumbido gentil. O assento de Richard foi impulsionado para trás quando a aeronave levantou-se, sem


produzir som algum, do pátio da prisão. Ela sobrevoou por cima do muro. Ele se inclinou ansioso enquanto, não muito longe dele, o homem com a habilidade termocinética tentava confortar o pequeno Billy, q u e parecia estar sofrendo pela morte de Sanchez. Lágrimas pingavam por trás dos óculos do garoto enquanto ele soluçava alto. Uma noite cheia de nuvens os recebia, oferecendo a promessa de liberdade. Não acredito, pensou Richard. Nós vamos conseguir. Balas ricocheteavam os lados do helicóptero. Olhando pela janela, ele viu labaredas chamejando pelas janelas mais altas da prisão. O ronco do motor parou abruptamente. O helicóptero mergulhou alarmantemente. — Perdemos potência! — gritou o piloto. — Vamos cair! Não, pensou Richard. Visualizando o motor em sua mente, ele o imaginou rodando rápido o suficiente para funcionar. Instantaneamente, a aeronave nivelou-se e ganhou altitude. O piloto e os membros vivos da equipe exclamaram aliviados. A mulher tirou sua máscara de esqui, revelando o rosto d e uma gótica. Kohl pintava seus olhos negros. Seus cabelos escuros e ondulados tinham uma mecha azul. Ela sinalizou para ele com o polegar erguido. O Ra-ta-tá das armas d e fogo automáticas diminuíam enquanto o helicóptero elevava-se acima das torres de vigília e sumia entre as nuvens. Encostando-se no seu assento, Richard fechou os olhos e concentrou-se em manter a aeronave negra no ar. Esperava que não fosse um voo longo.


CINCO Num dia comum, o cemitério Emerald Harbor era uma ilha de serenidade em meio ao resto da Terra Prometida. Estátuas de mármore cravejavam a encosta gramada. Anjos esculpidos assistiam sobre a grama cortada. Salgueiros ofereciam sombras no verão. Uma cerca moldada de ferro geralmente matinha a correria e o tumulto do mundo exterior longe dali. Mas não hoje. Uma retroescavadeira ruidosamente retirava a terra em frente à lápide de Danny Farrel. A inscrição no granito simplesmente dizia “IRMÃO E MARIDO AMADO”. Uma outra lápide, carregando o nome completo de Danny, fora vandalizada de muitos modos. Muitas pessoas ainda culpavam o pobre Danny pela morte d e seus entes queridos. O túmulo d e s u a m ãe, adjacente a o dele, agora carregava apenas seu nome de solteira: Susan Baldwin. — Você não precisa ficar aqui para isso — disse Diana a Tom enquanto eles assistiam à enxada mecânica arranhar profundamente a terra. A sujeira espirrava no túmulo de sua irmã. O céu estava nublado e carregado. Um guindaste industrial estava ali perto para levantar o caixão quando e l e fosse exposto. Diana falava suavemente com seu parceiro. — Meghan e eu podemos cuidar disso. Tom balançou a cabeça. — Não. Se alguém mexeu com os restos mortais de meu sobrinho, eu quero saber. — Bem, estamos aqui por você, Tom — disse Meghan Doyle. A diretora da sede noroeste da NTAC estava ao seu lado, mantendo sua mão aquecida. Cabelos loiros ondulados caíam por seus ombros. Olhos castanhos escuros brilhavam com compaixão. — Sabe disso. — Obrigado — disse ela às duas mulheres. — Eu aprecio isso. Além dos agentes da NTAC, o acompanhamento à exumação era composto por poucas pessoas: um legista, sem ligações com Jordan Collier ou com o Movimento, pelo que sabiam; o diretor do cemitério; e o time de exumação em si. Shawn se oferecera para ir, mas Tom lhe garantira que não era necessário. Ele não mencionara o desinteresse d e Kyle, tampouco. Infelizmente, seu filho era muito próximo a Collier para ser confiado com essa informação. Tom só podia desejar que um dia não houvesse mais segredos entre eles. Talvez quando o futuro se concretizasse, de um jeito ou de outro. Uma cerca fora levantada ao redor para ocultar os procedimentos de vista. Eram apenas sete d a manhã e Tom vira alguns visitantes caminhando pelo local quando chegara, e a cerca l h e parecia u m a b o a ideia. El e imaginava s e Simone Tanaka os estava observando de longe.


Provavelmente. Quando o buraco já estava bem fundo, os escavadores começaram a trabalhar com pás. Os homens cuidadosamente tiraram o resto da terra para descobrirem o topo do caixão de Danny. Uma apreensão esmagadora tomou Tom quando o guindaste começou a puxar o caixão da cova. Agora que o momento estava bem diante deles, ele não sabia se podia continuar com aquilo. Lembranças de Danny criança e com um rosto puro invadiram seu cérebro; Danny estava feliz e saudável na última vez que Tom o vira vivo. Ele engoliu em seco. Meghan deu um aperto tranquilizador em sua mão. — Vai terminar logo. Tom queria poder acreditar naquilo. Seria tudo um falso alarme, ou eles estavam ali para uma surpresa desagradável? O guindaste elevou o caixão até uma lona. Lama escorria pelos lados do objeto de mogno, q u e perdera muito d e s e u brilho polido depois d e doi s meses abaixo da terra. Uma van esperava do lado de fora da cerca para levar os restos ao necrotério privado d a NTAC. O legista deu um passo à frente para examinar o caixão. Stefan Vasco era um cirurgião cardíaco aposentado, que vinha atuando como médico inspetor desde antes de os 4400 retornarem. — Talvez — ele sugeriu. — seria melhor conduzir o resto da exumação em outro lugar. — Não — insistiu Tom. — Vamos terminar logo com isso. — Como quiser. — Vasco esfregou mentol abaixo de seu nariz. — Devo alertá-los de que isso não será prazeroso. Pode haver um forte odor. — Nós entendemos. — Diana o assegurou. Como agentes d a NTAC, eles estavam mais familiarizados do que gostariam com efeitos de morte. Durante os últimos anos, haviam visto seres humanos eletrocutados, queimados vivos, e devorados pelos seus próprios animais de estimação. — Por favor, continue. Sem mais avisos, o legista destravou o caixão. As dobradiças enferrujadas rangeram enquanto ele levantava a tampa. Linhas esfarrapadas penduravam-se por ela como teias de aranha. Um fedor repugnante, como queijo estragado, emanava do caixão aberto. Tom franziu o rosto e colocou a mão na boca. O dono do cemitério e os escavadores se afastaram do caixão. Um dos homens parecia estar prestes a vomitar. Ele saiu correndo o mais rápido que conseguia. Tom mal notou sua saída apressada e soltou a mão de Meghan. — Permita-me — voluntariou-se Diana, mas Tom a deixou para trás para olhar dentro do caixão. Tom arfou alto. O corpo dentro do caixão havia se resumido a cabelos e ossos. A pouca carne que sobrara estava enrugada e azulada. Os lábios haviam se decomposto para deixar à mostra uma caveira. Buracos vazios olhavam sem expressão de um rosto murcho. O mofo incrustava u m terno escuro desgastado. Mas foi a barba cinza que imediatamente chamou atenção d e Tom. Seu sobrinho era um jovem bonito quando morrera.


De quem quer que fosse o corpo no caixão, não era o de Danny Farrel. — Olá, Richard — disse Jordan Collier. — Bem-vindo de volta à Seattle. O auto-proclamado líder dos 4400 estava parado diante d e uma enorme janela que com vista panorâmica do lago Washington. Cabelos negros e uma barba bem-feita com um bigode o assemelhavam nitidamente a um antigo messias com as mesmas iniciais, u m visual que Richard suspeitava que Collier cultivava de propósito. O líder carismático do culto fora um bem-sucedido magnata de negócios antes de se tornar um revolucionário. Como Richard sabia por experiência própria, Jordan sempre tinha algum plano em mente. Imagino o que ele quer de mim agora, pensou Richard. Ele não ficara tão surpreso ao descobrir que Collier for a o responsável por seu resgate na prisão. Quem mais tinha o s recursos, e a audácia, para preparar u m a operação como aquela? Richard se aproximou do outro homem cautelosamente. — Não quer dizer Terra Prometida? — Vejo que se manteve informado sobre os acontecimentos recentes — disse Jordan, com um sorriso. Diferente do conjunto costurado de três peças que ele usara, sua vestimenta agora consistia em trajes folgados simples. Vestindo um sobretudo negro por cima de uma túnica branca de algodão, ele parecia mais um eremita ascético do que o ditador de Seattle em si. — Ótimo. Ele gesticulou para uma poltrona ali perto. — Por favor, fique à vontade. Depois d e levarem Richard d e volta a Seattle, a equipe d e resgate o trouxera até aquela luxuosa casa d e lago segura dentro dos limites d a cidade. A mobília elegante e r a limpa e moderna. Uma madeira enfeitava o teto sala. Uma pintura Impressionista d e u m pôr-do-sol estava pendurada em uma parede perto do hall de entrada. Uma confortável poltrona de couro branca estava perto de uma mesinha de centro de aço e vidro. Um jarro de água gelada jazia na mesa. Um par de guarda-costas espreitava silenciosamente a o fundo. E l e s examinaram Richard cuidadosamente enquanto ele se sentava n a poltrona. Um conjunto d e roupas limpas havia substituído o seu traje de prisão manchado de sangue. Seu rosto ainda estava machucado devido à surra que levara antes de ser resgatado. Suas costelas ainda latejavam de dor. — Sinto muito pelo seu homem, Sanchez — disse ele. — Obrigado — respondeu Jordan. Uma voz rouca mostrava seu pesar. — Essa foi, de fato, uma infeliz tragédia. Hector era um homem bom e um soldado leal. Construir um novo mundo requer sacrifício, no entanto. Ele não foi o primeiro a dar a vida pela nossa causa. Nem, receio, será o último. Ele se sentou em frente a Richard. — Mas todo esse sofrimento e tumulto valerão a pena quando o Movimento cumprir seu destino e trazer paz e prosperidade universal à Terra.


Certo, Richard pensou, duvidosamente. Ele tentou conciliar a retórica sublime d e Jordan c o m o homem d e negócios s e m compaixão q u e e l e conhecera quatro anos antes. O s dois homens tinham um relacionamento longo e problemático. Embora tivessem trabalhado juntos em uma ocasião, Collier frequentemente interferira na vida de Richard, e até tentara colocar Lily contra ele uma vez. Richard sentava-se rígido na borda da poltrona, esperando Collier ir direto ao assunto. — O que você quer, Jordan? — Apenas dividir algumas informações com você. — Ele olhou em volta o elegante interior da casa de lago. — Para ser honesto, escolhi esse local por uma razão. Seu rosto assumiu uma expressão grave. — Foi aqui que sua filha morreu. A revelação pegou Richard como uma granada. Ele fora informado na prisão que sua filha morrera, mas, apesar de seus apelos, nunca soubera os detalhes de sua morte. Aparentemente, essa informação era “classificada”. Durante os dois últimos meses, passara horas e mais horas imaginando e se preocupando com o que acontecera a Isabelle no final. Ele nem mesmo pudera ir ao funeral dela! — Como? — perguntou ele, roucamente. — Quem? Collier encheu um copo de água para Richard. — Me deixe lhe falar sobre os Marcados… A história q u e e l e contou, sobre conspiradores viajantes d o tempo se escondendo nos corpos de homens e mulheres atuais, teria soado inacreditável para Richard quatro anos antes. Mas depois de ter sua própria vida manipulada por uma facção diferente do futuro, e ter sido fisicamente transportado dos anos 1950 para o século 21 e uma bola de luz, a história fazia sentido, pelo menos por enquanto. Mas o que isso tinha a ver com sua filha? — Os Marcados tentaram coagir Isabelle para que ela traísse o Movimento — explicou Jordan. — Quando ela s e rebelou, eles a mataram. — Ele soltou um longo suspiro. — Ela sacrificou a vida para salvar a mim e a Tom Baldwin. Devia ficar muito orgulhoso dela. — Foi isso mesmo que aconteceu? — perguntou Richard. Concebida no futuro, e posta na vida adulta do dia para a noite, Isabelle se tornara uma jovem perigosa e volátil com habilidades extraordinárias. Embora ele sempre a tivesse amado, lutara para que ela superasse seus impulsos obscuros. Agora queria desesperadamente acreditar no que Jordan estava lhe contando, que sua linda filha encontrara a redenção no fim. — Ela fez a coisa certa? — Sua filha morreu como uma heroína — insistiu Jordan. — Eu estava lá. Eu vi com meus próprios olhos. Richard estava tomado pela emoção. Ele secou as lágrimas dos olhos. — Ela sofreu?


Jordan balançou a cabeça. — Não por muito tempo. Terminou logo. Eles ficaram sentados em silêncio por vários momentos enquanto Richard processava o que acabara de ouvir. Ele lamentava a morte de sua filha, mas encontrava algum conforto no fato que ela realmente mudara sua vida, primeiro. Para ser honesto, ele temia que Isabelle ficasse ruim outra vez e fosse morta pelas autoridades em algum tipo de extermínio, mas aparentemente esse não era o caso. Ele queria poder contar a Lily que a filha deles ficara bem, mas então percebeu que provavelmente ela já sabia disso. Se houvesse alguma justiça nos cosmos, sua mulher e filha estariam juntas mais uma vez. Um pensamento sombrio lhe ocorreu. Seus olhos secaram-se e seu rosto ficou rígido. Ele levantou o olhar. — E os Marcados…? Jordan acenou com a cabeça, antecipando a resposta para a pergunta de Richard. Ele pegou um pedaço de papel do bolso em seu peito. — Três dos Marcados foram erradicados. Essa lista contém as identidades atuais dos sete Marcados que sobraram. Ele entregou o papel a Richard, que se espantara com os nomes na lista, que incluíam um assessor do presidente, um oficial de alto cargo no Vaticano, um grande produtor de Hollywood, um Shake Árabe rico, um general cinco estrelas, um burocrata chinês, e um tibetano mundialmente conhecido. Todos extremamente poderosos individualmente. Essas eram as pessoas responsáveis pela morte de Isabelle? — Onde você conseguiu isso? A resposta de Jordan o surpreendeu. — Tom Baldwin. Dada as conexões política dos Marcados, ele ficou de mãos atadas, então ele me passou a lista para que eu cuidasse desse problema para ele. Cuidasse? Richard começava a entender. — Quer que eu me livre dos Marcados. Usando minhas habilidades. — N ã o est ou pedindo q u e f a ç a coi sa qualquer — declarou Jordan, cautelosamente mantendo o grau de negação. — Como um amigo, me senti impelido a lhe informar sobre as circunstâncias que dizem respeito à morte de sua filha e lhe passar as informações que dizem respeito aos assassinos dela. Ele olhou diretamente nos olhos de Richard. — Você é um ex-soldado. Tem uma habilidade impressionante, e todos os motivos para odiar os Marcados tanto quanto eu. Você é um homem livre. Sempre foi. Ele se levantou da poltrona.


— Vou voltar para minha sede no centro da cidade. Por favor, sinta-se livre para permanecer nessa casa de lago o quanto achar necessårio. Ele deixou a lista para trås.


SEIS — Vocês têm certeza de que era o corpo errado? Bernard Grayson, da Funerária Grayson & Son, ficou chocado com a notícia de q u e o corpo d e u m estranho fora encontrado n o caixão d e Danny Farrell. Seu rosto delgado era composto por linhas finas e angulosas. A linha do cabelo em forma de “V” marcava o alto de sua testa. Um austero costume preto denotava bem sua profissão. Ele se achava sentado em uma grande escrivaninha em madeira de lei, enquanto Diana e Tom o confrontavam com a descoberta que haviam feito no cemitério. Prateleiras de livros se alinhavam em uma das paredes, ao passo que uma outra estava cheia de fotos de Grayson com diversos políticos e celebridades. As paredes azuis clara eram agradavelmente suaves. O som d e u m órgão tocava baixinho no aparelho de som. A Grayson & Son fora responsável pelos funerais de Danny e da mãe dele. — Positivo — confirmou Tom. — O s registros dentários identificaram o corpo como sendo d e Delbert Ludden, u m sem-teto q u e f o i morto durante as manifestações n o ano passado, mais o u menos n a mesma época e m q u e meu sobrinho morreu. — Ele e Diana haviam deixado seus uniformes da NTAC no carro para evitar chamar atenção. — Não havia nenhuma evidência de que o corpo de Danny tenha ocupado aquele caixão. Diana inclinou-se para frente em sua cadeira. — Mas o caixão era idêntico ao que Shawn Farrell adquiriu de sua empresa há dois meses. —Meu Deus. — Grayson enxugou a testa suada com um lenço. Ele olhou de relance para a porta do escritório, para se certificar de que estava fechada. — Não tenho como dizer o quão humilhante é isto. E u s ó posso lhes garantir q u e nunca aconteceu algo parecido antes. A Grayson & Son goza de uma reputação impecável, desde que meu pai fundou o negócio, há trinta anos. — Ele parecia envergonhado perante Tom. — Você e sua família merecem minhas sinceras desculpas pelo que possa ter dado errado. Diana continuou a pressionar. — Você tem alguma ideia do que possa ter acontecido? — Eu gostaria de ter — disse Grayson. — Vocês têm que entender, foi uma época muito caótica. A epidemia ceifou mais de nove mil vidas em uma questão de dias. A indústria funerária da cidade foi pressionada até o limite. Nós fomos atropelados pela fatalidade. — Ele puxou pela memória. — Eu só posso concluir que, na confusão daqueles dias sombrios, algum tipo d e falha aconteceu. — Ele afrouxou o colarinho. — Mais uma vez, e u sinto muito por esses acontecimentos angustiantes. Tom queria respostas, não desculpas. — Então onde está o corpo do meu sobrinho agora? — Para s e r honesto, e u n ã o faço a menor ideia. — Grayson abriu os arquivos mais


relevantes d e s e u laptop. E l e verificou rapidamente a tela. —Todos os nossos registros parecem estar em ordem. Seu sobrinho deveria estar enterrado ao lado da mãe. Diana fez a pergunta lógica. — Bem, onde é que o corpo de Ludden deveria estar?” — Deixe-me ver. — Grayson digitou o nome do mendigo no computador. — De acordo com nossos registros, os restos mortais do Sr. Ludden foram cremados. As cinzas resultantes foram recolhidas pelo município para serem espalhadas pelo planejado parque memorial. É possível que ainda estejam armazenadas em algum lugar. Tom não engoliu a explicação do papa-defunto. Ele se lembrava claramente de ter visto o corpo de Danny dentro do caixão, no velório. Ou o que aparentava ser o corpo d e Danny. Tentou imaginar como poderiam ter sido enganados. Metamorfose? Ilusão coletiva? Projeção astral? N a Terra Prometida, as possibilidades eram infinitas. — Belo escritório — comentou Diana. Levantando-se de sua cadeira, ela se dirigiu até a parede, onde uma foto de Grayson ao lado de Jordan Collier ocupava lugar de destaque. Ela sacudiu a cabeça diante do retrato. — Você é fã dele? Grayson se encolheu em sua cadeira. — Eu acho que o Sr. Collier é um grande homem — Uma expressão ressabiada encorajou os agentes a confrontá-lo. — Você já leu o livro dele? “De 4400 para mais”? — Eu tenho uma cópia autografada — disse Tom, secamente. Ele não se surpreendeu com a admiração do homem por Collier. Uma pesquisa prévia já havia revelado inúmeras ligações entre o agente funerário e o Movimento de Collier. Grayson & Son parecia ser a funerária preferida dos seguidores de Collier e suas famílias. Eles haviam inclusive realizado o funeral d e Isabelle Tyler. Detendo a preferência, Grayson poderia estar apenas tirando vantagem de um novo e lucrativo fenômeno demográfico, mas a conexão com Collier era suspeita. Talvez o desaparecimento do corpo de Danny não tivesse sido apenas um acidente. — Acho que teremos que inspecionar as dependências da empresa — declarou Diana. A cortesia solícita de Grayson evaporou. — Por quê? — ele indagou, na defensiva. — Porque eu apoio Jordan Collier e seus esforços para fazer do mundo um lugar melhor? Isto não é crime, ao menos não em Seattle. — Não — ela concordou — mas a apropriação indébita de restos mortais é. Nós não queremos prestar queixa, mas você estaria melhor se cooperasse conosco. — Ela olhou de relance para Tom. — Especialmente se você não quiser que meu parceiro abra um processo civil também. Grayson empalideceu com a possibilidade, mas manteve pé firme.


— Acho que e u valorizo demais a privacidade d e meus clientes para me comprometer nesse sentido. — Ele se levantou de sua cadeira e gesticulou na direção da porta. — Estejam à vontade para inspecionar as áreas públicas, as salas de velório, capelas e tudo o mais, mas as salas de preparação e o crematório são áreas restritas. É uma questão de princípios. — É assim? — disse Tom, duvidando. O fato do agente funerário desafiálos teimosamente, mesmo com a ameaça de inquérito e falência em potencial, sugeria que ele definitivamente tinha algo a esconder. Tom tirou um documento dobrado do bolso de sua jaqueta. — O caso é que nosso mandado vence os seus princípios. — Ele entregou a Grayson a ordem judicial, discretamente obtida com um dos poucos juízes de Seattle que não estavam comprometidos com Collier. — Veja só. — O quê? — Aturdido, Grayson folheou o documento, antes de jogá-lo na mesa. Sua expressão facial era pura raiva. “Isto é um despropósito! — Ele pegou o telefone. — Eu preciso falar com meu advogado. Ou talvez Jordan Collier? — V á e m frente — disse Tom, levantando-se d a cadeira par a s e juntar a Diana. Ele imaginava s e o recalcitrante agente funerário esperava que Collier o protegesse d e qualquer investigação. — Enquanto isso, nós iremos dando uma olhada por aí, começando por aquelas áreas restritas que você mencionou. — Não! Não podem — protestou Grayson. Esquecendo-se do telefone, ele correu d e trás d e s u a mesa para deter o s dois. — E u n ã o entendo. O q u e vocês esperam encontrar? Eu prometo, o corpo do Sr. Farrell não está aqui. Por que estaria, após todas essas semanas? — Me diga você — replicou Tom. As objeções veementes do homem apenas aumentavam sua determinação de vasculhar a funerária de cima a baixo. Ele não esperava realmente encontrar o corpo de Danny nas dependências desta, mas talvez pudessem obter alguma pista que revelasse o que fora feito dele. E o que Jordan Collier tinha a ver com aquilo, se é que tinha. — Dizer o quê? — O papa-defunto, consternado, parecia a ponto de arrancar o pouco que lhe restava de seus cabelos. Ele retorcia suas mãos suadas. O suor brotava de sua testa. — Eu não tenho nada a esconder! Tom abriu a porta. — Então você não tem nada com o que se preocupar. Mas precisamos ver por nós mesmos. — E vamos precisar daquele laptop — acrescentou Diana. S e m pedir permissão, ela confiscou o computador d a mesa d e Grayson. — Bem como seus registros acerca d e Danny Farrell, Delbert Ludden, e o resto dos casos do cinquenta/cinquenta. Grayson fitou tristemente seu laptop perdido. — Mas nós registramos centenas de vítimas. Centenas! — Então é melhor você começar a se mexer — disse Tom.


Ele e Diana saíram do escritório, com Grayson ansioso atrás deles. Enquanto isso havia u m funeral e m andamento e m uma das salas d e velório adjacentes. Olhos curiosos s e voltaram n a direção dos agentes. Tom sentiu uma pontinha de culpa por causar aquela perturbação, mas eles não poderiam jamais ir embora e voltar mais tarde; isso daria a Grayson uma chance de se desfazer de alguma evidência que poderia incriminá-lo. Eles apenas teriam que tentar se discretos. Mais uma razão para começar pelo andar de baixo, decidiu ele. Evitando as áreas públicas, eles se dirigiram para os fundos da casa. Um belo aviso de ACESSO RESTRITO AOS FUNCIONÁRIOS enfeitava a entrada de uma escadaria que descia para o porão. Uma porta trancada os recebeu ao final dos degraus. Tom virou-se para Grayson, que estava parado exatamente atrás dele na escada. — As chaves. — Esqueça — o homem resmungou. Ele estendeu o s braços, como s e os oferecesse para serem algemados. — Prenda-me se você quiser, mas eu conheço meus direitos. Você não vai se safar dessa. Aquilo era uma ameaça? Mais uma vez, Tom imaginou que Grayson estivesse esperando que Collier o u seus assessores pudessem intervir e m seu favor. Isso poderia acontecer, ele admitiu, se o agente funerário tivesse a chance de contatar seu glorioso líder. E é por isso que precisamos passar por esta porta agora. Desafiando-o, ele pegou as algemas. —Vigie ele — pediu a Diana, enquanto algemava os pulsos do homem atrás das costas. O papa-defunto de meia-idade parecia estar desarmado e em desvantagem, mas quem saberia quais habilidades estranhas ele poderia possuir? Bernard Grayson não estava listado entre os 4400, mas isto não significava muito. Graças ao cinquenta/cinquenta, havia inúmeros ppositivos não registrados e m Seattle naqueles dias. Pelo que sabiam, e l e poderia esguichar veneno de seus olhos ou incendiá-los com um simples pensamento. Entretanto, ele limitou-se a olhar com raiva para Tom, enquanto este o revistava para achar a s chaves. U m barulhinho metálico encorajador entregou o esconderijo das mesmas. Tom exigiu as chaves e destrancou a porta. — Está bem, vamos descobrir o que você está tão determinado e m esconder de nós. Por uma questão de princípios, é claro. Tom nunca havia estado nos bastidores de uma casa funerária antes, mas ele imaginava que não poderia ser diferente do necrotério do QG. Uma olhada rápida pareceu confirmar suas expectativas. Divisórias separavam o porão em três ou quatro câmaras interligadas. Redomas refrigeradas mantinham o s clientes do necrotério gelados. O cadáver d e u m ancião estava sobre uma mesa metálica de embalsamento. Um pano modesto, cobrindo-lhe a virilha, ajudava a preservar sua dignidade. Uma máquina de embalsamar, cheia de um líquido rosa translúcido, rugia ao fundo. Ralos metálicos tinham sido instalados no chão de ladrilhos. Trocáteres, instrumentos d e sutura, cânulas e outras ferramentas estavam espalhadas por


várias bandejas e balcões. Estantes de vidro continham uma grande variedade d e preparados químicos. Uma pia d e porcelana branca jazia n a parede mais distante. Lâmpadas suspensas brilhavam intensamente. Ventiladores barulhentos e exaustos se esforçavam para limpar o ar, que cheirava levemente a formaldeído e putrefação. Portais s e abriam p a r a a s câmaras adjacentes. Espreitando através de uma porta à direita, Tom vislumbrou uma grande fornalha de aço, com controles de ajuste de temperatura. Uma esteira rolante esperava para conduzir corpos para dentro do crematório. O sistema de ar condicionado mantinha o porão vários graus mais frio do que os escritórios lá em cima. Tudo parecia e m ordem, apesar d e meio bagunçado, então por que Grayson fizera tanto auê? — Tom — disse Diana, ansiosa. — Venha aqui. El a entrara p o r u m portal n o que, à primeira vista, parecia s e r uma segunda sal a de preparação. Ele se apressou através da câmara para se juntar a ela. — O que foi? — Vej a est e equipamento — e l a disse, apontando p a r a u m grupo de aparelhos que pareciam caros. — Centrífugas, tubos d e ensaio, placas d e Petri, microscópios d e elétrons, incubadoras de cultura, até um moderno analisador de DNA. Eu sei que não sou uma expert, m a s estou b e m certa d e q u e isto n ã o é equipamento padrão do ramo de funerais. — Ela contornou a sala para confrontar Grayson, que já se encontrava ao pé da escada. “Qual é a explicação, Sr. Grayson? Está querendo entrar no ramo da guerra dos germes ou algo parecido? O agente funerário algemado lançou um olhar furioso para os dois agentes. — Eu não vou dizer nada. Isto aqui é propriedade particular. — Talvez — disse Tom — mas isto me parece mais do que um passatempo. — Ele avaliou o laboratório oculto. Era mesmo u m aparelho d e tomografia ali no canto? Ele não era u m cientista, como Diana, mas até ele podia dizer que todo aquele equipamento médico de alta tecnologia não tinha nada a ver com a preparação d e corpos para enterros. — Precisamos fotografar todas estas instalações, talvez até trazer Marco aqui para ver tudo isto. Marco Pacella era o gênio residente da NTAC, e chefe da “Sala de Teorias” da Divisão Noroeste. Se ele não conseguisse descobrir o que Grayson pretendia com todo aquele equipamento, ninguém mais o faria. — Ou, se nós pudermos confiar nele, Kevin Burkhoff — sugeriu Diana. Uma etiqueta de “agentes biológicos nocivos” estava afixada em um armário de metal. Olhando dentro do container, ela encontrou promicina suficiente para decretar uma sentença d e vi da o u morte par a qualquer lugar al ém d e Seattle. O brilho esverdeado do neurotransmissor ilegal se espalhou pelo laboratório. — OK, isto definitivamente não é fluido de embalsamento — Ela sacudiu a cabeça, desnorteada. — Mas o que isto tem a ver com o seu sobrinho?


— É o que e u quero descobrir — disse Tom, com raiva. Entrando na câmara frigorífica, seu olhar se ateve às estantes refrigeradas que continham a clientela inerte. Etiquetas escritas a mão, afixadas n a borda das cúpulas, identificavam a maioria dos ocupantes pelo nome. Um grupo d e gavetas, entretanto, estava identificado apenas por números. Num impulso, Tom segurou a alça d a gaveta d o meio e a puxou c o m força. U m sopro d e a r gelado enevoou brevemente a atmosfera refrigerada. Um par de pés descalços aparecia de dentro da figura coberta que estava deitada dentro d a cavidade aberta. Uma etiqueta afixada num dos dedos continha apenas um número de código: # 11. — Espere! — entregou Grayson. — Deixe isso aí. Só porque você quer, pensou Tom. Ignorando os protestos do papa-defunto, ele puxou para fora a bandeja que continha o corpo. Um fino lençol verde ocultava a identidade d o cadáver, mas o tamanho e o formato d o corpo lhe causaram um sentimento ruim. Preparando-se para um choque, ele puxou o lençol. O rosto de Danny estava pálido e sem vida. — Seu ladrão de corpos idiota! — Girando o corpo, Tom agarrou Grayson pelo colarinho e o jogou contra a parede. — O que você quer com meu sobrinho? Grayson deu um sorriso amarelo para o agente irritado. Seus olhos brilhavam de fervor. — O Grande Passo para Adiante ainda não está completo. Danny Farrell ainda tem u m papel a cumprir neste grande plano, apesar d e sua morte infortunada. — Que merda você quer dizer com isto? — Tom tentou tirar uma resposta do seu prisioneiro, sacudindo-o. — Fale, seu demônio desgraçado! — Calma, Tom! — Diana o aconselhou. — Eu sei que você está aborrecido, mas não faça nada de que possa se arrepender. Falarei com Bernard aqui , ele pensou. Ele é quem cometeu um grande erro aqui, mexendo com minha família. Tom não estava certo d e que Diana estava usando a tática de “policial bonzinho/policial malvado”2 ou se ela realmente estava com medo de que ele perdesse o controle, mas de toda maneira ele não iria desistir enquanto o papa-defunto imprensado na parede não vomitasse a explicação para o que estava acontecendo ali. Está começando a parecer que Dennis estava na pista certa. Mas antes que Grayson pudesse abrir o jogo, Tom percebeu indícios de movimentação pelo canto de seus olhos. Para sua surpresa, um jovem de jaleco pulou de detrás da porta ao pé da escada. Tom se repreendeu mentalmente por não verificar completamente o porão antes de começar a revista; ele deixara sua ligação pessoal com o caso prejudicar sua disciplina. — Diana, cuidado! O aviso veio tarde demais. O empregado anônimo pegou uma bandeja de aço d e u m dos balcões e arremessou contra a cabeça d e Diana. A arma improvisada a atingiu com um impacto estridente. Diana desmaiou de cara no chão de ladrilhos. Ela gemeu, cheia de dor.


2 N . d o T.: “Good cop/bad cop” – estratégia d e abordagem d o criminoso, efetuada em dupla por policiais, na qual o primeiro o interroga de maneira agressiva e incisiva, preparando o terreno para que o segundo, utilizando uma aproximação mais tranquila, pareça simpático e tenha melhores chances de obter uma confissão, por exemplo. — Diana! — Ele não conseguia saber se ela estava inconsciente ou não. Soltando Grayson, correu para confrontar o agressor dela. Sacou a arma no coldre lateral. — Mãos ao alto! Não mova um músculo! O adolescente magricela deu uma risadinha a o ver a arma d e Tom, revelando uma boca repleta de ganchos metálicos. A acne marcara sua face rude. Mechas loiras e engorduradas balançavam diante de seus olhos. Calças jeans azuis contrastavam com seu jaleco branco e manchado. Ignorando a ordem de Tom, ele correu para a mesa de embalsamento e pegou um trocáter ameaçador de um kit de instrumentos na ponta da mesa. A agulha de metal reluzente cintilou sob as luzes do teto. Ele o brandiu na frente de Tom como uma espada. — Largue isto — rosnou Tom. Elevou sua arma até a cabeça do garoto. — Agora. — Vá em frente — provocou ‘Ganchos’. — Puxe o gatilho. — Ele olhou para Grayson, atrás de Tom. “Bernie, saia daqui. Eu tomo conta desses storm troopers3! O papa-defunto correu de volta para a escada. — E quanto a você? — perguntou ao parceiro de crime. — Você é mais importante — insistiu Ganchos. — O futuro precisa de você. Vai! Di ana gem eu fracamente n o c h ã o . Apesar d e armado, T o m sent i u q u e a situação rapidamente saía de seu controle. — Nenhum de vocês vai a lugar algum. Agora abaixe essa arma. — Ele engatilhou a Glock semiautomática. — É o meu último aviso. — Ah, é? — O adolescente brandia o trocáter. — Que tal este aviso: deixe Bernie ir ou sua parceira vai ficar espetada como churrasco! Ele aproximou-se ameaçadoramente de Diana. Tom puxou o gatilho. Nada aconteceu. — Qual o problema, garotão? — Ganchos deu tapinhas na cabeça dele com a mão livre. — Por acaso eu contei que posso neutralizar reações químicas apenas com a força de vontade? Muito útil no laboratório, e mais ainda em um tiroteio. Sua munição está estragada. Droga, pensou Tom. Ele ouviu Grayson correndo escadaria acima lá atrás.


Em alguns minutos o criminoso diretor de funerária estaria longe, mas persegui-lo não era uma opção. Não havia como deixar Diana sozinha com aquele cara. O violento adolescente com certeza tinha planos. Tom nem tentou disparar sua arma novamente. Ao invés disso, arremessou o inútil pedaço de metal contra a cabeça de Ganchos. O adolescente 3 N. do T.: Storm troopers – personagens da saga Star Wars, de George Lucas. abaixou-se para evitar o projétil e Tom aproveitou a oportunidade para atingi-lo com a cabeça. Ele jogou o oponente de costas na mesa de embalsamento, que se chocou contra o inofensivo cadáver atrás dele. Seus dedos agarraram o punho de Ganchos para manter a ponta afiada do trocáter longe dele. Os anos de treinamento no F.B.I. triunfaram quando ele torceu o punho de Ganchos selvagemente. O instrumento cirúrgico afiado voou da mão do garoto e quicou pelo chão até o outro lado da mesa. — Desista! — resmungou Tom, com o s dentes cerrados. Mesmo que tivessem perdido Grayson, talvez ainda pudessem conseguir respostas daquele cretino. Ele s e sentiu u m idiota por não ter checado o s outros empregados; eles deveriam ter imaginado que Grayson não estava trabalhando sozinho. — Você vem com a gente! — É o que você pensa! — Ganchos cuspiu no rosto de Tom, cegando-o momentaneamente, depois golpeou a testa d o agente com sua cabeça. Estrelas explodiram dentro do crânio de Tom e ele cambaleou para trás. Ganchos escapuliu de suas garras e rolou por cima da mesa de embalsamento, jogando o corpo do ancião no chão. A carne sem vida atingiu os ladrilhos como um saco de batatas. Um parafuso de plástico no abdômen do cadáver se abriu. Fluido de embalsamento jorrou da ferida aberta. Tom limpou o cuspe de seus olhos e saltou por sobre a mesa, atrás de seu oponente. Ganchos mergulhou para pegar o trocáter, mas o agente jogou-se sobre ele primeiro. Eles tombaram através d e uma porta aberta para dentro d a câmara de cremação. O laboratorista lutou de forma cruel, mordendo com força a orelha de Tom, enquanto eles se debatiam no chão, mas o experiente agente da NTAC logo levou vantagem. Um golpe nos rins fez Ganchos gritar, soltando a orelha de Tom, e ele jogou-se e m cima d o adolescente, imobilizando-o no chão. Ele levantou seu punho para desferir o golpe final. — Espere — grunhiu Ganchos. Ele jogou as mãos para cima, rendendo-se. — Me dê um segundo! — Para o quê? — exigiu Tom. Ele não tinha tempo a perder com aquele marginal. Eu preciso ver como está Diana. — Para me concentrar, seu idiota! O garoto fez uma careta e apertou os olhos fechados. Sua testa ferida se franziu em pensamentos… E uma repentina onda de fraqueza tomou conta de Tom.


D e u m a s ó vez, s e u punho parecia pesado como u m a bola d e boliche. Seus membros pareciam de borracha. Oh, droga, pensou Tom. O que ele está fazendo comigo? Ele tentou continuar o soco, mas o golpe aterrissou completamente sem força. Os nós de seus dedos rasparam, inofensivos, o queixo do rapaz. A cabeça de Tom balançou, molenga, sobre seus ombros. Ele sentiu-se tonto, confuso. Ganchos afastou Tom com rudeza e se colocou de pé. Tom permanecia ajoelhado e instável no chão. Tudo o que podia fazer era continuar assim. Ele nunca havia se sentido tão exausto em toda a sua vida. — O que… O que está acontecendo comigo? — Está tendo uma pequena crise energética? — Ganchos zombou dele. — Isso sou eu diminuindo seu metabolismo. As reações catabólicas que dão força aos seus músculos estão se reduzindo a um rastejar. Como a pior hiperglicemia do mundo. — Ele riu do agente aflito. — Tira um pouco a concentração, mas realmente elimina o vento das suas velas. Vamos relembrar a biologia do Ensino Médio. Tom tentou reagir rápido, mas seu cérebro se recusou a cooperar. Ele mal podia concatenar duas ideias ao mesmo tempo. Apoiou os dois braços no chão para evitar escorregar no chão de ladrilhos. S e u s ol hos turvos observaram Ganchos acender o crematório. O propano se incendiou dentro do destilador à prova de fogo. O embalsamador ferido abriu a porta superior para revelar o inferno laranja brilhante lá dentro. Tijolos refratários alinhavam-se no interior do forno. O calor das chamas atingiu Tom como um sopro de fornalha. Ganchos ligou a maca motorizada. Uma esteira rolante esperava para despejar uma carga na boca do forno. — N ã o — arfou Tom . Apesar d o calor, u m arrepio desceu s u a espinha quando ele adivinhou o que o adolescente tinha em mente. — Você não pode… — Desculpe, cara, mas você pediu isto. — El e veio p o r trás d e To m e o agarrou por debaixo d o s braços. O agente, esgotado, estava fraco demais para reagir. Grunhindo de esforço, Ganchos colocou Tom de pé e começou a arrastá-lo para a esteira rolante. — Você poderia muito bem ter escapado sozinho. Os joelhos de Tom se arrastaram no chão. As chamas crepitavam mais alto do que o ronco contínuo do motor. O calor do forno aumentava a cada passo. — Espere — ofegou ele. — Você não tem que fazer isto. Deixe-nos aqui. — Sem chance — disse Ganchos. — Vocês já viram demais. Eu preciso realocar todo este equipamento antes que algum outro idiota do governo venha procurar vocês. — Ele girou Tom até colocá-lo de frente para a esteira. O inferno flamejante chamuscou o rosto de Tom. A ponta da esteira encostou em sua cintura. Ele travou os joelhos com o que lhe sobrava de energia. — Por favor — Tom suplicou. — Não… Isto é loucura…


— Você e seus colegas estão loucos s e pensam que podem impedir o futuro. — Ganchos continuou falando, talvez par a s e distrair d o q u e estava para fazer. — Normalmente, eu colocaria você em uma caixa de papelão primeiro, e me certificaria de remover todos os seus objetos pessoais, mas acho que isto tem que ser feito rápido. — Ele tentou empurrar Tom para a esteira rolante, enquanto tagarelava sem parar. As mãos dele pressionaram as costas de Tom. — Que pena que você não verá o Paraíso na Terra, companheiro. Mas pense nisto como uma prévia do Inferno… Ele segurou, sem forças, as laterais da esteira. Sentiu seus pés perdendo contato com o chão. Acabou-se, ele temeu. Talvez eu devesse ter tomado aquela maldita injeção, afinal de contas. .. Entretanto, no mesmo instante em que ele pensou que estava tudo acabado, Ganchos gritou de dor. Largando Tom, ele cambaleou para trás, praguejando de forma obscena. O trocáter que estava jogado no chão havia sido enfiado em seu ombro por Diana, que estava em pé atrás do pretenso assassino de Tom, com uma expressão decidida n o rosto. Preocupado e m evitar a própria cremação, Tom nem a ouvira entrar no crematório. Aparentemente, nem Ganchos. O sangue escorria pelas costas do laboratorista. Sua concentração falhou, e Tom sentiu a energia voltando. Alívio e adrenalina inundavam suas veias. Seu cérebro confuso voltou a funcionar. Ele pulou para longe da esteira e do forno. — Diana — ele arfou —, essa foi por pouco. — Nem me fale. — Ela mantinha o olhar fixo em Ganchos, que estava acuado pelos dois agentes. O garoto se balançava todo, as pernas tremiam. — Você está bem, Tom? — Acho que sim. — Ele estava feliz por ver sua parceira de volta à ação. — Obrigado por me salvar. E você? Ela massageou sua cabeça contundida. — Nada que um Tylenol não cure. — Ela puxou o celular do bolso e chamou reforços. — Está certo. Traga Garrity aqui – ambos, o mais rápido q u e puder, e alguém d a equipe de Marco, também. — Ela guardou o telefone e acenou com a cabeça para Tom. — A ajuda está a caminho. — Você ouviu, né, seu bosta? — Tom sacudia os punhos, enquanto bloqueava a saída. Ele sentiu que ainda poderia devorar um filé enquanto isso, mas seu vigor estava definitivamente voltando, à medida que seu corpo trabalhava além da conta para recarregar as baterias. — Se eu fosse você, começaria a falar agora mesmo. Ganchos engoliu e m seco. Seu rosto cheio d e acne s e contorcia d e dor, enquanto ele se esforçava para tirar o trocáter d e seu ombro. Um jorro rubro esguichou d a ferida aberta. Ele olhou de um lado para o outro entre os agentes, como se avaliando as chances que teria contra os dois. O sangue pingava da ponta da arma. Seu braço se sacudia como uma antena d e carro numa rodovia. O hematoma em sua testa era uma feia mancha roxa.


— Nem pense nisso. — Tom o advertiu. —Olhe para si mesmo. Você está perdendo sangue rápido. Não há meio de você passar por nós. O garoto lambeu os lábios nervosamente. Seu braço tremulante começou a se abaixar. — Você acabou de tentar incinerar um agente federal — Diana lembrou a ele. — Nem mesmo Jordan Collier pode salvá-lo desta. Os olhos selvagens e avermelhados lembraram a Tom um animal acuado. — Eu jamais trairei o Movimento — jurou o adolescente. — Vocês não vão conseguir me fazer falar. — Isto é o que você pensa — disse Tom, sombriamente. — Não, não… — O olhar do garoto lançou-se na direção do crematório. Ele respirou fundo. Um misterioso ar de tranquilidade tomou conta dele. — Eu não vou lhes dar a chance de me dobrar. Tom entendeu tarde demais o que o embalsamador acuado tinha em mente. — Não! — ele gritou, se projetando para frente, mas Ganchos já havia se atirado de bruços na esteira. Esta jogou o jovem suicida direto na boca aberta do crematório. Uma explosão de calor se derramou do forno quando as chamas engoliram o corpo flagelado do adolescente. Carne e roupas escureceram e queimaram. A pele chiou e estalou. Seus gritos de morte foram misericordiosamente breves. — Oh, meu Deus! — exclamou Diana. Ela tapou a boca com a mão, horrorizada. — Que tipo de fanatismo inspira um sacrifício como este? — Pergunte a Jordan Collier — respondeu Tom, amargamente. Querendo abafar o cheiro de carne humana queimando, ele bateu a porta do forno, para que eles não vissem ou sentissem mais nada. A cremação autoinflingida do adolescente o sacudira até o âmago. Kyle seria capaz de fazer o mesmo para proteger seu adorado Movimento? Tom não queria nem pensar naquilo. Virando as costas para o crematório, eles caminharam, entorpecidos, de volta para a sala de preparação. A visão do corpo de Danny na maca atingiu Tom como um soco no estômago. Ele passou por cima do cadáver rasgado no chão. O ar fresco rescendia a produtos químicos e sangue. A morte parecia se aproximar de todos os lados. Diana caminhou para as redomas. — Bem, ao menos encontramos Danny. — Mais conhecido como Número Onze — disse Tom, de modo severo. Diana lançou um olhar enigmático para os outros compartimentos. — Imagino quem serão o s outros espécimes. — Curiosa, ela abriu a redoma diretamente acima da de Danny e puxou a gaveta. Outro corpo coberto por um lençol saudou seus olhos. — Vamos ver quem temos aqui. Ela retirou o lençol, então pulou para trás, surpresa. Tom soltou um grito entrecortado.


O segundo corpo tambĂŠm era de Danny Farrell.


SETE Foi dito que, quando Roma caísse, o mundo terminaria. O cardeal Emanuel Calábria sabia que não era somente isso. No futuro distante do qual ele viera, Roma era nada a não ser apenas ruínas, mas ainda assim a civilização resistira, mesmo que a Catástrofe tivesse deixado o planeta aos escombros. Somente uma grande cidade restara, separada por muros do enorme caos do lado de fora. Era sua missão fazer com que a última cidade da humanidade — a sua própria cidade — resistisse. Apesar da intromissão infernal de seu inimigo. A até então chamada Cidade Eterna se estendia diante dele enquanto ele jantava e m um restaurante aberto na Vialle Trinita di Monti, com vista para os famosos Degraus Espanhóis. O crepúsculo lançava sombras arroxeadas sobre os telhados rosados d a cidade e m expansão abaixo. Pedestres atravessavam a rua, dirigindo lambretas e táxis. A mesa do cardeal ocupava a calçada estreita de uma igreja curvada d o século 1 6 . A m ai s comprida e m ai s extensa escadaria do continente, o s Degraus Espanhóis, e r a flanqueada p o r palácios e mansões blindados. Jardins terraços e vasos de plantas adornavam os degraus. Multidões de turistas, casais d e namorados, e futuros artistas e fotógrafos enchiam a praça no topo d o s degraus, curtindo uma manhã quente de janeiro. Palmeiras balançavam ao vento. Uma batina negra, com botões e colarinhos escarlates, indicava a posição elevada do cardeal na Igreja. Uma cruz estava pendurada em uma corrente diante de seu peito. Uma faixa escarlate envolvia seu torso. Um chapéu vermelho cobria seu cabelo prateado. U m rosto gordo, com uma divisão no meio do queixo, mostrava seu grande apetite. Calábria engoliu u m pouco d e spaghetti alla pescatori com u m gole de vinho branco. O Frascati era o único vinho que complementava macarrão divinamente. Ele saboreou mais um pedaço d e l ul a encharcada e m molho. Em momentos com o esse, e l e ficava grato d e ter assumido uma identidade particular como aquela. Apesar dos serviços cansativos impostos a e l e como o maior padre dessa religião primitiva, havia vantagens inegáveis por estar em Roma. Uma delas era que seria quase impossível ter uma refeição ruim. Era uma pena que a cidade seria destruída dali a muitas gerações, mas que fosse. A história exigia seus sacrifícios, pelo menos s e o s e u futuro fosse ser preservado. O cardeal, o u o viajante d o futuro q u e tomara o corpo corcunda de meia-idade de Calábria, lembrou-se brevemente da cidade brilhante que ele e seus colegas Marcados haviam deixado para trás, onde nunca mais voltariam. Afinal, sua peregrinação ao século 21 fora uma viagem apenas de ida. Eles estavam presos a essa era volátil pelo resto de suas vidas. Mas pelo menos a comida era boa. — Com licença, vossa Eminência. — Uma garçonete jovem e bonita aproximou-se de sua mesa. Seu charme núbil o fez se arrepender de que, pelo menos em público, ele era forçado a obedecer a u m voto d e celibato. O olhar preocupado em sua expressão sugeria que ela tinha algo mais em mente além de apenas encher novamente s e u copo d e água. — Desculpe interromper o senhor, mas eu poderia pedir alguma ajuda espiritual?


Duas mesas longe, seus guardas levantaram-se. Membros d a elite do Vaticano Guarda Suíça, e l e s vestiam trajes civis p a r a melhor s e encaixarem ao cenário. El e s olharam a garçonete impertinente suspeitosamente. Eram tempos perigosos e o cardeal tinha muitos inimigos. De fato, como chefe da Congregação para Doutrina d a Fé, formalmente conhecido como Escritório Sagrado da Inquisição, Calábria e r a o crítico sobre a “falsa religião” de Jordan Collier mais comentado do Vaticano. O pronunciamento mais recente da Congregação que dizia que o u s o d e promicina podia s e r considerado u m pecado mortal tomara as manchetes e gerara controvérsias pelo mundo todo. Por isso seus guardas estavam tão cautelosos. Calábria recebera várias ameaças de morte dos seguidores de Collier. Ainda assim, ele acenou para que os guardas exagerados se afastassem. Ele vivera como o Cardeal Calábria o suficiente para reconhecer um católico devoto se o visse; a única ameaça que a garota oferecia era a o seu fingimento de castidade. Ele deu uma olhadela em seu generoso decote. — Como posso ajudá-la, criança? — Minhas amigas e eu estivemos conversando sobre a s novidades da América. O mundo t odo parece estar mudando, d e u m a maneira muito assustadora, e n ã o consigo p a r a de pensar… — Ela respirou fundo antes de conseguir falar. — O senhor acha que Jordan Collier é o Anti-Cristo? Calábria reprimiu um sorriso perante a óbvia ansiedade da garota. Claramente, seu trabalho no campo da fé estava gerando frutos. Escondendo sua satisfação, ele respondeu a pergunta dela com uma gravidade falsa. — A Visão Sagrada ainda tem que apresentar um veredicto final sobre esta situação incômoda, mas receio que sua suspeita possa ser verdadeira. Há algo realmente perturbante na ascensão desse homem ao poder e a blasfêmia na promessa de se tornar rei no Reino de Deus. S e não a própria Besta, ele certamente é um falso profeta, e os dons que seus seguidores possuem podem ser de origens demoníacas. O rosto da garota ficou pálido enquanto ela assimilava cada palavra. Observando seu aperto trêmulo no jarro de água, Calábria começou a temer pela segurança de seu espaguete. — Mas não se desespere, minha criança. Esse mal não pode triunfar, não se fortalecermos nossas almas contra essas tentações malignas da promicina. Enquanto a Igreja puder confiar nos fiéis e nas ações de pessoas boas como você, esse movimento profano não desviará os filhos de Deus da salvação. Suas palavras pareceram confortar a garçonete. Ela acenou avidamente, e se curvou para beijar seu anel. — Obrigado, vossa Eminência. Agora sei que dormirei melhor. Ele levantou-se atrapalhadamente de seu assento e concedeu uma benção sobre ela. — Agora, então, talvez eu possa ver o cardápio de sobremesa. — Sim, padre, com certeza!


Discretamente admirando o traseiro d a garota enquanto ela s e afastava, ele voltou à sua refeição com uma sensação definitiva de realização. Seu encontro com a garçonete crédula o encorajou a pensar que, apesar das reviravoltas, ele e seus companheiros ainda tinham chance de dar a volta por cima e prevenir que Jordan Collier mudasse o futuro. Sua posição elevada no Vaticano o dava influência sobre literalmente milhões de primitivos ingênuos do século 21, e ele ainda aspirava por maior poder. O cardeal Emanuel Calábria ficara em terceiro na eleição papal, ora, e o Papa atual não ficaria lá para sempre. Se tudo corresse de acordo com o plano, as ambições perigosas de Jordan Collier desapareceriam numa lufada de fumaça… Nesse meio tempo, porém, era melhor ficar atento. Ele acenou para seus guardas atentos, grato por tê-los cuidando dele. A Terra Prometida estava há milhares de quilômetros, mas ele não podia se dar ao luxo de confiar demais em si mesmo. Três de seus colegas operantes haviam sido exterminados, e o âmbito de Collier crescia mais a cada dia. Olhando e m volta pela praça lotada, d e repente sentiu-se incomodamente exposto. Talvez ele não devesse ter deixado a rígida segurança do Vaticano. Seus guardas haviam discutido seu passeio, devido às recentes ameaças, mas Calábria ignorara sua precaução. Às vezes ele simplesmente tinha que escapar da sufocante santidade da Cidade do Vaticano e respirar um pouco de ar puro. Além disso, esse ristorante era um dos seus favoritos. O aroma sedutor d o espaguete o lembrou d e seu apetite. Cortando um gordo pedaço de mexilhão, o levou até sua boca. Quando ele começou a engolir, no entanto, s e u s olhos arregalaram-se ao ver um negro alto saindo da estação de metrô do outro lado da rua. Algo na aparência d o homem sacudiu sua memória, mas levou u m segundo para e l e d a r u m nome àquele rosto. Eu conheço aquele homem. Ele é… Richard Tyler! Seu coração disparou. A filha de Tyler, Isabelle, fora escalada para ser a última arma dos Marcados contra os 4400, antes que aquela operação desse tão errado. Seus contatos nos EUA informaram Calábria da recente fuga de Tyler, mas Roma era o último lugar onde ele esperava que o americano fugitivo aparecesse. O cardeal percebeu logo que isso não podia ser uma coincidência. Se u s olhares s e encontraram através d a r u a movimentada. O r ost o de Tyler estava impiedoso e imperdoável. Calábria abriu a boca par a alertar aos guardas, mas antes que pudesse dizer uma palavra, o mexilhão gorduroso escapou de seu garfo e , como s e estivesse vivo, parou e m sua traqueia. Engasgado, ele tossiu e apertou a garganta, mas seus esforços convulsivos não adiantaram para desfazer a obstrução d a carne, que parecia estar presa no lugar por uma força invisível. Tyler está fazendo isso, percebeu Calábria. Ele saiu para vingar a morte da filha! Um dos guardas, u m loiro forte e discreto chamado Buchs, correu para ajudar Calábria. Arrancando a vítima que se debatia de seu assento, Buchs aplicou a manobra d e Heimlich4, mas sem sucesso; o mexilhão mortal recusou-se a sair. Com o rosto já ficando roxo, Calábria apontou freneticamente para Tyler.


— É ele — conseguiu arquejar. — Com a mente… O outro guarda, Roest, entendeu a mensagem. Sacando uma pistola automática SIG P225 de sua jaqueta, ele mirou em Tyler. Uma força invisível jogou seu braço para o alto e ele atirou inutilmente para o céu. Um segundo mais tarde, a arma foi arrancada de seus dedos. Ela rodopiou sobre os Degraus Espanhóis antes de cair na fonte Baroque n a base d a escadaria. O soldado assustado exclamou surpreso. Um pandemônio se formou pela rua e pelos degraus próximos. Pessoas que jantavam se j ogar am em bai xo d e s u a s m e s a s . Tur i st as e ar t i st as correram, buscando proteção desesperadamente. Os gritos perturbavam a tranquila noite de inverno. Somente Richard Tyler permaneceu imóvel, parado indiferentemente no meio da rua. Seus olhos negros permaneciam fixos em seu alvo sufocante. Sua expressão dura não revelava nenhum sinal de misericórdia. Não é justo, pensou Calábria. Infelizmente, o processo de se implantarem em outra mente deixava o s Marcados incapazes d e adquirirem suas próprias habilidades sobrenaturais. A escuridão começou a invadir a visão d o cardeal. Seu rosto gordo assumiu um tom azulado. Não dá para revidar! Abandonando seus esforços inúteis para desengasgá-lo, Buchs agarrou uma faca d a mesa de Calábria. O cardeal engasgado percebeu assustadoramente que o guarda desesperado queria fazer uma traqueostomia5, mas sem anestesia. Calábria se preparou para a dor, mas não precisou. Assim como a arma do outro guarda, a faca voou dos dedos de Buchs. O homem tentou pegar sua arma, só para perdê-la do mesmo jeito. Arfando para respirar, o cardeal não conseguiu deixar de se impressionar com o tanto de objetos que Tyler conseguia manipular ao mesmo tempo. O homem obviamente dominara sua habilidade telecinética. — Pegue-o! — gritou Buchs para Roest. Indo lutar diretamente com o inimigo, os guardas desarmados dispararam pela rua na direção de Tyler. Buzinas soaram e freios gritaram enquanto os guardas corajosos atravessavam o trânsito. Um estudante de arte montado numa lambreta Vespa desviou freneticamente para não atropelar os homens, e foi derrapando até parar apenas há alguns quilômetros da mesa de Calabria. Os olhos do jovem quase pularam para fora das órbitas ao verem a confusão diante dele. 4 N. do. T. : A Manobra de Heimlich é o melhor método pré-hospitalar de desobstrução das vias aéreas superiores por corpo estranho. Essa manobra foi descrita pela primeira vez pelo médico estadunidense Henry Heimlich em 1974 e induz uma tosse artificial, que deve expelir o objeto da traqueia da vítima. Resumidamente, uma pessoa fazendo a manobra usa a s mãos para fazer pressão sobre o final do diafragma. Isso comprimirá os pulmões e fará pressão sobre qualquer objeto estranho na traquéia. 5 Traqueostomia é u m procedimento cirúrgico n o pescoço q u e estabelece u m orifício


artificial na traquéia, abai xo d a laringe, indicado e m emergências e n a s intubações prolongadas.A incisão é feita entre o 2º e 3º anel traqueal. O objetivo é não prejudicar as cordas vocais do paciente ao passar o tubo de ar. Tyler brandiu seu braço e os guardas foram jogados ao chão, como que por um vento muito forte. Cambaleando sem ajuda, eles caíram 138 degraus antes de atingirem a praça abaixo. Calabria se viu subitamente sem defensores. Ou talvez não. Inesperadamente, a garçonete bonita apareceu correndo do nada. — Demônio! — sibilou ela, enquanto arremessava um copo de vinho tinto no rosto de Tyler. Ela se jogou em cima do 4400 assustado, chutando e arranhando. — Deixe o Padre Sagrado em paz! O ataque tirou a concentração de Tyler. O mexilhão teimoso escapou pelos lábio de Calábria e ele viu que podia respirar novamente. Sugando ávidamente grandes lufadas d e ar, ele se arrastou para longe da mesa, apressadamente. Porcelanas e vidros se quebravam pela calçada. Macarrão e frutos d o mar se espalhavam pelo asfalto. O cardeal fugitivo não podia s e importar menos com a confusão. Ele precisava sair dali enquanto ainda tinha uma chance! Mas o tempo j á estava acabando. Tyler rapidamente s e recuperou do ataque d a garota. Mostrando uma compostura admirável, ele a levantou com a mente e a colocou cobre o toldo colorido n a entrada d o restaurante. Uma marca vermelha brilhante molhava a frente d e sua camisa. Marcas d e arranhões marcavam seu rosto. Ele limpou o vinho de seus olhos e procurou por Calábria. O cardeal tirou sua própria arma de dentro de sua batina. Ele carregava a Beretta consigo para todo lugar, até mesmo para as missas. Seus dedos trêmulos atrapalharam seu equilíbrio. A pistola tremeu fortemente em suas mãos. Ela voou diretamente para a palma de Tyler que esperava no ar. Mannaggia! Jurou Calábria. O que ele não daria agora por um mini disruptor neural? Para s e u azar, eles n ã o seriam inventados n o s próximos cem anos, e seria impossível replicar materiais do século 21. Desprovido de sua arma, a fuga era seu único recurso. Diferente do resto da multidão, que estava deixando a área em massas, o estudante com a lambreta demorou para entrar em ação. Desesperado para fugir, Calábria empurrou o jovem de cima da Vespa e pegou a lambreta para si. Sua bata enrolou-se à suas pernas enquanto ele subia apressadamente no banco. Agarrou o guidão com os nós dos dedos brancos. Ligou o veículo. Se eu apenas conseguir me distanciar de Tyler, sair do alcance de sua habilidade… A roda traseira da lambreta girou furiosamente, mas o veículo não saiu do lugar. Calábria


atrapalhou-se tentando descobrir o que ele estava fazendo errado, então percebeu que o problema não era com a Vespa. Ele olhou por cima de seu ombro e viu Tyler o encarando. O 4400 vingativo segurava a lambreta com sua mente. Calábria percebeu que não ia a lugar algum. — Não — implorou ele. — Você pegou a pessoa errada! — Ele viu sua vida como Emanuel Calabria chegando um fim. Só podia desejar que seus aliados do futuro encontrassem p a r a e l e u m n o v o hospedeiro depoi s q u e recuperassem os nanodispositivos com sua personalidade. — Não tenho nada a ver com a morte da sua filha… Richard apenas olhou para o outro homem. Calábria imaginou o que ele estava esperando. — Está olhando para o lado errado — falou uma voz em italiano, com um sotaque americano. Calábria girou sua cabeça para ver outro homem negro sair de baixo d o toldo de uma lanchonete ali perto. Ele era mais novo e mais baixo que Tyler, mas também carregava a mesma expressão impiedosa. Ele enrugou as sobrancelhas. Seus olhos se estreitaram enquanto ele se concentrava. — Comece a rezar. Os guidões da lambreta de repente ficaram quentes. A temperatura no mostrador do painel subiu para o vermelho. Vapor começou a subir do motor atrás de Calábria. Ele deu uma guinada por força do hábito. A Vespa explodiu atrás dele. Richard assistiu à bola de fogo engolindo o cardeal Marcado e o veículo roubado. Ele levantou as mãos para proteger o rosto do calor e do clarão enquanto simultaneamente reduzia a explosão com uma bolha invisível para impedir que qualquer espectador se ferisse com algum estilhaço. As brilhantes chamas laranja ficaram mais claras quando seu parceiro, Yul Lacey, usou sua habilidade termocinética para se certificar de que cada centímetro do corpo de Calábria fosse consumido. Era vital fazer com que todas as máquinas microscópias no cérebro do cardeal fossem destruídas, caso contrário os Marcados poderiam simplesmente implantar sua consciência em outro receptáculo inocente. Ou pelo menos fora isso que haviam lhe explicado. Uma pontada d e remorso formigou e m sua consciência. Embora tivesse pilotado aviões com bombas na Coréia, ele nunca havia matado alguém a sangue frio antes. Isso foi pela Isabelle, lembrou a si mesmo. Sirenes soaram d e todas a s direções, aumentando a cada segundo. U m carro de polícia chegou derrapando alguns metros longe d a lambreta e m chamas. Policiais usando uniformes azuis pularam do carro. Protegendo-se atrás de seu veículo, eles apontaram as armas para Richard e Yul. — Fermate! — ordenou um policial, parecendo tenso. Richard flexionou sus músculos mentais. Houve um tempo, quando ele estava descobrindo suas habilidades, em que ele só levantava pequenos objetos por vez, mas isso foi h á muito


tempo atrás. Sem esforço, ele jogou os homens para trás. Eles se dispersaram como pinos de boliche enquanto rolavam rua abaixo. Em cima do toldo, a garçonete heroica gritava de desespero. Já chega, pensou Richard. Eles haviam feito o que vieram fazer. Agora ele só queria sair dali. Cadê nossa carona? Bem nessa hora, um lustroso Porsche negro chegou acelerando na cena da direção oposta aos policiais. O carro esporte parou n o meio-fio. A porta d o passageiro se abriu. A jovem gótica, Evee Borland, chamou os dois homens. — Terminaram? Richard perguntou a Yul com um olhar. — Ele torrou — disse o outro homem, referindo-se a Calábria. — E os nanodispositivos? — perguntou Richard. — Nada a não ser cinzas. Isso foi o suficiente para Richard. Eles adentraram o Porsche, que subiu na calçada para fazer u m a curva e m U antes d e começar a acelerar n a direção d e seu esconderijo em Trastevere. Carros de polícia e caminhões de bombeiro, com as luzes de emergência piscando, passaram por eles enquanto deixavam as cinzas do cardeal para trás. Richard afundou-se no assento do passageiro enquanto Nicole e Yul se parabenizavam pelo sucesso d a missão. Eles ficaram observando Calábria por horas, ironicamente com a ajuda d e uma freira clarividente que era uma dos 4400 originais, só esperando que o alvo deixasse a segurança do Vaticano. Aquela noite todos os esforços haviam valido a pena. Então por que e u não me sinto mais eufórico? Imaginou Richard. Seu rosto doía onde a italiana arranhara. Diferente de seus novos amigos, ele sentia-se mais vazio do que entusiasmado pelos eventos daquela noite. Não podia deixar de lembrar que o verdadeiro Emanuel Calábria perecera em algum lugar junto com traiçoeiro invasor ocupando seu corpo. Ele desejava que houvesse algum jeito de libertar as vítimas inocentes dos Marcados ao invés de simplesmente matá-las, mas, de acordo com Collier, esse não era o caso. O único jeito de eliminar a ameaça dos Marcados e r a matando seus hospedeiros. Richard suspirou par a o caminho difícil que vinha pela frente. Um já foi. Faltam mais seis.


OITO Marco apareceu no necrotério. Literalmente. Num instante, o vagaroso gênio não estava à vista. No instante seguinte, ele apareceu repentinamente entre Tom e Diana, enquanto esperavam por ele nas instalações médicas privadas da NTAC. O cabelo liso e castanho precisava ser penteado. Olhos castanhos de ar inteligente espreitaram por detrás dos óculos pretos de aro de tartaruga. Ele vestia uma jaqueta de tweed por sobre uma camiseta. — Desculpem o atraso. — Marco! — exclamou Diana, surpresa por sua aparição abrupta. Ela pressionou o peito para acalmar o coração acelerado. — Você sabe que não deve fazer isto. Especialmente no trabalho. O retraído e querido analista havia ganho a habilidade de se teletransportar, após ter sobrevivido ao cinquenta/cinquenta. Quase todo mundo na NTAC sabia o que ele podia fazer, mas demonstrações públicas de habilidades adquiridas através da promicina estavam firmemente desaconselhadas. Diana sacudiu a cabeça em desaprovação. Marco sabia muito bem que não deveria agir daquela maneira. E se algum figurão de Washington estivesse fazendo uma visita à agência? — Eu sei — admitiu ele. — Mas é tão conveniente! E eu não queria deixar vocês esperando. Ele deu uma olhada ao redor do necrotério estéril, todo em aço inoxidável. — Então, o que eu perdi? — Apenas a esquisitice usual — disse Diana. No total, eles haviam encontrado quatro cópias idênticas do corpo de Danny na casa funerária. Todos os quatro espécimes estavam deitados em mesas de autópsia no centro do necrotério. Lençóis brancos limpos cobriam parcialmente os cadáveres. Se havia alguma maneira de diferenciar os cadáveres, Diana não conseguia saber. Ela apenas podia imaginar o quão perturbador aquilo deveria ser para Tom. Imagine que existissem quatro cópias idênticas de Maia… — E então? — ele perguntou, rispidamente. — Qual deles é o verdadeiro Danny? — Nenhum deles — respondeu Abigail Hunnicutt. A loira de vinte e poucos anos havia se juntado à equipe da Sala de Teorias de Marco pouco antes do cinquenta/cinquenta. Formada pelo MIT, ela estava em pé ao lado de um dos corpos, sua mão sem luva espalmada no peito dele. A epidemia havia transformado Abby em uma sequenciadora humana de DNA, que conseguia “ler” códigos genéticos sem a ajuda de equipamentos artificiais. Ela guardou as mãos no bolso do jaleco azul enquanto relatava suas descobertas. — Estes espécimes são cópias quase idênticas de Danny Farrell. Em torno de 99% idênticas ao original. — Clones? — especulou Marco.


Abby sacudiu a cabeça. — É mais como se o DNA de Danny tivesse sido sobreposto ao de alguém. — Ela se esforçou para colocar em palavras o que estava sentindo. — Ainda há um “eco” do DNA original nas células. Minha opinião é a de que alguém está tentando transformar outras pessoas em gêmeos perfeitos de Danny… — Antes ou depois de mortos? — Diana questionou. — Boa pergunta. — Abby encolheu seus ombros. — Não dá para dizer pelo DNA. Um exame preliminar tinha sugerido que todos os quatro corpos haviam morrido de overdose de promicina, não como o verdadeiro Danny, que havia sofrido um massivo acúmulo de promicina em seu organismo, antes de seu irmão cometer eutanásia contra ele. Talvez autópsias completas pudessem trazer mais informações, mas Diana tinha suas dúvidas. Eles estavam alguns passos à frente da ciência forense convencional ali. — Mas por que alguém iria querer fazer algo assim? — perguntou Tom. Apesar de estar se mantendo firme, sua frustração óbvia pontuava seu tom de voz. Ele cerrou os punhos. — Por que eles não podiam simplesmente deixar meu sobrinho em paz? Marco coçou o queixo. — Você disse que achou promicina na agência funerária? Meu palpite é que alguém está tentando reproduzir o processo que transformou Danny na ‘Typhoid Mary’ da promicina, criando uma arma biológica viva e capaz de disseminar o efeito cinquenta/cinquenta aonde for. — Seus olhos se arregalaram por detrás dos óculos. — Talvez até um exército de hospedeiros… Um silêncio caiu sobre o necrotério enquanto imaginavam as terríveis implicações do que Marco estava dizendo. Um Danny quase havia destruído Seattle. Uma legião de clones de Danny poderia causar mortes e devastação inimagináveis. — Alguém, quem? — perguntou Diana, quebrando o silêncio. — Jordan Collier? — Vamos descobrir — disse Tom. * O edifício comercial que agora funcionava como o novo Quartel General de Collier era o antigo prédio da Haspelcorp, uma ironia que certamente divertia Collier. Uma enorme tela de tecido retratando o novo messias, de muitos andares de altura, adornava a fachada externa da estrutura. Reproduções menores estavam penduradas dentro do saguão palaciano. Conversa sobre um culto da personalidade, pensou Tom. Os pôsteres onipresentes relembraram-no de maneira desconfortável da China Maotseísta e outros regimes autoritários. Imagine quando as estátuas de cinquenta pés começarem a ser erguidas? — Posso te ajudar? — acudiu um segurança quando os agentes adentraram o saguão. O sentinela idoso, que aparentava ter seus sessenta anos, não se impunha muito fisicamente, mas nem precisaria; sendo um positivo, ele sem dúvida tinha outras maneiras de repelir visitantes indesejados. Estava sentado em uma grande escrivaninha de tampo de mármore. Um distintivo o identificava como Hoyt.


Mais guardas estavam posicionados ao lado dos elevadores, escadas e saídas de emergência. Collier obviamente não estava se descuidando de sua segurança. Tom não poderia culpá-lo. Não obstante todos os esforços filantrópicos do Movimento, muitas pessoas ainda culpavam Collier pelo cinquenta/cinquenta e as mortes de seus entes queridos. Ele já havia até sobrevivido a várias tentativas de assassinato. Diana mostrou seu distintivo. — NTAC. Estamos aqui para ver Jordan Collier. O guarda não parecia impressionado. Tom e Diana eram visitantes frequentes. Ele fixou o olhar na morena esguia que acompanhava os dois agentes. Seus olhos escuros brilharam de modo travesso. Uma jaqueta Burberry Prorsum feita sob medida comprovava um generoso gasto com roupas. Perfume caro emanava da delicada jovem, que parecia ter seus trinta e poucos anos. Um símbolo de dólar estava tatuado em seu pulso. — E ela? — perguntou o segurança. April Skouris era a irmã caçula de Diana e ovelha negra da família. Ex-tatuadora e exgolpista, April tinha sido uma das primeiras pessoas rebeldes o suficiente para tomar uma dose de promicina quando Jordan Collier a disponibilizou para as massas. Sua recémdescoberta habilidade de fazer as pessoas dizerem a verdade havia eventualmente a colocado em um agradável emprego, em que atendia tanto à NTAC quanto ao FBI. Tom francamente havia achado-a meio irritante, mas se ela poderia ajudá-los a arrancar algumas respostas de Collier acerca dos restos mortais de Danny, ele estava disposto a designá-la para aquela visita. — Eu também sou da NTAC — ela vangloriou-se, orgulhosamente mostrando sua própria identificação. Depois de ter sido criada à sombra da irmã mais velha e mais talentosa, ela parecia ávida por demonstrar que as duas estavam finalmente em pé de igualdade. — April Skouris, agente especial. — Aham. — Hoyt letargicamente digitou o nome dela em seu computador. Um franzir acentuou as pesadas rugas ao redor de sua boca. — Desculpe. Você está na lista negra. Acesso negado. — O quê? — A indignação modificou instantaneamente seu tom de voz. — Quem disse? — Eu não sei — ele confessou, automaticamente. Ele não poderia mentir, se quisesse. — É o que diz o computador. Você foi marcada como uma ameaça à segurança. — Droga! Isso é completamente injusto! — Ela olhou para Tom e Diana, procurando por apoio. — Vocês vão deixar ele ir adiante com isso? — Acho que sim — ele admitiu. A NTAC operava em Seattle sob a tolerância de Collier. Eles não estavam em posição de dar ordens. — Acho que você vai ter que esperar no carro. — Tá falando sério? — ela levantou a voz e bateu com o pé no chão. — Diana — ela queixou-se, parecendo mais uma irmãzinha birrenta do que uma agente federal. — Faça alguma coisa!


A explosão de raiva atraiu a atenção do guarda do elevador, que atravessou o saguão para verificar. Era um homem alto, de rosto comprido e cabelos castanhos claros espetados. Afora suas habilidades desconhecidas, o guarda estava armado com uma pistola e uma arma de choque. Galloway, dizia o seu crachá. Sua mão repousava ameaçadoramente na culatra de sua arma. — Algum problema? — Não — insistiu Diana. — Apenas um mal entendido. — Ela falou suavemente com a irmã. — Desculpe, April, mas Collier nos barrou aqui. E precisamos realmente falar com ele hoje. — Pegando o braço da moça, ela a conduziu gentilmente até a porta. — Porque você não volta para o quartel general? Talvez possamos conversar mais tarde. — Legal — disse April, petulante. Ela sacudiu seu braço para se soltar e se dirigiu para a porta. — Vejamos se eu vou me oferecer para ajudar vocês de novo. Obrigada por nada, mana. Ela saiu do prédio batendo os pés. Em parte, Tom estava aliviado por vê-la ir embora. Apesar de sua habilidade bastante útil, ela era um verdadeiro barril de pólvora. Ademais, havia algo distintamente perturbador em circular por aí com alguém que poderia fazer você dizer a verdade, querendo ou não. Ele ainda sentia um arrepio quando se lembrava da vez em que April tinha nada mais, nada menos do que o forçado, por pura brincadeira, a revelar uma fantasia sexual que ele tinha com Diana, na frente da própria! Não era de se admirar que as pessoas não quisessem nada com os 4400 e seus sucessores. Depois que April saiu, os guardas recuaram um pouco. Hoyt ligou lá para cima, depois recolocou o fone na base. — Tudo bem. Vocês podem subir agora. Jordan está esperando. Para leve irritação de Tom, Galloway os acompanhou quando pegaram o elevador para a cobertura. Ele gostaria de poder conversar reservadamente com Diana enquanto subiam, mas aparentemente isto não ia acontecer. Bem, o elevador deve estar monitorado, mesmo. Eles encontraram Collier no antigo gabinete de Dennis Ryland. Uma grande escrivaninha de executivo dominava o escritório do canto. Capas de revistas estampadas com o rosto de Collier estavam penduradas nas paredes, junto com a capa de seu manifesto, que fora eleito campeão de vendas pelo New York Times. Janelas gigantescas ofereciam uma vista estonteante da Elliot Bay e do Island Harbor, mais adiante. Acompanhado de um séquito de assistentes e guarda-costas, Jordan estava ocupado examinando holografias tridimensionais de Seattle. Estruturas translúcidas e cintilantes subiam e desciam pela superfície de alta tecnologia de uma mesa de conferências, sem dúvida desenvolvida por algum mago da tecnologia anônimo, cujo poder mental tenha sido estimulado pela promicina. Ele espiou por cima dos modelos de última geração, enquanto Galloway escoltava os agentes escritório adentro.


— Ah, Tom, Diana — disse, cordialmente. Ele se encontrava num tablado em que ficava um pouco mais alto do que os dois agentes. — É bom vê-los novamente. Tom estava desapontado por não ter a presença de Kyle. Pensando bem, talvez fosse até melhor. Aquela não era uma visita social. — Obrigada por nos receber — disse Diana. — Espero que não estejamos incomodando. — De maneira nenhuma — insistiu Collier. Um gesto largo chamou a atenção deles para a maquete virtual da cidade à sua frente. — Venham ver o que estamos fazendo aqui — ele os chamou. — É um plano abrangente para reconstruir Seattle. Estruturas destruídas durante os protestos serão substituídas por usinas nucleares de fusão a frio, centros de tratamentos de dependentes químicos, jardins e fazendas verticais, e outros projetos civis revolucionários que se tornaram possíveis graças às singulares habilidades da população promicino-positiva. — Ele sorriu, orgulhoso. — Estamos até modernizando o metrô. — Parece ambicioso — concordou Tom. Por mais que odiasse admitir, Collier e seu Movimento tinham estado no front dos esforços de recuperação nos últimos meses. Ele olhou mais de perto para a visão de Jordan da cidade. — Isto é um novo Tribunal de Justiça na Praça Pioneer? — Bem observado. — Collier concordou com a cabeça. — Tecnologia de ponta. — Mas justiça de quem? — desafiou Diana. — Do Estado ou sua? Desde que dominara Seattle, Collier havia estabelecido seu próprio sistema judicial, no qual os positivos que fossem considerados culpados de abusar de suas habilidades eram despojados de seus poderes pelo próprio Jordan. O tom amargo de Diana deixou claro que ela desaprovava o fato de Collier comandar seu próprio tribunal de faz-de-conta particular. — Com o passar do tempo não haverá diferença – declarou confidencialmente Collier. — Entretanto, por enquanto, os 4400 dificilmente poderão esperar tratamento justo nos tribunais tradicionais, o que significa que devemos policiar a nós mesmos. Posso assegurar a vocês que esta é uma responsabilidade que eu levo muito a sério. — A habilidade de apagar os dons de outros positivos era o talento único e exclusivo de Collier. – Eu gostaria que cada indivíduo com habilidades pudesse ser confiável para usá-las com responsabilidade, e a favor dos melhores interesses do Movimento, mas, infelizmente, nem sempre é o caso. Alguns novos convertidos provam não serem merecedores de seus preciosos dons. — Como minha irmã? — perguntou Diana. Collier respirou fundo enquanto se preparava psicologicamente para o inevitável assunto de April. — Ah, sim. Eu ouvi dizer que havia uma certa perturbação lá embaixo. Peço desculpas se isso foi embaraçoso para vocês, mas temo que, sem querer ofender, a lealdade e as companhias de sua irmã são suspeitas. Ela está de fato banida das dependências. — Seu tom beirava a ameaça. — Na verdade, você deveria avisá-la de que eu a livraria pessoalmente de sua habilidade se ela se aproximasse de mim, ou se de alguma forma usasse seu dom para prejudicar o Movimento.


— Por que isso? — inquiriu Tom. — O que você tem a esconder? Collier foi incisivo em sua atitude. — Certamente você, que é agente federal, aprecia a importância da discrição e confidencialidade. Boca fechada não entra mosca, e tudo o mais. Estes são tempos perigosos, e eu não vou permitir que April Skouris — ou qualquer outro — ponha nossa segurança em risco. Tom se perguntou, em primeiro lugar, como Jordan tinha conseguido descobrir sobre a habilidade de April. Isto deveria ser informação confidencial, também. Haveria algum vazamento na NTAC ou na Segurança Nacional? Algo para se pesquisar, ele pensou. — E então – disse Collier, mudando de assunto. — O que os traz aqui hoje? Negócios oficiais da NTAC, eu suponho. — Isso mesmo. — Tom relatou a Jordan as linhas gerais de sua investigação, mencionando o corpo desaparecido de Danny, e o aparente envolvimento da Grayson e Filhos, mas omitindo o fato de Dennis Ryland ter acusado Collier de planejar transformar a promicina em arma. — Você sabe alguma coisa sobre isto? Collier sacudiu a cabeça. — Eu gostaria de poder ajudar vocês. Seu sobrinho é reverenciado como um mártir do Movimento por meu povo. É chocante que alguém possa profanar sua memória dessa maneira. Eu não consigo imaginar quem poderia ter algo a ver com isto. — Então você nega qualquer ligação com Grayson? — perguntou Diana. Collier encolheu os ombros. — O nome me soa vagamente familiar, mas o Movimento tem crescido a passos largos desde O Grande Passo Adiante. Receio que um conhecimento enciclopédico de cada um que apoia a nossa causa não esteja entre meus dons. — Ele sorriu, irônico. — Uma pena. Tom o pressionou mais. — Então você não tem interesse em tentar duplicar a versão aérea de promicina que Danny emitia? — Ele deixou que um tom de sarcasmo pontuasse sua voz. — Mesmo que isto pudesse acelerar a realização do seu glorioso novo mundo? Collier parecia sereno diante da acusação. — Eu não posso negar que quero que todo mundo tome promicina. Mas eu nunca forcei ninguém a tomar a injeção… Como você sabe por experiência própria, Tom. É bem verdade, pensou ele. Jordan certamente teve mais de uma oportunidade de injetar promicina em Tom contra sua vontade, mas ele sempre se absteve de fazê-lo, apesar da profecia declarar que era de vital importância que Tom tomasse a dose em algum momento. Mas era o comedimento de Collier face aos seus padrões éticos, ou apenas em deferência à importância de Kyle para o Movimento? Tom estava mais inclinado a acreditar na segunda opção. — O cinquenta/cinquenta não foi exatamente voluntário — apontou Diana. — Nenhuma daquelas pessoas havia decidido tomar promicina.


— Mas não foi um feito meu. — Ele lavou suas mãos de qualquer responsabilidade acerca do desastre. — Aquilo foi simplesmente uma monumental fatalidade. Um ato divino, se preferirem. Tom duvidava de que o Céu tivesse algo a ver com a morte de nove mil inocentes e o despedaçamento das vidas de inúmeros outros. — Eu não acho que Deus tenha roubado o corpo de Danny. — De fato — disse Collier. — E eu espero que você encontre o responsável. Eu te prometo sinceramente olhar o assunto com atenção. Tom não achou aquilo terrivelmente tranquilizante. Collier deu uma olhada em seu relógio de pulso. — Isto é tudo? — ele perguntou, impaciente. — Eu me arrisco a ser rude, mas tenho uma agenda muito cheia hoje. — Ele apertou um botão na prancheta e a cidade holográfica evaporou. – Transformar o mundo é um trabalho sem descanso. — Aposto que sim — disse Diana, secamente. Jordan fez cara feia. — Mande lembranças a sua filha. — Ele se moveu para acompanhálos até a porta. — Não tão depressa – disse Tom. Ele encarou Collier. — Você e eu ainda temos algo a discutir. A sós. Ele esfregou seu dedo atrás da orelha. Collier entendeu o recado. — Muito bem. — Ele se virou para seu pessoal. — Eu e o agente Baldwin precisamos da sala. Os guardas hesitaram, claramente relutando em deixar seu líder sozinho com Tom. — Senhor? — Está tudo bem — assegurou Collier. — Eu não tenho nada a temer quanto ao agente Baldwin. — Ele olhou para Tom, cautelosamente. — Tenho, Tom? — Eu salvei a sua vida algum tempo atrás, não salvei? Com ajuda de Isabelle Tyler, Tom resgatara Collier dos Marcados durante o cinquenta/cinquenta. Se não fosse por Tom, o próprio Jordan seria um dos Marcados agora. E sabotando o Movimento ao qual dedicou sua vida. — Você salvou. — Collier conduziu sua equipe para o corredor. — Tirem cinco minutos, todos vocês. Diana lançou um olhar interrogativo para Tom. Ele não havia falado com ela sobre isto antes. — Tom? — Me dê só alguns minutos, Diana. Parecendo um tanto desconfortável, ela também saiu do escritório. Jordan esperou até que


a porta se fechasse atrás dela e então sentou-se na cadeira de executivo atrás da velha mesa de Dennis Ryland. Seus dedos estavam unidos diante dele, enquanto assumia uma postura contemplativa. — Bem, o que você tem em mente, Tom? O cauteloso agente preocupou-se por um momento com câmeras ou microfones escondidos, e então concluiu que Collier também não gostaria que aquela conversa fosse gravada. — Você sabe do que se trata. O assassinato daquele cardeal em Roma. — Sua pressão sanguínea subiu ao lembrar-se de quando lera na Internet sobre a terrível morte de Calábria. — Droga, Jordan. Você deveria curar aquele homem, não matá-lo! Não era fácil, mas era possível libertar os Marcados dos invasores que haviam tomado conta de suas mentes. Tom era a prova viva disto. Uma dose letal de polônio radioativo, injetada diretamente em sua medula, havia destruído os nanodispositivos que infestavam seu cérebro. Depois Shawn usara sua habilidade para garantir que Tom sobreviveria ao processo. A experiência quase o matara, mas, quando acabou, ele era ele mesmo novamente. A cura havia funcionado. Exatamente como acontecera com Collier. — Em primeiro lugar — começou Jordan — você está embarcando na hipótese de que eu tive algo a ver com o recente e infortunado acidente de Emanuel Calábria. — Ele levantou uma das mãos para evitar a indignada contestação de Tom. — Pode muito bem ser que o Cardeal Calábria estivesse na moto errada no momento errado. Tom bateu na mesa com o punho. Um peso de papel de cristal, em forma de uma bola de luz vicejante, estremeceu. — Deixe de enrolação, Jordan. Nós dois sabemos que você mandou matar o homem. — Não sabemos nada sobre isto — insistiu Collier, calmamente. Ele parecia ter planejado aquela conversa por vários dias. — Eu te desafio a encontrar qualquer ligação entre o meu Movimento e os eventos em Roma. Verifique minha agenda. Eu não saio de Seattle desde a epidemia. — Dane-se o seu álibi — disse Tom. — Testemunhas oculares viram Richard Tyler na cena do crime. É óbvio que você o pegou para fazer seu trabalho sujo. — É mesmo? — Collier se recostou em sua cadeira. — Richard e eu raramente nos encontramos pessoalmente. Ele é independente, Tom. Você sabe disto. — Ele ajeitou o peso de papel na mesa. — O que posso fazer se ele resolveu nos livrar desse padre intrometido? A ligeira referência literária não divertiu Tom. — E quanto ao homem inocente cujo corpo foi confiscado pelos Marcados? Ele não merecia a chance de ter sua vida de volta? Como eu e você tivemos? — Em um mundo ideal, claro. — Uma expressão sombria tomou conta do rosto de Collier. — Mas considere a realidade prática, aqui. A “cura” de que você fala é difícil, dolorosa e leva tempo. Requer quantidades ilegais de material altamente radioativo e a participação ativa de Shawn Farrell. Dado o fato de quão poderosos são os Marcados, e o quão zelosos são em se protegerem, capturar um Marcado para “tratamento” nem sempre é possível. Imagine tentar trazer um cardeal ou um presidente sequestrado para Seattle, para ser curado. Richard deve


simplesmente ter concluído que é mais fácil eliminá-los… Ou ao menos eu concluí. É trágico, mas a ameaça imposta pelos Marcados é grande demais para se correr riscos desnecessários. Hipoteticamente falando. — Ele olhou para Tom diretamente nos olhos. — Conhecendo Richard, tenho certeza de que ele preferirá curar os Marcados — quando for possível. Tom se recusava a deixar Collier colocar toda a culpa em Tyler. — Você vai ao menos tentar salvar essas pessoas? — Eu preciso te lembrar — disse Jordan, irritado, — quem me deu os nomes dos Marcados, em primeiro lugar? — Sua paciência para com aquele debate estava claramente chegando ao fim. Tom imaginava se sua consciência o estava incomodando. — Você me pediu para tomar conta disso porque não conseguiria acesso a estas pessoas. E é exatamente o que estou fazendo… Do meu jeito. — Não está suficientemente bom — argumentou Tom. — Eu acho que isto não é mais da sua conta. — Ele se levantou e indicou a porta. — Tenha um bom dia, Tom.


NOVE A última vez em que os Marcados haviam se encontrado pessoalmente fora na Tunísia, em 2005. Na época, havia dez deles. Agora só restavam seis. A reunião não estava indo bem. — Não entendem? Está acabado. Nós perdemos. O general Julian Roff estava sentado em uma mesa redonda de carvalho com seus colegas conspiradores. Ci nco estrelas brilhavam d a s dragonas d e seu uniforme. Cabelos cinza penetravam suas têmporas. Um afro-americano com uma profunda voz aguda, ele tinha uma expressão agressiva que ninguém se atrevia a discordar. — Essa é uma atitude muito pessimista, Julian. — Song Yu o repreendeu. Uma chinesa de meia-idade de feições severas, e a mulher de cargo mais alto do Politburo6, ela havia liderado recentemente uma campanha para fazer com que todos os atletas olímpicos fossem cautelosamente examinados à procura de promicina. Seu cabelo preso por um laço estava levantado num coque. Ela balançou a cabeça, desapontada. — O que seus colegas no Pentágono diriam? Ela estava muito distante de Beijing. Localizado no alto Hollywood Hills7, o Castelo Wyingate era uma fortaleza medieval encaixada que fora meticulosamente transportada para a Califórnia por um excêntrico astro de cinema nos anos vinte. Pesadas vigas d e madeira cruzavam o teto alto d o grandioso salão onde os Marcados sobreviventes s e encontravam secretamente. Madeira esculpida a mão cobria a s grossas paredes de pedra. Um tapete persa dava um pouco de cor ao chão. Uma escada circular levava a uma sacada de madeira sobre a câmara. O crepitar d e fogo queimando vinha d a imponente lareira d e pedra. Um a porta de cristal garantia privacidade a eles. Não havia janelas. — Não me venha com essa, Song — devolveu o general. Por precaução, os Marcados dirigiam-se uns aos outros pelos nomes de suas identidades atuais. Era mais simples desse jeito. — Encare os fatos. O 50/50 mudou o jogo. Jordan Collier está mais poderoso e tem mais influência do que nunca. A chamada guerra da promicina é uma piada. E estamos caindo como moscas. O Sheik Nasir AL.Ghamdi franziu o rosto diante d e t a l ladainha. O árabe bilionário cuidava das finanças dos Marcados agora que Drew Imroth estava fora de cena. Um tecido xadrez emoldurava suas bonitas feições árabes. Era o mais novo dos Marcados, seu novo corpo tinha apenas vinte e nove anos. A salvo dos olhos de seus conterrâneos, ele se presenteou com um gole de conhaque. — Então, propõe que façamos o quê, general? 6 N. do T.: Trata-se de um comitê executivo de numerosos partidos políticos,


designadamente os antigos partidos comunistas do Leste Europeu e o Partido Comunista de Cuba. 7 The Hollywood Hills é um bairro de Los Angeles, Califórnia. — Protejam-se! — grunhiu Roff. — Vejam o que aconteceu ao Calábria, e à Rebecca Parish, e ao Mathew Ross. Obviamente, nossos disfarces já eram. Precisamos descartar nossas identidades atuais e tomarmos novos corpos. Aí talvez possamos viver o resto de nossas vidas confortáveis e seguros. Wesley Burke, conselheiro sênior na Casa Branca, olhou com desprezo para o general. Sua cabeleira prateada e feições rudes eram familiares para espectadores do CNN e de programas dominicais matinais. Um broche da bandeira estava pendurado em seu terno costurado de três peças. — Cada Marcado por si, é isso o que quer dizer? — Isso mesmo — afirmou Roff. — O gênio da promicina saiu de vez da garrafa, e não há como engarrafá-lo novamente. O futuro que juramos preservar não vai acontecer. É simples assim. — Covarde. — Song Yu o acusou. Ela não s e esforçou e m esconder o menosprezo. — Achou mesmo que íamos enfrentar nossos inimigos sem corrermos risco? Não acredito que está como um líder militar. Por que não se mata de uma vez? — Esperem um pouco — objetou Kenpo Norbo. O famoso lama era considerado por seus seguidores a décima segunda reencarnação de um legendário guru budista. Vestimentas cor de açafrão cobriam sua figura magra e ascética. — Julian pode ter razão. Não quero terminar como nossos colegas mortos. E não quero passar todas as horas dos dias olhando por cima do meu ombro. — Nervosamente, ele pegou um terço entre os dedos. — Uma nova vida de riqueza e luxúria, sem ameaças de morte, tem seus atrativos. Burke bufou com desdém. — Admita. Você está cansado de viver como um macaco idiota. — E s e e u estiver? — Kenpo deu u m puxão e m suas roupas. — Nã o me importei em incorporar essa pessoa ridícula quando pensei q u e ajudaria nossa causa. Mas por que se importar agora? — Ele jogou as mãos para cima. — Qual é o sentido? Nasir zombou da autopiedade do lama. — Todos fizemos sacrifícios. Deixamos nossas casas e a s pessoas que amamos para garantir o futuro que prezamos. E as nossas famílias e amigos no futuro? Está disposto a violar a confiança que eles depositaram em nós? — Essas pessoas nem ao menos nasceram! — exclamou Roff. — E provavelmente nunca vão nascer. — Saliva espirrava pelos seus lábios. — Vocês estão agarrados a um plano que falhou. Esqueçam isso!


— Traidor! — disparou Song Yu. — Você foi corrompido por essa época decadente. — Fanática — devolveu ele. Ele s e afastou d a mesa. — Se matem se quiserem, mas me deixem fora disso. — O mesmo para mim. — Kenpo soltou o terço na mesa. — Esse tulku8 está pronto para nascer novamente. Talvez como um astro do rock gostosão. Os olhos de Song Yu queimavam de raiva. Parecia que ela estava prestes se atirar sobre a mesa em cima dos dois que viraram a s costas. Ela tirou um grampo de cabelo afiado de seu coque. — Seus sujos, fracos… Um barulho ensurdecedor abafou seu último xingamento. Todos os olhos se viraram para ver o famoso produtor de cinema e TV George Sterling, parado ao lado da lareira. Ele soltava uma corda de seda de sino. Seu rosto bronzeado era liso. Cabelos loiros ondulados substituíam a convincente peruca que ele vinha usando desde os anos noventa. Uma barba cinza atapetava seu queixo. Óculos escuros penduravam-se em seu nariz. Ele estava vestido casualmente com uma camisa polo e calça d e moletom. Seu novo programa d e audiência, N o ritmo da Terra Prometida, sobre a impossibilidade atraente de agentes da NTAC recuperando a América de terroristas malucos q u e usaram promicina, e r a atualmente o mais assistido em todo lugar exceto em Seattle. — Chega disso, vocês todos — disse ele, pacientemente. — Vamos relaxar um pouco. Brigarmos entre nós é exatamente o que Jordan Collier, e nossos inimigos no futuro, querem. — Ele se juntou aos colegas na mesa, tomando o assento entre Song Yu e Nasir. Pousou uma mão tranqüilizadora sobre o ombro da mulher irritada. Seu t o m firme e conciliador e r a o mesmo que ele usara para convencer Russel Crowe a não abandonar a refilmagem d e Day of the Triffids. — Vejam, Julian, Kenpo. E u ouvi o que disseram. Ninguém está negando que passamos por maus bocados ultimamente. A s trágicas perdas d e nossos colegas afetaram a todos nós profundamente. Mas tenho certeza que, se eles estivessem conosco hoje, não iriam querer que perdêssemos as esperanças. Ele usou o nobre sacrifício dos colegas como ferramenta para amenizar a discussão. Pelo que ele via, o verdadeiro problema agora não era o esquadrão da morte de Jordan Collier; era a liderança vazia que Isabelle Tyler criara ao matar Rebecca Parish. Alguém precisava tomar a dianteira e tomar o controle agora que Rebecca se fora. E quem melhor do que o vencedor do Oscar por Praias: Seattle? — O que quero dizer é — continuou ele. — : assisti a filmes demais para saber que as coisas sempre parecem sem saída logo antes dos bons virarem o jogo. E com toda a certeza, nós somos os mocinhos aqui. Se não impedirmos Jordan Collier de mudar o futuro, quem irá? — Mas isso não é a droga de um de seus filmes — protestou Roff. — Isso é caso de vida ou morte para todos nós. — O que torna mais importante nos dedicarmos à nossa missão. — Sterling tentou


encorajar aos outros. — Confiem em mim, amigos. Isso não acabou. Ainda podemos acabar com o Movimento d o Collier. Só precisamos usar juntamente nossas influências para que as autoridades façam o que for preciso para colocar a raça humana de volta no caminho certo, mesmo que isso signifique trancafiar cada 8 N . d o T . : U m t u l k u é , n o budismo tibetano, u m l a m a q u e conseguiu escolher conscientemente ser reencarnado. 4400 em campos de concentração, dosando todos com inibidor e levar a Terra Prometida de volta à Idade da Pedra. Nasir e Burke acenaram em aprovação à sua visão. Até mesmo Kenpo pareceu um pouco mais confiante. Eles iriam fazer algo… — É mais fácil falar d o que fazer — retrucou Roff. — Como exatamente pretende fazer isso? — É s ó saber contar a história certa. — Sterling pensara bastante no assunto antes de convocar a reunião. — O segredo é provocar o s “poderosos” a darem um passo drástico. Talvez provando que Collier pretende outro Grande Passo Adiante. O general voltou à mesa relutantemente. — Talvez dê certo. — Podemos fazer isso — insistiu Sterling. Ele sentiu a momento tomando conta de si. — Mas não se não permanecermos juntos. — Ele se focou no que valia a pena. — Sem o seu empurrão no Pentágono, general, não temos chance alguma. E você, Kenpo, não subestime sua influência no leste, sem mencionar aqui em Hollywood. Somos todos partes essenciais do nosso plano. — Mas e o assassinato do Calábria? — perguntou o lama, receoso. — Qualquer um de nós pode ser o próximo. Um sorriso astuto elevou os cantos da boca de Sterling. — Deixe que eu cuido disso. — Me passe outro pedaço — disse Kyle. Uma pizza canadense grande de bacon e abacaxi estava na mesa. — Sinto muito q u e t eve q u e trazer a comida hoj e — disse s e u p a i num pedido de desculpas. Uma garrafa gelada de Rainier jazia na mesa a sua frente. Uma porta aberta conduzia para a sala de estar adiante. Um som leve saía do som do cômodo ao lado. — Mas não tive tempo mesmo para preparar comida essa semana. — Tudo bem por mim, tio Tommy — disse Shawn. — Pode esquecer, já experimentei sua comida antes.


O Baldwin sênior fingiu um ferimento no coração. — Ai, isso é jogo baixo, Farrel. Kyle sorriu enquanto seu pai dava u m soco d e brincadeira n o ombro de Shawn. Era bom passar u m tempo com sua família novamente, especialmente depois d e tudo pelo q u e eles vinham passando ultimamente. Esses jantares semanais era algo que eles combinaram depois do funeral de Danny e tia Susan, quando os três homens prometeram tornarem-se uma família d e verdade novamente, apesar d e t u d o q u e o s dividia. A t é agora o ritual parecia estar funcionando. É exatamente o que preciso agora, pensou Kyle. Pena que Cassie achava o contrário. — Abacaxi n a pizza? — A jovem atraente d e cabelo vermelho f e z uma careta. Um sobretudo roxo descolado contornava sua figura. Um pingente turquesa descansava em seu decote. Brincos de argola projetavam-se para fora de seu liso cabelo vermelho. Uma franja pintada caía pelos seus habilidosos olhos esmeraldas. — Honestamente, viemos de tão longe para isso? Embora houvesse quatro pessoas na mesa, somente Kyle estava ciente do fato. Uma projeção d e s u a mente inconsciente, Cassie Dunleavy e r a invisível e inaudível para todos outros. Mas ela era mais que sua amiga imaginária; ela era, também, sua habilidade. — Nós vamos demorar muito? — perguntou, impacientemente. Ela polia as unhas do outro lado da mesa, e m frente a Kyle. Cassie desaprovava completamente esses jantares, alegando que Kyle nada tinha a ver com seu pai até que ele tomasse a dose de promicina. — Temos mais o que fazer do que ficar com esses dois. Kyle tentou-se a responder. Seu pai e Shawn não entenderiam se ele começasse a discutir com o ar. Embora ambos soubessem que ele adquirira algum tipo d e habilidade precógnita depoi s d e t o m a r promicina, e l e n u n c a explicara realmente como sua habilidade se manifestava, que todas as suas visões do futuro vinham diretamente de Cassie. Ela o dizia o que fazer, e até agora nunca errara. Exceto, talvez, no que dizia respeito a sua família. — Então, como foi o dia d e vocês? — Shawn perguntou. Um pedaço pegajoso de queijo balançando entre seus lábios. — Bastante intenso. — Kyle respondeu. — Estamos trabalhando mais tempo só para coordenar todas as novas iniciativas do Jordan. Seu pai abaixou sua cerveja. — Falando nisso, Kyle, e u odeio ter que comentar isso, mas preciso conversar com você sobre algo em que o Jordan pode estar envolvido. — Ei — disse Shawn. — Pensei que política estaria proibida nesses jantares. Cassie ficou agitada no mesmo momento. — Tome cuidado, Kyle! Não gosto disso.


— Eu sei — disse seu pai, relutantemente. Ele se virou desconfortável na cadeira. — Mas i sso também é assunto d e família. — E l e lançou a Kyl e u m olhar sério, até um pouco doloroso, que o jovem assemelhou com conversas entre pai e filho sobre sexo e drogas. — O Jordan te falou sobre o corpo do Danny? — Sim. — Kyle perdeu o apetite. Um pedaço fresco de pizza esfriou no seu prato. — Mas ele me prometeu que não teve nada a ver com isso. Cassie lançou lhe um olhar de advertência. — Não fale mais nada! Ele está tentando induzi-lo a trair o Movimento. — Queria ter certeza disso — disse seu pai. — Mas temos motivos para acreditar que alguém está tentando duplicar a habilidade de Danny. Tem certeza de que Jordan, ou qualquer outra pessoa d e sua organização, não está planejando outro Grande Passo Adiante? — Ele pareceu preocupado. — Queria muito que me ajudasse com isso, Kyle. — Não é justo, pai! — Kyle não acreditava que seu pai estava usando-os daquele jeito. — Você sabe quanto o Movimento significa para mim. Não me peça para espiar meu próprio povo. — Ele se certificou de que seu pai percebesse de que lado ele estava. — Além disso, Jordan nunca permitiria algo assim. — Está certo sobre isso? — Shawn o desafiou. — Sejamos honestos aqui. Jordan pode ser horrivelmente impiedoso quando tem que ser. Ele tentou sequestrar o Dr. Burkhoff para impedi-lo de aperfeiçoar o teste de compatibilidade a promicina. E está deliberadamente distribuindo promicina pelo mundo, sabendo muito b e m q u e metade das pessoas que tomarem a dose morrerá d e maneiras terríveis. — Nem mesmo a habilidade de cura de Shawn poderia salvar alguém da dose de promicina. — Não me surpreenderia se ele tentasse algo assim. Kyle jogou na defensiva. — Agora o s dois vão m e pressionar? Pensei que isso fosse uma reunião amigável e não uma emboscada! — Eu avisei — vangloriou-se Cassie, jogando n a cara. — Você não pode confiar nessas pessoas. Seu pai provou isso quando se recusou a tomar a dose. — Levantando-se da mesa, ela a circulou até ficar atrás dele. Enrolou o s braços no peito dele. A fragrância d o perfume fez sua cabeça girar. Os lábios dela sussurraram suavemente em seu ouvido. — Eles não entendem nada sobre o futuro, não como nós. — Pense um pouco sobre isso — pediu seu pai. — Não estou pedindo que traia alguém ou que faça algo que viole suas crenças. Só preste atenção e veja o que pode descobrir sobre esse Bernard Grayson e suas conexões com o Movimento. Nos ajude a encontrar o corpo d e Danny antes que aconteça outro 50/50. Talvez use sua habilidade. — Hah! — bufou Cassie. — Como se isso fosse acontecer. — Ela segurou o braço de Kyle. — Vamos embora.


Kyle sentiu-se sendo atacado de todas as direções. Ele viu-se dividido entre sua família, Cassie e sua lealdade ao Movimento. Por que isso acontece comigo? Só quero fazer do mundo um lugar melhor. Ele empurrou seu prato e levantou abruptamente. — Preciso voltar para meu lugar. — Kyle. — O olhar arrasado no rosto de seu pai quebrou seu coração. — Por favor, me desculpe. Não pediria isso se não fosse importante — lamentou-se. — Você não precisa ir. — Precisa, sim — disse Cassie. — Agora. Kyle pegou seu casaco. Ele não queria sair assim, mas seu pai e Shawn não haviam dadolhe escolha. Eles quebraram a regra, e não ele. Uma rajada de vento frio invadiu a sala quando ele abriu a porta de saída. — Obrigado pela pizza, pai — disse ele, amargamente. — Estava ótima. Cassie pegou sua mão enquanto o guiava para o lado de fora.


DEZ A Terra Prometida tinha se reunido para ouvir seu messias falar. Milhares de pessoas lotaram a praça e m frente à prefeitura, esperando para ouvir Jordan Collier, que já havia reunido antes uma multidão parecida neste mesmo local, nos dias incertos que se seguiram ao Grande Passo Adiante. U m púlpito, sustentando uma imagem d o pi co nevado d o Monte Rainier, havia sido montado no topo dos largos degraus de pedra. Um par de magníficos leões d e pedra guardava a escadaria. Altos pilares d e mármore ladeavam o púlpito. Pôsteres ostentando retratos d e Collier d e tamanho colossal s e estendiam p o r sobr e o s andares superiores d o edifício. Equi pes d e filmagem esperavam p a r a transmitir a o v i v o o pronunciamento d e Collier para todo o planeta. Holofotes mantinham a escuridão da noite afastada. Oficiais da paz, em seus uniformes verde pinho, patrulhavam a praça. Detectores de metal escaneavam todos que chegavam. Era uma noite clara e fria, mas a temperatura baixa não contribuíra muito para desencorajar a horda inquieta que se reunira para presenciar a dedicatória de uma nova escultura comemorativa d o monumental retorno dos 4400. Um pano cobria a instalação que, de acordo com furos d e reportagem, representava uma esfera brilhante e cristalina, pairando s o b r e u m a r é p l i c a e m b r o n z e d a Highland Beach. A recém-inventada tecnologia antigravitacional t er i a s i d o empregada para manter o orbe suspenso sobre a paisagem esculpida, sem qualquer meio visível de suporte. A artista, que havia ganhado uma competição municipal patrocinada pela Fundação Collier, e r a f i l h a d e u m a d o s 4 4 0 0 originais. Ironicamente, ela parecia duas décadas mais velha do que sua sorridente mãe, que agora se encontrava no púlpito, aquecendo o público para Jordan Collier. A multidão ansiosa ouvia mais ou menos pacientemente a s e u s comentários d e abertura. E r a Collier q u e m eles realmente queriam ver. Exatamente como April Skouris. O tamanho absurdo d a audiência frustrou a delicada morena, quando ela tentou se encaminhar para frente da multidão. Óculos espelhados e um chapéu de aba larga encobriam seu ar furtivo e travesso. As mãos geladas se escondiam nos bolsos d e seu caro sobretudo. Corpos esmagadores se esfregavam nela conforme espreitava, irritada, através d a muralha de ombros das pessoas à sua frente. Ela havia chegado duas horas antes do início do evento, mas j á havia literalmente dúzias de espectadores entre ela e o pé da escada. Como conseguiria chegar perto de Collier com todos aqueles enxeridos no caminho? — Licença — ela resmungava, enquanto obstinadamente abria o caminho a cotoveladas. — Estou passando! — Preocupada em não atrair a atenção dos vigilantes Oficiais d a Paz, ela mantinha sua cabeça baixa. Sua impetuosidade evocava olhares maliciosos e protestos dos outros espectadores, mas quem ligava para o que estavam pensando? Ela estava interessada apenas em Collier. Ele vai falar comigo, queira ou não. Seu sangue ferveu ao se recordar d a humilhação que havia passado no quartel-general de Collier, no outro dia. Ser barrada por seus capangas já era ruim demais, mas ser destratada


daquela maneira logo na frente de Diana era demais. Eles não jogaram Di fora. Só a mim! Era a mesma história de sempre. Diana recebia todo o respeito e atenção, enquanto ela era tratada como u m tipo d e parasita constrangedor. Diana e r a a estudante modelo, alegria e orgulho de todos. April era a incompetente, cuja irmã superdotada tinha que volta e meia tirar das enrascadas. Mesmo agora, com uma nova e surpreendente habilidade para se vangloriar, April ainda se achava tocando a base para Diana solar. Bem, não mais, ela jurara. Aquela seria a noite em que provaria que era o dobro da agente federal que sua irmã era. Ela havia driblado Ralph e Eric, seus guarda-costas designados pelo governo, para ter a chance de se encontrar cara-acara com Collier. Ela não faria mais d o que mostrar para todos que não era a fracassada imatura que achavam que era. Eu vou expor as mentiras de Collier na frente do mundo todo. Se ela conseguisse atravessar essa maldita multidão! N o púlpito, a m ã e d a artista, Naomi Snodgrass, estava encerrando seus intermináveis comentários. — E agora, sem mais delongas, o homem que vocês todos estão esperando… O homem por quem um planeta ferido clama… Jordan Collier! Collier emergiu da prefeitura sob estrondosas vivas e aplausos. Ele ergueu sua mão em reconhecimento e a multidão foi ao delírio, acenando e gritando como se e l e fosse Jesus reencarnado o u algo d o tipo. Celulares e câmeras digitais registravam sua chegada para a posteridade. Fora fácil esquecer que, menos de um ano atrás, ele era u m fugitivo procurado. Incrível como uma pequena catástrofe local podia fazer diferença. Ele era como Giuliani9 depois do 11 de setembro, só que maior. Giuliani não havia criado sua própria religião. Enojada, April juntou-se à aclamação para evitar chamar atenção. Embora tivesse conseguido sua habilidade e sua nova e confortável vida graças à política de distribuição irrestrita de promicina de Collier, ela não embarcara na baboseira de salvem-o-futuro. Em sua experiência, a retórica elegante era apenas u m disfarce para u m golpe sofisticado. Você não pode trapacear um trapaceiro, ela pensou, presunçosa. Collier estava simplesmente aparando as arestas, como qualquer um. E ela iria provar isto. Nem Tom Baldwin, nem Diana. Eu. Ela esperou impacientemente que o clamor diminuísse. Ficou na ponta dos pés para enxergar além d a ralé que bloqueava s u a visão d o púlpito. Ainda havia muitas fileiras de adoradores de olhos arregalados entre ela e Collier, mas quem sabe já estaria perto o suficiente para ele ouvi-la? Uma pergunta capciosa dançava pelos seus lábios. Ela a havia ensaiado, em sua cabeça, por horas a fio. Onde está o corpo de Danny Farrell?


9 N. do T.: Rudolph Giuliani era prefeito de Nova Iorque quando aconteceram os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001. Ele ganhou grande destaque por seu empenho em acompanhar as buscas por sobreviventes nos escombros das Torres Gêmeas e em dar apoio às famílias das vítimas, entre outros feitos. Collier acolheu a adulação d a horda p o r u m momento, então gesticulou para que se acalmassem. O burburinho diminuiu gradualmente. A tranquilidade se estabeleceu pela praça. Rostos arrebatados fitavam Collier em adoração. — Obrigado, meus amigos — ele falou para a multidão. Um microfone e caixas d e som projetavam sua voz através d a praça pululante. — Vê-los todos juntos aqui, num propósito comum, nesta ocasião auspiciosa, aquece meu coração. É uma honra e um privilégio estar à frente de vocês mais uma vez… April viu sua oportunidade. Ela gritou a plenos pulmões. — Onde está o corpo de Danny Farrell? S u a mente o mandou dizer a verdade, m a s , p a r a s e u completo constrangimento, ele simplesmente continuou falando sobre a noite gloriosa que acontecia na Terra Prometida. — Uma noite para celebrar as artes, e para as artes celebrarem o início de uma nova era… Droga, ela pensou. Collier não conseguia ouvi-la acima da voz amplificada dele. Ela ainda estava muito longe. A frustração crescia dentro dela. E u devia ter trazido um megafone ou algo do tipo! Ela não iria desistir, contudo. Conhecendo Collier, sabia que ele iria continuar falando por algum tempo. Ainda havia tempo para chegar até ele. Jogando a cautela para o alto, ela começou a empurrar as pessoas agressivamente para abrir caminho. — Saiam da frente, por favor! Estou passando. — Ei, tome cuidado! — algum idiota reclamou. Era um cara horroroso, com cara de sapo e melequento, com o cabelo castanho grudado sobre a cabeça para disfarçar a careca, vestindo uma roupa ridícula. Um queixo duplo brotava por debaixo d e seus lábios gorduchos. Ele se mantinha protetoramente at r ás d e uma velha enrugada em uma cadeira de rodas, que provavelmente era sua mãe. Seus olhos esbugalhados fuzilavam April. — Onde você pensa que vai, docinho? Ela tentou se espremer empurrando o idiota, mas ele não iria sair do caminho. — Não seja imbecil — ela disse, impacientemente. — Deixe-me passar. — Pode esquecer — e l e deliberadamente moveu a cadeira d e rodas para bloquear o caminho. — Se você queria um lugar bom, deveria ter chegado mais cedo. A paciência d e April s e esgotou. Um sorriso malicioso surgiu e m seus lábios. Está bem, otário. Você pediu isto.


— Alguma vez você já pagou para fazer sexo? — Algumas vezes — ele admitiu, sem hesitação. — Quando eu estava realmente a perigo. Eu sabia, exultou April, maliciosamente. Este porco é bruto demais pra conseguir uma mulher por esforço próprio. Um ar de completo horror tomou conta do rosto do homem quando se deu conta d o que acabar de dizer. Ele tapou a boca com a mão gorda. A senhora da cadeira de rodas olhou para ele com uma expressão escandalizada em sua face enrugada. Os dedos ossudos se espremeram em seu peito. — O que você acabou d e dizer, Junior? E u ouvi direito? — Ela olhou atravessado para April. — Quem é esta mulher? Ele não podia se afastar de April rápido o suficiente. Isto vai ensiná-lo a não mexer comigo, pensou ela, enquanto ele empurrava a apavorada senhora para fora dali. Mamãe j á estava aplicando um sermão e m Junior. Satisfeita consigo mesma, April saboreou sua vitória sobre o tagarela de olhos esbugalhados. Ele teve sorte por eu não ter perguntado por cada detalhe sujo. Ela se esgueirou pelo espaço deixado por Junior e sua mãe. — C o m licença! — Espectadores m enos antipáticos relutantemente deixaram-na se retorcer por entre eles. Sem aceitar u m não como resposta, ela avançou determinadamente para a beirada da multidão. A massa ignorou seu progresso, preferindo ao invés disso dedicar s u a atenção a Collier. El es sacudiam entusiasmados a cabeça, concordando c o m Collier, enquanto o grande homem os fascinava: — …quando aquele orbe d e l u z brilhante apareceu pela primeira v e z há quatro anos, zunindo pela Terra, vindo d o que s e acreditava, na época, serem as profundezas do espaço sideral, muitas pessoas o temeram, achando que era o fim do mundo. E, de certa forma, era. A chegada da esfera celestial, que retornou os 4400 a esta conjuntura crucial da história, anunciava o fim do mundo conturbado que todos nós toleramos por tempo demais. Um mundo de fome, pobreza, guerra, medo e ignorância… Bl á , b l á , blá, pensou April. Conte-me u m a novidade. To d o mundo já conhece essa baboseira. Ela não podia acreditar que todos aqueles idiotas iludidos estavam engolindo aquilo. Conte-nos algo de que não sabemos – como o que você fez com o corpo de Danny. Muitos olhares aborrecidos e silêncios irritados depois, ela chegou quase à beirada da audiência. O pé da escada estava a apenas algumas fileiras de ovelhas iludidas à frente. Jordan Collier estava tão perto que ela poderia praticamente ver cada fio d a sua barba. Seus astutos olhos azuis olhavam por sobre a multidão, alheio à ameaça que rastejava até ele. April avaliou que já estava perto o suficiente. Ela tinha que estar no alcance da audição dele. April levou um segundo para se compor. Ela olhou impiedosamente para as câmeras de TV próximas. Cara, elas iriam transmitir u m verdadeiro show. Jordan Collier estava prestes a


perder seriamente as estribeiras. Espere até Diana ouvir isto! Ela tirou os óculos de sol. Sua boca se abriu ao máximo. — Onde está o corpo de Danny Farrel? — ela gritou. Ou melhor, foi o que ela teve a intenção de fazer. O que realmente saiu de sua boca foi: — Iogurte brincando com algoritmos? Hã? A frase bizarra ecoava dentro d e sua cabeça. O que e u acabei de dizer? Ela tentou novamente, ainda mais alto, desta vez. — Meias-luas rodopiando em ritmo de alcachofras? A torrente de palavras sem sentido atraiu olhares desafiadores das pessoas ao redor dela. Era como se ela estivesse falando em uma língua… — Já chega, Srta. Skouris — uma mão pesada pousou em seu ombro. O coração de April descompassou. Olhando para trás, ela descobriu dois enormes Oficiais da Paz uniformizados. Cada guarda segurou firmemente em um de seus braços. — Por favor, venha conosco — disse o guarda da direita. Ele tinha quinze centímetros e talvez sete quilos a mais do que ela. — Obliquamente Puyallup10! — ela protestou, incoerentemente, mesmo que a verdade cruel a beijasse no rosto. Eles fizeram alguma coisa com minha mente! Não importava o que tentasse dizer, nada além de baboseiras saía de seus lábios. — Filas de tatus licenciados! Os espectadores mais próximos olharam para ela interrogativamente e se afastaram. April se deu conta de que devia parecer que estava drogada. Consternada, ela imaginava como os guardas a haviam identificado. Eles a haviam localizado há poucos minutos ou estivera sob vigilância havia dias? Normalmente, ela poderia perguntar a eles, mas agora não mais, não com tudo que falava saindo desesperadamente distorcido através de sua boca. Incapaz de discutir com os oficiais, ela tentou se livrar das suas garras. Uma onda repentina de tontura tomou conta dela, entretanto, deixando-a quase sem conseguir manter-se de pé, enquanto tudo ao redor parecia girar como um brinquedo de parque de diversões. Ela se convenceu, d e uma vez por todas, que um dos guardas deveria estar usando sua habilidade sobre ela. — Palito de dentes de sereia! Um segundo depois, a praça parou de rodar. A tontura se fora. — Não dificulte as coisas ainda mais — avisou o segundo guarda. Ele era menor do que o outro, mas grande o suficiente para empurrá-la. Ele manteve sua


10 Puyallup – cidadezinha americana localizada no estado de Washington. voz baixa e ameaçadora. — Deixe estas boas pessoas ouvirem o discurso de Jordan. Entendendo a mensagem, ela não ofereceu mais resistência, enquanto os guardas a afastavam dos degraus. Ninguém tentou impedir os guardas de escoltar a moça louca para fora dali. A multidão se abria prontamente para que eles passassem. No púlpito, Collier continuava a f al ar, c o m o s e nenhum inconveniente estivera acontecendo. S e e l e h a v i a tomado conhecimento da perturbação, não deixava transparecer. — Assim, é com grande alegria e humildade, que eu revelo este brilhante tributo artístico ao dia que mudou as nossas vidas para melhor. — Com um floreio dramático, ele retirou o pano de sobre a escultura. A esfera flutuante de cristal brilhava como uma estrela sobre uma árvore de Natal. — Bem vindos ao início do renascimento da Terra Prometida! Apupos e aplausos enérgicos abafaram a saída forçada de April. Os guardas a arrastaram para fora da praça e para dentro de uma van verde. O medo tomou conta de sua alma. Aonde vocês vão me levar? — Escorregadio por catálogos violentos? O guarda adivinhou o que ela estava perguntando. — Acredite em mim, você não vai querer saber. Sua habilidade era inútil no momento, mas isso não importava. Ela sabia, em seu coração, que ele estava dizendo a verdade.


ONZE A imponente casa de fazenda ficava escondida nos arredores da Pennsylvania. Plantações de milho e tabaco, que jaziam esquecidas no inverno, cercavam a casa e suas dependências. Uma estrada apagada e suja levava até o Pedágio Lancaster, mais ou menos a um quilômetro dali. Um galo de ferro estava empoleirado no topo de um cata-vento. Pinturas redondas estavam pintadas nos celeiros e na caixa d’água. Luz elétrica brilhava pelas janelas. As cortinas do andar de cima estavam fechadas por causa da noite. Uma frota de limusines, estacionadas do lado de fora da casa, pareciam distintamente fora de lugar. Richard entendeu a presença das limusines como um bom sinal. Parece que estamos no lugar certo, pensou. Ele e sua equipe rastejavam por um campo escuro na direção dos ruídos da casa. Uma fonte confiável lhes informara que os Marcados sobreviventes realizavam uma reunião naquele mesmo local, o q u e oferecia a oportunidade perfeita de acabar com a conspiração com uma tacada só. Pesquisas posteriores haviam revelado que a fazendo isolada era uma das várias propriedades de Wesley Burke, o conselheiro chefe do presidente no Departamento de Segurança Doméstica. As limusines incongruentes indicavam que eles haviam chegado bem a tempo. Longe das luzes da cidade, uma escuridão colaborava com a aproximação deles. Um pequeno prateado da lua dava a eles luz suficiente para conseguirem andar. Estava uma noite congelante. A respiração de Richard embaçava a frente de seus lábios, assim como a de Evee. Somente Yul parecia não ser afetado pelo frio. Richard invejava o s dons termocinéticos d o outro homem. O s t r ês operantes — uma palavra que Richard preferia ao invés de “assassinos” — estavam aquecidamente vestidos em roupas de lã pretas, luvas, tocas de ski e botas. Além da temperatura frígida, eles haviam executado uma cansativa caminhada até a fazenda. O helicóptero reserva deles, comandado pelo mesmo piloto cego que ajudara na fuga da prisão, havia largado-os em um campo vazio a mais de um quilômetro longe dali. Mantendo-se abaixados, e l e s foram cruzando o campo gelado. Com Sanchez morto, Richard havia assumido o comando d a equipe d e assalto. Grãos secos de milho estalavam ruidosamente sob suas botas. Richard estremecia a cada estalo traiçoeiro. Tomando a dianteira, e l e segurou a respiração a t é encontrar abrigo at r ás d e u m gal pão v e l h o de ferramentas. Espirou pelo canto da cabana enquanto analisava o terreno à frente. Um espaçoso quintal se estendia entre o galpão e a parte de trás da casa. O cenário era tomado por uma forte segurança. Um guarda com uma jaqueta de lã patrulhava u m a sacada n o segundo andar. Holofotes montados iluminavam o gramado amarronzado. Um pneu balançava pendurado em um galho forte de uma árvore carvalho. Uma grande casa de cachorro de alumínio preocupou Richard. Ele só podia desejar que nenhum cão de guarda inconveniente tivesse sido trazido naquela noite. Seu olhar pousou num par de portas velhas de um porão. As portas de aço inclinadas estavam do lado oposto do fundo cimentado da casa. De acordo com o informante, um 4400


que Richard encontrara anos atrás durante a quarentena, os Marcados estavam se reunindo num quarto do pânico abaixo do porão-adega. Essa é nossa entrada, decidiu ele. Agora eles s ó precisavam atravessar vários metros de grama bem iluminada sem serem detectados. Mais fácil falar do que fazer. Ele prestou atenção na sentinela na sacada. O guarda sem nome andava de um lado para o outro para s e manter aquecido. Suas mãos enluvadas seguravam uma caneca fumegante de café. Richard quase sentiu pena d o pobre homem, até que se lembrou a quem ele estava defendendo. Um par de binóculos noturnos estava pendurado e m volta d o pescoço dele. Daquela distância, Richard não conseguia dizer se a sentinela estava armada, mas com certeza estava. Wesley Burke era um homem poderoso, com muitos inimigos. Evee se levantou atrás dele. Ela também colocou a cabeça para fora do canto. Seus olhos sombreados seguiram seu olhar até a sacada no alto. — Quer que eu cuide dele? — Poupe suas forças. — Richard manteve a voz baixa. — Eu posso lidar com isso. S u a s sobrancelhas escuras s e torceram. S e u s o l h o s s e estreitaram enquanto ele se concentrava no guarda — e no fluxo de sangue para o cérebro do homem. Demorara um pouco para ele dominar esse truque, mas estava craque agora. Devagar, sutilmente, para não alarmar o seu alvo, comprimiu a circulação do guarda, colocando o homem para dormir antes mesmo que ele soubesse o que estava acontecendo. A sentinela cambaleou sem equilíbrio, então caiu por cima da grade. A caneca fumegante d e c a f é escorregou d e s e u s dedos. Richard experimentou um momento de pânico enquanto o copo de cerâmica caía na direção do chão. Ela caiu com u m baque abafado n a cama d e flores abaixo. Arbustos folhados piedosamente amorteceram sua queda. — Muito bem — sussurrou Evee, impressionada com a facilidade com que Richard havia neutralizado o guarda. — Já fez isso antes? — Sim — respondeu ele, laconicamente. A culpa trespassou seu coração. A última pessoa que ele nocauteara desse jeito fora Isabelle, quando sua filha ainda estava viva. Agora, ele desejava que os dois tivessem gastado menos d o seu precioso tempos juntos brigando. Se ao menos pudessem acertar a s coisas entre eles. Mas os Marcados os haviam roubado essa possibilidade. — E as luzes? — perguntou Evee. Richard sinalizou p a r a Yu l c o m a s m ãos. O hom em m a i s jovem, q u e era uns 30 centímetros mais baixo que Richard, aproximou-se para se juntar a eles. — Sua vez — disse Richard. Y u l acenou c o m a cabeça. E l e f i x o u o o l h a r n o s holofotes, q u e se acenderam brilhantemente antes d e queimarem todos juntos. A escuridão caiu sobre o quintal. Richard imaginou quanto tempo demoraria para as pessoas do lado de dentro perceberem. O tempo suficiente, esperava.


— Vão! — murmurou ele urgentemente. Eles estavam n o meio d o quintal quando o s cães atacaram. Latidos e rosnados selvagens precederam-se a aparição de quatro Dobermans ameaçadores, que vieram correndo pelos cantos da casa. As presas dos cães reluziam na débil luz da lua. Baba jorrava de suas bocas abertas. Droga, pensou Richard. Sabia que a casa de cachorro significava encrenca. O Doberman d a frente investiu contra ele. Instintivamente ele jogou o braço para o alto para se defender, feliz pela grossura de sua jaqueta e do suéter. A mandíbula poderosa d o cachorro fechou-se e m seu braço. Dentes afiados perfuraram o tecido, cortando sua pele. Ele mordeu o lábio para não gritar. A dor quebrou sua concentração em pedacinhos. Não havia como usar sua mente como arma. O cão furioso ficou pendurado em seu braço como um peso, rasgando sua carne. O peso enorme do animal tirou seu equilíbrio. Era tudo o que ele podia fazer para manter o canino rancoroso longe de sua garganta… até que, abruptamente, o cachorro amoleceu. Afrouxando o aperto, o Doberman caiu na grama. Richard arfou aliviado. Ele cambaleou alguns passos para longe da besta adormecida. Olhando em volta, viu que todos os quatro Dobermans estavam deitados sem sentidos no gramado seco. Eles roncavam e fungavam em seu sono. Suas pernas se contraíam de vez em quando. Evee, percebeu ele. Ele olhou para sua colega de equipe, que estava flexionando o pescoço. Aparentemente, sua habilidade funcionava com cachorros, também. — Obrigado — disse ele, sem fôlego. — Bom trabalho. Ela deu de ombros, como se salvá-los d e u m bando d e cães d e guarda raivosos não fosse grande coisa. — Eu sempre fui mais com a cara de gatos. — Como está o seu braço? — perguntou Yul, ansiosamente. O sangue ensopava a manga de Richard, tão negros quanto óleo nas sombras. O tecido amassado mal escondia as marcas de mordida. Doía pra caramba. — Eu aguento — ele disse, com o s dentes cerrados. Ele estava mais preocupado com o barulho que os cães haviam feito antes de Evee os silenciar. Vozes agitadas vinham de dentro da casa. Uma porta de correr de vidro se abiu no andar de cima. Passos apressados soaram da sacada. — Mas o que…? — disse uma voz anônima acima deles. — Está dormindo no trabalho, Harris? Uma segunda voz se juntou à confusão. — O que o s malditos cachorros têm? — A irritação brigava com a preocupação. — Hei,


quando as luzes se apagaram? Richard esgueirou-se por baixo da sacada, fora da vista dos recém-chegados. Seus amigos n ã o precisaram d e aviso p a r a s e juntar a e l e . Segurou o braço ferido enquanto ouvia tensamente os homens tentando acordar o guarda tranquilizado. Seu coração deu um pulo no peito. Seus olhos viraram na direção das portas do porão, apenas alguns metros de distância. Ele tentou levantar as portas usando sua telecinese, só para descobri-las trancadas pelo lado de dentro. Sem problema, ele pensou. Vince Adams, o 4400 manipulador de espaço da fuga da prisão, podia ter arrancado as portas de aço das dobradiças, mas ele não aceitara a missão por questão d e valores. Libertar positivos d e custódia federal era uma coisa, mas assassinato era a gota d’água para Adams. Richard respeitava a opinião do homem. Ele até concordaria com isso há um tempo, antes dos Marcados assassinarem sua filha. Agora as portas do porão estavam entre ele e sua vingança. Visualizando com sua mente, e l e localizou o cadeado n o l a d o oposto d a s portas. S e u braço machucado dificultou a concentração, mas ele deixou a dor de lado. As trancas se moveram e o cadeado se abriu. As portas suspenderam-se abertas. Um tenebroso portal esperava por eles. — Agora! — ordenou Richard. Ele desceu alguns degraus, abaixando a cabeça para evitar bater na porta. Sua bota chutou o cadeado caído para o lado. Correndo, seus colegas apressaram-se para entrar atrás dele. Uma única lâmpada, pendurada no teto, expunha o que parecia ser uma adega cheia de vinho. Dúzias de garrafas de vidro estavam cuidadosamente montadas em grandes prateleiras de ferro. Yul assobiou, apreciando. — Bela coleção. E altamente inflamável. — Mais tarde — disse Richard. Um incêndio conveniente podia cobrir seus rastros, mas primeiro eles tinham que cumprir seu objetivo – sem interrupções. Ele olhou para trás por cima de seus ombros. As portas do porão fecharam-se com barulho. Uma pesada prateleira de ferro arrastou-se pelo chão e se grudou contra a entrada. Uma segunda prateleira caiu por uma escada, indo na direção do térreo. A s garrafas desalojadas chocaram-se c o m o chão duro d e concreto. O aroma de vinho poluiu o ar. Evee lamentou-se pelo vinho derramado. — Que desperdício. Richard não podia s e importar menos com o s vinhos caros. Tudo o que importava era eliminar seus alvos enquanto podiam. Linhas de luzes contornavam uma porta de aço logo adiante. Vozes estridentes vinham de trás da barreira. Tem que ser eles, pensou Richard. Os próprios Marcados. Ou pelo menos era o que ele esperava.


Inesperadamente, a porta não estava trancada. Ela se abriu como mágica diante deles enquanto se aproximavam. Os olhos de Richard rapidamente avaliaram a situação. O “quarto do pânico” barulhento mais parecia um apartamento mobiliado. Armários e copas de madeira estavam pendurados sobre uma pequena cozinha no fundo da sala. Prateleiras estavam estocadas com livros e DVDs. Um telefone vermelho de emergência estava pendurado a um lado da sala, ao lado d e u m armário d e primeiros-socorros e u m extintor d e incêndio. Havia grades de ventilação no topo das paredes, logo abaixo dos tetos baixos. As luzes no alto estavam dolorosamente brilhantes comparadas c o m a escuridão d o l a d o de fora. Música clássica tocava suavemente no sistema de som. Seis pessoas assustadas olharam alarmadas para o s invasores. U m sheik árabe, um lama tibetano, uma mulher chinesa, um general americano, um produtor de filmes bronzeado, e o próprio Wesley Burkey estavam posicionados em volta de uma antiga m esa redonda de carvalho no centro da sala. Richard reconheceu os Marcados por causa dos dossiês detalhados que eles haviam estudado. O quórum parecia completo. Todos estavam ali, como prometido. Beleza. Exclamações e maldições irromperam dos lábios roubados dos Marcados. Muitos deles já haviam se levantado de seus assentos. Cadeiras caídas jaziam aos seus lados. Burke levantou uma Glock semiautomática de dentro de sua jaqueta, mas Yul foi mais rápido. O aço azul ficou vermelho-brasa num instante. Burke jogou a arma chiadeira para longe dele. — Não! — apelou o árabe. — Tenham piedade. Evee não deu aos colegas conspiradores d e Burke uma chance de revidarem. O pescoço dela estalou audivelmente. Os Marcados caíram como bonecas de trapo. A porta de aço fechou-se com tudo atrás de Richard. Ele não queria ninguém invadindo a festa. Se u olhar sombrio varreu o s homens e a mulher adormecidos. U m nervo mexeu-se abaixo de sua bochecha. Ele não esperava por essa parte… — Até agora, tudo bem — comentou Yul. — Acho que nem precisamos de Billy no fim das contas. P o r ci m a d a s objeções energéticas dele, Richard eliminara o garoto de óculos dessa operação. Independente d o perigo, isso n ã o e r a trabalho para uma criança. J á e r a rui m o suficiente que Isabelle houvesse perdido a inocência tão horrivelmente. Ele não ia deixar que outra criança sujasse as mãos de sangue. Não sob minha supervisão. Agora, os guardas contratados pelos Marcados estavam levantando um alvoroço do lado de fora da “sala do pânico”. Richard ouvia-os lutando contra as prateleiras dos vinho arrancadas. Vozes frenéticas gritavam umas com as outras. Claramente, a equipe teria que brigar para saírem dali. — Certo — murmurou Evee. Ela tentou pegar a arma de Burke, mas ainda estava muito


quente para ser tocada. Ela olhou apreensiva para a porta fechada entre eles e os guardas. — Vamos dar cabo desses pedaços de corpos fascistas e cair fora. — Ainda não. — Richard se aproximou dos corpos estatelados. Antes que matassem essas pessoas a sangue frio, e queimassem seus corpos, ele queria ter certeza absoluta de que eram a s pessoas certas. O s alvos indefesos pareciam ligarem-se aos perfis, mas sua consciência insistia que ele se esforçasse ao máximo para não matar as pessoas erradas. Eles estavam falando de vidas humanas. Não podia haver margem para erros. Nasir Al-Ghamdi era a vítima mais próxima. Richard se ajoelhou ao lado do sheik adormecido. O corpo torto do árabe estava deitado de bruços, então Richard o virou para cima para olhar melhor. Ele afastou o lenço do rosto do homem e examinou suas feições. Ele estava s e n d o paranoico o u o r o s t o d o h o m e m parecia um p o u c o diferente daquele q u e ele memorizara? Ele tocou a bochecha do sheik. Blush sujou seus dedos. Um arrepio correu pela espinha de Richard. Esse não é Nasir, ele percebeu. É falso. É uma armadilha. Ele pôs-se de pé num salto. — Tomem cuidado! — exclamou. — Caímos numa armadilha. Ele mal terminara de falar quando a armadilha foi acionada. Granadas de luz rolaram pela sala, explodindo d e trás das prateleiras e armários. Clarões de cegar o s olhos surgiram um atrás do outro, desorientando os quase-assassinos. Explosões ensurdecedoras invadiram seus ouvidos. As luzes acima piscaram, adicionandose ao caos. A equipe mal podia pensar, muito menos usar suas habilidades. Mesmo se tivesse alguém para usá-las. Richard ouviu um barulho de assobio por cima das detonações. Olhando para cima, ele viu uma grossa fumaça branca espalhar-se pela sala através das grades de ventilação. Gás! Colocando a mão por sobre o nariz e a boca, Richard correu para a porta. Ele agarrou a maçaneta com a mão livre, mas ela se recusou a girar. Uma segunda porta caiu do alto, quase arrancando seus dedos. Eles estavam presos. A fumaça sufocante rapidamente encheu a câmara de gás da sala. Os olhos de Richard lacrimejaram. Sua garganta queimou. Ele tentou afastar a fumaça dele, mas não obteve sucesso. As luzes que piscavam e as explosões atrapalhavam seus sentidos. Sua telecinese era inútil contra o gás sem forma. Ele não conseguia tocálo com sua mente. Quem quer que tivesse organizado aquela armadilha havia pensado em cada detalhe. Evee foi a primeira a sucumbir ao gás. Ela caiu ao chão. Yul foi o próximo.


Ele cambaleou em volta, caindo sobre uma das sósias. Em poucos segundos, Richard viu que era o único ainda de pé. O gás invadiu seus pulmões. Desnorteado, ele segurou-se na borda da mesa circular para se sustentar. Tentou lutar contra a fumaça narcótica, mas era uma batalha já perdida. Suas pernas amoleceram e ele caiu a o chão, a o lado de seus companheiros. Suas pálpebras fecharam-se. Ele tossiu à fumaça cáustica. A última coisa que pensou, antes que a inconsciência viesse, era no que os verdadeiros Marcados estavam planejando agora. Sua cabeça atingiu o chão.


DOZE April tinha conseguido finalmente chegar ao escritório de Jordan Collier. Cuidado com o que você deseja. Ela havia se empoleirado ansiosamente na borda de uma cadeira Queen Anne d e espaldar alto, n o meio d o impressionante escritório executivo. O s dois Oficiais d a Paz d a prefeitura permaneciam u m d e cada lado dela. Nenhum havia dado qualquer pista do que a aguardava, embora sua imaginação temerosa tivesse engendrado u m a série d e cenários apavorantes, incluindo seu desaparecimento definitivo. Ela havia escutado rumores não-confirmados sobre o que acontecera com os 4400 que contrariassem Collier. A sala era desconfortavelmente quente, se comparada à praça ao ar livre. Seu chapéu, sobretudo e óculos espelhados estavam pendurados em um cabideiro perto da porta, mas ela ainda se sentia vestida demais para um ambiente fechado. Ela suava dentro d e sua blusa felpuda d e pelo d e cabra com gola rulê e calças justas de couro. Sua boca estava seca como a Proibição. Ela não conseguiria aguentar o suspense por mais muito tempo. — Compartimento emérito desbotado? — ela desembuchou. Traduzindo rudemente: o que vocês querem comigo? Os guardas apenas sorriram como resposta. Su a desesperadora inabilidade par a falar claramente apenas tornava seu confinamento involuntário mais doloroso. Um soluço frustrado escapou d e sua garganta. Ela roía as unhas nervosamente. Um relógio de parede revelava que ela já tinha sido capturada havia duas horas. Ela não estava certa de quanto tempo mais ira conseguir aguentar aquilo. Vamos terminar logo com isso, não vamos? Finalmente, logo quando ela achava que estava à beira de um ataque de fúria, a porta do escritório se abriu e Jordan Collier entrou na sala. Ele caminhou em sua direção enquanto os guardas fechavam a porta. Uma tranca se fechou com um clique. April engoliu em seco. — Olá, Srta. Skouris. — Collier a cumprimentou. O discurso tornara sua voz ainda mais rouca do que de costume. Ele tomou um gole de água de uma garrafa plástica, cujo rótulo a identificava como procedente d o delta d o ex-poluído Rio Duwamish. Limpar aquelas águas tóxicas tinha sido u m dos primeiros triunfos do Movimento, e uma demonstração d e tudo o que Collier pretendia para a Terra Prometida. — Minhas desculpas por deixá-la esperando. Eu sei que você se esforçou para me encontrar… Ignorando meus avisos para não fazê-lo. Seu tom era inflexível e imperdoável. April sentiu-se como se tivesse sido chamada ao gabinete do diretor do colégio, uma experiência que lhe era mais do que familiar, dos tempos de escola. Ela instantaneamente soube o que ele tinha em mente para ela.


— Suco de fax de Pé-Grande! Apavorada, ela tentou se atirar d a cadeira, mas o s guardas a seguraram pelos ombros e a colocaram sentada de volta. Outra onda nauseante de tonteira deixou sua cabeça girando. Ela gemeu e fechou os olhos até a sensação passar. Claramente ela não ia a lugar nenhum. Ela lamentou, frustrada: — Harém fetal… Collier deixou a garrafa e m u m a mesa próxima. E l e a encarou com o um juiz a uma tribuna. — Dói saber que você resolveu desobedecer minha advertência, e não apenas porque eu sinceramente lamento v e r desperdiçada qualquer habilidade proveniente da promicina. Eu tenho grande respeito por sua irmã e o parceiro dela. Você, Deus e todo o mundo, ela pensou, amargamente. Aparentemente, até o grande Jordan Collier não conseguia resistir a dizer a ela o quanto Diana era maravilhosa. Os olhos de April quase saltaram das órbitas. Ela socou os braços da cadeira, num desapontamento angustiado. Não é justo! Eu finalmente era alguém, também! — A verdade está de fato em algo de infinito valor – repreendeu Collier —, mas não quando pode ser explorado por aqueles que tentam impedir o destino de maneira a preservar um futuro desprovido de esperança ou justiça. Eu já vi o que este mundo virá a ser s e nosso Movimento falhar. Oceanos de ossos sem vida. Fogueiras eternas brilhando n o horizonte. O fedor d e carne podre e doenças. Um céu escurecido por fumaça e chuva ácida. Os gritos intermináveis dos agonizantes e dos amaldiçoados. As linhas marcantes d e sua face ficaram mais profundas. Seus olhos tornaram-se frios e sérios. E l e sacudiu a cabeça, lamentando. Adiantando-se, ele pousou s u a s pal m as nas bochechas dela. Suas mãos frias eram surpreendentemente ásperas e calosas. — Eu não posso permitir que você interfira no que deve ser feito. Não! April pensou, freneticamente. Nã o faça isto! El a contorceu-se impotente e m sua cadeira, contida pelos enormes Oficiais d a Paz. E u mudei de ideia! Não vou te incomodar mais. Você não me verá nunca mais, eu prometo! — Teflon crocante e sublime! Mas era tarde demais para palavras, sem sentido o u não. A fronte de Collier s e enrugava em concentração. Uma sensação vibrante, como eletricidade estática, desencadeou-se onde ele a tocava. O tremor se espalhou de suas bochechas para dentro da testa. Um zumbido, como um enxame de abelhas furiosas, preencheu o interior de seu crânio. As abelhas começaram a picar seu cérebro. Ela se debatia convulsivamente na cadeira. Os guardas esforçavam-se para contê-la, e t i ver am q u e u s a r a m b a s a s m ã o s p a r a m ant ê- l a p a r a d a . Suas mandíbulas batiam involuntariamente. Seus olhos se reviravam nas órbitas. Bolhas de espuma branca saíam pelo canto de sua boca. Seu coração batia uma milha por minuto. Veias pulsavam e m suas


têmporas. O zumbido feroz roncava como um furacão. Jordan segurou sua cabeça entre as m ã o s espalmadas dele. Apr i l sentiu como se sua própria alma fosse explodir em mil pedacinhos. Então, de uma vez só, terminou. Jordan soltou o rosto dela. A dor agonizante cessara. O zumbido sumira. Ele s e afastou d a cadeira, seu rosto cansado e aborrecido. O s braços lhe caíram para os lados. Ele acenou com a cabeça para o guarda da direita. — Está feito. Não há mais necessidade da afasia. — Entendido. O guarda soltou April, em mais de um sentido. Ela sentiu algo se mexendo na parte de trás de sua cabeça. Sua língua se desenrolara. — O que você fez comigo? — ela gemeu. Jordan respondeu sem coerção. — Livrei d e u m dom d o qual você provou não ser merecedora – ele afastou-se dela e tomou outro gole de água. — Deixem-na ir. — Ordenou aos guardas, sem nem ao menos olhar para ela. Era como se ainda estivesse sob sua vista. — Ela não é mais ameaça para ninguém… A não ser, talvez, para si mesma. A verdade nunca fora tão dura de se ouvir. Ela entrou em desespero ao se dar conta de que sua nova boa vida como valioso trunfo d o governo estava acabada. Collier estava certo; ela não era mais útil para ninguém, agora. Ralph e Eric teriam que achar outra pessoa para escoltar, mas aquilo era apenas o começo. Como ela iria encarar Diana depois disso? Eu estraguei tudo de novo. Que legal. — Seu bastardo presunçoso! — ela guinchou para Collier. – Você não tinha esse direito! Ele virou-se para ela uma vez mais. — Não é bem assim. Eu tenho todo o direito, e mais. Dei a promicina ao mundo. Portanto, é minha responsabilidade verificar s e seu uso não está sendo abusivo por parte de pessoas ingratas e egocêntricas como você. — Com a garrafa de água na mão, ele dirigiu-se para a porta. — Agora, se você não se importa, esta foi uma longa noite. Boa sorte com o resto de sua vida, srta. Skouris. Espero que esta experiência tenha lhe ensinado uma valorosa lição. — Não vire as costas para mim! — April gritou, furiosa. — Onde está o corpo de Danny Farrell? Ele parou à porta. Um sorriso irônico insinuava alguma piada interna. — Como eu disse para sua estimada irmã: não faço a menor ideia. E ela não podia ter certeza sobre ele estar dizendo ou não a verdade.


************* — Lar, doce lar — disse Cassie. — Finalmente. O novo apartamento d e Kyle, n o vigésimo terceiro andar d o prédio da Fundação Collier, e r a definitivamente melhor d o q u e o abrigo antibomba abandonado d o q u a l haviam se apossado assim q u e o Movimento retornara para Seattle, pouco antes do Grande Passo Adiante. Um sofá de couro preto e um outro sofá menor combinando encontravam-se de frente para um centro de entretenimento de última geração, montado com peças avulsas por Dalton Gibbs, o mecânico mais brilhante da Terra Prometida. Um carpete branco felpudo forrava o chão. Um grande volume de capa de couro, contendo o original das profecias da “Luz Branca”, ocupava um lugar de honra na mesinha de centro. Uma foto de família, tirada durante tempos mais felizes, antes d e seus pais s e divorciarem, repousava em uma prateleira. Um retrato de Isabelle Tyler encontrava-se ao lado dela. Uma foto emoldurada d o Monte Rainier, onde os 4400 retornaram para o presente, decorava uma das paredes. Um vaso com uma samambaia, escolhida por Cassie, adicionava um toque feminino. A s acomodações elegantes, n o entanto, n ã o contribuíam muito para melhorar o clima, depois daquela cena feia na casa de seu pai. Após acender as luzes com um tapa no interruptor, ele atirou com raiva sua jaqueta sobre o sofá menor. Não conseguia esquecer o modo como seu pai e Shawn tinham tentado provocar um sentimento de culpa nele durante o jantar. — Droga, droga, droga — ele descarregou, e m voz alta. — A s coisas estavam indo tão bem entre nós antes. Por que eles tinham que estragar tudo daquele jeito? — Eu tentei te avisar — Cassie o lembrou. Tirando um xale de lã dos ombros, ela se jogou no sofá e chutou o s sapatos para longe. Cruzou a s pernas nuas n a frente d o corpo. — Não é uma boa ideia se juntar a estas pessoas, não enquanto elas não enxergarem a luz. — Sim, talvez – ele se juntou a ela no sofá. — Mas ele é meu pai, Cassie. E Shawn é mais do que um primo. Nós éramos melhores amigos. — Eu sei — seu tom se suavizou enquanto se aconchegava perto dele. Ela repousou a cabeça dele em seu ombro. — O futuro tem exigido muito de você. Nem me fale, ele pensou. Embora ele estivesse destinado a ser um dos 4400 originais, uma tentativa frustrada d e abduzi-lo o deixara e m coma por três anos. Então, depois que Shawn finalmente o reavivou, uma das pessoas do futuro possuiu seu corpo e o forçou a atirar em Jordan Collier. Ele passara quase um ano na Penitenciária Estadual d e Evergreen a t é que J or dan finalmente conseguiu libertá-lo da custódia. Some-se a isto uma quarentena imediatamente após ele ter sido possuído e quase cinco anos d e sua vida foram embora pelo ralo, enquanto facções rivais do futuro tratavam-no como um peão em um tipo de jogo de xadrez através do tempo. Só depois de tomar a injeção é que começou a finalmente se sentir no controle de seu próprio destino. Talvez. — É uma coisa depois da outra — queixou-se. — Eu não sei se posso aguentar muito mais. — No final, vai ter valido a pena — prometeu Cassie. Seus dedos macios se enroscaram


nos cabelos dele. — Tudo por que você passou, todos os seus testes e sacrifícios, foi tudo para servir a um propósito maior. Trazer o Paraíso para a Terra e acabar com o sofrimento da humanidade para sempre. Kyle queria acreditar naquilo. Ele tinha que acreditar naquilo. — Você acha mesmo? — Confie em mim — um sorriso enigmático surgiu em seus lábios. — Alguma vez eu te induzi ao erro? Acho q u e não, e l e pensou. Levantando s u a cabeça d o ombro dela, ele contemplou a enigmática mulher ao seu lado. Não era a primeira vez que Kyle se perguntava de onde seu inconsciente a havia evocado. Por que “Cassie Dunleavy”? De onde viera aquele nome? Alguma memória de infância que tinha se alojado no fundo de sua mente até que a promicina a ressuscitou? Talvez um personagem de algum livro de estórias ou uma garota que ele conhecera no jardim de infância? De acordo com a psicologia Jungiana, q u e e l e estudara brevemente n a universidade, antes de deixá-la para seguir o Movimento, todos têm um lado feminino chamado anima. Seria Cassie uma manifestação psíquica de seu anima, ou alguma coisa do tipo? Olhe para mim, ele pensou. Eu nem sei como minha habilidade funciona. Como isto é patético! — Eu não sei — ele olhava irritado para o chão. — Talvez meu pai e Shawn tenham razão. Quem quer outro cinquenta/cinquenta? — confuso, ele passou os dedos por entre os cabelos. Sentia-se como se estivesse no fim da linha. — Eu me sinto tão confuso, às vezes. — Coitadinho — Cassie graciosamente levantou-se do sofá. Ela esticou o braço e levantou o queixo dele. Olhos verdes extraordinários o fitaram com ternura. — Você tem passado uns maus bocados, não é? Mas eu sei exatamente do que você precisa — ela abriu o fecho das costas de seu vestido e a túnica violeta, da última moda, escorregou para o chão. Para surpresa dele, não havia nada por baixo. O pingente d e turquesa brilhava intensamente sobre sua pele macia e rosada. — Foi um longo dia. Vamos para a cama. Seus olhos devoraram a s formas desnudas dela, e e l e sentiu s e u corpo respondendo, exatamente como sempre o fizera. Parte dele sentia que havia algo errado, talvez até insalubre, neste novo aspecto do relacionamento deles, mas ele não conseguia resistir. Ele havia se sentido muito só depois que Isabelle morreu, e Cassie estava lá para confortá-lo, noite após noite. Ela não é real, ele lembrava a si mesmo. Ela é o meu lado feminino. Mas ele podia vê-la, sentir seu cheiro e tocá-la, mesmo que ninguém mais pudesse. — Venha para mim, amor — ela sussurrou, com voz rouca. — Deixe que Cassie faça tudo melhorar. — Eu já perdi tanto — ele se lamentou.


— Mas você ainda tem a mim, Kyle. Para sempre. Pegando a mão dela, ele a deixou guiá-lo para o quarto. *********************** — Você está tornando tudo mais complicado para si próprio — disse Dennis Ryland. Richard era prisioneiro mais uma vez, mas sua nova moradia fazia a antiga cela na Virgina parecer uma suíte presidencial d e u m hotel d e luxo. Uma pálida pintura verde havia falhado em isolar as frias paredes de pedra. Ao invés d e um beliche, havia apenas u m banco duro de concreto, sem travesseiros ou lençóis. Tinha de se estar totalmente exausto para se conseguir dormir naquilo. Não que Ryland e seus cúmplices tenham dado algum momento de paz a Richard desde que ele acordara ali, fosse lá onde fosse aquilo. Acorrentado a uma cadeira no meio da cela, seus pulsos algemados para trás, Richard não fazia ideia de onde estava preso. Um macacão laranja havia substituído s e u uniforme militar. Seus pés descalços repousavam sobre o cimento frio. A umidade o gelava até os ossos. Ele se perguntava se algum dia iria se sentir aquecido novamente. — Eu não vou t e contar nada — ele disse, j á cansado. Ryland o vinha interrogando por horas a fio, sem interrupção. Ele estava faminto, sedento e exausto. Sua roupa de prisioneiro estava ensopada de suor. Seu estômago roncava. Su a boca parecia seca como areia. Se u braço enfaixado doía onde o cachorro o havia mordido; e l e havia tomado antibióticos e u m a antitetânica, m a s nenhum analgésico. Ele poderia matar alguém para conseguir um gole de água. — Que lástima — disse Ryland. Seu traje elegante fazia-o parecer um executivo, não um torturador. Ele tomou um gole comprido de uma garrafa de água mineral importada. – Sua filha cooperava mais, pelo menos por um tempo — Ryland conseguiu por algum tempo fazer Isabelle conspirar contra os 4400, alguns anos antes. — Nós tivemos uma boa relação de trabalho, antes de ela se rebelar. Richard olhou para ele, furioso. Como aquele bastardo caçador de bruxas se atrevia a difamar sua filha? — Vá pro inferno. — Se sua telecinese ainda funcionasse, ele teria arrancado a garrafa de água das unhas feitas d e Ryland. Mas ele estava sob o efeito do inibidor novamente. — Por que eu deveria falar logo com você? E l e havi a conhecido Ryland alguns a n o s antes, quando colocou t odos os 4400 em quarentena. N a época, e l e parecia apenas mais u m burocrata paranóico do governo. Então Ryland tentou envenenar todos o s 4400 c o m u m a versão anterior do inibidor, planejou e montou um ataque a um esconderijo de 4400 que estava sob a responsabilidade de Richard. E corrompeu Isabelle. Dizer que havia uma animosidade entre eles era pouco. — Para impedir Jordan Collier d e matar milhões d e pessoas — a v o z de Ryland era enganadoramente calma e razoável. — Tudo o que queremos é que você confesse que Collier está desenvolvendo uma versão aérea de promicina.


Richard suspirou. — Eu não sei nada sobre isso — ele disse, pelo que parecia ser a centésima vez. — Eu nem sei se isso é verdade. — Que diferença isso faz? – Ryland perguntou, cínico. — Nós só precisamos que você confirme para a câmera. — Câmeras de segurança, montadas para gravar o interrogatório, estavam atualmente desligadas. — É a justificativa de que precisamos para lançar um ataque preventivo à Terra Prometida. — Esquece — Richard encarava desafiadoramente o outro homem. — Eu não vou lhes dar falsas desculpas para uma invasão. — Quem disse que são falsas? Collier? — Ryland sacudiu sua cabeça diante da ingenuidade de Richard. — Você ainda não aprendeu que não deve acreditar em uma só palavra do que aquele homem diz? — ele ajoelhou-se diante do prisioneiro sentado, para que ficassem car a a cara. — Lembra-se daquela surra n a Virginia, aqueles guardas que iam arrancar a sua cabeça? Richard dificilmente se esqueceria daquilo, mas não disse nada. — Collier armou aquilo — declarou Ryland. — Era tudo u m truque para assegurar sua lealdade, através de um plano para salvar sua vida. A acusação pegou Richard de surpresa. — Você está mentindo — ele disse, incerto. A dúvida havia drenado a convicção de suas palavras. — Não é verdade. — Foi muito conveniente o modo como o esquadrão d e aberrações de Collier apareceu bem n a hora d e tirar você d o fogo, não acha? — Ryland riu da coincidência. – Você nunca pensou sobre isso? — Maia Skouris — insistiu Richard. — Ela avisou Collier sobre o que iria acontecer… — Foi o que ele te disse? — Ryland deu de ombros. — Talvez tenha sido. Ou talvez aquela pirralha repugnante não tenha visto a estória toda — ele se levantou e olhou tristemente para baixo. Seu rosto astuto projetava uma evidentemente falsa máscara de simpatia. — Você não deve nada a Collier, Richard. Por que aguentar esse sofrimento para protegê-lo? Richard se recusava a ser manipulado. — Isto não é por Collier. É para não t e dar u m pretexto para declarar guerra contra uma cidade americana — ele olhou por detrás de Ryland e seus lacaios para o sólido portão de aço que bloqueava sua visão do resto da prisão. Não havia nem barras para s e olhar através. — Onde estão as pessoas que foram apanhadas comigo? O que vocês fizeram com eles? Ele não havia visto Evee ou Yul desde que acordara no cativeiro. — Eles estão desfrutando d e recepções semelhantes, nas mãos d e meus subordinados — Ryland deu u m sorriso forçado para Richard. — Você deveria se sentir privilegiado por ter


minha atenção pessoal. Richard duvidava de que algum dos seus comparsas fosse ceder. Se duvidasse, ambos eram mais devotados a Collier e sua causa do que ele próprio era. Eles eram seguidores fiéis. — O que me faz tão especial? — Não se subestime — respondeu Ryland. — Você é muito mais importante do que seus cúmplices. Um veterano condecorado, ex-vice-diretor do Centro 4400, e pai da infame Isabelle Tyler… Seu testemunho tem grande peso. Posso praticamente ver as manchetes agora. Richard também podia. Ele cuspiria em Ryland, se sua boca não estivesse tão seca. — Que pena que não haverá confissão. — E u n ã o estaria t ã o certo disso — Ryland virou-se par a u m d e seus aliados, uma adolescente anoréxica d e cabelos brancos espetados, pele pálida, e uma expressão suave e neutra. Olhos azuis gélidos observavam Richard com frieza clínica. U m a pesada jaqueta parecia desconfortavelmente quente, mesmo para a cela úmida. Luvas volumosas escondiam suas mãos. Sua respiração se condensava no ar. Ryland se afastou para deixar a garota passar. — Astrid, eu acho que você precisa aplicar um pouco mais de persuasão. O medo contorceu o rosto de Richard. Ele já havia estado várias vezes, anteriormente, sob os poderes da menina. Ryland escarnecia em antecipação. Apesar de sua profunda antipatia pelos 4400, o ex-figurão da NTAC não descartava o uso d e técnicas aprimoradas par a levar adiante s u a cruzada. Richard forçou inutilmente seus grilhões. — Não, de novo não… Astrid parecia surda aos apelos dele. Ela se inclinou para encarar Richard de perto. Respirou fundo, enchendo seus pulmões com o ar abafado da cela. Richard s e preparou p a r a u m martírio bastante familiar, q u e sobreveio a e l e com velocidade impiedosa. Ela soprou no rosto de Richard, seu hálito como um vento ártico. A friagem correu por todo o corpo d e Richard, revestindo suas roupas e sua pele com uma fina e gélida camada branca. Ele tremia descontroladamente, na iminência de uma hipotermia. Seus dentes batiam como castanholas, não importando o quanto ele se esforçasse para travar suas mandíbulas. Seus lábios se tornaram azuis. Seu hálito se condensava no ar. Uma queimadura de gelo ameaçava a ponta de seu nariz. Ele não havia sentido tanto frio desde a última vez em que ela o torturara. Ryland levantou a mão. — Já chega. Astrid sugou a amarga tormenta para dentro de seus pulmões. Ela se afastou da cadeira em silêncio. O gelo s e retraiu instantaneamente, evaporando pelo ar. Em segundos, Richard não estava mais congelando, mas continuava tremendo. Arrepios cobriam sua pele. Cada sessão com Astrid o deixava mais gelado do que a anterior. Era impossível se aquecer de novo.


Ryland não lhe deu tempo para se recuperar. — Agora, então — ele disse rispidamente, abandonando qualquer fingimento de simpatia. — Me conte como Jordan Collier pretende transformar a promicina em arma. ********************* Maia acordou tremendo. Aconchegando-se entre os lençóis, ela se abraçou para se aquecer. O sonho horroroso colara-se a ela como uma fina camada de gelo. Ela pegou seu celular. Jordan precisava saber disso, sem demora!


TREZE Kyle fechou e trancou a porta de seu escritório. Sentindo-se culpado, ele arrastou-se até sua mesa e sentou-se em frente ao computador. Eram sete da manhã, e a maioria da Fundação Collier ainda estava dormindo, mas, mesmo assim, ele não queria que alguém entrasse enquanto pesquisava sobre Bernard Grayson, só para tirar a pulga de trás da orelha. O próprio escritório de Jordan era apenas duas salas ao lado. Kyle ficara aliviado ao ver que Jordan ainda não estava acordado, embora ele ficasse dizendo a si mesmo que não estava fazendo nada de errado. Só preciso de mais um pouco de informação, pensou. Antes que eu possa tomar qualquer tipo de decisão. A Fundação mantinha um banco de dados secreto de cada positivo no Movimento. Equipes d e gênios d e computadores protegiam a rede interna contra hackers do governo e outras ameaças à segurança. Somente os mais altos escalões do Movimento tinham acesso completo ao banco de dados. Kyle era um membro dessa elite. Para ver os arquivos, tudo o que ele tinha que fazer era digitar sua senha. SHAMAN, digitou ele. O banco de dados apareceu na tela. — Não faça isso, Kyle — disse Cassie. Ele nem ao menos pulou quando ela apareceu repentinamente às suas costas. Nessa altura, já se acostumara com ela se materializando do nada. Ele suspirou, resignado. Nenhuma porta ou tranca podia manter Cassie longe quando ela tinha algo a dizer. — Só quero dar uma olhada — ele disse. — Isso não quer dizer que vou informar algo à NTAC ou ao meu pai. — Ele manteve o olhar na tela à sua frente. — De qualquer modo, não há o que contar mesmo. Só preciso ter certeza disso. Ela se curvou sobre o ombro dele. — Eu sou sua habilidade, Kyle. Sou eu quem te conta o que precisa saber. — Ah, é? — Ele girou na cadeira para encará-la. — Então me fale sobre esse Grayson. E onde está o corpo de Danny. Ela balançou a cabeça. — Não é assim que funciona. É sobre o que você precisa saber para cumprir seu destino. Não o que você quer saber. — Talvez você não saiba tudo o que eu preciso. Ela sentou-se em seu colo e enrolou os braços em volta de seu pescoço. — Não é isso que pensava ontem a noite. — Ela vestia um vestido baby-doll por cima de


uma calça legging violeta. Um sorriso malicioso surgiu e m seu rosto. — Então, a porta está trancada, certo? Ele percebeu o que ela estava tentando fazer. — Sinto muito, não vai funcionar desta vez. Ele a tirou do seu colo e voltou-se para o computador. Seus dedos tocaram o teclado, digitando GRAYSON, BERNARD n o banco d e dados. O agente funerário fugitivo estava listado como positivo à promicina, apoiador d o Movimento, tendo aparentemente visto a luz depois d o Grande Salto Adiante. Seu arquivo, no entanto, estava surpreendentemente vazio, listando apenas a sua idade, informações para contatos, número de Segurança Social, e alguns outros detalhes irrelevantes. Nem mesmo sua habilidade 4400 estava listada. — Mas que droga é essa? — Esquece isso — insistiu Cassie. Ela caminhava de um lado para o outro atrás dele. — Não percebe que seu pai está te usando? — Talvez — respondeu ele. — Mas s e não temos o que esconder, qual o problema em fuçar um pouquinho? Examinando o arquivo mais cautelosamente, ele notou que Grayson estava listado como “financiador beneficente”. Ele clicou numa barra onde estava escrito CONTRIBUIÇÕES e descobriu que o diretor desaparecido da funerária doara mais de $150, 000 para algo chamado “Comitê de Incentivo Global”. O q u ê ? O n o m e n ã o significava n a d a p a r a e l e . Pensei q u e soubesse tudo sobre as iniciativas de Jordan. Ele olhou para cima para Cassie. — Você sabe algo sobre isso? Ela o lançou um olhar de desprezo. — Você se importa com o que eu penso? — Ela jogou-se em um sofá num canto. Cruzou os braços desafiadoramente sobre o peito. — Não espere que eu faça o trabalhinho sujo do seu pai. Kyle percebeu que isso não terminaria tão cedo. Nada como uma mulher furiosa… — Certo — disse ele. — Eu mesmo cuido disso. Mei a hor a d e pesquisas n o computador d a Fundação levantou pequenas informações frustrantes sobre o Comitê de Incentivo Global. Kyle nunca dera muita atenção ás finanças do Movimento, mas agora ele s e via fuçando e m orçamentos tentando descobrir para o q u e a doação extremamente generosa d e Bernard Grayson fora usada. Siga o dinheiro, disse a si mesmo, assim como dizem nos filmes. Ele franziu o s olhos quando u m borrão atordoante de débitos e créditos rolou pela tela. Jordan gostava de dizer que o dinheiro logo seria obsoleto, que milagres seriam a moeda do bravo mundo que ele estava criando, mas Kyle estava surpreso em ver o quanto de dinheiro era requerido para manter a Terra Prometida funcionando nesse meio tempo.


Finalmente, bem quando estava pensando em desistir, encontrou um depósito de quase um milhão de dólares em uma conta identificada somente como “Fundo Operante CIG”. CIG como e Comitê de Incentivo Global? Tem que ser, ele pensou. M a s quando e l e tentou abrir m a i s detalhes sobre o fundo, o computador apitou em protesto. Uma caixa de mensagem cinza sinistra apareceu na tela: “ACESSO NEGADO” — Está d e brincadeira! — Ele era a mão direita d e Collier, nunca fora bloqueado antes. Impacientemente, digitou sua senha novamente. “ACESSO NEGADO” — Merda! — Ele deu um soco na palma da mão. Isso só estava ficando mais frustrante e preocupante no momento. O que tem de tão secreto nesse comitê? — Com problemas, amorzinho? — Cassie esnobou do outro lado da sala. Ela s e divertia rabiscando num bloco d e folhas. Quando Kyle a encontrara pela primeira vez, ela se mostrara uma estudante de arte tagarela antes de revelar sua verdadeira natureza. — Talvez devesse deixar isso para lá. — Só porque você quer. — Ele iria até o fim se precisasse, só para provar que as acusações de seu pai contra Jordan eram absurdas. Uma ideia lhe ocorreu. Se o seu computador não conseguia descobrir tudo, talvez ele devesse tentar uma aproximação mais humana. Ele pegou o telefone e discou uma extensão familiar. Alerta com sua ação, Cassie abaixou o bloco e o olhou suspeitosamente. Seus olhos se estreitaram. — O que está fazendo, Kyle? Você é a guia espiritual, ele pensou. Descubra. — Oi, Irene — disse ele, assim que a pessoa do outro lado da linha atendeu ao telefone. — É o Kyle. Tem um minuto? Irene Henkel era uma dos 4400 originais. Uma vez fora nata dos anos 1960, que dizia ter dançado para Jim Morrison e Jimi Hendrix. Ela voltara do futuro com uma memória fotográfica com relação a dólares e centavos. Irene agora era o cérebro do departamento de contas da Fundação. Ela era a pessoa a ligar se você tivesse um problema com um alto reembolso. Kyle esperava que isso se aplicasse ao Comitê de Incentivo Global também. — Para você, amorzinho, a qualquer momento. — Seu sotaque arrastado entregava suas raízes da Linha Mason-Dixon11. — Como posso ajudá-lo? — Não é muita coisa. — Ele fez o melhor para manter seu tom calmo e gentil, enquanto Cassie o fuzilava com os olhos do sofá. — O Jordan pediu para que eu revisasse os registros, e receio que esqueci para quê foi usado um desembolso. Talvez você pudesse refrescar minha memória.


— Você? Revisando os registros? — Sua expressão incrédula era audível. — Minha Nossa, o que aquele homem está pensando? Ele não sabe você não consegue nem ao menos preencher um pedido de dinheiro corretamente? — Me deve ume bebida, pelo menos, e eu vou cobrar qualquer dia desses. Embora ainda não tenha encontrado nada tão bom como aquele vinho de dente-de-leão que tomei em Woodstock12, antes daquela bola de luz me levar. — Um tom melancólico sugeria que a abdução repentina ainda cutucava o s dias passados de Força das Flores e colares Love beads13 — Não suma, queridinho. — De jeito nenhum — prometeu ele. Quando desligou o telefone, sentiu uma pontada de culpa por se aproveitar da confiança e cortesia de Irene, mas ao menos ela s e provara mais cooperativa d o que seu computador recalcitrante. Ele estava finalmente chegando a algum lugar. Ainda assim, um centro de plasma? Um daqueles lugares onde bêbados e estudantes de faculdade vendiam o sangue para uma graninha extra? Kyle se lembrava de ter visto um desses estabelecimentos no centro da cidade e na U District14, mas isso fora antes do Grande Passo Adiante. Desde que acontecera a praga, o Ministério d a Saúde banira cidadãos d e Seattle d e doarem sangue ou plasma p o r medo de contaminação de promicina. A Terra Prometida era o novo Haiti. Até onde ele sabia, todos os bancos de sangue e centros de plasma da cidade haviam parado d e funcionar. Então por que esse Comitê de Incentivo Global quereria comprar uma dessas propriedades? E o que, afinal de contas, Bernard Grayson tinha a ver com aquilo? Algo não cheira bem aqui, ele pensou. Por que se esforçar tanto para encobrir uma transação de bens rotineira? Um agente funerário renegado. Um centro de plasma fechado. O corpo de Danny… 11 N. do T.: Uma linha que divide o Norte e o Sul dos EUA, formando uma demarcação nas fronteiras de Pennsylvania, Maryland, Delaware e Virgínia do Norte. 12 O Woodstock Music & Art Fair foi um festival de música anunciado como “Uma Exposição Aquariana: Dias de Paz & Música” , na cidade estado de Nova York. Foi realizado entre os dias 15 de agosto e 18 de agosto de 1969. 13 N. do T.: Flower Power (Força das Flores) foi um slogan usado pelos hippies dos anos 60 até o começo dos anos 70 como um símbolo da ideologia d a não-violência e d e repúdio à Guerra do Vietnã. Love beads são colares tradicionais de hippies, geralmente feitos à mão. 14 N. do T.: O University District (comumente conhecido como U District) é um bairro em Seattle, assim chamado porque o campus principal da Universidade de Washingtom (UW) está localizado ali. Kyle tentou juntar as peças, mas tudo o que conseguiu foi uma bagunça. Ele olhou friamente para o telefone na sua mão. Devo ligar para o meu pai? Avisá-


lo do que descobri até agora? Ele ainda estava bravo com seu pai por tê-lo abordado no jantar, mas e se esse sujeito Grayson fosse mesmo um pilantra? E o quanto Jordan sabia sobre esse Comitê de Incentivo Global? Por que era tão difícil descobrir para que isso servia? Por que era tão na surdina? Eu quero mesmo saber? Ele afundou-se na cadeira, seus braços pendurados na direção do chão. O celular parecia pesar uma tonelada. — Me escute — disse Cassie. Seus dedos quentes se entrelaçaram em sua mão, escondendo o telefone em seu aperto firme. — Lembra-se de como você ficou bravo com o Shawn quando ele se virou contra o Jordan? Você não quer fazer o mesmo erro. A NTAC é o inimigo. Não pode contar nada disso a eles. — Mas o meu pai… — A indecisão torturava Kyle. — Ele é uma cara do bem Cassie. Só quer fazer a coisa certa. — S e i q u e é . — E l a adotou u m t o m m ai s conciliatório. — M a s e l e n ã o v ê o mais importante, não como nós vemos. Ele ainda está pensando como u m agente da NTAC, não como u m visionário. Ou u m shaman. — Ela apertou a mão dele. — Confie em mim, Kyle. Lembre-se quão longe já fomos juntos. Ela tem razão, ele admitiu. Cassie nunca s e enganara antes. Ela o contara como acordar Shawn de um coma, o guiara até as profecias da Luz Branca, o convencera a se juntar à cruzada de Jordan, até mesmo trouxera Isabelle à sua vida, mesmo que brevemente. E se ela também estivesse certa quanto a isso? Ele não tinha nada a não ser perguntas. Ela tinha as respostas. — Tem que ficar de boca fechada, Kyle. — Não vou contar a ele se você não contar. — Ele secou as sobrancelhas, feliz que Irene não percebesse como ele estava zangado. Sues dedos batiam nervosamente contra a mesa. — De qualquer modo, sobre esse gasto… — Vá em frente — ela o encorajou. — Me fale os detalhes. Cassie caminhou pela sala até ficar diante de seus olhos. Inflamáveis olhos esmeraldas sugeriam que provavelmente ele dormiria sozinho essa noite. Parecia que ela queria arrancar o telefone de sua mão e arremessá-lo contra a parede, mas, como não era real, isso não era uma opção. — Está cometendo um grande erro, Kyle. Ele piscou para a tela a sua frente. — Certo, é u m pagamento d e nove m i l dólares, m ai s alteração, efetuado em dez de


dezembro. — Ele respirou fundo antes de fingir que sabia exatamente o que estava falando. — Foi depositado para o Comitê de Incentivo Global. Irene nem precisou checar seus registros. — Ah, sim. Esse aí. — Para seu alívio, sua menção sobre o misterioso comitê pareceu não levantar nenhuma barreira. Ela parecia ter presumido que ele estava familiarizado c o m a operação. — Foi um investimento para um terreno no centro da cidade. Um centro de plasma abandonado. Acho que fica perto da antiga estação Greyhound. — Verdade! — mentiu ele. — Agora me lembro. — Ele decidiu desligar o telefone antes que acabasse se entregando. — Valeu mesmo, Irene. Te devo uma.


QUATORZE O apartamento de Marco era bem parecido com o que Meghan imaginara. Pôsteres d e filmes cultuados d e ficção científica e d e monstros estavam pregados nas paredes d o sobrado d o antigo imóvel industrial. U m curto lance d e escadas descia para um aglomerado d e mesas d e trabalho e cabines d e gravação. Ela correu os olhos pelos títulos estranhos e pelas cores fantasmagóricas dos pôsteres. Plano Nove do Espaço Sideral. A Coisa que não Deveria Morrer. Feixes de raio laser saíam dos olhos multiarticulados dos robôs gigantes. O monstro Frankenstein lutando contra um dinossauro. Cada qual com seu gosto, ela pensou. Ela preferia filmes estrangeiros. Marco pegou o casaco dela quando entraram no apartamento. — Tá legal — ela reclamou, impacientemente. Havia pilhas de relatórios orçamentários e papéis de avaliações de crise esperando por ela no quartel-general da NTAC. Normalmente ela almoçaria n o próprio gabinete, m a s Marco havia insistido e m q u e , a o i nvés disso, ela caminhasse até a casa dele. — O que é tão importante que nós não podemos discutir na Sala de Teorias ou no meu gabinete? — Você vai ver — o tom e a expressão séria dele deixaram claro que não havia chamado ela ali para jogar Playstation. — Por aqui – disse ele, guiando-a pelas escadas para o piso principal do apartamento. Não havia paredes separando o quarto do escritório e da sala de estar. Grandes tapetes se esparramavam pelo piso de cerâmica esverdeada. Globos dependurados iluminavam o apartamento. Cortinas cobriam as janelas. — Os outros já estão aqui. Outros? Ela ficou surpresa ao encontrar Maia Skouris, Tess Doerner e ambos os Jed Garritys esperando n a sala d e estar. Os quatro visitantes pareciam tensos e desconfortáveis. Gravatas azul e vermelha diferenciavam os dois Garritys, que eram completamente idênticos. O agente Garri t y, q u e j á f o r a u m h o m e m só, duplicara a si próprio após sobreviver ao cinquenta/cinquenta. Agora, duas versões do mesmo homem caucasiano d e cabelos escuros estavam sentadas em pontas opostas de um sofá de couro preto. Ambos ostentavam o mesmo e habitual semblante entediado. Nem mesmo os cientistas mais experientes da NTAC tinham sido capazes de determinar qual deles era o original e qual era a cópia. Não era comum ver os dois Garritys no mesmo lugar ou ao mesmo tempo. De um modo geral, eles tendiam a evitar u m a o outro, trabalhando e m turnos diferentes, para poderem dividir o mesmo apartamento e a mesma baia no trabalho, dos quais nenhum deles parecia querer abrir mão em favor do outro. As gravatas diferentes eram uma concessão para não confundir os colegas. — Olá, chefe. — Jed Vermelho a cumprimentou, mal-humorado.


— Que bom que você pôde vir — acrescentou Jed Azul. Ainda mais estarrecedoras eram as presenças de Tess Doerner e Maia. Meghan nunca havia encontrado a primeira pessoalmente, mas conhecia a reputação da controladora de mentes. Tentou não demonstrar sua ansiedade, mas mesmo assim u m frio percorreu sua espinha. A jovem de cabelos escuros espreitava ameaçadoramente de seu canto, observando o s outros com uma expressão d e cautela. Em tese, ela não era mais insana, mas sua lealdade permanecia sob suspeita; e m várias ocasiões, ela e Kevin Burkhoff estiveram associados tanto com o Centro dos 4400 quanto com o Movimento de Collier. Teria Tess obrigado Marco a marcar aquela reunião nãooficial? E o que Maia estava fazendo ali? Ela não deveria estar na escola? Meghan se colocou protetoramente entre a adolescente e Tess. — Sua mãe sabe que você está aqui? — perguntou. — Na verdade, não — respondeu a garota, acanhada. — Você não vai contar a ela, vai? Pelo menos ela não parecia estar sob o controle de Tess. — Depende. — Meghan voltou-se para o anfitrião. – Desembuche, Marco. Por que você nos convidou para vir aqui? — Não foi ele – uma voz áspera entrou em cena. Jordan Collier adentrou a sala através de uma porta dupla do tipo industrial. — Fui eu. Os olhos de Meghan se arregalaram. Xingou a si própria por não ter trazido uma arma, mesmo ela sendo apenas uma servidora administrativa, não uma agente de campo. Ela olhou de relance para os Garritys para se assegurar de que teria cobertura, caso precisasse. Os onipresentes guarda-costas de Collier não estavam à vista, mas Meghan duvidava de que eles estivessem muito longe. Talvez até na sala ao lado. — Jordan me pediu que arranjasse esta reunião — explicou Marco. — Ele apresentou um caso irrecusável. — Foi mesmo? – Meghan perguntou, amargamente. Houvera um tempo, apenas dois meses atrás, em que capturar Collier tinha sido a prioridade número um da NTAC. Mas isto foi antes de ele tornar-se o comandante de Seattle de fato. Prendê-lo não era mais uma opção válida. — Por favor, sente-se, Srta. Doyle — Collier disse, indicando uma poltrona de veludo em frente ao sofá. Uma toalha de praia do Darth Vader estava estendida sobre o encosto dela. O c h ã o pedia u m aspirador. — N ã o h á motivo p a r a se alarmar. Eu só quero conversar, extraoficialmente. Meghan decidiu fazer o jogo dele. Ela sentou-se. — Conversar sobre o quê?


— Francamente, e u preciso d a sua ajuda — ele encarou a eclética assistência d e 4400 e funcionários da NTAC. Seu austero sobretudo comprido e preto lhe conferia o ar de um pastor falando para uma congregação desconfiada. — Vocês estão sabendo que Richard Tyler foi capturado novamente? O quê? A notícia inesperada veio como um choque tão grande que não dava para manter a expressão impassível. Tyler tinha estado no topo da lista dos mais procurados pela Interpol desde q u e testemunhas oculares haviam-no ligado ao assassinato d o Cardeal Calábria, em Roma. Se ele havia sido capturado pelas autoridades, ela deveria ter sido avisada. — Não — ela admitiu. — Por quem? — Dennis Ryland. Haspelcorp. Possivelmente em conluio com os Marcados — o desprezo transparecia na voz de Collier. — Eu tenho motivos para acreditar que ele está sendo mantido agora e m u m a prisão secreta, comandada pela Haspelcorp. Sem dúvida, com a aprovação tácita do governo federal. — Interessante — disse Meghan, cautelosamente. Não era segredo que os federais tinham contratado a Haspelcorp para lidar com o caso dos 4400. A NTAC e a companhia j á haviam batido cabeça sobre questões de segurança nacional. Dennis Ryland tinha ocupado o cargo de Meghan antes d e s e mudar para o setor privado. — Mas, mesmo que seja verdade, por que nós, aqui? Qual é o objetivo desta reunião? — É simples — ele sorriu ironicamente. – Vocês têm que ajudá-lo a escapar da prisão. O queixo de Meghan caiu. — Como é que é? – ela estava embasbacada com a audácia do homem. Mesmo para um pretenso messias, aquilo era demais. — Você deve estar brincando! — Estou falando sério – ele caminhou até Maia e pousou a mão no ombro da menina. — Uma fonte confiável, que por acaso é a nossa extraordinária Maia Skouris, me informou que Ryland está tentando forçar Tyler a prestar o depoimento falso de que eu estou transformando a promicina em um tipo de arma de destruição em massa. Esta é exatamente a desculpa de que os meus inimigos, incluindo os Marcados, precisam para iniciar um ataque à Terra Prometida — seu sorriso f o i desaparecendo, conforme e l e pintava o cenário d o q u e aquilo poderia acarretar. — Uma invasão armada, ataques aéreos, talvez até armas nucleares. Nó s , é claro, seremos obrigados a retaliar. A per da potencial d e vi das poderá ser verdadeiramente grande — ele passou o olhar pelo grupo. — Nenhum de nós quer isto. Meu Deus, pensou Meghan, apavorada com o que acabara d e ouvir. Ela gostaria de poder descartar a previsão de Collier, como se fosse mero terrorismo, mas, infelizmente, aquele não era, nem de longe, o caso. Como diretora da NTAC, ela tinha sido alertada d e que cenários similares já haviam sido cogitados, com graus bastante variados de entusiasmo, nos corredores do poder. Collier tinha traçado uma linha na areia, quando demarcara a Terra Prometida. O cinquenta/cinquenta tinha agravado a questão, deixando-a à beira de um colapso. Se houvessem evidências tangíveis – como, por exemplo, uma confissão, de parte de


algum terrorista 4400 conhecido, gravada em vídeo -, de que uma epidemia ainda maior estava para acontecer, tudo iria se modificar. — Isto é verdade? — ela perguntou a Maia. A garota concordou seriamente com a cabeça. Ela falou com uma gravidade incomum à sua idade. — Eu vi, Srta. Doyle. Eles vão forçá-lo a mentir sobre Jordan. Meghan sabia que não deveria desprezar as visões de Maia. Mesmo assim, ela ainda não estava pronta para embarcar na canoa de Collier. — Se é tão importante, por que você mesmo não resgata Tyler? Você o ajudou a escapar da primeira vez. — Ac h o q u e v o c ê e s t á trabalhando c o m conceitos equivocados — ele respondeu, rechaçando a acusação dela. — Eu não tive nada a ver com qualquer das atividades recentes de Richard. Eu tenho apenas interesses menores nesta situação crítica. — A-ham, tá legal — os Garritys debocharam, em uníssono. Meghan também não acreditava nele. Jordan ignorou o ceticismo deles. — D e qualquer forma, parece que o s comparsas d e Richard o u estão mortos ou foram capturados. E eu não tenho recursos para montar imediatamente a minha própria missão de resgate. Além disso, também suspeito de que os agentes de Ryland estão vigiando a mim e ao meu povo bem de perto, no momento, eliminando o elemento surpresa. Finalmente, e talvez o mais importante — ele admitiu —, eu não faço ideia de onde eles o prenderam. Acho que há limites para as visões de Maia, pensou Meghan. — E você acha que nós podemos achá-lo para você? — E u tenho uma f é considerável nos seus recursos 2014x respondeu Collier. – Nã o se esqueça d e que n ó s fomos b e m sucedidos trabalhando juntos antes. Como na vez em que estávamos todos presos naquele jogo de ilusões. Meghan lembrava-se do incidente. P.J. Devine, u m p-positivo que era membro d a equipe da Sala de Teorias de Marco, tinha tentado ligar as fronteiras entre a NTAC e o Movimento de Collier, prendendo pessoas-chave de ambos os lados em uma construção física que imitava o quartel-general d a NTAC. Meghan jamais iria s e esquecer d a experiência, considerando que ela chegara a “morrer” naquela realidade virtual. Graças a Deus, Collier e Tom tinham conseguido descobrir como levar todos de volta para o mundo real! Falando em Tom, ela soube tarde demais que ele e Diana estavam desaparecidos desde sua paradinha para um café. Até onde ela sabia, eles tinham estado entrevistando o s parentes e associados de Bernard Grayson, mas parecia estranho que eles não houvessem sido incluídos naquele grupo. Os dois tinham mais experiência com Tyler do que qualquer um naquela sala.


Ela lançou um olhar inquiridor para Marco. — Onde estão Baldwin e Skouris? — S ó positivos — disse Collier — , p o r minha insistência. S e m querer ofender seus distintos colegas, m a s isto é algo c o m q u e aqueles d e nós, q u e o destino abençoou com habilidades, lidamos melhor — de pé, atrás do sofá, ele sorria com bondade para Maia. — E, em respeito à jovem Maia, eu não quero colocar em risco a vida ou a carreira de sua mãe. — Ao contrário das de todos nós? — resmungou Jed Azul. — Vocês todos são positivos – respondeu Collier, carrancudo, como se meio aborrecido por eles ainda não terem passado para o seu lado. — Vocês têm mais a perder do que ninguém, se Ryland e os Marcados provocarem uma guerra generalizada entre positivos e negativos. Vocês deveriam estar ansiosos por aceitar esta missão vital. — Desculpe-nos s e n ã o n o s empolgamos c o m a perspectiva d e cometer traição — respondeu Meghan, secamente. E l a imaginava quanto Collier sabia exatamente sobre as respectivas habilidades deles, incluindo a sua própria; aquilo estava longe do conhecimento público. Embora fosse verdade que o fato de haver agora dois Garritys era difícil de se esconder, Marco e ela praticamente não tinham divulgado suas novas habilidades. Será que ele faz alguma idéia do que nós realmente podemos fazer? Pensando bem, ele havia, d e alguma forma, descoberto a habilidade de April. Meghan lembrava-se da preocupação de Tom sobre haver um espião na NTAC. Seria possível que um dos outros positivos d a NTAC estivesse passando informações para Collier? Ela não queria achar que Marco ou os Garritys pudessem ser os informantes, mas era possível que o fato de terem s e tornado p-positivos talvez mudasse seu modo de ver o Movimento. Enquanto ela avaliava furtivamente seus colegas, reparou que outro positivo estava claramente ausente. — Não estou vendo Abigail Hunnicut aqui — observou. — Estava tudo por minha conta — confessou Marco. – A habilidade dela não serviria exatamente para uma missão de resgate, então por que envolvê-la? — ele corou levemente; Meghan suspeitava d e que ele tivesse uma quedinha pela loira genial. — Ela ficará melhor sem saber de nada disto. Isto é provavelmente verdade, Meghan considerou. A habilidade de ler o DNA d e alguém não iria ajudar ninguém a ser resgatado d a prisão. E ela não poderia culpar Marco por ser protetor demais em relação ao último sobrevivente de sua equipe. Ele havia perdido dois de seus companheiros intelectuais no último ano. P.J. estava atualmente cumprindo prisão perpétua por ter se voluntariado a tomar promicina. Brady Wingate havia morrido durante o cinquenta/cinquenta… — Você realmente acha que nós devemos fazer isto? — ela perguntou a Marco, em tom de dúvida. — Richard Tyler é suspeito de terrorismo e assassinato. Ele ajudou a assassinar um homem em Roma há apenas alguns dias. — Não foi qualquer homem — Collier a corrigiu. — U m membro dos Marcados. Não


insulte minha inteligência, fingindo q u e você n ã o sabia da verdadeira natureza dele. Se Richard Tyler esteve envolvido nesse suposto assassinato, então foi puramente em defesa de seu povo e do futuro — seus olhos escuros se espremeram, enquanto ele desafiava Meghan. — Ou você acha certo tudo o que os Marcados têm feito, e irão continuar a fazer, a não ser que alguém os impeça? — É claro que não! — Meghan s e alterou, deixando u m resquício de emoção trair sua discrição profissional. Ela não era amiga d o s Marcados, especialmente depois d o q u e eles fizeram To m passar. Descobrir q u e s e u amante tinha si do possuído p o r u m a inteligência criminosa d o futuro fora u m dos piores momentos de sua vida. Sua pele ainda se arrepiava sempre que ela se lembrava de como tinha feito amor com o falso Tom. — Mas isto não justifica um assassinato a sangue frio. — Não? — perguntou Collier. — Mesmo quando o s Marcados mataram a única filha de Tyler? — sua voz tinha um tom distintamente acusador. — Olhe nos meus olhos e me diga que Emanuel Calábria iria um dia pagar por seus crimes. Meghan se achou sem resposta. — Esta não é a questão — ela respondeu, a voz fraca. — Por favor, parem de discutir! — interrompeu Maia. Ela apelava em nome de Richard Tyler. — Vocês têm que me ouvir. O Sr. Tyler é u m homem bom. Ele nos salvou a todos de sua filha, anos atrás. Ele não merece o que irão fazer com ele. Ninguém merece. A intensidade comovente d a súplica d a garota fez com que Meghan parasse. Ela nunca havia s e encontrado com Tyler pessoalmente; ele j á estava foragido quando ela assumira as operações da NTAC no noroeste. Mas Tom e Diana haviam expressado compaixão pelo homem e m vários momentos, assim como Shawn Farrell e várias pessoas do Centro 4400. Tyler havia perdido tanto a mulher quanto a filha para a s maquinações d o futuro. Talvez ele realmente fosse mais vítima do que algoz. — Eles vão torturá-lo — previu Maia — , s e j á não o tiverem feito. Vocês têm que fazer alguma coisa. Vocês têm. Meghan suspirou, genuinamente confusa. Liberar Tyler d a Haspelcorp estava fora de sua jurisdição, mas ela nunca fora de andar completamente na linha. S e havia u m a coisa q u e aprendera durante s u a gestão n a NTAC, e r a q u e as questões envolvendo os 4400 raramente eram convencionais. Shawn tinha provado isso a ela quando curou seu pai da doença de Huntington. Talvez fosse hora novamente de que ela quebrasse as regras em nome de um bem maior. Ela olhou para Marco e para os Garritys, procurando apoio. — Eu não sei. O que vocês acham? — Vamos nessa — disse Jed Azul. — Ou não — discordou Jed Vermelho. Eles olharam u m para o outro com nojo, anulando o s votos, como de costume. Meghan


suspeitava de que os pares habitualmente contradissessem seus gêmeos para provar que eles ainda eram pessoas diferentes. Ambos também teimavam em afirmar ser o Garrity original. — Marco? — ela insistiu, em desespero. Marco encolheu os ombros. — Para dizer a verdade, eu estou inclinado a confiar em Maia. Se pudermos impedir uma guerra, que outra escolha nós temos? — Você já se deu conta — ela esclareceu — de que se alguém descobrir sobre isto, todas as nossas carreiras vão por água abaixo? Sem mencionar a nossa liberdade. O governo não iria ver com bons olhos o s funcionários d a NTAC que conspirassem para liberar da custódia um terrorista procurado. Eles teriam sorte em não pegarem prisão perpétua. — Talvez não – disse Tess. No calor do debate, Meghan quase havia se esquecido de que a jovem introvertida estava presente. — Se formos pegos, vocês podem alegar que eu os obriguei a tomar parte na missão. E se nós nos recusarmos? pensou Meghan. Haveria uma ameaça implícita naquela proposta? — Vocês têm que ir — disse Maia. A jovem vidente jogou sua última carta. — Eu vi vocês. Meghan se perguntou se ela estaria falando a verdade. ************* — Bem, isto foi uma perda de tempo — disse Tom. El e e Diana estavam voltando d e Bellingham, duas milhas a o norte de Seattle, onde finalmente h a v i a m conseguido encontrar a esqui va ex-esposa de Grayson, Michelle. Infelizmente, a ex-Sra. Grayson, q u e h a v i a deixado o marido quatro a n o s a n t e s do cinquenta/cinquenta, parecia s a b e r q u a s e n a d a s o b r e as atividades recentes do agente funerário. Ela não sabia e nem ligava para onde ele poderia estar escondido n o momento, embora tenha tentado negociar com os agentes um par de buldogues com pedigree. Felizmente eles haviam partido sem nenhum filhote. — Valeu a tentativa, eu acho. — Diana carregava uma escopeta no banco do carona, ao lado de Tom. A Interestadual 5 se estendia diante deles. Montanhas de sempre-vivas floresciam e s e derramavam a o longo d a estrada. — Você acha que e l a estava dizendo a verdade, que não tem estado em contato com Grayson desde o divórcio? — Infelizmente, sim – Tom tentava se lembrar da última vez em que ele havia falado com sua ex. O casamento deles não sobrevivera aos três anos de coma de Kyle. Linda havia se mudado para Spokane havia alguns anos. Diana não discutiu a avaliação dele sobre a veracidade de Michelle. — Então, a que isto nos leva?


— Quem me dera saber — desde que tinham perdido Grayson na agência funerária, eles não haviam conseguido nada de concreto. Grayson não tinha filhos e nenhum conhecido significativo. Uma busca e m sua residência, n o segundo andar da agência, havia levantado apenas u m a grande quantidade d e literatura utópica sobre o s 4400. S e u caderninho de telefones e o computador pessoal continham apenas uma longa lista d e conhecidos casuais e contatos profissionais. Antes do cinquenta/cinquenta, Grayson parecia ter sido um profissional sério e trabalhador, que dedicava a maior parte de sua energia e de seu tempo a seus negócios. Ele não tinha ficha criminal, nem residências secundárias. Nenhum dos guardas dos postos de vistoria de fronteira tinha relatado tê-lo visto. Sua foto havia sido exposta em todas as saídas conhecidas da Terra Prometida. Tom contemplou a rodovia à sua frente. Eles tinham um longo caminho de volta para Seattle, e e l e n ã o estava animado e m t e r q u e lidar c o m todas as vistorias e barreiras novamente. Seriam mais ou menos três até chegarem ao quartel-general. Imaginava se valia a pena retornar para o escritório. Talvez devêssemos encerrar o expediente por hoje. Um cartaz à beira da rodovia os avisou sobre um restaurante logo à frente. Um estômago vazio o lembrou de que eles ainda não haviam almoçado. Uma xícara de café fresco e um sanduíche de peru pareciam perfeitos agora. — Você quer dar uma parada para fazer um lanche? — Pode ser — concordou Diana. — Não temos que sair correndo para lugar nenhum agora. Triste, mas verdadeiro, pensou Tom. Ele pegou a pista da direita e ligou a seta. A saída estava a apenas uma milha quando seu telefone tocou inesperadamente. Sem tirar os olhos da estrada, ele pescou o celular do bolso de sua jaqueta. Colocou-o na orelha. — Alô? Aqui é Baldwin. — Oi, pai. Sou eu, Kyle. O coração de Tom deu um salto ao som da voz do filho. — Kyle! — ele havia deixado várias mensagens na secretária eletrônica do filho, depois daquele desentendimento na hora do jantar do dia anterior, mas aquela era a primeira vez que eles se falavam diretamente desde a discussão. Ele esperava que aquilo significasse que Kyle ainda estivesse falando c o m e l e . — Obrigado por retornar minha ligação. Obrigado de verdade. — Sim, claro — ele parecia tenso e desconfortável. — Você tem um segundo, pai? Aquele obviamente não era um telefonema social. — Claro. O que foi? — É sobre aquele cara, o Grayson, sobre quem você me perguntou… — Sim? — Tom perguntou, apreensivo. Seu filho estaria aborrecido com aquilo? — Olha, Kyle, eu não estou contente com o rumo que as coisas tomaram ontem à noite. Você tem que saber que eu nunca quis fazer algo que pudesse nos afastar.


E r a est ranho t e r a q u e l a conversa b e m n a f r e n t e d e Di a n a , m a s sua parceira providencialmente fingia rever o dossiê de Grayson. Ela manteve o olhar na pasta em seu colo. Tom gostou da discrição dela. — Eu sei, pai — Kyle mantinha sua voz baixa, quase com se ele estivesse com medo de que alguém pudesse escutar. — Aí é que está. Eu pesquisei sobre Grayson para você e achei algo estranho. Provavelmente não é nada, mas… — a voz dele foi sumindo. Ele resmungou qualquer coisa com voz abafada. — Me deixe em paz, ouviu? Eu sei o que estou fazendo. — O q u e é isso, Kyle? — To m n ã o estava entendendo. Será q u e e u falei algo que o ofendeu? — Nada, pai. Não era com você — ele parecia envergonhado pela explosão. — Eu estava falando comigo mesmo, ou algo assim. Tom teve a impressão de que seu filho não estava falando toda a verdade. Tem alguém lá com ele? — Você está sozinho? — ele perguntou, de modo suave. — Você consegue falar livremente? Aquilo chamou a atenção de Diana. Ela o olhou de modo interrogativo. — Mais ou menos — disse Kyle, vagamente. — De qualquer forma, sobre Grayson… — Sim? – Tom tentava não parecer tão ávido, com medo de assustar Kyle. A julgar pelo nervosismo dele, Kyle estava a ponto de desligar a qualquer momento. — O que é, Kyle? Devagar, hesitante, seu filho relatou o que havia apurado sobre Bernard Grayson e algo chamado Comitê de Alcance Global. O nome não significava nada, mas os ouvidos de Tom se interessaram quando Kyle mencionou que o CAG tinha adquirido recentemente um centro de plasma abandonado n a região central de Seattle. Ele se lembrou na mesma hora da forma como Grayson havia convertido a agência funerária em algum tipo de laboratório de clonagem biológica. Seus instintos lhe diziam que Grayson estava de volta ao foco. — Obrigado, Kyle. Nós vamos verificar — u m pensamento perturbador ocorreu a ele. — Ahn, você não falou sobre isso com Jordan, falou? — Ainda não — disse ele, de modo sombrio. Tom achou que Kyle se sentia culpado por fazer as coisas pelas costas de Jordan. — Embora eu tenha pensado nisso… Tom silenciosamente amaldiçoou a influência d e Collier sobre Kyle. — Vamos manter isso entre nós por enquanto — ele pediu. — Ao menos até sabermos se ele tem algo a ver com isso — ele esperava não estar pedindo demais; não queria afastar Kyle novamente. — Você pode fazer isto, Kyle? Como um favor para mim? Houve um silêncio torturante na linha, até que Kyle finalmente respondeu. — Tudo bem, eu acho — ele deu a Tom o endereço do centro de plasma.


Alguém bateu à porta, ao fundo. — Tenho que ir, pai — ele disse, apressado. — Depois me conte o que vocês acharam. — Conto sim — prometeu Tom. — E, Kyle, obrigado mais uma vez. Eu realmente gostei disso. — A-ham — Kyle parecia já estar arrependido do que fizera. — Falo com você depois. Ele desligou. A entrada do restaurante apareceu diante dele, mas Tom continuou dirigindo. Ele desligou a seta. O almoço podia esperar. Uma boa pista tinha prioridade sobre uma xícara de café bem quente. — Mudança de planos — ele informou Diana. — Nós vamos até um banco de sangue. Ele pisou fundo no acelerador. ************* — As paredes são mais escuras, mais cinza do que verdes — Maia especificou. — O banco é mais baixo. Há uma teia d e aranha n o canto direito do teto. A tampa do vaso sanitário está quebrada. A cadeira é aparafusada no chão. Maia consultava seu diário de sonhos enquanto descrevia a cela de Tyler para Marco. Ele estava sentado à frente de seu computador pessoal, retocando uma imagem na tela, d e acordo com a s especificações d a menina. Marco não era nenhum artista gráfico, mas ele e Maia já haviam seguido esta rotina antes. Maia tinha começado desenhando um esboço da cena de sua visão. Marco então escaneara a ilustração, e agora estava usando seu programa gráfico favorito para aperfeiçoar a figura, enquanto Meghan, Collier, Tess e o s Garritys matavam o tempo em outro canto. Não havia muita conversa entre eles. Isto não é surpresa, pensou Marco. Não há muita confiança nesta sala. — Que tal? — ele perguntou a Maia. — Quase l á — ela estava e m p é atrás dele, olhando p o r cima d e seus ombros para o monitor do computador. A menina revirou sua memória em busca de mais detalhes. — Havia uma mancha marrom no teto, bem ali. — ela apontou para o canto superior esquerdo d a tela. — Era manchado e irregular nas bordas. Como uma água-viva. Marco manuseou o mouse. Alguns toques nas teclas inseriram uma nódoa marrom no teto. — Assim? — Bem parecido — ela rabiscou um desenho em seu diário e entregou a folha para Marco. — Mas mais escura no meio e mais clara nas bordas. Ele ajustou a imagem de acordo com a descrição. — Melhor assim? — Sim — ela concordou gravemente com a cabeça. — Ei s o lugar. Fo i aí que eles o


prenderam. Marco salvou a imagem, e então contemplou a cela prisional virtual. Parecia bem lúgubre. Ele engoliu em seco, diante da perspectiva de ser o primeiro a visitar o lugar. Por que Richard não poderia ter sido preso no Havaí ou coisa parecida? Meghan aproximou-se para inspecionar a imagem. — Está detalhada o bastante para você? D a maneira como a habilidade 4400 d e Marco funcionava, e l e precisava visualizar um local antes d e poder s e teletransportar p a r a l á . E l e geralmente se concentrava em uma fotografia real como gatilho mental, mas uma imagem virtual seria suficiente? Ele de repente desejou ter testado mais vezes o s limites d e sua habilidade, apesar da política contrária da NTAC. — Talvez. Espero que sim. Collier observava tudo com interesse. Marco olhou para certificar-se de que seu celular estava carregado. A tela do visor informava que eram duas e quinze da tarde. Ele se deu conta de que não deveria adiar mais. — Está certo, aqui vai nada — ele se levantou de sua cadeira. — Desejem-me sorte. — Espere — disse Meghan. — Se você for mesmo aonde pretende, não vai querer ser reconhecido. Boa ideia, pensou Marco. Eles tinham que considerar que a cela d e Tyler deveria estar sendo monitorada. Ele vasculhou sua cabeça atrás d o disfarce apropriado, então remexeu em uma maleta sobre sua cama. Levou um minuto ou dois para localizar o item em questão, mas logo extraiu de lá uma máscara de borracha de Klingon15, da última festa de Halloween, dois anos antes. (A festa do ano ant eri or f o r a cancelada, e m respei t o à s v í t i m a s do cinquenta/cinquenta). Agarrando a máscara, bem como um par de luvas de inverno, ele correu de volta para a sala do computador. Espero que hoje não seja um bom dia para morrer. M eghan o l h o u estupefata p a r a a máscara d e Klingon, c o m s e u s pelos sintéticos encrespados e seus sulcos. — Você sabe que esta é uma missão d e reconhecimento, e não uma convenção de Star Trek, não é? Jed Azul esboçou u m raro sorriso. Jed Vermelho deu u m tapinha e m si próprio. Collier suspirou. Tess, uma foragida dos anos 50, parecia não saber o que era um Klingon. — Star Track? — Ei, às vezes você tem que se virar com o que tem à mão — disse Marco. Ele vestiu o disfarce sobre a cabeça e os óculos. O interior da máscara cheirava a suor


azedo e borracha. Sua própria respiração ecoava em seus ouvidos. Ele calçou as luvas para evitar deixar qualquer impressão digital incriminadora. 15 Klingon – raça alienígena fictícia, criada para a série Star Trek. — Tá bem, acho que agora estou pronto. — Espere! – Maia correu até ele e impulsivamente o abraçou. Eles tinham ficado amigos desde o tempo em que Marco namorara Diana, alguns anos antes. — Por favor, tenha cuidado. Ele se comoveu com a reação da menina. — Não se preocupe — prometeu. — Eu não vou demorar muito. Bata na madeira. Desvencilhando-se d o abraço d a menina, ele encarou a tela do computador. O resto do mundo desapareceu quando ele se concentrou na cela de prisão de ar gélido que Maia havia descrito. Ele sentiu um formigamento familiar no fundo de seu cérebro. A imagem o envolveu como num filme de três dimensões… Em um instante, ele se achou em outro lugar. Paredes de concreto asfixiantes o cercavam. A temperatura caíra dramaticamente. Uma feia mancha marrom de infiltração deteriorava o teto. Uma teia de aranha pendurada no canto. Richard Tyler deitado e tremendo sobre um duro banco de concreto. E aqui estamos, pensou Marco. A cela claustrofóbica era tão assustadora quanto ele temia. Uma impositiva porta de aço o trancava dentro da cela com Tyler. Calafrios percorreram sua pele, e não apenas por causa da baixa temperatura. Não era o tipo de lugar em que ele gostaria de estar. Mas onde exatamente ele estava? Consultou o telefone. O aparelho de alta tecnologia, com o qual ele havia estourado o pagamento de uma semana havia algum tempo, também continha um GPS embutido que, em tese, poderia apontar sua localização em qualquer lugar da Terra. Manejando o s controles na sequência certa ele ativou o localizador, que rapidamente lhe deu as coordenadas exatas em graus, minutos e segundos: 39.967814, -75.172595. Ele rapidamente interpretou a leitura digital. Pensilvânia, ao que parecia. Talvez algum lugar na área da Filadélfia? Ao menos não é Guantánamo ou a Síria, pensou. Ele poderia procurar a localização exata assim que estivesse de volta a Seattle, o que não deveria demorar muito. Não havia necessidade de permanecer na cela, agora que ele havia determinado sua localização. Era apenas uma questão de tempo até que sua presença fosse detectada, e ele não tinha vontade de fixar residência permanente numa cela como aquela. Levou um segundo, entretanto, para checar o atual ocupante da cela.


Exausto por causa do martírio, Richard Tyler dormia esparramado sobre o banco de aspecto desconfortável. Sonhos perturbadores atrapalhavam seu descanso. Ele fazia caretas e socava o banco. — Não — ele murmurava — de novo, não… Coitado, pensou Marco. E l e desejava poder teletransportar Tyler consigo, mas aquilo estava além de sua habilidade, ao menos por enquanto. Até então ele só e r a capaz de transportar a s i mesmo d e lugar para lugar. O que iria ajudar a tirar Tyler daquele buraco asqueroso. Um alarme retumbante o sobressaltou. Parece que a festa vai começar, ele constatou. Pressionando as teclas de seu telefone, ele abriu uma foto de seu apartamento armazenada na memória do aparelho. — É hora de sair daqui — murmurou —, o mais rápido possível. O s o m estridente acordou Tyler, q u e sentou-se, assustado. S e u s olhos cansados se arregalaram à visão do alienígena de cabeça grande em sua cela. Ele piscou, confuso. Marco gostaria de poder explicar, mas sabia-se lá quem poderia estar ouvindo? Incapaz de resistir à tentação repentina, ele levantou seu braço, em uma saudação Klingon. — Qapla! E desapareceu na foto de seu telefone. S u a reaparição s úbi t a n o apartamento provocou s us t os e m seus companheiros de conspiração. Tess deu um passo para trás, cuidadosamente. Maia suspirou de alívio. Collier parecia devidamente impressionado. — Você possui uma habilidade extraordinária — ele observou. Marco quase podia ver as engrenagens funcionando na mente maquiavélica de Collier. — Bem, não se acostume a tê-la ao seu dispor — ele declarou, deixando claro que não planejava mudar de lado. — A NTAC paga meu salário, não você. — Uma pena — respondeu Collier. — Talvez você reconsidere algum dia. — Não conte com isso — replicou Marco. Juntar-se a uma seita não estava em seus planos. — Pare de tentar arrebatar meu pessoal — Meghan advertiu Jordan —, ou vou desistir de ajudar você — ela passou por Collier para juntar-se a Marco em sua mesa. Cruzando os braços, ela esperava o relatório dele. – Bem, você achou Tyler? — Pode apostar. – Ele rapidamente digitou as coordenadas do GPS em seu computador. Em segundos, achou a localização precisa d a prisão misteriosa. — Penitenciária Estadual do Leste. Filadélfia. — Oh — disse Tess. Ela se virou para o canto, evitando tanto Collier quanto o pessoal da NTAC. — Eu já ouvi falar de lá. É um local histórico, d o século dezenove. Foi transformado em museu há alguns anos. Al Capone esteve preso ali.


Dizem que é assombrado. Todos olharam para ela, surpresos. Ela encolheu os ombros. — Kevin gosta de assistir ao History Channel. — Ela tem razão — confirmou Marco. Uma rápida busca na Internet achou vários sites sobre a velha prisão, que estava localizada de fato no centro da Filadélfia, não muito longe da prefeitura e do badalado museu de arte da cidade. — Foi fechado para reforma logo depois do cinquenta/cinquenta. Não há informações sobre a reabertura. — Reforma uma ova – resmungou Jed Vermelho . — A Haspelcorp deve têla virado do avesso, para transformá-la em sua Guantánamo particular. Jed Azul sacudiu sua cabeça, em desgosto. — Bem no meio da Cidade do Amor Fraterno. — Olhe pelo lado bom — apontou Marco. – Ao menos Tyler ainda está nos Estados Unidos. — Ryland provavelmente n ã o tinha escolha quanto a i sso — Meghan se remexeu na poltrona. — Desde as revoltas, a maioria dos países estrangeiros está se recusando a receber positivos e m seu solo. Ryland teria muita dor-de-cabeça para embarcar um p-positivo para além-mar, se ele quisesse. — O que ele não conseguiria — acrescentou Collier. — Duvido que o governo americano queira um 4400 poderoso caindo nas mãos de um poder estrangeiro. Infelizmente, a promicina deu uma nova dimensão à corrida armamentista. E a culpa é d e quem? pensou Marco, mas segurou sua língua. Para ser justo, Ryland e a Haspelcorp tinham explorado as possibilidades militares da promicina muito antes de Collier oferecer a dose para o público em geral. Meghan já estava trabalhando na logística envolvida. — De qualquer maneira, a Filadélfia ainda é pelo menos seis horas de avião daqui. E não vai ser fácil sairmos d e Seattle sem sermos notados. A força aérea ainda está impondo uma área de voo proibido sobre a Terra Prometida. Collier deu uma risadinha. — Eu talvez possa ajudar nesse sentido.


QUINZE O Centro de Coleta de Plasma Pacífico já vira dias melhores. As janelas da entrada tinham sido cobertas. Uma placa d e “Desativado” fora colocada do lado de dentro da entrada principal. As paredes haviam sido pintadas com grafite. “JORDAN COLLIER É DEUS”, lia-se em letras laranja brilhantes. “PROMICINA = MORTE!”, alguém respondera. Pontas d e cigarro e vidro quebrado espalhavam-se pelo chão diante d a entrada d o estabelecimento falecido. Um bêbado dormia em um canto. Se o Comitê de Alcance Global realmente era dono do local, ainda não haviam feito muita coisa com ele. — Vizinhança legal — disse Tom sarcasticamente. Eles dirigiram direto para lá, de Bellingham. Diana telefonara para NTAC n o caminho para informá-los da investigação; sem conseguir falar com Meghan ou Marco, ela deixara uma mensagem com Abby, então. — Se você gostar de casas velhas — demarcou Diana, olhando em volta. O centro de Plasma Skid Row era localizado numa esquina de uma parte da cidade economicamente decadente que não fora beneficiada com a ambição dos 4400 por uma renovação. Do outro lado da rua estava o que sobrara de uma loja de bebidas destruída durante o tumulto há dois meses. Virando a esquina, estava uma estação de recrutamento científico; aparentemente, L. Ron Rubbard16 não fora capaz de competir contra Jordan Collier n a Terra Prometida. U m a livraria p a r a adultos, um pouco a c i m a n a r u a , parecia s e r o único estabelecimento em funcionamento. Um céu cinza ameaçava chover a qualquer momento. Bem vindos à Terra Prometida, pensou Diana. Suas vozes acordaram o bêbado, que os olhou com olhos confusos e sanguinários. Veias estouradas desfiguravam seu nariz inchado. Uma barba cinza emaranhada mantinhas s e u rosto triste aquecido. Se u casaco d e l ã esfarrapado devia s e r uma doação. U m fedor nauseante emanava d e sua presença. Ele furtivamente colocou uma garrafa d e Thunderbird atrás de suas costas antes de estender uma mão ameaçadora. — Têm um trocadinho? Diana percebeu que não machucaria dá-lo algum trocado. Talvez ele tivesse visto alguma coisa enquanto estava bêbado. — Deus lhe abençoe. — Ele cambaleou. Sua boca exalava álcool, mas ele parecia um pouco sóbrio. — A cidade precisa de mais pessoas como você. — Você fica sempre por aqui? — perguntou Tom. 16 L. Ron Rubbard foi um escritor americano de ficção científica.


— Costumava vim umas duas vezes por semana — confessou o homem. — Antes de todo mundo ficar doente. — Ele olhou para os agentes esperançosamente. — Sabem quando esse lugar vai reabrir? É uma droga de injustiça que não posso mais vender meu próprio sangue. Nunca tomei uma dessas doses fedorentas… — O que te faz pensar que vai reabrir? — perguntou Diana. — Viu alguma atividade ultimamente? O bêbado balançou a cabeça. — Descarregaram u m monte d e caixas e equipamentos outra noite. Por volta de meia noite, quando eu estava tentando dormir. E também quando ninguém estava olhando, pensou Diana. E l a mostrou uma foto de Bernard Grayson, tirada de sua carteira de motorista. — Viu esse homem por aqui? O bêbado piscou para a foto. — É. Acho que sim, parece um pouco familiar. — Ele devolveu a foto para Diana. — É o novo chefão? — Talvez. — Tom deu mais alguns trocados ao homem. — Vá comprar alguma coisa para comer. Os olhos do homem brilharam ao verem o dinheiro inesperado. — É o meu dia de sorte! Vocês são boas pessoas, vocês dois. — Enfiando as notas no seu bolso, ele saiu apressado em busca de alimento, ou assim esperava Diana. As chances, no entanto, era que ele fosse comprar mais Thunderbird a o invés de um Big Mac. Ele deixou a garrafa vazia para trás. Os agentes esperaram que o mendigo útil estivesse longe o suficiente para não ouvi-los antes de começaram a investigar. Diana guardou a foto de Grayson. — Bem, o que você acha? — Parece bem provável para mim. — Ele considerou a fachada lacrada. — Pela entrada da frente ou dos fundos? Diana tentou espiar através das tábuas, mas tudo o que viu foi escuridão. Parecia não haver luzes do lado de dentro, muito menos alguém se movendo. — Pelos fundos. Mais discreto. U m b e c o estreito estendia-se a t r á s d o prédi o. U m e s p a ç o p a r a carregamento e descarregamento de mercadorias se estendia diante da parede. Um líquido gorduroso enchia os barris. Ratos corriam por trás de uma grande caçamba de metal. Ataduras descartadas, usadas pela antiga clientela do centro de plasma, estavam jogadas no chão pavimentado. O beco fedia a urina e lixo apodrecido.


Era muito diferente da decoração agradável da funerária de Grayson. Subindo n o espaço para carregamento e descarregamento d e mercadorias, Tom tentou a porta, q u e n ã o cedeu. Diana considerou bater antes, m a s decidiu não fazê-lo. Se Bernard Grayson estava se escondendo lá dentro, eles queriam pegá-lo de surpresa. Tom se posicionou para entrar à força. — Espere — disse Diana. — Tomou alguma U-Pill hoje? Ele balançou a cabeça. — Acha que eu deveria? — Pode não ser uma m á ideia. — Ela era imune à promicina, por ter servido de cobaia p a r a Kevin Burkhoff h á alguns anos, m a s T o m n ã o e r a . — S e Grayson e companhia conseguiram duplicar a habilidade de Danny, e conseguirem gerar uma versão que se espalha pelo ar, podemos estar entrando numa zona quente. Ele não discutiu. — Acho que se prevenir não machucaria. — Ele tirou um pacote de emergência das pílulas de seu bolso e as engoliu. — Certo, vamos descobrir o que está acontecendo aqui. Diana esperou enquanto seu parceiro mais forte se preparava. Grunhindo, Tom jogou-se de ombros contra a porta, que se recusou a ceder. — É mais sólida do que parece — comentou ele, recuando. Levantou sua Glock, então. — Acho que precisamos de um pouco de poder fogo. — Se você diz. — Ela cobriu as orelhas. A arma deles era capaz de atirar balas convencionais ou dardos tranquilizantes. Não houve dúvida sobre que tipo de munição ele estava usando quando disparou a arma. Um tiro ecoou pelo beco, e dez milímetros de chumbo explodiram a fechadura. Diana imaginou se alguém daria queixa do tiro. Nesse bairro, provavelmente não. — Tome cuidado — ele disse enquanto chutava a porta. Nenhum dos dois queria outra surpresa como a que tiveram na casa funerária. Diana ainda tinha um calo na cabeça onde aquele técnico do necrotério havia batido. Com as armas em punho, eles cautelosamente adentraram pela parte de trás do prédio. — NTAC! — ela anunciou. A s iniciais estavam estampadas nas costas d e suas pesadas jaquetas azuis. — Qualquer um que estiver aqui, por favor, identifique-se! Ninguém respondeu. As sombras engoliam o interior. Seus dedos encontraram um interruptor ao lado direito da porta. Luzes brilhantes se acenderam acima de suas cabeças, revelando o que parecia ser um depósito. Caixotes de madeira e caixas de papelão esperavam para serem descarregadas. Bolsas de utensílios médicos estavam estocadas e m prateleiras. Um rodo e uma vassoura


estavam encostados a um canto. Uma porta lisa de aço guardava o que parecia s e r um refrigerador. Provavelmente o n d e costumavam guardar a plasma coletada, supôs Diana. Imagino o que eles mantêm refrigerando agora. O corpo de Danny? Teremos que checar isso, pensou ela, depois que soubermos que está seguro aqui. Com as armas em prontidão, eles se separaram e observaram o local. Logo depois dos cômodos do fundo, eles adentraram uma área equipada com poltronas de vinil e suportes para soro. Vários escritórios pequenos se espalhavam lugar amplo. — Limpo! — gritou Tom d a área d a recepção mais a frente. Diana espiou com a cabeça alguns escritórios e um armário de funcionários. Uma grande janela de vidro separava a área das doações do laboratório anexado. Cartazes desbotados apontavam os benefícios salvadores da doação de plasma. Um papel num quadro de avisos mostrava uma rifa de um peru do Dia de Ação d e Graças que provavelmente nunca acontecera. Aparentemente, cada gota de plasma doada era uma chance a mais para ganhar o peru. — Limpo! — devolveu Diana de um escritório vazio. Parecia que tinham o lugar só para eles. Bernard Grayson não estava em um lugar que pudesse ser visto. Os agentes se encontraram no centro da área de doação. Eles guardaram as armas. Tom caminhou pela sala e espiou o laboratório adiante através da janela. — Você é a cientista — disse ele a Diana. — Isso te diz alguma coisa? — Bem, não vejo nenhuma máquina de plasmaférese17 aqui — observou ela. — O que quer dizer que o Comitê de Alcance Global não está removendo plasma de bêbados. — Um carrinho equipado com desfibriladores indicava procedimentos médicos mais sérios. Ela olhou m ai s d e perto o equipamento d o outro l ado da janela de vidro. — Aparelhos de tomografia. Centrífugas. Um sequenciador de DNA. De vista, tenho que dizer que isso se parece suspeitosamente com a instalação que encontramos na Grayson & Filho. Tom acenou com a cabeça. — Foi o que pensei, também. — O que quer dizer que estamos n o caminho certo — disse ela. A temperatura estava agradavelmente quente comparando com o lado de fora, o que significava que alguém havia ativado o ar condicionado depois que o centro fora fechado. Ela abriu o zíper da jaqueta. — Só não encontramos nosso cara ainda. — É — ele olhou novamente para o depósito. — Acho melhor a gente dar uma olhada naquele refrigerador.


17 N. do. T.: Plasmaférese é a remoção e a recolocação de plasma de sangue Diana percebia que ele não estava ansioso para encontrar mais clones do corpo de Danny. — Quer que eu cuide disso? — ela voluntariou-se. — Obrigado, m a s n ã o é necessário — e l e incentivou-se par a o q u e quer que fossem descobrir logo. — Só vamos terminar isso, juntos. — Não se preocupem — interrompeu uma terceira voz. — Vocês não vão a lugar algum. A princípio, a voz parecia vir de lugar nenhum. Então, o ar tremeluziu em volta deles e os agentes se viram cercados por um trio armado de recém-chegados. Bernard Grayson estava acompanhado d e dois estranhos: u m jovem d e cabelos ruivos vestindo uma blusa d a Universidade d e Washington e uma mulher Filipina rechonchuda de meia-idade us ando u m uniforme b r a n c o d e enfermeira. O s dois homens apontavam semiautomáticas para os agentes. A mulher mais velha se apoiava pesadamente numa bengala. Ela respirava com dificuldade. O suor brilhava nas suas feições de querubim. Diana achou-a vagamente familiar. Umas 4400 original de fábrica ou uma nova “extra-crocante”? Diana procurou instintivamente pela s u a arma, s ó par a ouvir Grayson apontar-lhe seu revólver. — Não pense nisso — advertiu ele. Um avental azul d e laboratório havia substituído seu macabro terno de agente funerário. Ele acenou com a cabeça para o jovem de cabelos claros. — Carl, tire as armas deles. Relutantemente, os agentes foram livrados de suas armas. O universitário colocou-as em uma poltrona vazia perto do fundo da sala. — Olá novamente, agente Skouris, agente Baldwin. — disse Grayson. — Estávamos a sua espera. O TSSS, abreviação de Transporte Supersônico Silencioso era um protótipo experimental roubado d a divisão Boeing Phantom Work18 p o r u m engenheiro descontente q u e havia se juntado ao Movimento de Collier depois do 50/50. A lustrosa aeronave particular era grande o suficiente para carregar mais ou menos doze passageiros, e rápida o suficiente para levá-los até a Costa Leste em questões de horas. O s motores supermodernos abafavam o s “booms” supersônicos que 18 “The Phantom Works division” visa construir produtos e tecnologias militares avançadas. pareciam os de um Concorde19, permitindo-os voar sobre o país sem balançarem. O avião roubado havia levantado voo de um campo de pouso secreto em algum lugar da Península Olímpica. Meghan e os outros haviam saído de Seattle com os olhos vendados, para preservar a segurança das operações aéreas ilícitas de Collier.


Sentada e m u m canto d o TSSS, Meghan tinha uma pequena suspeita de como Richard e seus colegas assassinos haviam ido à Roma e voltado sem serem detectados. Não que Collier fosse admitir, é claro. Ela imaginava que outros recursos ultra-secretos Collier tinha à sua disposição. Afinal, ele agora tinha muitas das melhores mentes na Boeing, Microsoft, Amazon e na Ubient Software para colher informações. Isso sem mencionar genuínos p-positivos como Dalton Gibbs. De várias maneiras, ele tinha o futuro ao seu lado. E esse era um pensamento muito assustador. Sentada ao lado de Marco, ela pesquisava sobre a Penitenciária Estadual do Leste em seu laptop. Óculos de leitura vermelhos se empoleiravam em seu nariz. Ainda bem que havia infinitas informações a respeito da penitenciária histórica na internet, incluindo alguns vídeos d e passeios pelas ruínas. Uma olhadela no computador de Marco revelou que ele estava baixando inúmeras imagens do interior da prisão para o seu celular, para melhor se transportar pelas dependências se fosse necessário. Boa ideia, pensou ela. Pena que não posso dar a ele um bônus por essa missão. D o outro lado d o corredor, o s dois Garritys aproveitavam o v o o para dormirem. Eles roncavam em harmonia. Tess Doerner sentava-se longe dos agentes da NTAC, mantendo-se isolada. Parecia estar imersa num exemplar de Um Estranho no Ninho. Meghan ainda não se sentia confortável incluindo a ex-paciente mental n a missão, n ã o importava o quão única sua habilidade podia ser. Até onde sabia, a única lealdade da garota era para Kevin Burkhoff. Meghan se preocupava com os motivos. Se ela quisesse assumir a missão, como eu a impediria? Marco levantou o olhar de seu laptop. Seus olhos encontraram os dela. — É estranho não ter o Tom e a Diana conosco — disse ele. — Esse é mais o tipo de ação deles do que o meu. — Nem me fale. — Ela já deixara uma mensagem na secretária eletrônica da casa de Tom, avisando-o para ele não esperá-la para o jantar a noite, mas ela desejava t e r podido falar diretamente com ele antes de embarcar nessa missão. Apesar do preconceito de Collier contra agentes sem habilidades, ela sentira-se 19 O Concorde foi um dos dois aviões supersônicos de passageiros que operaram na história da aviação comercial. tentada a incluir Tom e Diana mesmo assim. Os dois tinham mais experiência com Richard Tyler do que ela. Mas, não, ela decidiu-se de uma vez, Seattle precisava urgentemente de Tom e Diana para envolvê-los nessa missão de resgate duvidosa. Acabar com o caso do clone de Danny Farrell


era tão importante quanto liberar Richard Tyler. Talvez até mais. — Certo, eles não vão a lugar algum. Carl terminou d e amarrar Tom e Diana e m poltronas adjacentes. Cintas longas de couro prendiam seus braços e pernas. Tom forçou-se para soltar-se, mas as cintas não cederam. Ele e Diana estavam à mercê de seus capturadores. Grayson abaixou s u a a r m a . E l e es t ava a al guns pas s os d e distância, observando cautelosamente os procedimentos. A mulher mais velha sentava-se em um banquinho ali perto, tricotando um suéter. — Desculpem não podermos deixá-los mais confortáveis — disse o agente funerário, acidamente. A vida d e foragido claramente não havia lhe feito bem. A barba marcava suas bochechas m a g r a s e mandíbula. Orel has arroxeadas se penduravam sob seus olhos sanguinários. Sua voz fervia de ressentimento. — Mas era o melhor que podíamos fazer em pouco tempo. Grayson clamara mais cedo que ele e seus cúmplices os esperavam. Tom imaginava quem os entregara. Teria Kyle aberto o bico para Jordan no fim das contas? Tom torcia para que seu filho não fosse o culpado por sua situação lúgubre. Quem mais poderia ser? Agonizou ele. Só ficamos sabendo desse lugar há algumas horas! Diana devia estar ponderando sobre a mesma questão. — Se importa de nos dizer como sabia que nós estávamos vindo? — Isso cabe a mim — explicou uma nova voz. Abigail Hunnicutt veio dos fundos, parecendo tão confortável no centro de plasma remodelado quanto ficava n a Sala d a Teoria. A analista loira acenou para Grayson e para os outros. — Desculpem-me pelo atraso. Somos poucos lá na NTAC. Todos pareciam estar vadiando essa tarde… Tom ficou boquiaberto. Trocou um olhar confuso com Diana. — Abby? — Olá, Tom, Diana — ela os cumprimentou. Um casaco de chuva molhado derramava água no chão. Ela não parecia nem um pouco consternada ao ver seus colegas amarrados como se fossem pacientes indisciplinados em uma clínica psiquiátrica. — Acho que já imaginam o que eu estou fazendo aqui. — Um pouco — admitiu Tom. A surpresa deu lugar à raiva quando ele descobriu que ela os havia traído. Seu rosto ficou vermelho. — Não estou acostumado a ser traído pelos meus próprios amigos! Diana lançou um olhar áspero a ela. — Como pôde?


— O que posso dizer? — Ela deu d e ombros. — O Grande Passo Adiante mudou tudo, incluindo a mim. Está óbvio, agora, que o Movimento é o futuro. — Não havia nenhuma pontada d e culpa e m sua voz. — Não vou m e desculpar por querer ficar no lado certo da história. Diana não a deixou escapar. — Não importa quantas pessoas pereçam para construir o bravo novo mundo de Collier? — Pessoas morrem todos os dias sem razão que importe — disse Grayson. — Confiem em mim, ninguém sabe disso mais do que um agente funerário. Passei metade da minha vida adulta preparando seus restos sem valor, sem contribuir de verdade c o m o mundo, até que o Grande Passo Adiante abriu meus olhos e expandiu minhas percepções. — Ele olhou para o alto e juntou as mãos diante do peito. — Nunca m e esquecerei daquele dia. Meu cérebro s e iluminou com novas ideias e entendimento. Encontrei o meu propósito de existência. Abby acenou com a cabeça. — Bernie está sendo muito modesto. A promicina melhorou seu QI para um grau fenomenal, dando a ele um conhecimento inato sobre biologia e química. Ele sabe mais sobre DNA e modificações genéticas d o q u e qualquer ganhador do prêmio Nobel. Ele tem sido divino para o nosso projeto. — Não foi um acidente — declarou Grayson. — Tudo estava destinado a acontecer. — Ele olhou para Tom. — Quando o corpo do seu sobrinho veio para mim, logo depois que mudei, percebi que não era uma mera coincidência. Eu soube na hora que estava destinado a espalhar o presente de Danny para o mundo todo. — Ele gesticulou para Carl, que estava observando os prisioneiros de perto. — Com a ajuda de voluntários corajosos como Carl aqui. O jovem acenou a o elogio d e Grayson. Sua arma estava guardada nas calças. — É um privilégio e uma honra. Só espero que seja eu quem unirá o resto da humanidade. — Será você — prometeu Abby. Sua voz soava convicta. — Nós iremos conseguir desta vez. Posso sentir. Tom percebeu que não havia razão nessas pessoas. Eles eram todos crentes genuínos, como aquele fanático no necrotério. Até mesmo Abby parecia ter aceitado o plano d e Collier de coração. Tudo o que podia esperar deles agora era respostas. — Mas e u v i o corpo d e Danny e m seu funeral — disse Tom. — Ajudei a colocá-lo no carro da funerária. Grayson indicou a mulher mais velha no canto. — Agradeça a Rosita ali. Talvez s e lembre dela n o serviço d o Danny. El a projetou u m a ilusão d o corpo de seu sobrinho na cerimônia, assim como escondeu nossas presenças de vocês há pouco. Rosita levantou os olhos de seu tricô. Sorriu orgulhosa.


— Mas e os corpos duplicados? — perguntou Diana. — Como conseguiram isso? Abby levantou a mão. — Essa seria e u d e novo. Receio que não tenha contado tudo a vocês sobre a verdadeira extensão da minha habilidade. Eu posso fazer mais do que apenas ler DNA, posso manipulá-lo. — E l a flexionou o s dedos. — C o m a aj uda d e Bernie, tenho conseguido transformar voluntários em perfeitas cópias genéticas de Danny. — Eu vi seu trabalho — disse Diana friamente. — No nosso necrotério. Abby hesitou. — Admito que nenhuma de nossas cobaias sobreviveu ao teste até agora — disse defensivamente. Diana obviamente atingira um ponto fraco. — Mas estou cada vez mais perto. — Ela virou-se para encorajar Carl. — Estamos quase lá. Sei disso! — Acredito e m você — disse o jovem. — Tenho f é n o futuro. — Ele olhou carrancudo para Tom e Diana. — O que vamos fazer com esses federais no fim das contas? — Ele levantou a arma na altura dos agentes indefesos. — Diria para acabarmos com eles agora antes que causem mais problemas. Seu tom sanguinário lembrou a Tom o assistente homicida do agente funerário. O que havia na mensagem de Collier que inspirava essa devoção cega em jovens como Carl e Kyle? Um desejo de deixarem suas marcas no mundo, sem importar as consequências? Carl parecia disposto a matar em nome de Collier. — Não é uma boa ideia — objetou Abby. — De acordo com a profecia, que acredito trazer códigos do futuro, Baldwin tem um destino importante a cumprir. Eliminá-lo poria em risco tudo pelo que trabalhamos. — Certo — concedeu Carl. — Não tinha pensado nisso. — Ele virou sua arma na direção de Diana. — E ela, então? Abby também vetou essa execução. — Skouris é especial de natureza. Ela tem uma imunidade única a promicina que merece um estudo mais de perto. — Eu concordo — disse Grayson. Ele olhou Diana com uma curiosidade científica. — Uma análise cuidadosa de seu sangue poderia render informações valiosas sobre os efeitos da promicina no sistema nervoso humano. Claramente em menor número, Carl abaixou sua arma. Desapontamento surgiu em seu rosto. — Então o que faremos com eles? — Matar dois coelhos com uma pedrada só — disse Abby presunçosamente. Ela tinha tudo planejado. — A profecia diz que Baldwin está destinado a se tornar um de nós, certo? E se pudermos t e transformar e m out r o Danny Farrell, vamos precisar d e u m a cobaia para assegurar que você pode infectar as pessoas com promicina…


Tom percebeu que ela queria testar a habilidade Carl nele. — Não vai dar certo — ele os avisou. — Tomei U-Pills logo antes de entrar. Abby deu de ombros. — Bem, então apenas temos que esperar o efeito passar.


DEZESSEIS A Penitenciária Estadual do Leste se elevava diante deles como se emergisse da Idade das Trevas. Alojada e m u m a região nobre d a Filadélfia e rodeada de bibliotecas, museus e restaurantes caros, a fortaleza em estilo medieval se erguia como um imenso anacronismo de pedra, quase como s e tivesse sido colocada no local pelos mesmos viajantes do tempo que haviam recolocado os 4400 na História. Torres de vigilância e muralhas imponentes coroavam sua tenebrosa fachada cinzenta. Janelas seteiras20 escurecidas se debruçavam por sobre a rua abaixo. O musgo subia por suas paredes de trinta pés de altura desgastadas pela ação d o tempo. A prisão colossal ocupava um quarteirão inteiro. Holofotes posicionados ao longo da base do portão iluminavam sua fachada de granito. A aparência intimidante da construção era um tanto quanto deliberada, na intenção de instilar o temor a Deus, e u m profundo senso d e penitência, e m todos o s que haviam sido levados involuntariamente através d e seus portões. “Deixe a s portas serem de ferro” , havia instruído um dos fundadores da prisão do século dezenove, “e deixe o ranger, causado pela abertura e o fechamento delas, ser incrementado por um eco que deve trespassar profundamente a alma”. Meghan tinha lido algo do tipo. Pelo aspecto do lugar, o Doutor Benjamin Rush tinha conseguido exatamente aquilo que havia pedido. Meghan, Marco, Tess e Jed Azul contemplavam a prisão do outro lado da rua. Eles vagavam casualmente pela calçada, evitando a iluminação das lâmpadas da rua. Eram quase onze horas, horário da Costa Leste, mas ainda havia bastante tráfego noturno circulando pela Avenida Fairmount. A limusine deles, fornecida por um dos agentes d e Collier n a Filadélfia, estava estacionada alguns quarteirões adiante, na Vigésima Quarta Rua. Jed Vermelho estava descansando as pernas ao volante do carro de fuga. Os dois Garritys haviam tirado nos palitinhos qual deles ficaria esperando no carro. — Lugar assustador — disse Marco, relatando o óbvio. Como todos os outros, ele usava roupas escuras e à paisana, sem qualquer marca ou insígnia da NTAC. Eles haviam deixado seus distintivos e identificações no avião. Aquela missão era completamente fora das regras. — Quem sabe Drácula tem uma imobiliária no coração da Filadélfia? — Na verdade, esta era uma área isolada, milhas afastada da cidade — Tess informou a eles. Ela havia designado a s i própria a especialista n a história da prisão, naquele grupo. — U m pomar d e cerejeiras, para ser mais exata. Quando eles construíram a prisão, há quase duzentos anos, não havia nada em volta. Mas a cidade gradualmente se espalhou e a cercou. Esta é uma das razões pela qual ela foi desativada nos anos setenta. As pessoas não gostavam d a ideia d e t e r uma prisão cheia d e condenados n a vizinhança; mesmo e l a t endo sido construída bem antes de eles se mudarem para lá. Meghan s e perguntava o que o s vizinhos achariam d o que estava acontecendo dentro da prisão estadual naqueles dias. Se eles soubessem, de fato.


20 Seteira (arrow slit) – janela comprida, característica dos castelos medievais, através da qual os arqueiros lançavam flechas para defender a construção dos ataques inimigos. Ela se virou para Tess. — Você está pronta para isto? — Na verdade, não — admitiu a garota. — Mas que escolha eu tenho? — ela parecia precisar de um momento para se convencer a seguir adiante. — Nos anos cinquenta, antes de eu ser abduzida, meu pai construiu um abrigo antibomba em nosso quintal, caso os comunistas nos bombardeassem. Nós tínhamos jogos de correr-e-se-abrigar na escola. Eu tinha pesadelos com uma grande guerra destruindo o mundo inteiro… Não posso deixar esses pesadelos se realizarem. Meghan se comoveu. Mesmo que a habilidade de Tess ainda lhe arrepiasse os cabelos, estava aliviada p o r descobrir q u e a motivação d a ex-paciente mental era perfeitamente compreensível. E sã. — Não vamos deixar que isso aconteça. — Espero que não. Tess atravessou a rua, deixando os outros para trás. Um ponto eletrônico em seu colarinho permitia que Meghan escutasse tudo através de um receptor auricular. Ela ouviu Tess engolir em seco e respirar fundo antes de se encaminhar para o imponente portão principal da prisão. U m aviso n a porta declarava q u e o local histórico estava fechado para reforma. Nada mencionava a Haspelcorp. — Aqui vamos nós — Tess sussurrou n o microfone. Ela bateu à porta de ferro, depois apertou um botão instalado no arco de entrada. Uma campainha soou em algum lugar além do portão. Uma câmera de segurança, instalada acima da porta, girou em sua direção. Uma luz branca resplandecente iluminou os degraus da frente, permitindo que fosse vista claramente. Uma voz áspera emergiu do interfone perto do portão. — Sim? — a v o z perguntou, irritada. Meghan supôs q u e eles n ã o deviam ter muitos visitantes, especialmente àquela hora. — O que foi? Tess olhou firmemente para dentro das lentes da câmera. — Estou aqui para o tour. — Não há mais tours – a estática falhava e m mascarar a impaciência da voz, bem como seu pronunciado sotaque da Filadélfia. – Você não sabe ler, comadre? Este lugar está fechado. Tess discordou. — Eu quero um tour. Deixe-me entrar. O silêncio que se seguiu fez Meghan achar, por um breve instante, que a habilidade notória


de Tess havia sido apagada, de alguma forma. Então a colossal porta de aço se abriu com um chiado. Nenhum rangido tortuoso trespassou a alma de Meghan; aparentemente, a Haspelcorp mantinha as dobradiças lubrificadas. Observando do outro lado da rua, ela vislumbrou u m guarda uniformizado d e pé além do portal. Ele afastou-se para Tess passar. — Assim está melhor — ela disse. Virando-se, acenou furtivamente para Meghan e os outros, que atravessaram a rua para juntar-se a ela. Eles vestiram máscaras d e esqui antes de entrar no campo visual das câmeras; Meghan tinha convencido Marco a deixar a máscara de Klingon em Seattle. Embora estivesse sob o comando de Tess, o guarda ainda parecia alarmado quando os intrusos mascarados correram degraus acima em direção ao portão aberto. Mais parecendo um jogador de futebol americano, o guarda era um jovem musculoso, de compleição rude e cabelos pretos gordurosos. O nariz achatado e a orelha em forma de couve-flor sugeriam que ele havia passado algum tempo nos ringues. Um crachá o identificava como Kozinski. Ele estendeu a mão para a pistola do coldre que levava na cintura. — Sem armas — ordenou Tess. — Meus amigos vão se juntar a nós. A mão dele se afastou da pistola. A consternação em seu rosto deixava claro que ele estava plenamente consciente do que estava acontecendo. — Sua bruxa! O que você está fazendo comigo? — Não seja rude — ela o instruiu. — E abaixe a voz. J á t e disse, meus amigos e eu queremos um tour. A boca d o guarda oscilou silenciosamente, como u m peixe for a d’água, enquanto sua língua travava uma batalha perdida contra a influência de Tess. — Não tenho autorização para isto — ele finalmente conseguiu dizer. Meghan supunha que ele queria dizer algo um pouco mais alto e mais pungente. — Estas são instalações de segurança. — Psiu! — Tess estendeu um dedo diante dos lábios. — Apenas faça o que eu mandar. O guarda concordou com a cabeça. Como se ele tivesse escolha, pensou Meghan. Kozinski ficou parado, indefeso, s u a face lívida traindo seus verdadeiros sentimentos, enquanto o grupo corria para o interior da guarita. Garrity fechou a porta silenciosamente atrás dele. Meghan fez um reconhecimento do local. As fotos que ela havia estudado durante o voo mostravam ruínas dilapidadas e deliberadamente preservadas em um estado d e decadência embargada, cheias d e reboco esmigalhado, cascalho espalhado e metal enferrujado. Deveria ainda haver árvores crescendo através de alguns telhados. Não era o que ela via ao seu redor. A Haspelcorp obviamente havia feito uma boa reforma


no interior do prédio. Tinta industrial bege cobria as paredes de granito. Lâmpadas fluorescentes dispersavam as sombras tenebrosas do passado. A estação d e trabalho d o setor de segurança estava equipada com um grupo de monitores, permitindo que se vigiasse a rua lá fora. Extintores de incêndio e alarmes de fumaça mantinham as instalações dentro das regras. Um aviso de “proibido fumar” fora afixado em uma parede. Meghan não vira nenhum cartaz proibindo tortura. — Leve-nos até Richard Tyler — Tess instruiu Kozinski. — Rápido. Os olhos do guarda se arregalaram à menção do nome de Tyler. Um protesto estrangulado ainda estava preso por detrás de seus lábios fechados. Fervendo de frustração, ele se virou e os guiou além da guarita para a prisão propriamente dita, que havia sido projetada em formato d e estrela, com vários grupos de celas partindo de um círculo central. Um caminho coberto, erguido para ocultar da vigilância aérea os novos convidados da prisão, os guiou através de um pátio aberto para outra entrada em arco, que se conectava diretamente ao núcleo. Até onde Meghan sabia, baseada em sua pesquisa, Kozinski estava levando-os na direção certa. Eles caminhavam apressadamente, seguindo o guarda. Mas a invasão deles não demorou a ser descoberta. Um alarme ensurdecedor invadiu seus ouvidos. As câmeras de segurança rastreavam seu percurso. Na hora em que eles alcançaram a entrada em arco para a área circular, um trio de guardas armados já havia se mobilizado para defender o centro nervoso da prisão. — Já foram longe o bastante! — vociferou um dos guardas. Pistolas e rifles miravam os intrusos. — Deitem-se no chão, com as mãos na cabeça! — Quietos! — Tess os silenciou. — Sem alvoroço, por favor. Vocês vão nos ajudar agora. Os guardas abaixaram suas armas. Eles trocaram olhares frustrados entre si. Seus lábios esboçavam obscenidades, mas nada audível emergia deles. Veias zangadas saltavam sob suas pel es. E l e s lutavam incansavelmente, tremendo com fúria inútil. Punhos cerrados se dependuravam ao lado do corpo. O controle absoluto da garota sobre os homens tanto impressionou quanto horrorizou Meghan. Graças a Deus ela está do nosso lado… Por enquanto, pelo menos. Tess cobriu as orelhas com as palmas das mãos. — Alguém poderia, por favor, desligar essa sirene? Uma estação de comando circular, cheia de painéis acesos e monitores de vídeo, ocupava o centro da área circular. Os guardas literalmente apostaram corrida até a estação para atender ao comando de Tess. Após alguns momentos, o enervante alarme parou. Os ouvidos de Meghan adoraram o alívio, mas ela sabia d e que eles já haviam perdido o fator surpresa. Não havia tempo a perder. Reforços certamente já estavam a caminho. Ela rapidamente enumerou as ordens. — Garrity, você fica aqui. Assuma os controles e fique de olho nos monitores de segurança


— ela sacudiu a cabeça para Tess e Marco. — Vamos buscar Tyler. — Mostre-nos o caminho — Tess disse par a Kozinski, antes d e prover Garrity com reforços inusitados. — Vocês aí, garantam que não sejamos incomodados. Contra a própria vontade, os guardas restantes reassumiram suas posturas de defesa. Seriam guardas contra guardas. I s t o p o d e f i car f e i o mui t o rápido, pensou Meghan. E sangrento. Ela pedia a Deus que estivessem fazendo a coisa certa. Kozinski os escoltou até o grupo de celas número sete. Um teto abobadado de trinta pés de altura dava a o corredor u m a r d e catedral profana. Claraboias geladas revelavam brechas de c é u estrelado. Passarelas d e metal percorriam a galeria superior. Portas d e a ç o fechadas, equipadas c o m janelas d e observação, impediam a visão d a s celas individuais. U m a mão recente de tinta verde-oliva pouco contribuía para dispersar a atmosfera opressiva. Seus passos apressados ecoavam surdamente. Revoltas, assassinatos e suicídios tinham s i d o comuns através d a longa história d a penitenciária estadual. Não admirava q u e se acreditasse que a estrutura repulsiva fosse assombrada… — Cara, eu não estou feliz de estar de novo aqui — comentou Marco. Seus óculos se sobressaíam sob a máscara d e esqui. — Devolvam-me minha Sala das Teorias assim que possível. Meghan sabia exatamente do que ele estava falando. — Felizmente, nós não vamos nos demorar muito por aqui. Kozinski estacou diante de uma porta de metal reforçada, identificada apenas pelo número trinta e três. —Aqui — admitiu ele, através das mandíbulas cerradas. Um músculo se contorcia em sua bochecha. Vozes abafadas vinham da Cela 33. Era impossível discernir o que estava sendo dito, mas u m gemido agonizante e r a inconfundível. Meghan lembrou-se de Maia descrevendo Tyler sendo torturado. Como de costume, a predição da menina acertara na mosca. — Oh, droga — Marco disse. — Está acontecendo agora mesmo. Sacudido pel o sofrimento óbvio q u e acontecia b e m atrás d a porta, ele correu para o resgate. Meghan agarrou seu braço. — Espere. Nós não podemos simplesmente invadir como s e fôssemos a cavalaria. Não sabemos o que nos espera lá dentro. Ela confiscou a arma de Kozinski e a entregou a Marco. — Surpreenda-os. A arma parecia estranha e pesada n a mão d e Marco. Afinal, ele era um analista, não um agente de campo. Eu deveria estar queimando a mufa na Sala de Teorias com Abby , ele lamentou, e não encenando a versão filadelfiana da tomada da Bastilha!


Mas Richard Tyler, e bem provavelmente o resto d o mundo, dependia de ele entrar em contato com seu James Bond interior… Ou, ao menos, seu Austin Powers21 interior. — Está bem. Se eu não der sinal de vida em alguns minutos, mande a cavalaria. Seu coração batia tão rápido que ele achava que iria atingir a velocidade da luz. Sua boca parecia tão seca quanto o Arrakis22. Engolindo em seco, ele visualizou a cela d e sua breve visita de algumas horas antes. Ele tinha o desenho de Maia arquivado em um telefone celular, juntamente com incontáveis fotos da prisão estadual, capturadas da Internet, mas certamente a cena ainda estava viva em sua memória. Erguendo a arma, ele mergulhou de cabeça em sua tela mental. Gerônimo! Um segundo depois, ele se transportava para uma cena proveniente do pesadelo de Maia. Ryland e Astrid “interrogavam” Richard Tyler, que estava algemado à cadeira no centro da cela. Uma fina camada de gelo cobria o rosto e o corpo do prisioneiro. Ele tremia como vara verde, enquanto seus torturadores pareciam implacáveis. Seus dentes batiam. Seus lábios estavam azuis. Marco se arrepiou só de olhar para ele. — Podem parar! — e l e ordenou, sacudindo a pistola n a direção dos interrogadores atônitos. Ele havia aparecido em um canto nos fundos da cela, de frente para seus adversários. Distorceu sua voz para evitar ser reconhecido por Ryland. Apontar uma arma para seu exchefe não era nem de longe tão divertido quanto parecia. — Deixem-no em paz! Ryland se recuperou do susto causado pela entrada súbita do mascarado. Ele manteve a frieza. — Já está de volta? Você está brincando com a sorte, mas por mim, tudo bem. Nós temos uma cela vazia esperando por você. A adolescente magricela encarou Marco. Ele j á a havia identificado, pela descrição feita por Maia, como Astrid Bonner, uma garota de cabelos encaracolados que havia sido capturada pela NSA várias semanas antes do cinquenta/cinquenta. Sua ficha a descrevia como uma fugitiva adolescente com uma longa lista de delinquências juvenis, incluindo assalto, vandalismo, furtos e sequestro; um psiquiatra oficial a havia diagnosticado como detentora de tendências sociopatas extremas. Uma candidata perfeita para a Haspelcorp, em outras palavras. — Eu não gosto de ser interrompida — ela disse friamente. Pequenos anéis de névoa pontuavam cada sílaba. 21 Austin Powers – personagem de Mike Myers n a trilogia “Austin Powers”, que satiriza os filmes de James Bond, o famoso agente 007. 22 Arrakis – deserto fictício da série de livros “Duna”, de autoria de Frank Herbert.


O gelo derretia em Tyler à medida em que ela voltava a atenção para Marco. Antes que ele pudesse impedi-la, ela se adiantou e bafejou sua arma. Uma camada de gelo instantaneamente cobriu o aço soldado, que tornou-se frio o suficiente para queimar a mão de Marco. Entrando em pânico, ele tentou puxar o gatilho, mas este também estava solidamente congelado. Nada aconteceu. Droga, pensou Marco. Estou ferrado. Refrigerar coisas não era o único talento de Astrid. Um golpe e um chute revelaram habilidade para lutar também. O chute arrancou a arma congelada das mãos de Marco. Esta bateu no chão com um barulho muito alto. Olhos azuis glaciais o atingiram como pedras de gelo. Lábios finos azuis se ergueram em um melancólico sorriso. — Você acha que está tendo calafrios agora? — ela bafejou. — Espere até chegarmos ao zero absoluto. Mesmo com toda a sua genialidade, ele só conseguia pensar em uma coisa a fazer. — SOCORRO! — gritou a plenos pulmões.


DEZESSETE O grito de Marco colocou Meghan em ação. Ela impulsionou-se na direção da porta, mas era a vez de Tess dar as ordens. — Não — advertiu ela a Meghan, que instantaneamente deu um passo para trás. A mulher mais velha não sabia se estava fazendo por vontade própria ou não. Tess olhou para Kozinski. — Você vai primeiro. O guarda engoliu em seco. Ele empurrou a porta e marchou na direção da cela. Quase imediatamente, foi atingido na cabeça por alguém escondido além da porta. Ele caiu ao chão, segurando a cabeça. — Mas o que…? — uma voz de homem, que Meghan instantaneamente reconheceu como a de Dennis Ryland, disse em surpresa. — Eu pensei… Tess e Meghan adentraram a cela antes que ele pudesse completar a frase. — Mãos para o alto! — gritou Tess. — Sem armas! Ryland jogou sua pistola automática para longe. Meghan imaginou que ele a usara para acertar Kozinski. O antigo diretor na NTAC reconheceu Tess no mesmo momento; ele estava no comando quando Tom e Diana haviam-na encontrado pela primeira vez. — Doerner! Astrid Bonner investiu contra Tess, mas a garota estava pronta para ela. — Congele!23 Sua ordem apressada teve um efeito inesperado n a adolescente hostil. Um som asfixiante saiu da garganta de Astrid enquanto, numa velocidade assustadora, ela congelou a s i mesma. Sua pele pálida e translúcida cristalizou-se. Seus olhos ficaram vítreos. Estalos escaparam de sues pulmões. Seus cabelos brancos espetados endureceram e fragilizaram. Num instante, ela parecia mais uma frágil escultura d e gelo d o que carne e osso. A s botas cobertas d e gelo deslizaram no chão. Ela tropeçou… e se despedaçou. Um pandemônio caiu sobre a cela. Tess se desesperou. — Não! — gritou ela, caindo de joelhos em frente à adolescente quebrada. — Não foi o que quis dizer! — Seu monstro! — sibilou Ryland. Suas mãos ainda estavam erguidas. — Devia ter te lobotomizado24 quando tive a chance! 23 ”Freeze” significa congelado, seria melhor traduzido como “Parada”, mas para manter o trocadilho do livro, fica com tal tradução.


— Cale-se! — gritou Meghan. Embora estivesse tão chocada quanto qualquer outro devido ao que acabara de acontecer, ela se controlou pelo bem da missão. Pegando a arma de Ryland do chão, ela a entregou para Marco. — Não o deixe ir a lugar algum. — Er, tudo bem — disse ele, sua voz mais baixa e áspera do que o normal. Apontou ar m a par a Ryland, s e u desconforto evidente a t é mesmo através da máscara. Parecia que estava fazendo uma interpretação ruim de Jimmy Cagney.25 — Você ouviu a moça. Fique onde está. Esperando que Marco pudesse manter Ryland parado, pelo menos por alguns momentos, Meghan checou Tyler. O prisioneiro brutalizado estava frio e trêmulo. Parecia à beira de uma hipotermia. Seus dentes não paravam de bater. — Q-q-quem? — gaguejou ele. — O-o que está acontecendo? — Viemos tirá-lo daqui — explicou ela, rapidamente. Inspecionando suas amarras, ela encontrou a s mãos deles algemadas atrás d a cadeira. Olhou para Ryland. — Onde está a chave? Ele olhou para os restos secos congelados de Astrid. — Pode procurar entre os pedaços. Que ótimo, pensou Meghan. Ela olhou brevemente para o s fragmentos macabros. Agora que Astrid estava morta, o s pedaços estavam começando a derreter-se numa poça sangrenta. Meghan balançou a cabeça. De jeito nenhum que ele ia remexer nos detritos sinistros, não quando havia outra opção disponível. Ela tirou as luvas e tocou nas algemas. Aqui vamos nós, pensou. Ela descobrira sua habilidade quando havia, sem querer, transformado uma caneta tinteiro e m u m a orquídea. Experimentando c o m clipes d e papel , réguas e outros objetos, ela eventualmente descobrira q u e podia transformar materiais inorgânicos e m orgânicos. Em plantas, para ser exato, talvez por causa d e seu amor antigo por jardinagem. Ela não tivera coragem para tentar gerar tecido animal, e não estava pronta ainda. As algemas estavam desconfortavelmente frias ao toque, mas seus dedos não as empurraram. Fechando os olhos, ela visualizou delicadas videiras crescendo ao s o l . As algemas de aço frio amoleceram sob seu toque, ficando quentes e vibrantes. Quando abriu os olhos de novo, as amarras de metal haviam sido substituídas por gavinhas verdes folhosas, que ela facilmente rasgou com as mãos. 24 Lobotomia era uma cirurgia que consistia em cortar (isolar) um lobo cerebral, o frontal, para o tratamento da depressão. Não dava certo porque a pessoa ficava com sérias sequelas neurológicas, como indiferença, apatia, falta de iniciativa e alterações do humor. 2 5 James Francis Cagney Jr. f o i u m a t o r norte-americano. E r a u m artista d e vários


gêneros, mas se tornou célebre interpretando gângsters violentos e loucos e m filmes como Inimigo Público, Fúria Sanguinária e Anjos da Cara Suja. — Está tudo bem agora — disse a Tyler. — Você está livre. Ela colocou suas luvas novamente e ajudou o prisioneiro a se levantar. Seu macacão de prisão laranja estava úmido e grudento. Ele parecia fraco e exausto devido à sua provação frígida. — Consegue andar? — Não sei — confessou ele. — Talvez. Colocando o braço sob seu ombro, ela ajudou-o a sustentar-se, desejando de alguma maneira que ele fosse um homem um pouco menor. — Certo, todo mundo, nós estamos saindo. Infelizmente, Tess ainda estava em estado de transe. Cheia de culpa, ela balançava para trás e para frente ajoelhada. Uma poça de sangue, que cheirava como uma geladeira de carnes descongelada, exalava diante dela. — Eu não quis fazer isso — lamentava repetidamente. — Eu só disse “congele” para que ela parasse, como na TV, sabem? Não é minha culpa… — Eu sei — disse Meghan. Ela temia pela sanidade da garota. — Tess, temos que ir. Não é seguro aqui. Mas Tess parecia perdida e m s e u desespero. Lágrimas molhavam suas bochechas. Seu olhar estava preso nos restos que derretiam de Astrid Bonner. — Não quero mais fazer isso. Já chega… — Você pode parar depois — prometeu Meghan. El a estava tentada a deixar a garota instável para trás, mas, não, Tess os ajudara quando fora preciso; Meghan não iria abandoná-la agora. Ela vasculhou o cérebro por uma maneira de convencer a menina. — E o Kevin, Tess? Ele está esperando por você, lembra? Você quer vê-lo de novo, não quer? Isso chamou sua atenção. Olhos úmidos e vermelhos olharam para cima. — Kevin? — Isso mesmo. — Meghan indicou a porta. — Nós vamos ver o Kevin. — Sim, por favor — ela se pôs de pé tremendo, repentinamente ansiosa para deixar a cela escura para trás. Forçou-se a não olhar para o corpo despedaçado. — Preciso do meu Kevin. Ryland balançou a cabeça, desgostoso. — Grande erro — disse ele a Meghan. — Ela pertence a aqui, junto com todas as outras abominações perigosas.


— Ninguém pertence a aqui — ela devolveu. — Não enquanto você estiver no comando. Tiros vieram do lado de fora. Os alarmes soaram novamente, duas vezes mais altos do que antes. Abaixando-se, eles voltaram na direção da área circular. Meghan foi à frente, usando Ryland como um escudo humano. — Esperem! — protestou Tyler fracamente, arrastando o s pés. — Meus amigos. Evee, Yul… Meghan não reconheceu os nomes, mas imaginou que eles fossem outros 4400 aprisionados na Estadual do Leste. — Sinto muito — disse ela. Eles não estavam em condições de libertarem toda a população da prisão, muito menos estranhos que nunca tinham visto. Teriam sorte se conseguissem sair dali eles mesmos. — Não está no plano. Por sorte, Tyler não estava em condições de discutir. — Ouvi isso antes — resmungou ele, amargamente. Eles chegaram à entrada da área circular. Tiros brilhavam diante de seus olhos. Garrity e seus aliados forçados haviam se abrigado atrás da estação de segurança enquanto atiravam de volta em pequenos exércitos de guardas que tentavam retomar o centro de comando. Grades de ferro haviam sido abaixadas no local, bloqueando a s outras entradas. Os tiros ricocheteavam nas paredes e no teto, produzindo explosões de pedras e argamassa. A fumaça embaçava a câmara circular. Faíscas pulavam de monitores e consoles atingidos por balas. Nenhum dos defensores parecia ter sido atingido ainda, mas Meghan sabia que a sorte deles podia não durar muito mais. Ela empurrou Ryland para frente. — Mande o seu pessoal parar! — Uma ova que vou mandar! — Ele elevou a voz para gritar para sues homens. — Não se preocupem comigo! Atirem para matar! Idiota!, pensou Meghan. Ela não conseguia acreditar que aquele nazista já estivera no comando da NTAC, muito menos que fora um amigo íntimo de Tom. Ela o golpeou nas costas com a arma. — Nem mais uma palavra! Um tiro sortudo acertou um dos recrutas de Tess no ombro. Ele gritou de dor quando o impacto o fez girar. Sangue arterial brilhante jorrou em Meghan e nos outros. Ele caiu ao chão diante de seus pés. Choramingou de dor. O espetáculo sangrento tirou Tess d e s e u devaneio. E l a limpou uma pequena got a de sangue de sua bochecha, então estremeceu dos pés à cabeça. Seus olhos se arregalaram de espanto. — Parem de atirar!


As armas silenciaram-se, os ecos da briga de fogo rapidamente desaparecendo. Abaixando a arma, Garrity olhou aliviado para eles. O suor escorria de sua testa. — Já era hora — queixou-se. — Só tenho duas vidas, sabiam? Sua melancolia típica era estranhamente confortadora. — Tire o Tyler de Marco — ordenou ela. Garrity se aproximou para ajudar o prisioneiro manco, livrando Marco da tarefa. — Vá buscar o carro — ela disse. — Pode apostar. — El e pegou o celular e abriu u m a foto d o interior da limusine. — Estaremos esperando lá fora. Ele desapareceu de vista. Agora eles s ó precisavam chegar à rua. As grades d e aço abaixadas bloqueavam a saída. Tess caminhou direto para a barreira, então olhou para os guardas sob seu comando. — Levante os portões. Eu quero ir. Os dois guardas ainda de pé correram para o painel de controle. Momentos depois, as grades subiram para o teto como pontes levadiças de uma fortaleza. O caminho para a portaria se estendia diante deles. Meghan começou a pensar que eles iriam mesmo escapar. Então o gás começou a invadir. Buracos foram abertos no teto. Um gás branco e grosso se espalhou pela área circular, se misturando c o m a fumaça restante d a batalha. Meghan jogou a mão sobre a boca, m a s a fumaça narcótica invadiu seus pulmões assim mesmo. Guardas e invasores tossiram por causa do gás. A boca de Meghan umedeceu. Sua garganta secou. — Parem com isso! — tossiu Tess, roucamente. Ela cambaleou sem equilíbrio. — Sem gás. Sem gás! A infinita fumaça continuou vindo. Algum tipo d e sistema automático, pensou Meghan. Imune à habilidade de Tess. Mas Tess não era a única com uma habilidade. Uma ideia louca trespassou pelo cérebro grogue de Meghan. Lutando contra a tontura que deixava suas pernas como gelatina, ela esticou os braços para tocar o gás nocivo. Fechando os olhos, invocou u m a lembrança d e flores perfumadas. Essência d e rosas, p a r a s e r exato. Átomos vaporosos refizeram-se quando a fumaça dava lugar a flores muito mais atraentes. A cabeça e os pulmões de Meghan s e aliviaram. Ela inspirou o doce perfume profundamente. Seus olhos abriram-se. A área circular cheirava a jardim de rosas. Para seu alívio, sua equipe ainda estava de pé. Garrity cheirava o ar. Ele olhou para Meghan, maravilhado. — Você fez isso?


— O que mais posso fazer? — disse ela. — Gosto de flores. Sob o controle de Tess, os guardas no pátio afastaram-se para deixá-los passar. — Segurem eles, caramba! — berrou Ryland para os homens, mas a habilidade sinistra de Tess e r a maior q u e s u a autoridade. Quando chegaram à saída, ela abriu o portão. Eles desceram os degraus para a calçada. Meghan sentiu-se com esperança quando eles finalmente deixaram a prisão para trás. Estamos quase conseguindo, pensou. Uma limusine preta encostou-se ao meio-fio. Janelas filmadas abaixaram-se, revelando Jed Azul atrás do volante. — Demoraram bastante — disse ele. — Bom para vocês que eu não sou pago por hora. A porta de trás se abriu. Marco os chamou do assento traseiro. Uma máscara ainda cobria seu rosto. — Todos a bordo. A limusine era um colírio para os olhos. Meghan empurrou o resto da equipe na direção da porta. — Andando! Logo quando ela pensou que estavam seguros, um tiro estourou acima de suas cabeças. Um atirador, ela percebeu instantaneamente. Nas muralhas no castelo! O tiro errou Tyler, atingindo J e d Vermelho, n o entanto. Meghan congelou horrorizada quando a cabeça de Garrity explodiu como uma melancia. — Jed! Dentro da limusine, o outro Jed gritou e agarrou a cabeça. Tess levantou o queixo na direção das ameias altas do castelo. Seu rosto delicado transformou-se numa máscara de ódio. — Pule! — gritou ela. O atirador estourou-se na calçada, somando-se à carnificina. Uma perna quebrada pousouse em um ângulo sobrenatural. Ele contorceu-se de dor. Meghan aproximou-se correndo e chutou seu rifle para longe dele. Ela não sentia pena do atirador ferido. Francamente, ele tinha sorte por estar vivo. Seu cérebro ainda estava assimilando a morte bruta de Garrity. Controle-se, Doyle, pensou ela urgentemente. Pelo menos até que leve essas pessoas para casa. — Bem, é um 4400 a menos — disse Ryland, insensivelmente. O punho de Meghan aliviou-se da frustração em sua mandíbula. Tonto, ele caiu na calçada. Socar Ryland não trouxe Jed Vermelho de volta à vida, mas ah se isso não a fazia sentir-se um pouco melhor. Isso é pelo Garrity… e todos os outros positivos que você atormentou.


Deixando seu antecessor estatelado no chão, ela ajudou Tyler, que havia caído ao lado do corpo de Garrity. Ele olhava para o crânio estourado do agente. — Eu nem mesmo sabia seu nome… — Eu lhe apresento depois — prometeu ela, sem se preocupar em explicar. Rapidamente o colocou dentro do carro, então se virou para o cadáver de Garrity. Eles não podiam deixar o corpo do agente para trás, não sem expor que a NTAC estava envolvida na invasão. Seu estômago revirou enquanto ela e Tess colocavam o corpo n a parte d e trás d a limusine junto com o s outros passageiros. Sangue e miolos mancharam toda a sua luva e jaqueta. Ela teria de queimá-las assim que tivesse uma chance. Tess entrou junto com Marco, Tyler e o resto do cadáver, enquanto Meghan checava o Garrity sobrevivente. Jed Azul estava pálido e trêmulo, mas parecia fisicamente bem. Teria ele sentido a morte d e s e u duplo d e alguma maneira? Os irmãos Corsican26, pensou ela. Olhando por sobre os ombros, ele encarava seus restos assustadores em choque. — Olhem para mim — choramingou ele. — Eles explodiram minha cabeça… Claramente, ele não estava em condições de dirigir. Meghan abriu a porta do motorista. — Para o lado… agora. Ela o empurrou para o banco do passageiro e sentou-se atrás do volante. As janelas filmadas fecharam-se novamente, escondendo os fugitivos. Ela tirou sua máscara. Colocando o cinto de segurança, afastou-se do meio-fio. Buzinas indignadas soaram atrás quando ela forçou seu caminho em meio ao trânsito. E não tão cedo. Sirenes gritaram pela noite. Ela ouviu os carros de polícia convergindo na prisão. Alguém denunciara os tiros ou já era a perseguição? De qualquer modo, a vizinhança logo estaria lotada pelos policiais, FBI e Segurança Doméstica. Ela acelerou. Luzes pisca-pisca apareceram no espelho retrovisor. Um carro de polícia apareceu freando virando a esquina. 26 The Corsican Brothers é um filme de 1941, com Douglas Fairbanks Jr. atuando num papel duplo como gêmeos siameses q u e s ã o separados n o nascimento e criados em circunstâncias completamente diferentes. Os dois querem se vingar do assassino de seus pais e se apaixonam pela mesma mulher. — Marco! — chamou ela. — Ligue para o pessoal do Collier. Agora é a hora para aquela distração que ele prometeu.


— Deixa comigo! — Dedos ágeis digitaram uma mensagem. — Pronto! O s agentes d e prontidão d e Collier n ã o perderam tempo. Minutos depois, as luzes se apagaram e m toda a avenida, enquanto u m apagão deixava Filadélfia na penumbra. Carros colidiram quando os semáforos piscaram. A limusine deslizou por um cruzamento, quase batendo em um caminhão. Mais buzinas se juntaram ao tumulto. Ela não desacelerou. Isso deve manter as autoridades ocupadas por um tempo, pensou. O tempo suficiente para chegarmos ao campo de pouso. Olhando pelo retrovisor, ela viu que eles haviam despistado aquele carro de polícia. Talvez tivesse parado para checar o atirador. Richard tremeu no banco de trás. — Onde estamos indo? — Para u m lugar seguro — prometeu ela. O s agentes d e Collier estavam esperando em Seattle para escoltá-lo para um esconderijo do Movimento. Ela aumentou a temperatura para aquecê-lo. Um pergunta vital ocorreu a ela. — Você falou? O Ryland conseguiu o que queria? Ele balançou a cabeça. — Vocês me resgataram a tempo, no entanto. Não sei quanto mais poderia aguentar. Obrigada, Maia Skouris, pensou Meghan. Que bom que Jed Vermelho não havia morrido em vão. Missão cumprida. Tirando o seu celular do bolso, ela contatou o avião. — Estamos a caminho. — Positivo. Deixaremos os motores ligados. Demorou um segundo para ela reconhecer a voz do outro lado da linha. Não podia acreditar no que ouvia. — Garrity? Marco e Tess reagiram no banco de trás. Jed Azul quase pulou de seu banco. — Quem mais? — respondeu a voz. — Tudo bem? Você está engraçada. Meghan olhou para o Garrity morto no chão atrás dela. Seu sangue ainda pingava no carpete interior da limusine. Seu olhar voltou para o telefone. Havia um novo Garrity agora? Para substituir o que havia morrido? Como esperado, Marco já estava formando uma teoria. — Talvez seja u m sistema d e backup automático, gerando uma cópia de segurança toda vez que um Garrity é deletado. — A empolgação enchia sua voz enquanto ele aquecia a ideia. — É como a apólice de seguro final. — O que é isso? — perguntou o novo Jed. — Não entendi nada. — Deixa pra lá — disse Meghan. Ela tinha muito em suas mãos agora para lidar com mais esquisitices. — Explicaremos depois.


Se é que isso fosse possível.


DEZOITO O experimento estava em curso. Carl estava amarrado a um sofá em frente a Tom e Diana, seminu, só com um short preto de boxeador. Uma tatuagem de Jordan Collier enfeitava seu bíceps direito. O corpo de Danny – o verdadeiro, aparentemente – estava estirado em uma maca, ao seu lado. Abby se encontrava de pé entre o rapaz morto e o vivo, encarando os agentes prisioneiros. Um vestido d e caxemira cinza confirmava que ela tinha muito mais senso de moda do que os nerds comuns da Sala de Teorias. Ela flexionou os próprios dedos. Eletrodos estavam presos à s têmporas e a o peito d e Carl. U m acesso intravenoso fora inserido em seu braço. Uma bateria de sofisticados equipamentos médicos monitorava seus sinais vitais. Grayson s e ocupava d o s aparelhos, registrando cuidadosamente as leituras. Rosita equipava o carrinho de reanimação, caso houvesse alguma emergência. Ainda presos à s suas poltronas, Tom e Diana s ó podiam assistir Abby e seus comparsas completarem suas preparações. — Esta é a sua última chance. — Abby disse para Carl. — Ninguém vai culpá-lo se quiser voltar atrás. — De jeito nenhum — respondeu passionalmente o rapaz. — Esperei a minha vida inteira por este momento. É a minha grande chance de fazer a diferença. Tom imaginou que homens-bomba deveriam se sentir exatamente assim. Ele estava horrorizado com a vontade que Carl estava de jogar fora sua própria vida, tudo por uma chance de obter a mesma habilidade horrível que arruinara a vida de Danny. Ele não enxergava q u e Da n n y h a v i a morrendo atormentado, com milhares de mortes em sua consciência? — Seu comprometimento com a causa é inspiração para todos nós — disse Grayson, com u m t o m suave e profissional, q u e e l e certamente havia usado para consolar incontáveis clientes enlutados. Ele injetou vários centímetros cúbicos de uma substância amarelo-escura no acesso intravenoso de Carl. — Este novo composto deve facilitar a transformação e superar o fator de resistência natural de seu corpo. Eu também incluí um anestésico, para aliviar a dor. Tom se perguntava quantos compostos anteriores Grayson havia tentado, no passado. Eles conheciam ao menos quatro fatalidades. — Não estou com medo d a dor — insistiu Carl, não convencido inteiramente. Apesar de sua coragem, ele parecia meio pálido. Seus dedos tamborilavam nervosamente na poltrona abaixo dele. — Vamos logo com isto. — Tudo bem — respondeu Abby. Um trinado em sua voz sugeria que ela não estava nem um pouco confiante como fingia estar. Ela respirou fundo e pousou as mãos nos corpos dos dois lados dela, formando um circuito entre o vivo e o morto. Seus dedos estavam estendidos


sobre o peito de ambos os homens. Ela fechou os olhos. — Abby, espere! — Diana gritou. — Isto é loucura. Você vai matar o rapaz! — Cale a boca! — gritou Rosita. Ela ergueu uma seringa d o carrinho de reanimação. — Não me faça apagar você. Tom não queria saber o que havia dentro da seringa. Ignorando o apelo desesperado de Diana, Abby manteve os olhos fechados com força. Um ar de intensa concentração se estampou em seu rosto. Suas unhas se cravaram no peito dos rapazes. Tom sentiu um embrulho no estômago ao ver o corpo de seu sobrinho ser profanado daquela maneira. Deixe-o em paz, sua traíra maluca! A forma sem vida de Danny permaneceu inerte. Carl não teve a mesma sorte. Convulsões sacudiam s e u corpo. E l e s e agitava violentamente dentro das amarras. S u a s costas se arqueavam como se ele estivesse sendo eletrocutado. Seus olhos rolaram para trás, até que s ó a parte branca estivesse visível. Veias inchadas pulsavam sob sua pele. Um lamento de agonia irrompeu de sua garganta. Tufos de cabelos avermelhados caíram de sua cabeça. Ele espumava pela boca. Seus sinais vitais subiram de modo alarmante. Tom não era médico, mas havia passado tempo suficiente no hospital durante o coma de Kyle, para saber que a pressão sanguínea, a pulsação, a atividade cerebral e outras funções metabólicas de Carl estavam chegando ao topo. Alarmes sonoros se ativaram nos caros aparelhos de monitoração. Gráficos irregulares subiam vertiginosamente. Tom achava que Carl estivesse a poucos momentos de um ataque cardíaco. — Droga — praguejou Grayson. Ele injetou mais composto experimental no acesso intravenoso. — Estamos perdendo ele… Igualzinho aos outros! Rosita preparou o desfibrilador. — Não! — exclamou Abby. Sua testa lisa se enrugou, em concentração. Todo o seu corpo parecia vibrar. O suor escorria por seu rosto. — Está funcionando! Posso sentir! Algo estava definitivamente acontecendo com Carl. Sua carne borbulhava e se derretia, fluindo para uma nova configuração em sua estrutura retorcida. Suas feições ficaram borradas. Cabelos loiros, tom d e areia – d a cor dos d e Danny – brotaram por todo o couro cabeludo, substituindo o s tufos que haviam caído ao chão. Sua tatuagem desaparecera debaixo de uma pele rosada e fresca. Um novo rosto se modelou em seu crânio. O rosto de Danny. Oh, Deus, pensou Tom. Se ele não soubesse, juraria que era seu sobrinho morto sofrendo diante de seus olhos. Danny/Carl gritava em agonia. Tom desviou o olhar, repugnado. Ele sentia como se fosse vomitar. — Não é ele, Tom. — Diana gritou para ele. — Não é Danny. Eu sei, pensou Tom, mas ainda assim…


Era como se Danny estivesse morrendo novamente. Os lamentos desoladores foram diminuindo gradualmente. Tom se forçou a permanecer observando as convulsões de Carl desaparecerem. Seus sinais vitais se estabilizaram. Arfando, e l e s e afundou n a s almofadas d e vinil d a poltrona. Seu peito se elevava conforme seus pulmões se enchiam de ar. A carne trêmula estava ensopada de suor. Seus olhos voltaram á posição normal. Eles estavam castanhos agora, a mesma cor dos de Danny. Um arrepio desceu a espinha de Tom quando os olhos de seu sobrinho se viraram para ele. — Funcionou? — ele perguntou, fracamente. Até sua voz era a de Danny. — Nós conseguimos? Abby retirou suas mãos de Carl e Danny. Ela parecia exausta, mas exuberante. — Absolutamente! Grayson desfez as amarras de Carl. Ele pegou um espelho de mão em uma bandeja de instrumentos cirúrgicos. — Veja por si mesmo. — Caramba! — Ca r l encarou s e u n o v o rosto, surpreso. S e u s dedos exploraram os contornos desconhecidos. Ele olhou para Abby. — E eu não vou morrer? — Parece que não — ela soltou um suspiro de alívio, claramente feliz por não ter sangue nas mãos mais uma vez. — Parabéns. Você é a primeira pessoa que sobreviveu a um transplante total de DNA. Grayson parecia que i a abrir uma garrafa d e champanhe. Ele apertou a mão de Carl com entusiasmo, enquanto Rosita observava com ar de felicidade. — Agora só temos que injetar promicina nele e ver se desenvolve a habilidade de Danny. — Ele irá — disse Abby, confiante. — Ele é uma cópia perfeita agora — seu rosto brilhava de orgulho diante de sua façanha. — E isto é só o começo. Agora que aperfeiçoamos o procedimento, podemos cr i ar centenas d e clones d e Danny para espalhar o d o m da promicina. Imagine s ó — empolgou-se e l a — u m verdadeiro exército de hospedeiros despachados para o mundo todo, criando novas epidemias em todos o s lugares aonde forem. Será como repetir o Grande Passo Adiante, só que em escala global. Parece mais outro cinquenta/cinquenta , pensou Tom, matando metade da população mundial. Ele não podia imaginar tragédia maior. E tudo porque esses demônios não deixam Danny descansar em paz. — Não tão rápido — disse Diana. — Não s e esqueçam. A s autoridades sabem sobre o poder d e disseminação, agora. El e s podem combater quaisquer outras epidemias, como fizeram em Seattle. — Eles podem tentar – replicou Abby, despreocupadamente. — E talvez, se eles estiverem mesmo empenhados, possam proteger alguns centros populacionais importantes p o r certo tempo. Mas e quanto ao Terceiro Mundo e coisas do tipo?


Uma vez que a epidemia começar a s e expandir pelo mundo, duvido que algum governo tenha os recursos para impedir que se espalhe e fique fora de controle. Ninguém tem tal estoque de U-pills. O Movimento já percebeu isto. Diana não tinha resposta imediata. É porque, observou Tom, ambos sabemos que ela está certa. — Se quiser deixar uma mensagem, digite um. Kyle xingou, frustrado. Ele martelou o teclado de seu telefone celular. — Pai, sou eu de novo. Kyle. Me liga assim que puder, OK? Estou ficando doido aqui. O sinal sonoro da caixa postal tocou, em resposta. — Droga! — zangado, Kyle arremessou o telefone para o outro lado da sala. O aparelho bateu nas almofadas d o sofá, n o lado oposto d o escritório. Ele caminhava pela sala agitado, puxando os cabelos, frustrado. Já haviam se passado horas desde que contara a seu pai sobre o Comitê d e Alcance Global e aquele centro d e plasma fechado, e n ã o tivera mais nenhuma notícia desde então. Ele tentou o telefone da casa de seu pai, o do trabalho, o celular, até o email, mas não conseguia s e comunicar com ele. Diana também não estava retornando suas chamadas urgentes. Droga, ele até tentara falar com a nova namorada de seu pai, Meghan Doyle, sem conseguir nada. Por que ninguém me retorna? Estarão me cortando da jogada? — É melhor pensar que ninguém viu ainda o s seus recados — Cassie o repreendeu. Ela estava sentada à mesa dele, folheando uma cópia das profecias da Luz Branca. — Talvez você se complique quando tiver que explicar aos seus colegas aqui o porquê de insistir em ligar para a diretora da NTAC. Kyle não estava a fim de aturar as lições de moral dela. — Este é o melhor conselho que você tem para me dar no momento? Neste caso, talvez devesse me deixar em paz. Uma batida na porta os interrompeu. A porta se abriu um pouco e Susan Meldar, secretária de Kyle, colocou a cabeça pela fresta. — Kyle? — olhos preocupados o fitaram. — Tudo bem por aqui? Para seu constrangimento, Kyle notou que sua explosão h á alguns momentos tinha sido escutada mesmo com a porta fechada. — Nós estamos bem… Quero dizer, e u estou bem — ele s e corrigiu. — Desculpe pelo barulho — um encolher dos ombros disfarçou o incidente. — Muito estresse, sabe? — Posso te ajudar em alguma coisa? – ofereceu Susan. Ela ainda parecia um pouco preocupada com Kyle. — Talvez uma xícara de chá de ervas? Ele sacudiu a cabeça. — Não, obrigado – e l e respondeu, exibindo u m sorriso forçado. — Sério, estou bem.


Tenho apenas um assunto de família para resolver, é isto — ele tentou rir daquilo. — Você sabe como parentes podem ser doidos. — Acho que sim – ela disse, antes de retornar para a antessala. A porta se fechou por trás dela. Passos abafados se dirigiram para a mesa dela. Kyle respirou aliviado. Ótimo, ele pensou, sarcástico. Agora estou começando a perder o controle diante dos funcionários. Que xamã eu sou… — Essa foi tranquila — provocou Cassie. Parecia que ela agora estava sempre com ele, nunca lhe dando chance de pensar por si mesmo. –— Você tem que s e controlar, Kyle. As pessoas te respeitam aqui. Você tem que ser um exemplo. — Obrigado pela dica — ele respondeu, irritado. Atravessando a sala, ele pegou o telefone dentre as almofadas. Automaticamente checou as mensagens de novo, mesmo que apenas alguns minutos tivessem se passado desde a última vez em que ele as havia verificado. Nada. Ele reprimiu u m ímpeto d e arremessar o telefone novamente. É isso, ele pensou. Eu não posso ficar aqui parado nem mais um minuto. Preciso saber o que está acontecendo. A cópia do livro das profecias o desiludiu. Mesmo com toda sua sabedoria, não continha a informação de que ele precisava naquele exato momento. Não ajudava em nada. Bem como Cassie. Só restava uma opção a recorrer. Jordan, ele pensou. Talvez Jordan saiba de algo. Ele havia prometido a seu pai que não falaria sobre isso com Jordan, mas isto fora antes de ele e Diana desaparecerem da face da Terra. Eu não tenho que contar a história toda para Jordan, ele raciocinou, mas talvez eu consiga arrancar dele alguma informação sem dar bandeira. Vale a pena tentar. Qualquer coisa era melhor do que sofrer com o suspense por mais um minuto. Decidido, ele saiu do escritório e caminhou rapidamente pela antessala. Para sua surpresa, Cassie não tentou impedi-lo. Talvez e l a soubesse q u e não adiantava tentar convencê-lo. O saguão acarpetado estava fervilhando de atividade, com todos o s seus colegas positivos ocupados e m preparar a reconstrução d e Seattle e , p o r conseguinte, do mundo todo. O tumulto de numerosos telefonemas e conversas indicava a vitalidade do Movimento. Um retrato emoldurado de Jordan estava pendurado em uma parede. Música ambiente, executada pelo Coro de Meninos da Terra Prometida, tocava baixinho, ao fundo. Os cantores sobrenaturais e talentosos alcançavam notas que mesmo Castrati27 hesitariam em tentar emitir. Kyle sentiu-se estranhamente constrangido. Quantas pessoas já haviam presenciado ele se descontrolar antes? Estava ficando paranoico, ou podia mesmo sentir dezenas d e olhos o observando, enquanto passava pelos vários cubículos adjacentes a o s e u escritório? Susan


Meldar olhou par a e l e cautelosamente por detrás de seu computador. Suas mãos não se encontravam nem perto do teclado. E l a pesquisava n a internet apenas apontando o s d e d o s p a r a a t e l a . U m g r u p o de funcionários, q u e conversava socialmente e m volta d o bebedouro, s e calou estranhamente quando ele passou. Ele tropeçou n o carpete, fazendo ruído. Até onde sabia, alguém estava lendo seus pensamentos naquele exato momento. Concentrou todos os seus esforços em agir como se não estivesse pensando em nada. Jordan ficava n o escritório d o canto, n o final d o corredor. Como sempre, dois guardacostas estavam posicionados d o l a d o d e f or a. Galloway podi a induzir dores d e cabeça enlouquecedoras e convulsões s ó d e olhar para alguém. Quinn podia sentir pólvora e outros explosivos a centenas de metros. Nenhum dos dois se moveu quando Kyle se aproximou. Kyle falou descontraído. — Preciso falar com Jordan. — Ele pediu para não ser incomodado – respondeu Galloway, sem muita convicção. Kyle havia conhecido aquele homem e m Evanston, u m ano atrás. Ele estava com Collier desde o início. — Até por mim? — sorrindo de orelha a orelha, ele se impôs de leve. — Qual é , amigos, eu sou o Sr. Profecia, lembram-se? Jordan sempre tem um tempinho para mim. O s guardas olharam u m p a r a o out ro, e e n t ã o saí ram d o caminho. Eles estavam acostumados a ver Kyle ir e vir livremente. — Está bem — Quinn cedeu. — Mas seja breve. Kyle encontrou Jordan em sua mesa, conversando através de um fone de ouvido. A chuva salpicava as janelas panorâmicas atrás dele. Uma televisão de tela plana, pendurada na parede, lançava um brilho fosforescente. A TV estava com o som cortado. Jordan usava um controle remoto para navegar por vários canais de notícias enquanto falava ao microfone. — Bom, bom. É bom saber que nosso amigo está s e recuperando. Mas lembre-se, nós precisamos conservar nosso trunfo, agora que ele está de volta. De 27 Castrati – cantor masculino cuja extensão vocal corresponde completamente à das vozes femininas. Tal faculdade numa voz masculina só é verificável na sequência de uma cirurgia d e corte dos canais provenientes dos testículos, ou então por um problema endocrinológico que impeça a maturidade sexual. Consequentemente, a chamada “mudança de voz” não ocorre. maneira nenhuma os nossos aliados estarão autorizados a tomar posse do indivíduo em questão… Jordan notou a entrada de Kyle. Uma centelha de perturbação relampejou em sua face barbada.


— Desculpe — ele disse para a pessoa com quem estava falando. Ele olhou para seu visitante. — Agora não é uma boa hora, Kyle. Ele olhou de relance para a tela da TV. Kyle viu que o noticiário legendado estava mostrando um blecaute geral na Filadélfia. Ele fez um sinal de “tempo esgotado” para Jordan. — Algo que eu devia saber? — De modo algum — respondeu Jordan. — Estou somente negociando a soltura d e um prisioneiro político na Costa Leste. Mas eu realmente não tenho tempo para conversar agora. Kyle não se importou. — Só uma perguntinha — ele disse, se desculpando. — O que você sabe sobre uma coisa chamada Comitê de Alcance Global? — É só isso? — o nome não pareceu alarmar Jordan. — É uma iniciativa de pouco vulto. Para promover o apoio de promicino-positivos no exterior — ele olhou de modo confuso para Kyle. — Por que o interesse? — Nada demais — ele mentiu. — Só vi o nome em um relatório. Estava me perguntando o que era. Jordan suspirou, impaciente. — Tenho certeza d e q u e alguém d o décimo andar pode t e d a r maiores detalhes, mas, honestamente, você não deveria perder seu tempo e energia com tais minúcias. Nó s temos bastantes e talentosos relações-públicas disseminando nossa mensagem para as massas. Ao invés disso, você tem que se concentrar na grande causa. Esta é a sua função — seu olhar se voltou novamente para a tela de TV. — Agora eu realmente preciso voltar a esta ligação. Kyle ainda não estava satisfeito. — Só mais uma coisa. Por acaso você ouviu alguma coisa sobre meu pai hoje? Ou sobre Diana Skouris? — Acredite ou não, Kyle — ele disse, com um quê de irritação em sua voz — eu não fico o dia inteiro obcecado com o que o seu pai e a parceira dele estão fazendo. Se você está tendo problemas com Tom por algum motivo, sugiro que resolva isso com ele, não comigo. Kyle sentiu que estava sendo convidado a se retirar. — Você está me mandando embora, Jordan? — De maneira nenhuma. — Jordan suspirou novamente, mais desgastadamente, desta vez. — Mas, infelizmente, meus dons não incluem parar o tempo em seu curso — ele adotou um tom mais conciliador. — Talvez nós possamos discutir isso mais tarde? — Sim, claro — disse Kyle, mal-humorado. Ele percebeu que não ia conseguir mais nada de Jordan. Virou-se e encaminhou-se para a porta. — Mais tarde. Jordan deixou-o ir. — Por favor, feche a porta ao sair.


Espumando, Kyle caminhou de volta para seu escritório. Ele bateu a porta com força, sem se importar se alguém ouviria. Seu pai estava desaparecido, talvez em apuros, e ele parecia ser a única pessoa que se importava com isso. Cassie estava esperando no sofá. — Acalme-se, Kyle. Deixe para lá. — É fácil para você dizer isso — disparou Kyle. — Você não tem pai. Nunca teve. — Ai — disse ela, parecendo magoada. — Isto foi indelicado. Ele imediatamente se arrependeu das suas palavras. — Desculpe. Eu não deveria descontar em você. Isso tudo está acabando comigo — a culpa s e juntou à sua ansiedade. — Eu dei aquele endereço a o meu pai, Cassie. E se foi um grande erro, como você falou? E se ele estiver em perigo por minha causa? Ela se levantou e pegou o braço dele. — Não seja tão duro consigo mesmo. Você fez tudo o que podia. — Não, ainda não fiz — uma decisão súbita tomou conta dele. Desvencilhando-se d o abraço d e Cassie, ele apanhou seu sobretudo e m um cabideiro ao lado da porta. Vestiu-o com pressa, e vasculhou sua mesa até encontrar o endereço do centro de plasma. — Eu mesmo vou até lá. Cassie reagiu alarmada. — Não é uma boa ideia. — Ah, não? — ele a desafiou. — E por quê? Ela se colocou entre ele e a porta. — Não é seguro. Aquilo não era suficiente. — Como assim? — Você não precisa saber dos detalhes — ela respondeu, teimosa. — Apenas acredite em mim, você não deve ir até lá. É muito perigoso. — Então você deveria me ajudar um pouco mais! — o tom amargo em sua voz o surpreendeu, e ele levou um segundo para se acalmar. Não queria discutir, especialmente quando precisava mesmo dela ao seu lado. Ele a segurou gentilmente pelos ombros e olhou-a nos olhos. — Por favor, Cassie — ele implorou, com voz rouca. — Você não entende? Estou sozinho aqui. Até que eu descubra o que está acontecendo, não posso confiar em ninguém na NTAC ou no Movimento. Você é tudo o que me resta. Estou contando contigo, por favor! — seus olhos procuraram desesperadamente o rosto dela. — Você me ama ou não? — Isso não é justo, Kyle — ela protestou. — Não diz respeito a nós, e sim ao que é melhor


para você, e para o futuro — ela aninhou o rosto dele entre suas mãos. — Você é muito importante para o Movimento. Não posso deixar que se coloque em perigo por causa de seu pai. — Ótimo. Porque eu irei de qualquer maneira — ele a afastou do caminho e se encaminhou para a porta. — O que significa que você pode ficar aqui, de cara feia, ou pode me ajudar a me manter vivo. Ela olhou furiosa para as costas dele. — Você não se atreveria! — Experimenta só. Tremendo de frustração, seus punhos cerrados ao lado d o corpo, ela observou, impotente, enquanto ele segurava a maçaneta da porta. Abriu a porta e a deixou para trás. — Tá legal — ela disse, petulante. — Você venceu! — ela correu atrás dele. — Mas você me deve uma!


DEZENOVE O CENTRO D E PLASMA ficava num a parte rui m d a cidade. Ky l e olhava e m volta nervosamente enquanto Cassie o guiava c o m rancor p o r u m b e c o s u j o at r ás do prédio abandonado. Nuvens escuras obscureciam a luz fraca do sol. Uma garoa fria descia pelo seu pescoço. Poças gordurosas derramavam-se pelo chão. — Só para constar, estou fazendo isso sob protesto — lembrou-o Cassie. Um casaco de pele e lã a protegia do frio, ou ao menos parecia proteger. Seu guarda-roupa t odo e r a t ã o ficcional quanto o resto dela. Ky l e á s vezes imaginava qual parte do seu inconsciente escolhia suas roupas e acessórios toda vez que ela aparecia para ele; eles sempre pareciam encaixar-se com a situação. No momento, porém, ele tinha questões mais importantes em mente. — O meu pai está aqui? E a Diana? — Sim, mas teremos que ter cuidado. — Ela subiu um pequeno lance de degraus até uma área de descarregamento de mercadorias no fundo do prédio. Manteve a voz baixa, mesmo que ninguém pudesse escutá-la. — Há quatro pessoas perigosas lá dentro, e não ficarão felizes em vê-lo. Kyle juntou-se a ela na porta dos fundos. Ele desejou ter pensado em trazer algum tipo de arma, embora não fizesse ideia de onde teria conseguido uma. Jordan objetava armas na Terra Prometida; ele preferia que os positivos confiassem em suas habilidades ao invés disso. Agora isso não adianta nada. — O cadeado está quebrado — anunciou Cassie. — Obra do seu pai, pode apostar . Mas você não pode simplesmente entrar. Tem que esperar pelo momento certo, quando as pessoas lá dentro estiverem distraídas e olhando para o outro lado. Kyle sentiu um calafrio ali na área de descarregamento. Abraçou a si mesmo para manterse aquecido. — E como vou sabe quando é isso? — É p o r i s s o q u e estou aqui, bobinho. — Cassie abaixou a v o z p a r a u m sussurro conspiratório. — Agora escute com atenção. O que você precisa fazer é o seguinte… — Temos a promicina! — declarou Grayson triunfantemente. Ele mexia um bastão de metal p o r baixo d o s braços d e Carl, c o m o u m segurança d e aeroporto verificando um passageiro suspeito com u m detector d e metais. Um fino cabo eletrônico conectava o bastão com um monitor portátil. Grayson olhava para a tela iluminada d o monitor. — O Carl está definitivamente exalando promicina d e seus poros. Estou detectando aproximadamente três mil e sessenta partículas por milhão.


Abby bateu palmas. — Conseguimos! Finalmente! — Sabia que i a d a r certo! — Carl sentava e m cima d a poltrona d e vinil, suas pernas suspensas d o lado. Um roupão d e banho d e algodão estava aberto, expondo seu peito nu. O soro e os eletrodos haviam sido retirados de seu corpo. E l e esfregava o b r a ç o o n d e Rosi t a injetara promicina m a i s c e d o . S u a inquietante semelhança c o m Danny continuava perturbando Tom. Danny parecia t e r se levantado dos mortos, assim como Jordan Collier. Isso é um pesadelo, pensou Tom. E só está piorando. Carl olhou para ele, que ainda estava amarrado numa poltrona ao lado de Diana. Ele franziu o cenho impaciente. — Como pode ele não estar reagindo ainda? — O efeito raramente é instantâneo — observou Abby. — E u não desenvolvi minha habilidade até dias depois de ter sido infectada. Além d o que, ainda é possível que ele tenha bastante ubiquinona28 no sistema. Tom torceu para que esse fosse o caso. Já estou infectado, indagou-se ele, ou as U-Pills estão me protegendo? De acordo com Kyle, ele estava condenado a se tornar um positivo. Era hoje o dia em que a profecia finalmente se realizaria? — É fácil descobrir — comentou Grayson. Ele abaixou o bastão sensorial. — Um simples exame de sangue nos mostrará seus níveis de ubiquinona e nos dirá se ele virou positivo ou não. — Ele acenou para Rosita. — Faria a honra? — Claro, Bernard — a filipina arrastou um carrinho de metal até a poltrona de Tom. Ela tirou uma seringa metálica de uma gaveta embaixo do carrinho, junto com gaze e outros suprimentos, e os pousou numa bandeja esterilizada. Levantou a manga de Tom e amarrou um torniquete em seu braço. Dedos rechonchudos apalparam a veia na dobra de seu braço até que ela se sobressaltou. Ela limpou com antisséptico. — Têm boas veias. — Obrigado — disse Tom friamente. Ele se esticou mais uma vez contra as amarras que o prendiam, mas não teve sorte. — Espero que saiba o que está fazendo. — Não se preocupe — assegurou-o Abby, — Rosita era flebotomista29 aqui, antes de fechar. F o i assi m q u e descobrimos e s s e lugar. — E l a s e aproximou para observar o procedimento. — Você está em boas mãos. Duvido, pensou To m . An t e s q u e pudesse d i z e r al gum a coi s a, n o entanto, ele se sobressaltou ao ver Kyle esgueirar-se na sala pelos fundos, do mesmo modo que ele e Diana fizeram. Confusão e esperança rodearam seu cérebro. O que ele está fazendo aqui? 28 A Ubiquinona (também chamada de Coenzima Q10, Coenzima Q e abreviada como CoQ10, CoQ, Q10 ou Q) é uma benzoquinona presente e m praticamente todas a s células do organismo que participa dos processos de produção de ATP.


29 É um profissional que tem como função fazer uma incisão praticada na veia, com objetivos diversos. Colocando um dedo em frente aos lábios, Kyle moveu-se pelo andar de doação na direção de uma das poltronas vazias. Tom entendeu que seu filho queria as ar m as q u e Carl cuidadosamente havia depositado ali antes. Infelizmente, as armas estavam d o outro lado do local. Kyle conseguiria alcançá-las sem ser visto por Abby e pelos outros? O rosto d e Tom congelou enquanto ele s e esforçava para não entregar a chegada d e seu filho. Por sorte, sua surpresa momentânea seria entendida como ansiedade por causa do exame de sangue à frente. Ele resistiu à tentação de olhar para Diana, que também avistara Kyle. No momento, todos olhavam para Tom, assim ficavam de costas para Kyle. Tenho que manter isso assim, percebeu ele. O tempo suficiente para que Kyle alcance aquelas armas. A seringa de Rosita estava bem em frente aos seus olhos. — Só vai sentir um beliscão. A agulha penetrou sua pele. Como prometido, só foi uma pontada, mas Tom gritou histericamente assim mesmo. — Ai! O que está fazendo comigo? — Seu rosto s e contorceu numa dor falsa. — Você ainda se diz flebotomista? — Não seja infantil. — Rosita o censurou, parecendo um pouco ofendida. O tubo Vacutainer30 se encheu de sangue. — Foi a picadinha perfeita. — Mas que banana! — zombou Carl. Grayson se aproximou para colher a amostra de sangue. — Isso é monstruoso! — Diana juntou-se à algazarra. Sem dúvida ela percebera o que ele pretendia. — Vocês parecem nazistas, fazendo experiências médicas obscenas em cobaias humanas. Deviam ser presos pelo resto da vida! — Meu Jesus, Diana! — exclamou Abby. — É só um exame de sangue idiota. Rosita retirou a agulha d o braço d e Tom. Ela pressionou uma bola de algodão contra a parte perfurada. — Aí! Tá vendo? Nem foi tão ruim. — Ah, é? — rosnou Tom. — Diga isso para a droga do meu braço! — Olhando por cima dos ombros dela, ele viu que Kyle ainda estava a alguns passos das armas. Seu filho parecia horrorizado com o que estava sendo feito a ele. Não se preocupe comigo, pensou. Só pegue as armas! — O que você fez? — Tom acusou Rosita. — Acertou a veia diretamente? Ou pegou o osso também?


3 0 Vacutainer é u m a marca registrada d e tubos d e teste especialmente designado para exames de sangue. — Nunca fiz isso na minha vida — disse a mulher, indignadamente. Ela tirou o Vacutainer de sua embalagem de plástico antes de entregá-lo a Grayson. — Sou uma profissional! — Uma profissional sádica talvez! Continuem olhando para mim, ele os distraiu silenciosamente. Não se virem! — O que vem agora? — indagou Diana, fazendo a parte dela. — Vai nos dissecar aos poucos? As armas estavam bem onde Cassie disse que estariam. Kyle segurou a respiração enquanto caminhava furtivamente p e l o fundo d a sala, a t é mesmo enquanto os bandidos torturavam seu pai. Apesar do aviso de Cassie, fora um choque ver seu pai e Diana a mercê de Grayson e seus cúmplices. Os gritos furiosos d e seu pai tocavam seus nervos. O que aqueles malucos estão fazendo com ele? — Não se distraia — murmurou Cassie. Ela o seguia logo atrás. — Siga o plano. É mais fácil falar d o que fazer, ele pensou. Não era o pai dela sendo testado a apenas alguns metros de distância. Ao menos, agora ele sabia que havia feito a coisa certa indo até ali aquela noite. Pelo que parecia, chegara bem a tempo. Talvez. Ele caminhou pela sala, piscando a cada rangido. Ainda bem que não havia pisado em nenhuma poça n o caminho até ali; s ó podia imaginar seus tênis guinchando audivelmente a cada passo que dava. Pena que não sou invisível como a Cassie. A sala estava desconfortavelmente quente comparada com o lado de fora. O suor grudava sua camisa nas costas. Pareciam ter se passado horas quando ele finalmente alcançou as armas esquecidas. Ele viu a Glock modificada de seu pai. Suas palmas suadas tocaram o punho da arma. De repente, sentiu-se bastante grato pelas lições de tiro que seu pai lhe ensinara quando era mais novo. Ele engoliu um suspiro de alívio. Consegui! — Bom trabalho — disse Cassie. Ela apontou para e enfermeira curvando-se sobre o pai dele. — Aquela é Rosita. Precisa atirar nela antes que possa usar sua habilidade. Pe l a s costas? E l e n ã o quer i a at i r ar e m ninguém, m u i t o m e n o s e m uma mulher despreparada. Atrapalhado, liberou a trava se segurança da arma. A Cassie está falando sério? Ela franziu as sobrancelhas diante de sua hesitação. — Não é hora de ser um maricas, Kyle. Você queria ser o herói. Agora faça o que tem que


fazer. O braço d e Ky l e vacilou quando e l e levantou a arma. Achava q u e não conseguiria continuar com isso. Nunca atirara em alguém antes — a não ser que se contasse a vez que uma entidade sem corpo do futuro o possuíra para assassinar Jordan. Esta vez era diferente, no entanto. Ele estava no comando agora. O sangue estaria em suas mãos… — Anda! — ordenou Cassie. — Puxe o gatilho! Ele ouvia Tom e Diana gritando. Queria salvá-los, mas… — Eu não consigo! Ele não percebeu que havia falado em voz alta até que o s bandidos viraram-se surpresos. Kyle reconheceu Grayson por causa dos arquivos, mas foi o jovem quem o chocou de verdade. Kyle ficou boquiaberto. Seu coração parou de bater por um segundo. — Danny? Seu primo morto estava parado apenas a alguns passos de distância. — Não é o Danny! — berrou Cassie. — Ele é falso! — gritou em seu ouvido. — Atire na velha! Mas j á era tarde. A enfermeira enrugou o rosto. Su a figura firme tremeluziu antes de desaparecer como uma miragem por completo. Ela sumiu bem diante de seus olhos. — Ãhn? — Kyle gaguejou em confusão, sua arma apontada para o ar. O que ele devia fazer? Cassie assumiu o controle, como de costume. Pegando o braço dele que segurava a arma, ela o virou para direita. — Ali! Agora! Ele apertou o gatilho. O som ensurdecedor da arma estourou em seus tímpanos. O impacto tirou seu braço do aperto de Cassie. A princípio, parecia que ele atirara em nada, mas então Rosita tremeluziu de volta à existência, segurando o lado do corpo. Sangue vazava pelos seus dedos. Gemendo, ela caiu ao chão. Ai , me u Deus, pensou Kyle. Cassie sabia exatamente onde a mulher invisível estava. Acabei de atirar em alguém. De verdade. — Rosita! — Grayson começou a correr na direção da mulher ferida, mas então lembrouse da arma ainda soltando fumaça na mão d e Kyle. Ele parou na metade do caminho. — Por favor, precisa me deixar ajudá-la! — Cuidado, Kyle! — gritou seu pai, da poltrona. — Ele está armado também. Não o deixe fazer nada até que tire sua arma! — Tudo bem! — disse Grayson, antes mesmo que Kyle pudesse seguir o conselho d e seu


pai. Ele tirou uma pequena arma de seu casaco e a jogou pelo chão na direção de Kyle. Olhou ansiosamente para Rosita, que soluçava de dor no chão. — Está bom o suficiente para você? Uma poça vermelha formava-se sob a enfermeira caída. Kyle engoliu com dificuldade. Apontou a arma para o falso “Danny” e para uma loira atraente que parecia ser apenas alguns anos mais velha que ele. Esforçou-se para manter os olhos em todos os jogadores. — Vá em frente. Era tudo o que o agente funerário agitado precisava ouvir. Ele pegou um kit de primeirossocorros de um carrinho e apressou-se para a vítima agonizante. — Alguém ligue para a emergência! — Não! — gritou Diana. Ainda amarrada ao lado de seu parceiro, ela elevou a voz para chamar a atenção de Kyle. — Esse clone tem a habilidade de Danny. Não pode deixar ninguém entrar aqui. O lugar inteiro precisa entrar em quarentena! — Não dê ouvidos a ela, Kyle! — disse a loira. Ela era uma estranha para ele, mas claramente o conhecia. — Você não quer nos parar. Só estamos tentando espalhar a bênção da promicina para o mundo todo, do jeito que Jordan Collier quer. Cassie olhou para a loira especulativamente. — Sabe, Kyle, ela tem razão nisso… — Ela é louca, Kyle — alertou seu pai. — Ela já matou quatro pessoas. E quer matar mais bilhões. — Somente uma geração de sacrifício para permitir o paraíso àqueles que seguem — insistiu a loira. — É isso que o Jordan sempre diz, não é? — Cruzando as mãos, ela deu um passo na direção de Kyle. — Eu sei que você divide nossos ideais Kyle. Estamos do mesmo lado. — Para trás! — ele ordenou. — Não sei que você é, moça, mas seu argumento seria muito mais convincente se não estivesse mantendo meu pai em cativeiro! — Nós não vamos machucá-lo — insistiu ela. — Só estávamos… — Cala a boca! — Kyle não ouviria mais nada disso, não enquanto seu pai e Diana estavam amarrados como animais de laboratório. Ele acenou com a arma para os cativos. — Vocês dois — ordenou para a loira e para o gêmeo de Danny. —, desamarrem-nos agora. A loira riu para Kyle. — Essa ideia é sua ou da Cassie? — Virou-se pelo laboratório. — Ela está aqui conosco? — Cassie? — repetiu seu pai, confuso. — Quem é Cassie? Sua musa de cabelos ruivos se divertia com o que acontecia. — Sabe, você vai ter que contar sobre mim para ele qualquer dia desses. O rosto de Kyle enrubesceu de raiva e vergonha. Levantou a arma diretamente para a loira.


— Como sabe sobre ela? — O Jordan me contou — sorriu ela alegremente. — Nós dividimos muitas coisas. Eu o dei informações confidenciais desde que entrei no Movimento. — April! — percebeu Diana, de repente. — Você é a dedo-duro. Foi você que lhe contou sobre a minha irmã. A loira lançou um sorrisinho para Diana. — Acabou d e descobrir, foi? É u m pouco lenta para descobrir a s coisas, Diana. — Ela balançou a cabeça. — Imagino o que Marco viu em você. — Vai ter que perguntar a ele — devolveu Diana. — Quando ele te visitar na prisão. — Veja como quiser, Abby — acusou Tom. —, você ainda é uma traidora e uma assassina. Kyle juntou as peças. Olhou para o seu pai para ter uma confirmação. — Ela trabalha para a NTAC? — Eu pertenço ao Movimento — declarou Abby. — Assim como você. — A despeito de suas ordens, ela não s e mexeu para desamarrar o s prisioneiros. — Pense em Jordan, Kyle. Acha que ele aprovaria o que está fazendo agora? Ou ele quereria que você saísse do caminho e deixasse-nos fazer nosso trabalho? — Jordan nunca forçou alguém a tomar promicina! — Ele s e segurava nessa crença tão forte quanto apertava a arma em seu punho. — Nunca! — E é por isso que ele precisa de gente como nós — afirmou Abby. — Para fazer as coisas que precisam ser feitas. Ela soava tão assustadora quanto Cassie. — Apenas solte eles! — gritou Kyle. Havia muitas pessoas lhe dando ordens. Ele sentia-se à beira de um colapso nervoso. — Não vou discutir isso com… Um grito angustiado atraiu sua atenção de volta a Grayson e Rosita. O agente funerário estava agachado a o lado d a enfermeira machucada enquanto aplicava pressão a o s e u ferimento. A agonia contornava o rosto d a mulher, que estava pálido e ensopado. Dedos trêmulos apertavam o casaco de Grayson. Havia sangue por todo lado. — Ah, merda… — O coração de Kyle deu um pulo. — Ela vai viver…? Sua distração momentânea era exatamente a brecha que Abby esperava. — Kyle, cuidado! — gritou Cassie quando a loira agarrava uma bandeja de metal de um carrinho e a arremessava na direção de Kyle. Alertado pelo grito de Cassie, ele jogou o braço cima a tempo de desviar da bandeja voadora. Ela espatifou-se no chão junto com ferramentas médicas e curativos. U m tubo para exames de sangue se despedaçou. Manchas vermelhas mancharam a sala. Abby gritou para o clone de Danny.


— Corra, Carl! Saia daqui agora! Ela investiu contra Kyle, que instintivamente levantou a arma para se defender. Aconteceu antes que ele se desse conta do que se passava. Uma flor rubra aflorou sobre seu coração. Por um único momento sem fim, ela encarou-o de volta antes de tropeçar e cair para trás. Estava morta antes mesmo de atingir os ladrilhos. Não! Pensou Kyle. Eu não queria fazer isso! A visão de seu cadáver deixou-o petrificado. — Kyle! — gritou seu pai, num tom alarmante. — Carl! O clone! Você tem que impedi-lo! — A urgência em sua voz amenizou seu devaneio em choque. — Ele é como o Danny! Diana gritou também. — Ele vai infectar a cidade inteira! O quê? Kyle olhou para cima para ver o impostor se distanciando. O aviso de Diana lembrou-o d o quanto estava e m jogo. Pulando p o r cima d o corpo sangrento d e Abby, ele disparou atrás d e Carl, que chegou perto d a área de entrada até que Kyle o alcançasse. O gêmeo de Danny se atrapalhou com a tranca da porta. Ela soltou um clique ao abrir-se. — Segure isso! — ordenou Kyle. Suas duas mãos seguravam fortemente a arma quando ele a apontou para o clone fugitivo. — Já foi longe o bastante. O Danny falso ficou parado na porta, sua mão segurando a maçaneta. Somente uma fina porta de madeira entre ele e milhares de pessoas vulneráveis. Kyle lembrou-se de todos os funerais em que fora depois do Grande Passo Adiante. Incluindo o de seu primo e o de sua tia. De novo não, ele pensou. Deve haver outro jeito de trazer o Paraíso a Terra. Não é mesmo? O clone olhou para ele. — Qual é, Kyle? Caia na real. Você não atirar em mim. — O rosto de Danny sorriu astutamente. — Temos o mesmo sangue. — Você não é o meu primo! — Agora sou. — Ele parecia e soava exatamente como Danny. — Você é o xamã e eu sou o portador. Somos duas partes da mesma profecia. — Impeça-o, Kyle! — gritou seu pai freneticamente do outro lado do centro de plasma. A poltrona se arrastou pelo chão enquanto ele furiosamente tentava se livrar das amarras. — Se ele escapar, vai ser o 50/50 outra vez! Cassie apareceu atrás de Kyle. — Ele fala como se fosse uma coisa ruim.


— M a s s e acontecer, v a i s e r minha culpa desta vez. — Kyl e balançou a cabeça. Ele manteve a arma apontada diretamente para a cabeça do impostor. Já havia matado muitas pessoas naquela noite. — Sinto muito, mas não posso viver com isso. — Hipócrita! — U m a expressão lívida assomou-se n o rosto quase irreconhecível de Danny; Kyle não se lembrava de seu primo tão furioso. — Fica feliz em espalhar o evangelho d e Collier para quem quiser ouvir, convencer as pessoas a tomar promicina mesmo sabendo que isso matará a metade delas, mas é fraco demais para sujar as mãos quando é necessário. — Ele fungou ridiculamente. — O que acha exatamente que veio fazendo desde que Collier voltou? Ele deus a s costas a Kyle e girou a maçaneta. Uma brisa fria adentrou o prédio. Estava escuro do lado de fora. — Não faça isso, cara. — A arma tremia nas mãos de Kyle. — Não quero machucar mais ninguém. — Então você não sabe o que está fazendo — disse o impostor. — Nem quem é realmente. Ele deu passou pela soleira. Kyle atirou. Danny morreu mais uma vez. Tomado pelo medo, Kyle arrastou o corpo de volta para dentro do prédio e fechou a porta. Uma lágrima escorreu pelo seu rosto enquanto ele se encostava à porta, exausto e vazio de sentimentos. A arma escorregou pelos seus dedos. Ele mal ouviu seu pai e Diana gritando para ele da área de doação. Ele os desamarraria num momento, mas só o que podia fazer agora era olhar para o morto no chão. O que está acontecendo comigo? O que eu me tornei? Cassie passou por cima d o corpo. Ela aninhou-se a ele, descansando sua cabeça em seu peito. — Vai ficar tudo bem, Kyle. Você vai superar isso. Nós vamos superar. Ele não tinha tanta certeza. — Eu matei duas pessoas, Cassie. Talvez até três. — Há uma primeira vez para tudo. — Ela sorriu sabiamente. — Pense nisso com uma experiência de aprendizado Pela primeira vez ele estava genuinamente com medo dela. E dele mesmo. ********** Kyle foi embora antes que os paramédicos e a equipe de investigações à materiais radioativos chegassem. Tom percebeu que seu filho ficara realmente chocado com o que ele fora forçado a fazer, mas Kyle dispensara os esforços de seu pai em tentar confortá-lo. Ele se


arrastara para fora do centro parecendo um zumbi, mal dizendo uma palavra sequer. Terei que falar com ele depois, prometeu Tom a s i mesmo, ajudá-lo a superar isso. Ele sabia por experiência própria como era viver com um assassinato, mesmo que fosse em defesa de outros. Especialmente da primeira vez. Com egoísmo, ele esperava que Kyle não se virasse para o lado de Jordan agora. Diana s e encarregou d a tarefa d e limpeza. Po r instruções dela, somente positivos que tivessem sobrevivido à exposição à promicina eram permitidos no local. Grayson e Rosita haviam sido dosados com o inibidor antes d e serem mandados para a quarentena. Graças a Deus, parecia que a flebotomista ferida ia sobreviver. Diferentemente de Abby e Carl. Seus corpos foram destinados à cremação imediata. Junto com o do Danny, pensou Tom. Shawn vai entender, com certeza. — Todo o local terá que ser esterilizado — falou Diana. Ela suspirou exausta enquanto os resultados sangrentos dos horrores daquela noite. — Mas pelo menos recuperamos os restos de Danny e acabamos com os planos da Abby. Graças ao Kyle, claro. — É — concordou Tom. — Já é alguma coisa, suponho. Só esperava que sua vitória não tivesse custado ao seu filho sua alma. — Como você está? — perguntou Diana a ele. — Está se sentindo diferente? — Não muito — seu braço ainda doía onde Rosita havia furado, mas era só isso. — Não notei nenhuma habilidade ainda. — Bem, teremos que fazer um exame em você quando voltarmos à sede, mas acredito que aquelas U-pills neutralizaram qualquer infecção. — Ela o ofereceu um sorriso reconfortante. — Com profecia ou não, você pode ainda ser o mesmo Tom Baldwin. Por enquanto, ele pensou.


VINTE Restavam apenas cinco Marcados. Ou quatro, dependendo do modo como se contasse. Wesley Burke havia morrido três dias atrás. Morto em um “acidente bizarro” durante sua lua-de-mel nas Cataratas do Niágara, com sua última esposa. Uma estranha “rajada de vento” o havia arremessado por sobre a cerca de um dos mirantes das cataratas. Seu corpo havia sido estraçalhado nas pedras lá embaixo, e seus preciosos fluidos corporais diluídos n a s espumas turbulentas. Curiosamente, ninguém a o redor, nem mesmo sua horrorizada noiva, tinha sentido mais do que uma leve brisa. Tal tragédia havia ocorrido apenas quarenta e oito horas após a fuga de Richard Tyler, o que implicava em uma explicação alternativa para o fim de Burke. Os Marcados estavam sendo caçados mais uma vez. O sheik Nasir al-Ghamdi não havia esperado que Tyler o rastreasse. O elegante árabe encontrava-se estatelado de cara na mesa redonda de carvalho, no salão do Castelo Wyngate. Uma pistola fumegante ainda repousava em sua mão. Uma perfuração d e bala rasgara o turbante xadrez que lhe cobria a nuca. Uma mancha avermelhada se espalhava pelo tecido. Folhas de plástico transparente cobriam as paredes e a mobília, protegendo a decoração elegante do salão contra indesejáveis respingos de sangue. Francamente, George Sterling deveria preferir usar outra locação para os desgostos do dia, mas precauções com a segurança haviam vencido a conveniência. Wyngate era o local mais seguro disponível no momento. Ou pelo menos o único que foi um consenso entre os Marcados sobreviventes. Além disso, ele lembrou a si mesmo, o que importa s e fizermos a maior bagunça? Eu não iria viver aqui por mais muito tempo, mesmo… Ele retirou a Glock dos dedos inertes do sheik, e a entregou a Song Yu que, junto com o General Roff e Kenpo Norbo, estava sentada à mesa forrada de plástico. — Sua vez. Ela aceitou a arma sem hesitação. — Pela causa — ela sorriu de modo assustador. — Nós nos encontraremos de novo, meu amigo. Ele admirava sua coragem e comprometimento. — Com certeza. Calmamente, seu rosto não demonstrando o menor traço de trepidação, ela colocou o cano d a arma entre o s lábios e puxou o gatilho. U m único projétil espalhou seus miolos pelas paredes atrás dela. Seu corpo se jogou contra o encosto da cadeira antes de se projetar em


direção à mesa. Seu rosto bateu na superfície da mesa, expondo o ferimento ensanguentado em sua nuca. — Cristo todo-poderoso! — reagiu Julian Roff. O condecorado líder militar estava demonstrando não ter estômago para aquele tipo de trabalho sórdido. — Acho que jamais irei me acostumar com isto! Kenpo desviou o olhar dos restos mortais de Song. Ele estava claramente passando mal. — Vocês têm certeza de que nós não poderíamos apenas tomar uma pílula de cianeto, ao invés disso? — Isto é mais rápido e menos doloroso — declarou firmemente Sterling, como s e eles já não tivessem discutido o assunto à exaustão. — E qualquer substância estranha à corrente sanguínea pode interferir n o processo de transferência — ele estava desapontado com a sensibilidade dos dois homens; com certeza não haviam produzido tantos filmes sangrentos quanto ele. — Nossos companheiros serão elogiados por seus nervos d e aço e s u a firmeza neste momento crucial. Diferentemente d e certos Marcados que e u conheço, ele pensou amargamente. Será que esses d o i s sempre foram t ã o fracos, o u a moralidade sentimental dest a e r a piegas os contagiou? El e s e perguntava s e o s dois seriam capazes de fazer o que fosse necessário, quando chegasse a vez deles, ou se teria ele mesmo que puxar o gatilho. Aposto as bilheterias dos meus dois últimos sucessos cinematográficos como um desses dois vai amarelar na hora H. Antes, porém, ele tinha outra tarefa vital para cumprir. Retirando uma seringa metálica brilhante de uma bandeja sobre a mesa, ele se colocou atrás do corpo tombado d e Song Yu. Seus cabelos negros e espessos estavam amarrados em um coque, provendo livre acesso à sua nuca. Quando ele se inclinou sobre ela, com a seringa vazia na mão, vislumbrou a marca por detrás d a orelha esquerda dela. Pelo que sabia, aquilo era um sinal de honra. Ele pretendia fazer a coisa certa por ela – e assegurar seu iminente retorno. Inseriu a agulha na base do crânio dela, bem na direção da coluna vertebral. Uma cápsula d e plástico transparente estava acoplada à agulha. Ele digitou em um teclado localizado na lateral da seringa e puxou o êmbolo, enchendo a seringa com um elixir prateado cintilante. Filtros moleculares no cateter excluíram o que era mero fluido cérebro-espinhal, que era claro e incolor, até que tudo o que restou do que fora coletado fosse uma solução concentrada de nanodispositivos. As máquinas microscópicas e r a m individualmente codificadas c o m a personalidade e as memórias de Song Yu, só esperando para ser implantadas na mente de uma nova identidade. Ele j á havia escolhido a hospedeira perfeita para ela: uma obscura atriz loira, que havia interpretado um pequeno papel em Don Incubus, Demônio P.I. . Infelizmente, aquele filme em particular, a “obra-prima” final na duvidosa carreira do finado Curtis Peck, tinha ido direto para o DVD, mas Sterling tinha u m papel muito maior guardado para a ambiciosa estrelinha. Ela havia concordado animadamente em conceder uma audição particular naquele fim-de-semana, onde ele pretendia reunir o elenco definitivo.


E o melhor de tudo é que a atuação dela só tem a melhorar, uma vez que Song Yu assuma o comando. A cápsula s e encheu rapidamente. Sterling retirou a agulha do cadáver e habilmente extraiu o frasco de seu estojo metálico. Ele o acomodou delicadamente na bandeja, ao lado de uma cápsula idêntica, q u e continha o s nanodispositivos recolhidos d e Nasir. Eles estavam destinados a um desafortunado figurante afro-americano em excelente condição física. O belo playboy árabe tinha relutado em se despojar de seu porte atual. Sterling esperava que ele achasse que o figurante era um substituto à altura. Ambos os hospedeiros eram ilustres desconhecidos, completamente fora do raio de alcance do radar de Collier. Ao menos, aquele era o plano… Etiquetas coloridas eliminavam a possibilidade de confusão mais adiante. Sterling acoplou uma nova cápsula à seringa. — Tá legal, quem é o próximo? — Eu — ofereceu-se Kenpo, levantando sua mão como u m ávido estudante. Seu robe de açafrão farfalhou em volta de si. — Acho que existe um alvo desenhado neste corpo inútil. Eu quero sair dele agora! — É claro — disse Sterling. — Exatamente como combinamos. Depois de se opor à ideia anteriormente, ele havia relutantemente chegado à conclusão de que novos corpos eram uma necessidade para todos eles. Com Tyler liberto novamente, e seus disfarces completamente revelados, não havia escolha a não ser mudar os rostos mais uma vez. Uma vergonha eu ter que perder a entrega d o Oscar, lamentou ele. Aquele Fahrenheit 4400 tem boas chances de ganhar o prêmio de Melhor Documentário. Mas havia competições mais importantes a serem travadas no futuro. — Vamos deixar uma coisa bem clara — ele acrescentou, enfático. — Esta é meramente uma manobra estratégica, não uma rendição. Não estamos fazendo isto para nos esconder dos inimigos. A guerra continua, embora com novas aparências — ele encarou o lama e o general severamente. — Posso contar com vocês para continuar a luta, e vingar nossos companheiros martirizados? — Sim, sim — resmungou Kenpo. — Pela causa e tudo o mais — fazendo caretas de desgosto, ele esticou o braço por sobre a mesa, retirando a arma dos dedos gelados de Song Yu. — Vamos acabar logo com isto. — Vá em frente — encorajou Sterling. Ele pretendia se matar mais tarde, depois que tivesse transferido, com sucesso, as essências dos outros para os novos hospedeiros. Isto o deixava exposto e vulnerável por mais tempo, mas ele não confiava em mais ninguém para pôr em prática o estágio final da transferência. Nem mesmo Song Yu ou Nasir. — Nenhum de nós está se tornando mais jovem. Diferentemente d e S o n g Yu , o celebrado l a m a parecia d e f a t o enojado

diante da


perspectiva de estourar seus próprios miolos. Mãos trêmulas levaram a Glock até seus lábios. Ele fechou os olhos e se contraiu todo para o tiro fatal. O suor brilhava em sua cabeça sem cabelos. Um minuto passou. E outro. — E então? — perguntou Sterling, enojado pela óbvia covardia de Kenpo. O homem era uma desgraça para a cidade gloriosa que o havia dado à luz. Sterling até se perguntava se valeria à pena implantar um espírito tão fraco em uma nova identidade. — Algum problema? O atormentado lama retirou a arma de sua boca. — Me dê só um momento, pode ser? Isto não é fácil. Roff bufou com desprezo. — Qual é o problema, monge? Você não acredita em reencarnação? — ele esticou o braço para pegar a arma. — Me dá isto. Eu mesmo atiro em você. — Não s e atreva! — Kenpo arrancou a arma dos dedos arrebatadores do general. — Eu tenho o direito d e exterminar meu próprio hospedeiro! E não vou fazê-lo até que me sinta pronto para isto! Eu sabia que isto iria acontecer, pensou Sterling, aborrecido por ver suas piores previsões se realizarem. Por que Burke não poderia ter sobrevivido, ao invés dele? Suspirando, ele estava para intervir quando, inesperadamente, um tremor súbito sacudiu o salão. O candelabro de cristal chacoalhou violentamente acima da mesa. Poeira caiu d o teto. Um a coleção de Oscars e Emmys despencou da prateleira acima da lareira, chocando-se com o chão. Os corpos de Song Yu e Nasir escorregaram de suas cadeiras, para cair com um ruído surdo por entre as pernas da mesa. Um vaso Ming de valor inestimável tombou, desintegrando-se em dúzias de cacos de porcelana. Folhas de plástico caíram das paredes. Um ruído ensurdecedor abafou os gritos espantados dos Marcados. Roff se agarrou na mesa para s e apoiar, enquanto Kenpo mergulhou para debaixo dela. Sterling saltou em direção aos frascos, resgatando-os antes que pulassem da bandeja. Ele parecia confuso, enquanto lutava para manter o equilíbrio. N ã o entendo, pensou e l e . A História n ã o registrou qualquer terremoto de grandes proporções nesta data. O “Big One”31 só ocorrerá daqui a muitos anos… Estrondos d e t rovão penetravam a s trepidantes paredes d o salão, aumentando sua perplexidade. Um terremoto e uma tempestade ao mesmo tempo? A verdade o atingiu com a força de um aríete. O Castelo Wyngate estava sitiado. Tiros e gritos vindos do lado de fora do salão confirmaram sua avaliação. — Maldição! — Roff praguejou, no meio do tumulto. — Estamos sendo atacados!


— Sua sagacidade militar nunca deixa d e m e impressionar, general — disparou Sterling. Movendo-se rapidamente, ele acomodou os preciosos frascos no interior almofadado d e uma valise de couro e a fechou com u m estalo. Ele atravessou a sala aos tropeções, e m direção à parede onde ficava a porta. Um 31 Big One – O fato de a Califórnia estar sobre a grande falha geológica de San Andreas criou o mito de que um dia será destruída por um enorme terremoto, o qual foi apelidado de “Big One”, ou, em tradução literal, “O Grandão”. painel de madeira entalhado deslizou para o lado, para revelar um intercomunicador com um minúsculo monitor de televisão. Ele manejou os controles com sua mão livre. — Aqui fala Sterling. O que está acontecendo aí fora? A tela se acendeu, mostrando as feições desgrenhadas de Conrad Yerkes, o chefe da segurança. Ele era um ex-fuzileiro naval grisalho e com um olho de vidro. Sua cabeça e seus ombros atarracados preenchiam toda a tela, impedindo Sterling de ver o centro de comando de alta tecnologia atrás dele. A sala de controle ficava no campanário do castelo, quatro andares acima d o salão. Yerkes parecia enlouquecido, sobrecarregado pelo caos. — A s coisas estão ficando loucas, senhor! — gritou o homem. — Temos relâmpagos, terremotos, até uma droga de tornado desmantelando tudo! E intrusos conseguiram penetrar o perímetro. Os homens estão fazendo o melhor que podem, mas é como se a Mãe Natureza estivesse lutando contra nós! Está mais para os 4400, pensou Sterling. Collier está jogando tudo o que tem contra nós. O ruído do vento podia ser ouvido pelo intercomunicador. — Oh, meu Deus! — gritou Yerkes, olhando por cima do próprio ombro. Estática e chuvisco atrapalhavam muito a transmissão, mas Sterling vislumbrou o telhado d a torre voando para longe, p o r detrás d e Yerkes. Um a ventania furiosa sacudiu o cabelo grisalho do homem como as ondas de um mar revolto. Dedos embranquecidos agarraram-se ao console em frente a ele, lutando pela vida. Pedras e reboco vieram abaixo enquanto as paredes se desmantelavam pelo que parecia um tornado. Outro homem foi atirado no vórtice do redemoinho. — Nós estamos perdendo! — Yerkes berrou através do vento. — Nós não temos chance… Sterling não estava preocupado com a segurança dos guardas. Do ponto de vista avançado d e sua própria época, a população abundante desta era j á estava morta havia milênios. Eles eram fósseis ambulantes. — Permaneça no seu posto! — ordenou ele, duramente. — Detenha os intrusos o mais que puder! — Mas, senhor! — começou Yerkes. — O tornado! Está nos destruindo! E daí? Pensou Sterling. Eu só preciso de você para ganhar algum tempo para mim.


— Você me ouviu, Yerkes! Antes que o agitado chefe d a segurança pudesse v i r c o m outra objeção, uma fonte de fagulhas explodiu de dentro do console. A estática distorcia seu grito, enquanto um poderoso choque elétrico chamuscava seu corpo. Incapaz de afastar suas m ã o s d o equipamento faiscante, ele se sacudiu em violentas convulsões. Fumaça saiu d e seu couro cabeludo. Sua boca s e escancarou. Clarões azuis brilhantes se arqueavam por entre as obturações de seus dentes. A tela se escureceu. Demais para Yerkes, pensou Sterling friamente. Afastando-se do intercomunicador, ele deu uma olhada para a lareira. É hora de partir. Kenpo Norbo ergueu sua cabeça de debaixo da mesa. Seu famoso semblante sereno agora estava completamente pálido. Ele brandiu a Glock acima da cabeça. Sua mão tremia tanto que Sterling receou ser atingido por fogo amigo. Ele suspirou aliviado quando Roff agarrou a arma e a arrancou das mãos do lama. — Dê isso a quem sabe usar! Kenpo não tentou recuperar a arma. Ao invés disso, ele revirava as contas de seu rosário. — É culpa sua — ele gritou para Sterling. — Nós devíamos ter abandonado estes corpos uma semana atrás, logo depois que Calábria foi assassinado! Mas você disse que nós estaríamos seguros! — ele arrebentou o terço, que estava pendurado em seu pescoço, arremessando as contas por toda a sala. — Eu queria nunca ter vindo a esta era miserável! Nós deveríamos ter ficado em segurança na Cidade! — Que jamais existirá se você não se recompor! — disparou Sterling. Segurando firmemente a valise que continha as personalidades de seus comparsas, ele rapidamente atravessou o chão repleto d e escombros até a imensa lareira de pedra d o outro l ado d a sala. Troféus derrubados e corpos caídos esperavam para atrapalhá-lo, mas ele conseguiu manter o equilíbrio mesmo assim. — Por aqui! — ele gritou para os outros. — Nós precisamos fazer uma saída prudente. Roff olhou para ele, perplexo. — Onde? Subindo pela chaminé? Com sua mão livre, Sterling afastou as folhas plásticas que cobriam a lareira. Uma roseta entalhada adornava o topo do mantel. Segurando o ornamento, ele o girou em sentido horário. U m ruído baixo emanou d a lareira, enquanto engrenagens escondidas moveram-se uma contra a outra. O maquinário adormecido despertou do repouso e os tijolos sujos de fuligem do fundo da lareira se afastaram, para expor a abertura de um túnel sombrio. Uma brisa fria soprou de algum lugar fora do castelo. — Ora vejam só! — exclamou Roff. A passagem secreta era legado d e Edmund Wyngate, o caprichoso e silencioso astro de


cinema que havia administrado a reconstrução do castelo oitenta anos atrás. Conta a lenda que ele usava a passagem para dar acesso secreto a bebidas ilegais e amantes a sua residência, nos anos vinte. Sterling sempre havia desconfiado de que essa inovação arquitetônica poderia ser útil qualquer dia. O túnel levava até uma garagem subterrânea, aninhada ao pé das Colinas Hollywood, onde um Jaguar com o tanque cheio esperava para levá-los em segurança… Se eles se movessem rápido o suficiente. Kenpo arfou de alívio. Ele parecia haver atingido o Nirvana. — Desculpe, Sterling. Eu jamais deveria ter duvidado… A porta da sacada superior se escancarou, arrancando as dobradiças. Richard Tyler, inteiramente coberto por um equipamento de guerra negro, irrompeu através da porta aberta até o patamar superior da escada. Ele os olhou de cima, como um anjo vingador, não parecendo nem um pouco abalado por seu recente cativeiro. Ryland claramente tinha sido muito complacente com ele… Nós deveríamos ter cuidado dele pessoalmente, pensou Sterling, maléfico. E não ter delegado o serviço a Haspelcorp. — Você! –— gritou Roff. Ele apontou a arma para a sacada, tão somente para tê-la arrancada d e suas mãos por uma força invisível. Dedos estalaram de maneira audível. Ele praguejou. A pesada mesa de carvalho tombou de lado e atingiu o general como um aríete, esmagando-o contra a parede atrás dele. O candelabro soltou-se do teto e se atirou na direção de Roff como um meteoro de cristal. O sangue espirrou sobre as folhas de plástico penduradas. Outro tremor sísmico sacudiu o castelo, fazendo Richard se desequilibrar. Ele se segurou na grade para evitar cair da sacada. É agora ou nunca, percebeu Sterling. Agarrando a valise, ele mergulhou através do vão atrás da lareira. Arrastou-se para o túnel à frente e puxou uma alavanca atrás da lareira. A pesada porta de tijolos começou a voltar para o lugar. — Não! — Kenpo gritou, ao perceber que a porta estava se fechando. Ele saltou para a saída que desaparecia, agarrando-se na lateral d a porta com suas mãos. — Espere! Você não pode me deixar aqui! Eles vão me matar! Não será uma grande perda, pensou Sterling. Para ele, o monge medroso era infinitamente mais dispensável do que Song Yu ou Nasir. Ele chutou o rosto e as mãos de Kenpo. — Largue a porta, seu idiota! Um atiçador de ferro ergueu-se por detrás do desesperado lama. A coisa saltou para frente como se tivesse vida, espetando Kenpo pelas costas. A ponta vermelha do atiçador irrompeu


de dentro de seu peito. Sangue gorgolejou em sua garganta. Uma espuma sangrenta saiu de seus lábios. Dedos frouxos perderam a força com que agarravam a porta. Um chute final tirou seu corpo do caminho. A porta finalmente se fechou por completo. Agradeço a Deus por aquele atiçador! Pensou Sterling. O monge histérico quase havia matado a ambos. Ele trancou a porta secreta seguramente no lugar, e então voou para dentro d o túnel fracamente iluminado. Ele não sabia quanto ia levar para que a telecinese de Tyler reabrisse a passagem, mas certamente não iria ficar por ali para saber. Era hora de se despedir do showbiz para sempre. Abandonando o castelo Wyngate em mãos inimigas, ele correu por uma longa escada em espiral para a garagem abaixo. Àquela distância abaixo do castelo, mal s e podia ouvir a tempestuosa batalha travada l á e m cima. Ele era o último remanescente dos Marcados, mas não por muito tempo. Agarrou firmemente a alça da valise. De uma forma ou de outra, Nasir e Song Yu viveriam novamente. Isto não acabou, ele jurou. Tyler e seus aliados 4400 podiam estar em vantagem naquele momento, mas se Hollywood tinha ensinado uma coisa a ele, era que as melhores estórias não se acabam tão facilmente. Sempre haverá uma sequência.


VINTE E UM — JÁ CHEGA — DISSE Richard a Jordan. A luz do sol brilhava através das grandes janelas de vidro da casa do lago. A temperatura estava acima de 23 graus, mas Richard não pensava e m tirar sua blusa. Já haviam se passado dias desde que fora resgatado da prisão em Filadélfia, mas ele só estava começando a sentir-se aquecido novamente. — Sinto muito em ouvir isso — disse Jordan. Ele se recostou contra o sofá, enquanto Richard permanecia olhando-o. Xícaras fumegantes de chá de menta descansavam na mesa de centro entre eles. Os guardas de Jordan estavam do lado de fora da sala. A conversa era estritamente entre os dois homens. — Pelo que eu entendi, u m dos Marcados ainda está à solta. O produtor de filmes, George Sterling. Isso era verdade. N o momento e m que Richard arrombara telecineciamente a passagem secreta, Sterling j á havia escapado h á muito. Seu sumiço misterioso, seguido do “ataque terrorista” ao Castelo Wyngate, se espalhara pelos noticiários durante dias. Ninguém, incluindo os paparazzi, o havia visto desde então. — Outra pessoa terá que encontrá-lo para você — proferiu Richard. — Já fiz minha parte. O massacre no castelo, acima do banho de sangue na prisão, fora a gota d’água. Ele não gostava do que sua vida havia se tornado. Não gostava do que ele estava se tornando. Não é o que Lily iria querer, percebeu. Ela viu algo melhor em mim. — Mas e a Isabelle? — lembrou-o Jordan. — Esqueceu-se de quem matou a sua filha? — Não — respondeu ele. — Mas matar mais pessoas não vai trazê-la de volta. Pessoas demais pagaram o preço pela minha vingança. Sanchez, Evee, Yul, Garrity, aquela garota na prisão… — Ele balançou a cabeça. — O preço é muito caro. — Mas e o preço de deixar os Marcados à solta? — insistiu Jordan. Ele não era o tipo de homem que levava um “não” como resposta facilmente. — Precisamos eliminá-los de uma vez por todas. — Precisamos mesmo? — desafiou-o Richard. — Isso é outra coisa. Aquela mulher da NTAC, Meghan Doyle, me contou que é possível curar os Marcados sem matá-los. — Ele não ficara feliz em saber daquilo. — Você se esqueceu de mencionar isso antes. Jordan franziu o rosto. — Tive minhas razões. — Claro que teve. Mas duvido que elas são boas o suficiente para mim. Jordan soltou um suspiro. — Vejo que não há como dissuadi-lo. Suponho que não eu devia ficar tão surpreso. Você sempre foi u m homem consciente. — Ele levantou-se d o sofá. — Antes que vá, no entanto, tenho um presente para você.


Um presente? Richard sentiu uma pontada d e apreensão. Mesmo que beneficente, Jordan sempre tinha um motivo escondido. Suas bênçãos sempre vinham com alguma coisa anexada. — Que tipo de presente? — Você verá. — Jordan caminhou pela sala e abriu uma porta para um corredor ao lado. — Por favor, mande Willard entrar. Richard s e preparou para u m a traição. El e n ã o esquecia a acusação de Ryland d e que Collier havia armado aquela surra em Virginia secretamente. Considerara perguntar a Jordan sobre isso cara a cara, mas de que adiantaria? Não havia como saber qual dos homens dizia a verdade. Ambos eram extremamente sem compaixão para serem confiáveis. Ele testou sua telecinese invocando uma xícara de chá da mesa. O inibidor de Ryland se dissipara rapidamente, como o s Marcados haviam descoberto para seu desgosto. Pelo menos posso me defender se precisar. — Quem é Willard? U m hom em magricela e sorridente adentrou a s a l a . U m r a b o d e cavalo prateado pendurava-se pelas suas costas. Óculos antiquados descansavam em seu nariz. Ele vestia um largo poncho de crochê por cima de uma camiseta de manga comprida e jeans. Suas sandálias faziam barulho ao baterem no chão de madeira resistente. — Conheça Willard Trice — disse Jordan. — Willard é um escultor forense talentoso, atualmente empregado n o Departamento d e Polícia d e Seattle para reconstruir os rostos de vítimas de assassinatos. Nos anos 80, ajudou a identificar do Assassino de Green River32. Ele costumava trabalhar com cera e argila, mas, desde o Grande Passo Adiante, encontrou um jeito mais recompensador. Richard esperou Jordan chegar ao ponto. — Muito interessante, mas o que isso tem a ver comigo? — É muito simples — disse Jordan. — Willard vai te dar um novo rosto. — Como? — Richard não tinha certeza se ouvira bem. — Um novo rosto? — Para uma vida nova em folha, a salvo da lista dos mais procurados. — Jordan parecia se divertir com a reação assustada de Richard. — Estou falando sério. Willard pode moldar carne e osso tão fácil como ele moldava argila. Pode rapidamente lhe dar uma nova identidade, se estiver interessado. 32 Gary Leon Ridgway, conhecido como o Assassino de Green River, é um serial killer americano. Matou inúmeras mulheres em Washington nos anos 80 e 90. — Melhor que cirurgia plástica — vangloriou-se o escultor. — E muito menos doloroso. — Eu confesso — divulgou Jordan. — que pretendia usar o dom de Willard para ajudá-lo a continuar seu trabalho sem ser reconhecido, mas acho que pode servir como um presente de


despedida também. — Ele colocou uma mão no ombro de Richard. — Você já sofreu bastante, Richard, algumas vezes por minha causa. Permita-me consertar as coisas antes que tomemos caminhos separados. Richard pensou sobre isso. Tinha que admitir que não queria viver o resto de sua vida se escondendo. E graças à sua façanha em Roma, agora era um fugitivo internacional. Ele observou as mãos de Willard com cuidado. — Machuca? — De maneira alguma — prometeu o artista. — O processo amortece os nervos enquanto o tecido está sendo remodelado. — Ele se aproximou e estendeu as mãos na direção do rosto de Richard. — Pense nisso como um botox psíquico. Richard hesitou quando o s dedos quentes d o artista tocaram suas bochechas. Começou a recuar, mas então pensou melhor. Enquanto tivesse esse rosto, sempre estaria olhando por cima do ombro por causa de Ryland, Sterling e pessoas como eles. Talvez Jordan tivesse razão, e essa fosse a melhor chance para um recomeço. — Vá em frente. — Bom homem — disse Willard com aprovação. — Não vai demorar muito. Dedos calejados, fortes por lutarem com argila durante anos, começaram a massagear o rosto de Richard. A princípio, parecia estar apenas explorando a superfície e o s contornos do semblante magro d e Richard, mas então, com um pouco de perturbação, o osso e o tecido começou a mudar e a escorregar sob seu toque. Um som úmido e caudaloso afastou os nervos de Richard enquanto Willard furava e apertava seu rosto, que de repente parecia ter a consistência de massinha de modelar. Era fácil imaginar a carne mole caindo ao chão. E se Willard mexesse muito nas coisas? Eu poderia terminar parecendo um Homem Elefante… ou pior. — Gostaria de um espelho? — perguntou Jordan. — Não! — disse Richard abruptamente. Os sons e a sensações já eram ruins o suficiente. Ele não precisava ver seu rosto se transformando em algum tipo distorcido d e trabalho em progresso. Era tarde demais para desistir agora. Tinha que deixar o artista terminar, ou passar o resto da vida parecendo uma escultura de cera derretida. Willard assobiava enquanto trabalhava. Ele claramente gostava d e sua profissão. Richard demorou um pouco para entender. “Rosto engraçado.” O processo parecia durar uma eternidade. Justo quanto Richard pensava que não podia aguentar mais, no entanto, Willard deu um passo atrás para admirar seu trabalho. — Excelente — declarou ele, sem modéstia. — O meu melhor até agora! Richard examinou seu rosto. Parecia sólido o suficiente, graças aos céus. A boca, o nariz e o s olhos pareciam estar nos lugares certos, mais o u menos, mas tudo parecia subitamente


diferente. Esse é mesmo o meu queixo? Jordan estendeu um espelho de mão. — Dê uma olhada, Richard. Não há o que temer. É fácil pra você dizer, pensou Richard. Ele aceitou o espelho nervosamente, então se preparou para o que estava prestes a ver. Sua boca secou. Ele respirou fundo e olhou para o espelho. O rosto de um estranho o olhou de volta. O reflexo pertencia a um homem de boa aparência, cujas feições eram mais largas e lisas que as de Richard. As linhas de preocupação haviam sido apagadas, dando-lhe uma aparência mais juvenil. Suas orelhas estavam menores e mais próximas dos lados d e sua cabeça. Uma mandíbula quadrada apresentava uma fenda distinta. Até mesmo seus olhos pareciam um pouco mais distantes. Nem mesmo Lily o teria reconhecido. — Em questões d e dias, uma nova identidade e o s papeis d e viagem estarão prontos — afirmou Jordan. — Terá que ter cuidado quanto à deixar impressões digitais e DNA para trás, mas com um novo rosto é improvável que isso seja um problema. Richard pensou que ele podia manter-se discreto para evitar complicações. — Obrigado — disse ele a Jordan e a Willard. — Sou grato por isso. A curiosidade apareceu nos olhos de Collier. — O que vai fazer agora, Richard? — Recomeçar, eu acho. Apenas encontrar paz e tranquilidade em algum lugar. De preferência, um lugar quente. Havaí, talvez, ou Jamaica. — Te desejo sorte, Richard. Mesmo. — Jordan sorriu pesarosamente. — Deve pensar, no entanto, que pode não ser possível um bom refúgio. Richard franziu as sobrancelhas. — O que quer dizer com isso? — Só que esses são tempos voláteis. Um conflito épico está se formando, um q u e irá determinar o destino deste planeta. — Jordan clamava ter testemunhado tal luta em primeira mão durante sua breve viagem pelo tempo. — O futuro te escolheu para desempenhar um papel nessa luta, junto com o resto dos 4400. Francamente, e me perdoe por dizer isso, eu duvido que você seja capaz de se afastar do combate para sempre. Richard torcia que, pelo menos uma vez, Jordan estivesse errado. — Me dê esse BlackBerry — disse Diana à sua filha. — E, a propósito, você está de castigo pelo resto do mês.


Maia olhou por cima de seu smartphone, consternada. Ela estava sentada no balcão da cozinha em casa, mandando mensagens para seus amigos enquanto devorava uma bandeja de macarrão com queijo feita no micro-ondas. Um amarelo amanteigado dava à cozinha u m ar mais animado. Ímãs colavam lembretes escolares à geladeira. Ela apertou o telefone. — Por quê? — Não sei — respondeu Diana sarcasticamente. Ela se preparou para a briga que viria, que viera adiando já havia dias. — Talvez porque tenha ido direto ao Jordan Collier com sua última visão. E acredito que não foi a primeira vez. Um lampejo de culpa passou pelo rosto de Maia, seguido de um beicinho carrancudo. — Quem me dedurou? Meghan? Marco? Diana não queria que Maia culpasse alguém a não ser ela mesma. — Eles só estão preocupados com você, querida. Porque eles se importam. — Ela sentou-se do outro lado do balcão. — Essas coisas nas quais está se metendo são perigosas. Aquela mensagem q u e mandou a o Jordan… Pessoas se machucaram, e até morreram, por causa dela. — Mas eu salvei o mundo, não salvei? — protestou Maia. — Eu impedi uma guerra. — Ela golpeou o macarrão com o garfo. — O futuro me escolheu com uma razão. O Jordan sabe disso. Por que não me deixa participar de tudo o que está acontecendo? Porque não quero que termine como Kyle Baldwin, pensou Diana. Ela vira como o Movimento de Collier se interpusera entre Tom e seu filho. E como Kyle ficara devastado com o que fora forçado a fazer no centro d e plasma n a outra noite. Ele parecia uma alma perdida quando saíra s e arrastando para a chuva depois d e ter matado aquelas pessoas, rejeitando o amor e o apoio de Tom. Ela achava que a parte dele naquele derramamento de sangue, acima de tudo o que já fizera a serviço de Collier, iria deixar cicatrizes em sua alma pelo resto da vida. Sua vida estava desmoronando por causa d e sua relação com o Movimento, isso sem mencionar sua relação com o pai. Não deixarei que isso aconteça com a Maia, prometeu ela. Mesmo que isso a faça pensar que eu sou a pior mãe da história do mundo. — Porque e u sou sua mãe e estou dizendo. — Ela s e inclinou e pegou o BlackBerry. — Um mês. Sem exceções. — Que se dane! — Levantando-se com atitude adolescente, Maia derrubou o banquinho e disparou na direção de seu quarto. Ela parou n a soleira d a porta para mais uma tentativa. — Você não pode me impedir, sabe. Eu vou fazer o que tenho que fazer. Diana ficou parada. Colocou as mãos em seus lábios. — Isso é uma visão ou uma ameaça? — Espere e veja — disse Maia.


Ela bateu a porta do quarto atrás de si. Kyle estava deitado acordado olhando para o teto. A tela do seu relógio despertador marcava 4:20 da manhã. Ele estava se mexendo e se virando há horas, incapaz de cair no sono. Lençóis suados enredavam-se em seu corpo. A fatiga o deixava para baixo, e ele se sentia mais morto do que vivo, embora o sono fosse elusivo de um modo frustrante. Nunca se sentira tão cansado. — Outra noite ruim, amor? Cassie s e materializou n a cama a o lado dele. El a arrastou-se a t é e l e por debaixo dos lençóis. O calor do corpo dela não adiantou muito para afastar sua miséria. — Só não consigo dormir — gemeu ele. — Por mais que eu tente. Isso estava se tornando uma provação noturna. Ele não tinha uma boa noite de sono desde o terrível pesadelo no centro de plasma. Toda vez que fechava os olhos, se via matando Abby e “Danny”. Suas expressões e olhares agonizantes, seus olhos sem vida o assombravam. Suas mortes violentas o davam nos nervos. Mesmo quando a total exaustão tomava conta, e ele conseguia algumas horas difíceis de sono, revivia as experiências infernais em seus sonhos, várias e várias vezes. O estrondo agudo da arma ecoava infinitas vezes em seus ouvidos. O cheiro desagradável d a pólvora d a arma queimava seus pulmões. O sangue quente o lavava como uma maré incessante. Soluçando, ele jogou o braço sobre os olhos numa tentativa inútil de bloquear as terríveis imagens. A culpa dava nós em seu estômago. — Você tem que aceitar o que aconteceu. — Cassie descansava a cabeça no travesseiro dele. — Não empurre. Agarre. Deixe que isso te faça mais forte, mais resistente. Mais como o guerreiro que você precisa se tornar. Quem disse que quero ser um guerreiro? Ele virou-se, e seus rostos ficaram separados por poucos centímetros. — Mas eu matei duas pessoas, Cassie. Como vou viver com isso? Você não entende? Acabei com a vida deles! Isso parecia não perturbá-la. — Criação e destruição são dois lados da mesma moeda. Como um xamã, você devia entender isso. Estamos mudando o mundo, Kyle, mas não conseguiremos até que você aceite o sacrifício necessário. Uma única geração de sacrifico, em troca do Paraíso. Fora isso o que Abby dissera, citando Jordan, logo antes que ele a matasse. Parecia uma barganha justa, mas ainda assim… — Não quero machucar mais ninguém. Ela gentilmente afagou o rosto dele. Sábios olhos verdes lhe ofereceram absolvição. — Não é assim q u e funciona, m e u amor. Quanto mais cedo aceitar isso, melhor você


dormirĂĄ. No fundo, ele sabia que ela tinha razĂŁo.


VINTE E DOIS — Então você insiste em dizer que não sabia nada sobre o que Grayson e Abigail estavam fazendo? Tom e Diana confrontavam Collier em seu escritório, no centro da cidade. Tinham levado uma semana para conseguir marcar uma hora com ele. Tom se perguntava se era porque Collier precisava de tempo para se livrar de qualquer evidência que o ligasse à operação. Esconder bem a verdade demandava muita atenção. — Enfaticamente — declarou Collier. Juntamente com Kyle, ele estava mais uma vez empenhado em redesenhar Seattle através d e seus esquemas holográficos. Um novo arranhacéu estava aparentemente destinado a se erguer acima da terra estéril e arrasada, anteriormente ocupada pelo Centro de Coleta de Plasma d o Pacífico. — Imaginem vocês, confesso que a finada Srta. Hunnicut me forneceu inteligência prática nas operações da NTAC. Eu seria bobo se não tirasse proveito de tão bem-posicionada fonte. Mas aquele negócio horrendo com o corpo do seu sobrinho… Eu não tive nada a ver com aquilo. — Tá vendo, pai? — disse Kyle. Pesados círculos sob seus olhos sugeriam que ele não vinha dormindo bem. Fazia dias que vinha evitando a s ligações de Tom. — Eu te disse que Jordan estava fora disto. Seu filho poderia estar inclinado a dar a Collier o benefício da dúvida, mas Tom não estava convencido da inocência dele. — E este tal Comitê de Alcance Global? Era parte da sua Fundação, não era? — Nossa organização tem crescido exponencialmente desde o Grande Passo para Adiante — declarou Collier, com irritante autoconfiança. — Infelizmente, temo que este crescimento rápido tenha superado a minha capacidade de estar por dentro d e cada novo programa ou iniciativa. Grayson e Abigail eram devotos desencaminhados, que excederam brutalmente sua autoridade. Uma supervisão mais efetiva é claramente necessária. Você tem a minha palavra de que isto terá prioridade máxima. Diana encarou a face de Collier bem de perto. A raiva quase incontrolável pontuava sua voz. — Isto é tudo o que você tem a dizer, depois do que fez à minha irmã? A NTAC havia informado a eles que April Skouris não fazia mais parte do quadro funcional do governo federal, e por quê. Desde então ela se recusava a responder as ligações e e-mails de Diana. Eles não tinham nem certeza absoluta de onde ela estava morando ultimamente. Jordan não estava surpreso pela explosão de Diana. Sem dúvida ele tinha se prevenido para responder àquilo. — Eu não peço desculpas por aquele lamentável incidente. Sua irmã me forçou àquilo — ele voltou a atenção para a silhueta holográfica. — E, para ser absolutamente claro, não tive


nada a ver com aquela conspiração genocida que vocês efetivamente frustraram. Eu ofereceria uma medalha a cada um de vocês, se assim aceitassem. Impor promicina é antiético e contrário a tudo o que eu sempre sustentei. A verdade ou ainda mais negação plausível? Infelizmente, não havia maneira de se saber ao certo. Tanto Grayson quanto Rosita tinham se recusado a incriminar Collier. April Skouris talvez fosse apta a arrancar a verdade deles, mas, por bem o u por mal, Collier tinha tirado aquela opção d o jogo. E s e nós conseguíssemos incriminar Collier por isto? Tom meditou, entristecido. Isto só iria dar a Dennis a desculpa de que ele precisa para declarar guerra a Seattle. Era uma causa perdida. — Está certo — disse Diana, amargamente. — Você não admite brincar de ser Deus, a não ser quando é do seu interesse. Tom admirou o controle de sua parceira. Se Collier desse uma de vampiro para cima de Meghan ou Kyle, eu voaria em cima dele. Com ou sem seguranças. — Acreditem em mim, Tom e Diana — insistiu Collier. — Eu jamais lançaria uma versão aérea de promicina sobre o mundo. Exceto, talvez, em retaliação a um ataque militar à Terra Prometida. Aquilo era uma confissão? Ou uma advertência? Tom não conseguia se livrar da sensação de que Collier estava jogando um jogo muito perigoso. Ao menos eu ainda sou negativo para promicina, pensou ele. Um teste de sangue havia confirmado que as U-Pills tinham-no protegido da contaminação. Se aquela maldita profecia estiver certa, Collier não poderá vencer enquanto eu não tomar a injeção. E isto não iria acontecer tão cedo. Mais tarde, depois de deixar Tom no quartel-general para relatar a Meghan o encontro inconclusivo com Collier, Diana foi cuidar de outro problema. Ela abriu a porta do laboratório de Kevin Burkoff no Centro 4400. Ainda havia a questão das amostras de sangue roubadas a ser resolvida. — Kevin? Dr. Burkoff? Para surpresa dela, o laboratório estava desfeito. Todo o equipamento e os arquivos haviam sumido, exceto por um solitário laptop aberto sobre um balcão todo marcado de ácido. Não havia sinal nem de Burkoff, nem de Tess. Mas o que é isso? Ela havia ligado antes, para marcar aquele encontro. Kevin deveria estar ali. Por u m segundo, ela temeu que Collier tivesse abduzido Burkoff novamente, como fizera alguns meses antes, na esperança de impedir Kevin de aperfeiçoar seu teste d e compatibilidade d e promicina. Shawn e Tess haviam resgatado Kevin das garras de Collier na época, mas talvez o chefão da Terra Prometida tivesse tentado novamente. Mas por que deixar aquele laptop para trás?


Diana olhou o computador mais de perto. Uma proteção d e tela exibindo vistas aéreas da Space Needle33 ocupava o monitor. Um papelzinho de aviso estava colado ao teclado. “Ligueme”, estava escrito nele, na caligrafia distintamente apertada d e Kevin. Sementes d e girassol perdidas haviam se infiltrado entre as teclas. Diana pressionou “enter”. Um videoclipe substituiu a Space Needle. Kevin Burkhoff apareceu na tela. Ele parecia cansado e nas últimas. Sua voz saiu das caixas de som. — Olá, Diana. Desculpe-me por não estar aqui para t e encontrar, como planejado, mas Tess e eu estamos indo embora para sempre. Há uma guerra iminente e não queremos tomar parte nisto. O que aconteceu na prisão foi a gota d’água. Tess já sofreu demais. Não posso deixar que algo mais aconteça com ela. “Neste computador estão todas as minhas notas atualizadas sobre o teste de compatibilidade. Você e Shawn são as únicas pessoas a quem eu confiaria minhas descobertas. Por favor, agradeça a ele por toda a hospitalidade. Eu não queria que tivéssemos que sair dessa maneira, mas não poderíamos nos arriscar a ver você, ou Shawn, ou a NTAC, ou Collier tentarem nos impedir de partir. Vocês todos terão de tocar o barco sem nós. Já passamos da conta. Adeus e fiquem bem.” Tess aproximou seu rosto da tela. — Não tentem nos achar. O videoclipe acabou. Que tal esta, pensou Diana. Kevin e Tess haviam desertado novamente. Apesar disso, ela não podia culpá-los p o r optarem p o r sair d o s intermináveis conflitos envolvendo os 4400 e a gloriosa cruzada de Collier. Que se dane, Diana uma vez tentara fazer o mesmo, fugindo para a Espanha com Maia e um noivo, apenas para ser sugada de volta para Seattle. O noivo já era passado agora. Ela desejou sorte para Tess e Kevin. Espero que a fuga de vocês dure mais do que a minha. Entretanto, ela não podia deixar de se preocupar com aquelas amostras de sangue extraviadas. Haveria outro laboratório escondido, em algum lugar, apenas esperando para achar uma nova maneira de recriar o terrível dom de Danny Farrell? Apenas o futuro sabia – e eles não podiam prevê-lo. Fim 33 Space Needle (agulha espacial) – principal ponto turístico de Seattle, consiste em uma torre de observação que é o prédio mais alto da cidade e da região noroeste do Pacífico nos Estados Unidos.


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